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Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia

MARCIO GOLDMAN
Professor Adjunto do PPGAS/MN/UFRJ; pes-
quisador do CNPq e bolsista da FAPERJ; autor
de Razão e Diferença. Afetividade, Racionalidade e
Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994),
Alguma Antropologia (1999) e Como Funciona a
Democracia. Uma Teoria Etnográfica da Política
(no prelo), além de co-organizador de Antropolo-
gia, Voto e Representação Política (1996). Realiza
trabalho de campo sobre política, etnicidade e
religiões afro-brasileiras em Ilhéus, sul da Bahia.

Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é tanto, parte intrínseca e constitutiva do tra-


um devir, escrever é atravessado por estranhos balho. De fato, Favret-Saada não se cansou de
devires que não são devires-escritor, mas devi- relatar, em diversas ocasiões, como os primeiros
res-rato, devires-inseto, devires-lobo etc. meses no campo (quase um ano, na verdade)
Gilles Deleuze e Félix Guattari foram, aparentemente, estéreis. Apenas a auto-
ra parecia se interessar por seu tema, a feitiça-
ria; seus interlocutores reagiam, antes, evitando
Jeanne Favret-Saada faz parte desse grupo o assunto, negando ou denegando sua própria
de autores conhecidos por terem escrito um existência, imputando-o a pessoas tidas como
livro. Neste caso, ainda que isso fosse intei- ignorantes ou remetendo-o a um passado já su-
ramente verdadeiro, não se poderia dizer que perado há muito tempo.
trata-se de pouca coisa. Les Mots, la Mort, les Se a pesquisa tivesse, então, durado “apenas”
Sorts é uma maravilha etnográfica e, ao mesmo um ano (quantos de nós dispomos mesmo des-
tempo, uma das raras obras-primas da história se prazo atualmente?), Favret-Saada não teria
do pensamento antropológico. Elaborado e es- muito a dizer além do que pode ser obtido pelo
crito em uma época (não tão distante assim) limitado procedimento de investigação que
em que a imagem do pensamento dominante Malinowski já condenava sob o nome de méto-
na academia ainda não era construída com os do de pergunta e resposta. Ou do que se pode
parâmetros empresariais capitalistas da rentabi- extrair da consulta de documentos e arquivos –
lidade e da produtividade, o livro levou quase onde, como lembra Favret-Saada (1981b: 336),
dez anos para ficar pronto. Período que envol- “o ‘povo’ é falado mais do que fala, aparecendo
veu uma longa e intensa pesquisa de campo, como o objeto do discurso administrativo, não
conduzida entre 1968 e 1971, sua redação e como o sujeito de um discurso autônomo” –
sua publicação, que só ocorreu em 1977. produzidos por aqueles mesmos que desprezam
Esse tempo – que hoje, certamente, seria e desejam condenar ao silêncio práticas como a
considerado apenas uma demora – faz, entre- feitiçaria. De psiquiatras, jornalistas e dos que

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se consideram parte das elites, não se pode es- do resultado de um processo de afetar, aquém
perar muita coisa quando o tema em questão ou além da representação.
parece desafiar suas certezas e até mesmo sua Não há nenhuma necessidade de supor,
dominação. tampouco, que os afetos de Favret-Saada no
O passar do tempo, entretanto, não é ape- mundo em que passara a viver (e que, por
nas o passar do tempo. Esse falso truísmo con- um tempo, filtrava também o mundo com o
duziria apenas às banalidades que repetem que, qual ela estava mais habituada e que costuma-
“com o tempo”, os nativos se acostumam com mos chamar de “nosso”) fossem idênticos aos
a presença dos etnógrafos e passam a se com- sentidos por aqueles que viviam mais longa e
portar mais normalmente e até mesmo a relatar cotidianamente, não a crença, mas a experi-
a eles seus segredos mais íntimos. ência da feitiçaria. Basta que os etnógrafos se
Em lugar de supor que o tempo apenas deixem afetar pelas mesmas forças que afetam
fornece um meio externo para as relações hu- os demais para que um certo tipo de relação
manas, é preciso compreender que ele é, ao possa se estabelecer, relação que envolve uma
contrário e em si mesmo, uma relação. Pois é comunicação muito mais complexa que a sim-
apenas com o tempo, e com um tempo não ples troca verbal a que alguns imaginam poder
mensurável pelos parâmetros quantitativos reduzir a prática etnográfica. Trata-se em suma,
mais usuais, que os etnógrafos podem ser afeta- como escreve a autora (Favret-Saada 1990a:
dos pelas complexas situações com que se depa- 7-9), de conceder “estatuto epistemológico a
ram – o que envolve também, é claro, a própria essas situações de comunicação involuntária e
percepção desses afetos ou desse processo de ser não intencional”, evitando a “desqualificação
afetado por aqueles com quem os etnógrafos se da palavra indígena” em benefício da “promo-
relacionam. Foi apenas quando alguém diag- ção da do etnógrafo”, assim como a armadilha
nosticou que a etnógrafa fora “pega” (prise) pela suprema de imaginar que fazer etnografia sig-
feitiçaria que passou a fazer algum sentido falar nifica “explorar as trevas com uma filosofia das
com ela sobre o assunto. Luzes” (Favret-Saada 1981b: 344).
Não se trata, contudo, de imaginar nenhum Em função de tudo isso, Les Mots, la Mort,
crédulo local que, para a felicidade de uma pes- les Sorts não pode ser enquadrado em nenhum
quisadora que permaneceria distante e incó- dos dois estilos etnográficos contemporâneos
lume em sua objetividade de cientista, tivesse mais usuais. Não se trata de apresentar as pes-
decidido “acreditar” que ela também fora en- soas e suas ações (inclusive o que elas dizem e,
feitiçada. Na verdade, Favret-Saada tinha seus às vezes, até mesmo o que elas supostamente
sintomas, de repetidos acidentes de automóvel pensam) como um antigo naturalista descrevia,
a um certo tremor das mãos e um brilho di- sobre um mesmo plano, fauna, flora e geografia.
ferente no olhar. Sintomas que permitiam le- Mas não se trata, tampouco – após condenar
vantar a hipótese do enfeitiçamento. Por outro essa primeira modalidade de descrição como
lado, indagar se ela também “acreditava” na fei- empirista, ingênua ou autoritária, na medida
tiçaria é igualmente um exercício cheio de inu- em que se arroga o direito de representar o ou-
tilidade, uma vez que não se trata, justamente, tro –, de voltar-se para dentro, opondo uma
de crença, mas – como o leitor aprenderá no suposta transparência do sujeito para si mesmo
texto da autora aqui traduzido em ótima hora à opacidade do mundo dos outros. Ao transi-
– de afeto. Não de afeto no sentido da emoção tar do cientificismo para algo como um certo
que escapa da razão, mas de afeto no sentido tipo de autobiografia, o gênero etnográfico não

