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Duas questões acerca do autoconhecimento das emoções

1 – Uma questão de perspectiva

Não é difícil recordar ou mesmo imaginar alguém que pensa que sente algo, manifesta seu
suposto sentimento, mas, para espanto dos que o rodeiam, se comporta de outro modo. Excluída a
possibilidade da pessoa simplesmente ser dissimulada, casos como esse trazem à tona a existência
de um significativo descompasso entre dois modos de acessar os próprios sentimentos: buscar saber
o que se sente através de introspecção ou através da observação do (próprio) comportamento. Em
outras palavras, adotando uma perspectiva de 1ª pessoa (no caso da introspecção) ou de 3ª pessoa
(no caso da observação do comportamento). Há ao menos dois sentidos em que alguém pode
assumir uma perspectiva de 3ª pessoa: em um sentido trivial a pessoa que aspira saber algo a
respeito de si própria como que toma distância de si mesma a fim de determinar de modo mais
imparcial possível o que está a sentir. A expressão “tomar distância” aqui em jogo envolve um
exercício introspectivo que conjuga imaginação e esforço sincero na tentativa de apreender a si
mesmo do modo mais transparente possível. Embora este procedimento faça justiça ao que
normalmente se denomina assumir uma perspectiva externa, o acesso aos sentimentos continua
restrito a vida psíquica interna de quem busca conhecer o que sente, e, portanto, em um sentido
decisivo ainda é uma investigação em 1ª pessoa. Mas há ainda um sentido completamente distinto e
menos trivial em que alguém pode adotar uma perspectiva de 3ª pessoa. A principal diferença em
relação ao sentido trivial a pouco descrito reside no fato de que adotar uma perspectiva de 3ª pessoa
em uma acepção não-trivial significa não fiar-se no fluxo interno de seus próprios estados, tanto
volitivos quanto mentais, a fim de determinar com segurança o que se está a sentir, mas sim atribuir
essa determinação a elementos passíveis de observação empírica, como o comportamento.
Conforme o exemplo mencionado no início do texto, assumir esse tipo de perspectiva externa
eventualmente pode levar a certa desilusão quanto ao suposto conhecimento introspectivo que
alguém tem de si mesmo. A ideia de que alguém confrontado com informações objetivas sobre si
pode vir a perceber que incorria em um tipo de autoengano enfraquece de forma considerável o
pretenso conhecimento obtido por introspecção. Quando se trata de emoções, porém, o problema
toma outros contornos. Isso porque, ao menos a primeira vista, as emoções possuem um aspecto
sentido que parece ser parte constituinte das mesmas e que uma análise em terceira pessoa não é
capaz de captar.
Dizer que uma perspectiva de 1ª pessoa não exclui a possibilidade de engano quanto as
emoções é dizer que uma perspectiva em 1ª pessoa, por mais que propicie acesso imediato a estados
emotivos, ainda assim não garante sua infalibilidade epistêmica. Com isso o autoconhecimento
introspectivo das emoções passa a ser alvo de objeções semelhantes as objeções endereçadas à
confiabilidade epistêmica da percepção (em verdade o modelo introspectivo origina-se de uma
analogia com a percepção externa, e, nesse sentido, é também um modelo perceptual). Assim como
podemos alucinar e ter a percepção alterada, o acesso imediato através da introspecção também
pode gerar distorções quanto aos estados emocionais acessados. Curiosamente, o representante
clássico da investigação filosófica através da introspecção, Descartes, viu na possibilidade do
