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Estética – Prof.

Fernando Barros

DISSERTAÇÃO A CERCA DO TEXTO:


“O cinema e a nova psicologia”, de Merleau-Ponty

Oscar de Queiroz Holanda Neto


Matrícula 400017

Licenciatura em Filosofia – Turma 2017.1

Fortaleza – Ceará
2017
A questão da percepção

Para a psicologia clássica, a nossa percepção compreende a realidade retirando dos


signos o seu significado. Esse processo se dá da seguinte forma: primeiramente, nossos
sentidos – visão, audição, olfato, tato e paladar – captam os signos dispostos diante de nós.
Sejam imagens, sons, o vento que passa ou o sabor de uma fruta; cada um será reconhecido
distinta e independentemente. Após esse primeiro momento, nosso intelecto fará o papel de
desvendar o significado, compreender o propósito, a intenção una de cada signo que estava,
até então, omitida para os nossos sentidos. Esse papel de desvelamento só poderia ser
efetuado pela nossa racionalidade.
Se os nossos sentidos unicamente “sentem” a realidade sem poder compreendê-la, isso
se deve ao fato deles estarem limitados à superfície mais externa, tátil, sensitiva da realidade.
Não poderíamos, pois, alcançar a essência, compreender o significado das coisas a partir dos
sentidos. O significado, para eles, seria incompreensível. Portanto, para que nós pudéssemos
decodificar os signos e consequentemente compreender seus significados, teríamos de
recorrer ao nosso intelecto. Somente por meio da racionalidade conseguimos, dado os signos,
interpretá-los e quebrar esse código complexo, revelando o seu significado. É a nossa
racionalidade que compreende a realidade.
Essa ideia de desvelamento pressupõe a realidade, em sua materialidade, e o mundo
intelectualizado como sendo independentes e autônomos. Visto que os nossos sentidos servem
somente como ponto de partida da percepção – os objetos, sua disposição no meio, o contexto
em que estão inseridos –, nada influenciará, enquanto realidade tangível, o significado. O azul
sempre será azul independente de qualquer coisa. O azul de uma parede é o mesmo de um
prato azul, que continua sendo azul à noite, de dia, ontem, hoje ou amanhã. Se nós captamos e
compreendemos o significado da cor, o estímulo visual foi somente a chave oferecida para
que a mão da racionalidade destranque e ultrapasse esta porta que desembocará no significado
da cor, naquilo que ela é de fato, no azul.
Segundo os fenomenólogos, entretanto, a questão da percepção é concebida de outra
forma. Para eles, a realidade organiza-se como um conjunto, no qual os objetos de
investigação ali dispostos coexistem e interagem, tanto entre si quanto com o espaço onde
estão inseridos, revelando-se enquanto evidência da realidade. Não poderíamos reconhecer
uma imagem sem considerar os “espaços vazios” existentes entre suas partes. Não
poderíamos, por exemplo, ver uma janela isoladamente sem perceber a parede em que ela está
ou sua cor sem a luz que incide sobre ela. Além disso, os sentidos se entrelaçam na percepção:
falamos de cores quentes, cores frias; sons brilhantes, sons fechados; perfumes doces e fortes.
Por mais que, no processo intelectual, excluamos os elementos exteriores ao objeto, eles estão
ali e compõem a totalidade da imagem, dão significado a ela. A concepção analítica da
percepção, por sua vez, consiste num método investigativo posterior à percepção da realidade
em sua totalidade, que é primeira e espontânea.
Nossa percepção, porém, não se limita à visualização da realidade considerando
unicamente o momento instantâneo. A temporalidade possui também relevância na
configuração do significado. O som, por sua vez, denota com bastante clareza essa
peculiaridade. Quando ouvimos uma música, percebemos a cadência das notas, o ritmo, o
compasso, e esses elementos são de extrema importância para a distinção de cada nota
musical. Uma música seria incompreensível se todas as suas notas fossem executadas ao
mesmo tempo. É a duração das notas, uma precedida da outra, que irá construir a estrutura
significativa da melodia. E a velocidade da música confere características que, caso seja
alterada, pode também comprometer o propósito da melodia. Por exemplo, músicas em que as
notas passam mais rapidamente tendem a promover uma sensação de alegria, agitação,
nervosismo; enquanto que, se estivéssemos em uma ocasião mais romântica ou melancólica,
uma música mais lenta seria mais apropriada.
Portanto, distinguindo-se da visão analítica dos objetos, da independência do
significado do mundo palpável, a psicologia moderna concebe a realidade não como um meio
de contínua e exaustiva interpretação racional dos sentidos, mas num universo evidente e
coerente, um universo que dialoga com os meus sentidos em sua totalidade. Não mais isolar-
se na racionalidade, mas se colocar no mundo, captá-lo e compreendê-lo enquanto o é,
enquanto conjunto dotado de sentido e de materialidade, enquanto evidência.