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parece ter avançado muito: “que um etnógrafo E, de fato, é quase tão difícil encontrar uma
aceite ser afetado não implica que se identifi- crítica explícita ao livro quanto um trabalho
que com o ponto de vista indígena, nem que que leve efetivamente a sério as potencialida-
aproveite a experiência de campo para excitar des por ele abertas.
seu narcisismo” (Favret-Saada 1990a: 7). Para fazê-lo seria preciso abandonar de vez o
Na verdade, conta a autora (Favret-Saada paradigma cientificista no qual ainda nos mo-
2004a), os afetos suscitados no campo, “a des- vemos em benefício de um método “clínico”,
possessão e a perda de controle de si, a acei- no sentido médico e psicanalítico do termo.
tação do desejo desconhecido do outro, o Na primeira opção, as escolhas são limitadas:
reconhecimento de uma opacidade constitu- ou procedemos indutivamente, generalizando a
tiva da comunicação humana”, tudo isso que partir do maior número possível de casos empí-
era “insuportável para os etnólogos”, era “banal ricos, ou dedutivamente, por meio da aplicação
para os psicanalistas”. Por outro lado, bastou a qualquer caso concreto de alguns princípios
que a autora sustentasse que a feitiçaria – ou gerais previamente estabelecidos. Favret-Saada,
antes, o desenfeitiçamento – constitui uma for- por outro lado, procede por meio da observação,
ma de terapia que nada deve à psicanálise, para exame e constituição de casos cuja singularidade
que o cientificismo que os analistas sem dúvida não elimina o fato de que cada um pode com-
compartilham com os etnólogos impedisse que partilhar com outros certos elementos e caracte-
a acolhida do trabalho de Favret-Saada fosse rísticas. Isso faz com que, aos olhos do clínico,
muito longe. De fato, ela sugere que não se tra- cada caso seja, ao mesmo tempo, uma síndrome
ta, no desenfeitiçamento, nem de uma forma única e parte de síndromes mais gerais, e que
primitiva de lidar com aquilo que só a ciên- cada um se beneficie indiretamente das anamne-
cia realmente conhece, nem de uma simples ses anteriores e contribua para as futuras.
modulação cultural de uma prática universal. Não é de admirar, portanto, que o trabalho
Trata-se, antes, de um dispositivo completo, de Favret-Saada tenha suscitado algumas rea-
destinado a “ajudar algumas pessoas”, dispositi- ções estranhas, tanto na mídia (Favret-Saada
vo que funciona tão bem (ou tão mal, segundo 1989b: 112) – onde ela chegou a ser batizada
os casos) quanto outro qualquer e que deveria de “a feiticeira do CNRS” (o Centro Nacional
ser investigado em conjunto com outras “insti- de Pesquisa Científica) – quanto na academia,
tuições curativas” – a psicanálise, por exemplo onde um colega chegou a sugerir que o CNRS
– no contexto de uma “antropologia das tera- deveria cancelar sua bolsa uma vez que, repu-
pias” (Favret-Saada 1989b: 55; 1990a: 3). diando a ciência, ela a teria empregado simples-
É uma certa forma de cientificismo, por- mente para aprender a se tornar uma feiticeira
tanto, que explica que tanto etnólogos quanto (Favret-Saada 1977a: 287).
analistas – por razões distintas, talvez – te- Em outras palavras, não são apenas os fan-
nham, ao mesmo tempo, admirado e recusado tasmas suscitados pela equívoca noção de ob-
Les Mots, la Mort, les Sorts. Como observou servação participante que, como sugere a autora
a autora (Favret-Saada 2004a), o livro parece (Favret-Saada 1990a: 5-6), tendem a funcionar
ter sido objeto do que Benjamin denominava como obstáculos para o trabalho do etnógrafo.
“incompreensão entusiasta”, uma espécie de Ela enumera outros: a similaridade cultural ex-
“quadro famoso, pendurado nas paredes dos cessiva do etnógrafo com o grupo estudado; a
departamentos de antropologia, que os estu- concentração da investigação nas elites e/ou nos
dantes são incitados a admirar sem imitar”. arquivos; a hipótese de que tudo se esclarece