engano não uma objeção, mas sim uma justificativa para adotar uma perspectiva de 1ª pessoa (ainda
que em seu caso as coisas não se deem exatamente do mesmo modo como descrevi uma
investigação de 1ª pessoa anteriormente, afinal Descartes identificava infalibilidade e acesso
imediato e não estava diretamente preocupado com o conhecimento das emoções). De todo modo, a
questão que nos interessa é: do fato de que podemos nos enganar em um exame interior de nossos
estados emotivos segue-se que não podemos ter conhecimento introspectivo de nossas emoções?
Não obstante saibamos da possibilidade de alterações perceptuais, essa possibilidade não é
suficiente para que desconfiemos de todo de nossa percepção, mas, ao contrário, comumente
desconfiamos somente quando temos alguma razão para isso: no caso do uso de drogas, de alguma
doença que tenha esse tipo de alteração entre os sintomas, etc. Soa, pois, renitente a questão:
existem razões, sem contar a mera possibilidade, que corroborem a tese de que o autoconhecimento
das emoções obtido através da introspecção tende a ser sistematicamente falso? Caso não hajam
evidências e razões suficientes e fortes para desconfiar da perspectiva de 1ª pessoa, não é pequeno o
risco de se ingressar em uma investigação que visa se afastar do engano para mais tarde acabar por
descobrir que o único e maior engano foi o de pensar que se estava inicialmente enganado.
O caso é que existem razões e evidências que contam contra uma perspectiva de 1ª pessoa.
As dúvidas quanto ao método introspectivo entendido tal como o expus advém de objeções que
ocorrem principalmente em dois flancos: de um lado a partir de resultados incongruentes com as
informações obtidas por introspecção, resultados estes oriundos da investigação empreendida em 3ª
pessoa; por outro lado temos as críticas ao modelo de introspecção concebido em analogia com a
percepção, isto é, como uma espécie de sentido ou percepção interna. No que diz respeito aos
resultados de investigações em 3ª pessoa, em sua maioria são informações de estudos da psicologia
empírica contemporânea que não me animarei a mencionar aqui. Apenas destaco que é aqui que se
dá o confronto direto de perspectivas, e que não deixa de ser curioso que ao aceitar o resultado de
pesquisas (que sempre são restritas, particulares e, no mais das vezes, ocorrem em condições
artificiais) como capazes de oferecerem informações decisivas contra o método introspectivo requer
um grau de confiabilidade na capacidade da indução (um tipo de inferência que não tem fronteiras
claras com uma falácia de generalização) que não é muito distinto do tipo de confiabilidade
criticado no método introspectivo. De qualquer forma, informações obtidas em uma perspectiva de
3ª pessoa ajudam a enfraquecer de modo considerável a confiança que normalmente depomos na
introspecção. Além e a favor da intuição contida nas pesquisas empíricas há a observação perspicaz
do comportamento, prática encontrada em textos como os de Dostoiévski, Stendhal, Machado de
Assis e Nietzsche. Esse tipo de observação, assim como os resultados dos estudos empíricos, não
acarreta considerações derradeiras e decisivas para um veredito sobre a perspectiva de 1ª pessoa.
Somada aos estudos empíricos, porém, essas observações são suficientes para levantar uma sutil,
mas perniciosa suspeita contra o status epistêmico da introspecção, especialmente no caso que nos
interessa, o das emoções. Tomemos como exemplo uma das muitas investidas de Nietzsche contra o
sentimento de compaixão:

