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Equilíbrio Psíquico e Mudança Psíquica

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A Inveja na Vida Cotidiana

Este artigo foi originalmente apresentado sob a forma de uma conferência aberta ao público
em geral no Tavistock Institute, em novembro de 1985, sendo em seguida publicado no
Psychoanalytic Psychotherapy 2 (1986): 13-22.
Introdução
Pode talvez parecer curioso escrever sobre a inveja na vida cotidiana, já que, como
Inveja na Vida Cotidiana

poderíamos dizer, esta é uma emoção por demais cotidiana, conhecida de todos. Sempre
se falou dela e, através de toda a literatura, encontramos abundantes referências à inveja e
descrições dela e de suas operações. Sabemos por Otelo do monstro de olhos verdes:

lago: Oh, senhor, tende cautela com o ciúme;


É o monstro de olhos verdes que escarnece
Da carne com que se nutre.

Shakespeare usa aqui a palavra "ciúme", mas num sentido muito próximo do que
consideramos ser um aspecto essencial da inveja. Voltarei depois à relação entre os dois.
No entanto, a psicanálise, curiosamente, até cerca de trinta anos atrás, apenas prestou
atenção à inveja de um ponto de vista muito limitado. Freud falou quase que
exclusivamente sobre um único tipo de inveja, que ele chamou de "inveja do pênis".
Tratava-se da inveja da mulher pelo pênis do homem e por seus atributos masculinos, do
ressentimento dela por não ter um, e assim por diante, mas idéias mais amplas sobre o
significado da inveja, de sua ubiqüidade, ou a noção de que um homem poderia invejar os
atributos e capacidades de uma mulher, de fato raramente fizeram parte dos escritos de
Freud. Foi provavelmente apenas depois dos anos 50, e em particular após 1957, quando
Melanie Klein publicou seu livro Inveja e Gratidão, que o significado da inveja foi mais
plenamente discutido e compreendido. Todos os que conhecem esse livro verão que o que
vou examinar deriva-se essencialmente do pensamento de Melanie Klein.
É interessante considerar por que o significado da inveja levou tanto tempo para ser
reconhecido, enquanto o seu parente próximo, o ciúme, já estava na literatura analítica e
fazia parte do entendimento geral havia muito tempo. Penso agora que nossa
compreensão e reconhecimento do ciúme, quando comparados com nossa negligência
quanto à inveja, têm raízes muito importantes. Quando pensamos em ciúme, a que nos
referimos? Referimo-nos a um relacionamento que envolve três pessoas; sente-se ciúme
porque alguém a quem se ama, ou a quem se está ligado, demonstra mais interesse ou
afeição por outrem. Mas, de modo geral, isso é considerado normal, penso que porque o
ciúme está baseado em amor ou afeição por uma pessoa - de outro modo não se sentiria
ciúme. Assim, há uma razão para o ciúme que o torna, em certa medida, tolerável e
perdoável. De fato, sabemos que certos crimes cometidos sob pressão de extremo ciúme
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podem ser considerados como tendo circunstâncias atenuantes, e o veredicto e a sentença


serão atenuados de acordo.

Mas com a inveja o quadro é diferente: ela envolve basicamente duas pessoas, e
inveja-se o que a outra pessoa possui, ou suas capacidades, conquistas, qualidades pessoais
etc. A inveja envolve, em maior ou menor grau, uma qualidade espoliadora, ou pelo menos
hostilidade para com as boas capacidades da outra pessoa, ainda que isso possa não ser
reconhecido. O Oxford English Dictionary (edição de 1979) a descreve como "O sentimento
de mortificação e malevolência ocasionado pela contemplação de vantagens superiores
possuídas por outrem". Se se destrói por ciúme, há alguma razão para tanto. Mas na inveja
a espoliação se faz por ódio, e parece não haver nenhuma circunstância atenuante. Como
diz um de meus pacientes, a inveja é tão "sem sentido".
A inveja muitas vezes parece estar ligada à voracidade, e no entanto é diferente
dela. A pessoa que é voraz quer obter algo - desconsiderando o custo para a pessoa de
quem ela quer esse algo - e reconhece que há algo de bom a ser obtido. Mas a pessoa
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invejosa não está tão interessada em obter algo para si própria e usufruir isso - ainda que
vorazmente -, mas sim em tirar algo da outra pessoa, algo de que ela possa então tomar
posse, de forma que se torne parte de si própria.

