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A "ASSOCIAÇÃO"
E A "PROJEÇÃO DAS RECORDAÇÕES'
cia alguma outra coisa sem a conter, que exerce uma função
de conhecimento e que suas partes em conjunto compõem
uma totalidade à qual cada uma delas se liga sem abandonar
seu lugar. Doravante o vermelho não me é mais apenas pre-
sente, mas ele me representa algo, e aquilo que ele represen-
ta não é possuído como uma "parte real" de minha percep-
ção, mas apenas visado como uma "parte intencional" 1 .
Meu olhar não se funde no contorno ou na mancha como ele
o faz no vermelho materialmente considerado: ele os percor-
re ou os domina. Para receber nela mesma uma significação
que verdadeiramente a penetre, para integrar-se em um "con-
torno" ligado ao conjunto da "figura" e independente do
"fundo", a sensação pontual deveria deixar de ser uma coin-
cidência absoluta e, por conseguinte, deixar de ser enquanto
sensação. Se admitimos um "sentir" no sentido clássico, a
significação do sensível só pode consistir em outras sensações
presentes ou virtuais. Ver uma figura só pode ser possuir si-
multaneamente as sensações pontuais que fazem parte dela.
Cada uma delas permanece sempre aquilo que ela é, um con-
tato cego, uma impressão, o conjunto se faz "visão" e forma
um quadro diante de nós porque aprendemos a passar mais
rapidamente de uma impressão a outra. Um contorno é ape-
nas uma soma de visões locais e a consciência de um contor-
no é um ser coletivo. Os elementos sensíveis dos quais ele é
feito não podem perder a opacidade que os define como sen-
síveis para abrirem-se a uma conexão intrínseca, a uma lei
de constituição comum. Sejam três pontos A, B e C, tomados
no contorno de uma figura; sua ordem no espaço é tanto sua
maneira de coexistir sob nossos olhos quanto essa própria coe-
xistência; por mais próximos que eu os escolha, ela é a soma
de suas existências separadas, aposição de A, mais Aposição de
B, mais a posição de C. Pode acontecer que o empirismo aban-
done esta linguagem atomista e fale de blocos de espaço ou
de blocos de duração, acrescente uma experiência das rela-
OS PREJUÍZOS CLÁSSICOS E O RETORNO AOS FENÔMENOS 37
Fig. 1 Fig. 2
A "ATENÇÃO" E O "JUÍZO'
I
•{,
nossa obra. A pura sensação, definida pela ação dos estímulos
uma vez por todas, e que nada poderia impedir de ter sido.
Na certeza do presente, há uma intenção que ultrapassa a pre-
sença, que antecipadamente o põe como um "antigo presen-
te" indubitável na série das rememorações, e a percepção en-
quanto conhecimento do presente é o fenômeno central que
torna possível a unidade do eu e, com ela, a idéia da objetivi-
dade e da verdade. Mas ela é apresentada no texto somente
como uma dessas evidências irresistíveis apenas de fato, que
permanecem sujeitas à dúvida39. A solução cartesiana não é
portanto considerar o pensamento humano em sua condição
de fato como garantia de si mesmo, mas apoiá-lo em um pen-
samento que se possui absolutamente. A conexão entre a es-
sência e a existência não é encontrada na experiência mas na
idéia do infinito. Portanto, no final das contas é verdade que
a análise reflexiva repousa inteira em uma idéia dogmática
do ser, e que nesse sentido ela não é uma tomada de cons-
ciência acabada40. Quando o intelectualismo retomava a no-
ção naturalista de sensação, neste passo estava implicada uma
filosofia. Reciprocamente, quando a psicologia elimina defi-
nitivamente essa noção, podemos esperar encontrar nessa re-
forma o esboço de um novo tipo de reflexão. No plano da
psicologia, a crítica da "hipótese de constância" significa ape-
nas que se abandona o juízo como fator explicativo na teoria
da percepção. Como pretender que a percepção da distância
seja concluída a partir da grandeza aparente dos objetos, da
disparidade das imagens retinianas, da acomodação do cris-
talino, da convergência dos olhos, que a percepção do relevo
seja concluída a partir da diferença entre a imagem forneci-
da pelo olho direito e a imagem fornecida pelo olho esquer-
do, já que, se nós nos atemos aos fenômenos, nenhum desses
"signos" é claramente dado à consciência, e já que não po-
deria haver raciocínio ali onde faltam as premissas? Mas es-
sa crítica ao intelectualismo só atinge a sua vulgarização en-
tre os psicólogos. E, assim como o próprio intelectualismo,
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bre "as duas imagens", pois elas não são numericamente dis-
tintas, mas do fenômeno do "movido", das forças que habi-
tam esse esboço, que procuram o equilíbrio e que o levam
ao mais determinado. Para uma doutrina cartesiana, essas
descrições nunca terão importância filosófica: elas serão tra-
tadas como alusões ao irrefletido que, por princípio, nunca
podem tornar-se enunciados e que, como toda psicologia, são
sem verdade diante do entendimento. Para legitimá-las in-
teiramente, seria preciso mostrar que em caso algum a cons-
ciência pode deixar inteiramente de ser aquilo que ela é na
percepção, quer dizer, um fato, nem tomar inteira posse de
suas operações. Portanto, o reconhecimento dos fenômenos
implica enfim uma teoria da reflexão e um novo cogito45.