“Não mais pensar em si”. — Reflitamos seriamente: por que nos lançamos atrás de alguém
que caiu na água, embora sem ter afeição por ele? Por compaixão: nesse caso pensamos
apenas no outro — diz a irreflexão. Por que sentimos dor e mal-estar com alguém que
cospe sangue, quando até lhe queremos mal? Por compaixão: justamente porque já não
pensamos em nós — diz a mesma irreflexão. A verdade é que na compaixão — refiro-me
ao que, enganadoramente, costuma-se designar por compaixão — já não pensamos
conscientemente em nós, mas sim de modo fortemente inconsciente, como quando, ao
escorregar um pé, de modo inconsciente realizamos os movimentos opostos mais
adequados, e nisso empregamos visivelmente todo o nosso bom senso. O acidente do outro
nos ofende, ele nos provaria nossa impotência, talvez nossa covardia, se não o
socorrêssemos. Ou já traz consigo uma diminuição de nossa honra perante os outros ou nós
mesmos. Ou no acidente e sofrimento do outro há uma indicação de perigo para nós; e já
como sinal da vulnerabilidade e fragilidade humana podem ter efeito penoso sobre nós.
Rechaçamos esse tipo de dor e de ofensa, e a ele respondemos com um ato de compaixão,
em que pode haver uma sutil legítima defesa e mesmo vingança. O fato de que no fundo
pensamos muito em nós mesmos pode ser depreendido da resolução que tomamos sempre
que podemos evitar a visão do sofredor, queixoso, indigente: decidimos não evitá-la, se
podemos nos apresentar como os poderosos, os auxiliadores, se estamos certos do aplauso,
queremos perceber o oposto de nossa fortuna, ou esperamos ser arrancados do tédio por
essa visão. É equivocado chamar o sofrimento [Leid] que nos causa tal visão, que pode ser
de tipo bastante variado, de compaixão [Mit-leid], pois em todas as ocasiões é um
sofrimento do qual está livre aquele que sofre à nossa frente: ele nos é próprio, como é
próprio dele o seu sofrimento. Mas é apenas deste sofrimento próprio que nos livramos, ao
praticar atos de compaixão. Nunca fazemos algo desse gênero por um único motivo, no
entanto; assim como queremos libertar-nos de um sofrimento, também cedemos, no mesmo
ato, a um impulso de prazer — o prazer surge à visão de um contraste à nossa situação, à
idéia de que podemos ajudar se quisermos, ao pensar no louvor e na gratidão, caso
ajudássemos; surge da atividade mesma de auxílio, enquanto o ato é bem sucedido e, como
algo de êxito progressivo, em si mesmo dá alegria a quem o realiza; mas, sobretudo, do
sentimento de que nossa ação põe termo a uma revoltante injustiça (o desafogo da revolta já
reanima). Tudo isso, e ainda coisas mais sutis, é “compaixão”: — como a linguagem cai
grosseiramente, com uma só palavra, sobre algo assim polifônico! — Por outro lado, que a
compaixão seja da mesma espécie do sofrimento cuja visão a desperta, ou que dele tenha
uma compreensão particularmente sutil e penetrante, são coisas contrariadas pela
experiência, e faltou precisamente, a quem incensou a compaixão por esses dois aspectos,
experiência bastante nesse âmbito da moral. Esta é a minha dúvida ante as coisas incríveis
que Schopenhauer refere sobre a compaixão: ele, que assim nos queria fazer acreditar em
sua grande inovação, de que a compaixão — por ele tão mal observada e precariamente
descrita — é a fonte de todas as ações morais passadas e futuras — e justamente pelas
faculdades que ele antes lhe atribuiu imaginosamente. — Afinal, o que distingue os homens
sem compaixão daqueles compassivos? Antes de tudo — traçando aqui apenas um esboço
— eles não têm a excitável imaginação do medo, a fina capacidade de pressentir o perigo;
também sua vaidade não se ofende tão rapidamente, quando sucede algo que poderiam
evitar (a cautela de seu orgulho lhes ordena não imiscuir-se inutilmente em coisas alheias, e
eles mesmos gostam que cada qual ajude a si próprio e jogue suas próprias cartas) [...].
(D/A 133)

