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Muitas vezes me ocorre, nas feiras de livros ou nas livrarias, que um senhor se
aproxime de mim com um livro meu nas mãos e me peça para autografá-lo,
especificando: é para a minha mulher, ou minha filha, ou minha irmã, ou minha mãe;
ela, ou elas, são grandes leitoras e são apaixonadas por literatura. E eu lhe pergunto, de
imediato: "E o senhor? Não gosta de ler?"
A resposta chega pontual, quase sempre: "Bem, sim, é claro que gosto, mas sou
uma pessoa muito ocupada, sabe como é." Sim, sei muito bem, porque ouvi essa
explicação dezenas de vezes: esse senhor, esses milhares de senhores iguais a ele têm
tantas coisas importantes, tantas obrigações e responsabilidades na vida, que não podem
desperdiçar seu tempo precioso passando horas e horas imersos num romance, num
livro de poemas ou num ensaio literário. Segundo essa concepção, a literatura é uma
atividade da qual se pode prescindir, um entretenimento elevado e útil para cultivar a
sensibilidade e as boas maneiras, um ornamento que se podem permitir os que dispõem
de tempo livre para a recreação, e que seria necessário computar na categoria dos
esportes, do cinema, do bridge ou do xadrez, mas que pode ser sacrificado sem
escrúpulos no momento de estabelecer uma escala de prioridades nos afazeres e
compromissos indispensáveis da luta pela vida.
É verdade que a literatura acabou por se tornar, cada vez mais, uma atividade
feminina: nas livrarias, nas conferências ou nas readings dos escritores e, naturalmente,
nos departamentos e nas faculdades em que se estuda literatura, as saias ganham de
goleada das calças. A explicação é que, na classe média, as mulheres leem mais porque
trabalham menos horas que os homens, e que muitas delas tendem a se considerar mais
justificadas do que os homens no tempo que dedicam à fantasia e à ilusão. Como sou
um tanto alérgico a essas explicações, que dividem homens e mulheres em categorias
estanques com virtudes e fraquezas coletivas, não partilho dessas interpretações; mas
num aspecto não resta dúvida: há cada vez menos leitores de literatura - há muitos
leitores, mas de lixo impresso - e, entre eles, as mulheres prevalecem.
Nada, mais que bons romances, ensina a ver nas diferenças étnicas e culturais a
riqueza do patrimônio humano, e a valorizá-las como uma manifestação de sua múltipla
criatividade. Ler boa literatura é divertir-se, com certeza; mas também aprender, dessa
maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através das obras de ficção, o que
somos e como somos em nossa integridade humana, com os nossos atos, os nossos
sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das relações que nos ligam aos outros,
em nossa presença pública e no segredo de nossa consciência, essa soma extremamente
complexa de verdades contraditórias - como as chamava Isaiah Berlin - de que é feita a
condição humana.
Por isso, Marcel Proust disse: "A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e
descoberta, a única vida, pois, plenamente vivida, é a literatura." Não exagerava, guiado
pelo amor a essa vocação que praticou com talento superlativo: simplesmente queria
dizer que, graças à literatura, a vida se compreende e se vive melhor, e entendê-la e
vivê-la melhor significa vivê-la e partilhá-la com os outros.
Isso vale também para os indivíduos, obviamente. Uma pessoa que não lê, ou
que lê pouco, ou que lê apenas porcarias, pode falar muito, mas dirá sempre poucas
coisas, porque para se exprimir dispõe de um repertório reduzido e inadequado
de vocábulos. Não se trata apenas de um limite verbal; é, a um só tempo, um limite
intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de pensamentos e de
conhecimentos, porque as ideias, os conceitos, mediante os quais nos apropriamos da
realidade e dos segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras, por
meio das quais as reconhece e define a consciência. Aprende-se a falar com precisão,
com profundidade, com rigor e agudeza, graças à boa literatura, e apenas graças a ela.
