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Editores
Antonio Florentino Neto
Douglas Ferreira Barros
Conselho Editorial
Adriano Naves Brito
Alcino Eduardo Bonella
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Eder Soares Santos
Henry Burnett
Jeanne Marie Gagnebin
Luiz Paulo Rouanet
Marcio Suzuki
Marcos Lutz Muller
Oswaldo Giacoia Jr.
Robson Ramos Reis
Sofia Stein
Nietzsche:
além-do-homem e
idealidade estética
Roberto Barros
phi
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880
Lista de abreviações | 9
Apresentação | 11
Introdução | 15
I A perspectiva trágica | 27
M/A Aurora
AC/AC O anticristo
* Todas as referências feitas aos escritos de Nietzsche e às suas cartas se reportam à edição crítica
(Kritische Studien Ausgabe, (KSA), Berlin/New York, DTV: Walter de Gruyter, 1988. Em caso de
recorrência a outras edições, elas serão indicadas nas notas. As abreviações se referem aos títulos em
alemão e em português. Textos sem divisão em tópicos e não aforismáticos serão indicados pelo
volume e número da página. Fragmentos póstumos serão citados a partir do volume e mencionarão
a numeração do apontamento e a indicação de seu período provável de acordo com a edição men-
cionada.
NW/NW Nietzsche contra Wagner
EP Escritos póstumos
11
apresentação
12
apresentação
Ernani Chaves
Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará
13
Introdução
1
Um exemplo bastante significativo disso, como bem menciona Ernst Nolte, é o livro Nietzsche als
Philosoph, de Hans Vaihinger, no qual o neokantiano, um dos fundadores dos Kantstudien, consi-
dera Nietzsche como um modismo filosófico, o critica pela ausência de sistematicidade e ainda
duvida de sua saúde mental, Cf. Nolte, 1990, p. 228.
2
Essa parece ser, como também compreende Wolfgang Müller-Lauter (1981, p. 136), a dificul-
dade de Karl Löwith, que ainda tenta compreender a filosofia de Nietzsche segundo a orientação
clássica da história da filosofia ocidental.
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introdução
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introdução
falava Zaratustra devem ser entendidos como etapas de um esforço criativo de ampliação
das possibilidades da expressão filosófica e de redimensionamento v alorativo que re-
dunda naquela obra. Isso significa pressupor a existência de uma relação íntima e in-
dissolúvel entre os escritos que, muito embora respeitem momentos diferenciados, nos
quais encontramos mudanças de ênfase e de perspectivas, possibilitam tacitamente que
se compreenda entre eles um liame temático, de imprescindível consideração.
Dessa tomada de posição decorre um segundo ponto, decisivo para a abordagem
aqui proposta: a consideração de aspectos que se fazem presentes na filosofia de Nietzsche
desde O nascimento da tragédia (1872) e nos textos que se circunscrevem no seu perí-
metro temático, enquanto fatores que demonstram tendências de significativa impor-
tância para a formulação de concepções expostas em Assim falava Zaratustra (1883/5).
A consideração da importância e significação efetiva desses escritos – em especial de O
nascimento da tragédia – baseia-se no pressuposto de que eles consistem não na deter-
minação decisiva do direcionamento da especulação filosófica de Nietzsche,4 porém em
seu ponto de partida, que, a despeito das próprias críticas feitas pelo filósofo, não o
impediram, em Ecce homo (1888), de considerar que aquele livro, apesar de suas falhas e
comprometimentos, já anunciava “inovações decisivas” (EH/EH NT § 1).
A valorização da arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra
o desafio apavorante do existir, mais ainda, a crítica da perspectiva racional, compreen-
dida sob o ponto de vista de sua significação vital e intencionalidade inerente, parecem
ser traços que, mesmo mediante reformulações e utilização de diferentes estilos argu-
mentativos, se fazem presentes nos mais variados momentos de expressão da filosofia
de Nietzsche. Esses aspectos podem ser encontrados, com diferentes formulações, t anto
nos primeiros escritos, remetidos e intencionalmente relacionados à interpretação da
arte e cultura gregas, como em Assim falava Zaratustra, sendo que, nesse livro, com
pressupostos formulados mediante significativa presença de caracteres gregos.
Dessa proximidade decorre uma nova consideração afirmativa e posterior de O
nascimento da tragédia, que reforça a importância desse livro para a filosofia de Nie
tzsche como um todo. Essa relação é largamente documentada pela pesquisa sobre
Nietzsche, a partir da publicação da edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinati. Com efeito, Eckhard Heftrich indica o primeiro livro de Nietzsche como
uma prefiguração de sua filosofia e acentua a relação de proximidade temática entre
ele e Assim falava Zaratustra (Heftrich, 1962, p. 115). Volker Gerhardt acentua a im-
4
A esse respeito, escreve Fink: “posto que desse a impressão de formular um problema estético,
psicológico, fisiológico, representou no fundo a primeira tentativa tateante de Nietzsche para ex-
pressar a sua concepção filosófica do mundo. Essa inadequação, que já caracteriza a primeira obra
de Nietzsche, permanece, de certo modo, embora com sensíveis transformações, traço de toda a sua
produção.” Cf. Fink, 1983, p. 22.
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5
Pois a obra, inovadoramente, propõe-se a ver “a ciência sob a ótica do artista” e a arte sob a ótica
da vida. NT. “Tentativa de autocrítica” § 2.
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introdução
escritos como nos últimos, sendo que, em ambos os momentos, pressupondo uma
reavaliação positiva da força criativa da arte.
É evidente que tais aspectos problematizados pelo filósofo inserem-se em uma
longa tradição de reinterpretação da cultura grega e de seu significado para a cultura
ocidental, que, na Alemanha, se estabelece decisivamente a partir de Winckelmann,
passando por Lessing, Goethe, Schiller e Hölderlin. É importante, todavia, indicar que
Nietzsche dialoga com essa tradição de pensamento de forma crítica e que isso não
apenas possui implicações, mas marca fortemente as nuances centrais de seus posicio-
namentos. É a partir dessa diferenciação que o exercício filosófico de Nietzsche se di-
reciona a novos objetivos. Os escritos subsequentes a O nascimento da tragédia são
muito mais voltados para uma crítica dos valores morais da cultura ocidental e de sua
proveniência do que para uma nova tentativa de afirmar a necessidade de uma consi-
deração estética do mundo. Todavia, embora não declarados, é possível, nessa nova
tomada de posição, apontar significativos aspectos dos trabalhos iniciais.
Humano, demasiado humano, que, na opinião quase unânime de comentadores,
inaugura a segunda fase da filosofia de Nietzsche, mostra outro posicionamento com
relação à arte. Cônscio da impossibilidade de supressão das influências metafísicas na
cultura – e, portanto, de um retorno a uma forma original de fruição estética –, o autor
analisa a significação cultural da arte em seu tempo e as formas tradicionais de conside
rá-la a partir da própria hegemonia científica. Trata-se de um ponto de vista novo,
decisivo e bastante significativo à nova postura com relação à cultura, pensada anterior-
mente a partir da metafísica do artista. A decepção com o wagnerianismo, que também
veio significar uma reconsideração da filosofia schopenhaueriana, remete Nietzsche a
um posicionamento mais atualizado com relação à cultura. Parece-lhe então e vidente
que, se a arte pode ter direito a pleitear significação na contemporaneidade, ela só pode
fazê-lo se considerada a perspectiva dominante do seu tempo, a científica. Fora disso,
ela se torna meramente epígono, presa ao passado, mas sem significação cultural deter-
minante.
Entretanto, esse novo posicionamento não significa nem um distanciamento das
influências estéticas da filosofia da Nietzsche, menos ainda a pretensão de adequação
da arte à ciência. Essa última pressuposição significaria um retorno ao projeto p latônico,
ao qual Nietzsche atribui não apenas o ocaso da arte, como o desmerecer da sensibili-
dade artística no ocidente. Ao pressupor a importância da interiorização à consideração
do discurso estético contemporâneo, o autor busca, por outros caminhos, dar c ontinuidade
à crítica à metafísica, presente em sua consideração inicial da arte. A percepção de uma
influência metafísica em sua própria filosofia se reverte, então, na identificação do des-
virtuamento do romantismo e em sua justificação da arte, identificável na crença no
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No caso de A gaia Ciência, expressa na influência dos artistas e trovadores provençais (EH/EH FW/
GC §1). No caso de Assim falava Zaratustra, o renascimento da arte de ouvir, a restauração da
antiga inspiração dos poetas e o uso do ditirambo. (EH/EH Z/Z §1, 3 e 7).
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introdução
corre de outro impulso que o desejo de conhecer. Por esse motivo, uma análise meramen
te epistemológica ou analítica de seus pressupostos, com vistas a afirmar a sua necessi-
dade, perde o sentido (Machado, 1999, pp. 7-8). A filosofia, ou mesmo toda p retensão
científica, passa a ter significado apenas quando relacionada a uma concepção de vida
baseada no positivo fortalecimento e embelezamento dos impulsos fundamentais, tidos
ainda como única forma de suportar o aspecto trágico da existência. Esta se torna sinô
nimo positivo de indeterminação, e a hierarquização dos pressupostos de c onsideração
e dos valores da cultura sofre uma significativa mudança: a racionalidade e a perspectiva
científica deixam de ser as instâncias privilegiadas de consideração do mundo, p assando
a ser decisivos os princípios efetivamente ativos na valorização do existente, tais como a
sua aceitação incondicional, mesmo em seus mais duros e terríveis aspectos e consequên
cias. Isso Nietzsche nomeia “visão trágica do mundo”, dissociada de qualquer compro-
metimento com as formas tradicionais de aspiração à pureza científica.
O ensinamento do eterno retorno do mesmo, que tem seu anúncio nos escritos
que precedem Assim falava Zaratustra (FW/GC § 341), pode exemplificar satisfatoria
mente esses direcionamentos. Ele encontra seu fundamento justamente na concepção
da existência considerada sob o ponto de vista do caráter dionisíaco (Machado, 1993,
p. 123) da vida compreendida como eterno movimento ou jogo de crianças (NF/FP:
KSA 14 [188], primavera – outono de 1881). O postulado da eterna recorrência de
todas as coisas afirmado por ele remete a sua significação tanto à reflexão acerca de novas
possibilidades éticas e de consideração da existência humana como também ao âmbito
da estética (FP: KSA 9, II [162], primavera – outono de 1881), pois considera o mun-
do unicamente como eterno devir e fluxo constante de aparências, do que resulta a sua
aproximação com o que se convencionou chamar a primeira filosofia de Nietzsche.
Nesse sentido, são dignas de nota referências a pensadores como Martin H eidegger
e Gilles Deleuze que, mesmo de modos diferenciados, já consideravam o princípio for
mador dessa concepção do eterno devir do mundo e de seu jogo de forças como funda-
mentada na imagem e conteúdo vital dos valores anunciados esteticamente. Heidegger,
com efeito, mesmo considerando a filosofia de Nietzsche e sua formulação da noção de
vontade como sendo o ponto derradeiro ao qual chegou a metafísica ocidental, conside-
ra que, para que se compreenda o que o filósofo desejava expressar com o ensinamento
do eterno retorno do mesmo, é necessário um remetimento à experiência trágica descri-
ta em O nascimento da tragédia, cuja essência é determinação fundamental do pensamen-
to de Nietzsche (Heidegger, 1989, p. 279), o que lhe revela a dimensão estética (Ibidem
p. 280).
Para Deleuze, a concepção de trágico posta em O nascimento da tragédia seria a
exposição da contradição original da existência e a s olução trágica desta contradição.
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roberto barros
Isso teria remetido Nietzsche à sua interpretação genealógica dos valores ocidentais e
da metafísica, e o levado a entendê-las enquanto formas de velamento desse caráter
original. A comprovação desse velamento resultaria em uma concepção de existência
descrita como um jogo de dados, cujo princípio primeiro seria a afirmação do acaso,
expressa na doutrina do eterno retorno (Deleuze, s.d., p. 45).
A relação entre concepções formuladas em momentos diferenciados é e videnciada
em inúmeras passagens pelo próprio Nietzsche. Para ele, Zaratustra, o anunciador do
além-do-homem, é justamente aquele que alcançou as ideias mais profundas, que não vê
nenhuma objeção contra a existência, assim como contra o eterno retornar de todas as
coisas, o qual, por conseguinte, é a expressão de Dionísio (EH/EH Z/Z § 6). Com
efeito, sendo o pensamento do eterno retorno do mesmo o ensinamento fundamental
de Assim falava Zaratustra (Ibidem § 1), que marca o reaparecimento do dionisíaco em
obras publicadas, precisamente com respeito a este colocam-se imediatamente questões
acerca do seu estatuto: a) se ele permanece segundo a mesma caracterização que no
livro inicial de Nietzsche; b) se mantém a relação posta como indissolúvel com o seu
par complementar, o apolíneo.
Um aspecto em favor deste último ponto pode ser primeiramente mencionado.
Do mesmo modo que em O nascimento da tragédia, Nietzsche expõe a perspectiva de
que os gregos foram salvos do aniquilamento pela arte figurativa de Apolo, associada à
música dionisíaca. Em Assim falava Zaratustra, o ensinamento dionisíaco do eterno
retorno do mesmo também possui o seu consolo aparente, trata-se do ensinamento do
além-do-homem. Estudos mostram que essa é precisamente a relação entre os ensina-
mentos (Haase, 1984, p. 230), e ainda que esse livro fora pensado por seu autor segun-
do uma concepção trágica, como um drama em quatro partes (Ibidem p. 223). Diante
dessas proximidades formais e temáticas, que ligam os diferentes momentos, uma consi
deração atenta dessas fontes adquire grande significação. A argumentação que se segue
tenciona tornar claros os fatores de aproximação entre o fator dionisíaco do pensamento
do e terno retorno e os caracteres apolíneos do e nsinamento do além-do-homem, a p artir
da consideração da relevância de formulações dos primeiros trabalhos de Nietzsche
para a análise dos ensinamentos de Zaratustra. Nesse sentido, e a partir dos pontos de
vista acima expostos, tenciona-se empreender uma análise de formulações p osteriores
da filosofia Nietzschiana, em especial do ensinamento do além-do-homem, visando ex-
plicitar a significação das formulações estéticas dos primeiros escritos de Nietzsche para
a sua compreensão.
Assim sendo, a abordagem é composta de quatro momentos. Primeiramente, na
análise do trágico e do dionisíaco nos escritos compreendidos no perímetro temático
de O nascimento da tragédia, este tomado como escrito de significação particular no
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introdução
E com isso toco no ponto de onde eu pela primeira vez saí – o “Nascimento da Tra-
gédia” foi a minha primeira transvaloração de todos os valores: com isso eu retorno
novamente ao solo de onde meu querer, meu poder crescem – Eu, o último discípulo
do filósofo Dionísio – Eu, o mestre do ensinamento do eterno retorno (GD/CI “O
que devo aos antigos” § 4).
7
Pois, mesmo a despeito das críticas posteriores feitas pelo próprio Nietzsche àquele livro, ele também
afirma que, dentre as inovações decisivas (entscheidenden Neuerungen) contidas nele, são dignas de
atenção o entendimento do fenômeno dionisíaco (dionysichen Phänomens) entre os gregos, a inter-
pretação do socratismo (Sokratismus) como instrumento de dissolução grega (Werkzeug der griechischen
Auflösung), assim como a caracterização de Sócrates como decadente típico (typischer décadent). EH/
EH GT/NT §1. KSA 6.
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Capitulo I
A perspectiva trágica
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ser estendida, ainda que de forma bastante díspare, a Lessing, Herder, Goethe, Schiller
e Hölderlin. Os três últimos podem ser caracterizados como grandes expoentes de
uma corrente de interpretação naturalista da arte grega, que buscou se afastar dos
formalismos e modismos modernos, fundamentalmente do c lassicismo francês, obje-
tando com isso identificar uma forma natural de manifestação artística. Hölderlin
apresenta uma tendência que pode ser aproximada da inaugurada por W inckelmann,
na medida em que, em Hyperion, o protagonista, que dá nome à obra, nasce e cresce
em meio à natureza. Educado pelo irmão, Adamas, segundo os antigos mitos, Hyperion
apenas supera a solidão e a crueldade da guerra reencontrando, na Grécia, a natureza
de sua juventude, apresentada pelo autor como oposta à civilização e à condição da
cultura alemã. “Trata-se de palavras duras, que eu mesmo assim profiro, pois são ver-
dadeiras: Eu não posso pensar em nenhum outro povo que fosse mais dilacerado
(zerrissner) que os alemães” (Hölderlin, 1979, p. 190). Goethe e Schiller oscilam entre
críticas direcionadas às artes francesas2 e influências gregas, sendo que, este último
pode ser visto já como voltado à problematização do modo de se interpretar os helenos,
o que o leva, de modo bastante particular, a até mesmo afirmar a superioridade dos
modernos sobre os antigos (Süssekind, 2005, p. 168). Esse aspecto possui grande re-
percussão nas posições adotadas por Nietzsche, desde a inovação de sua interpretação
filosófica da tragédia grega – e não unicamente filológica (EF HF/HF, p. 268) – até a
sua declaração de independência de sua interpretação dos helenos com respeito à
tradição (EH/EH “O que devo aos antigos”, § 2). Com isso, ele se aproxima de um
ponto de vista já defendido por Goethe, que associa o espírito evoluído com a alta
erudição da época e não se deixa restringir pela mera cópia dos antigos, mas pensa na
assimilação de seus princípios como forma de impulsionar um impulso criativo (Goethe,
2008, p. 233).
Essas duas disposições estão decisivamente presentes nos posicionamentos de
Nietzsche em O nascimento da tragédia, influenciando expressivamente em pressupostos
que constituem eixos argumentativos centrais do livro. Nesse sentido, uma referência
direta e positiva a Winckelmann, Goethe e Schiller encontra-se no § 20, e direciona-se
respectivamente à crítica do enfraquecimento do impulso de consideração dos helenos.
Os caracteres dessa censura, associados à forma de exposição do livro, como já dito,
fundamentalmente filosófica – o que vem a ser um dos pontos centrais da crítica pos-
terior de Wilamowitz-Möllendorff à interpretação da tragédia de Nietzsche –, revelam
que, em seu livro inaugural, o autor encontra-se muito mais próximo da interpretação
filosófico-literária dos gregos que da filológica (Machado, 2005, p. 15). Desse modo, a
2
Como nos casos de Goethe, com Ifigênia em Táuris, e de Schiller, com Don Carlos, em que perso-
nagens nobres e não mais apenas burgueses constituem as principais personagens.
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a perspectiva trágica
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assim como no interesse pela obra de arte total de Wagner associada aos gregos, evi-
dencia fatores fundamentais desse projeto reformador (Britto, 2010, p. 200). Parte-se
aqui do ponto de vista de que o remetimento a aspectos centrais da interpretação da
arte helênica realizada pelo autor consiste em um passo necessário e mesmo decisivo
para a compreensão da sua filosofia no período.
Em O nascimento da tragédia, o fator primário que para Nietzsche caracteriza a
singularidade dos gregos é o apreço daquele povo pela existência, apreço este que se
manifesta artisticamente. Essa interpretação se baseia na compreensão da significação
da experiência estética dos helenos diante da percepção sem anteparos do sofrimento
inerente à existência. Ao invés de negá-lo, os gregos criaram artisticamente meios para
o seu embelezamento, superando assim o horror do existir. Esses são temas com presen
ça enfática e constante tanto nos escritos como nos f ragmentos póstumos do primeiro
período de elaboração do pensamento do autor, e que podem, por isso, ser considerados
como demarcadores de problemáticas centrais do mesmo (Fink, 1983, p. 17). Eles
possuem significação decisiva tanto no que diz respeito à problematização do modelo
cultural europeu fundado na racionalidade universalista da ciência, como na c onsideração
desse direcionamento como problema estético-vital (GT/NT § 1).
Nietzsche parte do pressuposto de que a sensibilidade grega demonstra que a expe
riência artística possui um grau de significação vital obliterado em seu tempo e que
precisamente esse desconhecimento é sintoma de uma depreciação do significado da
experiência estética e mesmo da vida. Esses traços ele identifica como presentes. de ma
neira decisiva, no horizonte da cultura europeia. Tal ampliação do significado da arte
apresenta, portanto, um segundo foco, subjacente à sua abordagem estética (Young, 1992,
p. 25), o da significação vital da fruição artística, aspecto que Nietzsche visa tornar
claro por meio da consideração do significado da tragédia e do trágico no contexto da
cultura grega, assim como pela contraposição com a experiência suscitada pela arte em
seu tempo. Influenciado pelos novos direcionamentos da filologia na Alemanha, d evido
aos rumos estabelecidos pela interpretação de Goethe dos gregos e pelo consequente
afastamento do classicismo alemão norteado por Lessing,3 Nietzsche interpreta a arte
grega por meio de dois p rincípios estéticos fundamentais, com os quais ele busca deli-
near e demonstrar a significação da tragédia grega. Seu ponto de partida é o de que a
arte grega advém do mistério da unidade (Einheitsmysteriums) (GT/NT “Tentativa de
3
Efetivamente Nietzsche se distancia do procedimento acadêmico filológico clássico alemão, para
o qual a estética de Lessing ocupa uma posição central. Essa mudança de direcionamento está
relacionada à leitura dos livros de Jakob Bernays, Die Gründzüge der verlorenen Abhandlung des
Aristoteles über die Wirkungen der Tragödie (1857) e Die Katarsis des Aristoteles und der Oedipus C
oloneus
des Sofokles (1866), de Paul Graf York von Wartenburg, livros que constroem uma leitura não tra-
dicional da catarse na tragédia. Cf. Crescenzi, 1994, p. 213-16.
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a perspectiva trágica
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GT/NT § 3. Para Baranger, a abordagem de Nietzsche da arte trágica grega o faz descobrir uma
nova espécie de pessimismo. Segundo o autor, mesmo que Nietzsche tenha partido da interpretação
schopenhaueriana do pessimismo, de raízes hindus, ele se refere a outro tipo de pessimismo, o
pessimismo ativo, da força, concebido a partir do modelo dos gregos pré-socráticos. Baranger, 1946,
p. 29.
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um antídoto contra uma compreensão pessimista do existir, cuja imagem excelsa seria
a dos deuses olímpicos (GT/NT, § 3).
Tomar a arte trágica grega como ponto de partida para a consideração das possi-
bilidades da arte adquire significação para Nietzsche precisamente em decorrência da
relação segundo a qual, nela, a união da arte com sofrimento e vida, ao contrário dos
orientais que se voltaram para o quietismo e para a interiorização, teria levado os gregos
à glorificação da existência ativa e ao anseio pelo viver. Na arte trágica, manifesta-se a
própria vontade, de forma ideal, na música e nos personagens representados no palco.
Esse aspecto singularizaria tanto os gregos como a sua arte, pois teria sido justamente
ela o instrumento primeiro desse anseio, da expressão máxima do desejo de afirmação
e embelezamento da vida:
Esta é a esfera da beleza, na qual eles [os gregos] viam a sua imagem refletida, os
olímpicos. Com essa arma lutava a vontade helênica contra o correlativo talento para
o sofrimento e para a sabedoria do sofrimento. Desta luta, e como monumento de sua
vitória, nasceu a tragédia (EP: GG/NP. KSA 1, p. 590).
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a perspectiva trágica
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a perspectiva trágica
O sábio Sileno, perseguido por longo tempo na floresta pelo rei Midas, um dia
veio, finalmente, a tornar-se deste prisioneiro. Inquirido acerca do que seria entre todas
as coisas o mais preferível para os homens, o seguidor de Dionísio, forçado a responder,
o fez com ironia, afirmando que, para os homens, estirpe miserável de filhos do acaso e
do tormento, o melhor seria inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser,
e que, depois disso, o melhor seria logo morrer (GT/NT § 3).
