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Introdução

Neste artigo, irei me concentrar propriamente no terceiro capítulo do livro Adeus à


Razão (O conhecimento e o papel das teorias) onde Paul Feyerabend 1 expõe como a nossa
percepção e a subjetividade estão intrinsecamente ligadas à ideia de conhecimento e a
formulação de teorias. Feyerabend nos mostra que a noção de “objetividade” é muito mais
“subjetiva” do que aparentar ser, dada à própria ontologia da nossa percepção. E, tendo em
vista isso, defender uma objetividade do conhecimento é puramente um contrassenso.
Feyerabend direciona sua crítica mais precisamente aos malefícios oriundos dessa
concepção universal e unidirecional de racionalidade que põe em cheque as múltiplas
possibilidades de perceber a realidade e que, por mais pontuais que possam ter sido os
benefícios dessa ciência, não contribui para a humanidade como um todo. Ele nos mostra que
representantes de culturas nativas e associações internacionais concluíram que há
muitas maneiras de viver, que culturas diferentes da nossa não são erros, e sim
resultados de uma adaptação delicada ao meio específico, e que elas encontraram – e
não perderam – os segredos de uma boa vida. (Adeus à Razão, p.: 11).

Longe de serem “erros”, formas diferentes de viver a vida se fazem presentes e


promovem benefícios para muitas pessoas, diferentemente de uma concepção forçada que
fecha os olhos para a multiplicidade de formas de vida que existem no mundo e que passa por
cima de tudo que não concorde com a sua concepção “objetiva” da realidade. Ou seja, querer
que o mundo se curve à uma concepção da racionalidade constitui muito mais uma atitude
irracional do que aparenta ser; visto que, além do mais, os pressupostos científicos dessa
“racionalidade” por vezes são infundados, sustentam-se em teorias falhas e seus
“especialistas”, em essência, não sabem o que dizem. Disso, resta somente a áurea da
racionalidade que legitima com autoridade violenta qualquer teoria que possa ser conveniente
à Ciência 2.
A maior preocupação de Feyerabend não é criar uma teoria epistemológica que
solucione de uma vez por todas os problemas do conhecimento. Longe disso! Para ele, uma
única teoria do conhecimento (mesmo aquela que consideraria todas as várias culturas, as
formas de vida e as concepções individuais do mundo) seria problemática. A questão não está
em criar uma teoria que seja mais humana, nem legitimar um anarquismo epistemológico

1
Austríaco Filósofo da Ciência (1924-1994)
2
Adeus à Razão, p. 18-19
(como muitos atribuem a Feyerabend), mas legitimar todo tipo de método a fim de eliminar a
máquina da monotonia que direciona o mundo para a mesmice científica. O manifesto de
Feyerabend é deixar de dar razão a quem vive preso num laboratório a quilômetros de
distância e ouvir as pessoas que vivem ao nosso redor e que entendem, mais do que qualquer
um, a vida que possuem.
I Percepção
Para que tenhamos uma teoria do conhecimento, primeiro precisamos entender o
mundo que queremos conhecer. E esse mundo está infestado de eventos. Para qualquer
direção que olharmos, existe eventos acontecendo. A luz entra por uma janela aberta, essa
mesma luz que ilumina a cama e seus cobertores, as cores dos lençóis que só poderiam ser
visualizadas dessa forma devido à luz que escapa pela janela aberta. São inúmeros.
Entretanto, essa mesma infinidade de eventos não seriam percebidos e, consequentemente,
entendidos da mesma forma se outro indivíduo estivesse assistindo. Principalmente se este
indivíduo fosse de outro país, tivesse outra cultura, falasse outro idioma ou até mesmo se este
evento estivesse acontecendo em um século passado. “Nem todos vivem no mesmo mundo”
(Ibid., p. 127). Como poderíamos então esperar que todos percebam as coisas da mesma
forma? A própria linguagem tempera a compreensão do mundo de uma forma que, dizer do
mundo em que vivo só poderia ser compreendido por aqueles que compreendem o que eu
digo, ou seja, por aqueles que compartilham da mesma linguagem.
Os índios Delaware... abordam o mundo como pintores que usam um pincel
diferente, cores diversas e um tipo diferente de pincelada para cada episódio da
neve. Eles não só não conseguem perceber “a neve”, mas não podem sequer
imaginar que “ela” existe. (Ibid., p. 128).

Como fazer entender que a neve “nada mais é” do que a precipitação da água em
estado sólido, que é uma etapa do ciclo hidrológico que acontece no mundo inteiro e que,
dado ao clima frio da região numa determinada época, não precipita em forma de chuva, pra
uma sociedade que nem ao menos entende o que é neve? Como é possível afirmar que,
irrefutavelmente, esse “progresso” na compreensão irá melhorar a vida dos índios? E como
introduzir isso sem eliminar a forma como eles percebem o mundo?

