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OS PARADOXOS DA VIDA CONTEMPLATIVA – 3ª PARTE

O PARADOXO DO EU

“Segundo os ensinamentos de Buda, a ideia do eu é uma crença imaginária, falsa, que não tem uma
realidade correspondente e produz pensamentos nocivos de «eu» e «meu», desejos egoístas,
anseios, apegos, ódio, má vontade, presunção, orgulho, egoísmo e outras corrupções, impurezas e
problemas. É a fonte de todos os problemas do mundo, desde conflitos pessoais a guerras entre
nações. Em suma, é a esta falsa visão que se pode atribuir todo o mal do mundo.”

Walpola Rahula, O Ensinamento de Buda

Concluindo a análise crítica dos Três Paradoxos da Vida Contemplativa, com especial relevo para a
vida contemplativa tal como é concebida e vivida na tradição budista, importa agora focar a nossa
atenção no último dos paradoxos, o Paradoxo do Eu. Se quiséssemos tentar defini-lo de uma forma
simples e facilmente compreensível, poder-se-ia talvez dizer que o paradoxo reside afinal no facto
de se pretender negar existência do eu, ou despertar da ilusão de que este existe, quando parece ser
condição necessária haver um eu capaz de o negar ou despertar dessa suposta ilusão. É que se o fim
último da vida contemplativa, não só da budista, mas de toda aquela tradição que vê nessa
experiência de superação ou negação do eu individual o akmê da realização espiritual, seja pela
contemplação do vazio universal, com a respectiva cessação de todos os desejos e do sofrimento a
eles inerente, como pretendem os budistas, seja pela identificação do atman individual com o
Brahman universal, conforme alega o Hinduísmo, seja pela união mística da alma com Deus,
segundo as tradições cristã e muçulmana, sendo essa considerada a experiência suprema a que todos
os seres humanos podem e devem aspirar, e aquela a cuja procura se dedicam todos os
contemplativos, então é difícil tornar inteligível como pode ela ser possível se, no fundo, aquele que
a procura não passa de uma ilusão, de uma ficção sem substrato real, de uma ideia falsa ou crença
imaginária, raíz de todos os males do mundo. Faz isto algum sentido? Pode fazer. Talvez faça. Mas
para o saber é preciso analisar com cuidado o problema, de modo a evitar sermos vítimas de mais
uma teia conceptual gerada por nós próprios e onde nós mesmos nos podemos perder. Analisemos
então o problema com todo o cuidado que ele merece, a ver se conseguimos ou não concluir que o
paradoxo do ego ou bem que tem uma solução fácil e resulta apenas de uma deficiente compreensão
do que está em causa, ou bem que não tem solução e revela uma contradição real no cerne da vida
contemplativa tal como é habitualmente concebida e vivida em inúmeras tradições espirituais.
