2023

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Supervisão: Deborah Cristina Amorim ­
Preparação de Texto: Maria Cecília Ursulino Cavassana Curupaná

A Giovanna, Sofia, Luigi e Beatrice.

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Florianópolis/sc

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

de talento e ineditismo, estando de parabéns por ter, em seu quadro, o
jurista Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior.
Maceió, 31 de agosto de 2022.

Rosmar Rodrigues Alencar

Doutor em Direito (puc-sp). Mestre em Direito (ufba).
Professor Adjunto da ufal. Professor Titular da UNIT (al).
Juiz Federal.

INTRODUÇÃO 23

DAS NEUROCIÊNCIAS AO NEURODIREITO 31

Anatomia e fisiologia cerebrais 40
Funcionamento do cérebro 47
Os quatro princípios das redes neurais 51

PERCEPÇÃO 61
Limites e peculiaridades 67
Ilusões perceptivas 75

CONSCIÊNCIA, RAZÃO E LIVRE-ARBÍTRIO 81

Livre-arbítrio 88
(IR)Racionalidade 97

MEMÓRIA 105
Tipos de memória 116
Pré-ativação (priming) 119
Falsas memórias 130

O CÉREBRO SOCIAL 135

O cérebro tribal 138
Conformidade social, prazer social e dor social 145
Obediência à autoridade 147
TOMADA DE DECISÃO JUDICIAL 153 DESENVIESAMENTO 255
Dissonância cognitiva 155 Preconceito implícito, mas efeitos nem tanto 255
A (ilusão da) certeza 163 Enfrentando os demais vieses cognitivos 257
Raciocínio motivado 170
CONCLUSÃO 267
PROCESSAMENTO DUAL 173
CAPÍTULO EXTRA 271
Heurísticas, vieses e ruídos 179
Estruturas e funções do sistema nervoso 271
Vieses 184
Sistema nervoso central 272
Ruídos 188
Sistema nervoso periférico 278
VIESES MAIS IMPORTANTES PARA O TOMADOR Células nervosas 279
DE DECISÃO JUDICIAL 193 A evolução do cérebro e seus ecos 282
Ponto cego de viés 193
REFERÊNCIAS 291
Ancoragem 195
Viés de disponibilidade 201
Viés de confirmação 202
Viés de enquadramento 206
Viés de representatividade 208
Efeito halo (e efeito chifre) 208
Efeito de primazia 211
Aversão à perda 214
Efeito dotação 217
Viés de omissão e viés do expectador 219
Viés retrospectivo 222
Efeito contraste 225
Efeito da vítima identificável 226
Viés egocêntrico (ou efeito acima da média) 229
Efeito Carryover 233
Efeito Dunning-Kruger 235

OUTROS FATORES INFLUENCIADORES INTERNOS

E EXTERNOS 237
Gênero, idade, ideologia política e religião 242
Fatores ambientais 250

possível e dos limites da racionalidade humana – que é limitada – obter
algum sucesso.
O capítulo extra é para quem quer se aprofundar um pouco mais
em termos de neurociências. Ele desce a minudências da anatomia e
da fisiologia cerebral e, por isso, pode parecer um pouco árido para um
jurista. Abordo temas como as divisões do sistema nervoso em central-
-periférico, voluntário-autônomo etc., e do cérebro em si, como córtex,
neocórtex, lobos e o sistema límbico. Além disso, falo sobre as células
que formam nosso sistema nervoso e trago uma ideia geral da evolução
do nosso cérebro. Busquei fatos e fundamentos que considero interes-
santes para que possamos compreender melhor o neurodireito, mas que
não necessariamente são essenciais ao entendimento desta obra. No que
possa ser importante aos não iniciados em leituras sobre neurociências,
ao longo do texto, farei remissões pontuais a informações desse capítulo
(como o funcionamento de um neurônio, por exemplo).
Então, vamos começar?
31
DAS NEUROCIÊNCIAS
AO NEURODIREITO
“Quem o Direito só sabe, nem o direito sabe”
San Tiago Dantasb
Estava numa comarca do interior, no início da carreira. Havia uma
ação penal que tratava de um acusado que, juntamente com um desco-
nhecido, ingressou numa padaria, anunciou um assalto, levou o dinheiro
do caixa e tomou a chave da moto de uma cliente, dizendo que era só
para fugir. Então, saiu pilotando em disparada. A motocicleta foi largada
uns quarteirões à frente.
A tese do Ministério Público (mp) era de que tinha havido dois roubos
– o da padaria e o da moto, o chamado concurso material de crimes. A
tese da defesa (por um defensor dativo) era de crime continuado, em que
se condena por um só crime, com um pequeno aumento pelo segundo.
Quando fui fazer a sentença, veio-me à cabeça uma dúvida: se a moto
foi mesmo subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela
fora abandonada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo
por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum
impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo
técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda juiz substituto, inexperiente e inseguro, faltou-me coragem para
rechaçar a pretensão do Ministério Público (mp) naquele momento, pois
temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha
uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui conversar
sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o
combativo promotor de justiça, que também chamamos de parquet. Por
b. Advogado, professor e político brasileiro (1911-1964).
32 33