A questão do cinema
Dada a discussão exposta na seção anterior sobre as distintas teorias da percepção,
uma do ponto de vista da psicologia clássica e outra da psicologia moderna, seguem-se aqui
considerações feitas mais precisamente a cerca da estrutura da linguagem cinematográfica e
como a nova psicologia fornece ferramentas para compreendermos com clareza essa estrutura.
O que devemos considerar de início é que um filme não é uma sequência de imagens
isoladas, mas uma “forma temporal” (Merleau-Ponty, 1983, p. 110). Não percebemos um
filme como se este fosse uma galeria de arte e as cenas fossem as obras – independentes e
desconexas –, mas como uma música: com suas notas, uma precedida da outra, interagindo
entre si e construindo a melodia, construindo o filme. É nossa percepção da realidade
enquanto partes conectadas que nos possibilita perceber a estrutura de significado que existe
entre as cenas de um filme; é quando um mesmo plano, precedido mais de uma vez por planos
diferentes, ganha significados diferente. Só podemos compreender uma cena dado o sentido
fornecido pela cena anterior. Não existem cenas isoladas que transmitem para nós um
significado único, imutável; mas o benefício acumulativo de significado proporcionado pelo
sequenciamento das cenas, que culmina na intenção do filme. A contribuição do significado
também se faz presente na duração das cenas. Cenas mais dramáticas, expressões de dor e
tristeza exigem quadros mais lentos enquanto cenas mais animadas, alegres e felizes, cenas
rápidas.
Esse efeito produzido é a imersão que sentimos quando assistimos a um filme. Ele nos
leva pela película e, suspensos da nossa realidade, imergimos na realidade cinematográfica,
como se estivéssemos ali a viver o filme sem nem ao menos nos darmos conta disso. Uma
montagem que peca na fluidez da transição dos planos evidencia os artifícios de construção da
linguagem cinematográfica e impossibilita que este efeito de imersão aconteça. Se a ligação
das partes que compõe o todo é rompida, a nossa percepção da realidade fica comprometida.
Não é somente à imagem que devemos congratular esse efeito, mas o som trabalha
conjuntamente com ela à medida que esse se aproxima da proposta linguística da imagem
cinematográfica, transformando-a a cada cena. Ela age como potencializador do efeito
imagético. Os diálogos, os silêncios e as trilhas sonoras proporcionam um ambiente favorável
para, com a imagem, efetivar o efeito cinematográfico. Sempre um trabalhando em relação ao
outro, pois “no cinema, a palavra não tem a missão de aduzir ideias às imagens e, nem a
música, sentimentos. O todo nos comunica qualquer coisa bem determinada, não se tratando
de um pensamento, nem de uma evocação dos sentimentos da vida” (Ibid., p. 114).
O filme quer nos comunicar nada mais do que ele próprio. Os efeitos linguísticos
exibidos na película têm como propósito evidenciar-se tanto quanto a realidade evidencia o
mundo. As ideias emergem não das imagens, dos sons, como se cada um estivesse ali para
transmitir seu sentido, mas da estrutura temporal construída ao longo da película. O filme
dirige-se “ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo e os homens e de coexistir com
eles”. (Ibid., p. 115). Longe de pensá-lo; assim como o mundo, nós, humanos, percebemos o
filme.
E assim como a psicologia percebe os sentimentos através de comportamentos,
percebemos os estados físicos e emocionais das personagens pelo comportamento que
possuem no filme. Não se propondo a transmitir ou explicar a natureza humana assim como a
literatura fez por muito tempo, o cinema exibe uma realidade de interação de consciências, de
relação entre eus e o mundo, assim como as filosofias e psicologias contemporâneas propõem:
perceber e compreender o que somos a partir da nossa interação com o meio em que
existimos.

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