A hipótese de Nietzsche quanto as verdadeiras causas de um estado compassivo, embora


bastante especulativa, não é de todo implausível. O que nos importa aqui, porém, é a existência de
um caso claro de autoengano: alguém pensa que está tomado de um sentimento nobre e
desinteressado, quando em verdade está sob a influência de uma mistura de medo, vaidade e um
reflexo defensivo que visa expurgar sobretudo o sofrimento que é seu e que é causado pela visão de
alguém sofrendo, o que não é um motivo nem um pouco desinteressado, como esse alguém gostaria
de crer. Em outras palavras, podemos pensar que somos compassivos, no sentido tradicional,
quando em verdade apenas queremos parar o sofrimento que o outro nos causa, isto é, trata-se antes
de tudo do instinto de mitigar o próprio sofrimento. Compreendemos, portanto, de maneira
equivocada o sentimento que nos suscita a visão de um desgraçado.
Por mais que evoque elementos variados e se utilize de uma espécie de psicologia
especulativa, as considerações de Nietzsche são, de modo geral, um tipo de observação do
comportamento, e, portanto, se dão a partir de uma perspectiva de 3ª pessoa. O interessante é que
suas considerações, além de servir para lançar dúvidas quanto a autoatribuição introspectiva de
emoções, também deixam entrever os limites da própria atividade de observação em 3ª pessoa, na
medida em que mostram que a relação entre o estado emocional e o comportamento não é tão
íntima quanto um psicólogo behaviorista poderia julgar. Isso porque na observação de 3ª pessoa é
necessário inserir uma perspectiva extra que, por falta de outro nome, denominarei “perspectiva
ideológica”. No caso da compaixão isso não fica tão saliente pois as perspectivas ideológicas em
questão são bastante gerais e bastante familiares a quase todos nós: a perspectiva de quem se julga
compassivo é moral ou religiosa, enquanto que a perspectiva ideológica que Nietzsche assume é
uma perspectiva secularizada na qual subjaz os elementos de sua psicologia especulativa
necessários para fornecer uma explicação do que ocorre. Formulando de outro modo: uma
dificuldade para perspectivas de 3ª pessoa é que elas precisam pressupor um aparato interpretativo
(que chamei perspectiva ideológica) a fim de explicar a ligação entre o comportamento observado e
as emoções inferidas. Um exemplo vem a calhar. Em uma passagem bíblica do evangelho de Lucas,
Jesus conta uma parábola sobre dois homens, um publicano e um fariseu, que vão ao templo orar. O
fariseu escancara suas práticas, dando glórias por não ser injusto e vangloriando-se por jejuar e
pagar seus dízimos, enquanto o publicano se lamenta, pedindo misericórdia por ser pecador. Jesus,
como era de se esperar, elogia o segundo, e profere as seguintes palavras: “qualquer que a si mesmo
se humilha será exaltado” (Lucas 18:14). Nietzsche, em um aforismo provocativamente
denominado “Lucas 18, 14 corrigido”, afirma: “Quem se rebaixa quer ser exaltado”. Ou seja, em
sua visão a humildade forçada e a qualquer custo esconde um alto grau de vaidade. Nesse sentido
alguém pode manter um comportamento humilde quando em verdade seus sentimentos são bem
mais presunçosos. O ponto em questão é que a relação entre comportamento e emoção, nesse caso,
permanece bastante obscura: alguém pode ser realmente humilde (e talvez compassivo) e também
se comportar de modo humilde, e não é necessário assumir uma perspectiva ideológica religiosa
para compreender isso. Como determinar com mais segurança (e com menos possibilidade de erro
do que através da introspeção) qual é a perspectiva ideológica mais adequada para explicação das
emoções a partir de uma observação de 3ª pessoa, visto que em alguns casos o comportamento é o
mesmo, mas as emoções podem ser opostas dependendo da perspectiva adotada? O que quero dizer
é que assim como no caso da introspecção, em uma observação de 3ª pessoa também pode haver
algum tipo de distorção e falha entre o que alguém observa e o que a pessoa realmente sente (assim
como alguém pode se enganar ao conceber a si mesmo, através de introspecção, como uma pessoa
humilde quando em verdade é altamente vaidosa, alguém também pode errar ao inferir, através da
observação, que alguém é vaidoso quando em verdade é realmente humilde – e, nesse caso, fica
claro que o peso da determinação do que alguém realmente sente oscila entre ambas perspectivas,
afinal, ao menos nesse último exemplo, a determinação não se dá através de uma perspectiva de 3ª
pessoa). Casos de pessoa melancólicas mas que apresentam comportamento normal ilustram
perfeitamente a dificuldade para a qual estou tentando chamar a atenção: a determinação do que
elas realmente sentem depende, em grande parte, da fenomenologia de seus sentimentos (a
fenomenologia obtida em uma perspectiva de 1ª pessoa basta para elas saberem que sentem o que
sentem). Em alguns tipos de depressão, o diagnóstico do quadro depressivo conta com a
identificação de sintomas a partir de um relato de características introspectivas do paciente
(melancolia, sentimento de culpa, falta de confiança)1. Com o propósito de superar essa dificuldade

