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Lélia Gonzalez e o papel da mulher negra na sociedade brasileira

Dentro do mês em que se comemora o Dia internacional da mulher, é necessário falar sobre
Lélia Gonzalez. Mineira que se mudou para o Rio de Janeiro, formada em Filosofia com doutorado
em Antropologia, foi considerada uma das maiores intelectuais negras do nosso país no século XX.
Ela lutava pelo que chamava de embranquecimento dos aspectos culturais negros, que buscava
ocultar as manifestações e impactos da africanidade na realidade brasileira.
Lélia trabalhava com duas noções para buscar entender o “apagamento” cultural e a
prevalência de um discurso predominantemente branco na consciência e na memória das pessoas.
A partir desse contexto, Lélia descrevia que o papel da mulher negra na formação cultural teria três
estereótipos: a mulata, a doméstica e a mãe preta.
O estereótipo da “mulata” era das figuras principais na ideologia do branqueamento.
Encontrava-se no carnaval uma espécie de reforço da mitologia pelo simbolismo: a mulher negra se
transforma no objeto de desejo único: na “mulata deusa do meu samba”, “que passa com
graça/fazendo pirraça/fingindo inocente/tirando o sossego da gente” (Música Mulata Assanhada,
de Ataulfo Alves, eternizada na voz de Elza Soares). Momento no qual a mulher negra deixa se ser
anônima e se torna a figura de exaltação, o fetichismo sobre o seu corpo vira produto de
exportação. O mito da democracia racial nesse sentido escondia a “sua violência simbólica de
maneira especial sobre a mulher negra”, pois se há este momento único no qual ela é endeusada, no
restante do tempo ela se transfigura no outro estereótipo, na empregada doméstica. Aquela
A mulher negra “doméstica”, no discurso dominante da época, foi a que possibilitou a
ociosidade da mulher branca nas casas grandes, do período de colonização até bem depois da
abolição. A figura negra era, então, permitida no espaço do branco, como “mucama” e sua
serventia era relacionada a prestação de serviços domésticos.
Nessa lógica social, era sobre a mulher negra, mais pobre e marginalizada, que eram
exercidas as maiores violências, como dito por Lélia Gonzalez: “quem sofre mais tragicamente os
efeitos da terrível culpabilidade branca”. Além da prestação de serviços básicos, todas as questões
familiares são colocadas sobre ela. Isto porque seus companheiros, homens negros, são vítimas de
sistemática e violenta perseguição policial, vivem a morte de jovens negros e o fato da maior
parcela da população carcerária brasileira ser negra.
O papel da mulher branca de séculos atrás era parir o filho do senhor, mas ela mesma não
exercia a função materna. E Lélia Gonzalez aponta que a ideia da “mãe preta” é construída a partir
de um pretenso afeto, de amor e dedicação, mas na realidade ela exerce as funções parentais de um
filho que não é dela. Por isso, Lélia aponta que a “mãe preta” é a mãe de fato, pois ela amamenta,
dá banho, coloca para dormir, ensina a falar, cuida à noite. Esta função materna que a “mãe preta”
exerce reflete no desenvolvimento dos valores culturais daquelas crianças brancas, como disse Caio
Prado Júnior.
Um outro ponto a se destacar é com relação à língua. Lélia havia uma africanização do
português falado no Brasil, dando origem ao que chamou de pretuguês. Podemos entender como
um neologismo de tamanha força mas que é real, por exemplo, quando comparada à língua
portuguesa falada por portugueses e que não sofreu influência e heranças africanas. Em verdade,
muitos vocábulos estão tão acomodados no nosso idioma, que nem sequer paramos para pensar em
sua origem e o seu significado. Mas são de origem africana palavras como dengo, um pedido de
aconchego em outrem; quitanda, comércio onde se vende produtos como frutas, legumes, verduras,
etc. ; cafuné, acariciar a cabeça ou cabelos de alguém além de muvuca, aglomeração como modo
de lazer ou celebração ruidosa.

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