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Quem não guarda ressentimentos no baú da memória? Essas recordações marcadas com o
V da vingança – e da - volta facilmente passam a ser como um veneno, que acaba com os
sorrisos e a paz em nosso andar diário entre as pessoas; torna-nos pessoas quixotescas: que
vêm gigantes nos moinhos de vento.
Em qualquer um dos casos, o estímulo que provoca a reação de ressentimento pode ser real
e ser julgado pelo sujeito com objetividade. Pode ter fundamento real, mas estar exagerado pelo
assunto, como aquele que considera que recebeu um golpe de graves conseqüências quando
apenas lhe tocaram; ou o que pensa:- nunca lhe agradecem os seus serviços porque, em uma
ocasião concreta, não lhe deram os agradecimentos, ou quem se considera invadido de câncer
quando só tem um tumor incipiente. Finalmente, a reação pode responder a um estímulo
imaginário, como o que interpreta uma frase desagradável como uma tentativa de difamação, ou
1
SCHELER, M. O ressentimento da moral. Ceparrós editores, Madri 1993, p.23.
2
o que não recebe a saudação de alguém – que talvez nem sequer o viu – e o traduz como
desprezo, ou se considera marginalizado socialmente por culpa dos demais. Todas essas variantes
mostram, de imediato, em que medida o ressentimento depende do modo como se olha uma
mesma realidade ou, de modo mais concreto, de como se julgam as ofensas recebidas – com
objetividade, de modo exagerado ou de forma imaginária – e explicam o que muitos
ressentimentos sejam completamente gratuitos, porque dependem da própria subjetividade que se
distancia da realidade, exagerando ou imaginando situações que de fato não se produziram ou
não estavam na intenção de ninguém.
A RESPOSTA PESSOAL
O ressentimento é um efeito reativo ante a agressão, que enquanto tal – isto é, se não se
intervém a razão humana direcionando ou retificando a reação – tem um caráter negativo.
Consiste na resposta ante a ofensa que se experimenta intimamente. Por isso o determinante no
ressentimento não radica na ofensa enquanto tal mas sim na resposta pessoal. E esta resposta
depende de cada quem, porque a nossa liberdade nos confere o poder de orientar de alguma
maneira as nossas reações. Covey adverte:
“não é o que os outros fazem nem nossos próprios erros o que mais nos prejudica; é a
nossa resposta. Se perseguimos a víbora venenosa que nos mordeu, o único que conseguiremos
será provocar que o veneno se estenda por todo o nosso corpo. É muito melhor tomar medidas
imediatas para extrair o veneno”2.
Esta alternativa se apresenta ante cada agressão: ou nos concentramos em quem nos
ofendeu com o seu agravo e então surgirá o veneno do ressentimento, ou o eliminamos mediante
uma resposta adequada, não permitindo que permaneça dentro de nós. Isto explica que o mesmo
fracasso de uma empresa ou um idêntico desaire provocado por um poderoso, possam sofrê-lo
várias pessoas ao mesmo tempo com a mesma intensidade, mas em uns causa apenas um
sentimento fugaz de dor, enquanto para outros ficam ressentidos para a vida toda. É possível
realmente orientar as nossas respostas, ante as ofensas, para que não se convertam em
ressentimentos?
A dificuldade para configurar a resposta conveniente radica em que o ressentimento se
situa no nível emocional da personalidade, porque essencialmente é um sentimento, uma paixão,
um movimento que se experimenta sensivelmente. Quem está ressentido se sente ferido ou
ofendido por alguém, ou por algo que influi contra sua pessoa. E é bem sabido que o administrar
os próprios sentimentos não é tarefa fácil. Umas vezes não somos conscientes, eles podem estar
atuando dentro de nós sem que nos demos conta; existem aqueles que experimentam uma
especial dificuldade para amar aos demais, porque não receberam o afeto de seus pais na
infância, mas não podem resolver o problema por desconhecer a causa. Outras vezes ocorre que
o ressentimento fica reforçado por razões que o justificam, quando a pessoa não se sente ferido,
mas que se considera ofendido. Mediante este processo intelectual o ressentimento arraiga mais,
mas continua sendo um movimento emocional, uma vivência sensível; se um marido é insultado
por sua esposa, sente o agravo e nasce nele o ressentimento; se, além de senti-lo, pensa que ela o
odeia, esta consideração reforçará o sentimento que está experimentando.
A INTELIGÊNCIA AO AUXÍLIO
2
COVEY, S. Os 7 hábitos do homem eficaz. Paidós. México, 1994, p.105.