Nenhuma outra disciplina, nenhum outro ramo das artes, pode substituir a
literatura na formação da linguagem com que as pessoas se comunicam. Os
conhecimentos que nos transmitem os manuais científicos e os tratados técnicos são
fundamentais; mas eles não nos ensinam a dominar as palavras nem a exprimi-las com
propriedade: pelo contrário, amiúde são mal escritos e revelam certa confusão
linguística porque os autores, às vezes eminências indiscutíveis em sua profissão, são
literariamente incultos e não sabem se servir da linguagem para comunicar os tesouros
conceituais de que são detentores. Falar bem, dispor de uma linguagem rica e variada,
encontrar a expressão adequada para cada ideia ou emoção que se queira comunicar,
significa estar mais preparado para pensar, ensinar, aprender, dialogar e, também, para
fantasiar, sonhar, sentir e emocionar-se.
Isso me leva a pensar, também, embora sobre essa questão eu deva admitir que
nutro certas dúvidas, que não só a literatura é indispensável para o conhecimento correto
e para o domínio da língua, mas que o destino dos romances está ligado, em um
matrimônio indissolúvel, ao do livro, produto industrial que muitos declaram já
obsoleto.
A literatura não diz nada aos seres humanos satisfeitos com seu destino, de todo
contentes com o modo como vivem a vida. A literatura é alimento dos espíritos indóceis
e propagadora da inconformidade, um refúgio para quem tem muito ou muito pouco na
vida, onde é possível não ser infeliz, não se sentir incompleto, não ser frustrado nas
próprias aspirações. Cavalgar junto ao esquálido Rocinante e a seu desregrado cavaleiro
pelas terras da Mancha, percorrer os mares em busca da baleia branca com o capitão
Ahab, tomar o arsênico com Emma Bovary ou transformar-se em inseto com Gregor
Samsa é um modo astuto que inventamos para nos mitigar pelas ofensas e imposições
desta vida injusta que nos obriga a sermos sempre os mesmos, enquanto gostaríamos de
ser muitos, tantos quantos fossem necessários para satisfazer os desejos incandescentes
de que somos possuídos.
Nesse sentido, a boa literatura é sempre - ainda que não proponha isso nem se dê
conta disso - sediciosa, insubmissa, em revolta: um desafio ao que existe. A literatura
nos permite viver em um mundo cujas leis transgridem as leis inflexíveis em meio às
quais transcorre a nossa vida real, emancipados da prisão do espaço e do tempo, na
impunidade para o excesso e donos de uma soberania que não conhece limites. Como
não nos sentirmos defraudados depois de termos lido Guerra e Paz ou Em Busca do
Tempo Perdido, ao nos voltarmos a este mundo de mesquinharias infinitas, de fronteiras
e proibições que estão à espreita e que em toda parte, a cada passo, perturbam nossas
ilusões? Esta é, talvez, ainda mais do que conservar a continuidade da cultura e
enriquecer a linguagem, a melhor contribuição da literatura ao progresso humano:
recordar-nos (involuntariamente, na maior parte dos casos) de que o mundo se acha
mal-acabado, de que mentem os que sustentam o contrário - por exemplo, os poderes
que o governam -, e de que poderia ser melhor, mais próximo dos mundos que a nossa
imaginação e a nossa palavra são capazes de inventar.
Quando veio a lume o Dom Quixote, os primeiros leitores riam daquele homem
iludido e extravagante, da mesma forma como riam as outras personagens do romance.
Agora sabemos que o empenho do Cavaleiro da Triste Figura em ver gigantes em vez
de moinhos de vento e em cometer todos os desatinos que comete é a forma mais
elevada de generosidade, um modo de protestar contra as misérias deste mundo e de
procurar mudá-lo. Os próprios conceitos de ideal e de idealismo, tão impregnados de
uma validade moral positiva, não seriam o que são - ou seja, valores claros e
respeitáveis - se não tivessem encarnado naquela personagem de romance com a força
persuasiva que lhe conferiu o gênio de Cervantes. E o mesmo se poderia dizer desse
pequeno dom Quixote pragmático e de saias que foi Emma Bovary - o bovarismo não
existiria, está claro -, que por sua vez se bateu com ardor para viver essa vida
resplendente de paixões e de luxo que ela conhecera nos romances, e se queimou nesse
fogo como a mariposa que se aproxima demais da chama.