O que desejo fazer agora é examinar a inveja da forma como a vemos operar na vida
cotidiana, para então considerar algumas de suas implicações. Em certo sentido, todos nós
conhecemos o resultado final consciente - sentimentos de ressentimento por alguém estar
à frente, ou fazer melhor, e uma vaga hostilidade, rivalidade, competitividade -, mas é
quando ela é mais intensa que começa o problema, como, por exemplo, quando conduz a
uma espécie de crítica incessante ou a constantes alfinetadas. Ou, ao contrário, quando o
indivíduo invejoso não consegue ver nada a elogiar ou a valorizar em outro indivíduo, mas
só acha dúvidas - "bem, estava bom, mas ... " - e encontra sempre alguma razão para
duvidar da outra pessoa ou derrubá-Ia. E, como de fato sempre há algum motivo para
crítica em todos nós ou no que fazemos, a atitude invejosa pode facilmente passar
despercebida e as críticas e dúvidas parecerem reais.

Outra forma sob a qual a inveja pode ser vista com mais facilidade é quando
abertamente conduz a uma espécie de implacável determinação de obter o que a outra
pessoa tem, de forma que, se X tem um bom emprego ou uma nova panela, seu amigo ou
amiga invejosa não sossegará enquanto não tiver emprego ou panela equivalente ou
melhor. Esse tipo de atitude está naturalmente muito mais próximo de uma ambição
presunçosa. É provavelmente menos perigoso e problemático do que o tipo mais insidioso,
que causa o verdadeiro problema. As manifestações da inveja que mais nos interessam
aqui são aquelas mais claramente associadas à espoliação - a espoliação é provavelmente
fundamental à inveja. A pessoa invejosa pode espoliar literalmente, injuriando, danificando
ou ferindo outra pessoa ou suas posses; ou pode espoliar por meio de injúrias psicológicas,
ferindo os atributos ou as conquistas de outra pessoa em sua própria mente, em seu pensa-
mento, ou externamente, por meio de críticas, escárnio ou provocação. Cito a
"provocação" porque é uma magnífica espoliadora, bem conhecida de muita gente e
muitas vezes bastante visível, digamos, por exemplo, na adolescência e no tratamento
psicanalítico. Podemos ver esse tipo de coisa quando a pessoa invejosa inveja a inteligência
tranqüila e a paz de espírito de outra pessoa e se põe a cutucá-Ia e a provocá-Ia até que ela
perca a calma. Essa pode ser uma arma muito evidente em análise.
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Colocando o problema de outra forma. O que uma pessoa verdadeiramente


invejosa não pode suportar é encarar o sucesso, a fruição, o prazer do outro; e, quanto
mais nos aproximamos da questão, é mais provável que a dificuldade se faça sentir. Assim,
a pessoa verdadeiramente invejosa não pode tolerar que algo de bom lhe seja dado por
outra pessoa. Ela não pode usufruí-Io, reconhecerá de má vontade suas boas qualidades,
seu valor, e será incapaz de experimentar e de expressar gratidão. Como um de meus
pacientes descreveu, quando confrontado com o problema de vivenciar e de expressar
gratidão, ele simplesmente "não consegue botar para fora" - fica preso em sua garganta.
Ora, se é assim num nível verbal com um homem que está em análise há algum tempo, que
tem considerável insight e um grande desejo de mudar, podemos ter uma idéia da
profundidade do problema subjacente.
Uma pessoa excessivamente invejosa, portanto, pode achar tão difícil tolerar que
outra tenha alguma coisa para lhe dar que ela não pode reconhecer ou usar a outra pessoa
construtivamente. Podemos ver isso surgir na forma de uma verdadeira incapacidade de
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receber informação ou ajuda - na verdade, de percebê-Ia. Pode ser um elemento
importante em crianças que não conseguem aprender na escola, como se elas
simplesmente tivessem de rejeitar qualquer, tipo de ajuda. (Naturalmente, esse é apenas
um elemento de uma situação total, mas é o elemento que estamos aqui considerando.)
Esse problema pode impedir que o indivíduo leia e utilize livros, artigos científicos etc., uma
vez que o sentimento é o de ter de conhecer o que está escrito antes de lê-Io e, portanto, a
mente não fica livre para acompanhar o argumento do livro ou do artigo. Pode impedí-Io de
utilizar ou acreditar na ajuda ou no conselho profissional ao seu alcance. Podemos ver um
aspecto semelhante naquilo que eu chamaria de "o murchar da conversa". Uma pessoa
muito invejosa dificilmente consegue tolerar escutar o que outra pessoa tem a dizer, e
pode encontrar todo tipo de artifício para parar a conversa, tomando conta do assunto,
paralisando-a, porque não consegue tolerar ouvir coisas divertidas, experiências e
pensamentos interessantes que venham de outra pessoa.

