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Fichamento do texto “Descartes on thought”, de John Cottingham.

Ao tentar explicar o que é uma “coisa que pensa”, na segunda meditação, Descartes inclui
em sua caracterização elementos como “querer”, “imaginar” e “sentir”. Em seu texto Cottingham
pretende examinar o porquê de Descartes ter identificado ao pensamento elementos que, a princípio,
parecem ser de uma natureza completamente distinta.
As leituras tradicionais afirmam que no tempo de Descartes a palavra que ele utiliza para
pensamento, cogitare, tinha uma abrangência maior do que tem atualmente. Enquanto que agora a
palavra “pensamento” mantém íntima ligação com processos estritamente cognitivos, no latim
utilizado por Descartes seu significado era muito mais amplo, abarcando coisas que hoje nos soam
estranhas. No entanto, observa Cottingham, na tradição escolástica anterior a Descartes já existia
uma clara distinção entre faculdade cognitiva e faculdade apetitiva, de modo que “não é claro que
Tomás de Aquino e seus discípulos aceitariam como evidente que 'res cogitans' (uma coisa que
pensa) implica 'res volens' (uma coisa que quer)”. (p. 98.)
Cottingham acredita que embora o termo possa de fato ter um significado mais amplo na
época em que Descartes viveu, essa não é uma solução muito satisfatória. Ele acredita que há razões
pelas quais Descartes empregou o termo, e essas razões provém do método e da metafísica
cartesiana. No contexto da passagem em que Descartes emprega o termo, ele se pergunta sobre o
que ele é, e essa pergunta é guiada pela dúvida metódica, um processo cognitivo. Descartes só
chega à certeza de que existe enquanto pensa através da dúvida hiperbólica. Cottingham observa
que “eu quero” não é indubitável da mesma forma como “eu penso” ou “eu duvido”, pois “eu
quero” não supera a dúvida metódica, isto é, é possível que eu me engane (ou um demônio maligno
me engane) quanto ao que eu quero. A certeza obtida no pensamento está intrinsecamente ligada a
um método cognitivo, o da dúvida. Assim, o termo “cogitare” parece tomar um sentido estritamente
cognitivo, ao contrário do que as interpretações tradicionais defendem.
Cottingham considera então as próprias definições que Descartes dá para o termo
“pensamento”. Ele chama atenção para a forma como Descartes se expressa, “por pensamento eu
entendo”, e afirma que mais do que simplesmente querer dizer que utiliza o termo de forma
específica, Descartes inclui atos de volição na definição de pensamento devido à característica de
que tais atos envolvem consciência reflexiva. Assim, atos da vontade não são pensamentos
enquanto atos da vontade por eles mesmos, mas sim enquanto objetos de consciência reflexiva.
Aqui surge uma possível objeção, apresentada por Peter Geach e Elizabeth Anscombe, que a partir
de uma carta de Descartes, afirmam que ele atribui pensamento (cogitaciones) de prazer, dor, etc, a
uma criança não-nascida, a qual o próprio Descartes admite ser incapaz de reflexão. Desse modo,
sensações não poderiam ser pensamentos enquanto objetos de reflexão. Cottingham afirma que
Descartes não defende que o pensamento de não-nascidos seja não-reflexivo, apenas afirma que eles
não “meditam sobre metafísica no útero da mãe” (p. 101), pois a mente nesse estado “está
inteiramente ocupada com uma confusa percepção ou sensação das ideias de dor, prazer [..] que
surgem de sua união e entrelaçamento com o corpo”. (p. 101)
Para esclarecer a inclusão de elementos da percepção/sensação entre o que Descartes define
como “pensamento”, Cottingham apresenta uma distinção feita pelo próprio filósofo. Segundo ele, é
possível entender a afirmação “eu vejo” de duas formas: como se referindo a visão simplesmente (e
sendo, portanto, passível de dúvida), ou como se referindo à “consciência de estar vendo”. Aqui fica
claro que o único modo de se referir a sensações como tipos de pensamento é em um sentido bem
estrito, que diz respeito a consciência reflexiva das sensações. Isso devido ao misterioso (para
Descartes) entrelaçamento da mente com o corpo. Assim, continua Cottingham, um ser humano não
é puro pensamento, mas sim uma mente entrelaçada a um corpo. Desse modo, sensações e
percepções não são puros pensamentos, mas sim um “confuso modo de pensamento” ou
pensamento em um sentido bastante estrito. O elemento puramente consciente ou reflexivo desse
pensamento é que constitui a propriedade pensamente pura, enquanto que a sensação constitui uma
qualidade residual, que Cottingham denomina “sentimento qualitativo” (qualitative feel).
Assim, a razão pela qual Descartes inclui elementos da sensação/percepção na sua
caracterização do pensamento é a de que esses elementos possuem um ato reflexivo intrínseco a
eles, a consciência reflexiva. Cottingham termina ressaltando que a certeza a que Descartes chega
através do método da dúvida garante apenas que ele esteja certo de que pensa algo, e quanto a
consciência reflexiva das sensações/percepções, de que parece que “pensa que quer”, ou parece que
“pensa que sente algo”. Aqui o argumento dá um passo adiante. Enquanto a dúvida metódica é um
processo lógico garantido pelo conteúdo a que se refere, a consciência reflexiva das
sensações/percepções depende da tese da completa transparência da mente, isto é, a tese de que a
mente é claramente consciente de seu conteúdo, desde que hajam objetos puros de reflexão. O
pensamento, para Descartes, tem um caráter cognitivo, pois sempre envolve consciência reflexiva.
No entanto, como ressalta Cottingham, isso não dá conta da passagem de res cogito para res volens,
e o máximo que Descartes poderia concluir a partir somente da dúvida metódica é que ele pensa, no
sentido mais estrito. (p. 106).

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