óbvio, como era parte na causa, ele reiterou sua tese e procurou rechaçar respondesse à primeira pergunta, seria fatalmente feita uma segunda. E
as antíteses. Destacou que o acusado também respondia por outro crime já sabia até seu teor:
contra o patrimônio (um furto), cujo interrogatório já estava aprazado. – Doutor, dá, então, pra dar um jeito em relação a essa acusação de
Informalmente, e sem eu perceber, aquele diálogo com o parquet agora, uma compensação? Sei que vou ser condenado de novo.
terminou sendo mais importante para a formação de um juízo sobre o – Saiba que, se fosse possível, o faria, mas infelizmente não é. Cada
destino da causa do que a leitura fria das razões das partes. Resultado: caso é um caso, e a condenação anterior, como falei, é definitiva. Saiba
condenei o réu duas horas depois, amparando na íntegra a tese do mp de que irei carregar comigo essa culpa.
dois roubos qualificados em concurso material. O inconsciente (página
82), contudo, não me absolveu. Algo estava fora do lugar. Procurei, no A difícil tarefa de julgar o outro
início, reduzir a dissonância cognitiva (página 35), racionalizando e
O leigo muitas vezes não percebe como a função de julgar é dura,
justificando que aquele homem merecia a pena maior, porque era dege-
muitas vezes, também para o julgador. Trata-se de um ser humano sujeito
nerado. Mas depois passei a sentir certo desconforto ao pensar no caso
a preconceitos implícitos, raciocínios motivados, heurísticas e vieses, ou
nos dias que se seguiram à assinatura da sentença.
influenciado por algum evento externo que, do ponto de vista jurídico,
Até esperei um recurso da defesa, mas ela silenciou. Houve o trânsito
seria considerado absolutamente irrelevante. Veremos a seguir o que esses
em julgado e, assim, a decisão se tornou imutável. Não havia mais o
fatores significam.
que fazer. A angústia era sintoma de que a decisão havia, a meu ver,
Não há como evitar os tropeços de maneira absoluta: eles fazem parte
sido errada. Senti-a em silêncio, na solidão da toga. Dias depois, veio o
até mesmo das melhores trajetórias de vida. E saiba: somente os juízes
interrogatório do acusado no segundo processo que o envolvia. Era um
absolutamente inexperientes não têm seu rol secreto de arrependimentos.
furto cometido por ele na mesma época. Confessou tudo. Encerrada a
E, para alguns, inconfessáveis até para si próprios. Por isso tão importante
audiência, ele pediu humildemente para falar comigo e disse, com olhos
estudarmos o funcionamento do cérebro humano. Compreender como
rasos d’água, exatamente o que eu não queria ouvir:
se dão os processos de percepção, memória(s), consciência e inconsciente
– Doutor, o senhor cometeu uma grande injustiça comigo naquele
são fundamentais para quem atua na prática jurídica, para entender seu
outro processo. O senhor me condenou por dois roubos, mas só peguei
comportamento judicial e o dos demais atores jurídicos. Entender que
a moto para fugir! Eu depois a larguei com a chave na ignição em um
o discurso da racionalidade é, de certa forma, uma ilusão.
lugar fácil de ser encontrado pela mulher (a vítima).
Não que a racionalidade não exista, mas ela não deve ser colocada num
Poderia ter me escondido por trás de uma resposta fria e ratificadora
pedestal, porque, em boa medida, somos movidos por processos intuitivos
da decisão já tomada. Até me veio isso. Poderia apenas repetir os funda-
que agem abaixo da linha da consciência, aos quais não temos sequer
mentos do promotor de justiça. Mas não seria honesto com o acusado.
acesso direto. E, como destaca Daniel Kahneman em Rápido e Devagar,2
Foi duro dizer, mas respondi:
desde já adianto que esse modelo de funcionamento do cérebro (o pen-
– Você tem razão. Eu errei. Na época não avaliei bem. Analisando
samento intuitivo) na maior parte do tempo leva a bons resultados, mas
melhor hoje, não o condenaria pelo roubo da moto. E o pior é que não
também faz com que muitas vezes estejamos confiantes mesmo quando
há nada que eu possa fazer em relação àquele caso. Não cabe reavaliação
errados, pois ficamos sujeitos também a erros sistemáticos de julgamento.
dele, o que se chama revisão criminal. Embora concorde com você hoje,
O tema deste livro está cada dia mais em voga entre os profissionais
a tese do promotor tem fundamentos jurídicos. – E eu sabia que quando
do direito. Isso ocorre, primeiro, pelos avanços nas pesquisas sobre o
34
funcionamento do cérebro humano e as evidências que elas trouxeram,
principalmente nos últimos 50 anos. Houve um grande incremento
de pesquisas sobre questões como percepção, racionalidade, memória
e tomada de decisão (não acidentalmente, portanto, são os principais
tópicos aqui abordados).
Diante desses avanços científicos, muitos atores jurídicos estão se dan-
do conta de que, para uma compreensão mais rica sobre como o direito
se materializa, mostrou-se essencial entender as ciências relacionadas ao
cérebro e, assim, melhor defender o interesse público (o membro do mp),
o de seus clientes (o defensor) ou decidir de modo mais consistente com
a normatividade (o juiz).
Aliás, não só os profissionais, mas também os estudantes têm atentado
para o neurodireito e a questão da tomada de decisão. Não apenas nos
bancos da faculdade, conforme vem sendo mais estudado e se tornado
ponto de reflexão acadêmica, mas também aos concurseiros. O Conselho
Nacional de Justiça, através da Resolução de nº 423, de 5 de outubro
de 2021,3 determinou que deverá constar nos editais de concursos para
a carreira da magistratura a disciplina “Economia comportamental.
Heurística e vieses cognitivos. A percepção de Justiça. Processo cognitivo
de tomada de decisão”. Temas aqui tratados.
Desvelar o encoberto pelo formalismo jurídico
O que busco trazer nesta obra, portanto? As peculiaridades e os prin-
cipais aspectos do funcionamento do cérebro humano que envolvem a
prática jurídica e o processo cognitivo de tomada de decisão. Nós somos
nosso cérebro que evoluiu a partir de desafios e pressões ambientais que
resultaram em um modo específico de funcionar – que envolve o pensar,
o perceber, o memorizar e o agir, que é ainda desconhecido e desprezado
pelo senso comum jurídico, resultando em prejuízos à integridade do
sistema como um todo, gerando julgamentos por vezes injustos e iníquos.
Trago evidências sobre a existência desses fatores que não raro estão
para além da previsão legal e que, apesar disso e, em grande medida,
interferem no comportamento dos profissionais do direito (não só dos
juízes, mas também dos membros do mp, dos advogados e defensores
35
públicos) e de terceiros, como testemunhas e peritos, no processo judicial,
de modo não raro bastante importante.
Pode ser que para alguns as informações aqui trazidas sejam incômodas,
porque contrariam algumas crenças arraigadas ao formalismo jurídico
que continua a forjar o ensino e a prática forense (pelo menos no Bra-
sil) até os dias atuais. A esse incômodo se dá o nome de dissonância
cognitiva, que é o conflito entre as crenças pré-existentes e as evidências
que aparecem na realidade. Com isso, somos tendentes à negação e ao
uso do raciocínio motivado, tendencioso, que não visa a encontrar
uma resposta fundada na lógica, mas sim uma “verdade” que se adequa
à manutenção das crenças (veremos como funciona esse mecanismo no
momento oportuno).
Trata-se de um desafio para quem lida diuturnamente com o direito,
que se baseia em uma suposta verdade construída em argumentos e por
meio da retórica. O direito, aliás, tem uma natureza que é prioritaria-
mente prescritiva. O jurista que passa a estudar também uma ciência
eminentemente descritiva e cujos fundamentos estão em evidências
surgidas de experimentos testados, como é o caso das ciências do cérebro,
amplia seus horizontes.
Como mostrarão as pesquisas e reflexões trazidas aqui, há questões
que, a princípio, soariam até irrelevantes ou que passariam despercebidas,
mas que, diante de evidências científicas, mostram-se tão impactantes –
para não dizer, em alguns casos, determinantes para o comportamento
e o processo cognitivo de tomada de decisão dos envolvidos no processo
judicial. Mas não só isso. Trago estratégias para que possa melhor lidar
com essas questões em sua atividade profissional, seja você juiz, advogado
ou membro do mp. Isto é, para que, quando se deparar com elas, você
tenha desenvolvido competências para agir e evitar prejuízos ao seu
processo de tomada de decisão, tornando sua atuação mais justa (juiz)
ou adequada à defesa dos interesses que você defende (advogado ou mp).
Como adverte Robert Sapolsky, não faz sentido distinguir o que é
biológico do que é psicológico ou cultural, porque estão intrincados.4 Por
isso não me verão falar nos dualismos mente-corpo ou mente-cérebro,
no sentido cartesiano de algo que exista independentemente do corpo.