Antes de prosseguir examinando algumas outras implicações do que estou


descrevendo, quero trazer um breve exemplo das operações da inveja destrutiva num caso
em tratamento analítico. Trata-se de um homem que estava em análise havia algum tempo
e que no princípio tinha consideráveis dificuldades sexuais. Ele era frio, distante e
cruelmente insensível, mas realizara grandes progressos, casara, e agora estava esperando
que, após algumas dificuldades inicia:s para engravidar, sua mulher estivesse grávida.
Numa sessão, contou-me o seguinte sonho: Meu paciente e sua esposa foram para X de
avião e lá encontraram alguns amigos dele, que vamos chamar de Andrew e Barbara. Ele
viu que não conseguia lembrar-se do nome de Barbara, de sorte que não podia apresentá-Ia
de modo apropriado à sua esposa, que nunca a tinha encontrado antes. O casal levou-lhes a
um restaurante em outra cidade. Sentaram-se a uma mesa comprida e meu paciente notou
como Barbara se tornara pequena, desajeitada, desfigurada e sem graça. Sua esposa falava
muito, mas estava claramente desnorteada e um pouco tola; porém ele disse de um modo
gentil, mas ligeiramente condescendente -, de fato, não importava muito, não era nada. Ela
também se parecia um pouco com um menininho. Depois disso, os amigos - Andrew e
Barbara -levaram meu paciente e sua esposa de volta à cidade onde eles deveriam tomar o
avião para retomar a Londres.

Meu paciente fez uma série de associações ao sonho e falou sobre os detalhes, que
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não vou apresentar aqui. Quero apenas contar sobre o que eu penso que seja o sonho, e
espero que sigam o meu raciocínio. Eis aqui um homem que, de fato, conscientemente
deseja que sua esposa tenha um bebê e que a análise vá bem, mas nós vemos que as duas
mulheres, a esposa e Barbara, são diminuídas. A esposa perde sua feminilidade, toma-se
pueril como um menininho e tola, mas ele a perdoa. A amiga, Barbara, fica sem graça,
pequena e desajeitada. Pequena e desajeitada me soa um pouco como eu mesma, mas ele
não estivera achando a análise sem graça ou sem vida ultimamente! Penso que essas duas
mulheres, particularmente importantes em sua vida, tiveram suas qualidades específicas -
aquelas mesmas qualidades que ele valoriza nelas, como a minha capacidade de estar
atenta e sensível ao que está ocorrendo - retiradas no sonho, de forma que eu me tomo
pequena e desajeitada, não apenas de corpo, mas mentalmente. E a capacidade de sua
esposa de ser inteligente, atenta, feminina e conceber, tudo isso se vai.
Depois disso, os dois casais foram para a cidade onde meu paciente e sua esposa
tomariam o avião para casa, o que, segundo ele me explicou, era estranho, já que a cidade
onde comeram também tem aeroporto e, portanto, eles poderiam na realidade ter viajado
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direto de lá para Londres. Penso que este último ponto sugere que, uma vez que meu
paciente tenha deixado seus bons objetos - sua esposa e eu mesma - numa condição
desvalorizada ou condescendentemente diminuída, seu equilíbrio mental é restaurado e
ele pode retomar às suas formas usuais, seu modo habitual de relacionar-se com as
pessoas, vendo-as como inferiores e não invejáveis. Esse é o caminho pelo qual ele volta
para casa. Esse equilíbrio fora perturbado por sua percepção tanto da posição única de sua
esposa, se ela engravidasse, como do meu valor, à medida que a análise prosseguia, vendo-
me analiticamente grávida de idéias.