II Conhecimento
Conhecer o mundo é interpretar o mundo 3. Todo fenômeno meteorológico tem uma
interpretação própria para cada civilização da antiguidade, e as interpretações, por mais
mitológicas e fantasiosas, tem relevância e utilidade para eles. Tribos indígenas brasileiras
consideram a terra como sendo um reflexo do céu e todo o conhecimento que eles precisam
para o plantio, colheita e caça é dado pela interpretação dos fenômenos celestes. 4 A

3
Ibid., p. 129
4
Cf. AFONSO, Germano Bruno. O céu dos índios do Brasil. 2004.
interpretação, que está intrinsecamente interligada com a linguagem, necessariamente possui
caráter subjetivo, e os elementos subjetivos desse conhecimento tornam-se rotina, à medida
que ele é introduzido na cultura.
A nova maneira de olhar pode interferir de tal forma que o reconhecimento
passa a ser impossível sem ela – ela agora é “parte da realidade” – ou, para virar o
argumento ao contrário, a “realidade” original era uma visão “subjetiva”, mas
popular. (Adeus à Razão, p. 131).

Sendo assim, a própria “objetividade” do conhecimento possui fundamentos


subjetivos, que têm como elementos nutritivos os elementos culturais do povo.
Intelectuais interessados em perpetuar a rotina lhe dão uma “base” ao
demonstrarem que ela leva a resultados importantes e a maneira como o faz (a
maioria das teorias do conhecimento corresponde a uma defesa prolixa de rotinas
existentes ou incipientes). Práticas e ideias de longo alcance foram sustentadas por
uma “realidade” que foi, inicialmente, moldada por elas mesmas. (Ibid., loc. cit.).

É a forma como o meu povo vê o mundo, e consequentemente como eu o vejo


também, que determinará como o meu mundo é.
Logo que a linguagem passou a ser transmitida através da escrita, ela adquiriu
perspectivas diferentes e com isso maior relevância quando do seu tempo da oralidade.
Porém, muitas problemáticas se desenrolaram disso. Platão (Fedro, 275d2 ss.) critica essa
forma de transmissão de conhecimento por ela ser incapaz de dizer por si só e o leitor ter de
recorrer ao autor sempre que essa for mal interpretada. Assim como a linguagem põe em
segundo plano aquilo que não pôde ser retido objetivamente pela nossa percepção, a escrita
não retêm algo fundamental: a interação entre os indivíduos e o conhecimento, a situação.
Platão defende o conhecimento “entendido por aqueles que participam dela [situação social]”
(Adeus à Razão, p. 134), ou seja, a retenção do conhecimento só é possível se houver a
interação entre indivíduo, no caso, se houver a dialética. Caso contrário, “[as escritas] são
inúteis para os de fora.” (Ibid., loc. cit.). 5
A ciência, durante muito tempo, empreendeu ao máximo suas forças para se distanciar
do que chamaríamos de “contexto de descoberta” – a história por detrás das teorias – para
enaltecer o “contexto de descoberta”, que seria então o corpo científico, especulativo,
experimental; ou seja, as justificativas e razões que sustentam a teoria científica. Tendo em
vista que o conhecimento é necessariamente subjetivo e que sua “objetividade” é fruto de

5
Platão e Feyerabend criticam a escrita por motivos diferentes. Platão privilegia a interação social porque é nela
que se manifesta a dialética, sendo esse, para ele, o único caminho para a Verdade. Já Feyerabend dá ênfase ao
relativismo que se manifesta nessa interação, longe de guiar os indivíduos para uma única possibilidade de razão.
considerações usuais, abdicar da história, da situação e dos vários elementos interpessoais que
culminaram na teoria científica é abdicar da própria humanidade. E, “um procedimento cujo
objetivo principal é livrar-se de todos os elementos humanos com certeza irá levar a ações
desumanas.” (Ibid., p. 355, grifo meu).