36
Não há mente sem cérebro ou corpo. A “mente” envolve atividades e
funções cognitivas como percepção, linguagem, aprendizado e memória,
que emergem do funcionamento do sistema nervoso como um todo e de
sua relação com o resto do corpo e com o ambiente.5 Somos o resultado
da interação do meio ou da situação com nossa biologia. Tudo junto e
misturado. E mesmo os fatores culturais, que sobre nós incidem e nos
influenciam ou até nos condicionam, são, no final, resultado da interação
do meio com nossa biologia cerebral. Por isso teremos a companhia
desses saberes, incluindo a psicologia evolucionista que explica as raízes
antepassadas do nosso comportamento hoje.
O juiz
Se, afinal, a jurisdição é dizer o direito, começo refletindo sobre o
sujeito responsável por exercê-la: o juiz. Por trás da magnificência de uma
toga há, na essência, sempre, um ser humano igual a qualquer outro, com
anseios, angústias e defeitos, repleto de esperanças e sonhos. Esse é o ser
humano magistrado. Mas o que você, enquanto advogado ou cidadão,
espera dele? Se eu fosse especular, diria que você responderia que ele fosse
o melhor tomador de decisões que possa existir.
Espera-se que o juiz consiga se apartar de qualquer preconceito, gosto,
valor ou crença capaz de influenciá-lo na decisão. Espera-se que ele se
dispa de qualquer emoção que possa lhe turvar a racionalidade e que não
confunda direito e moral. Espera-se que ele seja objetivo, mesmo diante
de questões que envolvam forte carga emocional e decida de modo a
preservar a integridade do sistema jurídico.
Creio que você espera ser ele imune a influências ou manipulações
de pessoas ou de eventos estranhos ao caso. Certamente você espera que
ele ouça muito bem cada uma das partes (em especial a sua), que seja
exemplo de prudência e que trate o caso com um zelo ímpar. E, claro,
que seja a expressão humana de uma pessoa justa. Em suma, o juiz
Hércules, de Dworkin.6
Desde já adianto, portanto, que o cumprimento integral dessa ex-
pectativa é irreal e não se deve a uma deficiência técnica ou pessoal do
magistrado considerado individualmente, mas às peculiaridades do fun-
37
cionamento do cérebro humano. Temos afetos; somos sujeitos a amores,
ódios, preconceitos, nojos e compaixões. Enfim, as emoções não nos são
indiferentes (e, ainda bem, porque sem elas nossas funções cognitivas su-
periores não seriam tão desenvolvidas).7 Mesmo se mudássemos todos os
juízes que hoje existem no mundo, o modelo de funcionamento cerebral
dos substitutos seria basicamente o mesmo. Portanto, não teremos juízes
Hércules jamais. São juízes humanos, seres com racionalidade limitada
julgando outros iguais.
Aliás, a natureza tem sido extremamente sábia e democrática em termos
de erros de julgamento. Portanto, se você é advogado(a) ou até mesmo
psicólogo(a) ou médico(a), saiba que há vastas pesquisas com evidências à
altura das trazidas aqui, de que os preconceitos implícitos, os raciocínios
motivados, as dissonâncias cognitivas, os vieses cognitivos, os ruídos e
as falhas de percepção, de memória e de racionalidade em geral também
estão presentes na atuação dos que exercem as demais profissões. Vamos,
juntos, desvelar esses fatores e traçar caminhos de enfrentamento?
Para além do formalismo
Vige uma máxima no direito: non quod est in actis non est in mundo. O
que não está nos autos, não está no mundo. Mas será que é verdade? Será
que o julgador só decide, efetivamente, a partir do que está nos autos?
Será que o juiz tem controle sobre isso ou existem fatores que estão fora
dos autos e que interferem no processo cognitivo de tomada de decisão?
Será que nós juízes julgamos com base em questões puramente técnicas e
normativas, conseguindo sempre impedir a interferência de preferências
pessoais e políticas? A racionalidade discursiva consegue evitar que isso
ocorra em nosso comportamento e em nossas decisões?
São muitas questões atinentes à prática jurídica que abordaremos
aqui, todas fundadas em investigações científicas, muitas delas frutos de
pesquisas empíricas. É bem verdade que em algumas situações a realidade
do local do experimento pode ser bastante diversa da realidade do Brasil,
uma vez que o conjunto das pesquisas e dos experimentos de campo
será majoritariamente internacional. Mas pode ser que, dando-se “um
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desconto” nos resultados, muitos sejam indicadores de que não seria tão
diferente por essas terras tupiniquins.
Aliás, prepare-se para ser protagonista aqui também. Você será convi-
dado, em algumas oportunidades, a participar de experimentos sobre o
tema abordado, notadamente no que diz respeito a percepção, memória,
preconceitos implícitos e vieses. Acho que essa será uma parte divertida e
pedagogicamente interessante desta obra. Embora assíncronos (eu agora,
enquanto escrevo comendo um chocolate e pensando no exercício de
amanhã para queimá-lo, e você, enquanto lê e realiza os experimentos
propostos conforme avança na leitura), faremos parte da construção
do conhecimento também. Espero que esses experimentos sirvam de
gatilho para suas reflexões e o engajem ainda mais na leitura desta obra
e de outras sobre o neurodireito.
Continuando no spoiler, as pesquisas aqui trazidas abordarão questões
como se a forma com que um pedido é feito pode influenciar a decisão
judicial; se simpatia ou antipatia podem interferir inconscientemente em
nossos julgamentos. Digamos que você seja um juiz e está com fome. É
possível que julgue de maneira diferente do que faria se tivesse acabado
de comer seu prato favorito (como a de um amigo meu chamado Joel:
feijoada congelada)? Vamos refletir se juízes idosos julgam demandas
envolvendo discriminação por idade mais favoravelmente do que juízes
novos. Se a raça da parte importa no julgamento. Os juízes são sujeitos
a preconceitos, ainda que implícitos? Você terá a oportunidade de ex-
perienciar isso.
Haverá questões cruciais e que ainda são desconhecidas ou pouco
debatidas nos tribunais, mas que, sob a ótica das ciências do cérebro, há
evidências importantes de que devem ser motivo de reflexão. Por exemplo,
ter o juiz contato com uma prova nula interfere nas suas decisões pos-
teriores, mesmo que depois tenha determinado seu desentranhamento?
As implicações disso podem até ser chocantes e polêmicas.
Discutiremos se um juiz conservador, ao se tornar pai de menina, terá
posicionamentos mais favoráveis a temas feministas ou não. Será que a
aparência de alguém importa no julgamento sobre qualidades intrínsecas
da pessoa? E se a pessoa julgada for parecida conosco? Sob a ótica de
39
funcionamento das redes neurais, será que julgamos, de alguma maneira,
com base em estereótipos, porque tendemos a associar e classificar tudo e,
só depois, decidir a partir dessa rotulação? Ainda: se você é juiz ou juíza,
faremos uma reflexão sobre se, no dia a dia, ouvimos atentamente a tese e
antítese antes de decidirmos e quais as repercussões disso na integridade de
nossas decisões à luz dos vieses de confirmação e do raciocínio motivado.
Não se preocupe se agora alguns desses termos lhe soam estranhos. Serão
explicados no momento oportuno.
Abordaremos as relações pessoais do julgador também. A proximidade
pessoal com um dos postulantes (mp ou defensor) será objeto de refle-
xão sobre se interfere ou não na decisão judicial. Até mesmo os fatores
ambientais, por exemplo: uma testemunha cheirando muito mal na
audiência ocasiona penas mais elevadas para o acusado? Cadeiras descon-
fortáveis ou o calor ambiental geram menos acordos nas conciliações? Ter
café disponível no ambiente ajuda as partes a chegarem a um acordo? A
disposição dos lugares em que as partes se sentam também será objeto de
análise sobre se isso interfere na paridade de armas, porque nosso cérebro
está, a todo momento, associando e classificando.
A percepção e a memória serão objeto de reflexão em casos como: se
pode haver a manipulação ou não da memória da testemunha quando a
parte faz perguntas tão elaboradas que culminem em apenas responder
sim ou não. Faremos uma reflexão sobre o livre relato e seus efeitos
práticos na Justiça. Será que a oralidade conduz a uma decisão mais
intuitiva ou analítica do que uma decisão escrita? Sendo você juiz (juíza)
ou se fosse juiz (juíza), conseguiria se apartar de suas crenças e emoções
na hora de decidir?
Para a decepção dos afiliados ao formalismo, desde já adianto que,
embora existam parâmetros normativos sobre como se deve fazer infe-
rências visando a uma tomada de decisão, como se dá no caso da lógica
aristotélica, não é isso que acontece nas situações reais de decisão. Este
não é um livro sobre dogmática jurídica. É uma obra interdisciplinar,
atravessada pelas neurociências, pela neuropsicologia e pela psicologia
social.
40 41