Podemos ver nesse material um elemento muito importante, aquilo que esse
paciente costumava chamar de falta de sentido de seu estrago. Ele próprio não ganha nada
em retirar a feminilidade de sua esposa ou a minha vivacidade; ao contrário, do ponto de
vista da realidade, ele perderia com isso. Mas, como sugeri, a pessoa invejosa está de fato
mais interessada em espoliar o que a outra pessoa tem do que em obter coisas ou
experiências boas e reais para si. Meu paciente não pode ficar grávido, atacando a
feminilidade de sua esposa. Se eu me tomo uma analista estúpida e sem graça, não tenho
grande utilidade para ele, mas sua inveja é apaziguada. Não há nada mais a ser invejado e
seu equilíbrio mental é restaurado. Podemos ver assim, nesse breve exemplo, como a
inveja do paciente "escarnece da carne com que se nutre".

Há muitos níveis de problemas que se revelam nesse exemplo aparentemente


simples. No nível dos relacionamentos adultos, podemos ver como sua inveja pode levar a
uma espoliação mesquinha da feminilidade de sua esposa; mas a inveja poderia também se
intrometer em sua relação com o bebê: se a esposa de fato fica grávida, sua inveja pode,
por exemplo, emergir na forma de ressentimento pela capacidade de sua esposa para
cuidar, criar e alimentar o bebê. Esse tipo de ressentimento poderia aparentar-se mais a
um ciúme da relação mãe-bebê, porém, por detrás dele, a inveja desse paciente seria, eu
penso, o elemento mais perigoso, a menos que eu seja capaz de ajudá-Io suficientemente.
A propósito, eu acrescentaria que penso ser muito freqüente que situações que têm a
aparência de ciúme ou de ciúme patológico baseiam-se na realidade nesse tipo de inveja
fundamental mas esse é outro assunto.

Voltando a esse paciente, procurei indicar algumas das camadas mais profundas por
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trás dos problemas atuais, no nível adulto, com sua esposa: por exemplo, como ele se toma
incapaz de receber uma boa nutrição analítica de mim, incapaz de estar feliz na condição de
quem recebe. Estou tentando aqui assinalar como, nessas pessoas, os problemas originais
de receber e usufruir têm grande chance de emergir a cada passo do desenvolvimento,
interferindo com o progresso em novos relacionamentos e situações.

Desejo agora examinar algumas outras implicações desse tipo de atitude invejosa.
Como esclareci, a pessoa realmente invejosa não pode aproveitar o que vem de outra
pessoa e não pode sentir gratidão, o que significa que sua capacidade de ter prazer e de
amar sofre graves interferências. Nós sabemos que construímos nosso caráter colocando
dentro de nós - introjetando - nossas relações iniciais com nossos pais e figuras próximas de
nossa infância da forma como as experimentamos, e a maneira com que sentimos a nosso
respeito está de acordo com o mundo que construímos e o nosso interior, nosso mundo
interno. Se a inveja, qualquer que seja a razão, impede que o indivíduo construa
relacionamentos bons, calorosos e confiáveis, todo o seu mundo interno, e portanto seu
caráter, será influenciado e é provável que ele fique, de acordo com isso, inseguro. Essa
própria insegurança ou sentimento de inadequação incrementará o ódio de outros que se
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sintam mais confortáveis, mas confiantes e mais estáveis. E assim a insegurança incrementa
a inveja, e nós ficamos com um círculo vicioso.