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uma vez remetido ao “social”; a adoção de no- Pois se a primeira é, sabidamente, um modo de
ções como a de crença ou de ideais como “ob- promover modalidades de conflito (na conhe-
jetividade” e “cientificidade”. Isso não significa, cida forma das oposições e fissões segmentares)
é claro, que o antropólogo não possa estudar a e de, ao mesmo tempo, regulá-los (na forma
sociedade a que pertence, apenas que isso deve das fusões segmentares ou dos complexos sis-
ser feito com os cuidados e os distanciamentos temas de vingança e compensação), algo pare-
necessários; ou que arquivos e elites tenham cido poderia ser dito do enfeitiçamento e de
de ficar, necessariamente, fora da investigação, seu combate. Pois trata-se, aqui também, de
apenas que devem ser colocados em seu devido um conflito ou de uma oposição (entre feiti-
lugar; ou que as situações de enunciação, que ceiro e enfeitiçado), devidamente sistematizada
não se confundem com simples “contextos”, e, em geral, resolvida pela intervenção de uma
não sejam fundamentais para a análise; ou que terceira instância, o desenfeitiçador, que, no
as representações nativas, assim como o ideal de entanto, não aparece como externa e acima das
conhecimento do antropólogo, não tenham que demais (como ocorreria com uma regulação es-
ser respeitados, uma vez que trata-se sempre, na tatal ou médica de conflitos ou perturbações),
etnografia, de uma espécie de alinhamento en- e sim como um aliado e um duplo da vítima
tre esses programas de verdade (cf. Favret-Saada contra seu inimigo. Nesse sentido, a violência
1977a: 287, passim). e as formas de, ao mesmo tempo desencadeá-la
Se fosse, então, inteiramente verdadeiro e regulá-la, aparecem como tema que de certo
que Jeanne Favret-Saada é autora de um livro, e modo atravessa não apenas essas duas fases do
se esse livro for Les Mots, la Mort, les Sorts, isso trabalho da autora bem como aquela que a es-
já seria bastante. Entretanto, e evidentemente, tas se segue.
não é bem assim que as coisas se passam. Na Do final da década de 1980 ao início da de
verdade, os primeiros trabalhos de Favret- 1990, foi em torno da feitiçaria e de suas implica-
Saada (reapresentados em Favret-Saada 2005) ções (como modalidade de violência, como par-
como antropóloga remontam ao final da dé- te de práticas terapêuticas, como locus de afetos,
cada de 1950, quando investigou sistemas seg- como questão para a etnografia e a antropolo-
mentares árabes e bérberes no norte da África, gia…) que se concentrou o trabalho de Favret-
em campos relativamente próximos a seu local Saada. A partir daí, um novo tema – sem dúvida
de nascimento no sul da Tunísia (em 1934, em relacionado aos anteriores – passou a ocupar sua
uma família de origem judaica). Após a inde- atenção, a blasfêmia e o projeto de elaboração
pendência da Argélia, Favret-Saada mudou-se de uma antropologia da blasfêmia. Atenção sus-
para a França, onde os acontecimentos de maio citada, em parte, pelas reações ao chamado Caso
de 1968 fizeram com que decidisse concentrar Rushdie e à exibição do filme Amem, de Costa-
sua pesquisa, tendo em vista não deixar o país Gavras, mas também pelo impacto da constata-
em um momento que, como militante política, ção de que “religiões que sempre se detestaram”
considerava fundamental. Dessa decisão, e de se uniam “contra a modernidade ‘blasfemadora’”
modo algo tortuoso, nasceu a pesquisa sobre (Favret-Saada 2004a).
feitiçaria na região do Bocage francês. Essa antropologia da blasfêmia, por sua
Entre as duas temáticas, despontam alguns vez, conduziu Favret-Saada à elaboração de
pontos de contato – o mais sugestivo sendo, um trabalho (em colaboração, mais uma vez,
sem dúvida, uma certa relação de redundân- com Josée Contreras, psicanalista que com ela
cia entre segmentaridade e desenfeitiçamento. trabalhou em outras ocasiões, especialmente na