Segundo Nietzsche, essa narrativa, produto da sabedoria popular dos gregos, ex-
prime claramente os dois aspectos essenciais da natureza grega e de sua arte: o retratar
a existência em toda a sua dureza9 e o caráter embelezador da sua representação. Desse
modo, ela é interpretada como visão desesperançada, no que se refere ao amenizar da
dureza inelutável da existência e do destino – aspecto perceptível na primeira r eligião
grega –, mas que ameniza tal compreensão de forma afirmativa, por meio da represen-
tação artística esteticamente sedutora.
9
Vale ressaltar aqui que a temática da dor do mundo (Weltschmerz) consiste em um aspecto central
do movimento Sturm und Drand. Para os representantes do movimento, ela é associada aos c onflitos
entre indivíduo (gênio artístico) e sociedade, no qual a libertação das regras artísticas se dá por meio
da liberação de impulsos, naturais e vigorosos. Outros aspectos relativos aos pré-românticos alemães,
e a serem indicados como pertinentes à compreensão de determinados elementos presentes no
primeiro livro de Nietzsche, são: a referência à idade média, a crítica da interpretação aristotélica
do drama e a redescoberta de Homero. Cf. Werle, 2000. p. 23.
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a perspectiva trágica
pressupostos unicamente teóricos, pois esses pouco ou mesmo nada têm a ver com os
instintos artísticos dos antigos gregos. É a consideração dos impulsos estéticos dos
helenos que guia a interpretação nietzschiana do trágico, que pressupõe a total circuns-
crição no mundo natural, apenas passível de ser p lenamente compreendida por meio
dos dois impulsos estéticos da natureza. Desse modo, aquilo que Nietzsche compreende
como ensinamento grego dos mistérios foi transmitido artisticamente e expressa uma
visão natural de mundo e evidencia a sua dupla fonte (Doppelquell). No campo da arte,
após um período de franca oposição e em um momento de fl orescimento da vontade
helênica, os dois impulsos aparecem confundidos, em uma contraposição que teria
constituído o ponto culminante da arte grega (EP: NPT, KSA1, 583). Apolo é d escrito
por Nietzsche por meio de uma interpretação psicológica, que se estabelece ao dar
vazão nos gregos à alegre necessidade da experiência onírica (freudige Nothwendigkeit
Traumerfahrung), expressa mediante a arte apolínea.11 Isso torna a divindade grega
sinônimo de todas as forças figurativas, o Deus áugure, pois, segundo a raiz do próprio
nome, Apolo significaria o “deus aparente” (scheinende), a divindade da luz, que reina, por
meio da bela aparência, sobre o mundo interior da fantasia (Nietzsche, GT/NT § 1).
Em contraposição ao mundo cotidiano, a aparência apolínea apresenta-se como
uma verdade superior, mais perfeita e ainda relacionada à capacidade reparadora e cura-
tiva do mundo do sonho, por meio da qual a vida torna-se digna e possível de ser vivida.
A imagem apolínea, no entanto, não aspira alcançar o mesmo grau da realidade grosseira
(Young, 1992, p. 31), e eis em que consiste um de seus traços mais significativos. Para
ela, não constitui qualquer falha o permanecer unicamente como imagem onírica, pois
somente assim ela pode alcançar a liberdade frente às emoções mais selvagens e expressar
a sábia tranquilidade própria do deus figurativo (Bildnergottes) (GT/NT § 2). Segundo
Nietzsche, o apolíneo consiste inicialmente no impulso dominante e solitário na arte
grega, produtor da bela aparência do mundo do sonho, onde todo homem é um artista
completo. Ele é, portanto, o pai de toda a arte figurativa, cuja expressão primeira são
tanto as artes plásticas como também uma importante metade da poesia.
Entretanto, a avaliação da origem da tragédia e do gênio trágico entre os gregos
requer a consideração do dionisíaco em sua relação conflitante, porém complementar
(Young, 1992, p. 32) com o apolíneo. S egundo o autor, o efeito da arte apolínea, o pro-
11
Muito embora não encontremos em NT referências a uma perspectiva psicológica específica, é
inegável que nessa obra é possível antever traços que se fazem presentes na reflexão posterior do
filósofo. A esse respeito, o próprio Nietzsche se refere, no “Prefácio” acrescido em 1886 a NT, às
inovações psicológicas presentes no livro (§ 2). Dentre estas, podemos indicar aqui a relação entre
o corpo, os instintos, as pulsões e a expressividade, que visa, desde a obra inicial, refutar as inter-
pretações idealistas, racionalistas e moralizantes acerca das criações da cultura. A esse respeito,
conferir o artigo de Wotling, Patrick. “Der Weg zu den Grundproblemen”. Statut et structure de la
psicologie dans la pensée de Nietzsche. Nietzsche-Studien, 26, 1997.
37
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piciar a serenidade mesmo diante da realidade apavorante, torna-se inócuo após nova
revelação do verdadeiro caráter da existência, suscitada na Grécia pela inserção do
dionisíaco estrangeiro (Machado, 1999, p. 21). Dionísio é descrito por Nietzsche como
o deus vindo do oriente, como a manifestação de impulsos artísticos que, sem a mediação
do artista, irrompem da própria natureza e se satisfazem (befreidigen) por via direta
(GT/NT § 1). Adentrando na Grécia, ele encontra na grande inclinação da sensibili-
dade helênica para o sofrimento uma qualidade ausente entre os orientais (NS/EP:
GTG/NPT, KSA 1, p. 591). O seu efeito primeiro é a destruição da bela aparência da
arte figurativa apolínea, remetendo o homem novamente ao estado de completa imersão
e inconsciência no cerne da natureza, no qual a v erdade desta se manifesta imediata-
mente (Ibidem., p. 583). Segundo Nietzsche, tudo o que até então servira como f ronteira
e medida de determinação, mostra-se, a partir de então, como aparência artística, e a
desmesura é descoberta como verdade (Ibidem., p. 598).
Nunca, porém, foi a luta entre verdade e beleza maior que na invasão dos servidores
de Dionísio. Neles a natureza descobria-se e falava de seu segredo com terrível c lareza,
com o tom, diante do qual a sedutora aparência anterior perdia o ser poder (NS/EP:
GTG/NPT, KSA 1, 591).
No mundo da aparência apolínea, que tem por objetivo o respeito ético às medidas
e ao estabelecimento das fronteiras do saber e do conhecimento da verdade, o preceito
fundamental seria justamente a a dvertência “conhece a ti mesmo” (GT/NT § 4). O tom
arrebatador das festas dionisíacas, o seu excesso de natureza, o seu desejo pelo sofrer e
o reconhecimento da verdade da existência apresentam-se como o oposto desse princípio
e teriam, novamente, desvelado a verdade encoberta pelo apolíneo (Young, 1992, p. 35).
Desse modo, o dionisíaco empalidece o brilho dos deuses olímpicos, do mesmo modo
que afugenta as musas das diferentes artes, pois põe por terra os anteriores limites e
medidas e, n ovamente, expõe a sabedoria de Sileno (NS/EP: GTG/NPT, KSA 1, 594).
Para Nietzsche, o efeito imediato da inserção do dionisíaco na cultura e nas artes
gregas resulta no aniquilamento dos hábitos e dos limites impostos à compreensão da
existência pelo apolíneo. O estado letárgico no qual são deixados os adoradores de Dio-
nísio, durante o qual eles mergulham em suas experiências mais instintivas, deixa nova-
mente à mostra o abismo estabelecido entre o mundo apolíneo e o mundo da realidade
natural. O resultado mais assustador dessa experiência é a chegada da realidade da
existência à consciência do grego, que lhe suscita asco e t error diante de sua c ompreensão
sem anteparos, do que resulta o desejo maior e imediato dos helenos, a fuga de um
mundo a partir de então sentido como repleto de culpa e de destino atroz e inexorável.
Ao grego resta, portanto, apenas a compreensão do terrível e do absurdo da existência.
38
a perspectiva trágica
As musas das artes da “aparência” empalideceram diante de uma arte que em sua
embriaguez falava a verdade. A sabedoria de Sileno gritava: “Sofrimento! Sofrimento!”
contra os serenos olímpicos. O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, caía no
esquecimento de si dos estados dionisíacos e esquecia os preceitos apolíneos. A desme
sura se desvelava como verdade; a contradição e o enlevo nascido da dor se expressavam
do coração da natureza. E assim foi que, em todo lugar onde penetrou o dionisíaco, o
apolíneo foi superado e aniquilado (GT/NT § 4).
Aqui é alcançada a perigosa fronteira que a vontade helênica, com seu princípio
fundamental apolíneo otimista poderia permitir. Aqui ele [o apolíneo] atua imedia-
tamente com sua força curativa da natureza, para novamente dobrar aquele ânimo
negador. Seu meio é a obra de arte trágica e o pensamento trágico (NS/EP. GTG/
NPT. KSA 1, p. 595).
39
roberto barros
um a seu modo, claras e nítidas representações do mundo, porém manifestas por dife-
rentes meios e, portanto, nada mais que expressões da vontade, manifestas em sua
busca por redenção estética. Da união de ambas resultou a canção popular (Volkslied),
perpetuum vestígium da fusão do epos apolíneo e da música dionisíaca (GT/NT § 6).
A canção popular, porém, se nos apresenta, antes de mais nada, como espelho musical
do mundo, como melodia original, que procura agora uma aparência onírica paralela
e a exprime na poesia. A melodia é, portanto, o primeiro e universal, podendo, portanto
por isso, suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos (Ibidem).
40
a perspectiva trágica
apenas suportável, mas também apreciável, o que possibilita aos helenos a continuidade
do querer viver. Nietzsche enfatiza essa função vital da arte na seguinte afirmação: “A
arte o salva, e através da arte salva-se nele – a vida.”12 Nessa perspectiva, o êxtase dio-
nisíaco funciona como um elemento letárgico (lethargisches Element), no qual emerge
toda a vivência pessoal do passado e separa, por esquecimento, o mundo da realidade
cotidiana e a realidade sem anteparos. Ele afasta assim o asco (Ekel) advindo desta,
assim como também a tendência à disposição ascética resultante desse estado.
Da consideração desse poder de transformar os pensamentos sobre o horror e o
absurdo da existência em representações sublimes, que servem como descarga artística
do asco e do absurdo do existir, Nietzsche pode, então, dizer que: “o coro satírico dos
ditirambos é o salvador da arte grega” (GT/NT § 7). Desse modo, a tragédia é consi-
derada como o coro dionisíaco descarregado em um novo mundo apolíneo de imagens,
daí o autor poder dizer que a arte trágica grega repousa sobre um mistério da unidade
(Einheitsmysterium) (GT/NT § 5).
12
“Ihn rettet die Kunst, und durch die Kunst rettet ihn sich - das Leben.” Ibid. § 7, KSA 1, p. 56.
41
roberto barros
Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, com tal ruptura do Principium
individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, olhamos
a essência do dionisíaco, que é aproximado o máximo possível de nós, pela analogia da
embriaguez. Seja pela beberagem narcótica, da qual todos os homens primitivos falam
em hinos, ou como com a penetrante proximidade da primavera a impregnar toda a
natureza de alegria, despertam aqueles sentimentos dionisíacos, em cuja elevação o
subjetivo se desvanece em completo autoesquecimento (GT/NT § 1).
Entre os gregos, o dionisíaco foi puro impulso natural, não imediatamente relacio-
nado ao artístico, mas sim ao corpóreo e, sob o seu efeito, se daria um estado de aproxi-
mação tanto entre homem e homem como entre homem e natureza. Na e mbriaguez
dionisíaca, todos os princípios diferenciadores caem por terra, originando unicamente
uma crescente massa de enfeitiçados que festeja a harmonia universal (Weltenharmonie).
Artisticamente, a embriaguez dionisíaca manifesta-se em seus discípulos no canto, na
dança, no andar sem rumo e no desaprender da fala, e, a inda mais, na sensação de tornar-
-se outro, como possessão. Nessa alteração, os possessos sentem-se como animais, tomam
leite e mel da terra e soam como algo supranatural (Übernatürliches), atitude que carac-
teriza justamente a proximidade com a divindade, a sensação de divinização que cons-
tituiria o inacreditável idealismo da natureza (Wesen) grega (GT/NT § 1).
Repousa justamente nesse traço a distinção entre a obra de arte apolínea e a dio-
nisíaca. Enquanto a primeira é indicada como fruto da figuração do mundo dos sonhos
do homem grego, a segunda é caracterizada pelo discípulo de Deus em estado de êxtase
e em busca da assimilação do divino:
A força artística da natureza não se manifesta mais aqui como de um único homem:
um tom mais nobre, um mármore mais precioso será aqui trabalhado e modelado: o
homem. Este homem formado pelo artista Dionísio relaciona-se com a natureza como
a estátua para o artista apolíneo (GT/NT § 1).
42
a perspectiva trágica
mais elevada da vontade, que em si é inestética (GT/NT § 6). A música dionisíaca, que
tem sua origem justamente no coro de sátiros dos seguidores de Dionísio, em seu anseio
de um retorno à natureza sem a interferência de nenhum conhecimento. Esse compor-
tamento lhes revelaria a verdadeira compreensão da natureza, à qual eles se adequavam
sem conjecturar, pois, em tal e stado de possessão, a natureza em seu devir constitui a
única realidade.
Esse é, portanto, o aspecto diferenciador entre o homem dionisíaco e o grego da
cultura apolínea. Enquanto o primeiro vê a natureza e o mundo em sua expressão mais
clara e a festeja e anseia, o homem da cultura apolínea considera a sua realidade com
assombro, mas, muito embora também a aceitando, o faz mediante o véu da bela aparên
cia, algo que o seguidor de Dionísio não necessitaria (Schacht, 1995, p. 132). Desse modo,
o dionisíaco é interpretado por Nietzsche como a manifestação plena do natural, como
a sua aceitação incondicionada e que, assim, gera a canção popular e a tragédia. Nesta, o
coro, a visão tida pela massa dionisíaca, de acordo com a interpretação de Schiller13, é o
“muro vivo contra a realidade assaltante”.
O coro é o muro vivo contra a tempestiva efetividade, porque ele – o coro satírico –
retrata a existência (Dasein) de maneira mais veraz, mais real, mais completa do que o
homem culto, que usualmente julga ser a única realidade. A esfera da poesia não se
encontra fora do mundo, qual fantástica impossibilidade de um cérebro de poeta. Ela
quer ser exatamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e necessita, justa
mente por isso, desfazer-se do atavio mendaz daquela pretensa efetividade do homem
civilizado (GT/NT § 8).
13
A opção pela interpretação de Schiller e, por conseguinte, o afastamento com respeito às interpre-
tações aristotélicas e schleguianas reforçam o caráter filosófico-artístico que Nietzsche deseja
conferir à sua análise da tragédia. Sua concepção, porém, apresenta um aspecto que não pode ser
desmerecido aqui: mesmo enquanto manifestação dos impulsos estéticos, a tragédia advinda do
coro nunca é para ele uma representação natural, mas sim ideal da natureza, pois a idealização
consiste em um traço inseparável da arte grega. Esse aspecto é de grande significação para que se
entenda a diferença entre o ideal artístico manifesto pelos helenos e o idealismo das interpretações
alemãs, o que auxilia na compreensão da posterior retomada de Nietzsche por caracteres e temas
relacionados aos gregos.
43
roberto barros
O coro dos sátiros é primordialmente uma visão da massa dionisíaca, assim como, por
outro lado, o mundo do palco é a visão desse coro de sátiros: a força dessa visão é
forte o suficiente para, contra a impressão da “realidade”, contra os círculos enfileirados
dos homens cultivados, tomar insensível e embotado o olhar (ibid. § 8).
Dessa relação participaria, ainda, o poeta trágico. Ele também estaria envolto em
imagens e seria poeta apenas por compreender-se cercado de pequenas figuras que
vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo o seu olhar penetraria. O sátiro,
enquanto personagem do mundo artístico, é visto pelos gregos como um ser divino e
sublime, representação da satisfação ante a natureza, que destrói a ilusão de sua imagem
original (Urbild) erigida pela cultura apolínea, deixando à mostra o verdadeiro homem,
o sátiro barbudo, que, completamente imerso nos eflúvios da natureza, se rejubila diante
de seu deus (GT/NT § 8).
O sátiro era algo sublime e divino: assim necessitava parecer, em e special ao olhar
dolorosamente quebrantado do homem dionisíaco. (…) sua vista passeava com elevada
satisfação sobre os traços grandiosos da natureza, ainda não velados nem atrofiados;
aqui a ilusão da cultura fora apagada da imagem original do homem; aqui era desvelado
o verdadeiro homem, o sátiro barbudo, que jubilava seu deus (ibid. § 8).
44
a perspectiva trágica
fora do m
undo, como uma fantástica impossibilidade própria do cérebro do poeta. Di
versamente, ela visa ser a indisfarçada (ungeschminkte) expressão da natureza, algo outro
que a moralização patente na perspectiva moderna.
Nesse sentido, a tragédia grega significa a manifestação dos impulsos naturais
mediante representação e música (Fink, 1983, p. 20), cujo aspecto fundamental c onsiste
na tentativa de representação visual desta última. A primeira manifestação vocal da
música, no coro dos seguidores de deus Dionísio, teria posteriormente originado a
poesia lírica, e esta, finalmente, o coro, a estátua viva do deus (NS/EP: GMD/DM,
KSA 1, p. 517). Do coro decorre a tragédia, em um momento no qual os gregos, diante
do novo desvelar da verdade da existência, fundiram a música dionisíaca com a repre-
sentação épica, como forma de restabelecer o seu princípio perdido de consolação e,
desse modo, superar a náusea causada pelo defrontar-se com o absurdo do existir. Por
conseguinte, o dionisíaco é justamente a causa dessa sensação, que, por meio da bela
representação apolínea, teria sido atenuado em seu caráter aniquilador e se t ransformado
em coadjuvante do apolíneo na nova expressão artística grega possibilitada por essa
conciliação. A esse respeito escreve Nietzsche:
45
roberto barros
46
a perspectiva trágica
Desse modo, a tragédia grega pode ser compreendida como o descarregar (entladen)
do coro dionisíaco em sempre novos mundos de imagens apolíneas. Ela é tomada como
a objetivação dos estados dionisíacos por meio da redenção apolínea da aparência, do
quebrantar e unificar do indivíduo com o ser primordial (Ursein), o que pode c aracterizá-la
como a encarnação apolínea de saberes (Erkenntnisse) e efeitos dionisíacos, estando, por
conseguinte, amplamente separada do Epos (ibid.). O coro exprime a experiência mais
profunda e veraz da natureza e profere, em seu entusiasmo, sentenças oraculares de
sabedoria acerca dela, pois, como aquele que descreve os sofrimentos do existir: “ele é,
ao mesmo tempo, o sábio que, do coração do mundo, enuncia a verdade” (ibid.).
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a perspectiva trágica
conteúdo expresso no espetáculo, alcançável por meio da palavra falada, da poesia (NF/
FP: KSA 7, 7 [129], fins de 1870 – abril de 1871); b) em segundo lugar, a supressão de
Dionísio como o herói da cena trágica. Para justificar essa interpretação, Nietzsche
busca como argumento, além dos fatores anteriormente aludidos, também a contrapo-
sição desses traços com aquilo que ele chama de doutrina dos mistérios da tragédia (die
Mysterienlehre der Tragödie. GT/NT § 10), com a qual ele torna clara a sua concepção
acerca do significado dos fatores componentes da arte trágica.
Segundo esse delineamento básico, a tragédia decorre de três fatores artísticos
fundamentais: em primeiro lugar, da visão de Dionísio como herói lutador individual,
que, por isso, experimenta os sofrimentos da individuação. Em segundo lugar, da visão
de Dionísio destroçado pelos titãs, símbolo do anseio desmedido pelo titânico. E, fi-
nalmente, o terceiro fator: o Dionísio renascido, que, com o simples anúncio de seu
reaparecimento – enquanto símbolo de reconciliação com a natureza –, levou a alegria
ao coração dos helenos, por significar a superação da individuação, cônscia do sofri-
mento inerente à existência. Para Nietzsche, esses três fatores levaram os gregos à
compreensão da individuação como causa do mal, ao conhecimento da unidade de tudo
o que existe e da arte como suspensão da individuação e, assim, a sua compreensão como
símbolo de uma unidade restabelecida (GT/NT § 10).
Partindo desses pressupostos, enquanto fatores determinantes para a compreensão
da significação do trágico para os gregos, o autor empreende a análise da nova comédia
ática, da qual Eurípedes, justamente d
evido às inovações que empreendeu, é posto como
um dos representantes. O traço primeiro aludido por Nietzsche nessa consideração é o
ponto de vista segundo o qual, pela primeira vez na história da representação trágica,
o povo, o homem comum é levado à cena, sendo, por conseguinte, abandonada toda a
“idealidade” que marcara sempre as figuras representadas (ibid. § 10). Com Eurípedes
e a nova tragédia ática, a música, decisivamente atuante para o nascimento da tragé-
dia, é posta em plano secundário, do mesmo modo que o coro. Isso em favor de uma
nova concepção, realista, vinculada a uma pretensão de significação histórica da tragé-
dia, que deve se tornar uma representação do mundo aparente (NF/FP: KSA 7, 7 [124],
fins de 1870 – abril de 1871). Essa perspectiva exige que o poeta se volte para a
inteligibilidade do circundante e, portanto, seja remetido a conceber a separação entre
música do coro e linguagem (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 542), como forma de conferir
maior realismo à tragédia.
Como resposta à questão do porquê da mudança de direcionamento da represen-
tação trágica em Eurípedes, Nietzsche afirma a necessidade da consideração de dois
protagonistas e de seus traços específicos de atuação para a compreensão desse aconte-
cimento. Em primeiro lugar, do próprio Eurípedes, posto então não como poeta t rágico,
49
roberto barros
mas como pensador, que tornou necessárias consciência e crítica como aspectos pri-
mordiais da criação artística.14 Em segundo lugar, Sócrates que, com a exigência de
inteligibilidade da arte e de sua vinculação com a beleza e a virtude, exposta nas m
áximas
“tudo deve ser inteligível para ser belo” e “só o sábio é virtuoso”, funda aquilo que
Nietzsche chama de o socratismo estético (aesthetischer sokratismus), pelo qual E urípedes
se viu atraído.
Também Eurípedes foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava por
intermédio dele não era Dionísio, mas tampouco Apolo, porém um demônio de nas-
cimento recente chamado Sócrates. Esta é a nova oposição: O dionisíaco e o socrático,
e, devido a ela, a obra de arte da tragédia grega morreu (GT/NT § 12).
50
a perspectiva trágica
de que a arte deve ser baseada na lucidez consciente, de forma a minimizar seus efeitos
aparentes.
Essa tomada de posição possibilita a Nietzsche considerar a morte da tragédia
como decorrente da aproximação de Eurípedes com a perspectiva socrática (ibid. § 12).
Desta decorre a imposição do imperativo da inteligibilidade racional15 a toda a tradição
trágica, posto então como único princípio de justificação e legitimação.
51
roberto barros
Nietzsche busca apoio para esse ponto de vista em uma c onsideração psicológica,
de grande significação, tanto para esse momento, quanto para toda sua filosofia poste-
rior. Com efeito, para ele, a tendência socrática não está totalmente dissociada do
mesmo impulso que leva os gregos a criar os seus mundos artísticos. Antes, ela é
primeiramente um produto dessa mesma necessidade da aparência, porém d eterminada
pelo imperativo da racionalização de suas concepções. Em outras palavras, a n ecessidade
socrática de sabedoria e do conhecimento é, sob o ponto de vista de sua justificação,
também instinto, mas desprezada enquanto tal e dissimulada como desejo de conhecer.
Por essa via, Sócrates negou a sabedoria da arte considerando-a como inconsciente,
repousando um dos seus princípios fundamentais na afirmação: “Não se sabe o que não
se pode dizer para se levar outros ao convencimento” (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 541).