Como é filosoficamente correto fazer-se, comecemos por interrogar o conceito mais básico em
causa: O que é o eu, ou um eu? De que falamos quando falamos de eu? Como entendem os budistas
esse conceito? O que se pretende dizer quando se alega ser o eu uma crença imaginária que não tem
uma realidade correspondente? Então quando alguém nega a existência do eu não estará a
contradizer-se internamente, uma vez que é preciso existir um eu para ser capaz de negar esse
mesmo eu? Não será essa negação uma espécie de cogito cartesiano invertido, o equivalente lógico
a um “penso, logo não existo”? Mas se pensar é condição necessária e suficiente para se saber de
forma absoluta que se existe, que sentido pode então fazer negar essa experiência intuitiva básica,
essa evidência absoluta, essa ideia clara e distinta da mente, negando a existência do eu pensante
e/ou querendo fazer dele uma ilusão ou crença imaginária? Não será isto simplesmente absurdo? E
quem ou o quê teria essa ilusão ou crença imaginária? Ninguém? Se não existe eu, se o eu não passa
de uma ilusão ou crença imaginária, então também não existe ilusão ou crença imaginária alguma,
uma vez que nenhum eu a produz e a possui ou é por ela possuído, não é verdade? Se sempre que
pensamos, sentimos, desejamos, acreditamos, percepcionamos, sonhamos ou agimos, não existe
qualquer eu ou sujeito que pensa, sente, deseja, acredita, percepciona, sonha ou age, então que tipo
de realidade podem esses estados, processos ou acontecimentos ter, se aquele onde eles
supostamente ocorrem e os sente como seus não existe ou não passa de uma ilusão ou crença
imaginária, incluindo aí a ilusão ou crença imaginária da sua própria existência e de os sentir como
seus, ocorrendo em si e dentro de si? Mas se na verdade não há nenhum eu ou si-mesmo que sente,
pensa, deseja, acredita, percepciona ou age, então que sentido faz querer libertá-lo do desejo e do
sofrimento? Não é necessário haver alguém que deseja e sofre para se poder e querer libertá-lo do
desejo e do sofrimento que ele inevitavelmente acarreta? Em suma, não será necessário que o eu
exista de algum modo, mesmo que não seja aquele eu em que a maioria das pessoas imagina a sua
existência, para que todo e qualquer projecto de vida espiritual ou contemplativa faça algum
sentido? É que mesmo que a ideia comum do que é o eu, ou um eu, se revele errada e não passe
afinal de uma ilusão subjectiva que o eu cria para si mesmo sobre o eu objectivo, sendo necessário
corrigi-la com uma outra mais consentânea com a realidade, isso não significa negar de todo a sua
existência ou colocar esta no limbo das crenças imaginárias que só existem na medida em que são
criadas precisamente por nós, isto é, pelo conjunto de todos os eus que existem, existiram e
existirão.
Mas voltemos um pouco atrás e coloquemos novamente a questão: o que é afinal um eu? Quando
alguém pensa ou diz “Eu”, seja o que for que coloque a seguir na ordem do pensamento ou do
discurso, seja “Eu penso”, “Eu sinto”, “Eu quero”, “Eu acredito”, “Eu vejo”, “Eu ouço”, “Eu sofro”,
“Eu gosto”, “Eu sei”, “Eu faço”, ou qualquer outra expressão que habitualmente se segue ao “Eu”,
refere-se exactamente a quê? Ao seu corpo? À sua mente? A ambos? À sua consciência? À sua alma
ou ao seu espírito, sejam eles o que forem de distintos da mente e da consciência, se é que o são de
todo? Em suma, quando eu ou qualquer um dos leitores diz ou pensa “Eu”, queremos significar
exactamente o quê com esse termo? A totalidade objectiva da nossa pessoa, com tudo aquilo que ela
é enquanto entidade psicofísica? Ou apenas aquilo que subjectivamente identificamos como sendo
essencialmente o nosso eu profundo, metafísico, transcendental ou transcendente a essa totalidade
psicofísica empírica que aparentemente nos constitui, mas que nós parecemos recusar como sendo o
nosso verdadeiro eu ou identidade pessoal quando usamos expressões como “o nosso corpo”, “a
nossa mente”, “a nossa consciência”, “os nossos pensamentos”, “os nossos desejos”, “os nossos
sentimentos”, as nossas crenças”, “os nossos conhecimentos” ou “as nossas percepções”, dando
assim a entender que somos os proprietários de algo que controlamos em absoluto mas que não
somos nós? Tanto a linguagem partilhada como a nossa relação connosco próprios são