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edição de parte de suas notas de campo – Fa- 1968. “Relations de Dépendance et Manipulation de la
vret-Saada 1981a) acerca das relações entre o Violence en Kabylie”. L’Homme, VIII: 18-44.
1977a. Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard.
cristianismo e os judeus na Europa nos últimos
1977b. “Excusez-Moi, je ne Faisais que Passer”. Les Temps
dois séculos. Assim como ao que deve ser seu Modernes, 371: 2089-2103.
próximo livro, que examinará como, a partir 1981a. Corps pour Corps. Paris: Gallimard (em colabora-
de 1880, as apresentações teatrais da Paixão de ção com Josée Contreras).
Cristo passaram a ser condenadas por diversas 1981b. “Sorcières et Lumières”. In Jeanne Favret-Saada
igrejas protestantes, às quais, não obstante, não & Josée Contreras. Corps pour Corps. Paris: Gallimard,
pp. 333-363.
apenas não estendiam essa condenação às exibi-
1981c. “Corps pour Corps”. Les Temps Modernes, 416:
ções cinematográficas da mesma Paixão, como 1589-1607 (em colaboração com Josée Contreras).
até mesmo as incentivavam. 1984. “Jeanne Favret-Saada”. In Idées Contemporaines.
Não é difícil, pois, perceber que na obra Entretiens Le Monde. Paris: La Découverte.
de Jeanne Favret-Saada agenciam-se, de forma 1985. “L’Embrayeur de Violence: Quelques Mécanismes
muito singular, afetos muito diferentes: alguns Thérapeutiques du Désorcèlement” In J. Contreras et
alii. Le Moi et l’Autre. Paris, Denoël, pp. 95-148.
ligados à sua história pessoal, outros às suas op-
1985. “La Thérapie sans le Savoir”. Nouvelle Revue de
ções éticas e políticas, outros, ainda, relaciona- Psychanalyse, 31.
dos com a antropologia como campo de saber, 1989a. “La Genése du ‘Producteur Individuel’”. In Annie
e assim por diante. Mas uma das originalidades M.D. Lebeuf et alii. Singularités. Textes pour Éric de
de seu trabalho talvez resida no fato de que o Dampierre. Paris: Plon, pp. 485-496.
principal operador desse agenciamento sejam 1989b. “Unbewitching as Terapy”. American Ethnologist,
16 (1): 40-56.
os afetos suscitados ou revelados em uma expe-
1990a. “Etre Affecté”. Gradhiva. Revue d’Histoire et
riência vivida da alteridade, seja no trabalho de d’Archives de l’Anthropologie, 8: 3-9.
campo, seja por outros meios. O que produz 1990b. “Ah! La Féline, la Sale Voisine…”. Terrain, 14:
resultados que, evidentemente, reagem sobre 20-31 (em colaboração com Josée Contreras). [http://
os próprios afetos agenciados: “há, em mim, terrain.revues.org/document2968.html]
uma espécie de perpétua retroação entre um 1991a. “Sale Histoire”. Gradhiva. Revue d’Histoire et
d’Archives de l’Anthropologie, 10: 3-10.
modo não partidário de ser em política e um
1991b. “Le Désorcèlement Comme Thérapie”. Ethnologie
modo não escolar de fazer a pesquisa” (Favret- Française, 2.
Saada 1984). 1991c. “Rushdie et Compagnie. Préalables à une Anthro-
pologie du Blasphème”. Ethnologie Française, 3.
Referências bibliográficas 1994. “Weber, les Émotions et la Religion”. Terrain, 22: 93-
108. [http://terrain.revues.org/document2968.html]
1995. “Liaisons Fatales”. Esprit, 12.
Além dos textos acima citados, esta biblio-
2000. “La-Pensée-Lévi-Strauss”. ProChoix, 13: 13-18.
grafia, ainda que incompleta, reúne a maior [http://www.prochoix.org/pdf/levi-strauss.pdf ]
parte dos trabalhos de Jeanne Favret-Saada. Seu 2002. “Amen: une ‘Juste’ Polémique?”. ProChoix, 21.
último posto acadêmico foi o de diretora de pes- 2004a. “Glissements de Terrains Entretien avec Jeanne
quisa na École Pratique des Hautes Études, titular Favret-Saada”. Vacarme, 28. [http://www.vacarme.
da cadeira de etnologia religiosa da Europa. eu.org/article449.html]
2004b. Le Christianisme et ses Juifs. 1800-2000. Paris:
Seuil (em colaboração com Josée Contreras).
1966. “La Segmentarité au Maghreb”. L’Homme, VI:
2005. Algérie, 1962-1964, Essais d’Anthropologie Politi-
105-111.
que. Paris: Éd. Bouchene.
1967. “Le Traditionnalisme par Excès de Modernité”. Ar-
chives Européennes de Sociologie, VIII: 71-93.

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“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada*

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PAULA SIQUEIRA TÂNIA STOLZE LIMA
Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/ Professora Doutora de Antropologia pelo
MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais, ICHF/UFF.
política e religião em Nilo Peçanha, no Baixo
Sul da Bahia.

Meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage De um modo mais geral, meu trabalho põe
francês levou-me a reconsiderar a noção de em causa o fato de que a antropologia acha-se
afeto, e a pressentir o interesse que haveria em acantonada no estudo dos aspectos intelectu-
trabalhá-la: primeiro, para apreender uma di- ais da experiência humana, nas produções cul-
mensão central do trabalho de campo (a mo- turais do “entendimento”, para empregar um
dalidade de ser afetado); depois, para fazer uma termo da filosofia clássica. É – parece-me – ur-
antropologia das terapias (tanto “selvagens” gente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto
exóticas, como “científicas” ocidentais); e final- que estamos mais bem equipados para abordá-
mente, para repensar a antropologia. la do que os filósofos do século XVII.
Com efeito, minha experiência de cam- Inicialmente, valem algumas reflexões sobre
po com o desenfeitiçamento, e, em seguida, o modo como obtive minhas informações de
minha experiência com a terapia analítica le- campo: não pude fazer outra coisa a não ser
varam-me a pôr em questão o tratamento pa- aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e ado-
radoxal do afeto na antropologia: em geral, os tei um dispositivo metodológico tal que me
autores ignoram ou negam seu lugar na expe- permitisse elaborar um certo saber posterior-
riência humana. Quando o reconhecem, ou é mente. Vou mostrar como esse dispositivo não
para demonstrar que os afetos são o mero pro- era nem observação participante, nem (menos
duto de uma construção cultural, e que não ainda) empatia.
têm nenhuma consistência fora dessa constru- Quando viajei para o Bocage, em 1968, ha-
ção, como manifesta uma abundante literatura via uma abundante literatura etnográfica sobre
anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desapa- feitiçaria, composta de dois conjuntos de textos
recimento, atribuindo-lhe como único destino heterogêneos e que se ignoravam mutuamente:
possível o de passar para o registro da represen- aquele dos folcloristas europeus (que se tinham
tação, como manifesta a etnologia francesa e recentemente condecorado com o título vanta-
também a psicanálise. Trabalho, ao contrário, joso de “etnólogos”, embora não tivessem mu-
com a hipótese de que a eficácia terapêutica, dado em nada sua forma de trabalhar), e aquele
quando ela se dá, resulta de um certo trabalho dos antropólogos anglo-saxões, sobretudo afri-
realizado sobre o afeto não representado. canistas e funcionalistas.
Os folcloristas europeus não tinham nenhum
* FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. conhecimento direto da feitiçaria rural: seguindo
In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de as prescrições de Van Gennep, eles praticavam
l’Anthropologie, 8. pp. 3-9. investigações regionais, encontrando-se com as