E há outros problemas. A pessoa que é muito invejosa e espoliadora em seus


relacionamentos, ainda que o seja de um modo oculto, inclusive oculto para si mesma,
sentirá seu mundo hostil ou espoliador para si e se tomará mais paranóide ou desconfiada
em sua atitude em relação às pessoas, de modo que seu mundo toma-se desagradável para
si própria e ela fica cada vez mais na defensiva e menos capaz de usufruir. De fato, um dos
grandes-problemas das pessoas muito invejosas, mesmo nos casos em que a inveja não é
consciente, é que elas têm muito pouco prazer real na vida. Quando elas têm boas
experiências e prazer, ocorre-lhes o importuno sentimento de que poderiam ter mais, ou
de que alguma outra pessoa tem melhor; ou de que há algo de errado, ou, se conseguiram
agora, por que não podiam ter tido antes; teria sido tão melhor quando eram mais jovens.
Vemos isso muitas vezes na análise do paciente que, quando de fato aceita que algo do que
dissemos é útil, no momento seguinte far-nos-á saber que, embora lhe tenhamos mostrado
isso agora, teria sido tão mais útil se ele pudesse tê-Io compreendido um ano atrás.

É claro que nessa altura não é apenas o paciente que fica privado de experiências
felizes, mas analiticamente também o analista, a quem é dada pouca oportunidade de
usufruir sua posição de analista desse paciente.

Sem dúvida, é muito desconfortável estar constante ou freqüentemente ciente de


sentimentos invejosos; é desagradável e perturbador. E a maior parte das pessoas -
provavelmente todos nós em maior ou menor grau - tenta inconscientemente proteger-se
por meio de várias manobras, procurando construir defesas contra a vivência da inveja.
Essas defesas podem ajudar o indivíduo temporariamente a sofrer menos, mas, como todas
as defesas, podem também causar outros problemas, especialmente se forem intensos.

Quero agora falar sobre algumas dessas defesas e sobre alguns dos problemas que
causam. Há freqüentemente uma mistura entre a expressão real de inveja e as defesas
contra essa inveja. Nem sempre é possível dizer que se trata de um ataque invejoso ou de
uma defesa contra ele. Tomemos, por exemplo, o sonho do homem cuja esposa ele
esperava que estivesse grávida: se ele puder me manter em sua mente como alguém
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embotado e estéril, ele se protegerá do sentimento de hostilidade para comigo por lhe ser
útil; no entanto, quando ele me toma, como sugeri que o fez no sonho, mentalmente,
embotada e pequena, nós podemos ver isso de per si como um ataque a mim. No
tratamento, pode ser muito importante discriminar isso.

Examinemos agora outros tipos de defesas da maneira como emergem na vida


cotidiana e se refletem na situação analítica. Um modo de evitar a inveja excessiva é
idealizar a pessoa que a provoca - idealizar de tal forma que a outra pessoa é vista como
tão linda ou tendo capacidade tão marcantes, como tendo feito um trabalho tão
extraordinário etc. que a distância entre a outra pessoa e si próprio fica tão grande que
aparentemente nenhuma comparação é possível. Isso mantém a pessoa potencialmente
invejada num pedestal e fora de alcance. Em análise podemos freqüentemente observar a
ocorrência disso, quando o paciente tem de manter o analista como alguém tão bom,
apenas amado e valorizado, e toda a relação é mantida positiva, enquanto nenhuma critica
é permitida. Isso pode ser um considerável problema com alguns pacientes muito doentes,
que se agarram a esse estado de coisas como que aterrorizados em relação ao que
aconteceria se pensamentos invejosos ou críticos emergissem, como se o paciente
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simplesmente não pudesse contê-Ias. Isso pode de fato ser de manejo bastante difícil para
o terapeuta ou o analista jovem ou inexperiente, já que é muito mais agradável e
confortável acreditar que se é realmente um analista bom, inteligente e cheio de vida; é
muito mais agradável ouvir que estupidez, falta de jeito, insensibilidade etc. são qualidades
dos terapeutas ou dos analistas dos outros. Desse modo, ambos, paciente e analista,
podem agradavelmente manter alguns problemas reais cindidos e afastados.

Um tipo de cisão diferente, mas provavelmente relacionado, pode ser observado no


tipo de defesa em que o indivíduo tende a desvalorizar o self, fazendo parecer que não tem
nada para dar, que é tão pobre e limitado, aumentando assim a distância entre o self e a
outra pessoa. Como, por exemplo, poderia tão pobre criatura de algum modo comparar-se
a X etc. Esse tipo de defesa pode ser muito próximo de uma espécie de masoquismo
aplacador e lisonjeiro. É claro que não funciona, porque tende a tomar o indivíduo ou
muito hipócrita ou mais deprimido, sentindo-se sem valor e sem esperança; e, de fato,
muitas vezes ele começa a chafurdar nesse estado, o que torna as coisas ainda piores e sem
saída.