Assim como não há como compreender e refletir sobre o direito preendeu minha intencionalidade e percebeu que o garçom entendera
sem entender como o sistema jurídico é estruturado (tribunais, nor- a piada.
mas jurídicas, órgãos persecutórios etc.) e como ele funciona (práticas Aquele dia foi o despertar de algo que, anos depois, culminaria nesta
forenses, jurisprudência etc.), compreender minimamente a anatomia obra. Naquele momento, ainda na mesa do restaurante, tive um insight e
e a fisiologia cerebral será nosso primeiro passo, afinal, na maioria das comentei com João Afonso que o que havia ocorrido parecia simples para
vezes costumamos pensar no cérebro como mais um órgão. Quando, na o cérebro humano, mas era de uma imensa complexidade e sofisticação
verdade, é ele quem nos faz ser quem somos. Vamos pensar um pouco em termos de percepção, memória, racionalidade e linguagem. E isso é
sobre a anatomia e o funcionamento do cérebro. tudo feito pelo nosso cérebro com um consumo de energia de 60 watts,10
menor que o de um notebook típico (o que uso, enquanto escrevo este
Anatomia e fisiologia cerebrais livro, tem mais que o dobro, pois são 135 watts de potência).
O cérebro humano é uma joia evolutiva, capaz de desempenhar tarefas
Há muitos anos, quando ainda era juiz em uma comarca do interior do
que atualmente nenhum algoritmo de inteligência artificial consegue
Rio Grande do Norte, tinha o hábito de almoçar com os colegas em um
alcançar, nem mesmo com o uso do melhor supercomputador existente.
restaurante próximo ao fórum. Naquela tarde, estava na companhia de
Ele tem 86 bilhões de neurônios. Não é o maior cérebro que existe nem
um amigo, também juiz, chamado João Afonso Pordeus, quando reparei
em volume nem em número de neurônios. Por exemplo, o cérebro de um
que o garçom, que era uma pessoa muito divertida, tinha cortado o cabelo
elefante tem 257 bilhões de neurônios.11 Contudo, na parte mais nobre do
e colocado gel. O penteado ficou cheio de pontas. Quando veio nos
cérebro, que é o neocórtexc ­­­– responsável pelas funções mais elevadas do
atender, eu simplesmente olhei para ele e falei a palavra porco-espinho.
raciocínio, do pensamento abstrato e simbólico, do controle de impulsos
No mesmo momento, ele passou a mão no cabelo, deu uma gargalhada,
e do planejamento de ações ­­­– o elefante tem apenas 5,6 bilhões, contra
e começamos a rir. João Afonso, sem que eu tivesse falado nada, deu-se
16 bilhões do cérebro humano (chimpanzés, por exemplo, possuem 6
conta da brincadeira e começou a rir também. Como isso ocorreu?
bilhões).12 Na verdade, 98% dos neurônios do encéfalo dos elefantes
Porque temos o que se chama de teoria da mente, que é a habilidade
ficam no cerebelo, uma estrutura muito importante que, contudo, atua
de compreender e interpretar sentimentos, crenças e desejos dos outros,
mais na questão motora, em especial na manutenção do equilíbrio e na
levando-nos a agir de acordo com tal percepção.8
coordenação dos movimentos.13
Isso pode parecer simples, mas é extremamente complexo se analisado
Nosso cérebro possui incríveis 100 trilhões de sinapses (conexões
em termos de linguagem e de sociabilidade. A expressão “porco-espinho”
entre os neurônios)14 porque há neurônios que estabelecem milhares de
foi dita sem nenhuma contextualização prévia, mas, mesmo assim, o
ligações com outros. O cérebro pesa apenas 2% do nosso peso corporal,
garçom de imediato percebeu a que eu estava me referindo – minha
mas é responsável por 25% do gasto calórico (500 calorias por dia).15
intencionalidade. Quando eu falei a palavra, sabia que ele era sagaz,
E quanto ao tamanho? No final do século xix, Theodor von Bischoff,
entenderia a brincadeira e imaginei (previsibilidade) que o faria rir.
médico e biólogo alemão, partindo da hipótese de que o homem era
Houve uma teoria da mente de primeira ordem9 quando eu falei a
mais inteligente do que a mulher, passou a pesar os cérebros de cadáve-
palavra “porco-espinho”. De segunda ordem quando ele compreendeu
res masculinos e femininos e chegou a uma média de 1.350g para o do
que era uma alusão ao corte de cabelo e riu. E de terceira ordem quando
um terceiro, meu amigo João Afonso Pordeus, que assistira à cena, com-
c. É a carapaça do encéfalo, sendo um conjunto de camadas de células nervosas com maior desen-
volvimento e especialização.
42
homem e de 1.250g para o da mulher. Mas quando ele morreu, doou
seu cérebro para o estudo e curiosamente, o dele pesava apenas 1.245g.16
Na verdade, como o homem costuma ser maior em tamanho, o cérebro
dele costuma pesar 11% a mais, diferença menor do que a geralmente
existente entre pulmões (17%) e rins (25%). Estudos avançados apontam
que essa diferença não impacta na inteligência nem há evidências de
diferenças anatômicas relevantes entre os gêneros, o que põe abaixo a
ideia de dimorfismo sexual.d17 Aliás, Albert Einstein tinha um cérebro
pequeno para os padrões da época.18 O que importa não é o tamanho
do cérebro, mas como as conexões neuronais são feitas.
Outro ponto interessante em relação ao cérebro é que, se você estiver
praticando seu esporte preferido (que espero não ser levantamento de
copos), o gasto de energia pelas fibras musculares aumenta diversas vezes.
Enquanto você lê este livro ou quando redige uma petição ou decisão,
tarefas que exigem alta concentração e usam o raciocínio analítico, o gasto
calórico aumenta mais ou menos 1%. Isso ocorre porque o funcionamento
inconscientee é preponderante em atividades que utilizam o Sistema 2,
como veremos mais à frente.19
Defeitos ou características?
Neste livro trataremos de questões que, na verdade, não são defeitos
do cérebro, mas particularidades que terminam interferindo na forma
como decidimos. Desde já, destaco que elas existem porque, dentro
de um processo evolutivo, foram adaptativas.f Uma das questões é a
plasticidade cerebral20, capacidade que o cérebro tem de reorganizar
suas funções em razão dos estímulos que recebe ou por causa de algum
evento que cause uma lesão.
Quando bebês, produzimos sinapses em uma velocidade muito grande,
a ponto de termos mais conexões entre os neurônios do que o necessário.
Os estímulos a que somos submetidos vão fortalecendo as respectivas
d. Mais à frente, falarei mais sobre isso, porque os homens costumam ter uma autoimagem inflada
sobre sua própria inteligência, e as mulheres, subestimam-se. Vide página 229.
e. Esse inconsciente é diferente do proposto pela psicanálise. Veremos mais detidamente o processa-
mento inconsciente a partir da página 82.
f. A fim de aumentar as chances de sobrevivência e de reprodução.
43
conexões, enquanto as que são pouco ativadas vão enfraquecendo. À
medida que crescemos, há podas neurais, principalmente durante a
infância, marcos em que o cérebro elimina as conexões e os neurônios
subutilizados. Mas o processo de fortalecimento de redes mais ativadas
e o enfraquecimento das menos ativadas continua por toda a vida.
Por isso, somos o resultado – em constante transformação – daquilo
que nos foi dado, sonegado ou possibilitado durante a vida. Cada sen-
timento, experiência, gozo ou trauma, palavra ou silêncio, em alguma
medida nos ressignificam porque passam a fazer parte de nossas redes
neurais. Somos inacabados e em construção pelo que vivenciamos.
Certo estava Heráclito de Éfeso ao dizer que não se pode descer duas
vezes um mesmo rio porque tudo muda: nós e o rio. Do momento em
que você começou a ler este livro até aqui, você já não é mais o mesmo.
As informações foram, de alguma maneira, incorporadas às suas redes
neurais (mesmo que esteja discordando veementemente do que escrevi
até agora). Qual a importância disso para um jurista? Cada informação
a que ele é exposto vai influir, de alguma maneira, na visão de mundo,
nas representações e no comportamento dele.
Não há como controlar o processamento das informações a que somos
expostos. Não há como apagar os efeitos de nossas experiências no con-
junto de crenças e representações que já existiam no cérebro. Farei um
alerta sobre isso quando estiver falando dos quatro princípios das redes
neurais, mais especificamente sobre o princípio da retenção.
Somos também, em certa medida, o resultado do que deixamos de ser!
Por isso, não espere que grandes jogadores venham a se tornar também
grandes poetas. À parte nossa comum autoimagem inflada (viés egocên-
trico – página 229), as experiências da vida vão direcionando nossas redes
neurais a determinado caminho. Não dá, portanto, para ser ótimo em
tudo. Como diz Lenio Streck, “não há intelectual bronzeado”.21 Isso não
se aplica a juízes que praticam kitesurf em época de ventos (como eu), tá?
10% é gorjeta de garçom
Será que nós só usamos 10% de nosso cérebro? Certamente não. Caso
contrário, este livro não existiria nem haveria leitores. Suponho que nosso
44 45