1 O diagnóstico da depressão é um caso em que as perspectivas de 1ª e 3ª pessoa são levadas em conta: os sintomas
podem ser psicológicos, fisiológicos ou comportamentais. Segundo o DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders, 4ª ed.), dentre os critérios para o diagnóstico da depressão, além de falta de motivação (com duração
alguém poderia sugerir que testes empíricos podem determinar do modo mais isento possível e sem
se comprometer com perspectivas particulares qual é a relação entre emoção e comportamento.
Embora essa seja uma opção interessante, testes não deixam de conter uma perspectiva ideológica
que já supõe os padrões de inferências a serem feitos, isto é, pressupõe-se um comportamento que
deva corresponder a determinada emoção. Além disso, emoções de caráter mais “espiritual”, como
culpa, arrependimento e orgulho parecem estar mais distantes ainda de uma possível verificação por
meio de testes do que através da simples introspecção, e nada parece garantir que o próprio modo
como um teste é aplicado não torne tanto as expressões comportamentais das emoções, bem como
elas mesmas, suscetíveis a maiores distorções. Isso sem contar que a sugestão de que alguém
somente pode dizer que realmente sabe o que sente após passar por uma série de testes é, no melhor
dos casos, fortemente contraintuitiva.
Com essas considerações apenas pretendi mostrar que embora o compromisso com uma
perspectiva de 3ª pessoa apareça como uma alternativa frente a introspeção, ela também enfrenta
uma série de problemas difíceis de contornar. O ataque a introspecção como fonte de
autoconhecimento, no entanto, ocorre também por outra via. A imagem da mente pressuposta nas
teorias introspectivas são alvo de ataques por parte daqueles que creem que uma teoria adequada
sobre o autoconhecimento das emoções deve considerar duas alegações principais: 1) as emoções
dependem de como as acessamos, isto é, ao nos voltarmos para nós mesmos acabamos por
modificar aquilo que estamos acessando (tese da autoconstituição); e 2) as emoções que acessamos
são nossas emoções, e isso significa que não nos limitamos a percebê-las e contemplá-las, como
afirmam as teorias introspectivas, mas que também temos responsabilidade por elas, na medida em
que são nossas (tese da responsabilidade). Não é difícil ver que teorias baseadas nessas duas teses
rejeitam prioritariamente o modelo de ocorrência mental implícito em teorias introspectivas, sem
que com isso rejeitem a perspectiva de 1ª pessoa (ao contrário, boa parte de suas objeções a teorias
introspectivas decorre do fato de que elas supostamente não fazem justiça a uma perspectiva de 1ª

de 14 dias), o paciente deve apresentar cinco ou mais dos seguintes sintomas:


· Estado deprimido: sentir-se deprimido a maior parte do tempo;
· Anedônia: interesse diminuído ou perda de prazer para realizar as atividades de rotina;
· Sensação de inutilidade ou culpa excessiva;
· Dificuldade de concentração: habilidade freqüentemente diminuída para pensar e concentrar-se;
· Fadiga ou perda de energia;
· Distúrbios do sono: insônia ou hipersônia praticamente diárias;
· Problemas psicomotores: agitação ou retardo psicomotor;
· Perda ou ganho significativo de peso, na ausência de regime alimentar;
· Idéias recorrentes de morte ou suicídio. (Disponível em: http://www.transmagnet.med.br/depre_DSM_IV.htm, acesso
em Outubro de 2016).
Como se vê, os sintomas requeridos para o diagnóstico dizem respeito a sensações fisiológicas, aspectos
comportamentais e também a sintomas que dependem de uma descrição introspectiva dos sentimentos e sensações por
parte do paciente. De qualquer forma, a depressão é um caso patológico. Para os fins desse texto, admitir que alguém
pode estar realmente melancólico sem apresentar manifestações comportamentais (o que, diga-se, é algo
corriqueiramente admitido) é suficiente para atestar uma possível fragilidade de inferências feitas exclusivamente
através de perspectivas de 3ª pessoa.
pessoa, reduzindo a percepção que temos de nossa própria mente a uma percepção que um terceiro
teria se tivesse acesso a ela). Se as objeções provenientes de uma perspectiva de 3ª pessoa alegavam
que a introspecção é um modo de autoconhecimento falho, pois ignora evidências empíricas que são
a base de todo conhecimento seguro, esse novo conjunto de teses se contrapõe a introspecção
mantendo uma perspectiva de 1ª pessoa, mas concebendo as condições para o autoconhecimento de
modo distinto do modo como uma perspectiva de 3ª pessoa concebe. Passo a me ocupar desse tipo
de teoria, o que nos levará a algumas considerações acerca da relação entre caráter e emoções.