3
Sem dúvida, essas dificuldades não são insuperáveis se fazemos bom uso de nossa
capacidade de pensar. O conhecimento próprio, mediante a reflexão periódica sobre nós mesmos,
por exemplo, nos permite ir ligando as manifestações de nossos ressentimentos com as causas
que os originam e, nesta medida, vamos encontrando-nos em condições de entender o que
acontece conosco, o que favorecerá a solução posterior. Se ao analisar os agravos recebidos
fazemos um esforço por compreender a forma de atuar do ofensor e por descobrir os atenuantes
de seu modo de proceder, a nossa reação negativa não apenas não ficará reforçada por tais
considerações, mas em muitos casos, desaparecerá por debilitamento do estímulo; quando um
filho recebe uma repreensão de seu pai porque se portou mal, se é capaz de entender a intenção
do pai (que só busca ajudar-lhe mediante essa chamada de atenção), poderá inclusive ficar
agradecido. Isto se reflete em qual medida a nossa inteligência possa influir, descobrindo
motivos ou proporcionando razões, para evitar ou eliminar os ressentimentos. Trata-se de uma
influência indireta – Aristóteles falava de um domínio político e não de um domínio despótico do
racional sobre o sensível -, que modifica as disposições afetivas e favorece a desaparição do
veneno. Isto é especialmente claro nesses casos nos quais a suposta ofensa foi interpretada
inicialmente de maneira exagerada ou imaginária.
Outro recurso com o qual contamos para jogar fora de nós o agravo, sem retê-lo, inclusive
nos casos de ofensas reais, é a nossa vontade. De fato, quando recebemos uma agressão que nos
dói, podemos decidir não retê-la para que não se converta em ressentimento.
Eleanor Roosevelt costumava dizer: “Ninguém pode ferir-te sem o teu consentimento”, o
que significa depende de nós que a ofensa produza ou não a ferida.
Gandhi afirmava ante as agressões e o mau trato dos inimigos: “Eles não podem tirar o
nosso auto respeito se nós não o dermos a eles”.
Certamente que isso não é coisa fácil, porque dependerá da fortaleza de caráter de cada
pessoa para orientar suas reações nessa direção.
Marañao advertia:
“o homem forte reage com energia direta ante a agressão e automaticamente expulsa,
como um corpo estranho, o agravo de sua consciência. Esta elasticidade salvadora não existe
no ressentido”3.
É interessante que a vontade forte – o caráter – neste terreno se caracterize por ser elástica,
mais que dura ou insensível, pois a sua função consiste em lançar fora o agravo que realmente
sofreu, em não permitir que se converta em uma ferida que contamine todo o organismo interior.
A ofensa, para a pessoa que carece dessa capacidade de dirigir a sua resposta (por falta de
caráter, porque não soube fortalecer a sua vontade), além de provocar uma emoção negativa, fica
alojada. Em conseqüência, o sentimento permanece dentro do sujeito, volta sobre ele, faze-o
experimentar uma e outra vez, embora passe o tempo.
Nisso precisamente consiste o ressentimento: “É um volver a viver a emoção mesma: um
volver a sentir, um re-sentir” 4. Algo muito diferente da recordação ou da consideração
intelectual da ofensa ou das causas que a produziram. Mais ainda, uma ofensa pode ser recordada
à margem do ressentimento, pela simples razão de que não se traduziu em uma reação
sentimental negativa e, em conseqüência, não se reteve emocionalmente. Pelo contrário, o
3
MARANÕN, G. Tibério. História de um ressentimento..., p.26
4
SCHELER, M. O ressentimento na moral..., p.19
4
A forma de reagir ante os estímulos costuma estar muito; o secundário costuma reter mais
a reação ante o estímulo ofensivo que o primário; e o que é ativo conta com mais recursos para
dar saída ao impacto recebido pela ofensa que o não ativo. Também a cultura e a educação, junto
com o fator genético, influem na maneira de reagir e, portanto, no modo como o ressentimento se
origina e se manifesta.
Há uma forma de reagir ante as ofensas que se caracteriza sobretudo pela passividade;
consiste simplesmente em retrair-se ou distanciar-se de quem cometeu a agressão, em certas
ocasiões manifesta-se inclusive retirando-lhe a palavra. Os mexicanos costumamos qualificá-lo
com o verbo sentir-se e Peñalosa descreve com precisão e bom humor essa atitude:
“A susceptibilidade está à flor da pele. É tão fácil ofender ao mexicano. Basta com tocar-
lhe na roupa; dar-lhe um pequeno empurrão de forma involuntária, é óbvio, no tumulto de um
ônibus cheio; ficar-se vendo por um segundo a sua esposa, para assim constatar a sua fealdade,
porque dois segundos já não se resistiriam; saudá-lo com a cara séria, simplesmente porque a
pessoa traz consigo uma dor de dentes. Ao mexicano não se deve consolá-lo com a pétala de uma
rosa. Porque ele se sente. Sentir-se é o verbo reflexivo que conjugamos todo o dia, e que não é
fácil encontrar uma digna explicação filológica, pela simples razão de que “ sentir-se” é o verbo
que marca mais a alma mexicana que a gramática espanhola. Estar sentido com alguém é o
mesmo que estar doído, triste, enojado por algum desaire que nos fizeram. Muitas vezes real e,
muitas mais, aparentes”.