A partir de Sócrates, a sabedoria torna-se apenas o saber consciente, assim justi-
ficado segundo a sua possibilidade de aceitação universal inequívoca, capacidade que a
arte, em sua origem e significado, jamais tenciona possuir. Isso consiste em algo que,
para Sócrates, ela jamais alcança, por ser meramente uma figuração da figuração (Abbild
des Abbildes) (NF/FP: KSA 7, 7 [124], fins de 1870 – abril de 1871) e, por isso, deve
ser submetida ao conhecimento. Todavia, a sabedoria de Sócrates demonstra, para
Nietzsche, possuir um traço instintivo, constatável em um laivo de inconsciência, ma-
nifesto em seu “demônio”, que nada mais é que o afirmativo e criativo que age em toda
natureza produtiva, com a única distinção que: “em Sócrates, o instinto teria se t ornado
crítico e a consciência produtora” (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 542).
Outro aspecto aludido por Nietzsche, e que marca exemplarmente esse aspecto
fisiopsicológico da perspectiva socrática, seria o fato de o pensador grego, no final de
sua vida e às portas da morte, narrar a seus amigos um sonho imagéico (Traumbild),
que lhe ocorrera frequentemente e que lhe dizia que ele, enquanto homem racional,
“fazia música”, o que o teria levado a se convencer que a sua filosofia seria a música mais
elevada (ibid., p. 544). Desse modo, Nietzsche pode dizer que o socratismo estético é
uma expressão racionalizada e espiritualizada do impulso artístico grego e que incor-
pora oportunamente alguns traços apolíneos, tais como a aspiração pela clareza e pela
moderação. Devido a essa união concomitante de caracteres, ele aparenta ser, para os
gregos, uma pura e nítida luz, de modo a conseguir colocar-se como precursor e arauto
de uma sabedoria que deve nascer na Grécia. Esse traço da sabedoria socrática reforça
a interpretação do autor de que ela é apenas outra manifestação da vontade helênica,
porém exteriorizada inartisticamente. Sócrates teria renegado o instintivo inerente da
arte grega em favor de um pressuposto de inteligibilidade criado por ele mesmo, o que
teria lhe permitido descaracterizar o mito grego como sabedoria, devido à sua falta de
coerência lógica. Tais princípios, entretanto, não estariam dissociados da tendência
52
a perspectiva trágica
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roberto barros
corrigir (GT/NT § 13) a existência, muito embora, com essa proposta, ele ajuíze a sua
filosofia como música.
Segundo o direcionamento possibilitado pela interpretação fisiopsicológica da
estética socrática, tanto a arte quanto a racionalidade científica são encaradas por Nie
tzsche como impulsos. A distinção entre ambas é que a primeira, e, em especial, a
música é tida como linguagem imediata do Ser original (Gubernikoff, 1990, p. 101),
portanto, como manifestação dos estímulos mais profundos da natureza e, assim, ex-
pressão da vontade em sua onipotência (Allmacht) (GT/NT § 16). A cientificidade, por
sua vez, é tida como uma forma mitigada de expressão da vontade, mas que, antes de
tudo, ao estabelecer as dicotomias entre falso e verdadeiro, real e aparente, consciente
e inconsciente, traz consigo o problema da negação da manifestação mundana da von-
tade como aparência.16 Nessa constatação se baseia o cerne da crítica de Nietzsche à
metafísica e à ciência nos primeiros escritos. Ela parte do princípio de que o efeito mais
evidente da supremacia desse ponto de vista é a desvalorização da existência concebida
esteticamente. Essa é posta em segundo plano pela perspectiva científica, em favor dos
pressupostos logicamente concebidos. As repercussões artístico-culturais desse desdo-
bramento são enormes. Diante da logicização e racionalização do Ser, operada por
Sócrates e por Platão, resta à arte o terreno da mera impossibilidade de justificação
unicamente estética. A partir de então, ela passa a ser subordinada à razão, e isso, no
platonismo, significa à moral.
O cerne para o qual se direciona a argumentação do autor consiste, portanto, na
compreensão de que, nesses novos domínios, a aparência – tudo aquilo que não se
adéqua aos princípios lógicos de não contradição e de estabilidade do Ser – é relegada
a um segundo plano de validade, cujo exemplo significativo para Nietzsche é Platão,
para quem os dados captados pela percepção sensorial seriam já cópias de semelhança
apenas aparente com modelos eternos, tal como podemos ler em um fragmento do
período: “A ideia platônica é a coisa com a negação do impulso (ou a aparência da
negação do impulso). A harmonia demonstra o quanto é correta a proposição da ne-
gatividade” (NS/FP: KSA 7, 7 [28], fins de 1870 – abril de 1871).
16
A importância da observação psicológica na filosofia de Nietzsche, d ecisivamente presente no se-
gundo livro do primeiro volume de Humano, demasiado humano, é significativa e digna de nota.
Todavia, é importante perceber o início da formação da teoria pulsional nietzschiana já em NT,
então, especificamente a partir da indicação de uma patologia do socratismo, que posteriormente
vai ser ampliada à consideração do homem moderno de forma geral. Esse aspecto, com se verá
posteriormente, possui significativa importância para a mudança de perspectiva estético-teórica de
Nietzsche na assim chamada segunda fase de sua obra.
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a perspectiva trágica
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roberto barros
A tragédia morre do conflito entre saber teórico e visão artística, quando é estabe
lecida a inserção do pressuposto de verdade na consideração da arte. Assim, é depre-
ciando o próprio espírito formador dos mitos, a música, que passa a ser considerada
como uma mera pintura sonora (Tonmalerei) voltada para a representação com a spiração
à verdade (GT/NT § 17).
A consideração do socratismo e da cientificidade por meio de um ponto de vista
estético termina por remeter a sua análise a um problema moral, evidenciado pela
análise do desejo socrático de verdade (EH/EH GT/NT § 2), que revela, finalmente,
um terceiro aspecto: a análise do conflito travado entre arte e racionalidade filosófica
sob o ponto de vista fisiológico ou da vida, pois se trata de um dos aspectos que apare-
ce de maneira significativa nas obras que se circunscrevem ao ciclo temático de Assim
falava Zaratustra e da concepção trágica de filosofia.17 A esse respeito, além da argu-
mentação de Nietzsche desenvolvida em O nascimento da tragédia, pode-se encontrar
diversos retornos a esse tema nos escritos posteriores referentes a esse trabalho inicial.
Em 1886, a propósito de solucionar o problema da pouca receptibilidade de sua
filosofia, Nietzsche escreve novos prefácios para os seus livros, desde O nascimento da
tragédia até A gaia ciência. Essa ação é repleta de significados e de grande importância
para o direcionamento que o filósofo desejava dar a partir de então ao seu pensamento,
que naquele momento tinha Assim falava Zaratustra como obra decisiva (Burnett, 2000,
p. 88). O primeiro desses prefácios foi acrescido à sua primeira obra e recebeu o título
significativo de: “Tentativa de autocrítica”. Nele o autor busca não apenas fazer a crí-
tica da obra inicial, como também reafirma os pontos decisivos da mesma, seus traços
inovadores e ainda a sua importância para a filosofia posterior.
Dentre os pontos que lhe parecem dignos de ser ressaltados com relação ao seu
primeiro livro, ele indica imediatamente a significação de sua reflexão passada a respeito
do conteúdo da arte trágica para os gregos, isso sob o ponto de vista da interrogação
acerca de um suposto p essimismo daqueles (GT/NT “Prefácio” § 1). Antes de argu-
mentar a favor ou contra essa possibilidade, Nietzsche põe em questão o próprio sig-
nificado d esse sentimento entre os helenos. Seu intento, nesse momento, é claro, e se
relaciona diretamente com uma das diretrizes primeiras desenvolvida na obra, para a
qual esse escrito posterior é posto como esclarecimento, a saber: o questionamento do
verdadeiro significado do conflito entre arte trágica e razão teórica.
O ponto central, considerado inovador e defendido pelo autor como presente na
obra, é justamente a descoberta da positividade do monstruoso fenômeno do dionisía-
17
Como se verá na terceira parte desta dissertação, a perspectiva de empreender uma filosofia segundo
pressupostos dionisíacos e trágicos é essencial para que o ensinamento do além-do-homem possa
ser satisfatoriamente compreendido em Assim falava Zaratustra em sua significação estética.
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se sobrepõe ao erro, mas, antes, que aquela deve ser considerada mediante a ótica da arte,
tomada como sinônimo de manifestação de vida afirmativa (GT/NT “Prefácio” § 2).
Desse modo, a compreensão das contradições dos dogmas metafísicos, reveladas
pela própria ciência positiva, é fator de restauro da validade da perspectiva artística. Na
fase final da filosofia de Nietzsche, o fator positivo desta não repousa mais no seu ca-
ráter trágico, mas justamente na representação sem restrições do traço múltiplo, inde-
terminável e móvel da existência, de onde decorre que o movimento de reconsideração
positiva da perspectiva trágica traz, como aspecto subjacente, a necessidade de uma
compreensão vital e extramoral, ou ainda, não científica, do dionisíaco. Justamente para
o que, segundo o próprio autor, o livro daria uma resposta (GT/NT “Prefácio” § 14).
Isso significa considerar essa questão em um nível ainda mais profundo que a mera
clarificação desse fenômeno estético e da singularidade de sua expressão. A partir dessa
mudança de perspectiva, a pergunta fundamental, então posta no prefácio, é a da r elação
dos antigos helenos com a dor, com o seu grau de sensibilidade. Seu questionamento
visa analisar se o anseio cada vez mais forte por beleza, festas, divertimentos e novos
cultos entre os gregos brotou da carência, da privação, da melancolia e da dor (GT/NT
§ 4). A questão central é a possibilidade de sopesar o anseio pelo feio, a vontade i nclinada
para o pessimismo, para o trágico, terrível, enigmático e aniquilador – de onde se ori-
ginou a tragédia – como sintoma de força, de prazer, de saúde transbordante, de grande
plenitude (GT/NT § 4).
A proposição de Nietzsche a esse respeito é a de que o trágico, assim considerado,
possui entre os gregos um significado fisiológico, imediatamente relacionado ao dioni-
síaco, este tomado enquanto símbolo fecundo, como sinal da riqueza e abundância de
força juvenil dos helenos. Contrariamente ao otimismo da lógica e ao anseio por racio-
nalização, sinônimos de serenidade para o homem científico, Nietzsche os interpreta
como sintoma de força em declínio, pois atestaria justamente o decréscimo de forças
necessárias à aceitação incondicional da vida, aspecto presente na expressão artística.
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co, ocorrido na Grécia, ainda possui significação devido aos seus efeitos ainda serem
decisivamente sentidos na contemporaneidade e nas ideias modernas, o que lança sobre
estas o mesmo grau de suspeita indicado na perspectiva inicial. Por conseguinte, a tácita
constatação da influência dos mesmos pressupostos teóricos utilizados pela racionali-
dade grega para descaracterizar a arte encontrar-se-ia ainda no cerne dos pensamentos
dominantes na modernidade, o que deixa à mostra que o conflito ocorrido entre os
gregos não se limitou ao campo da arte ou da estética, mas que, pelos seus próprios
efeitos, alcançou o campo das significações morais. Isso implica, para Nietzsche, que a
própria moral deve ser posta em questão, pois, tal como a ciência – com a qual ela
nesse momento é relacionada –, ela deve ser interrogada não mais segundo os seus
próprios pressupostos, mas s egundo o princípio da vida abundante, tornado fundante
e imprescindível para qualquer consideração. O que Nietzsche formula na seguinte
questão: “O que significa, vista sob a ótica da vida, a moral?” (GT/NT “Tentativa de
autocrítica” § 4).
Contrariamente ao que Nietzsche interpreta ser a concepção dominante na cul-
tura ocidental, a arte – e não a moral ou a ciência – passa a ser tida como a verdadeira
atividade metafísica do homem, ao mesmo tempo em que, restituído o seu valor, o
mundo passa a se justificar novamente como fenômeno estético e que sabe redimir-se
apenas na aparência (GT/NT § 5). O pressuposto para uma nova menção a esse posi-
cionamento em 1886, que não pode ser totalmente esclarecido aqui, é precisamente a
reafirmação dos aspectos perspectivístico e moral da arte, que o autor identifica no
dionisíaco e no pessimismo para além do bem e do mal do homem grego. Isso resulta
em uma filosofia que reverte valorações ancestrais e que assim pode rebaixar a própria
moral e a metafísica ao mundo da aparência, dessa vez, porém, não como ilusão ou erro,
mas como interpretação depauperante, como resignação ante a vida, e isso por meio da
própria arte (ibid. § 5).
60
a perspectiva trágica
que relaciona c ientificidade e moralidade cristã, é necessário indicar que o ponto nuclear
da crítica feita por Nietzsche à cientificidade e à moral incide sobre o desejo comum de
ambas por estabelecer padrões absolutos, o que desterrou toda a arte no terreno da men
tira (GT/NT § 5). Por isso, a moralidade cristã é aproximada da racionalidade dogmá-
tica e com ela considerada como hostil à vida, pois, demonstrada a intencionalidade das
dicotomias com as quais ambas laboram, chega-se à conclusão de que toda a vida repousa
sobre aparência, ilusão, múltiplas óticas e, finalmente, sobre arte. Ela necessita do erro e
da manutenção do perspectivismo. O que leva Nietzsche a afirmar que todo posiciona-
mento que tenta negar essa constatação demonstra ser restritivo e perigoso para a vida.
61
roberto barros
(...) que no construir como no destruir, no bom como no ruim, quer perceber-se de
seu idêntico prazer e autocracia, que criando mundos, aparta-se da necessidade da
abundância e superabundância do sofrimento das contradições nele acumuladas (GT/
NT “Prefácio” § 5).
62
a perspectiva trágica
63
roberto barros
O dizer sim à vida, ainda nos seus mais estranhos e duros problemas; a vontade de viver
comprazendo-se em sacrificar seus mais altos tipos de ser à inesgotabilidade do devir
– isso eu chamei de dionisíaco e e ntendia como a fonte de compreensão do poeta trá-
gico. Não para nos libertarmos do terror e da compaixão, não para nos purificarmos de
64
a perspectiva trágica
uma perigosa descarga – como Aristóteles erradamente pretendeu –, mas para, além do
terror e da compaixão, mas para ser mesmo o eterno prazer do devir, prazer que e ncerra
em si também o prazer em destruir...” Nesse s entido me considero o primeiro filósofo
trágico – isso significa o extremo contraste e antípoda de uma filosofia pessimista.
Antes de mim não há tal transposição do dionisíaco em Pathos filosófico: faltava a sa-
bedoria trágica (EH/EH GT/NT § 3),
65
Capítulo II
Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
A análise das duas últimas considerações extemporâneas, dos fragmentos póstumos e das
cartas do final da década de 70 possibilita que se compreendam os motivos do rompi-
mento de Nietzsche com respeito a Richard Wagner e à filosofia de Schopenhauer
(Barros, 2006, p. 78). Essas fontes possibilitam entender que esse afastamento se deve
fundamentalmente a dois fatores: primeiramente, à decepção do autor com a r essonância
cultural do festival inaugural em Bayreuth e, em relação direta com isso, à compreensão
de que uma reforma cultural concebida segundo parâmetros gregos não se realizaria.
Fosse por meio da filosofia de Schopenhauer, fosse pela da arte wagneriana. Mesmo que
nas extemporâneas Schopenhauer como educador e Richard Wagner em Bayreuth Nietzsche
se refira a Schopenhauer e a Wagner de forma quase ideal, esses são escritos de despe-
dida. Neles subjaz uma série de desassossegos com posicionamentos de ambos que não
se coadunavam com as suas concepções, mesmo que se considere a metafísica do artis-
ta. Como é sabido, o rompimento definitivo com ambos ocorre efetivamente em 1878,
com a publicação do primeiro volume de Humano, demasiadamente humano, escrito e
publicado pouco após a inauguração do teatro operístico de Wagner em Bayreuth.
As afirmações referentes ao assunto presentes em escritos posteriores, tal como
nos prefácios de 1886 e no autobiográfico Ecce homo, mostram Nietzsche tentando
justificar o seu distanciamento como um livramento (Loslösung) daquilo que não per-
tencia a sua natureza. Associado aos aspectos constatáveis nos próprios textos anteriores
ao rompimento, um argumento obtém grande plausibilidade e é aqui pressuposto, a
saber: o de que Nietzsche assimilou a reflexão estética e a metafísica de Schopenhauer
até a medida em que essa podia ser associada à sua interpretação dos gregos e de sua
arte (Goedert, 1978, p. 3) e que Nietzsche se afasta daquele ao perceber mais claramen-
te os pontos de distanciamento de sua concepção de filosofia trágica do pessimismo
schopenhauriano (Young, 1994, p. 26). O mesmo se aplica a Wagner. Ao considerar o
compositor alemão como um novo Ésquilo e crer que por meio da sua obra seria pos-
sível restabelecer a dignidade da arte entre os antigos helenos perdida na modernidade,
Nietzsche revela importantes pressupostos de seu interesse pela arte wagneriana.
No que se refere a esta nova interpretação de ambos, um dado relevante pode ser
encontrado nos últimos escritos e consiste em associar Wagner e Schopenhauer – aque-
66
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
67
roberto barros
desejo de sua alteração ou mesmo superação, como forma de por fim ao sofrimento
inerente à existência. Em contraposição a isso, Nietzsche concebe a sua filosofia dioni-
síaca como forma de inverter as categorias de valor da tradição metafísico-cristã e por
meio do embelezamento do viver e da atitude heroica de sua aceitação incondicional
da vida, revalorizar os seus perigos e desafios. O dionisíaco mobilizado por Nietzsche
comporta, portanto, uma dimensão estético-cultural, mas também uma decisiva signi-
ficação teórica, pois implica também igualmente em uma nova concepção de saber, para
a qual o existente não é visto como problema, mas como domínio de possibilidades de
interpretação e de criação. Neste contexto, tanto a arte quanto a própria ciência consistem
em noções decisivas para que se compreenda tanto a alegre ciência quanto Assim falava
Zaratustra, esta obra entendida como escrito fundamental3 de seu autor. Entretanto,
como a própria intenção dos prefácios e de Ecce homo revelam, Nietzsche deseja indicar
que a compreensão destas mudanças pressupõe também o entendimento das caracte-
rísticas e da dimensão das alterações ocorridas no percurso intelectual que o levou a
Zaratustra.
Isso posto, a questão a ser esclarecida aqui é: a partir da consideração crítica da
arte e de seu significado na modernidade presente em Humano, demasiadamente h umano,
como é possível entender o ressurgimento do dionisíaco nos escritos posteriores? A
resposta a essa questão parece remeter necessariamente à consideração dos pressupostos
dessa m udança e, por conseguinte, do rompimento de Nietzsche com as suas influên-
cias anteriores, especificamente com o wagnerianismo e com o pessimismo schope-
nhauriano. A este respeito, as afirmações feitas em Nietzsche contra Wagner e em O caso
Wagner mostram-se decisivas. Elas levam a perceber que o abandono da concepção
centrada na metafísica do artista se deve em grande monta à não adequação da fi losofia
de Schopenhauer e da significação cultural e artística de Wagner à concepção de arte
e cultura de Nietzsche, fundada decisivamente em uma elevada e positiva consideração
dos antigos gregos (UB/CE HL prefácio). Ao considerar Assim falava Zaratustra como
uma obra filosófica capital, Nietzsche dá a entender que as suas compreensões tanto da
arte como da ciência sofreram mudanças significativas e, desse modo, que o entendi-
mento desses aspectos é um dado decisivo para abranger o sentido de sua obra. A as-
similação de Assim falava Zaratustra como obra filosófica pressupõe destarte a inclusão
3
EH/EH “Prefácio” § 4. O reaparecimento do dionisíaco nos últimos escritos, segundo as próprias
afirmações de Nietzsche, está vinculado ao seu Zaratustra e por esse motivo é um aspecto impres-
cindível à compreensão dos objetivos e significados do autor com aquela obra e com as suas doutrinas.
Como podemos ler em Tentativa de autocrítica, o dionisíaco associado a Zaratustra não mais é
aquele da metafísica do artista. O caráter autobiográfico dos prefácios e de Ecce homo demonstra
que Nietzsche deseja esclarecer a sua obra a partir de sua própria vivência, de seu percurso intelec-
tual, o que significa que, no que se refere à essa noção, ela se alterou no decorrer do percurso inte-
lectual do autor.
68
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
69
roberto barros
mas a essência íntima, o interior do fenômeno, a própria vontade” (WV/MV III § 52).
A música é então a forma superior de representação das manifestações da vontade em
sons, que diante da infinita polissemia de formas possíveis de expressão, se deixa mais
fielmente expressar na multiplicidade infinita das formas musicais. Esta interpretação
da música, como veículo e mais elevada forma de manifestação sensível do princípio
metafísico do mundo, é decisiva para aproximação de Nietzsche com respeito à arte
wagneriana e para a sua formulação inicial do dionisíaco.4 Ao entrar em contato com
a obra de arte total (Gesamtkunstwerk) de Wagner, ele também leitor de Schopenhauer,
Nietzsche interpreta o drama musical Wagneriano como signo da nova manifestação
de um impulso artístico natural, longamente represado pelo racionalismo estético, cujo
efeito primeiro é fundamentalmente o restabelecimento da significação da música,
fator decisivo para a aproximação da ópera da tragédia ática.
É, por conseguinte, precisamente desses caracteres que Nietzsche deseja se afastar
nos escritos que marcam a sua ruptura com pressupostos basilares de seus direciona-
mentos iniciais. Como documentos elucidativos neste sentido, podem ser indicados os
prefácios publicados em 1886, anexados aos livros anteriormente publicados, mas ori-
ginalmente não prefaciados. Esses textos são significativos, pois com eles o autor tenta
tornar evidente o sentido de sua filosofia até então, do mesmo modo que busca oferecer
aspectos para uma melhor compreensão do Zaratustra. Um dos objetivos centrais dos
prefácios é esclarecer as bases a partir das quais foram concebidas noções decisivas
deste escrito então considerado como fundamental. Dentre essas noções, uma das mais
significativas é precisamente o dionisíaco. O modo como o autor empreende a sua
reapresentação, afastando-o de associações que possam ligá-lo originariamente tanto à
filosofia de Schopenhauer, como à concepção de obra de arte total de Wagner, é signi-
ficativo. Para isso, é-lhe necessário afastar-se destas tendências, que ele então identifica
como expressões do pessimismo romântico, da arte de efeito (Wirkungskunst) e do
cientificismo classificatório identificável por ele na filologia academicista. Esse projeto,
entretanto, como se lhe bem mostrara Bayreuth, não poderia ser levado a cabo na con-
temporaneidade unicamente por meio do restabelecimento da perspectiva artística
grega e de sua sensibilidade intrínseca. Ele necessitaria, e é isso que Nietzsche mostra
perceber com Humano, demasiado humano, ser efetivado mediante uma crítica das pró-
prias bases valorativas da cultura ocidental, que então ele identifica como decorrentes
da metafísica.
Esse é o principal ponto revisionista de Nietzsche no livro de 1878. Para ele, é a
partir da vitória hegemônica da perspectiva científica, que os valores metafísicos se
4
Aspecto que viria a se tornar central na crítica de Willamowiz Möllendorf à perspectiva filosófico-
-filológica de Nietzsche em NT (cf. Möllendorff, 2005, p. 70).
70
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
71
roberto barros
“não figura mais nas primeiras filas da ilustração” (ibid.). A partir disso, Nietzsche pode
afirmar: “No que toca ao conhecimento das verdades, o artista tem uma moralidade mais
fraca do que o pensador” (MA I/HH I § 146), pois na luta pela superior d ignidade e
importância, “não deseja abrir mão do fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para
o simbólico, a superstição da pessoa, a crença em algo miraculoso no gênio” (id.).