Parte 2 – Autoconhecimento das emoções e caráter/self/personalidade

Antes de explorar um pouco mais a teoria da autoconstituição emocional, gostaria de fazer


algumas anotações a respeito do modo como se concebe uma emoção. Uma observação quase
trivial, mas que para os presentes propósitos faz uma diferença bastante significativa, diz respeito a
distinção entre estados emocionais e traços emocionais de caráter. Na vida ordinária essa diferença
geralmente é marcada pela diferença existente entre perguntas como “você está triste?” ou “você é
feliz?”, nas quais, embora raramente, há espaço para hesitação (e são respondidas através de
introspeção, ou assim o cremos), e “você é um imbecil?”, onde hesitar, nesse caso, já indica uma
resposta (que é performativa, i. é, ocorre através de um ato, e não de introspecção ou reflexão). A
princípio, supomos que a introspecção nos dá acesso a estados emocionais passageiros, enquanto
que, também a princípio, supomos que a observação do comportamento nos revela traços de caráter.
Embora essa não seja uma regra (e eventualmente acreditemos que através do comportamento
também podemos inferir emoções episódicas e através da introspecção podemos identificar traços
de nossa personalidade), a noção geral de emoção operando nesses dois casos oscila entre essas
duas concepções: emoção como um episódio, um ímpeto ou estado afetivo que nos toma de modo
abrupto e em seguida nos deixa, ou então emoção como um traço mais geral, algo como uma
disposição de caráter. Não entrarei no interminável debate sobre a ontologia (ou não seria a
terminologia?) que melhor descreve (ou não seria: melhor se ajusta a uma teoria pré-concebida?)
das emoções devido as desconfianças entre parênteses. O que gostaria de ressaltar é que entre os
dois modos de conceber as emoções que acabei de mencionar não há, ou não precisa haver,
contradição, isto é, elas bem podem ser traços de caráter e também serem episódios (o que seria um
traço de caráter senão uma sequência observável de episódios?). Consideremos as seguintes
afirmações:
a) Klaus Kinski tomou-se de cólera.
b) Klaus Kinski foi uma pessoa colérica.
A relação mais óbvia entre as afirmações é que a verdade da afirmação a é uma condição
para a verdade da afirmação b, isto é, dificilmente atribuiríamos um traço de caráter nunca
manifesto, mas, ao contrário, traços atribuídos geralmente são traços observados de forma
recorrente. Esse tipo de observação se dá exclusivamente em uma perspectiva de 3ª pessoa. O
problema que nos interessa, porém, diz respeito ao autoconhecimento emocional. Adotando uma
perspectiva de 1ª pessoa e buscando compreender como alguém poderia saber algo a respeito de si
mesmo, surge um novo problema que não aparecia em uma perspectiva de 3ª pessoa: enquanto em
uma perspectiva externa conhecemos o caráter de alguém através dos episódios manifestos, e,
portanto, em função de ter repetidos ataques de cólera sabemos que Klaus Kinski era uma pessoa
colérica, em uma perspectiva de 1ª pessoa a pergunta é menos óbvia: ele sabe que é uma pessoa
colérica pois tem razões para pensar isso graças aos seus muitos ataques (sabe através da reflexão,
portanto), ou então ele sabe o que sente em seus muitos ataques devido a percepção da emoção ou
de seu caráter colérico (que pode escapar ao seu controle)? Se a diferença entre perspectivas de 1ª e
3ª pessoa eram marcadas pelo modo como se busca responder a determinadas perguntas sobre as
emoções ou traços de caráter, a diferença entre teorias da introspecção e teorias da autoconstituição
(ambas em uma perspectiva de 1ª pessoa), além das condições epistêmicas requeridas, é marcada
pelo modo como se concebe as emoções: enquanto teorias introspectivas, em certo sentido, afirmam
que as emoções “já estão lá”, e nós apenas a acessamos (Kinski sabe que está colérico porque
percebe estar disposto a sentir cólera e a agir de determinado modo), teorias autoconstitutivas
afirmam que o conhecimento de estados emocionais não se resume a uma questão de percepção,
mas diz respeito sobretudo a um processo de autoconstituição. Desse modo, Kinski saberia que
sente cólera pois essa é uma emoção que ele reconhece fazer parte de seu caráter, reconhecimento
esse não obtido através da percepção, mas sim através da reflexão sobre a coerência e racionalidade
do que sente em relação a sua identidade ou caráter. Nesse sentido, Kinski tem responsabilidade por
aquilo que sente, afinal, de acordo com a teoria em questão, é condição para poder dizer que sabe
que se sente determinada emoção responsabilizar-se por ela como sendo sua. Isso significa que para
saber o que sente alguém deve assumir que a emoção em questão se “encaixa” em determinada
concepção de si mesmo que esse alguém possui, concepção essa que deve ser minimamente
coerente e racional. Em outras palavras, a fim de saber o que se está a sentir alguém deve satisfazer
uma cláusula normativa, isto é, deve ter razões para dizer que está sentindo o que está sentindo.
Todavia não se tratam de razões para sentir algo, mas sim de razões que visam satisfazer a condição
de unidade e coerência mínima requerida para uma concepção de si mesmo:

But the sense in which we ‘‘have reasons’’ for our emotions isn’t the same as the sense in
which we ‘‘have reasons’’ for our actions: we do not undertake to have our emotions or
decide to have them on the basis of our reasons; emotions are responses, and actions are
something more (5.5.2–3). But to say that they are responses is not to say that they are mere
caused reactions. In 5.5.2 I argued that emotions can sometimes be judged morally good or
bad, and this is in turn because an emotion is subject to standards of appropriateness and
intelligibility, while a mere reaction—a rash, say—is not. (KORSGAARD, 2009, p. 112).

Como é possível perceber, nesse tipo de teoria o modo como se concebe uma emoção torna-
se mais exigente. Implícito na descrição anterior está a ideia de que para que haja autoconhecimento
emocional substancial devem haver “padrões emocionais substanciais”. Caso atentarmos a essa
ideia, repararemos que há implícito nessa ideia implícita ainda outro compromisso: o de que há de
fato algo que se possa chamar autoconhecimento “substancial” e seja diferente de um
autoconhecimento trivial. Por causa disso o conceito de emoção com que opera a teoria da
autoconstituição mantém íntima relação com a ideia de caráter ou identidade e se afasta da
concepção de emoção como episódios emocionais. Conhecer as próprias emoções, nesse sentido,
significa ter autoconhecimento substancial de traços fundamentais do próprio caráter. Menciono
essa particularidade pois ela leva a um problema que teorias introspectivas baseadas no modelo
perceptual, caso admitam que podem haver emoções episódicas, não enfrentam. Consideremos a
seguinte afirmação:
c) Papa Francisco tomou-se de coléra quando um imbecil o agarrou.