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elites locais (o grupo menos bem situado para sa- te erros e imaginações nativas. (Ressaltemos de
ber alguma coisa sobre o assunto) ou enviando- passagem que, para esses autores, falar não é
lhes questionários, interrogando também alguns um comportamento, nem um ato suscetível
camponeses para saber se “ainda se acreditava de ser observado). Esses antropólogos davam
nisso”. As respostas recebidas eram tão uniformes respostas precisas a uma única questão – quem
quanto as questões: “aqui, não, mas na aldeia vi- acusa quem de o ter enfeitiçado em dada socie-
zinha, são uns atrasados…”. Seguiam-se, ainda, dade? – mas ficavam mudos quanto a todas as
algumas anedotas céticas ridicularizando os cren- outras – como se entra numa crise de feitiçaria?
tes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnó- Como se sai dela? Quais são as idéias, as expe-
logos franceses, desde que se tratasse de feitiçaria, riências e as práticas dos enfeitiçados e dos seus
dispensavam-se tanto de observar como de par- magos? Nem mesmo um autor tão minucioso
ticipar (situação que permanece, aliás, a mesma, quanto Turner permite sabê-lo, e, para se fazer
ainda em 1990). Os antropólogos anglo-saxões uma idéia disso, é preciso voltar à leitura de
pretendiam, ao menos, pôr em prática a “obser- Evans-Pritchard (1937).
vação participante”. Levei um certo tempo para De maneira geral, havia nessa literatura um
deduzir dos seus textos sobre feitiçaria que con- perpétuo deslizamento de sentido entre vá-
teúdo empírico podia-se atribuir a essa curiosa rios termos que teria sido melhor distinguir: a
expressão. Em retórica, isso se chama oxímoro: “verdade” vinha escorrer sobre o “real”, e este,
observar participando, ou participar observando, sobre o “observável” (aqui, havia uma confu-
é quase tão evidente como tomar um sorvete fer- são suplementar entre o observável como saber
vente. No campo, meus colegas pareciam combi- empiricamente verificável, e o observável como
nar dois gêneros de comportamento: um, ativo, saber independente das declarações nativas),
de trabalho regular com informantes pagos, os depois sobre o “fato”, o “ato” ou o “compor-
quais eles interrogavam e observavam; o outro, tamento”. Essa nebulosa de significações tinha
passivo, de observação de eventos ligados à fei- por único traço comum o fato de opor-se a seu
tiçaria (disputas, consultas a adivinhos…). Ora, simétrico: o “erro” escorria sobre o “imaginá-
o primeiro comportamento não pode de forma rio”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e,
alguma ser designado pelo termo “participação” por fim, sobre a “palavra” nativa.
(o informante, ao contrário, é quem parece “par- Aliás, não há nada mais incerto que o esta-
ticipar” do trabalho do etnógrafo); e, quanto ao tuto da palavra nativa nesses textos: às vezes, ele
segundo, “participar” equivale à tentativa de estar é classificado entre os comportamentos (acu-
lá, sendo essa participação o mínimo necessário sar) e, às vezes, entre as proposições falsas (in-
para que uma observação seja possível. vocar a feitiçaria para explicar uma doença). A
Portanto, o que contava, para esses antropó- atividade de fala – enunciação – é escamoteada,
logos, não era a participação, mas a observação. não restando mais do discurso nativo que seu
Desta, eles tinham, aliás, uma concepção bas- resultado, isto é, os enunciados são impropria-
tante estreita: sua análise da feitiçaria reduzia- mente tratados como proposições e a atividade
se àquelas das acusações, porque, diziam eles, simbólica reduz-se a emitir proposições falsas.
são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode Como se pode ver, todas essas confusões gi-
“observar”. Acusar é, para eles, um “compor- ram em torno de um ponto comum: a desqua-
tamento”, é até mesmo o comportamento por lificação da palavra nativa, a promoção daquela
excelência da feitiçaria, já que é o único empiri- do etnógrafo, cuja atividade parece consistir
camente verificável, todo o resto sendo somen- em fazer um desvio pela África para verificar