nível de inteligência estaria próximo ao de uma capivara. Até hoje nunca da inteligência, do controle dos impulsos e o surgimento de patologias
ouvi falar de um mamífero roedor capaz de fazer uma sustentação oral mentais que podem, inclusive, ser transmitidas entre gerações em razão
ou redigir uma tutela de urgência. Na verdade, a evolução é pautada da epigenética.22 O estresse prolongado causa a mudança da expressão
pela eficiência. Tudo em nosso organismo evoluiu dimensionado pelas dos genes de modo a gerar um comportamento adaptativo de resposta
necessidades de sobrevivência e procriação. para aquela conjuntura, mas que, no futuro, torna-se desadaptativo e
O que existisse em excesso (aqui no sentido de inutilidade) terminaria ocasiona uma série de patologias.
encolhendo ou desaparecendo. Esse é o caso do quase extinto apêndice
nos humanos, mas que ainda é desenvolvido nos herbívoros, provando, A fome holandesa e as crianças romenas
inclusive, que tivemos um ancestral comum milhões de anos atrás.
Há dois casos clássicos disso, inclusive. O primeiro é relacionado à
O cérebro evoluiu para gastar o mínimo de energia com o máximo
subnutrição. Ficou conhecido como “a fome holandesa”. Em setembro
de desempenho. Tamanha ineficiência não seria adaptativa. Portanto,
de 1944, no esforço para abreviar o fim da Segunda Guerra Mundial,
utilizamos os recursos cerebrais que temos.
os aliados promoveram a operação Market Garden, que consistia na
Quando nasceu minha primeira filha, Sofia, aquele momento mágico
invasão da Holanda ocupada pelos nazistas na tentativa de se tomar as
foi também para mim a constatação de como, ao contrário da maioria
pontes que ligavam a Holanda à Alemanha e, assim, invadir rapidamente
dos demais animais, nascemos frágeis e dependentes, e de que isso é,
o território alemão com tanques e artilharia pesada. Foi um fracasso.
também, parte de um processo que nos leva a um ponto de sofisticação
Como houve a participação da resistência holandesa, as tropas alemãs
cerebral inatingível para eles. Um bezerro nasce e, minutos depois, até
retaliaram, confiscando gado e gêneros alimentícios, desabastecendo o
corre, mas jamais, quando adulto, dará nome às coisas, recitará o poema
país e causando uma fome generalizada a seus 4,5 milhões de habitantes
Navio Negreiro, de Castro Alves, refletirá sobre o sentido da vida, criará
durante cinco longos meses. Mais de vinte mil holandeses morreram de
uma ong chamada Save the Calves ou planejará um motim com o rebanho
fome. As populações que mais sofreram foram as das áreas urbanas.23
para evitar a ida ao matadouro.
Havia milhares de mulheres holandesas grávidas naquele tempo.
Como todo bebê humano, Sofia nasceu prematura em relação às outras
Pesquisas feitas anos depois revelaram que os bebês que foram expos-
espécies, devido ao seu cérebro já comparativamente grande para um
tos à fome durante a gestação se tornaram indivíduos menos saudáveis,
trabalho de parto em relação ao outros animais. Mesmo assim, um cérebro
desenvolvendo diabetes, obesidade, doenças respiratórias e doenças au-
ainda em desenvolvimento, necessitando de uma gestação extrauterina e
toimunes, em uma média superior em comparação às pessoas concebidas
de um longo processo de cuidados parentais e de amadurecimento. Ao
após esse período de escassez e fome.
mesmo tempo, ela terá um horizonte cognitivo inigualável se receber os
Sob a ótica da saúde mental, a exposição à fome no primeiro e no
estímulos devidos durante seus primeiros anos. Isso leva a uma reflexão
segundo trimestre de gestação foi associada a 2,6 vezes mais chance de
distinta para quem lida, em especial, com a competência da infância e da
desenvolver o distúrbio de personalidade antissocial. A esquizofrenia foi
juventude. Existe uma janela de aprendizado e de maturação importante,
reportada duas vezes mais alta nesse grupo. Houve, também, aumento
notadamente até a primeira infância (6 anos de idade), em relação ao
significativo de transtorno bipolar e depressão dentro dessa população.24
desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da sociabilidade.
O segundo caso clássico diz respeito às crianças institucionalizadas
Há evidências científicas de que a submissão de crianças à negligência e
da Romênia, na Europa Oriental. Durante a ditadura socialista no
à violência gera efeitos graves na vida adulta, incluindo comprometimento
país, o líder Nicolae Ceauşescu estabeleceu uma política de aumento
46
da natalidade, proibindo o aborto e obrigando as mulheres a darem à
luz a, pelo menos, cinco filhos. Houve uma explosão de nascimento de
bebês. Quando a ditadura ruiu, em 1989, havia milhares de crianças
em orfanatos. Embora não tenham passado tanta privação de alimentos
quanto os bebês e as crianças holandesas de 1944-1945, elas sofreram
negligência, abusos físicos e abandono afetivo por tempo considerável.
Não havia profissionais suficientes para atender essas crianças (algu-
mas cuidadoras tomavam conta de até quinze órfãos ao mesmo tempo).
Os cuidadores eram orientados a não pegar no colo nem demonstrar
afeto às crianças, para não as condicionar a pedir, porque era impossível
dar afeto a tantas ao mesmo tempo. Dezenas de milhares de crianças
romenas cresceram sem passar fome, mas em um ambiente insalubre,
empobrecido,25 sem acesso a estímulos e a recursos educacionais, ou
mesmo à possibilidade de brincar e de desenvolver a sociabilidade de
maneira saudável.
Muitas dessas crianças foram adotadas por casais ocidentais, e as
pesquisas que as acompanharam ao longo dos anos (até os dias de hoje)
demonstram que houve redução no volume cerebral e da substância
cinzenta (onde estão os núcleos dos neurônios). Havia menos conectivi-
dade entre as regiões do cérebro e notou-se o aumento da amígdala (não
confunda com as amídalas da garganta, ok?), associada a um quociente de
inteligência (qi) mais baixo, sociabilidade deficitária, beirando o autismo,
além de um maior nível de ansiedade e depressão.26 Quanto mais cedo
foram adotados, menores os prejuízos.
Esse fato me leva a uma reflexão também sobre nossa própria “fome
holandesa”, um pouco atenuada pelas políticas públicas das duas últimas
décadas, é verdade, mas que ainda nos assombra. Que futuro esperamos
para nosso país se milhões de crianças nascem e se desenvolvem em
ambientes tão empobrecidos em tantos prismas? Qual o capital humano
que estamos deixando de desenvolver?
Outro fato digno de nota a quem lida com infância e juventude diz
respeito à imputabilidade penal. Uma vez ou outra, surgem movimentos
para sua redução. Ocorre que o desenvolvimento do cérebro, em especial
o córtex pré-frontal ventromedial, uma área do cérebro fundamental
47
à racionalidade, ao controle dos impulsos e ao planejamento, só está
inteiramente formada por volta dos vinte e cinco anos de idade.27 Talvez
devêssemos, em termos de postura fundamentada em evidências cientí-
ficas, buscar o aumento da idade mínima para a plena responsabilidade
penal. Se somos o que nosso cérebro é, enquanto ele não estiver plena-
mente desenvolvido nesse aspecto tão importante para o comportamento
humano, também não teremos alcançado a maturidade.
Finalizando este tópico, lembremos que o cérebro está fechado na
caixa craniana. Ele não tem acesso direto ao mundo. Por isso é tão
importante compreendermos um pouco melhor o funcionamento não
só dele, mas também do sistema nervoso que lhe dá suporte e que serve
para interligá-lo com os demais órgãos e áreas do corpo humano, bem
como com o meio externo. Vamos lá?
Funcionamento do cérebro
Desde pequeno, ouço a máxima de que “todo bebê é uma esponja”,
porque está absorvendo tudo ao seu redor. Por isso, logo que Sofia nasceu
e, depois, Luigi, busquei ao máximo estimulá-los com brinquedos, brin-
cadeiras, contato com outras crianças e experiências como ir à praia para
sentir a textura da areia, das conchas e das algas, a brisa, o som das ondas,
a salinidade da água. Ao mesmo tempo, procurei evitar a exposição deles
a experiências negativas, como assistir a discussões ou a atos de violência,
sofrer negligência, passar privações de sono ou de alimentação. Mas e eu?
Teria perdido essa capacidade? Estava lendo sobre neuroplasticidade sem
me dar conta de que se aplicava não só a eles, então bebês, mas também
a mim, a você, a todos nós.
Por que gastar tempo e paciência em debates (sem fim e sem futuro) em
grupos de WhatsApp sobre temas passionais e divisionais como política,
em que se ganha, no máximo, uma animosidade? Por que assistir a vídeos
compartilhados com cenas de violência gratuita, que menosprezam ou
desumanizam uma pessoa ou um grupo de pessoas, ou que, de alguma
maneira, provocam sensações negativas? Por que gastar minutos preciosos
do dia em bolhas de redes sociais em que todos pensam parecido, ter-
minando apenas por reforçar os comportamentos extremistas? Um dos
48
princípios de funcionamento de nossas redes neurais, como veremos,
é o da retenção. Por isso devemos ter cuidado com os estímulos a que
somos expostos, pois os colocamos no nosso cérebro. Cada experiência,
boa ou ruim, passa a nos constituir também.
As multinacionais que criam e mantêm redes sociais usam as peculiari-
dades ou, melhor dizendo, as fragilidades do funcionamento do cérebro
humano para roubar milhares de horas irrecuperáveis de nossas vidas e
nos venderem aos anunciantes, ao custo, para nós, de mais ansiedade e
depressão. Mas o que fazer contra isso? Será que a exposição a estímulos
negativos de alguma maneira, em razão da plasticidade cerebral (página
42), altera a forma como percebemos o mundo e agimos diante de
situações futuras?
Olhava para Sofia e Luigi com cuidado, mas precisava me olhar e me
cuidar também. Todos nós somos esponjas, apenas variando a intensida-
de, conforme a etapa de vida de cada um. A diferença é que, ao contrário
de Sofia e Luigi, eu e você temos noção das experiências que nos fazem
bem ou mal e podemos adotar providências quanto a isso.
Vivemos em rede
“Vivemos em rede”. Essa frase certamente você já ouviu alguma vez
na vida e, se for nordestino, terá ouvido ainda mais! Mas desta vez não
quero me referir às redes sociais (nem às redes de balanço), mas às redes
neurais. Preferiria não ter que dar um spoiler sobre o tema das heurísticas,
vieses e ruídos (tema do capítulo 7), mas prometo que, como expiação,
se você me encontrar na fila do cinema, te pago a pipoca por isso.
Respeito os que acham que somos fruto de alguma inteligência supe-
rior, de ordem transcendental ou não. Tenho um parente muito querido
que até desenvolveu uma narrativa sobre isso, a que ele intitulou de
teoria do ETvino. Caso alguém queira transformá-la em livro, passo o
contato, afinal, todo mundo tem direito de ter seu próprio Erich Von
Daniken na família. Por sinal, diverti-me e ainda me divirto com livros
como Eram os Deuses Astronautas?, que li na adolescência, ou com filmes
como Prometheus e seu enredo fantástico sobre como surgimos na Terra.