A precedência do conhecimento científico na modernidade e o declínio dos dogmas
religiosos, passíveis de serem constatados mesmo no luteranismo, são processos que
tornam evidente o pouco valor efetivo dado a interpretações sem fundamento, muito
embora ainda ocorra o uso daqueles como forma de justificação. Ainda que afastada,
por motivos histórico-metodológicos, do anseio por verdades metafísicas, a ciência não
logra distanciar-se suficientemente destes pressupostos de consideração, o que revela a
sua relação histórica com aspectos daquela tradição, que ela, em sua significação efetiva,
refuta como incongruentes. Isto se revela de maneira evidente para Nietzsche na justi-
ficação do conhecimento e da ciência dogmática. Essa se dá ainda por intermédio de
utilização de pressupostos cuja origem não é científica, mas determinantemente reli-
giosa e metafísica. Esse aspecto a mantém relacionada a estágios anteriores da cultura,
quando o verdadeiro conhecimento da verdade5 ainda não havia se efetivado e as formas
de glorificação da religião e da metafísica se davam por intermédio de uma justificação
similar à utilizada pelos artistas. Para Nietzsche, isso determinou o direcionamento da
arte para o domínio da inverdade, do fantasioso e do mero enaltecimento, o que pro-
duziu a sua desvalorização e descrédito (NF/FP: KSA 8, 30 [171]).
Entretanto, o desempenho desta função e a sua justificação por meio dela revela
o segundo aspecto a ser aqui abordado acerca da arte na contemporaneidade: ele traz à
luz a evidência de uma necessidade humana, que nem a metafísica nem o cientificismo
conseguem apaziguar. Nesse sentido, segundo Nietzsche, mesmo servindo a finalidades
estabelecidas por uma cultura racionalizada, a arte demonstra o valor do seu modo de
afirmação por meio do embelezamento mítico. A sua inatualidade e obsolescência
decorrem disso e não de um aspecto inerente a ela, mas pela forte influência metafísica
de sua consideração e justificação. Essa se tornou extemporânea, remetendo com isso
a arte ao âmbito das falsificações, por mobilizar crenças injustificáveis na atualidade
científica, tais como a crença na inspiração, na comunicação milagrosa de verdades e na
genialidade. Isto resulta apenas na tentativa baldada de perpetuar a importância de uma
espécie de criação, baseada no ato milagroso do gênio, o que, porém, segundo o autor,
a coloca no lado oposto da ainda fraca pretensão científica à verdade de suas figuras
(MA I/HH I § 146).
5
Portanto, o conhecimento de sua relatividade (MM II/HDH II, OS, § 7).
72
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
6
Cabe aqui indicar que para Nietzsche o termo verdade não traz consigo nenhum cunho metafí-
sico, mas sim propositivo, no sentido de que o apreço pela verdade significa o apreço pela sua
busca e não pelo desejo de sua posse (MA II/HH II § 20). Se pensada a influência do pensamento
positivista das ciências naturais neste momento da reflexão do autor, deve-se compreender também
que para ele essas são, decisivamente, formas outras de lidar com a verdade e com o conhecimento
e que com as suas pesquisas demonstram a vacuidade de posicionamentos metafísicos dogmáticos
(Marietti, 1997, p. 264). Para Nietzsche, porém, é claro que mesmo em seu tempo uma desejosa
separação entre ciência e metafísica ainda não está consumada, o que se constitui em uma das
metas de seu empenho filosófico que, ao distanciar o desejo de conhecer do desejo de posse de
verdades definitivas, vê ampliadas as possibilidades de evidenciar o aspecto interpretativo-represen
tacional da ciência, criando com isso possibilidades de uma reconsideração positiva, isenta de
condicionamentos morais, da arte na modernidade.
73
roberto barros
74
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
Conforme essa indicação, fica claro que, mesmo em Humano, demasiado humano
I, livro no qual Nietzsche se encontrava empenhado em empreender uma ampla mu-
dança nos rumos de sua reflexão, não deixa de estar presente uma importante dimensão
estética, que diretamente se relaciona aos temas centrais de seus novos direcionamentos.
Considerada a partir do grande “livramento”, a obra representava uma reconsideração
do posicionamento do autor com respeito à arte e à perspectiva trágica, aspectos se
mostram significativos para a presente abordagem, quando considerada a importância
do sentido estético da linguagem em Assim falava Zaratustra (Fink, 1983, p. 55).
Um dos primeiros posicionamentos que possibilitam compreender a mudança de
pressupostos e o distanciamento da consideração da arte em Humano, demasiado humano
com respeito à fase anterior, pode ser notado na afirmação presente no segundo a forismo
do quarto livro desta obra, intitulado “Da alma dos artistas e escritores”. Nele Nietzsche
menciona o abandono moderno da crença nas possibilidades da arte como veículo de
amadurecimento da humanidade (Vermännlichung der Menschheit)7, assim como a sua
consideração sob a ótica do esclarecimento (MA I/HH I § 147). A compreensão d esse
direcionamento pode ser feita por duas vias interpretativas: inicialmente, a partir da
alteração de perspectiva sofrida por Nietzsche após a sua já mencionada decepção com
Wagner e o wagnerianismo, o que veio a abalar a sua perspectiva inicial, de uma r efutação
da validade dos princípios norteadores da cultura ocidental através de uma restauração
da visão de mundo artístico – mítica (NF/FP KSA 8 II [25], Verão de 1875). Em se-
gundo lugar, da constatação de que, para tornar-se efetiva, a arte necessitaria de um
certo mundo e de uma certa cultura (Vattimo, 1987, p. 52) e que essas condições não
mais existiriam. Como resposta e contraposição a essa constatação, Nietzsche cria o
“Espírito livre”, com o qual ele visa a levar ao extremo a inelutável vitória da ciência e
do desejo de verdade, visando (Brusotti, 2010, p. 67), todavia, a mostrar com esse apro-
fundamento tanto a beleza, como os perigos e limitações dessa tendência. Portanto, em
7
A opção por traduzir “Vermännlichung” por amadurecimento e não por masculinização ou v irilização,
se deve a vários fatores: muito embora a raiz da palavra possa ser relacionada ao termo que pode
indicar um sentido remetido ao gênero masculino (männlich), no aforismo, o termo está r elacionado
ao artista de uma idade impúbere e por isso parece indicar algo mais amplo que os significados
primeiramente mencionados. Nesse sentido, optou-se amadurecimento, muito embora se com-
preenda a pertinência dessa última opção que, por exemplo, consta na ótima tradução de Paulo
Cesar Souza (Cf. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 147). Uma
outra justificativa à solução aqui encontrada está presente no aforismo 159 da mesma seção. Nele,
Nietzsche insiste na ideia de um atraso nas formas de manifestação artística e se refere a esse a specto
mediante os termos atraso e infantilidade (Kindheit), o que, ao nosso ver, pode referendar ainda
mais a opção de tradução aqui feita.
75
roberto barros
Esse ensinamento da arte, de ter prazer na existência e de ver a vida humana como
uma parte da natureza, sem um movimento comum violento, como objeto de um
desenvolvimento regular, – essa doutrina cresceu em nós, ela retorna à luz agora como
onipotente necessidade do conhecer (MA I/HH I § 222).
76
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
8
Eugen Fink defende a ideia de que o elogio da ciência em HH parte primeiramente da utilização
de uma psicologia destrutiva e desmascaradora, que revela os subterrâneos anseios do homem. A
ciência é então tomada positivamente como instrumento de dissipação das ilusões que por um
longo tempo se mantiveram na cultura ocidental (Fink, op.cit., pp. 49-50).
77
roberto barros
Como via para a inversão das formas tradicionais de consideração, a arte pode
então ser inserida no horizonte da ciência e ser aproximada do espírito livre, tendo em
vista as suas próprias potencialidades. Por outro lado, evidencia-se também que nem
todas as formas de arte podem prosperar, fundamentalmente a arte com pressuposições
metafísicas (MA I/HH I § 220). Desse modo, esta nova justificação estética da arte
apenas parcialmente permanece trágica9 ou romântica, do mesmo modo que apenas
parcialmente é moderna. Ela é muito mais apresentada como aliada da beleza da repre
sentação a serviço da vida, pois os pressupostos morais – e, destarte, as formas de justi
ficação – sempre se alteraram (MA I/HH I § 126). A arte de que fala Nietzsche é
aquela que possibilita a criativa libertação dos pressupostos dogmáticos e que, como
contínua reanimação e reformulação, caracteriza-se decisivamente como processo de
recriação. O sentimento de liberdade que disso decorre, renova sentimentos positivos
com relação à vida e a existência, aspectos que Nietzsche deseja integrar à busca científica.
Antes de tudo, durante milênios ela [a arte] ensinou a olhar com interesse e desejo à
vida em todas as formas e a levar nosso sentimento tão longe, até que finalmente di-
gamos: “seja como ela for, a vida, ela é boa”. Este ensinamento da arte, de ter prazer na
existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza, sem demasiado
brusca simultaneidade (Mitbewegung), como objeto de uma evolução regulada – esse
ensinamento cresceu em nós, ele chega agora à luz como a mais atual necessidade do
conhecimento. Poder-se-ia renunciar à arte, mas com isso não seriam lesadas as capa-
cidades assimiladas (gelernte) por meio dela: de modo similar, como a religião, foi
abandonada, não porém as [capacidades] obtidas por meio de elevações de s entimentos
(Gemüths-Steigerungen) e sublevações (Erhebungen). Tal como as artes plásticas e a
música são a medida da riqueza de sentimentos realmente aumentada e adquirida
através da religião, assim ocorreria com a multiplicidade e intensidade de viver plan-
tadas por elas, que exigiriam sempre satisfação. O homem científico é a continuação
do desenvolvimento (Weiterentwicklung) do homem artístico (MA I/HH I § 222).
9
Em um Fragmento póstumo de 1878, Nietzsche escreve: “Motivo de uma visão trágica do mundo:
a luta glorifica o perdedor. Os fracassados estão em maioria. O terrível comove mais fortemente.
Desejo pelo paradoxal, preferir a noite pelo dia, a morte à vida.
Tragédia (Trag<ödie>) e comédia (Kom<ödie>) dão uma caricatura da vida, não um modelo ‘Pa-
tológico’.
Goethe contra o trágico – Por que tentá-lo?
- Conciliante Natureza.” NF/FP: KSA 8, 29 [15].
78
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
79
roberto barros
[os poetas] impedem os homens até mesmo de trabalhar pela efetiva melhoria de suas
condições, na medida em que superam precisamente a paixão da insatisfação, que
impulsiona à ação, com descargas p
aliativas (MA I/HH I § 148).
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filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
(Befreier des Lebens), pois com sua atitude, ele pode desarrear, desagrilhoar e derrubar
(MA II/HH II § 172). Com isso, ele revela, novamente, funções primordiais da arte,
tais como o necessário, embelezar e tornar suportável a vida, assim como o ocultar e o
reinterpretar tudo que é feio, doloroso e horroroso que irrompe da natureza (MA I/
HH I § 174).
O grande poeta moderno é aquele que, em seu ato de comunicar algo aos outros
homens,10 imprescindivelmente retorna à atividade poética original e mediante a au-
sência de respeito à forma, remete o ouvinte para um movimento de libertação das
convenções que o cercam. É por isso que ele não pode exercer a antiga exigência feita
pelos gregos aos seus poetas, de serem mestres dos adultos, pois neste caso o artista
moderno mostra-se como um mau mestre de si mesmo, como mau poeta e m odelo,
portanto:
Nos casos mais favoráveis, como que a tímida, atraente pilha de ruínas de um templo
mas, ao mesmo tempo, uma caverna de desejos, com flores, figueiras, ervas daninhas
crescidas sobre ruínas, onde moram e visitam cobras, vermes, aranhas e pássaros – um
objeto para reflexões enlutadas acerca de por que agora o mais nobre e caro deve cres-
cer exatamente como ruína, sem o passado e o futuro do ser perfeito? (MA II/HH II
§ 172).
10
Para Young, esse aspecto demarca a espécie de poeta ao qual Nietzsche direciona o seu elogio;
não aquele voltado para vôos metafísicos (metaphysical flight), mas o que se volta para o futuro,
portanto o poeta voltado para a atualidade, apenas para a vida. O comentador indica ainda que
isso não significa que N
ietzsche caia em um naturalismo, mas sim que ele opta decisivamente
pela realidade (1992, p. 74).
81
roberto barros
11
Para Nietzsche, considerações morais são sempre pré-determinadas (NF/FP KSA 10, 4 [133]), ele
não mais aceita hipóteses acercas de ações ou avaliações desinteressadas ou não egoístas. Para ele,
juízos trazem sempre consigo a expressão das valorações morais prévias, com as quais aquele que
avalia labora. Um dos objetivos centrais de Aurora é expor esses pontos de vista.
82
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
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roberto barros
84
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
O belo, o asqueroso etc., é o juízo mais antigo. Tão logo ele p retenda a verdade abso-
luta, o juízo estético transforma-se em exigência moral.
Tão logo neguemos a verdade absoluta, devemos renunciar a todo exigir absoluto e
nos voltarmos para os juízos estéticos. Esta é a tarefa: criar uma abundância de valo-
12
Dois fragmentos póstumos, do outono de 1880, fornecem aspectos que possibilitam pensar em
uma tendência de Nietzsche em valorizar a poesia com relação à música depois de seu afastamento
de Wagner. No primeiro, ele afirma: “A música não tem mais som para o encantamento do e spírito,
ela quer reproduzir (wiedergeben) a condição do Fausto, Hamlet e Manfredo. Assim, ela mantém
afastado o espírito e pinta disposições de ânimo que são altamente desagradáveis, sem espírito ou
outra coisa que sirva para ver. Ela embrutece (vergröbert) e pinta o desconforto e o lamento, talvez
com espírito musical, porém que terrível é essa arte, quando ela pinta o feio sem critério: Que
martírio são os próprios tons, os maçantes tons” (NF/FP KSA 9, 6 [39]). Ainda nesse fragmento,
após falar da desnaturalização da música em seu tempo e da tendência dessa para o sentimento e
para os sentidos, o autor afirma com respeito à poesia: “O poeta é mais elevado que o músico, ele
eleva mais, diga-se a todos os homens, e o pensador tem ainda p retensões mais elevadas” (ibid.).
Que uma tal mudança de perspectiva está relacionada com Wagner, pode-se confirmar no frag-
mento seguinte: “Eu amei o homem. Como ele vivia. Como em uma ilha e, sem ódio, se mantinha
fechado do mundo. Assim eu entendia isso! Quão distante ele se tornou de mim, assim como ele
agora, nadando na torrente do egoísmo e da hostilidade nacional, vai ao encontro às necessidades
religiosas deste povo emburrecido pela política e pela avidez pelo dinheiro. Antes eu pensava: ele
não tinha nada com a atualidade – eu era um louco completo.” (ibid., 6 [40]). Esses fragmentos
mostram que a valoração da poesia, a forma de expressão de Zaratustra, em detrimento da música
se dá devido à frustração de Nietzsche com Wagner.
13
Segundo Maria Cristina Ferraz, a figura da Fênix tal como aparece em várias passagens dos escritos
de Nietzsche (em § 208 e 209 de MM I/HH I, EH/EH Z § 1, M/A § 568, Z/Z “Do caminho do
criador”) é frequentemente empregada pelo filósofo para caracterizar a relação entre certo tipo de
criador e sua obra, entre o artista que transpôs o seu fogo para ela e que, mesmo transformando-se
em cinzas, encontra-se feliz por vê-lo preservado em sua obra. Segundo a autora, a figura da Fênix
se relaciona ainda com o pensamento do eterno retorno e com o dionisíaco, a partir da noção de
destruição e eternização pelo fogo. Cf. Ferraz, 1994, pp. 73-80.
85
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rações estéticas com direitos iguais: para cada um indivíduo o último fato e a medida
das coisas.
Redução da moral à estética!!! (NF/FP: KSA 9, 11 [79], primavera – outono 1881).
Que Aurora – cuja arte é, todavia, a música (NF/FP: KSA 9, 12 [119], outono de
1981) –, contém a preparação para o ressurgimento da arte em A gaia ciência,14 a qual
tem como aspecto subjacente uma alteração dos valores fundada primeiramente na
decisiva negação da possibilidade de um pressuposto verdadeiro absoluto, Nietzsche
mesmo o indica em 1888, em Ecce homo, quando volta a comentar o seu livro e descreve
onde buscou a sua nova alvorada:
Um outro aspecto a ser trazido aqui à discussão, pois compõe um dado significa-
tivo para que se compreenda a nova tomada de posição de Nietzsche em A gaia ciência,
é que a transvaloração de todos os valores marca também o ressurgimento do dionisíaco
na filosofia do autor. Como ele próprio afirma, o primeiro momento da transvaloração
de valores se iniciara com O nascimento da tragédia e com a descoberta do dionisíaco
(GD/CI “O que devo aos antigos” § 5). Com respeito a esse ponto em particular, deve
ser lembrado que desde então o dionisíaco é diretamente contraposto ao socratismo e
à interpretação moral do mundo, isso em favor de uma perspectiva estética e de uma
concepção artística inovadoras.
Desse modo, o renascimento do poético anunciado em Aurora, filosoficamente
manifesto em A gaia ciência e que tem já em vista Assim falava Zaratustra, deve ser
compreendido segundo estes dois aspectos, a saber: o do projeto de transvaloração de
todos os valores – o qual em sua amplitude implica em uma mudança radical não apenas
no que se refere às formas de expressão, mas também decisivamente ao seu significado
e alcance – e com o reaparecimento da visão dionisíaca do mundo.
A inversão dos valores possibilita a reaparição positiva da arte e do dionisíaco, pois
são abolidas as antigas dicotomias de bom – mau, falso – verdadeiro, verdadeiro – apa-
rente, possibilitando assim a afirmação incondicional de tudo o que existe, aspecto
próprio daquele Deus e de sua arte. Esses mesmos traços se fazem presentes em A gaia
ciência e aparecerão decisivamente nas considerações posteriores de Nietzsche a r espeito
de Assim falava Zaratustra. Essa perspectiva estética transposta para o campo da atuação
14
Enquanto escrito, A gaia ciência foi inicialmente concebida por Nietzsche como um prosseguimento
de Aurora (Salaquarda, 1999, p. 76).
86
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
87
roberto barros
riência estética do artista com a dos demais homens. Esse caráter Nietzsche deseja
tornar comum tanto à arte quanto à ciência (NF/FP: KSA 9, 11 [23], primavera – ou-
tono de 1881).
88
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
porém, a tratar o semelhante como igual, uma inclinação ilógica – pois não há em si
nada igual –, criou primeiramente todos os fundamentos da lógica (FW/GC § 111).
Nós, que pensando e sentindo somos os que fazem realmente e sem cessar alguma
coisa que ainda não existe – todo o mundo que sempre aumenta em avaliações, cores,
pesos, perspectivas, escalas, de afirmações e de negações. (…) O que possui valor neste
mundo atual, não o possui por si mesmo, segundo sua natureza – a natureza é sempre
sem valor: – porém atribuiu-se-lhe certa feita um valor e fomos nós que os demos, nós
os presenteadores! Nós criamos o mundo que interessa ao homem! Mas esta é precisa
mente a ciência que nos falta, se a encontrarmos por um instante, a esquecemos no
seguinte; desconhecemos nossa melhor força e os contemplativos nos avaliam por
baixo – não somos nem tão orgulhosos, nem tão felizes quanto poderíamos ser (FW/
GC § 301).
89
roberto barros
Uma interpretação científica do mundo, como vós a entendeis, poderia por c onsequência
ser ainda uma das interpretações do mundo mais estúpidas, isto é, ser a mais pobre de
sentido de todas as interpretações de mundo. Isso dito ao pé de ouvido e à consciência
dos senhores mecanicistas, que atualmente gostam de transitar entre os filósofos e que
imaginam que a mecânica seria a doutrina das leis primeiras e últimas, sobre as quais,
como sobre um fundamento, toda a existência necessita ser edificada. Entretanto, um
mundo essencialmente mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sen-
tido (FW/GC § 373).
90
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
desta. A oposição estabelecida aqui entre mecanicismo e música apresenta grande sig-
nificado quando entendido que para Nietzsche a música pode ser comparada ao jogo
de forças (FW/GC § 10) e assim se converte em um símbolo de indeterminação e de
ilimitadas possibilidades de manifestação. A ciência com influências metafísicas é então
mobilizada como o antípoda da expressão artística criadora e é, desse modo, caracteri-
zada por um elevado grau de restrição. Essa referência à música indica o cerne daquilo
que Nietzsche deseja criticar na ciência. Muito embora o aforismo se refira particular-
mente à física mecânica, as críticas direcionadas a ela podem ser estendidas a toda
ciência tradicional, de pretensões finalistas, pois se trata primeiramente de uma crítica
de seu modo de considerar voltado à tentativa de estabelecer determinações absolutas,
não importando as restrições das mesmas. Por outro lado, a arte, desvinculada dessa
pretensão (FW/GC § 85), pode ser tida como outra forma de se relacionar com o
mundo e com a existência, devido a sua forma de relacionamento com ambos.
Nossa última gratidão para com a arte. – Não tivéssemos mencionado boas as artes e
inventado essa espécie de culto ao não-verdadeiro: a compreensão da universal inver-
dade e mentira (Verlogenheit), que a gora nos é dada por intermédio da ciência – a
compreensão da ilusão e do erro como uma condição do existente que conhece e
sente –, não poderia ser suportada. A probidade (Redlichkeit) teria como consequência
o nojo e o suicídio. Mas agora a nossa probidade possui um poder opositor (Gegenmacht),
que nos ajuda a mitigar tais consequências: a arte como boa vontade (guten Wille) para
com a aparência. Nós não proibimos sempre nosso olho de arredondar, de poetar até
o fim: e então não é mais a eterna incompletude que transpomos sobre o rio do
devir – então pensamos portar uma deusa e somos orgulhosos e infantis nessa serven-
tia. Como fenômeno estético a existência, ainda é sempre suportável para nós e pela
arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, a partir de nós
mesmos, podermos realizar um tal fenômeno. Temos de nos serenar temporariamen-
te, por intermédio do olhar-nos de longe, de cima e de uma distância artística, rindo
e chorando de nós; nós temos de descobrir o herói, assim como o tolo que reside em
nossa paixão do conhecimento, temos de ocasionalmente alegrar-nos com nossa tolice,
para que possamos manter alegre a nossa sabedoria! (FW/GC § 107).
Com A gaia ciência, Nietzsche rompe com qualquer pretensão de um saber defi-
nitivo. A sua nova concepção de saber une a compreensão científica da inexistência da
verdade e do perspectivismo com o experimento criador da arte para então justificar a
ambos por meio da criação e do experimento (NF/FP: KSA10, 5 [1] 214, novembro
de 1882 – Fevereiro 1883). É este movimento programático (Brusotti, 1998, p. 382)
que o leva a escrever Assim falava Zaratustra como obra filosófica, todavia escrita poe-
ticamente. Esse livro se insere no projeto de rever as tábuas valorativas sob as quais foi
91
roberto barros
erigida a cultura moderna e assim poder aspirar rever as antigas hierarquias em favor
da dinamicidade do pensamento. A perspectiva desta mudança não busca efetuar uma
condenação pura e simples da ciência e do conhecimento – do mesmo modo que não
afirma incondicionalmente toda manifestação artística – mas se empenha em fazer a
crítica da crença na infalibilidade de ambos e da necessidade da moral (FW/GC 335),
para então lhes propor uma outra forma de ver o mundo, a da arte liberta, não d ogmática,
criadora, em contraposição às aspirações fixas por definições e valorações irretorquíveis.
No que concerne a esse ponto específico, é possível então iniciar a aproximação
entre A gaia ciência e Assim falava Zaratustra. Sob o ponto de vista dos pressupostos
que Nietzsche mobiliza naquele primeiro livro, percebe-se que nele se encontra o passo
definitivo para o experimento da forma que constitui Assim falava Zaratustra. É a
partir da afirmação do caráter múltiplo das perspectivas humanas, consideradas então
já sob a ótica do sentimento de Poder (FW/GC § 13), que resulta a crítica das formas
gregárias de avaliação (ibid., §§ 23; 116) e, o que desejamos acentuar aqui, dos pressu-
postos tradicionais de consideração da comunicabilidade.