Outro tipo de defesa, que apenas mencionei aqui anteriormente, está mais lidado a
um tipo particular de voracidade, e é muito importante em algumas pessoas que têm
dificuldades em aprender e absorver informação - incluindo, naturalmente, informação
analítica, ainda que possa não parecê-Io. Certos pacientes em análise podem parecer
extremamente cooperativos e compreensivos; mas, conforme examinamos o
desenvolvimento da sessão, podemos ver que o que de fato estão fazendo não é responder
às interpretações e à compreensão do analista, com a capacidade de concordar ou
discordar, de mastigar as coisas, digeri-Ias, e assim por diante. Eles estão fazendo outra
coisa. Eles escutam e, por assim dizer, engolem as idéias do analista e se apossam delas,
muitas vezes sem acompanhar de fato o que este ou o terapeuta está realmente dizendo
ou querendo dizer, e deixando de registrar o que quer que seja novo ou qualquer sutileza,
nuança ou frescor no que está sendo dito. Ficamos assim com a impressão de que o
paciente, em sua fantasia, introduziu-se na mente do analista, de modo que se tomou,
nesse momento, analista de si mesmo ou do paciente no divã, por assim dizer, e o analista
mesmo tomou-se quase redundante, quase inexistente. Pode parecer insight, mas é algo
muito diferente, e o processo pode ser muito sutil. É claro o porquê de eu estar
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descrevendo isso como uma defesa contra a inveja. Na medida em que o paciente se
apossa rapidamente de tudo, ele nunca tem a vivência de que lhe é dado algo bom e
digerível ou de saber que isso vem de outra pessoa, no caso o analista, que poderia
portanto ser útil, até mesmo invejável; assim, a inveja pode ser evitada. Podemos ver
também como esse tipo de defesa pode estar ligado a dificuldades de aprendizagem, como
já me referi antes, e também a dificuldades mais antigas de alimentação, até a uma
verdadeira anorexia e frigidez, mas esse é um vasto tópico no qual não podemos embarcar
aqui.

Essa espécie de apossar-se mental está provavelmente ligada intimamente a um


tipo de comportamento muito familiar, também baseado em projeção. Digo identificação
projetiva com o analista.
Mas o tipo que desejo prosseguir examinando agora é aquele no qual a pessoa
invejosa, em vez de tomar consciência de sua inveja, tenta, sutilmente ou não, e em geral
de forma inconsciente, provocá-Ia em outras pessoas, fazendo com que os outros se
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apercebam de suas qualidades ou capacidades particulares, de modo tal que lhes provoque
inveja.

Esse pode ser um traço caracterológico muito profundo. Naturalmente, ele cria
outros problemas, porque tais indivíduos ficam preocupados com a competitividade, a
hostilidade e a inveja das outras pessoas e se sentem ao mesmo tempo, num certo sentido,
superiores, como se contivessem todas as boas qualidades, mas também muito
ameaçados. Darei um exemplo extraído de uma análise, mas penso que o quadro que vai
surgir será familiar.