III Forma
O conhecimento possui várias formas, mas basicamente consiste numa ordenação de
eventos (Feyerabend, 1987), e as histórias (ordenação de eventos temporais), tiveram muita
importância na formação das relações sociais, astrológicas, biológicas e teóricas da
antiguidade. 6 Essa forma de conhecimento (na antiguidade grega, histórias como a Odisséia e
a Ilíada eram transmitidas através da oralidade) possuía uma diferença particular com relação
à abordagem teorética da filosofia. Conceitos como coragem, justiça e sabedoria em Homero
apresentavam-se através das atitudes das personagens. Não era Homero quem fazia o juízo
dessas atitudes (como comumente percebemos nos mais diversos artigos filosóficos e
científicos. O autor nos dá a definição pronta dos conceitos para que possamos engolir com
mais facilidade), mas os próprios ouvintes percebiam os limites das virtudes. “Os conceitos
introduzidos assim não são entidades abstratas e nem separados das coisas. São aspectos
delas.” (Adeus à Razão, p. 138). A separação veio acontecer quando da tentativa dos filósofos
gregos de dar conta, através da própria racionalidade, do cosmos. Quiseram eles resolver os
problemas da abundância de definições e da complexidade do mundo, “simplificando-o” por
meio de conceitos abstratos, anistóricos e apartados da humanidade. Perceberemos adiante as
problemáticas dessa atitude.

IV Racionalismo Ocidental
Os filósofos gregos da antiguidade (os precursores do dito racionalismo ocidental)
iniciaram um movimento intelectual que ia de encontro com a postura social e intelectual da
tradição. Rejeitavam a ideia de que o mundo era abundante e complexo, como era até então 7,
para declará-lo “simples, uniforme, sujeito a leis universais estáveis e o mesmo para todos”

6
Adeus à Razão, p. 137
7
Na realidade, ele permaneceu abundante e complexo. Os chamados “muitos”, os não-filósofos, continuavam a
perceber o mundo como a tradição declarava. Por mais difundidos ou por mais geniais que pudessem parecer, os
conceitos filosóficos não se integravam ao hábito popular. A simplicidade do cosmos restringia-se à mente dos
racionalistas. Mais sobre, cf. Adeus à Razão, p. 142 e nota de rodapé 18.
(Ibid., p.140). E para tal feito, assim como guerreiros que invadem, saqueiam e transformam
um território que desejam dominar, os filósofos utilizaram a sua arma: a palavra.
Uma grande quantidade de sua obra (e da obra de cientistas desde Descartes
e Galileu até nossos ganhadores do prêmio Nobel e inclusive eles) consistia em
combater, ridicularizar e, se possível, eliminar as idéias e práticas que, embora bem
estabelecidas, bem-sucedidas e vantajosas para muitas pessoas, não estavam de
acordo com seus padrões idiossincráticos. (Ibid., p. 141).

Muitas formas de monotonia foram conceituadas a fim de mitigar o senso comum. E


essa “batalha de longa duração” (Platão, República 607b 6 ss.) persiste até hoje. Parmênides
teve um papel relevante nessa luta e, dentre os teóricos, teria sido o mais radical na proposta
de unicidade do conhecimento. O Ser uno e imutável (Parmênides, Sobre a natureza)
constitui a efetivação da monotonia universal e aniquilação da mutabilidade do conhecimento,
do mundo, do Ser. Entretanto, essa proposta era extrema demais para os “muitos” – nem
mesmo os seguidores de Parmênides achavam-na razoável 8. A rica cultura histórica do senso
comum manteve-se impassível diante das especulações dos teóricos.
Pedreiros, metalúrgicos, pintores, arquitetos e engenheiros aparentemente
continuaram calados, mas deixaram prédios, túneis e obras de arte de todos os tipos,
o que mostra que o conhecimento que eles tinham do espaço, do tempo, e dos
materiais era mais progressista, mais frutífero e extremamente mais detalhado do
que qualquer coisa que tivesse emergido das especulações dos filósofos. (Adeus à
Razão, p. 143).

Feyerabend nos apresenta que o conhecimento teórico dos filósofos antigos não é tão
anistórico quanto se presumia. Assim como qualquer manifestação da percepção que tenta dar
razão ao mundo – até mesma esta que pretende, com todo seu aparato lógico e argumentativo,
apartar-se da humanidade e construir uma razão universal e eterna – passa pelo crivo da
subjetividade; sendo, portanto, histórica:
As tradições teóricas são opostas às tradições históricas [tradições do senso
comum] em intenção, mas não de fato. Ao tentar criar um conhecimento que difere
do “mero” conhecimento histórico ou empírico, elas conseguiram encontrar
formulações (teorias, fórmulas) que parecem objetivas, universais e logicamente
rigorosas, mas que são usadas e, no uso, são interpretadas de uma maneira que entra
em conflito com todas essas propriedades. O que temos é uma nova tradição
histórica, que, levada adiante por uma falsa consciência de bom tamanho, parece
transcender a percepção, a opinião e a própria vida humana.

8
Cf. Adeus à Razão, p. 143 e nota de rodapé 19.

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