A respeito desta questão podem ser indicados os breves aforismos 179, 189 e 226
de A gaia ciência. Eles evidenciam o novo estatuto conferido por Nietzsche à linguagem
e ao estilo. Ambos não são mais r elacionados à objetividade, à veracidade ou à neutra-
lidade. Antes, eles são decisivamente considerados como formas perspectivísticas de
expressão, meios e formas observáveis das relações entre os homens e desses com o
mundo. Neles podemos ler que Nietzsche compreende não apenas a impossibilidade
da expressão total dos sentimentos pelo pensamento (GC § 179), mas também a sim-
plificação do que é expresso por este (ibid., § 189). Esses aspectos, antes de constituírem
pontos de crítica, são indicados e saudados como ampliação das possibilidades de co-
municação, pois implicam na afirmação da necessidade do exercício de criação voltado
a formas indetermináveis de comunicação. Este posicionamento também deve ser en-
tendido como esforço, com vistas a uma libertação da linguagem com respeito à meta-
física (Marietti, 1997, p. 265), o que deve, todavia, resultar em uma tentativa de lhe
conferir não apenas maiores possibilidades artísticas, mas também científicas, pois re-
mete o lidar com ela necessariamente ao exercício do experimento à criação. Esse po-
sicionamento, cujo pano de fundo é a própria percepção científica da impossibilidade
da verdade metafísica, não significa, todavia, o direcionamento a um ceticismo cientí-
fico, mas a indicação da necessidade de formas outras de justificação tanto da arte
quanto da ciência. Assim sendo, ele não significa a refutação da pretensão de cientifi-
cidade, ou do seu rigor; muito pelo contrário, significa o anúncio e o desejo de uma
forma ainda mais rigorosa de conhecimento, fundada na compreensão da atuação da
vontade de poder entre as perspectivas, que resulta decisivamente em uma atitude
92
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
Mas penso que hoje pelo menos estamos distantes da risível imodéstia de decretar, a
partir de nosso ângulo, que somente dele é permitido ter perspectivas. Mais que isso,
o mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos
rejeitar a possibilidade de que ele encerre em si infinitas interpretações. Mais uma vez
acomete o grande calafrio – mas quem teria imediatamente desejo de divinizar no
vamente este mundo monstruoso e desconhecido à maneira antiga? E então a adorar
o desconhecido como “O desconhecido”? Ah, são tantas possibilidades não divinas
93
roberto barros
Nós abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente talvez?… Não! com
o mundo verdadeiro abolimos também o mundo das aparências!
(Meio dia: momento da sombra mais curta, fim do erro mais d
emorado, ponto culmi-
nante da humanidade: Zaratustra.) (GD/CI “Mundo verdadeiro”, p. 81).
A rejeição dos mundos verdadeiro e aparente (Abel, 2010, p. 39) não se dá, por-
tanto, em favor de um princípio superior fundado na veracidade, mas afirma-se exata-
mente no espaço criado pela supressão deste pressuposto (Kaulbach, 1980, p. 167).
Nietzsche opta pela despotencialização da oposição instaurada pela metafísica, a partir
da demonstração genealógica do erro original que tal princípio constitui. É-lhe então
possível abandonar esta lógica dicotômica de consideração e optar por uma forma de
justificação baseada na força afirmativa da criação. A alegre ciência é o exercício destes
direcionamentos, do mesmo modo que o arrojo estilístico de Assim falava Zaratustra.
94
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte
O experimento estilístico desse livro tem um significado decisivo para Nietzsche não
apenas pelos seus ensinamentos,15 mas pela sua significação com respeito a toda a
tradição metafísica que o autor almeja superar. Deste último aspecto trataremos nos
tópicos seguintes. Neste momento desejamos apenas acentuar que essa mudança de
rumo potencializa novamente a arte e as possibilidades de sua força de e mbelezamento
do mundo então concebido como unidade dinâmica indeterminável, o que torna a
criação artística uma forma privilegiada de expressão desse caráter, do mesmo modo
que de sua afirmação e embelezamento.
15
Como parece tornar evidente o fato de que os dois ensinamentos fundamentais do livro, o pensa-
mento do eterno retorno do mesmo e o ensinamento do além-do-homem, desaparecerem quase que
completamente dos escritos posteriores. As referências mais significativas a ambos e mesmo com
respeito a Zaratustra dizem respeito muito mais ao esclarecimento do percurso intelectual e espi-
ritual de Nietzsche, que o levaram a feitura da obra, que a tentativa de salvaguardar e afirmar a
pertinência teórica de ambos.
95
Capítulo III
A fala poética em Assim falava Zaratustra
Na segunda parte de Assim falava Zaratustra, no discurso intitulado Dos poetas, ao ser
indagado acerca da afirmação de que “Os poetas mentem excessivamente”,1 Zaratustra
exclui-se daqueles que fazem questionamentos acerca do porquê das coisas e então
direciona o esclarecimento da pergunta a sua experiência pessoal (Erlebnis). Em s eguida,
porém, ele mesmo faz referência a si como poeta, ao mesmo tempo em que afasta de
suas palavras qualquer aspiração à verdade, então colocada como princípio de fé: “A fé
não me faz bem-aventurado”, diz ele, “sobretudo a fé em mim” (Z/Z Dos poetas).
Entretanto, segundo Zaratustra, todos os poetas têm a crença de que percebem
mais das coisas existentes entre o céu e a terra, a partir do que se vangloriam em relação
a todos os outros mortais (ibid.). Daí serem eles os produtores de um mundo apenas
sonhado, o mundo elevado dos deuses e do além-do-homem.
Ah, há tantas coisas entre o céu e a terra com que somente os poetas se deixam sonhar!
E, especialmente, acima do céu: pois todos os deuses são parábolas e apreensão de poetas!
Em verdade, algo nos leva sempre para o alto – precisamente, para o reino das nuvens:
nelas pousamos as nossas coloridas roupagens e, então chamamo-lhes deuses e além-
-dos-homens (Z/Z II Dos poetas).
Mesmo que nas palavras seguintes Zaratustra afirme estar cansado dos poetas
(Z/Z II Dos poetas), isso se dá muito mais pela vaidade (Eitelkeit) e pela s uperficialidade
dos mesmos, que por qualquer outro argumento referente ao poetar, pois nesse r epousam
ainda esperanças:
Segundo tais aspectos, pode-se compreender que, para Nietzsche, nesse m omento,
a fala poética já adquire uma outra significação e se justifica devido ao seu traço criador,
capaz de fomentar potencialidades humanas. Entretanto, o autor tenta evidenciar que
1
“Mas os poetas mentem em demasia”. Afirmação semelhante e que se refere à poesia encontra-se
em GC § 84 e, naquele momento, atribuída a Homero.
96
a fala poética em assim falava zaratustra
segundo esta nova ótica, ela jamais ultrapassa o nível de exteriorização individual daque
le que faz uso dela. A expressão poética dos pensamentos de Zaratustra não r espeita o
anseio cristão da aspiração poética universal, quer dos pré-românticos como Hölderlin,
quer da filosofia da arte de Hegel (Heise, 1988, p. 14). A opção por ela em Assim falava
Zaratustra justifica-se por ser um elogio à expressão individual daquele que se entende
como apto e acessível a esta forma de linguagem e que, desse modo, não mais aspira à
universalidade, mas motivar outras subjetividades a realizar o mesmo. Assim, é superado
o conceito de verdade e a própria filosofia é compreendida como uma forma de expressão
singular, mas que aspira aceitação por parte de outras perspectivas. Essa noção é central
em Assim falava Zaratustra e expressa todo o horizonte transvalorativo de seu autor.
Esses traços podem ser demonstrados exemplarmente em duas passagens p resentes
na terceira parte de Assim falava Zaratustra, intituladas respectivamente de Da face e do
enigma e O convalescente. Na primeira, Zaratustra encontra-se em um barco e abandona
a ilha dos bem aventurados e a seus amigos. Nesse barco, motivado a falar, ele narra o
seu encontro com o espírito de gravidade (Geist der Schwere), que, meio anão, meio
toupeira, anuncia a queda de tudo o que fora lançado para o alto, nisso incluso o próprio
Zaratustra. Provocado pela repetição desta máxima proferida pelo anão, que tenta afirmar
a falta de sentido de toda busca por elevação, Zaratustra pronuncia o seu ensinamento
fundamental, o pensamento do retornar cíclico de todas as coisas que, porém, não é
desconhecido do seu adversário, que isso demonstra ao mencionar a mentira de toda
retidão, assim como a tortuosidade de toda verdade (Alle gerade lügt... Alle Wahrheit ist
krumm. Z/Z III Da face e do enigma § 2). Mas entre Zaratustra e o anão há uma dife-
rença decisiva: Zaratustra não se limita a simplesmente mencionar a circularidade de
tudo, como faz o seu opositor, ele a afirma. Isso torna o pensamento intolerável para o
seu adversário e o faz desaparecer, pois ele pode suportar ideia da circularidade, mas
não a sua aceitação, que significa a aquiescência também do declínio mencionado pelo
espírito de gravidade (Salaquarda, 1979, p. 33). Um aspecto tão relevante nessa p assagem
quanto o anúncio e a afirmação do pensamento do eterno retornar de todas as coisas é
a relutância de Zaratustra em pronunciá-lo. Ele menciona aos ouvintes o temor que
tinha de seus próprios pensamentos: “Assim eu falava, cada vez mais baixo, pois tinha
receio de meus próprios pensamentos e das intenções por detrás deles (Hintergedanken)”
(ibid.). O mesmo temor é demonstrado por Zaratustra na seção O covalescente. Nesta,
Zaratustra, após um tumultuado despertar, fala consigo mesmo: “levanta-te de meu
imo, pensamento abissal! Eu sou o teu galo e o teu alvorecer, verme dorminhoco! De
pé, de pé! A minha voz deve acordar-te!”
O pensamento abissal de Zaratustra é o pensamento do eterno retorno do mesmo,
que ele insta a falar do abismo mais profundo do seu eu (Z/Z III O convalescente § 1).
97
roberto barros
Esse, com efeito, consiste em uma das mais significativas fontes para a compreensão do
ensinamento em seu sentido individual. A esse respeito, a cena inicial, que descreve o
levantar de Zaratustra, é esclarecedora, devido a vários aspectos: Zaratustra é aquele
que com o seu canto desperta o seu próprio pensamento mais profundo, aquele que é,
em última análise, ele mesmo (Heidegger, 1997, p. 102), pois já está separado de toda
outra possibilidade de recurso à autoridade exterior a si mesmo. E assim lemos na
passagem seguinte:
Então bem sabem os teus animais, ó Zaratustra, quem és e quem necessitas te tornar: Tu
és o mestre do eterno retorno – este, agora, é o teu destino (Z/Z III O convalescente § 2).
98
a fala poética em assim falava zaratustra
homem (Der grosse Überdruss am Menschen), suscitado pelo retornar do pequeno homem
(Z/Z III O convalescente § 2), e isso é feito a partir dos ensinamentos do eterno retorno
e do além-do-homem, entendidos como convicções advindas do seu meio-dia, m omento
no qual os princípios de elevação do homem encontram-se com ele em maior simetria.
Mas como indicado no prólogo, o grande astro necessita dos homens como fonte de
significação. São esses que o v eneram. Por esse motivo, os ensinamentos de Zaratustra
permanecem criações do seu interior, ao qual ele se encontra restrito, o que não lhes
constitui argumento contrário, do mesmo modo que não o impede de querer transmi-
ti-los. A validade dos mesmos se justifica no desejo e nos perigos de sua exteriorização,
que se manifesta após a invenção do consolo do c anto, que, segundo os animais, possi-
bilita a Zaratustra carregar o seu grande e particular destino.
Se considerada, como veremos posteriormente, a relação intrínseca entre o ensina-
mento do além-do-homem e o ensinamento do eterno retorno (Abel, 1988, p. 190), en-
quanto criações do próprio Zaratustra, como produtos de sua inclinação artística indi-
cada na passagem anterior, pode-se compreendê-los como consolo ante a sua enfermi-
dade, causada pelo seu confronto com o seu próprio destino. Então a afirmação: “Para
mim – como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior” (Z/Z O convalescente §
2), associada à ideia de que com os nomes e sons os homens apenas dançam sobre as
coisas, ou ainda, de que a fala pode ser associada à mentira dos tons, impossibilita de
imediato a hipótese de Zaratustra proferir seus ensinamentos mediante o pressuposto
de uma verdade objetiva,2 passível de ser rigorosamente transmissível aos outros homens.
É o cansaço suscitado pela perpetuação da pequenez humana que faz com que
Zaratustra tenha de se confrontar com a responsabilidade do seu próprio destino e com
sua enfermidade. Se ele a supera com as suas canções, é porque ele já se livrou do
monstro moral que lhe penetrara na goela, sufocando-o.3 Esse é responsável por toda
2
No discurso intitulado Das moscas da feira, Zaratustra afirma: “Não invejes esses homens absolutos
e apressadores, ó amante da verdade! Nunca, até aqui, andou a verdade de braço dado com qualquer
ser absoluto” (Z/Z I).
3
Esta cena, não com Zaratustra como protagonista, mas com um pastor, encontra-se também na
terceira parte da obra, na passagem intitulada Da visão e do enigma. Nela após Zaratustra ter sido
perturbado pelo espírito de gravidade, confronta-se com ele proferindo, ainda timidamente, o seu
pensamento abissal. A exposição do ensinamento é interrompida por uivos, que Zaratustra pensa
serem eles de um cão; trata-se porém de ganidos de um homem, de um jovem pastor sufocado e
convulso devido a uma negra cobra que se lhe agarrara à garganta. Após tentar puxar a cobra, sem
conseguir, Zaratustra grita ao jovem que ele morda a cabeça do animal e a decepe. Ele, de quem a
identidade é o enigma, o faz, após o que levanta-se imediatamente, não mais um pastor, porém
como um homem que ri um riso que, segundo Zaratustra, nunca se extinguirá. Esta cena mostra
claramente a superação da moral, do espírito de gravidade e as novas possibilidades que se abrem
para a vida humana com a extirpação da moral que sufoca os homens; dai as palavras finais de
Zaratustra: “Meu anseio por esse riso me devora: oh, como posso, ainda, suportar viver! E como,
agora, suportaria morrer!” (Z/Z III, p. 202).
99
roberto barros
ideia do absoluto, cuja supressão gera a vacuidade do incondicional. É com as suas can-
ções e poetar que Zaratustra suporta desde então o peso de seu destino e pode aspirar
pelo futuro e pelo além-do-homem. Nas palavras de Zaratustra:
Eu caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro, daquele futuro que
eu vejo.
E isso é toda a minha poesia e aspiração: que eu junte e componha em unidade o que
é fragmento e enigma e horrendo acaso.
E como suportaria eu ser homem, se o não fosse também, poeta e decifrador de enigmas
e redentor do acaso! (Z/Z II Da redenção).
4
Acerca desse tema, que não pode ser desenvolvido aqui por questões textuais, devem ser feitas três
referências significativas. O artigo de Jörg Salaquarda, publicado em 1978 no volume 7 dos N
ietzsche
Studien, intitulado Nietsche und Lange, o livro de George L. Stack, Nietzsche and Lange (De G
ruyter,
1983) e, no Brasil, a premiada tese de doutorado do Prof. Rogério Lopes (UFMG), intitulada
Naturalização do transcendental, defendida em 2008.
100
a fala poética em assim falava zaratustra
2006, p. 78). Isso o leva, com respeito à física, a afastar-se do pressuposto da estabilidade
substancial, que ele interpreta como conceito oriundo da metafísica, assim como das
ideias de linearidade, de determinação e de antropomorfização da natureza. A mobili-
zação de pressupostos das ciências naturais em oposição à reflexão metafísica finda por
fornecer-lhe pressupostos para criticar posições defendidas por filósofos de grande
renome na época – Caspari, Hartmann e Düring – devido a insustentabilidade científica,
em sua visão, de suas posições. A insistência dos filósofos neste modelo de pensamento
lhe evidencia o horizonte de significação moral e perspectivística das ciências (ibid., p. 94).
Todavia, a relação de Nietzsche no que se refere a elas permanece crítica. Mesmo com
a mobilização de resultados da investigação científica ele permanece cético no que
tange à possibilidade de dados definitivos e inalteráveis referentes às suas descobertas.
Os dados científicos que mobilizam o seu interesse se referem prioritariamente à b usca
de argumentos demonstráveis com vistas a evidenciar a própria temporalidade dos
resultados e das perspectivas científicas. Em consonância com o movimento de t ransição
do problema da relação sujeito-objeto para o da relação objeto-conceito, própria do
século XIX (Rehinberger, 2007, p. 11), Nietzsche aproxima a ciência da história com
vistas a se afastar de qualquer essencialização da primeira (Marietti, 1997, p. 263). Sua
abordagem direciona-se marcadamente ao problema da conceituação, da origem de
nossas referências com respeito ao mundo e essa abordagem o leva a um sentido outro
que o da filosofia idealista alemã. O seu objetivo não é mais descrever um suposto pro
cesso de objetivação do pensamento, que para a filosofia racionalista é tomado como
evidente. Ele busca demonstrar a construção e a dimensão histórica dos princípios nos
quais essa pressuposição se baseia. Todavia, o pensar histórico em Nietzsche não se
associa com qualquer forma de teleologia ou de processualismo, mas com ele o autor
visa desconstruir valorativamente toda forma de dogmatismo por meio da evidenciação
de sua proeminência histórica. Um importante instrumento de implementação desse
empreendimento – que apenas de modo superficial poderia ser tratado aqui – é a análise
psicológica baseada na noção de estímulo (Reiz), bastante presente no horizonte do
neokantismo alemão da segunda metade do século XIX (Lambert, 2000, p. 23) e que
possibilita evidenciar o processo interno, não imediatamente autoconsciente, de constru
ção de nossas representações do mundo e mesmo da linguagem (MM I/ HDH I § 11).
Esse direcionamento apresenta consequências decisivas no que se refere ao con-
teúdo e à forma de comunicação do pensamento do eterno retorno nos escritos de
Nietzsche. Ele esclarece a forma comedida com que o mesmo é anunciado nos escritos
publicados. Por seu intermédio deve-se compreender a própria tentativa de Nietzsche
de buscar argumentos científicos de justificação ao pensamento do retornar de todas as
coisas. Essa tentativa se baseia fundamentalmente em encontrar argumentos sólidos na
101
roberto barros
102
a fala poética em assim falava zaratustra
Esta aproximação, porém, não ocorre por paridade de pressupostos, mas por similari-
dades artísticas, o que significa semelhanças estéticas. A história monumental encontra
a sua justificação, a sua causae e o seu e ffectus, na produção do “exemplar e no digno de
ser imitado” (vorbildlich und nachahmungswürdig) (HL/HL § 2), como forma sugestiva
de afirmação vital, precisamente naquilo cujas possibilidades Nietzsche antevê priori-
tariamente na arte. A história monumental, apologética e relacionada ao épico e ao
renascimento da arte, anunciada mediante a metáfora da fênix grega, aproxima os en-
sinamentos de Zaratustra ao dos gregos pré-socráticos, todavia não decisivamente dos
filósofos, mas dos artístas (Cancik, 2000, p. 109-112), daqueles que não conheceram e
não necessitaram da verdade enquanto fundamento. Esta proximidade remete a um
aspecto não menos decisivo: tanto a história monumental, quanto a poesia e a tragédia
gregas se baseiam na transmissão de princípios cuja assimilação é individual (Collins,
1997, p. 293). Elas se caracterizam não por transmitir modelos ou princípios morais
absolutos ou isentos de contradições – como Platão acentua em sua crítica à poesia
homérica em A república. O seu fundamento é a geração de uma experiência de criação
de representações de mundo que Nietzsche identifica como estético-fisiológica e que
é inerente à arte. O alvo da arte grega e da história monumental, do mesmo modo que
dos ensinamentos de Zaratustra, não é a humanidade quantitativa, mas o homem jus-
tificado pela individualidade afirmativo-criadora.
O pensamento do eterno retorno adquire com isso uma pluralidade de contextua-
lizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais, estéticas, cos-
mológicas, mas também evidencia uma experiência física redutível ao indivíduo. Se lhe
cogitarmos um conteúdo ético atinente ao seu sentido cosmológico,5 precisamos tam-
bém compreender, como anteriormente mencionado, que na filosofia de Nietzsche,
pensada a partir do princípio teórico da vontade de poder, universalismos são interpre-
tados como fundamentalmente perspectivos (Fleischer, M., 1993, p. 35), ou seja, como
manifestações pulsionais direcionadas à sintetização de verdades, mas não com a pres-
suposição da possibilidade de que essas possam se constituir em princípios universais
incondicionados (Abel, 1998, p. 189). O caráter fisiológico do pensar em Nietzsche
pode ser mobilizado para aproximar os diferentes sentidos que o eterno retorno a glutina,
pois é por meio dele que Nietzsche problematiza e nega a possibilidade de fixação da
verdade, ao demonstrá-la como necessidade orgânica (FW/GC § 111). A inclinação
humana à ciência apenas pode ser interpretada como uma necessidade natural, se a
verdade for compreendida como metáfora, como necessidade fisiológica (Moore, 2002,
p. 74), e que por esse motivo deve ser apartada de toda conotação metafísica. O mesmo
5
Muito embora não podendo restringi-los a esses aspectos. Conf. Marton, 2000, p. 93.
103
roberto barros
vale para as pretensões morais e cosmológicas, sem que isso porém signifique recair em
um pessimismo cético, pois a ausência da verdade não é mais um problema a ser supe-
rado e, por conseguinte, a afirmação da inexistência da verdade metafísica não implica
na contradição da inverdade de sua afirmação. É neste sentido que parece poder ser
compreendido o caráter e a pretensão de demonstração científica do eterno retornar de
todas as coisas. Em Nietzsche, o perspectivismo parece seguir os mesmos caminhos da
física de seu tempo, que, porém, tende não à verdade ou à fixidez, mas ao experimen-
talismo, sendo este decisivamente não dogmático ou metafísico. Antes, a sua forma de
justificação baseia-se na ideia de uma grande possibilidade de perspectivas sustentáveis,
ao que Nietzsche acrescenta o pressuposto de um incessante conflito entre elas. A for
ma de exposição de pressupostos do pensamento passa então a não ser decisiva para a
aceitação ou não daquilo que se deseja comunicar, a partir do ponto de vista de sua li-
berdade criativa frente a delimitações morais. Isso leva o postulado da liberdade criativa
do pensamento não à verdade científica em sentido clássico, mas ao experimento a rtístico
como forma de convencimento (Marton, 2000, p. 109), porém com irrealizáveis preten
sões hegemônicas. O traço não universalizante do pensamento do eterno retornar de
todas as coisas se a presenta significativamente presente em Ecce homo e nos prefácios
de 1886, cuja finalidade era fornecer esclarecimentos sobre o significado filosófico, mas
também existencial da obra do autor, assim como fazer entender os sentidos dos ensina
mentos de Zaratustra. A partir destas possibilidades interpretativas – relacionadas tanto
à oposição à metafísica e a sua teleologia, quanto ao experimento estilístico entendido
como símbolo de liberdade ante as formas históricas de cerceamento do pensamento e
de sua expressão que ele identifica na tradição filosófica ocidental – d esejamos aqui
indicar dois aspectos associados e imprescindíveis aos direcionamentos temáticos pro-
postos: a) A significação do estilo e da forma de anúncio do pensamento do eterno
retorno em obras publicadas e, b) o caráter individual da justificação estilística em
Nietzsche, permitida pela negação da possibilidade de uma verdade peremptória. Por
meio deles tenciona-se evidenciar a importância do experimento filosófico-estético em
Assim falava Zaratustra (Loeb, 2013, p. 926), compreendido enquanto produto da ade-
quação de pressupostos artísticos à filosofia (Kaulbach. 1980, p. 270).