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que apenas ele detém… não se sabe bem o quê, Pois então, eles falaram disso comigo somen-
um conjunto de noções politéticas, equivalen- te quando pensaram que eu tinha sido “pega”
tes para ele à verdade. pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que
Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiçaria escapavam ao meu controle lhes mostraram
no Bocage. Lendo essa literatura anglo-saxã para que estava afetada pelos efeitos reais – freqüen-
ajudar em meu trabalho de campo, fiquei im- temente devastadores – de tais falas e de tais
pressionada com uma curiosa obsessão presen- atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era
te em todos os prefácios: os autores (e o grande uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim
Evans-Pritchard não era exceção) negavam regu- para solicitar o ofício; outros pensaram que eu
larmente a possibilidade de uma feitiçaria rural estava enfeitiçada e conversaram comigo para
na Europa de hoje. Ora, não somente eu estava me ajudar a sair desse estado. Com exceção
dentro dela, como a feitiçaria era amplamente dos notáveis (que falavam voluntariamente de
verificada em várias outras regiões, ao menos feitiçaria, mas para desqualificá-la), ninguém
pelos folcloristas europeus. Por que um erro em- jamais teve a idéia de falar disso comigo sim-
pírico tão evidente, tão grande e tão comparti- plesmente por eu ser etnógrafa.
lhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa Eu mesma não sabia bem se ainda era et-
absurda de realizar novamente a Grande Divisão nógrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma
entre “eles” e “nós” (“nós” também já acredita- proposição verdadeira que um feiticeiro pudesse
mos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos, me prejudicar fazendo feitiços ou pronuncian-
quando “nós” éramos “eles”), e assim proteger do encantamentos, mas duvido que os próprios
o etnólogo (esse ser a-cultural, cujo cérebro so- camponeses tenham algum dia acreditado nis-
mente conteria proposições verdadeiras) contra so dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de
qualquer contaminação pelo seu objeto. mim que eu experimentasse pessoalmente por
Talvez isso fosse possível na África, mas eu minha própria conta – não por aquela da ci-
estava na França. Os camponeses do Bocage ência – os efeitos reais dessa rede particular de
recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande comunicação humana em que consiste a feiti-
Divisão comigo, sabendo bem onde isso de- çaria. Dito de outra forma: eles queriam que
veria terminar: eu ficaria com o melhor lugar aceitasse entrar nisso como parceira e que aí
(aquele do saber, da ciência, da verdade, do investisse os problemas de minha existência de
real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o então. No começo, não parei de oscilar entre
pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Esco- esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o
la, a Medicina, todas as instâncias nacionais de trabalho de campo se tornaria uma aventura
controle ideológico os colocavam à margem da pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas
nação sempre que um caso de feitiçaria termi- se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à
nava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era distância, não acharia nada para “observar”. No
apresentada como o cúmulo do campesinato, e primeiro caso, meu projeto de conhecimento
este como o cúmulo do atraso ou da imbecili- estava ameaçado, no segundo, arruinado.
dade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir Embora, durante a pesquisa de campo, não
o acesso a uma instituição que lhes prestava ser- soubesse o que estava fazendo, e tampouco o
viços tão eminentes, ergueram a sólida barreira porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das
do mutismo, com justificações do gênero: “Fei- minhas escolhas metodológicas de então: tudo
tiço, quem não pegou não pode falar disso” ou se passou como se tivesse tentado fazer da “par-
“a gente não pode falar disso com eles”. ticipação” um instrumento de conhecimento.

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158 |    

Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeiti- trar-se fora das horas de trabalho, durante as
çadores, deixei-me afetar, sem procurar pesqui- quais eram obrigados a representar diante dos
sar, nem mesmo compreender e reter. Chegando nativos. Em suma, um espaço de recreação pes-
em casa, redigia um tipo de crônica desses even- soal, no sentido literal do termo. As considera-
tos enigmáticos (às vezes aconteciam situações ções privadas ou subjetivas estão, ao contrário,
carregadas de uma tal intensidade que me era ausentes do meu próprio diário, exceto se tal
impossível fazer essas notas a posteriori). Esse evento de minha vida pessoal tivesse sido evo-
diário de campo, que foi durante longo tempo cado com meus interlocutores, quer dizer, se
meu único material, tinha dois objetivos: tivesse sido incluído na rede de comunicação
– O primeiro era a curto prazo: tentar com- da feitiçaria.
preender o que queriam de mim, achar uma Uma das situações que vivia no campo era
resposta a questões urgentes do gênero: “Por praticamente inenarrável: era tão complexa que
quem X me toma?” (uma enfeitiçada, uma desafiava a rememoração, e de todos os modos,
desenfeitiçadora), “O que Y quer de mim?” afetava-me demais. Trata-se das sessões de de-
(que eu o desenfeitice…). Eu tinha interesse senfeitiçamento a que assistia, seja como enfei-
em achar uma boa resposta, já que no encon- tiçada (minha vida pessoal estava passando pelo
tro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em crivo e eu era instada a modificá-la), seja como
geral, não tinha os meios necessários para isso: testemunha dos clientes, mas também da tera-
a literatura etnográfica sobre feitiçaria, tanto peuta (eu era constantemente instada a intervir
anglo-saxã quanto francesa, não permitia que bruscamente). No começo, tomei muitas notas
se representasse esse sistema de lugares em que depois de chegar em casa, mas era muito mais
consiste a feitiçaria. Eu estava justamente expe- para acalmar a angústia de ter-me pessoalmente
rimentando esse sistema, expondo-me a mim engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar
mesma nele. que me tinha sido designado nas sessões, prati-
– O outro objetivo era a longo prazo: por camente não tomei mais notas: tudo se passava
mais que vivesse uma aventura pessoal fasci- muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me
nante, em nenhum momento resignei-me a questões, e, da primeira sessão até a última, não
não compreender. Na época, aliás, não sabia tinha compreendido praticamente nada do que
muito para que ou por que queria poder com- tinha acontecido. Mas registrei discretamente
preender, se para mim, para a antropologia umas trinta sessões das aproximadamente du-
ou para a consciência européia. Mas eu orga- zentas a que assisti para constituir um material
nizava meu diário de campo para que servisse sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde.
mais tarde a uma operação de conhecimento: A fim de evitar os mal entendidos, gostaria
minhas notas eram de uma precisão maníaca de ressaltar o seguinte: aceitar “participar” e ser
para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os afetado não tem nada a ver com uma operação
eventos, e então – como eu não estaria mais de conhecimento por empatia, qualquer que
“enfeitiçada”, apenas “reenfeitiçada” – compre- seja o sentido em que se entende esse termo.
endê-los, eventualmente. Vou considerar as duas acepções principais e
Os leitores de Corps pour Corps terão nota- mostrar que nenhuma delas designa o que pra-
do que não há nada neste diário que o asseme- tiquei no campo.
lhe àqueles de Malinowski ou de Métraux. O Segundo a primeira acepção (indicada na
diário de campo era para eles um espaço íntimo Encyclopedia of Psychology), sentir empatia con-
onde podiam enfim se deixar livres, reencon- sistiria, para uma pessoa, em “vicariously expe-