Trata-se de uma jovem que veio do exterior para concluir seu trabalho científico de
pós-graduação e permaneceu aqui para fazer análise. Ela era atraente, cheia de vida e
muito inteligente e, por um lado, me mantinha em sua mente da maneira que descrevi
anteriormente, muito idealizada. Conscientemente ela me via como uma analista muito
boa - honesta, culta, decente etc. Porém, por trás disso, comecei a perceber uma imagem
muito diferente de mim, da qual ela não tinha consciência naquele momento: eu sendo
vista como uma velha solteirona invejosa que na verdade não queria que ela, a paciente, se
divertisse e tivesse uma vida social plena, muitos amigos, ou fosse admirada por homens
jovens (tudo o que ela realmente tinha). Quanto à imagem de mim como uma velha
solteirona, tudo bem, mas o que dizer de minha atitude espoliadora, invejosa, escindida de
sua consciência, mas que agora começava a emergir? Naturalmente, poderia ser verdade,
mas também poderia não sê-Io. O que eu pude notar foi a enorme preocupação de minha
paciente em discutir e rediscutir interminavelmente, tanto na análise quanto fora dela, o
que estava acontecendo, qual namorado havia telefonado, o que ele disse, o que ela
pensou sobre o que ele disse etc., focalizando principalmente a si própria e seu papel
central em seu mundo. Qualquer percepção, qualquer evidência de mim como ser humano
com vida própria, dificilmente ganhava vida em sua mente. Suas amigas, de sua própria
geração, cada vez mais apareciam na análise como um tanto "paranóides" (palavra sua):
tentavam fazê-Ia sentir-se por baixo, divertiam-se em assinalar coisas desagradáveis nos
relacionamentos dela ou eram competitivas etc. Ora, eu não duvido de que havia um tanto
de verdade nisso, mas ...

O que penso que estava de fato ocorrendo é que seu equilíbrio fora mantido no
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passado por ter construído e se apegado a relacionamentos nos quais ela em geral não se
dava conta do sucesso, do prazer e do interesse que existem nas vidas de outras pessoas -
como vemos na análise - e inconscientemente tentava estimular o interesse e a
preocupação com os seus próprios relacionamentos, particularmente com os homens,
assim como tentara estimular a excitação, a inveja e a competitividade em suas amigas, do
mesmo modo que tentava comigo. E eu suspeito de que ela fosse bem-sucedida. Agora
parece claro que ela de fato se tornava objeto de inveja e que o modo como ela falava, se
vestia e fazia insinuações destinava-se a provocar isso. Ela trabalhava no meio de um grupo
de jovens cientistas muito talentosos e conseguia me transmitir os interesses desse grupo
de um modo que inconscientemente tinha, penso eu, a intenção de me fascinar e, no
entanto, me fazer sentir, da maneira mais delicada possível, quão ignorante ocorria de eu
ser em seu campo.
É claro que não é de admirar que essa jovem se sentisse desconfortavelmente
cercada por amigos' invejosos e por uma analista velha, invejosa e de má vontade para com
ela, e então tivesse de tentar consertar tudo isso. As pessoas como essa paciente tentam
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livrar-se de sentimentos invejosos e similares ou projetá-Ios. Outros parecem mais
ativamente sufocar, quase aniquilar tais sentimentos e emoções. Assim, por exemplo, o
homem cuja mulher esperava estar grávida, quando veio para a análise e em alguma
medida muito depois, simplesmente estancava seus sentimentos e não os sentia. As idas e
vindas das pessoas, o que faziam, férias ou mudanças da análise simplesmente pareciam
não tocá-Io, e assim todos os tipos de emoções, e certamente a inveja, eram mantidos a
distância. Ele então dava a impressão de ser uma pessoa muito fria, e no entanto, na
verdade, não é assim, e só o tempo irá mostrar se podemos realmente libertar os
sentimentos que, estou convencida, estão lá e são potencialmente disponíveis.

É claro que restringir contatos, evitar áreas de vivência que estimulem rivalidade e
inveja, é outro modo importante de defender-se contra a inveja, e um modo bastante
familiar. Esta é quase certamente uma raiz importante da homossexualidade masculina: se
o homossexual masculino evita o contato emocional íntimo e o contato físico com
mulheres, ele não tem de encarar o forte reconhecimento de diferenças que poderiam
provocar inveja e ansiedades associadas. Mas podemos ver também uma restrição mais
maciça da vida, de forma quase caracterológica, em certas pessoas que se saem bastante
bem, desde que as restrições se mantenham, mas podem ficar muito perturbadas quando
as restrições se movem.