Partindo das indicações de Nietzsche em Ecce homo encontramos importantes
indicativos acerca da história de seu Zaratustra que se mostram com particular riqueza
de conteúdo, no que diz respeito à compreensão estilística de seus direcionamentos.
Quando o autor indica que fora na primavera de 1881 que lhe ocorreu a ideia do e terno
retorno do mesmo, a tese fundamental de Zaratustra, ele se refere a um r enascimento
da arte de ouvir e que, por esse motivo, dever-se-ia considerar Assim falava Zaratustra
como uma obra musical (EH/EH Zaratustra § 1).
104
a fala poética em assim falava zaratustra
6
Mesmo que não concordemos aqui com a perspectiva de uma sistematicidade da filosofia de
Nietzsche defendida por Löwith (1986, p. 17), o autor não deixa de indicar com pertinência o
aspecto importante de que o que o filósofo combatia nos sistemas filosóficos não era a unidade
metodológica que motiva a vontade fundamental de conhecer, mas sim que o que é renegado no
pensar sistemático é a sua clausura dogmática em um mundo simulado. (dogmatisch fixiert und
“verklausulierte” Welt).
105
roberto barros
como objeção contra a vida: ‘se já não tens alegria para me dar, pois bem! tens ainda a
tua dor’”.7
O renascimento do trágico, assim considerado, parece decorrer do afastamento do
otimismo teórico da filosofia metafísica e da própria ciência, o que remete Nietzsche à
compreensão da indeterminação das coisas e nele redunda na aceitação do sofrimento,
e na sua anexação à vida, aspecto que exprimem a sua experiência naquele momento
(EH/EH Zaratustra § 5). A continuidade do relato inclui a descrição de alguns mo-
mentos da vida do autor e de aspectos relativos ao surgimento de suas obras. É a partir
disso que o filósofo afirma ter surgido o primeiro Zaratustra, o personagem como tipo
(Typus), cujo entendimento tem como pressuposto fundamental, a condição fisiológica
da “grande saúde” (grosse Gesundheit). A compreensão dessa noção como traço pessoal,
remete a um dos últimos trechos do quinto livro de Gaia ciência (ibid., § 2); com efeito,
diz o referido texto integralmente citado pelo autor:
106
a fala poética em assim falava zaratustra
8
O que pode ser constatado nos versos de Zaratustra: “traço em volta de mim, círculos e fronteiras
sagradas; vai diminuindo sempre o número dos que sobem comigo aos altos cumes, onde seduz
montanha cada vez mais alta, de cumeadas mais e mais inacessíveis” (EH/EH Zaratustra § 6).
107
roberto barros
poder, que se faz presente nos apontamentos do período que antecede a primeira publi
cação de A gaia ciência, mas é definitivamente mencionada no décimo terceiro aforismo
deste mesmo livro e constitui assim um importante pressuposto à compreensão das
pretensões de Assim falava Zaratustra.9
A pesquisa desenvolvida por Wolfgang Müller-Lauter acerca da doutrina da von-
tade de poder chega à constatação de que ao pensar o mundo segundo essa concepção,
Nietzsche o concebia como uma dissensão de vontades conflitantes, tendo por única
finalidade o aumento do âmbito de atuação de sua força. Desse modo, para Müller-
-Lauter, a vontade não teria outra finalidade a não ser a ampliação do alcance e da
imposição de seu poder, tornando a existência sem nenhuma outra finalidade que não
essa, o que revela o traço de mobilidade e indeterminação do mundo:
O mundo de que fala Nietzsche revela-se como jogo e rivalidade de forças ou de von
tades de poder. Se ponderarmos, de início, que essas aglomerações de quanta de poder
ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades conti-
nuamente mutáveis, não porém da unidade (Müller-Lauter, 1997, p. 75).
9
Gerdhardt, Volker. Da vontade de poder. Para a gênese e interpretação da fi losofia do poder em
Nietzsche, In: Frederico Nietzsche. Cem anos após o projeto “vontade de poder – transmutação de
todos os valores”, Org. de Antônio Marques. Lisboa: Vega, 2012, p. 13.
108
a fala poética em assim falava zaratustra
partir do fim do p rincípio de verdade, e a do amor fati (ibid., § 276), enquanto amor
pela vida tragicamente pensada, em todas as suas consequências.
Esse novo horizonte pensado segundo o princípio da vontade de poder implica a
aceitação da verdade da existência de mundos perspectivos e antagônicos (Müller-Lauter,
p. 11), aos quais estão limitados todos os quanta de poder; concepção que torna insus-
tentável a aspiração por um princípio doutrinal universal, ou mesmo a possibilidade de
comunicação integral de algo.
Compreendei finalmente o que em verdade sois! Deus está morto, combatei também
então a sua sombra! As tábuas de valores que até aqui elevastes sobre vós não tem
10
A indicação da relação entre as noções de individualidade e vontade de poder pode ser lida no
fragmento do outono de 1887: “O individualismo é uma modesta e ainda inconsciente espécie de
‘vontade de poder’; aqui mostra-se o suficiente do indivíduo: para se livrar (freizukommen) da pre-
dominância da sociedade (seja essa do Estado ou da igreja…), ele se coloca não como pessoa em
oposição, porém claramente como indivíduo (Einzelner); ele representa toda particularidade
(Einzelnen) contra a coletividade (Gesammtheit). Isso significa que ele se coloca instintivamente como
igual a de todos os particulares. O que ele combate, combate não como pessoa (Person), porém como
indivíduo (Einzelner) contra a coletividade” (NF/FP: KSA 12, 10 [82] (202), outono de 1887).
109
roberto barros
nenhuma validade! Não nos deixeis determinar por esses valores, determinais vós mes-
mos os valores! Transvalorai os valores antigos; a partir de vossa autocompreensão como
querer-poder, criai novos valores (ibid., p. 135).
110
a fala poética em assim falava zaratustra
13
Acerca do que escreve Fink: “Ora, essa construção apriorística, ‘a compreensão ontológica’, é um
ser coisal, que nós pensamos graças às categorias, aos conceitos do entendimento – não tem ne-
nhuma ‘validade objetiva’, é a mentira de uma pressuposição fundamental pertencente à razão
humana. O único real é exclusivamente o vir-a-ser – não um vir a ser de um ente já aí, que se
modificaria, mas um puro vir-a-ser, um escoamento e um fluxo incessante, um movimento sem fim,
essa ‘vida’ jorrando do mundo, que está presente por toda parte, que produz tudo e a tudo aniquila”
(1972, p. 178).
111
roberto barros
Ele contradiz com cada palavra, as maiores afirmações do espírito; nele, todas as con-
tradições se conciliam em uma nova unidade. As mais elevadas e as mais baixas forças
da natureza humana, o que há de mais doce, de mais tênue, o que há de mais terrível,
manam de uma fonte com imortal segurança (EH/EH Z/Z § 6).
14
A presença dessa oposição na filosofia de Nietzsche é indicada por Heidegger (2000, p. 36), ao
afirmar que desde o início da metafísica ocidental o Ser é tomado no sentido da estabilidade.
112
a fala poética em assim falava zaratustra
como a mais alta realidade, que coloca abaixo de si tudo o que até então se chamou
grande (ibid.).
Esse, escreve Nietzsche, é o próprio conceito de Dionísio (ibid.), que remete à
consideração do problema psicológico do tipo Zaratustra:
Como aquele que em um grau inaudito diz não, que nega tudo para o que até então
se disse sim. Todavia pode ser a oposição a um espírito de negação, como aquele que
é o mais pesado, o do destino. Uma fatalidade na tarefa de espíritos carregados e, entre
tanto, o que pode ser o mais leve e afastado – Zaratustra é um dançarino -: Como
aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade (Realität) (ibid., Z/Z § 6).
113
roberto barros
pleno do mundo não pode ser avaliado, não se trata de negar a capacidade do homem de avaliar o
valor do mundo, mas que tal conceito de valor é totalmente incompreensível. Buscar um valor
total do mundo, continua o filósofo, significaria condicionar o incondicionado ao condicionado, o
que marcaria na filosofia de Nietzsche a constatação da incompreensão metafísica de que o caráter
do mundo é o do eterno devir e que portanto o existente em sua totalidade não tem nenhum valor.
16
Ou com o resultado ao qual chegaram esses valores, trata-se do Niilismo, ou seja, o resultado final
do desejo de verdade acerca do existente, que resulta na própria destruição da veracidade (Müller-
-Lauter, 1971, p. 116.) e, portanto, no desmascaramento da crença no verdadeiro mundo, o que
resulta na compreensão do Niilismo como consequência da moral e conduz à sua superação, através
da aceitação do pensamento do eterno retorno (Kaulbach, 1985, p. 33).
17
Marton escreve a este respeito: “Com o eterno retorno, Nietzsche desautoriza as filosofias que
supõem uma teleologia objetiva governando a existência, desabona as teorias científicas que presu-
114
a fala poética em assim falava zaratustra
O mundo das forças não sofre nenhuma diminuição: pois, antes, ele teria se tornado
fraco e morreria no tempo infinito. O mundo das forças não sofre nenhuma p
aralisação:
pois ela teria sido alcançada antes, e o relógio da existência alcançaria momentos de
calma. O mundo das forças não chega nunca a um equilíbrio, ele não tem nunca um
momento de calma, sua força e seu movimento são igualmente grandes em cada t empo.
Quais estados esse mundo também pode apenas alcançar, ele necessita o ter alcançado
não apenas uma vez, mas incontáveis vezes. Assim, esse momento: ele já foi uma vez
e muitas vezes retornará do mesmo modo, toda força se difunde desse modo, como
agora: e do mesmo modo o coloca com o momento, desse dar à luz, que é a criança do
agora. Homem! Toda a tua vida será como uma ampulheta, será sempre invertida e
sempre voltará a correr – um grande minuto de tempo, até todas as condições, das quais
tu tornaste, no correr circular do mundo, novamente se encontram. Então encontras
cada dor e cada desejo, cada amigo e cada inimigo, cada esperança e cada erro, cada
vergôntea e cada vista do sol novamente, a plena conexão de todas as coisas. Esse anel,
do qual tu és um grão, resplandece sempre novamente. E em cada anel da existência
humana (Menschen-Daseins) em geral, há sempre uma hora onde um, então muitos,
então todos os mais poderosos pensamentos emergem, do eterno retornar de todas as
coisas – isto é, dentre todas as vezes para a humanidade, a hora do meio dia (FP: 9 II
[148]. Primavera – outono de 1881).
Desse modo, o ensinamento do eterno retorno pode ser c onsiderado como uma
forma de percepção da existência, que mesmo interpretada sob uma ótica positiva,
parece muito mais plausível que as teleologias racionalistas. Com ele, Nietzsche visa
definitivamente a possibilitar a aceitação dessa, compreendida no interior de um jogo
mem um estado final para o mundo, desacredita as religiões que acenam com futuras recompensas
e punições. Recusa a metafísica e o mundo suprassensível, rejeita o mecanicismo e a entropia, repele
o cristianismo e a vida após a morte” (2000, pp. 25-6).
115
roberto barros
18
Em um fragmento de 1881, Nietzsche escreve: “o pequeno momento infinito é a alta realidade e a
verdade, um quadro relâmpago do eterno fluir. Assim se aprende como todo conhecimento sabo-
reado repousa sobre o erro grosseiro da espécie, o refinado erro do indivíduo, e o mais fino equívoco
dos criadores de momentos”... (NF/FP: KSA 9, II [I56], Primavera – outono de 1881).
19
Ao pensar o eterno retorno do mesmo, Löwith (1986, pp. 32-3) indica a significação da libertação
da vontade dos esquemas tradicionais de interpretação do mundo e de sua moral inerente. Indica
ainda a relação entre os espíritos tornados livres em HDH, aqueles que então iniciam o questio-
namento dos valores e concepções comuns e passam a perguntar pelo fundamento, até a vontade
tornada livre querer, em oposição ao dever imposto pela moral. Segundo o autor, essa noção que
será expressa na filosofia posterior de Nietzsche pela figura dos s enhores da terra tem como pres-
suposto tanto a constatação da morte de Deus, como a superação do Niilismo dela proveniente,
pela compreensão da necessidade do eterno retornar das coisas, como também da ideia de uma
supra-humanidade futura.
116
a fala poética em assim falava zaratustra
117
roberto barros
essencial e acidental, que poderiam ser remetidas a uma concepção definitiva de v erdade.
O pensamento do eterno retorno pode com isso ser baseado no pressuposto da a firmação
da existência em sua totalidade. Disso decorre a valorização da ideia de originalidade
desejosa de perpetuar-se no tempo cíclico, que Nietzsche menciona com respeito a si
mesmo e que o m otiva a justificar todo exteriorizar-se como manifestação afirmativa e
ampliação das possibilidades de criação. A justificação do pensamento passa a ser fun-
dada na força de sua ação criativa, pensada no âmbito pleno das demais singularidades
que então adquire como critério o seu grau de afirmação.
Tal interpretação encontra justificativa na constatação da morte de Deus, a partir
da indicação do fim da crença na efetiva validade dos valores da moral judaico-cristã,
anunciado no aforismo 125 de A gaia c iência e que nos cadernos de Nietzsche se rela-
ciona com a problemática da ascensão do niilismo enquanto direcionamento da von-
tade para o nada, que para Löwith significa a última forma de possibilidade do querer
(Löwith, 1986, p. 40).
A constatação do niilismo presente no horizonte da cultura o cidental decorre da
percepção da morte de Deus e do esgotamento da validade dos valores da tradição
metafísica e judaico-cristã (NF/FP: KSA 13, [6], maio – junho de 1887). A contrapo-
sição a ele se dá em Nietzsche a partir da negação da existência da verdade e, a partir
disso, do critério de necessidade atribuído a ela. Com isso ele almeja mostrar como
desnecessário o pessimismo decorrente do seu não alcance e, em consequência remeter
o homem ao “deserto de sua liberdade” (Wüste seiner Freiheit), pois esse é o primeiro
movimento do Eu liberto do dever moral e voltado para o absoluto querer (Ich will) do
homem.21 Mas niilismo também significa desconfiança em relação ao sentido da exis-
tência (Kaulbach, 1985, p. 38), causada pela crise dos antigos valores e metas, portanto
pela ausência de um consolo para os desafios do existir. Em Nietzsche, a constatação
do niilismo enquanto consequência da autodissolução da moral, ou seja, do e sgotamento
da possibilidade de validade dos valores morais fundados em uma verdade estável – a
partir da sua própria ideia de veracidade22 – recoloca, todavia, a existência humana em
primeiro plano e exige a sua eterna perpetuação (Löwith, 1986, p. 44). O pensamento
do eterno retorno do mesmo é o resultado dessa vontade, do desejo de afirmar e j ustificar
a eternidade do mundo e isso significa imediatamente o afastamento de toda moral
que, segundo a interpretação de Nietzsche, sempre o desmereceu.23 Ele implica a ne-
21
Ou segundo Kaulbach, da autarquia da razão perspectiva (1985, p. 33).
22
ibid., p. 36.
23
“isso não se relaciona de modo algum com o melhor ou o pior mundo: Não ou sim, essa é a ques-
tão aqui. O instinto niilista diz não: sua mais suave alegação é que não ser é melhor que ser, que a
vontade de nada tem mais valor que a vontade de viver, seu aspecto mais rigoroso é que, se o nada
é sobremodo mais desejável, esta vida em oposição é absolutamente sem valor – será rejeitada” (FP.
118
a fala poética em assim falava zaratustra
119
roberto barros
Nietzsche como momento decisivo que, segundo Kaulbach, coloca o homem d iante de
duas possibilidades: ou deixar-se dominar pela ausência de sentido e perder-se na re-
signação ou então tomar uma posição para si mesmo e se fazer livre e independente do
sentido do Ser, passando a compreender a necessidade de criar o seu próprio sentido
(Kaulbach, 1985, p. 39).
Em Nietzsche este apelo à criação significa também a valorização da e xteriorização
individual como perspectiva antidogmática. Disso decorrem as suas experiências com o
estilo e com a linguagem, pois a crítica da moral se efetiva também como crítica à assi-
milação ôntica dos padrões linguísticos, ao compreendê-los como instrumento de
transmissão da noção de fundamento e, portanto, de verdade (MA II/HH II, O andarilho
e sua sombra § 11). Em um mundo concebido como vontade de poder, ou seja, como
fluxo incessante e indeterminável de forças com suas respectivas perspectivas, a própria
linguagem precisa ser redimencionada para ser veículo dessa nova percepção do mundo,
que não é mais a verdade acerca dele, mas o exercício experimental de exteriorização da
individualidade (BM § 43 e § 292), que se expressa no âmbito das demais s ingularidades.
Daí decorre que, nos escritos publicados, o pensamento do eterno retorno do m esmo
é anunciado de modo cuidadoso, como experimento, que pressupõe não a afetividade do
retornar de todas as coisas, mas de como o indivíduo se comporta diante dessa possibi-
lidade (Figal, 2008, p. 57). O aforismo 341, no fim do quarto livro de A gaia ciência,
deixa bastante evidente esse aspecto. O retornar é mencionado como pensamento e
questiona a respeito da reação do leitor diante do furtivo e demoníaco anúncio:
Esta vida, como você a vive neste momento e já viveu, você necessitará viver mais uma
vez e por incontáveis vezes; e não haverá nada de novo nela, mas cada dor e cada prazer
e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é indizivelmente grande e pequeno em sua
vida, terão de lhe retornar, tudo na mesma sequência e encadeamento – e assim também
essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A eterna
ampulheta do existir será sempre virada novamente e você com ela, partícula de poeira!
120
a fala poética em assim falava zaratustra
Esta nova forma de considerar a filosofia requer também novas formas de e xpressão
que não mais estejam imiscuídas das pressuposições morais da tradição e que se pautem
121
roberto barros
122
a fala poética em assim falava zaratustra
ciência. b) O segundo aspecto, que se relaciona a este primeiro, funda-se em uma consi
deração do movimento interno das concepções no pensamento de Nietzsche que, no
que se refere ao ensinamento do eterno retorno, pressupõe, por parte do leitor a com-
preensão – a partir de sua proximidade instintiva e fisiológica com o autor – do c onteúdo
do ensinamento e de sua forma de exposição, para o que a noção do dionisíaco consiste
em exigência fundamental.
Com respeito ao primeiro aspecto, podemos considerar a anotação de Heidegger,
que a primeira referência acerca do ensinamento do eterno retorno se dá em Aurora, na
sentença de Rigveda: “Há ainda muitas auroras que ainda não luziram” e que esta
menção altera a intenção inicial de Nietzsche de fazer silêncio a respeito de sua con-
cepção por dez anos (Heidegger, 1989, p. 234). A partir deste dado pode-se ponderar
que o autor não possuía ainda total clareza a respeito do modo de apresentação de sua
concepção, traço que pode ser confirmando por meio da consideração de duas passagens
da correspondência do autor no período da visão de Surlei. Em uma carta de 14 de
agosto de 1881, endereçada a Heinrich Köselitz de Sils-Maria, Nietzsche escreve:
Em meu horizonte surgiram pensamentos, tais como eu ainda não vira antes. Nada
quero falar sobre isso e conservar a mim mesmo em uma tranquilidade imperturbável.
Eu deverei viver ainda alguns anos! (…) As intensidades dos meus sentimentos me
fazem estremecer e rir – já não pude deixar algumas vezes o quarto, por motivos v isíveis,
os meus olhos estavam inchados – por quê? Nos dias anteriores, durante os meus
passeios, chorei muito, mas não eram, de fato, lágrimas sentimentais, mas de júbilo; eu
cantava e dizia doidices, possuído por um novo olhar, com o qual eu excedera todos os
homens (KSB 6, p. 112).
Duas palavras sobre minha “literatura”. Já há alguns dias terminei os livros VI, VII e
VIII de ‘Aurora’ e, com isso, meu trabalho está feito. Quero repensar os livros 9 e 10
para o próximo inverno – ainda não estou suficientemente maduro para os e nsinamentos
elementares que eu quero expor nos livros finais. Há, entre eles, um pensamento que,
de fato, precisa de ‘milênios’ para tornar-se algo. De onde tomarei coragem, para ex-
pressá-lo! (ibid., p. 159).
Os livros referidos por Nietzsche são as primeiras partes de A gaia ciência, mas que
nesse momento eram concebidas como continuações de Aurora. O pensamento que
necessita de milênios é precisamente o ensinamento do eterno retorno, então presente
123
roberto barros
De onde reconheço o meu igual. – Filosofia, como até agora a entendi e vivi, é a vo-
luntária procura também dos lados indesejados e nefandos da existência. Da longa
experiência, decorrente de uma andança através do gelo e do deserto, aprendi a encarar
de outro modo tudo o que se filosofou até agora: – a história ocultada da filosofia, a
psicologia de seus grandes nomes para mim veio à luz. “Quanto de verdade suporta,
quanto de verdade ousa o espírito?” – isso se tornou para mim p ropriamente o medidor
do valor. O erro é uma covardia… Cada conquista do conhecimento decorre do ânimo,
da dureza contra si, do asseio para consigo…Uma filosofia experimental, tal como eu
a vivo, antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo fundante
(grundsätzlichen), sem querer dizer com isso que ela se detenha em um não, em uma
negação, em uma vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até o inverso – até
um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção –, quer
o eterno curso circular: – as mesmas coisas, a mesma lógica e ilógica das conexões. O
mais elevado estado que um filósofo pode alcançar: por-se dionisiacamente diante da
existência – minha fórmula para isso é amor fati.
Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente
como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos
lados até agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições
prévias), mas em função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais
verdadeiros, lados da existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior clareza.
Do mesmo modo, faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência;
compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma
medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente
aqui diz sim (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por
outro lado, e aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções). Adivinhei, com
isso, em que medida uma espécie mais forte de homem teria necessariamente de p ensar
a elevação e intensificação do homem em direção a um outro lado: seres elevados
124
a fala poética em assim falava zaratustra
(höhere Wesen), para além do bem e do mal, para além daqueles valores que não podem
negar sua origem na esfera do sofrer, do rebanho e da maioria – eu procurei pelas
indicações dessa inversa formação ideal (Idealbildung) na história (os c onceitos “pagão”,
“clássico”, “nobre”, descobertos e dispostos de modo novo –) (NF/FP: KSA 13, 16 [32],
primavera – verão de 1888).
125
Capítulo IV
O além-do-homem enquanto ideal estético
A tragicidade
126
o além-do-homem enquanto ideal estético
tragédia,1 o que, por sua vez, pode ser constatado no caráter trágico conferido àquela
obra (Groddeck, 1997, p. 187). É, pois, precisamente em decorrência de Nietzsche
concebê-la desse modo que se pode obter uma compreensão mais clara do significado
da figura do além-do-homem anunciado no prefácio, antecedendo à comunicação do
ensinamento do pensamento do eterno retorno do mesmo.2 Considerando-se que a
comunicação da nova gravidade do eterno retornar de todas as coisas é feita por Nie
tzsche em agosto de 1882, nos últimos aforismos da primeira edição de A gaia c iência,
e ainda, que no final de abril de 1883 é publicada a primeira parte de Assim falava
Zaratustra, pode-se antever que não é despropositada a opção por uma tal forma de
comunicação.3 Antes, ela fizera parte da estratégia de publicação do próprio Nietzsche,
sendo que a mesma perspectiva atuante no prefácio de Assim falava Zaratustra, segundo
o próprio autor, serve de base para a elaboração dos prefácios de 1886.4
Com respeito aos prefácios, um novo aspecto deve ser indicado: o de que eles não
apresentam mais uma referência analítica ou reformuladora dos temas dos livros aos
quais foram acrescidos, mas tinham como questão de grande importância a afirmação
de seu autor como um “Espírito livre” (Groddeck, 1997, p. 190). Essa liberdade do
espírito apresenta-se como determinante para a escolha dos critérios segundo os quais
Nietzsche elabora Assim falava Zaratustra, para cuja compreensão, deve-se novamente
indicar a precedência da “alegre ciência”; justamente uma nova forma de conceber o
saber, e que tem sua origem na inspiração dos artistas da Provença. Relacionada ao
1
Em uma carta de Nietzsche a Franz Overbeck, de 13 de junho de 1885, podemos ler :
“A reflexão acerca dos problemas pr incipais (pr in cip iel l e n Problemen), que involuntáriamente
constitui o conteúdo do meu verão na alta Engadina, traz para mim novamente, não obstante os
ataques muito temerários da minha interioridade ‘cética’, as mesmas decisões (Entscheidungen): elas
já estão, da forma mais velada e obscura possível, no meu Nascimento da tragédia e tudo o que eu
assimilei (hinzugelernt) nesse meio tempo é uma parte disso” KSB 7, p. 67.