49
Porém, na hora de pensar em questões do mundo real e em como
elas são processadas pelo nosso cérebro devido ao modelo interno de
funcionamento dele, baseio-me em evidências científicas. Elas apontam
que o cérebro evoluiu, tomando-se “evolução” não no sentido que o leigo
a adota, de aprimoramento, mas no de Darwin, de adaptação. Como
você verá no Capítulo Extra sobre a estrutura do cérebro e sua evolução
(página 271), o cérebro do homem de hoje é fruto de uma modelagem ao
longo de milhões de anos pelas nossas espécies ancestrais para funcionar
em redes neurais biológicas.
Em tais redes, os neurônios se conectam, às vezes, com milhares de
outros neurônios. Não raro, esses neurônios interligam diversas áreas do
cérebro, reforçando a ativação ou o silenciamento de outros neurônios
e, por conseguinte, de outras redes neurais.
Postulado de Hebb
Nossas experiências interferem nos circuitos neurais, ativando conexões
novas ou reforçando as já existentes. Quando essa ativação é reiterada no
tempo, facilita a ativação dos mesmos neurônios.g A estimulação repetida
e persistente de um neurônio por outro causa o aumento da eficiência
sináptica28 dessa relação, facilitando que a estimulação surta efeitos
mais facilmente da próxima vez. Dá-se a essa peculiaridade o nome de
postulado de Hebb, em homenagem a Donald Hebb, que a descobriu.29
Você pode até se perguntar sobre a importância disso, mas quando
estivermos refletindo juntos sobre os princípios das redes neurais e, mais à
frente, quando entrarmos nos erros de raciocínio, entenderá melhor como
esse postulado é importante. Verá como os engramas afetam a tomada de
decisão judicial. Engramas? Por falar neles, são o nosso próximo ponto.
Engrama
As redes neurais formadas e ativas hoje em nosso cérebro não são
eternas, mas tendem à estabilidade. Imagine uma torrente da chuva que
escorre das montanhas e vai obedecendo à gravidade, buscando o leito
g. Para entender melhor o funcionamento do neurônio, vide o Capítulo Extra, página 271.
50
mais baixo. À medida que desce e escava a terra, reforça o caminho para
um novo fluxo que descerá na próxima vez que chover naquela área.30
Essa tendência se estabilizará até que surja algum evento forte o bastante
que consiga mudá-lo, como, por exemplo, uma pressão de água maior
que cause uma erosão e encontre um ponto ainda mais baixo. Com isso,
criará outro leito e enfraquecerá ou, até mesmo, extinguirá o fluxo do
leito anterior. A esse leito, melhor dizendo, a esse circuito de neurônios
associados em razão da estimulação reiterada, dá-se o nome de engrama.
Por isso é tão importante prestarmos atenção ao que fazemos e com
quem nos relacionamos. Aristóteles estava certo: nos tornamos aquilo
que praticamos.
Esse fenômeno também faz com que não seja fácil a mudança de
opinião ou mesmo de percepção. Imagine que você é confrontado com
uma imagem que provoca ilusão de óptica. Devido aos engramas, às redes
neuronais que se formam a partir de neurônios associados, interpretamos
os estímulos visuais de uma determinada maneira. Vemos o que nossas
redes neurais já estão acostumadas a ver, e não o que é a realidade.
O design do cérebro e o modo de processamento que dele decorre
permitiram o surgimento de capacidades complexas como as habilidades
motoras, o reconhecimento de padrões e a aprendizagem por associação.
Essas características foram essenciais para a sobrevivência dos humanoides
no ambiente natural em que viviam há centenas de milhares de anos.
Além disso, permitiram que os primeiros humanos rapidamente buscas-
sem comida, percebessem o perigo e lutassem ou fugissem. Já as funções
cognitivas superiores, por exemplo, o raciocínio analítico (quando você
calcula honorários ou analisa provas), o pensamento conceitual (se você
reflete sobre o significado do fumus boni juris e do periculum in mora) e
as capacidades de abstração e de simbolizar surgiram muito mais tarde,
a partir daquelas.
Talvez você nunca tenha se dado conta da complexidade que é, por
exemplo, olhar para alguém e reconhecer um amigo que você não via há
10 anos, ou apenas ficar em pé ou andar, ou ainda um gesto à primeira
vista trivial, como pegar um copo de suco de caju que estava sobre o
birô (o que estou fazendo no instante em que escrevo essas palavras).
51
Soam tão fáceis, apesar de essas ações serem extremamente complexas em
termos de computação cerebral. Mas dependem de um processamento
paralelo e contínuo de dados massivos, envolvendo diversas áreas e órgãos
do sistema nervoso (os córtices motores, o cerebelo, os córtices visuais,
o tálamo, além do córtex frontal, a medula espinal e o sistema nervoso
periférico, só para dizer o básico).
Todavia, é bem possível que você ache mais difícil multiplicar 12 por
34. Isso acontece porque nosso cérebro evoluiu originalmente para tarefas
perceptivo-motoras. Há milhões de anos de distância evolutiva entre
as funções perceptivo-motoras e as cognitivas superiores, e isso faz
muuuuuita diferença! Uma prova desse fato é que nos anos 70 do século
passado já havia até calculadora científica eletrônica de bolso. Enquanto
isso, um robô capaz de caminhar autonomamente segurando uma xícara
de café sem derramá-lo, continua sendo um desafio até mesmo para as
empresas de mecatrônica mais avançadas.31
Os quatro princípios das redes neurais
Para melhor compreensão do processamento em rede neural de nosso
cérebro e de como ele tem implicações em nossa percepção, memória,
crenças e aprendizado, adoto a explicação de Korteling, Brouwer e Toet32,
Eles apontam a existência de quatro princípios que regem esse funcio-
namento: 1. Associação; 2. Compatibilidade; 3. Retenção; e 4. Foco.
Princípio da associação
Vejamos o princípio da associação.33 No dia 17 de março de 2008,
um colega magistrado ascendeu ao tribunal. Quando liguei para parabe-
nizá-lo, ele me convidou para o jantar de comemoração. Eu iria pedalar
naquela noite, mas o compromisso era exatamente no mesmo horário.
Em vez de colocar a bicicleta no carro e levá-la a uma rodovia segura,
onde geralmente os ciclistas pedalavam à noite, tentei compatibilizar os
dois compromissos. Saí pedalando mais cedo de casa, dessa vez por uma
avenida de grande fluxo de veículos, mas que ficava próxima. Perdi o
jantar com o então novo desembargador Saraiva Sobrinho e, também,
quase a minha vida naquela noite, porque fui violentamente atropelado
52
por um ônibus cujo motorista invadiu o acostamento e me lançou a
seis metros de distância, conforme me informou um médico que estava
no cruzamento e me atendeu. Até hoje lembro-me da roda traseira do
coletivo passando a pouquíssimos centímetros de mim após eu voar e
ir ao chão. Resultado: cirurgia numa clavícula, um braço e três costelas
fraturadas. Mas, diante da gravidade do acidente, até que tive sorte. Após
aquela noite, tive sequelas para além do físico. Passei meses tendo flashes
do acidente. Voltei a pedalar só dois anos depois. Em termos de redes
neurais, o evento traumático formou um engrama (uma rede associada de
neurônios) que ligou a presença de veículos de grande porte ao acidente
e, por isso, até hoje a aproximação de um ônibus ou de um caminhão
não me é indiferente enquanto pedalo ou mesmo caminho.
Experiências emocionais e traumáticas reconfiguram o cérebro. E
quanto mais jovem, mais acentuados os efeitos na vida adulta. Maus-
-tratos em jovens causam aumento da atividade na ínsula e na amígdala,
gerando maior predisposição para distúrbios na regulação emocional.
Esse efeito pode até ser adaptativo para um ambiente de riscos onde o
indivíduo se desenvolveu (se sofre agressão, uma maior reatividade pode
ser uma forma de defesa), mas, no futuro, gera um padrão de compor-
tamento compatível com patologias na saúde mental.
Ambientes estressores são causa de até 45% dos transtornos mentais na
infância e mais de 30% na idade adulta. Além dos maus-tratos, a pobreza
na infância (pense em nossos milhões de crianças faveladas) e a institu-
cionalização (colocação em orfanatos e congêneres – como os órfãos da
Romênia) são correlacionados ao aumento da ativação da amígdala e,
consequentemente, a mais sintomas de ansiedade.34 Ambientes estresso-
res na infância, incluindo pobreza, são correlacionados à hipertrofia na
amígdala na vida adulta. A pobreza é duplamente negativa, pois áreas
relacionadas à inteligência, à atenção e ao controle dos impulsos, como
o córtex pré-frontal, e as relacionadas à memória, como o hipocampo,
sofrem redução.35 Pobreza empobrece até o cérebro.
O princípio da associação advém da peculiaridade do cérebro de
trabalhar de modo associativo, enxergando relações de causa e efeito
quando muitas vezes há apenas correlações e coincidências. Busca padrões
53
e estruturas coerentes, que se reforçam em suas redes neurais. Esse é seu
modo de funcionamento. Ele percebe padrões e faz inferências a partir
de coincidências de tempo e de espaço ou de semelhanças na forma e
no conteúdo entre fenômenos, objetos e pessoas.
Tal tendência ocorre visando se antecipar a oportunidades e a amea-
ças que nem sempre são reais. Por isso somos sujeitos a superstições e
ilusões sensoriais. Isso ocorre porque o cérebro não evoluiu se dando ao
luxo de sempre se certificar previamente sobre a veracidade ou a ilusão
de um evento, porque a morte poderia chegar antes que desse tempo
de verificar. Devido a essa forma associativa de perceber, compreender
e tentar prever o mundo, o cérebro tende a criar ordenações para lidar
com o que é fortuito e aleatório, imprevisível e caótico. Isso nos leva a
classificar os eventos, objetos e pessoas em categorias coerentes com essa
forma de compreender, por meio de combinações estereotipadas de carac-
terísticas observadas. Ou seja, criamos crenças e muitas vezes distorções
cognitivas em relação à realidade que nos cerca. Como já tinha falado,
não gostaria de dar spoiler, mas surgem erros de raciocínio decorrentes
desse princípio, como são as superstições, as ilusões de controle e os
vieses de representatividade.
As conexões neurais relativas a uma ideia, quando são repetidas,
vão se reforçando (postulado de Hebb), fortalecendo-se cada vez mais,
causando a tendência a entender uma associação onde ela mesma não
exista. Veremos mais sobre isso quando estivermos abordando o fenômeno
do efeito da verdade ilusória (página 167). Um exemplo do princípio
da associação também pode ser visto no caso do meu atropelamento.
Ao cruzar hoje em dia com um ônibus ou um caminhão, mesmo que
o motorista seja bastante prudente, que saiba ou intua que tem que se
manter, por lei, a uma distância mínima de 1,5 metro do ciclista, eu o
associo, sem evidências, ao evento traumático que sofri. Isso faz disparar
reações, mesmo que ínfimas hoje, no meu organismo.36
Princípio da compatibilidade
As associações são altamente determinadas pela sua compatibilida-
de com o estado do momento e com as conexões das redes neurais já
37
54 55