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 ,   - | 

riencing the feelings, perceptions and thoughts of tária e desprovida de intencionalidade, e que
another”1. Por definição, esse gênero de empa- pode ser verbal ou não.
tia supõe, portanto, a distância: é justamente Quando é verbal, acontece mais ou menos
porque não se está no lugar do outro que se isto: alguma coisa me impele a falar (digamos,
tenta representar ou imaginar o que seria estar o afeto não representado), mas não sei o quê, e
lá, e quais “sensações, percepções e pensamen- tampouco sei por que isso me impele a dizer jus-
tos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente tamente aquilo. Por exemplo, digo a um cam-
no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, ponês, em eco a alguma coisa que ele me disse:
percepções e pelos pensamentos” de quem ocu- “Pois é, eu sonhei que…”, e eu não teria como
pa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo explicar esse “pois é”. Ou então meu interlocu-
que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de ima- tor observa, sem fazer qualquer ligação: “Outro
ginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com
se passa é literalmente inimaginável, sobretudo essas erupções no rosto”. O que se diz aí, impli-
para um etnógrafo, habituado a trabalhar com citamente, é a constatação de que fui afetada: no
representações: quando se está em um tal lugar, primeiro caso, eu própria faço essa constatação,
é-se bombardeado por intensidades específicas no segundo, é um outro quem a faz.
(chamemo-las de afetos), que geralmente não Quando essa comunicação não é verbal, o
são significáveis. Esse lugar e as intensidades que é então que é comunicado e como? Tra-
que lhe são ligadas têm então que ser experi- ta-se justamente da comunicação imediata que
mentados: é a única maneira de aproximá-los. o termo einfühlung evoca. Apesar disso, o que
Uma segunda acepção de empatia – ein- me é comunicado é somente a intensidade de
fühlung, que poderia ser traduzida por co- que o outro está afetado (em termos técnicos,
munhão afetiva – insiste, ao contrário, na falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma
instantaneidade da comunicação, na fusão com carga energética). As imagens que, para ele e
o outro que se atingiria pela identificação com somente para ele, são associadas a essa intensi-
ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanis- dade escapam a esse tipo de comunicação. Da
mo da identificação, mas insiste em seu resul- minha parte, encaixo essa carga energética de
tado, no fato de que ela permite conhecer os um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um
afetos de outrem. distúrbio provisório de percepção, uma quase
Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar alucinação, ou uma modificação das dimensões;
no sistema da feitiçaria não me informa nada ou ainda, estou submersa num sentimento de
sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afe- pânico, ou de angústia maciça. Não é neces-
ta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu sário (e, aliás, não é freqüente) que esse seja o
próprio estoque de imagens, sem contudo ins- caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo,
truir-me sobre aquele dos meus parceiros. estar completamente inafetado na aparência.
Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui Suponhamos que não lute contra esse esta-
que se torna eventualmente possível o gênero do, que o receba como uma comunicação de
de conhecimento a que viso –, o próprio fato alguma coisa que não saiba o que é. Isso me
de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada impele a falar, mas da forma evocada anterior-
por ele abre uma comunicação específica com mente (“então, eu sonhei que…”), ou a calar-
os nativos: uma comunicação sempre involun- me. Nesses momentos, se for capaz de esquecer
que estou em campo, que estou trabalhando, se
1. Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indi- for capaz de esquecer que tenho meu estoque
reta, as sensações, percepções e pensamentos do outro”.