2
Heidegger (2000, p. 122) se pronuncia a esse respeito dizendo que Zaratustra, enquanto aquele que
ensina o “eterno retorno do mesmo” e o além-do-homem, não pode ensinar imediatamente o pri-
meiro ensinamento porque há um outro enunciado em seu caminho; o segundo, que por sua vez
não designa o homem tal como nós conhecemos, mas como uma espécie que renegaria toda a
humanidade; ele é aquele que se eleva acima do homem de hoje, mas unicamente para conduzir
esse homem primeiramente ao seu Ser.
3
No prefácio de GC, § 4, Nietzsche se refere ao novo gosto que agiria em sua filosofia a partir
desse livro e afirma que nele: “atua a decência de não querer ver tudo nu, assistir a tudo, entender
a tudo e a tudo ‘saber’”, o que, segundo ele, exige que se honre mais o pudor (Scham) e o esconder-se
da natureza atrás de enigmas e incertezas.
4
Em uma cara de 7 de agosto de 1886, enviada ao seu segundo editor, E. W. Fritzsch, Nietzsche
apresenta o seu novo plano de publicação. Nessa carta, um dos principais cuidados do autor incide
sobre Assim falava Zaratustra, cujas três primeiras partes deveriam ser publicadas em uma única
edição. Nesse sentido, Nietzsche acentua que o Prefácio do livro, na primeira parte, “serve para toda
a obra” (gilt für das g anze werk), do mesmo modo que de modelo para os cinco novo Prefácios que
ele planejava para as suas obras anteriores, de NT até GC, aos quais ele se referia pela primeira vez
ao editor. Cf. Groddeck (1997, p. 188).
127
roberto barros
5
Mesmo que Nietzsche tenha efetivamente planejado levar a cabo estudos de física e matemática
com vistas a fundamentar cientificamente a concepção do eterno retorno (cf. Marton, 2000, p. 22),
essa iniciativa pode ser vista como resultado da constatação de que os resultados alcançados por
alguns pensadores e cientistas naquele momento, tais como Dühring, Mayer, Boscovich e Helmholtz,
demonstravam a insuficiência interpretativa dos antigos parâmetros científicos. Aproximamos aqui
nossa interpretação da de Vattimo (1987, p. 106), que argumenta que pelo próprio conteúdo e
direcionamento de suas anotações, a justificação científica do pensamento do eterno retorno ser-
viria muito mais a uma tentativa de formular uma versão exotérica do ensinamento que de com-
prová-la segundo padrões positivos.
6
Para Günter Abel, deve-se fazer, com relação à formulação do eterno retorno, uma distinção entre
pensamento e teoria científica. Segundo a sua interpretação, m esmo as menções a um desejo de
justificação científica da concepção enquanto teoria não significam de forma alguma que o pensa-
mento saia da exigência do seu próprio sentido. Quando pensado como teoria, o eterno retorno
não exige a mesma justeza da ciência tradicional, que sempre pensou a teoria como a correspondên
cia da função cognitiva entre entendimento (Verstand) e coisa (Sache), o que remete Nietzsche a
considerar a falsificação das hipóteses científicas e de seus pressupostos. (Conf. Abel, 1998, p. 77/81).
Abel ressalta ainda o importante aspecto interpretativo da filosofia de Nietzsche, o qual ele utiliza
na consideração tanto das ciências como do conhecimento teórico e que o leva a formular uma nova
concepção de ciência (ibid., pp. 190-1).
128
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129
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Nós quereremos sempre vivenciar novamente uma obra de arte! Assim se deve plasmar
a própria vida, de tal modo que ante suas partes únicas, tenha-se o mesmo desejo! O
do pensamento capital! Apenas no fim será então exposto o ensinamento do eterno
retorno de tudo o que já foi, depois de ser plantada, inicialmente, a tendência para criar
algo que, sob o brilho do sol desse ensinamento, pode prosperar com cem vezes mais
força (NF/FP: KSA 9, II [165], primavera – outono de 1881).
Esse aspecto pode ser confirmando na anotação 4 [75] (KSA 10, novembro de
1882-fevereiro de 1883), onde o além-do-homem é indicado como superabundância da
vida. Associado à aparição causada pelo ópio e pela dança dionisíaca, ele não sofre por
suas consequências. No mesmo período, o ensinamento é então diretamente relaciona-
do ao pensamento do eterno retorno, este entendido como “reluzente sol matutino
sobre as últimas catástrofes” (FP: KSA 10, 4 [127], novembro de 1882-fevereiro de
1883) e, desse modo, indicado como princípio consolador para a nova sabedoria trágica:
(...) “retorno” aprendido – “eu esqueci a miséria”. Aumenta a sua piedade. Ele vê que
o ensinamento não pode ser suportado.
Ápice: a morte divina. Ele inventa o ensinamento do além-do-homem (NF/FP: KSA
10 4 [132], novembro de 1882 – fevereiro de 1883).
130
o além-do-homem enquanto ideal estético
Mesmo nós, adivinhos natos, que esperamos igualmente sobre os montes, colocados
entre o hoje e o amanhã e na tensão entre hoje e amanhã, nós primogênitos e prema-
turos do século vindouro, que percebemos as sombras que necessitam envolver a Europa,
que já deveriam chegar-nos à vista: então, onde repousa isso, sem participação direta
neste ressecamento, antes de tudo sem cuidado ou medo do que representa para nós
seu aparecimento? (FW/GC § 343).
Aqueles aos quais Nietzsche se refere são os seus semelhantes, indicados pela
qualidade nata. São os “espíritos livres”, os que nesse momento percebem que o antigo
Deus está morto e quais são as consequências dessa morte. A nova amplitude eviden-
ciada pela libertação da moral dogmática.
Enfim o horizonte nos parece livre novamente, mesmo constatando que ele não e steja
claro, é permitido finalmente que nossos navios possam sarpar. Toda ousadia frente ao
perigo é novamente permitida, todos os acasos daqueles que buscam o conhecimento
o são: o mar, nosso mar, repousa novamente aberto diante de nós e talvez nunca tenha
havido mar tão hiante (FW/GC § 343).
131
roberto barros
pensada não mais mediante um desejo de determinação. Isso resulta em uma nova
concepção de ciência, afastada dos pressupostos tradicionais.
De tal maneira a questão “por que ciência?” reconduz a um problema moral: “para que
decisivamente moral, se vida, natureza, história, são ‘imorais’?” Não há dúvida alguma,
o verídico (Wahrhaftige), em sentido transitório e último, como o pressupõe a crença
na ciência, afirma com isso um outro mundo, que não o da vida, da natureza e da
história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo”, como? Não necessita ele com
isso precisamente negar o seu oposto, este mundo, o nosso mundo? Com isso se com-
preenderá aonde eu quero chegar, precisamente, pois é sempre sobre uma crença me-
tafísica que repousa nossa crença na ciência – que também nós, conhecedores de hoje,
nós, os sem-Deus e os antimetafísicos, também ainda tomamos nosso fogo da f ogueira
que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de
Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina… (FW/GC § 344).
Essa nova noção de saber afasta-se da necessidade do fundamento que dera origem
à ciência e à lógica, cujo traço indelével pode ser antevisto no conceito de substância
(FW/GC § 111) que, visto sob o prisma da tradição metafísico-teológica, está a ssociado
às ideias de princípio primeiro e de Deus. Isso torna relativos todos os valores e põe à
mostra a restrição das tentativas de avaliação absoluta, o que possibilita a compreensão
das infinitas possibilidades de consideração da existência promovidas por essa m udança
perspectivista. A noção de existência é então ela mesma reavaliada e posta em suspenso.
Ao pensar nela, Nietzsche não mais o faz pressupondo a possibilidade de uma deter-
minação final e definitiva de seu significado (FW/GC § 1), portanto, reflete sobre ele
em completo afastamento da ideia de mundo pensada pela metafísica.
Essa temática é apresentada em A gaia ciência, por meio da relação entre sabedoria
e manutenção da vida – desse modo não mais com a verdade – e ainda com a p erspectiva
trágica ampliada pelo riso e pela sabedoria.
Não apenas o riso, mas o trágico, com toda a sua sublime desrazão, são os únicos que
pertencem aos meios e às necessidades de manutenção - E, Consequentemente! Conse
quentemente! Consequentemente! OH, vós me compreendeis meus irmãos? Entendeis
esta nova lei da v azante e da maré? Também nós temos o nosso tempo (FW/GC § 1).
132
o além-do-homem enquanto ideal estético
No ato II, chegam os diferentes grupos e trazem os seus presentes. “O que fazeis ?” –
perguntam eles –; “Isto foi feito do espírito de Zaratustra”.
7
Aspecto que faz com que Zaratustra profira as seguintes palavras: “Onde eu encontrava vida
(lebendinges), lá eu encontrava vontade de poder; e ainda na vontade do servo, eu encontrava
vontade de ser senhor” (Z/Z. Da autosuperação. KSA 3, p. 147/8).
133
roberto barros
[…] Primeiro a legislação. Então, depois disso, foi-lhe dada, através da mesma, a
perspectiva da geração do além-do-homem – momento mais horripilante! Zaratustra
anuncia o ensinamento do retorno – que agora lhe é suportável pela primeira vez! (FP:
KSA 10 16 [86] Outono de 1883).
8
“Tudo adverte (warnt) Zaratustra acerca de continuar a falar: Sinal. Ele é interrompido. Um se
mata, outro enlouquece. Disposição de uma divina exuberância artística (Stimmung eines göttlichen
Übermuths im Künstler) -: é necessário vir à luz. Quando ele mostrou ao mesmo tempo a verdade
do retorno e do além-do-homem, a compaixão o dominou.” Haase menciona apenas a última afir-
mação desse fragmento; de acordo com a perspectiva da presente obra, gostaríamos de acentuar
que ambos os ensinamentos de Zaratustra estão relacionados a uma: “Disposição de uma divina
exuberância artística”.
134
o além-do-homem enquanto ideal estético
135
roberto barros
zir no leitor um efeito dramático, que, todavia, visa a comunicar ensinamentos compreen
didos como decisivos à existência humana. Esse aspecto é determinante no que se r efere
à interpretação do ensinamento do além-do-homem como contraideal (Müller-Lauter,
1971, p. 118) e ideal estético.
Considerando-se o percurso e os direcionamentos assumidos pela filosofia de Nie
tzsche, Assim falava Zaratustra realiza aquilo que o autor se pergunta se teria podido
realizar em O nascimento da tragédia: dar vazão ao seu pensamento filosófico sob a for
ma de poesia (GT/NT Tentativa de autocrítica § 3). A este respeito, a referência a Assim
falava Zaratustra em Tentativa de autocrítica é esclarecedora. Com ela desejamos acen-
tuar que Nietzsche visa claramente mostrar que há afinidades entre O nascimento da
tragédia e aquela obra, isto devido um aspecto decisivo: o reaparecimento do dionisía-
co (ibid., § 6). Com efeito, Zaratustra, relacionado ao Deus grego, marca o ressurgi-
mento da perspectiva trágica, do mesmo modo que serve de indicação de que a história
do ocaso de Zaratustra é o início de uma tragédia (FW/GC § 342), a qual, como o
próprio Nietzsche afirma em 1872, consiste na expressão do caráter terrível da existência,
mas tornado suportável e mesmo desejável por meio do véu da bela aparência da arte
figurativa apolínea.
Sendo Assim falava Zaratustra um drama e o protagonista o anunciador do traço
dionisíaco da existência posto pelo pensamento do eterno retorno, encontramos Nie
tzsche fazendo uma importante referência a uma das duas noções sob as quais ele estru-
turou a sua interpretação inicial do trágico. Se naquele momento o apolíneo e o dionisía-
co enquanto impulsos artísticos tornam para os gregos o sentimento de terror diante
da existência inclemente uma força positiva, as menções posteriores ao dionisíaco e ao
trágico trazem consigo o questionamento acerca do apolíneo. A aproximação entre
essas duas obras serve de indicação de caminho para a abordagem desta questão. Ela
possibilita que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-
-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno
retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu
primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-
-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão
dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o
ensinamento do além-do-homem pode ser tomado como a bela imagem apolínea, posta
previamente como forma de consolo e meio de suportar do p ensamento dionisíaco do
eterno retorno do mesmo.
Esses aspectos, com efeito, são pontos que desejamos acentuar em seguida. Neste
momento nos limitaremos a mostrar a significação do ensinamento do além-do-homem
no plano geral da obra, a fim de evidenciar que em Assim falava Zaratustra ele se faz
136
o além-do-homem enquanto ideal estético
presente com a mesma significação de princípio atenuante com a qual está presente nos
fragmentos póstumos e que pode ser claramente relacionada com uma perspectiva
apolínea da primeira filosofia de Nietzsche. Nesse sentido, é digno de nota consideramos
a posição central do ensinamento do além-do-homem no prólogo, no qual não há refe-
rências ao pensamento do eterno retorno e que, portanto, apresenta aquele ensinamen-
to como primeira imagem.
O prólogo é iniciado com a descrição do despertar de Zaratustra e a referência a
sua nova compreensão da significação da existência humana proferida ao sol matinal:
“Tu grande astro! O que seria tua felicidade se tu não tivésseis aqueles que iluminas!”
(Z/Z Prólogo § 1). A constatação da significação humana para o sol consiste na p rimeira
afirmação da compreensão da mudança perspectivística que se afasta dos princípios
tradicionais da filosofia desde Platão, os quais pressupõem precisamente o contrário, a
dependência humana de um princípio superior e aferidor de valor (Honneth, 2004,
p. 69). A isso se relaciona a própria concepção de Nietzsche do personagem Zaratustra.
Segundo ele, o retorno ao sábio persa se deve ao desejo de retornar precisamente aquele
que primeiro estabeleceu a rígida dicotomia entre bem e mal, da qual o ocidente, tanto
na filosofia como na religião, se tornou dependente. Zaratustra é então apresentado
como aquele que apresenta traços daquele que deverá buscar rever esta forma de valo-
ração originária e direcionar o homem a novas buscas de sentido. Com isso é eviden-
ciada a primeira diferença entre o Zaratustra de Nietzsche e o sábio da religião persa,
que expressa sua sabedoria mediante princípios religiosos que pressupõem a dicotomia
entre bem e mal (Spinks, 2003, p. 120), caos e ordem. Nietzsche indica a escolha do
personagem precisamente por reconhecer nele a origem da dicotomia bem-mal, a qual
então ele deveria subverter (EH/EM Porque escrevo livros tão bons § 1). D iferentemente
disso, o Zaratustra nietzscheano deseja voltar a ser homem (Z/Z Prólogo § 1) e p rofere
por isso uma sabedoria filosófica, humana em seu sentido pleno, resultado do desejo de
fusão do artista criador (Schaffender), do santo amante (Liebender) e daquele que aspira
conhecimento (Erkennender) em um fim prático (NF/FP: KSA 10, 16 [11], Outono
de 1883). A sua sabedoria é resultado do seu isolamento e da liberdade de seu espírito,
que após o seu acúmulo, ele então deseja comunicar em sua nova aproximação dos
homens, esta marcada pelo desejo de transmutação destes.
Esta primeira descrição do prefácio demonstra que a ótica do Zaratustra de Nie
tzsche não é mais a da dicotomia entre o bem e o mal. Ao buscar afirmar o significado
da existência humana, e não mais de valores transcendentes, ele se revela como repre-
sentante de uma transvaloração de todos os valores (Suffrin, 1988, p. 24), que Nietzsche
identifica como necessária no auge da experiência niilista da modernidade e que ele já
iniciara com sua filosofia desde o primeiro volume de Humano, demasiadamente h umano.
137
roberto barros
Nesse sentido, a referência ao sol é significativa. Para o ocidente, desde a filosofia pla-
tônica o astro é considerado como fonte máxima de valores afirmados como universais,
de onde decorrem as noções de bem e a ideia de perfeição moral (virtude) a ser b uscada
pelo homem racional. Disso resultou tornar-se ele o símbolo, a imagem que expressa,
tanto da ideia de bem moral quanto a de meta última do conhecimento. Ou nas p alavras
de Sócrates em A República:
9
Precisamente o princípio que impede que todas as coisas ascendam, tornando-as pesadas e pren-
dendo-as fixamente a terra. Mesmo se considerado que o retorno à terra é um dos ensinamentos
de Zaratustra, uma redução desse movimento a essa finalidade o tornaria restritivo. A noção de
sentido da terra comporta tanto uma crítica da ontologia metafísica e da desvalorização da vida
mundana, como uma crítica do reducionismo da vida a apenas alguns pequenos desejos e satisfações
138
o além-do-homem enquanto ideal estético
abandono e assim afirmar o seu amor pelos homens e a c ompreensão da morte de Deus
(Z/Z Prólogo § 2).10
Esses aspectos consistem em pressupostos para o anúncio do ensinamento do
além-do-homem, que Zaratustra profere no prosseguir da narrativa, tão logo chega à
cidade próxima a montanha onde encontrara o velho santo. Na cena, o povo e ncontra-se
reunido na praça do mercado esperando pela apresentação de um equilibrista, m omento
no qual Zaratustra se dirige a todos e se refere pela primeira vez ao além-do-homem:
Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizes-
tes para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmos; e vós
quereis ser a baixa mar dessa grande maré cheia e retroceder desejosamente ao animal,
em vez de superar o homem?
(Z/Z Prefácio § 4). O sentido da terra significa de forma inerente a capacidade de projetar-se para
além de si, que, segundo Nietzsche, caracteriza o homem, todavia de forma afirmativa e não depre-
ciativa, como a transcendência metafísica r eligiosa. Isso consistiria na vitória do espírito de g ravidade
e, portanto, na confirmação do último homem como forma última de existência humana. Em úl-
tima análise, a vitória dos valores não autoafirmativos (Nabais, 2007, p. 134).
10
Com respeito ao significado da morte de Deus para a consideração do e xperimento estilístico de
Nietzsche em Assim falava Zaratustra, desejamos relacionar duas perspectivas: primeiramente a de
Pierre Suffrin, para quem a morte de Deus faz retornar novas possibilidades de construção (1988,
p. 35). Essa noção, quando transposta para o campo das formas de expressão, parece ser possível de
ser relacionada com a análise de Bindschedler, que considera a morte de Deus segundo o traço
poético de Zaratustra, o qual, por sua vez, decorre da negação da moral e de sua dicotomia entre
verdade e mentira. Segundo a autora, a morte de Deus, que nada mais seria para Nietzsche que
uma imagem poética, significa o apagar da luz com a qual a humanidade tinha mantido o quadro
de sua crença na sua verdade. Se Deus era, portanto, apenas uma imagem poética, são também os
poetas de uma nova poesia, que não acreditam mais na “verdade” que o matam (1966, p. 66).
11
Diferentemente do que pressuporia a utilização do modal “müssen”. Conferir a respeito NF/FP:
KSA 10, 4 [43], 10. Novembro de 1882 – Fevereiro de 1883.
139
roberto barros
Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, mas em vós há ainda muito do
verme. Primeiramente fostes macacos e ainda agora, o homem é mais macaco do que
qualquer macaco. (Z/Z Prólogo § 3)
Inicialmente, era o delito contra Deus o maior dos delitos; mas Deus morreu e, assim,
morreram também esses delinquentes. O mais terrível, agora, é delinquir contra a
terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável que ao sentido da terra! (Z/Z
Prólogo § 3).
140
o além-do-homem enquanto ideal estético
A afirmação da morte de Deus inverte a escala de valores que nele se susta e in-
dica novas possibilidades para a existência, pois com aquela se encerra a fundamentação
no absoluto, entendida como expressão de uma estimativa de valor que, em última
instância, evidencia-se então como perspectivista. Com a morte de Deus, Zaratustra
busca efetuar não apenas a refutação das antigas valorações morais, mas propõe o aban-
dono do absoluto dos antigos valores em favor da redescoberta das positividades afir-
mativas e criadoras da vida e de suas possibilidades. Isso não pode ser feito segundo os
pressupostos tradicionais dos pensamentos metafísico e religioso, que remeteriam a
novas aspirações de correção e melhoramento do mundo enquanto promessa de um
plácido viver. Valorizar a terra tal como Zaratustra menciona, significa aceitá-la na
amplitude espantosa de suas possibilidades e, com isso, afirmá-la incondicionalmente,
mesmo os seus perigos e desafios, o que repercute em uma necessidade incondicional
de redimensionar a expectação de felicidade do antigo anseio.
141
roberto barros
-religiosa com aspiração à fixidez como uma forma de enfraquecimento (Fink, 1983,
p. 71) e restrição da vida. Por intermédio dele e em sua contraposição ao último-homem,
o homem que aspira a estágios mais elevados recebe uma nova atribuição de valor,
aferida pelas novas e ilimitadas possibilidades que advém do e nsinamento. Ele passa a
ser considerado pela sua capacidade de almejar e lançar-se à busca das realizações
desse anseio. A noção de anseio pela elevação, pela autossuperação, é então traço deci-
sivo à compreensão do ensinamento e do efeito motivador que ele visa a suscitar, com
vistas a reafirmar o valor da vida e do mundo pensado então como vontade de poder
(Müller-Lauter, 1871, p. 127).
Amo aqueles que não sabem viver senão como os que sucumbem, porque são aqueles
que transpõem.
Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do anseio
pela outra margem.
Amo aqueles que não procuram primeiro um motivo atrás das estrelas para se sacrificar
e sucumbir, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se torne o além-do-
-homem (Z/Z Prólogo § 4).
12
Com respeito à interpretação de Heidegger, vale lembrar a observação de Gerard Lebrun (1978,
p. 45-6), segundo a qual Heidegger é cônscio de que Nietzsche não acredita em uma evolução da
humanidade e nem na chegada de uma classe universal, antes, mesmo a superação de um tipo
particular por um tipo que possibilita ao ser humano se reconhecer nele, esse tipo, com efeito, deve
ser separado do ideal de dominação humanista, herdeiro do esclarecimento, o que o torna, portanto,
uma outra variante da mitologia do progresso.
142
o além-do-homem enquanto ideal estético
13
Suffrin (1988, p. 86) comenta que o fracasso do primeiro discurso de Zaratustra decorre do com-
prometimento dos ouvintes com a tradição moral e seus valores, o que os impede de compreender
o ensinamento do além-do-homem e, pelo contrário, ainda se voltarem em favor do “Último Homem”.
14
“Nenhum pastor é um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de
outro modo, vai voluntário para o manicômio” (Z/Z § Prólogo § 5).
15
Z. Prólogo § 5. Ou seja, aqueles que, diferentemente dos criadores, não aspiram por nenhuma von-
tade criadora ou autoafirmação, mas pela vontade negativa, pelo niilismo. Cf. Suffrin (1988, p. 71).
143
roberto barros
“Em frente, coxo”, dizia a sua voz apavorante, em frente, moleirão, tratante, cara páli-
da! Para que eu não te comiche com o meu calcanhar! Que fazes aqui entre as torres?
Dentro da torre é o teu lugar! Deveriam trancar-te lá, pois impedes a livre passagem
de alguém melhor do que tu!” (ibid.).
“Não existe o diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do
que o teu corpo; não temas mais nada! (…) Nada mais”, falava Zaratustra, “fizeste
do perigo o teu ofício, nisso não há nada de desprezível. Agora morres, vítima do teu
ofício; por isso, quero sepultar-te com minhas mãos” (Z/Z Prólogo § 6).