existentes. Vemos, melhor compreendemos e preferimos as informações relacionadas e coerentes com o estímulo pré-ativador. Não se preocupe
consistentes com o que já sabemos, entendemos e esperamos. Priorizamos que, se ainda não tem conhecimento sobre o que esses fenômenos sig-
informações que são compatíveis e consistentes com nossas expectativas nificam, tudo isso será visto no seu devido tempo.
que, por consequência, relacionam-se com o conhecimento prévio que
temos. Se você nunca passou por algo parecido com um atropelamento Princípio da retenção
(e espero que não), talvez não tenha se atentado tanto ao risco a que os
O terceiro é o princípio da retenção.38 Mais uma vez, a neuroplas-
ciclistas se submetem. Por sinal, ao cruzar com um, mantenha ao menos
ticidade em jogo: já que sofri esse acidente tão marcante, passei a ser
1,5 metro de distância lateral, certo? Se for eu, 3 metros está de bom
afetado pela experiência e não posso me apartar inteiramente dela, por
tamanho.
mais que me esforce. Queira ou não, ela entrou em minha rede neural,
O cérebro não é como um disco rígido que grava todas as informa-
causou mudanças sinápticas (fortaleceu a interligação entre milhões de
ções. Não há recursos computacionais cerebrais para isso. Assim, ele é
neurônios em rede) e passou a me constituir. Se eu vier a me deparar
seletivo, processando e armazenando mais facilmente novas informações
com um caso de responsabilidade civil decorrente de um atropelamento
compatíveis com as já existentes, que têm a ver com as nossas experiências
de ciclista por um ônibus, talvez a conduta mais adequada seja a de me
anteriores e com os nossos preconceitos. Por isso vemos o que esperamos
julgar suspeito. É só minha opinião pessoal, tá? Como diz Caetano Veloso,
ver, e não o que na verdade está à nossa frente. Isso nos leva também
cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.
a negligenciar informações contrárias às que já temos em nossas redes
Veremos mais à frente também os efeitos negativos da exposição a
neurais, sejam elas verdadeiras, sejam falsas. Daí o risco das bolhas das
discursos odiosos e agressivos em nós por causa da retenção. Se ninguém
redes sociais e das fake news que imperam nelas, porque, como as usamos
está a salvo de suas consequências, melhor atentar bem para a causa. O
muito (hoje em especial WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram,
princípio da retenção é muito importante também para o tomador de
TikTok)h, servem-nos de filtros de compatibilidade que podem nos
decisão em relação às questões que dizem respeito à nulidade de provas.
impedir de prestar a atenção devida a fatos verdadeiros.
Qualquer informação, mesmo que irrelevante ou contraproducente,
Os efeitos mais conhecidos desse fenômeno são: 1) o viés de confirma-
mesmo que errônea, uma vez tendo entrado nas redes neurais cerebrais,
ção, que nos leva a buscar apenas informações que corroborem os nossos
é associativamente integrada às informações nelas já existentes. Mas, ao
preconceitos sobre algo; 2) a redução da dissonância cognitiva (página
contrário de um computador, na rede neural humana não existe um
155) por meio da negação; e 3) a utilização de raciocínio motivado
botão “delete” nem o comando “ctrl + z”.
(página 170), para justificar o rechaço de informações consistentes, mas
A exposição a um evento pode fazê-lo ingressar nas redes neurais e
conflitantes com as crenças já estabelecidas.
não mais ser ignorado ou excluído completamente, afetando eventuais
O viés de mera exposição (página 102) é igualmente um exemplo
decisões futuras em situações que evoquem esse evento. Todos os estí-
desse princípio da compatibilidade. O efeito priming, que veremos mais
mulos que entram na rede neural nos afetam. Há um exemplo clássico:
à frente (página 121), é decorrência desse princípio. Como funciona?
“não pense num elefante rosa”. Uma vez falada a frase, não há como
Quando ocorre um estímulo, ele pré-ativa respostas posteriores que serão
deixar de processá-la. E até mesmo as memórias podem ser afetadas por
esse fenômeno. Podemos nos lembrar de eventos que simplesmente não
h. Tive receio de enumerá-las porque surgem e desaparecem em uma velocidade cada vez maior,
mas pense em um modelo de negócios que utiliza a tecnologia e a telemática para nos usar como ocorreram, porque retivemos experiências que se associaram à memória
mercadoria e nos roubar nosso tempo de vida, um ativo limitado, por meio de pequenas doses de
endorfina.
original e a modificaram. O viés de ancoragem (página 195) é um
56
fenômeno decorrente desse princípio, assim como o viés retrospectivo
(página 222). Não se preocupe, veremos esses vieses no devido tempo.
O cérebro humano armazena novas informações associadas às me-
mórias já existentes – que são modificadas. Não há como recuperar a
memória original. Mas sua reconsolidação se processa, para nós, como
um “desde sempre” e não como um “algo novo”, resultado de fusões de
memórias antigas ou somente criadas a partir de sua compatibilidade
com as crenças existentes nas nossas redes neurais.
Não existe, como costumo dizer, uma memória do esquecimento. Isso
é causa também do viés retrospectivo acima citado: recordamos o ontem
com o olhar do hoje, imaginando mais previsíveis do que realmente eram
as situações do passado na época em que elas aconteceram.
Princípio do foco
Por fim, o quarto e último é o princípio do foco.39 Isso me faz recordar
um fato ocorrido comigo logo no início de carreira. Em idos de 2001,
eu atuava como juiz numa comarca de primeira entrância e começara
também a responder por outra chamada Patu, que estava vaga. Logo
na primeira semana de trabalho, deparei-me com o auto de prisão em
flagrante de um sujeito chamado Reginaldo.i A acusação era de porte
ilegal de arma de fogo, um crime de pouca gravidade na época. Além
disso, Reginaldo não tinha sequer antecedentes criminais. Concedi-lhe
a liberdade provisória. À noite, voltei para a minha comarca.
No outro dia, o delegado de polícia de Patu liga-me aflito, dizendo que
a soltura causou a maior celeuma na cidade, pois diziam que Reginaldo
era um perigoso assaltante. Teve até que dar uma entrevista na rádio da
cidade para se eximir da culpa pela soltura. Disse-me que havia instau-
rado um inquérito policial em que Reginaldo era suspeito do roubo a
um posto de gasolina e que o indiciaria. Pediu que eu revisse a soltura,
porque ele poderia fugir. Disse-lhe que não iria agir arbitrariamente
e que ele não se preocupasse, porque Reginaldo não fugiria, afinal, o
juiz o havia posto em liberdade. Falei para o delegado que aguardaria a
representação dele pela prisão preventiva. Três dias depois, a autoridade
i. Modifiquei o apelido para preservar a intimidade da pessoa.
57
policial veio à minha comarca com os autos do inquérito policial, a
representação pela prisão preventiva e o parecer favorável do promotor
de justiça da comarca de Patu. Ele já voltou à cidade com a decisão e o
respectivo mandado de prisão expedido. Como eu esperava, Reginaldo
não fugiu. Foi preso em casa.
Na semana seguinte, voltei a Patu para trabalhar. Ao final do dia,
estava morrendo de fome e resolvi jantar na cidade. Ao passar pela praça
central, deparei-me com o delegado sentado a uma mesa de um trailer
de lanches. Ele me acenou. Parei a caminhoneta, tirei a gravata e o
blazer e fui fazer-lhe companhia. Chega, então, um senhor embriagado,
aparentando mais de 50 anos. Era um comerciante da cidade. O trôpego
sujeito se dirigiu ao delegado:
– Doutor Fulano, meus parabéns pelo seu trabalho de prender os
bandidos daqui, apesar de um juizinho com cara de menino que chegou
aqui e que ainda não tive o desprazer de conhecer. O negócio dele é
soltar o povo! – O delegado olhou para mim com ar de riso, e eu fiz um
sinal para que ele não dissesse nada. Com um copo de cachaça na mão,
o comerciante continuou:
– Tá vendo Reginaldo, o bandido safado que o senhor prendeu? Aquele
juizinho novo foi logo botando na rua. Depois parece que criou veeeeer-
gonha na cara – disse com muita ênfase – e mandou prender Reginaldo!
Foi então que me dirigi a ele:
– Boa noite. Como o senhor se chama?
– Pode me chamar de Camarão.j
