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HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano.

São Paulo: Abril


Cultural, 1984.

(Da Origem das Idéias)

12. Podemos, pois, dividir aqui todas as percepções da mente em duas classes ou espécies, as
quais se distinguem pelos seus diferentes graus de força ou vivacidade. As menos fortes ou
vivazes são comumente denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não tem nome em
nossa língua, como em muitas outras, suponho que por não ser necessário para nenhum fim que
não fosse filosófico o incluí-las sob um termo ou designação geral. Tomemos, pois, uma
pequena liberdade e chamemo-las impressões, usando a palavra num sentido algo diferente do
usual. Pelo termo impressão entendo todas as nossas percepções mais vivazes, quando ouvimos,
vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões distinguem-se
das ideiasp, que são as impressões menos vivazes das quais temos consciência quando
refletimos sobre qualquer dessas sensações ou movimentos acima mencionados.
13. (...) Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois os nossos sentimentos nos levam à
concepção de virtude, e esta pode unir-se à figura e forma de um cavalo, animal que nos é
familiar. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam da sensação interna ou externa;
só a mistura e composição destas dependem da mente e da vontade. Ou, para expressar-me em
linguagem filosófica, todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas
impressões, ou percepções mais vivas.

(Da Ideia de Conexão Necessária - Parte II)

60. E que exemplo mais convincente do que este se pode apresentar da surpreendente ignorância
e debilidade do entendimento? Se existe relação entre objetos que nos importe conhecer com
perfeição, é por certo a de causa e efeito. Nela se baseiam todos os nossos raciocínios sobre
questões de fato ou existência. Só por meio dela alcançamos qualquer certeza sobre os objetos
afastados do testemunho presente de nossa memória e de nossos sentidos. A única utilidade
imediata de todas as ciências é ensinar-nos a maneira de controlar e regular os acontecimentos
futuros por meio de suas causas. Nossos pensamentos e indagações ocupam-se, pois, a todo
instante, com essa relação. E, todavia, tão imperfeitas são as ideias que fazemos a seu respeito,
que é impossível dar uma definição precisa de causa, salvo definições provenientes de algo que
lhe é estranho e alheio. Os objetos semelhantes sempre aparecem juntos com seus semelhantes:
disto temos experiência. De acordo, pois, com essa experiência, podemos definir a causa como
sendo um objeto seguido de outro, quando todos os objetos semelhantes ao primeiro são
seguidos de objetos semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras, quando, não existindo o
primeiro objeto, jamais existiria o segundo. O aparecimento de uma causa sempre transporta o
intelecto, por uma transição habitual, à ideia do efeito. Disto também temos experiência.
Podemos assim, de acordo com essa experiência, formular outra definição da causa e chamá-la
um objeto seguido de outro, e cujo aparecimento sempre transporta o pensamento para esse
outro. Mas, se bem que ambas essas definições derivem de circunstâncias estranhas à causa, não
podemos remediar esse inconveniente nem alcançar uma definição mais perfeita, que indique
essa circunstância da causa que lhe dá uma conexão com o seu efeito. Não temos nenhuma ideia
dessa conexão e nem sequer uma noção clara do que desejamos saber quando nos esforçamos
por concebê-la. Dizemos, por exemplo, que a vibração desta corda é a causa deste som
particular. Mas que entendemos por esta afirmação? Ou que esta vibração é seguida deste som e
todas as vibrações semelhantes têm sido seguidas de sons semelhantes, ou que esta vibração é
seguida deste som, e ao aparecer a primeira a mente antecipa-se aos sentidos e forma
imediatamente uma idéia do segundo. Podemos considerar a relação de causa e efeito de
qualquer destes dois pontos de vista; mas, fora deles, não fazemos nenhuma idéia de tal relação.
Tratado sobre a natureza humana · Sobre a identidade pessoal