Que um episódio fugaz de cólera não seja suficiente para caracterizar alguém como sendo
uma pessoa colérica, isto é, alguém que tem a cólera dentre os traços de seu caráter, creio ser
evidente. No entanto, a teoria da autoconstituição das emoções, na medida em que concebe a
emoção intimamente ligada com o caráter (pelo qual nos julga responsáveis) e assim insere uma
cláusula normativa em assuntos epistêmicos, parece bastante estranha quando defrontada com casos
como o descrito na afirmação c. Devido a não satisfação da requisição normativa (afinal
gostaríamos de pensar que um Papa não tem razões para se julgar de caráter colérico), em casos
como esse, que envolvem episódios emocionais, simplesmente não haveria autoconhecimento
emocional. Isso pode ser entendido de duas formas: 1) uma forma de entender a ideia de que em
casos com o descrito em c não há autoconhecimento é dizer que trata-se de um caso de ignorância
sobre o que se sente. Essa alternativa, até onde consigo ver, é intuitivamente falsa. O fato de que
alguém tem atrás de si uma narrativa na qual uma emoção é recorrente e vem a ser perfeitamente
inteligível dentro do contexto dessa narrativa faz mesmo com que essa pessoa esteja em condições
de determinar com mais segurança e menos probabilidade de falha o que atualmente sente? Klaus
Kinski, durante um ataque de raiva em um estúdio qualquer, poderia saber com mais segurança que
o Papa Francisco, durante seu chilique, o que estava a sentir? A resposta me parece negativa. Ambos
poderiam simplesmente dizer: senti raiva (quais os motivos para duvidar?). Por que inserir uma
cláusula normativa garante que saibamos com maior clareza algo a respeito de nós mesmos? Além
disso, a narrativa ou concepção que temos de nós mesmos na qual o episódio emocional deve se
encaixar pode ser simplesmente ilusória. Nesse caso a cláusula normativa requerida por teorias da
autoconstituição, ao invés de garantir a autoridade epistêmica, facilitaria o autoengano;
Uma outra forma de entender a afirmação de que não haveria autoconhecimento emocional
em casos de episódios é 2) afirmar que não há autoconhecimento pois não há nenhuma emoção
substancial em jogo, apenas um episódio emotivo. A segunda alternativa (não há autoconhecimento
emocional pois não haveria nenhuma emoção propriamente dita em jogo) evita a conclusão
absolutamente contraintuitiva de que seríamos autoignorantes quanto ao que sentimos em episódios
emocionais e admite que nesses casos há autoconhecimento trivial, o mesmo que ocorre em relação
a crenças em geral, ou seja, nesse caso a teoria admite que há uma diferença essencial entre
episódios e emoções e que a introspecção pode funcionar naqueles. Considerando que a segunda
opção é a mais razoável pois evita a tese de que seríamos autoignorantes durante episódios - e para
isso deve se comprometer com a ideia de que neles temos conhecimento trivial através da
introspecção – a tese da autoconstituição passa a depender, em grande parte, de um compromisso
com o conhecimento “trivial” adquirido por introspeção, e é possível passar a compreender a
coerência exigida na cláusula normativa como coerência com episódios emocionais passados. Desse
modo, a tese da autoconstituição, tal como a entendi, parece depender de forma vital de um
compromisso básico com a introspeção e se aproxima dela muito mais do que a princípio pode
parecer, afinal a reflexão exigida envolve a memória de percepções introspectivas passadas, e, em
algum sentido, é ela também um tipo de introspecção (refletir sobre os episódios emocionais
passados não culmina em uma percepção interna – que independe da vontade, afinal os episódios
passados estão lá quer alguém queira quer não – de que tenho ou não determinado traço de
caráter?). Se essa descrição fizer algum sentido (e não estou nada seguro sobre essa possibilidade),
a tese da autoconstituição não é diametralmente oposta ao modelo perceptual de introspecção, mas
apenas está em um âmbito distinto, dizendo respeito a um tipo de conhecimento mais geral. Para
isso ela assume parte do modelo de introspecção, e se considerarmos que a tese da responsabilidade
afirma apenas que temos responsabilidade de descrever de forma adequada aquilo que estamos
sentindo – o que não diz nada a respeito de nossa capacidade de mudar aquilo que sentimos –,
sendo, portanto, uma tese de normatividade exclusivamente epistêmica, a teoria da autoconstituição
talvez possa a ser reformulada e compreendida como uma dentre outras das teorias introspectivas.
De todo modo, conforme afirma o título deste ensaio, essas são apenas questões, e não respostas.

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