suficientemente ambíguos para permitirem esse duplo uso do termo “Eu”, umas vezes referindo-se à
toda a nossa pessoa, isto é, à totalidade psicofísica que objectivamente somos, e outras vezes apenas
aquela entidade subjectiva que parece, porventura ilusoriamente, ser o centro metafísico e
metapsíquico dessa mesma pessoa, o sujeito absoluto, uno, necessário e imutável, a substância
individual que subjaz a toda a nossa multiplicidade bio-psico-social e subsiste para além ou aquém
de todas as aparências, transformações e contingências da nossa vida e experiência. Ora, não sendo
aqui lugar para se adentrar numa investigação sobre filosofia da mente ou sobre o problema
metafísico da identidade pessoal, sendo esses os campos filosoficamente apropriados para se
investigar o problema da verdadeira natureza do eu, os quais, como é sabido e normal acontecer em
filosofia, ainda são tratados como problemas em aberto, por não terem ainda encontrado consenso
suficiente entre a comunidade filosófica, se é que alguma vez este será encontrado, convém apenas
referir o seguinte: se ao nível do senso-comum a ambiguidade do conceito do “Eu” se deixa
subsumir nessas duas formas nem sempre facilmente compatíveis, uma indicando o hipotético
sujeito incondicionado que seria o secreto dono e senhor de toda a nossa pessoa, o ser internamente
omnisciente, omnipresente e omnipotente por detrás de todos os nossos pensamentos, sentimentos,
emoções, sentimentos, sensações e percepções, o agente moral livre, todo-poderoso e inteiramente
responsável por todos os nossos actos, o eterno vigilante, o director-executivo e máximo guardião
que detém o poder e controle absoluto de toda a nossa vida interior e exterior, o centro unificado e
imutável do nosso ser que assegura e constitui a nossa identidade pessoal ao longo do tempo,
fazendo com que sejamos a mesma pessoa ao longo de toda a nossa vida, a despeito de todas as
mudanças sofridas, e conferindo unidade essencial a tudo o que somos, pensamos, sentimos,
desejamos, sabemos e fazemos, por outras palavras, o nosso deus interior, que mesmo não sendo
perfeito nem infinito acredita implicitamente possuir pelo menos alguns dos atributos divinos,
talvez mesmo a imortalidade, enquanto a outra forma de entender o conceito aponta na direcção
contrária, referindo-se a tudo o que somos como pessoas, quer dizer, tanto ao corpo como à mente, à
consciência como ao inconsciente, aos genes e ao cérebro, às predisposições e potencialidades
inatas e à experiência adquirida, à hereditariedade e ao meio natural, social e cultural que nos
formam, sendo então esse eu a totalidade integrada de todos esses aspectos ou dimensões físicas,
biológicas, psicológicas, sociais e culturais que nos constituem como indivíduos, e não apenas
aquele ser ou sujeito metafísico que estaria aquém ou além delas, então talvez aquilo que o budismo
negue ou considere ilusão e crença imaginária seja apenas o primeiro sentido acima referido e não
necessariamente o segundo. Essa é, pelo menos, uma forma de tentar compatibilizar a famosas
doutrinas budistas do não-eu e da radical impermanência de todas as coisas. E se assim for
entendido, então o eu cuja existência o budismo nega ou considera ilusório e fonte de todo o mal e
sofrimento do mundo é apenas o eu naquela acepção metafísica, quase teológica, presente nas
formas de dualismo filosófico platónico, cristão e cartesiano que acabaram por se tornar senso
comum, as quais postulam a existência de duas realidades ou substâncias radicalmente distintas, por
conseguinte dotadas de propriedades e obedecendo a leis essencialmente diferentes, como sejam o
espírito e a matéria, sendo o eu ou alma de natureza espiritual e o corpo de natureza material. Ora,
se o budismo parece negar essa radical dualidade de substâncias, considerando todas as coisas, seres
e acontecimentos, não como substâncias ou sujeitos, à maneira ocidental, mas antes como parte
integrante da mesma trama ou processo universal em que nada é e permanece inteiramente idêntico
a si mesmo ao longo do tempo, antes constituindo complexo sistema dinâmico de
interdependências, relações e interações de formas múltiplas, instáveis e transitórias sujeitas a
transformações incessantes, aproximando-se da intuição heraclitiana do devir universal e da