Lembro-me bem de um paciente meu que era bem-sucedido no trabalho, casado,


com filhos. Ele conseguia viver uma vida tão restrita que ele e sua mulher nunca
convidavam pessoas à sua casa, a não ser parentes próximos, e isso muito raramente, e um
ou dois pobres-diabos, por assim dizer. Ele olhava para sua mulher de um jeito um tanto
superior e, de forma polida, desdenhava seus colegas. Procurava evitar todos os eventos
sociais, o que algumas vezes era extremamente embaraçoso em seu trabalho. Ele não
viajava. Assim, quase não tinha de falar com as pessoas ou ouvir o que as outras pessoas
estavam fazendo ou pensando, fora de sua área específica de trabalho. Do ponto de vista
do que estamos considerando hoje, com essa vida tão restrita, o que ele conseguia era
nunca ser realmente desafiado. Ele conseguia quase que evitar ser colocado numa posição
em que ouvisse alguma coisa que pudesse fazê-Io sentir-se inferior ou invejoso ou neces-
sitado de ajuda ou de pessoas. Finalmente, até mesmo essas restrições não funcionaram -
ele teve um colapso e então procurou análise.
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Outro ponto: Sinto que não tenho o conhecimento nem estou em posição de falar
sobre as implicações sociológicas mais amplas da inveja, que no entanto penso serem
imensas. Mas, num nível individual, estou certa de que, em pessoas que não chegaram
suficientemente a um acordo com isso em si próprias, haverá fatalmente dificuldades em
cada novo estágio de desenvolvimento e, particularmente, talvez no envelhecimento.
Envelhecer, com o que se poderia chamar uma verdadeira resignação, significa ser capaz de
permitir que as gerações mais novas tenham coisas, conhecimento, talentos e um futuro
que a geração mais velha não pode ter; e isso quer dizer abrir espaço para as gerações
seguintes, ser capaz de identificar-se em seu sucesso e até mesmo usufruí-Io, e lamentar o
que não se conseguiu, bem como usufruir o que se tem. A inveja excessiva pode tomar
muito difícil esse estágio particular de desenvolvimento, ainda que todos tenham de
alcançá-lo.
Considerei a inveja como a vemos emergir, ou mesmo não emergir, em nossa vida
cotidiana. Uma questão em que não toquei é como nós de fato tentamos lidar com ela.
Sugeri que ela está em toda parte, e assinalei que todos nós nascemos com uma
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potencialidade para a inveja; e que todos nós temos de lidar com ela em nossas próprias
vidas e temos de vivenciá-Ia como parte de nossas personalidades. Talvez tudo o que eu
possa dizer a esta altura é que em geral esperamos que o indivíduo tenha suficiente afeto e
amor disponíveis, capacidade de sentir calor humano e gratidão, para poder contrabalançar
sua rivalidade e sua inveja, e ainda assim estar consciente de sua existência e permitir que
outros seres humanos sejam vistos como dignos de inveja. Em certo sentido, isso é uma das
coisas que esperamos alcançar, ao analisarmos nossos pacientes que não foram capazes de
lidar com esses problemas em suas próprias vidas, ou seja, proporcionar insight das
profundezas reais da inveja e redescobrir e libertar o amor e a gratidão escindidos ou
sufocados, ajudando assim o paciente a integrá-Ios. Isso de per si pode levar a um alívio
considerável e ajudar a afrouxar as garras terríveis dos sentimentos invejosos, levando a
um círculo mais benigno.

Tentei, assim, examinar o enorme poder e significado da inveja, não apenas em


nosso detalhado trabalho como analistas e terapeutas, porém mais ainda em nossa vida
cotidiana.

Resumo

Este capítulo tem por objetivo descrever e discutir a noção de inveja, de suas
manifestações mais simples e conscientes até as mais profundamente destrutivas e_
espoliadoras, tanto conscientes como inconscientes; vê-Ia como parte inevitável da vida
mental e da vida cotidiana. Se a inveja for excessivamente poderosa e não for
suficientemente mitigada pelo amor, ela perturbará as relações normais com as pessoas e a
construção de uma estrutura de caráter saudável e satisfatória; e contribuirá para sérias
dificuldades emocionais. A dor da inveja nos leva a tentar construir várias defesas
diferentes, que são aqui descritas. Cito um breve material clínico para mostrar a inveja em
operação durante o tratamento analítico e discuto os objetivos da terapia nos termos de
proporcionar maior integração entre as várias forças conflitantes e assim abrandar o círculo
vicioso que a inveja insuficientemente mitigada tende a perpetuar.
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