Há muitos filósofos que imaginam que estamos a cada momento intimamente


conscientes do que chamamos de nosso eu (self); que sentimos sua existência e permanência, e
que temos certeza, além da evidência de uma demonstração, de sua perfeita identidade e
simplicidade. A mais forte das sensações, a mais violenta paixão, dizem eles, ao invés de nos
afastarem deste ponto de vista, apenas o reforçam ainda mais intensamente, fazendo-nos
considerar sua influência no eu, seja pelo prazer ou pela dor que causam. Tentar uma prova mais
básica disto seria enfraquecer a própria evidência, uma vez que nenhuma prova pode ser
derivada de nenhum fato do qual estamos tão intimamente conscientes, nem há nada de que
possamos estar certos, se duvidarmos disto. Infelizmente todas estas asserções positivas são
contrárias à experiência que é evocada neste caso, nem temos nenhuma idéia do eu, do tipo que
explicamos aqui. Pois de que impressão poderia esta idéia ser derivada? A esta questão não
podemos dar uma resposta sem um absurdo ou contradição manifesta; e, no entanto, trata-se de
uma questão que deve necessariamente ser respondida, se quisermos considerar a idéia do eu
como clara e inteligível. Deve haver alguma impressão que sirva de fonte para cada idéia real.
Mas eu ou pessoa não corresponde a nenhuma impressão, consistindo naquilo a que todas as
nossas várias impressões e idéias estão supostamente referidas. Se alguma impressão der origem
à idéia de eu, esta impressão deve permanecer invariavelmente a mesma, durante toda a duração
de nossas vidas, uma vez que supõe-se que o eu exista desta maneira. Mas não há nenhuma
impressão constante e invariável. A dor e o prazer, a tristeza e a alegria, as paixões e as
sensações sucedem-se umas às outras, e nunca existem todas ao mesmo tempo. Não pode ser,
portanto, de nenhuma destas impressões, nem de nenhuma outra, que nossa idéia de eu é
derivada, e conseqüentemente essa idéia não existe.
Mas, além disso, o que aconteceria com todas as nossas percepções particulares se
aceitássemos esta hipótese? Todas elas são diferentes, distinguíveis e separáveis umas das
outras, e não necessitam de nada em que basear a sua existência. De que modo, portanto,
pertenceriam ao eu; e como se relacionariam a isso? De minha parte, quando entro do modo
mais íntimo em contato com isso que denomino eu mesmo (myself), sempre encontro uma ou
outra percepção particular, de calor ou frio, de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou
prazer. Nunca posso apreender a mim mesmo (myself), a qualquer momento, sem nenhuma
percepção, e nunca posso observar nada além da percepção. Quando minhas percepções são
eliminadas por algum momento, como no sono profundo, durante esse período sou insensível
em relação a mim mesmo, e posso verdadeiramente dizer que não existo. E se todas as minhas
percepções fossem eliminadas pela morte, e se eu não pudesse pensar, sentir ou ver, nem amar,
nem odiar, após a dissolução de meu corpo, eu seria inteiramente aniquilado, e nem posso
imaginar o que mais seria necessário para tornar-me um perfeito não-ser. Se alguém, a partir de
uma reflexão séria e isenta de preconceitos, pensa ter uma noção diferente de si mesmo
(himself), devo confessar que não sou mais capaz de acompanhar o seu raciocínio. Tudo que
posso lhe conceder é que talvez ele esteja tão certo quanto eu e que diferimos de modo essencial
nesse particular. Ele talvez perceba algo simples e permanente, que denomina o seu eu
(himself), embora eu esteja certo de que não há em mim tal princípio.
Mas, excluindo um metafísico desse tipo, eu me aventuro a afirmar que o resto da
humanidade não é nada além de um feixe ou coleção de diferentes percepções, que se sucedem
umas às outras com rapidez inconcebível e se encontram em fluxo e movimento perpétuos.
Nossos olhos não podem mover-se em suas órbitas sem mudar nossas percepções. Nosso
pensamento é ainda mais variável que nossa visão, e todos os nossos sentidos e faculdades
contribuem para esta mudança; nem há nenhum poder da alma que permaneça inalterado, sequer
por um momento. A mente é uma espécie de teatro, onde várias percepções se sucedem,
passam, repassam, desaparecem e se misturam em uma variedade de maneiras e situações. Não
há propriamente nenhuma simplicidade nela em nenhum momento, nem uma identidade na
diferença; apesar de alguma tendência natural que possamos ter para imaginar esta simplicidade
e identidade. A comparação com o teatro não deve nos enganar. Não possuímos a mais remota
noção do lugar onde essas cenas são representadas, nem do material de que são compostas.

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