– Senhor Camarão, quando soltei Reginaldo, foi porque o crime era
somente um porte de arma. Ele não poderia ficar preso porque a lei não
permite em um crime pequeno como essek quando alguém nunca foi
sequer processado, como era o caso dele. Mas quando o doutor delegado
pediu a prisão pelo assalto ao posto, eu a determinei.
Camarão empalideceu, fez menção de questionar quem eu era ao
delegado e este meneou a cabeça positivamente, confirmando as suspeitas
dele... Enquanto Camarão tentava, gaguejando, desculpar-se, apareceu
j. Modifiquei o nome para preservar a intimidade da pessoa.
k. Na época, vigia a lei 9.437/97, que estipulava, para o caso (art. 14, caput), uma pena de apenas 2
anos de detenção, sujeita, inclusive, aos princípios da Lei dos Juizados especiais.
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uma mulher igualmente embriagada. Era a esposa dele – que foi logo se
dirigindo ao delegado:
– Doutor Fulano, meus parabéns por prender Reginaldo, apesar de
um juizinho novo que chegou na cidade... – mal terminou de falar e
Camarão a puxou repentinamente pela camisa, quase fazendo-a cair,
e sussurrou algo no ouvido dela. Arregalando os olhos para mim, ela
completa a frase:
– Um juizinho novo, maravilhoso e muito justo que está aqui do
lado – apontando para mim!
Cada um em seu foco: para Camarão e a esposa, eu era o jovem juiz
irresponsável e imaturo, que soltava todos a qualquer custo. Para o de-
legado, talvez eu não fosse utilitarista quando o momento exigia. Para
mim, eu exercia o papel de garantidor da Constituição. Sob cada ótica, há
uma razão suficiente: a do cidadão comum, que se sente inseguro com a
soltura de alguém que ele acha ser um temível assaltante; a do delegado,
que queria antecipar uma situação que fatalmente ocorreria; ou a do juiz,
que se sentiria violando regra constitucional e legal se agisse diferente.
O que isso revela? Como não conseguimos processar todas as infor-
mações que nos chegam, em tomadas de decisão sob incerteza, nosso
cérebro funciona como uma lupa, focando-se naquelas associativamente
dominantes em nossas redes neurais. Tendemos a confiar em conclusões
baseadas em uma quantidade limitada de informação disponível, em vez
de confiarmos naquelas baseadas em uma quantidade maior de dados,
mas que não estejam arrumados de maneira consistente em nosso cérebro
– seja porque não nos são familiares, seja porque não se adequam à nossa
visão de mundo e, por isso, não despertaram nossa percepção consciente.
Tendemos a imaginar, como bem adverte Daniel Kahneman40, que o
que vemos é tudo o que existe (ele criou o respectivo acrônimo em inglês
wysiati, iniciais de what you see is all there is, ou seja, “o que você vê é
tudo o que há”). Um dos mais claros efeitos desse fenômeno é o viés de
disponibilidade, que é a tendência a imaginarmos que as informações
mais disponíveis em nossa memória representam a realidade (página
201). Como nosso cérebro é presunçoso! Com isso, costumamos ignorar
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o impacto dos dados que não estão presentes e sequer especulamos sobre
sua existência.
Isso nos leva ao viés egocêntrico, porque, costumeiramente, as pes-
soas imaginam que os elementos que têm para uma decisão são todas as
variáveis que existem ou que nossa visão de mundo é a régua para a dos
outros. O erro de atribuição fundamental também. Tendemos a julgar
os outros, considerando que tudo o que fazem de errado se deve a uma
questão individual deles, de personalidade, e não da situação naquele
momento nem do contexto em que vivem. Esse erro é mais suscetível de
ocorrer em sociedades ocidentais e ocidentalizadas,l/41 como a nossa, por
causa da cultura individualista predominante, que despreza a importância
das influências externas no comportamento humano.42 Por outro lado,
costumamos considerar nossos erros não como algo puramente fruto de
nossas escolhas e de nossa personalidade, mas da situação ou do contexto.
Costumamos ser autoindulgentes quando se trata de considerar nossas
faltas e sermos severos com os erros alheios.
Atenção ao que deixa entrar em suas redes neurais
Por isso, esteja atento às informações a que você se deixa expor, por-
que elas entrarão em suas redes neurais e, após isso, você não mais terá
controle absoluto sobre elas. Essas informações, se forem reducionistas
e maniqueístas, poderão fazer você focar sua atenção e sua percepção
de modo prejudicial ao seu convívio com os outros e ao seu bem-estar.
Lembre-se: não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. Você
não verá dragões voando no céu (salvo se estiver tendo um surto psicó-
tico), mas poderá deixar de enxergar outra face daquilo que se apresenta
a você, desenvolver preconceitos e diminuir sua empatia. Se você é um
julgador, já é um passo para o abismo.
Assim como fármacos ou alimentos, as informações novas podem curá-
-lo de algo, feri-lo, nutri-lo ou envenená-lo. Mas talvez exista uma pista
que possa nos ajudar. Em tempos de fake news e de pós-verdade, esteja
l. Uso esse termo, porque somos importadores-consumidores da cultura ocidental. Ocidente não é
um conceito geográfico, mas geopolítico. Se você acha que é ocidental, pergunte a um ocidental
e ele lhe dirá: “menos, meu filho, você não passa de um latino”. Quer saber mais sobre isso? Leia
1492 – o encobrimento do Outro, de Enrique Dussel, nota de fim número 40.
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sempre atento para variar o cardápio, mas de olho em eventuais efeitos
colaterais: evitar o consumo de informações tóxicas, que contenham
imagens ou palavras alusivas à agressão e à violência, que desumanizam
o outro, ou manifestações que se expressam ao “modo tudo ou nada”,
afinal, o mundo não é em preto e branco, é em cores.
Você pode ir para o capítulo 2 agora ou, caso queira um pouco mais de
profundidade em questões relativas às neurociências e não tenha problema
em ler um texto mais denso, pode ir direto ao capítulo extra (página 271)
e, depois, voltar para iniciar o capítulo 2. A leitura do capítulo extra é
suplementar para os fins desta obra, mas pode ser interessante para a
leitura de outros trabalhos, porque remete a expressões ligadas à biologia
e ao evolucionismo. Se for este seu primeiro contato com a temática do
neurodireito, continuar por aqui não lhe causará prejuízos no entendi-
mento do livro e, se quiser, pode ler o capítulo extra ao final de tudo.
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PERCEPÇÃO
Um poeta e um pescador sobre um mesmo barco
veem mares diferentes.
Nascido e criado na capital, tive pouco contato com a vida no campo.
As lembranças que tenho da infância no interior ocorriam uma vez por
ano, quando íamos para as festas juninas na fazenda de seu Benedito, um
amigo do meu pai. O “sertão” se resumia a uma noite com céu estrelado,
fogueira, milho assado, canjica, fogos e dança de quadrilha. Não mais.
Quando ingressei na magistratura, fui designado para uma comarca
no alto sertão potiguar. Estava há seis meses lá quando aceitei o convite
de um desembargador amigo, hoje já aposentado, para conhecer uma
das fazendas que ele possuía na região. Entusiasmado com a nova expe-
riência, comprei um par de botas, vesti uma calça jeans e uma camisa
quadriculada. Só faltou um cinto daqueles com fivelão para completar a
fantasia de cowboy. Durante o trajeto, o desembargador Deusdedit Maia
me perguntou se eu queria acompanhá-lo ou ficar na varanda da casa, pois
entraria no mato e faria uma vistoria nas plantações e criações. Disse a ele:
– Olha, a partir de agora sou peão! Não se preocupe comigo. Será uma
terapia pra mim. Quero ajudar no trabalho lá.
Ao chegarmos à fazenda, logo fomos a um cercado onde havia mais
de cem caprinos. Muitos filhotes estavam magrinhos, porque o leite
petrificava nas tetas das cabras, e os cabritinhos não conseguiam sugá-lo.
Minha tarefa seria caçar cabras no cercadinho, para que o peão chegasse
com um cabrito faminto e um pano quente para desobstruir as tetas,
permitindo que ele mamasse.
Segurei a primeira cabra e gritei chamando um peão. Ele veio com o
cabritinho nas mãos, segurou o bichinho entre as pernas, desobstruiu