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160 |    

de questões a fazer… se for capaz de dizer-me que não estava em condições de praticar essa
que a comunicação (etnográfica ou não, pois comunicação pobre, pois estava invadido por
não é mais esse o problema) está precisamen- uma situação e/ou por seus próprios afetos.
te se dando, assim, desse modo insuportável e Ora, nas etnografias, essas situações, apesar de
incompreensível, então estou direcionada para banais e recorrentes, de comunicação involun-
uma variedade particular de experiência huma- tária e desprovida de intencionalidade não são
na – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por jamais consideradas como aquilo que são: as
ela estou afetada. “informações” que elas trouxeram ao etnógrafo
Ora, entre pessoas igualmente afetadas aparecem no texto, mas sem nenhuma referên-
por estarem ocupando tais lugares, acontecem cia à intensidade afetiva que as acompanhava
coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo na realidade; e essas “informações” são coloca-
assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não das exatamente no mesmo plano que as outras,
falam, ou então as pessoas se calam, mas trata- aquelas que são produzidas pela comunicação
se também de comunicação. Experimentando voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, in-
as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se, clusive, que virar um etnógrafo profissional é
aliás, que cada um apresenta uma espécie par- tornar-se capaz de maquiar automaticamente
ticular de objetividade: ali só pode acontecer todo episódio de sua experiência de campo em
uma certa ordem de eventos, não se pode ser uma comunicação voluntária e intencional vi-
afetado senão de um certo modo. sando ao aprendizado de um sistema de repre-
Como se vê, quando um etnógrafo aceita sentações nativas.
ser afetado, isso não implica identificar-se com Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto
o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da epistemológico a essas situações de comunica-
experiência de campo para exercitar seu narci- ção involuntária e não intencional: é voltando
sismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que sucessivamente a elas que constituo minha et-
se assuma o risco de ver seu projeto de conhe- nografia.
cimento se desfazer. Pois se o projeto de conhe- 2. Segundo traço distintivo dessa etnogra-
cimento for onipresente, não acontece nada. fia: ela supõe que o pesquisador tolere viver em
Mas se acontece alguma coisa e se o projeto um tipo de schize. Conforme o momento, ele
de conhecimento não se perde em meio a uma faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável,
aventura, então uma etnografia é possível. Ela modificado pela experiência de campo, ou en-
apresenta, creio eu, quatro traços distintivos: tão àquilo que nele quer registrar essa experiên-
1. Seu ponto de partida é o reconhecimen- cia, quer compreendê-la e fazer dela um objeto
to de que a comunicação etnográfica ordinária de ciência.
– uma comunicação verbal, voluntária e inten- 3. As operações de conhecimento acham-se
cional, visando à aprendizagem de um sistema estendidas no tempo e separadas umas das ou-
de representações nativas – constitui uma das tras: no momento em que somos mais afetados,
mais pobres variedades da comunicação huma- não podemos narrar a experiência; no momento
na. Ela é especialmente imprópria para forne- em que a narramos não podemos compreendê-
cer informações sobre os aspectos não verbais e la. O tempo da análise virá mais tarde.
involuntários da experiência humana. 4. Os materiais recolhidos são de uma den-
Noto, aliás, que, quando um etnógrafo sidade particular, e sua análise conduz inevita-
lembra-se do que houve de único em sua esta- velmente a fazer com que as certezas científicas
da no campo, ele fala sempre de situações em mais bem estabelecidas sejam quebradas.

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 ,   - | 

Consideremos, por exemplo, os rituais de depois da efetuação do ritual. Esse dispositivo


desenfeitiçamento. Se não tivesse sido assim pode, é claro, ser descrito e compreendido, mas
afetada, se não tivesse assistido a tantos epi- somente por quem se permitir dele se aproxi-
sódios informais de feitiçaria, teria dado aos mar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco
rituais uma importância central: primeiro, de “participar” ou de ser afetado por ele: em
porque sendo etnógrafa, sou levada a privile- caso algum ele pode ser “observado”.
giar a análise do simbolismo; segundo, porque Para finalizar, uma palavra sobre a ontologia
os relatos típicos de feitiçaria lhes dão um lugar implícita de nossa disciplina. Em Meurtre dans
essencial. Mas, por ter ficado tanto tempo en- l’Université Anglaise (L’Âne, nº 21, abril-junho,
tre os enfeitiçados e entre os desenfeitiçadores, 1985), Paul Jorion mostra que a antropologia
em sessões e fora de sessões, por ter escutado, anglo-saxã pressupõe, entre outras coisas, uma
além dos discursos de conveniência, uma gran- transparência essencial do sujeito humano a
de variedade de discursos espontâneos, por ter si mesmo. Ora, minha experiência de campo
experimentado tantos afetos associados a tais – porque ela deu lugar à comunicação não
momentos particulares do desenfeitiçamento, verbal, não intencional e involuntária, ao sur-
por ter visto fazerem tantas coisas que não eram gimento e ao livre jogo de afetos desprovidos
do ritual, todas essas experiências fizeram-me de representação – levou-me a explorar mil as-
compreender isso: o ritual é um elemento (o pectos de uma opacidade essencial do sujeito
mais espetacular, mas não o único) graças ao frente a si mesmo. Essa noção é, aliás, velha
qual o desenfeitiçador demonstra a existência como a tragédia, e a ela sustenta também, des-
de “forças anormais”, as implicações mortais da de há um século, toda a literatura terapêutica.
crise que seus clientes sofrem e a possibilidade Pouco importa o nome dado a essa opacidade
de vitória. Mas essa vitória (não podemos sobre (“inconsciente” etc.): o principal, em particular
esse assunto falar de “eficácia simbólica”) supõe para uma antropologia das terapias, é poder da-
que se coloque em prática um dispositivo tera- qui para frente postulá-la e colocá-la no centro
pêutico muito complexo antes e muito tempo de nossas análises.

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