ontologia do processo proposta por alguns filósofos contemporâneos, então talvez não seja
necessário dizer que o eu não existe de todo em todo, mas tão só aquele eu substancial quase divino
que muitos acreditam ilusoriamente possuir. Talvez esse eu não passe, efectivamente, de uma ilusão
metafísica criada pelo outro eu, o verdadeiramente existente, uma auto-ilusão, portanto. E se assim
for, então o eu que não existiria e não passaria de uma ideia falsa ou ilusão que a iluminação búdica
finalmente dissiparia seria apenas aquele eu absoluto, incondicionado, metafísico ou transcendental,
que supostamente estaria para além ou aquém de toda a pluralidade e mudança relativas que nos
constituim como pessoas empíricas compostas por inúmeros agregados – como lhe chama o Buda -,
mas não se identificando verdadeiramente com nenhum deles, nem com os pensamentos, nem com
as sensações, nem com os sentimentos, nem com os desejos, nem com as crenças, nem mesmo
sequer com a consciência que temos de tudo isso e do mundo exterior. E, nesse ponto, talvez Buda e
os budistas tenham razão e esse eu não passe efectivamente de uma ficção construída pela pessoa
que somos para conferir unidade, estabilidade e coerência à nossa experiência interna e externa. Na
verdade, houve pelo menos um filósofo ocidental que defendeu ideia semelhante, pois o grande
David Hume julgava igualmente não haver em nós nenhum ser essencial subjacente e subsistente ao
conjunto das nossas ideias, pensamentos, sensações, percepções, experiências, bem como à
consciência interna que delas temos. Em todo o caso, aquilo que aqui nos importa para o fim a que
nos tínhamos proposto é que, se a doutrina budista do não-eu for entendida como negação da
realidade do eu nos dois sentidos acima explicitados, então ela pura e simplesmente não parece
fazer qualquer sentido lógica e metafisicamente razoável, tanto pela razões já apresentadas como
pelo facto de a ciência actual parecer corroborar essa visão, desde a física à biologia e desta à
psicologia e às famosas neurociências, todas elas parecendo apontar em direção adversa a essa
concepção das coisas em geral e da mente humana em particular. Agora se aquela doutrina for
entendida apenas como negação do eu metafísico e substancial em que os dualistas acreditam,
concebido este como entidade separada, autónoma e independente de todo o substrato físico,
incorruptível e imune a qualquer influência externa, permanecendo essencialmente imutável e
idêntico a si mesmo ao longo do tempo, eventualmente pré-existente ao próprio nascimento da
pessoa e seguramente continuando a existir depois da morte desta, seja em que modalidade for,
então aí sim, ela poderá fazer algum sentido e conseguir evitar o paradoxo de afirmar a não
existência do eu querendo, ao mesmo tempo, libertar, iluminar e despertar... o eu dessa sua auto-
ilusão existencial. Resta apenas saber como seria este sentido possível para a existência relativa do
eu na tradição budista compatível com a tese da reencarnação que, pelos menos alguns ramos do
budismo, parecem ter como dogma fundamental. É que se tudo o que existe, incluindo o eu, é
relativo e transitório, tanto por não existir de forma independente e fazer parte da rede de
interdependência universal como por estar sujeito à lei suprema do devir ou da impermanência
igualmente universal, não passando de ilusões falsas a ideia de que algo pode ter existência
substancial independente ou resista a essa lei geral, então como é possível acreditar que o eu de uma
pessoa pode reencarnar em outra após a morte da primeira, permanecendo assim a pessoa a mesma
em corpos diferentes? Que misteriosa continuidade ontológica é essa que parece escapar àquela lei
geral que aparentemente governa todas as coisas? E se o eu metafísico substancial e independente
não passa afinal de uma ilusão ou crença imaginária, como defendem os budistas, que espécie de eu
será esse que sobrevive à morte do corpo e assegura a identidade da pessoa num outro corpo depois
da morte do primeiro? Não parece fazer muito sentido, pois não? Mas o exame filosófico desse
outro mistério ou paradoxo terá de ficar para uma próxima ocasião, quem sabe para uma próxima
vida.

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