A imaginação do mexicano trabalha horas extras vendo castelos com gigantes, onde não
existem nem castelos e nem gigantes. Devido à sua natural sensibilidade julga dever apresentar
num momento determinado uma má cara, uma má vontade, sempre a espera de algo pior,
temeroso cada etapa da caminhada por uma emboscada, com a qual ele mesmo se abre a uma
fonte de sofrimentos e de pequenos ódios mais ou menos gratuitos” 7.
5
MARANÕN, Tibério. História de um ressentimento..., p.26.
6
ROJAS, E. A ilusão de viver. Temas de hoje. México, 1999, p.140.
7
PENALOSA, J.A. O mexicano e os 7 pecados capitais. Paulinas. México, 1985, pp. 69-70.
5
Essas palavras demonstram até que ponto este homem está doído. A sua auto-estima se
sente ferida pela alegria do pai, e a sua própria ira o impede de reconhecer a este sem vergonha
como a seu irmão. Com as palavras “esse teu filho” se distancia de seu irmão e também de seu
pai.
Olha-os como a estranhos que perderam todo o sentido da realidade e se posicionaram em
uma relação não apropriada, considerando a vida que levou o filho pródigo. O filho mais velho
agora já não tem irmão. Tampouco agora tem um pai. Converteram-se em dois estranhos para
ele. A seu irmão, um pecador, olha-o com desdém; a seu pai, dono de um escravo, olha-o com
medo”8.
O ressentido retém interiormente a ofensa porque não quer esquecer. Sente-se ferido ou
doído pelo trato recebido em determinado momento e diante de umas circunstâncias concretas,
como dizíamos, pode recordar e descrever com todos os detalhes, porque viveu concentrado
naquele acontecimento. Também pode ocorrer que volte sobre o fato uma e outra vez, diante de
certos estímulos recordatórios. A detonação do ressentimento pode vir anos depois dos fatos que
o fizeram germinar; em um momento determinado, dão cumprida conta da vingança que
guardavam. Aos anos de espera (mais a minuciosa análise desse haver saindo perdendo naquela
situação concreta) foram acrescentando a paixão, que pode levar a ações inimagináveis.
Sem dúvida, o verdadeiro dano o padece o ressentido, embora a sua intenção se dirija
contra um terceiro. Alguém dizia com acerto que
“o ressentimento é um veneno que eu tomo, esperando que faça dano ao outro”.
De fato, pode ocorrer “aquele contra quem vai dirigido o rancor nem sequer perceba o
que está ocorrendo”, enquanto o ressentido está vivenciando-o e encontra-se se carcomendo por
dentro. Um veneno tem efeitos destrutivos para o organismo e o ressentimento o que produz é
frustração, tristeza, amargura na alma. É provavelmente, como dizíamos no início, ver gigantes
nos moinhos de vento.
**O estímulo que o provoca pode ser uma ação, uma omissão ou uma circunstância,
percebidas objetivamente, mas de maneira exagerada ou inclusive imaginária.
***Quando a reação ante a agressão é puramente passiva expressa-se com o verbo sentir-
se, o ressentimento propriamente dito inclui o aspecto ativo de tentar vingar-se ou de
reinvidicar-se.
Temos mencionado, também, outros meios que servem como antídotos contra este veneno.
Fizemos ênfase de que, na maioria dos casos, costuma haver um erro de apreciação e de
interpretação dos fatos ocorridos, e uma vontade débil que não sabe impedir o enraizamento do
ressentimento.
Se, por outra parte, a vontade é forte e não consente nos agravos recebidos, não permite
que as feridas permaneçam dentro porque as expulsa, os efeitos se reduzirão a sentimentos
dolorosos mas passageiros, que não reunirão as características próprias do ressentimento e não
produzirão o seu efeito venenoso 11.
Se a pessoa conta com a ajuda de Deus, então, esse processo de evitar que o ressentimento
se aloje na alma será muito mais fácil. Porque Deus clarifica a nossa inteligência. Favorece a
objetividade no conhecimento e a capacidade de compreender e ainda potencia a nossa vontade,
isto é, fortalece o nosso caráter, para que não se dobre ante a pressão dos agravos.
11
Existe, entre outros, um recurso indispensável nos casos de agravos reais, que é o perdão e cuja análise terá que
ser motivo de outro estudo.
Licenciatura e mestrado em Filosofia. Professor da área de formação integral da Universidade Panamericana de
Guadalajara, México)