144
o além-do-homem enquanto ideal estético
Vai embora desta cidade, oh Zaratustra, dizia ele; demasiados são os que aqui te odeiam.
Te odeiam os bons e os justos, e chamam-te de seu inimigo e desprezador; odeiam-te
os crentes da crença correta (Gläubigen des rechten Glaubens), e chamam-te um perigo
para a multidão. A tua sorte foi que riram de ti; e, em verdade falaste como um f arsista.
A tua sorte foi que te colocaste com esse cão morto, ao rebaixar-te assim, salvaste-te,
por hoje. Mas vai-te embora imediatamente desta cidade - ou amanhã eu pulo por
cima de ti, um vivo por sobre um morto (Z/Z Prólogo § 8).
145
roberto barros
Essa passagem revela o traço seletivo dos ensinamentos de Zaratustra, posto agora
como criador, do mesmo modo que a oposição que ele decisivamente estabelece para
com todos os crentes e crenças afirmadas como absolutas, aspecto possibilitado pela
morte de Deus e que visa a afirmar, a partir de então, novas possibilidades de criação,
pois segundo Zaratustra: O destruidor das tábuas de valores (der zerbricht ihre Tafeln
der Werthe), o criminoso, é o criador (Schaffender).
Criação significa a superação da antiga gravidade e, desse modo, a possibilidade
de uma nova hierarquia de significações e do novo, indicada para o homem através da
individualidade criadora.
146
o além-do-homem enquanto ideal estético
147
roberto barros
trariedades das línguas e gramáticas;19 posicionamento justificado por ele como forma
de afastamento das aspirações e crenças conceituais e epistemológicas da filosofia racio
nalista-metafísica (Machado, 1997, p. 17). Esses aspectos possuem ampla importância
quando relacionados à autoconsideração do autor como o mais oculto dos obscuros, do
mesmo modo que na construção do labirinto argumentativo por meio do qual N ietzsche
desejava selecionar o seu leitor (M/A Prólogo § 5). Esses dois pontos possibilitam
analisar a forma de comunicação dos pensamentos nucleares de Nietzsche por meio da
fala poética e da inspiração musical de Zaratustra, aproximando-a da elevada conside-
ração alemã da idealidade dos gregos, mas que, ao mesmo tempo, o distanciam dela,
devido a sua indicação crítica da sua moralização.
O afastamento do racionalismo e da metafísica, a compreensão da i mpossibilidade
de justificação do saber segundo pressupostos próprios, remete Nietzsche à formulação
de uma concepção de filosofia fundada nos princípios da interpretação e da criação, que
acabam por aproximá-la da arte. Trata-se de uma filosofia isenta de determinismos,
sejam eles interpretativos ou conceituais. Esse posicionamento é, todavia, entendido
por ele como elevada concepção de cientificidade, que surge e se eleva por meio da
compreensão filosófica da fragilidade da moral do conceito metafísico de conhecimento
e da sua aspiração por uma verdade final acerca do existente. A filosofia – e esse é o
traço que se deseja aqui significativamente ressaltar –, indissociável do rigor científico
em sentido imanentista, pode com isso ser aproximada decisivamente da experiência
estética da arte e ainda assim justificar-se como tal, a partir da evidência da justificação
unicamente moral da verdade absoluta. Não existe uma relação essencial entre valor e
coisa. Todas as relações dessa natureza se deixam reduzir a atitudes metafóricas que, em
última análise, são então interpretadas como estéticas. A história e a psicofisiologia da
história – ou seja, a compreensão dos processos metafóricos de simplificação de onde se
origina a própria história e as demais formas de compreensão humanas – demonstram a
necessidade da superação da ontologia e a evidência do perspectivismo (FW/GC § 242).
Assim sendo, a filosofia em Nietzsche não busca e até mesmo não pode mais se justificar
por meio de verdades axiomáticas, mas busca fazê-lo por meio da compreensão da po-
tencialidade de uma certa espécie de efeito estético que, em última análise, é um dos
fins últimos da arte (FW/GC § 78).
Visando a ser afirmativo para então ser “verdadeiro”, Nietzsche não descarta, mas
reformula a noção de verdade, confrontando-a à ideia de probidade intelectual e reti-
19
Nietzsche escreve em um fragmento de 1882: “O inteligível na linguagem não é a palavra mesma,
porém o tom, força, modulação, tempo, com a qual uma s equência de palavras é proferida – ime-
diatamente a música atrás das palavras, as paixões atrás da música, a pessoa atrás dessas paixões:
portanto, tudo que não pode ser escrito. Por causa disso ele não tem nada a ver com literalidade.”
NF/ FP: KSA 10 3 [1] 296. Verão – outono de 1882.
148
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rando-lhe o acento metafísico. Com isso, é por ele mobilizada a noção de veracidade
(wahrhaftigkeit) (NF/FP: KSA 12, 5[71] 2, verão de 1886 outono de 1887), enquanto
produto tardio da própria verdade (Müller – Lauter, 1871, p. 97), que então perece
junto com a divindade absoluta. A filosofia de Zaratustra, enquanto coroamento de um
amplo processo de introspecção criativa, representa o levar às últimas consequências o
anseio pela verdade, que acaba por inviabilizar a noção tradicional dessa, estabelecida
pelo racionalismo e pela metafísica. Disso resulta a necessidade de um outro posicio-
namento filosófico, que compreende, a partir da constatação da derrocada dos princípios
originários e fundantes da metafísica, a impossibilidade e a inexistência efetiva da
verdade em si e então precisa aceitar a veracidade como limite interpretativo do homem
(NF/FP: KSA 13, 14[168], primavera de 1888). Apartada da metafísica, a veracidade
não necessita ser compreendida como referente à verdade tradicional, mas sim ser en-
tendida como limite interpretativo do homem, em sua relação com um mundo, então
compreendido como desconhecido (ibid.). Contudo, a noção de veracidade não signi-
fica o fim da aspiração pelo conhecimento. O que se altera é apenas a relação do homen
do conhecimento (Wissender) para com ambos. A partir disso, ele pode até mesmo
continuar a ambicionar a universalidade, pois no mundo regido pela vontade de poder
essa aspiração é até mesmo irrefreável. A probidade intelectual descortina a impossibi-
lidade dessa pretensão tirânica e então remete o filosofar a um exteriorizar interpreta-
tivo da individualidade em sua relação com o mundo. Na elaboração do pensamento
de Nietzsche, tais posicionamentos teóricos podem redundar em um perspectivismo
argumentativo, aproximado da arte e indicador de sentido, no qual são valorizados o
experimento e a criação, entendidos como forma de valorização estética da própria
ciência, pois conferem uma nova e enigmática beleza ao mundo (FW/GC § 339).
Com Assim falava Zaratustra, Nietzsche visa comunicar uma espécie de pathos
artístico fundamental, que ele então denomina, n ovamente, de trágico. Esse é n
ecessário
para que se compreenda a aventura que se torna o conhecer livre do domínio moral.
Antes de pensar como os filósofos herdeiros do legado platônico, segundo o qual o
conhecimento levaria à justiça e ao bem, Nietzsche concebe o desejo de conhecer como
uma difícil e arriscada empreitada, que para ele não possui quer um fim, quer qualquer
garantia de benefício para o homem (FW/GC § 309). A única vantagem que pode
advir dela deve ser interpretada sob a égide da experiência estética, advinda do mara-
vilhamento diante de um mundo tornado desconhecido e não previsível, mas que,
desse modo, tornou-se perigoso, incerto e indeterminável. Para suportá-lo - e mesmo
para desejá-lo - é necessária a visão audaz (FW/GC § 324), trágica (FW/GC § 342),
que afere beleza a tal perigo.
149
roberto barros
150
o além-do-homem enquanto ideal estético
implicam a indicação do p erigo da busca pelo conhecimento. Por esse motivo, a arte se
faz novamente necessária, para restabelecer a dinâmica de forças indispensável ao homem
para continuar a viver e a desejar viver.
Precisamente essa relação parece ser o motivo da não necessidade de Nietzsche de
enfaticamente mencionar o apolíneo, pois o dionisíaco ao qual Nietzsche se refere, pa-
rece trazer ainda consigo a reconciliação indicada em O nascimento da tragédia e que o
faz poder produzir a b
eleza, mesmo diante da insuperável compreensão trágica do m undo.
Partindo-se deste ponto, é possível aproximar a compreensão do ensinamento do além-
-do-homem como o traço apolíneo inerente à filosofia trágica de Nietzsche. Ele pode ser
interpretado como o anteparo contra o temor causado pelas concepções da vontade de
poder e do eterno retornar de todas as coisas e, desse modo, deixa-se aproximar do
princípio apolíneo, tal qual este é descrito no primeiro livro de Nietzsche. Tendo em
vista essa proximidade, desejamos nos deter especificamente na consideração do aspecto
ideal aludido no aforismo 382 de A gaia ciência e, mais particularmente, na expressão
“mediterrâneo” ideal, a qual está diretamente relacionada ao início da tragédia e à o posição
a toda seriedade e moral experimentadas presentemente pela humanidade. Tomaremos
como primeiro ponto de consideração desses aspectos os movimentos de aproximação
e de afastamento de Nietzsche com relação à perspectiva trágica grega, pois apesar de
aparentarem uma oposição, deseja-se tratá-los aqui segundo uma perspectiva de desdobra
mento, responsável pela formulação dos princípios criativo e experimental de sua fi losofia.
Como primeira questão a respeito do estatuto da perspectiva artístico-trágica,
mencionamos a noção de inspiração, que é retomada por Nietzsche em Ecce homo, em
uma indicação bastante significativa: Nietzsche afirma que a inspiração atuante em
Assim falava Zaratustra deve ser entendida segundo a concepção dos poetas das grandes
épocas passadas; como a criação interpretada como revelação imediata e n ecessidade
absoluta, cujo caráter mais estranho é o da necessidade da imagem e da metáfora (EH/
EH Z/Z § 2). Esse mesmo tópico de Ecce homo se e ncerra com o autor reafirmando a
mesma ideia e ainda acrescentando que talvez fosse necessário recuar milhares de anos,
para que se encontrasse alguém que pudesse afirmar ter tido a mesma espécie de sen-
timento (ibid., § 3).
Propomos aqui uma análise do significado do aparecimento da n oção de inspiração
remetido a Assim falou Zaratustra, a partir da possibilidade de significação que lhe pode
ser dada após a sua crítica em Humano, demasiado humano. Com isso a intenção é
aproximá-la da referência feita em Ecce homo, a fim de saber se há entre elas algum
traço de mediação. Um primeiro indício de aproximação possível é a alteração do modo
de compreender a arte relacionada a antigos padrões de justificação, aspecto que adquire
importância a partir do reaparecimento do dionisíaco e do poético associados a Zara-
151
roberto barros
20
“pois a humanidade em sua totalidade não possui nenhuma meta” (ibid.).
152
o além-do-homem enquanto ideal estético
153
roberto barros
os tornou cônscios de que “unicamente através da arte poderiam tornar a miséria prazer”
(MA I/HH I § 154), e essa é compreendida por Nietzsche como a característica de
todos os povos poéticos, que associariam o desejo da mentira – assim como o convívio
diário com ela – à inocência.
Como primeiro argumento de justificação da significação da temática desses afo-
rismos para a consideração do além-do-homem, indica-se aqui a forte possibilidade de
interpretá-lo como ensinamento formulado a partir de influências gregas, do mesmo
modo que tal possibilidade adquire significativa relevância, tanto para a interpretação
de seu conteúdo, como para sua posição em Assim falava Zaratustra. Deve ser ainda
indicado a posição do último dos aforismos acima mencionados em Humano demasiado
Humano. Com efeito, ao § 154 se seguem dois outros que tratam precisamente do
conceito de inspiração, nos quais Nietzsche c ritica a ideia da produção artística como
resultado dela, isso a partir do ponto de vista de que “todos os grandes (artistas) foram
grandes trabalhadores (Alle Grossen waren grosse Arbeiter), incansáveis não apenas no
criar, mas também em repudiar, analisar (Sichten), transformar e ordenar” (MA I/HH
I § 155).
No aforismo seguinte, 156, o autor afirma que a inspiração apenas aparece em
épocas em que a força de produção (Productionkraft) estagnou devido a um obstáculo,
o que gera finalmente um imediato d erramamento (Erguss), sem trabalho interior p révio
(ohne vorhergegangenes inneres Arbeiten), que, porém, é interpretado como inspiração
imediata e como milagre que se realiza (vollziehe). Nietzsche prossegue argumentando
que, mesmo que todos os artistas tentem manter essa concepção, tal capital não caiu do
céu, foi acumulado (angehäuft), do mesmo modo como acontece no domínio do bem,
da virtude, do vício (MA I/HH I § 156).
A crítica à noção de inspiração, destarte, caminha paralelamente a concepção de
uma ciência da arte que deve se opor às falsas conclusões e maus costumes do intelecto,
advindas do sentimento mitológico arcaico da justificação artística moderna (MA I/
HH I § 145). Entretanto, muito embora o seu tom crítico, essa perspectiva também se
associa ao elogio da poesia grega arcaica21 e, em especial, da arte homérica, que desde
O nascimento da tragédia é considerada como a arte apolínea por excelência, mas que
nesse momento é tratada como arte demasiado humana, por conseguinte, como produto
das leviandades fantásticas da mentalidade poética. Esses aspectos devem ser levados
em consideração para que se possa analisar o último aforismo dos anteriormente indi-
21
Nietzsche não faz nenhuma menção a esse termo em seus escritos, mas ele é utilizado aqui por ser
ele, desde a segunda metade do século XIX, a designação do período da cultura grega a que o autor
se refere como pré-socrática ou trágica, portanto, não clássica. Cf. Cancik (2000, pp. 36; 41).
154
o além-do-homem enquanto ideal estético
cados por Colli e Montinari. Esse, com efeito, refere-se diretamente a Homero, recebe
assim precisamente o nome do poeta como título e inicia-se com a seguinte afirmação:
Muito embora essa afirmação inicial, Nietzsche indica que a fatalidade dos gregos
consistiu na trivialização de Homero, que lhes restringira o muito circunspecto instinto
de independência (ernsterer Instincte der Unabhängigkeit). Mesmo que de tempos em
tempos houvesse movimentos contrários a ele, o poeta sempre saiu vitorioso, o que
demonstra que todos os poderes espirituais desempenhariam repressão junto de seu
efeito liberatório (befreiende Wirkung), mas que haveria uma diferença entre a sua tirania,
a da bíblia ou a da ciência.22
O elogio da função narcótica da tragédia e da formação grega remetida primeira-
mente a Homero, tal como é tratado nestes aforismos, é aproximada na modernidade
e, muito embora criticamente, do efeito causado pela religião. Esta, todavia, como sa-
bido, é acerbamente criticada por Nietzsche. A referência à ciência da arte, no aforismo
145 do capítulo IV (Da alma dos artistas e escritores) de HH I, indica um importante
aspecto para a consideração noção de inspiração da qual Nietzsche faz uso em Assim
falava Zaratustra. Se essa noção volta a ser utilizada por ele, os aforismos indicam que
é em um sentido não totalmente moderno, mas perpassado pelas compreensões histó-
rica e científica dominantes na contemporaneidade. Tais compreensões podem, porém,
aproximá-la novamente do seu sentido grego, enquanto ordenação e reformulação do
desordenado, e não mais legitimá-la por intermédio de referência a uma miraculosa
origem ou à criação incondicionada. A partir disso, o filósofo pode formular a noção
de “mediterrâneo”, ideal relacionado à “grande saúde”, cujos conteúdos possuem moti-
vações e temáticas facilmente reportáveis aos gregos. A ideia de uma ciência da arte
possibilita compreender e evidenciar a percepção de que um moderno retorno ao épico
é possível, a partir da compreensão das possibilidades do efeito por ele causado e não
pela sua antiga forma de legitimação. Isso pode ser compreendido quando considerada
a aproximação da noção de “grande saúde” com a interpretação épica homérica, repre-
sentada por Nietzsche pela aceitação ampla da vida.23 Mas, por outro lado, a afirmação
final do aforismo 262, que menciona o caráter opressor de todas as potências espirituais,
22
Ibid. I § 262, p. 219.
23
Aspecto que já fora posto por Nietzsche em “A disputa em Homero”, último dos cinco “Prefácios”
escritos por ele e presenteados à Cosima Wagner no natal de 1872. Cf. KSA 1, p. 783.
155
roberto barros
A maior utilidade do politeísmo. – Que o indivíduo pudesse edificar seu próprio ideal
e dele deduzir sua lei, seus prazeres e seus direitos – isso servia até aqui como o mais
monstruoso dos embaraços humanos e como a idolatria em si (…) (FW/GC § 143).
156
o além-do-homem enquanto ideal estético
Desse modo, acrescenta, os indivíduos (Individuen) foram aceitos pela primeira vez,
adquiriram direito à existência e toda a criação de seres não humanos teve por finali-
dade justificar o egoísmo e a glorificação do indivíduo.
157
roberto barros
Estes mesmos traços podem ser antevistos em Assim falava Zaratustra e relacio-
nados ao ensinamento do além-do-homem. O pressuposto b ásico do seu anúncio é a
morte da divindade única, absoluta. Fonte da dominante forma de combate à indivi-
dualidade na contemporaneidade. É a percepção de sua morte que possibilita que o
ensinamento seja direcionado decisivamente a um processo criativo, pressuposto na
noção de autossuperação (Selbstüberwindung). A questão naturalmente decorrente dessa
analogia diz respeito então ao significado do épico e do mítico grego para Nietzsche
neste momento de sua produção. Uma resposta possível a essa interrogação pode ser
encontrada tanto nos escritos que antecedem, mas também decisivamente em escritos
posteriores a Assim falava Zaratustra, tal como em Ecce homo e em referência a Zaratustra.
Referindo-se a inspiração poética de seu escrito, o autor desvincula a sua criação de
modelos anteriores: “Esta obra vive absolutamente por si própria. Deixemos os poetas
de lado: nada criaram até agora com tamanho poder. A minha visão do ‘dionisíaco’ foi
um ato excelso; à sua medida todas as ações humanas aparecem pobres e limitadas”
(EH/EH Z § 6).
Nessa seção, Nietzsche evidencia o que pretendera com o seu Zaratustra, precisa-
mente efetuar regresso do falar humano à própria natureza da imagem, sem, no e ntanto,
indicar uma forma unívoca de fazê-lo. Desse modo, é decisivo bem dimensionar a
afirmação de que aquilo que Zaratustra profere é, segundo o autor, a fala do Deus
Dionísio, aquele que exprime e representa os eflúvios mais fundamentais da natureza.
Dionísio, com efeito, ao ser relacionado à natureza, necessita também o ser com a com
preensão da indeterminação dessa, aspecto central na filosofia de Nietzsche. D esde os
seus primeiros escritos, inquirir a natureza significa opor-se a toda a pretensão por
defini-la ou corrigi-la. Antes, ele busca tentar livrar os seus posicionamentos de tais
pretensões, para então evidenciar as potencialidades afirmativas de sua indeterminação
(FW/GC Prefácio § 4).
Parece, com efeito, altamente provável que a reaproximação com respeito a noções
bastante significativas de sua primeira fase de produção se deve muito mais a uma re-
tomada de suas possibilidades interpretativas que propriamente uma retomada do a nseio
de renascimento da arte g rega. Nos escritos posteriores, nos quais Nietzsche se refere
ao dionisíaco como forma de tornar compreensível o seu Zaratustra, ele o faz com
muitos aspectos que ratificam a tendência a utilizar essa noção para criticar a disposição
restritiva e dogmática tanto da religião quanto do racionalismo metafísico, diante do
mundo.24 Ele indica ensinamentos de Zaratustra como os seus “pensamentos abissais”
(abgründlichsten Gedanken) (EH/EH Z/Z § 6), resultantes de um refinamento estilís-
24
Como fica claro em Tentativa de autocrítica.
158
o além-do-homem enquanto ideal estético
tico que pode mesmo conferir ao além-do-homem a mais alta realidade (ibid., Z/Z § 6).
É óbvio que a esse respeito Nietzsche pressupõe não apenas a impossibilidade de um
fundamento verdadeiro, último e definitivo para o ensinamento, mas também a inver-
são de valores que confere nova significação ao termo realidade. O além-do-homem é a
aparência sem antípoda que se tornou então real, porém sem ultrapassar aquilo que a
partir de então caracteriza o real, o seu devir, a aparência.25 Desse modo, ele não pode
consistir em princípio normativo último ou único para todo homem e toda forma de
relacionamento desse com o mundo, pretensão que o autor já exclui com relação ao
mito desde O nascimento da tragédia 26 e que percorre toda a sua filosofia. Estes aspectos
constituem pontos decisivos para que os ensinamentos capitais da sua obra madura
possam ser formulados tendo como justificativa a sua força estética.27
A respeito do conteúdo dos aforismos anteriormente analisados e de suas a ssociações
com o ensinamento do além-do-homem, desejamos indicar aquilo que apenas foi aludi-
do no decorrer da argumentação: que a libertação do espírito,28 a campanha contra os
preconceitos morais, em outras palavras, a luta pela transvaloração dos valores, possi-
bilita a Nietzsche reconsiderar as possibilidades da arte a partir de pressupostos extraí-
dos da mentalidade mítica grega, em especial do épico e do trágico, sem, no e ntanto,
pretender restabelecê-la. A confirmação desse aspecto pode ser feita segundo uma
passagem elucidativa presente no prefácio de A gaia ciência, precisamente posterior a
Nietzsche afirmar a necessidade de uma nova arte, uma arte apenas para artistas, e
ainda evidenciar que a sua filosofia não corrobora com qualquer vontade de verdade, de
“verdade a qualquer preço”, que ele denomina de loucura juvenil (jünglingswahnsinn)
no amor pela verdade. Uma forma diferente de lidar com a verdade é então indicada
nos gregos, que Nietzsche não deseja repetir, mas que, todavia, deve ser mencionada:
Oh esses gregos! Como entendiam acerca do viver: para isso é necessário permanecer
corajosamente na superfície, na cobertura, na e piderme, para adorar a aparência, formas,
tons, palavras e crer no completo Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais
25
A ponto de Nietzsche escrever em GD/CI: “O mundo ‘aparente’ é o único, o mundo verdadeiro foi
acrescentado (hinzugelogen) pela mentira”. A “razão” na filosofia § 2.
26
Em uma visão retrospectiva, o primeiro momento da transvaloração.
27
Com respeito a isso escreve Roberto Machado: “ao escrever Assim falava Zaratustra, Nietzsche não
está propriamente interessado em renovar ou modificar os conceitos da filosofia; seu objetivo
principal, do ponto de vista da forma de expressão, é libertar a palavra da universalidade do con-
ceito, construindo um pensamento filosófico através da fala poética, mais do que, como nas outras
obras, através do uso do aforismo, do fragmento ou mesmo do ensaio” (1997, p. 21).
28
“Quem conhece toda a seriedade da minha filosofia na luta contra os ressentimentos de vingança
e de ódio, perseguindo estes sentimentos na própria doutrina da “vontade livre” (freien Wille) – a
luta com o cristianismo nada mais é que um caso isolado dessa luta – compreenderá porque m otivo
quero aqui pôr à luz por completo a minha atitude pessoal, a segurança do meu instinto na prática.”
EH/EH Porque sou tão sábio § 6.
159
roberto barros
– na profundidade! E não voltamos a eles, nós, atrevidos do espírito, nós que galgamos
os mais altos e perigosos picos do pensamento atual, e vimos tudo a nossa volta como
abaixo de nós? Não seremos nisso – gregos? Adoradores da f ormas, do tom, das p
alavras?
Portanto – Artistas? (FW/GC Prefácio § 4).
160
o além-do-homem enquanto ideal estético
Pois basta perguntar-se fundamentalmente: “Por que não queres enganar?”, especial-
mente se houvesse a aparência – e há essa aparência – de que a vida dependa dessa
aparência, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocegamento, e se,
por outro lado, a grande forma da vida sempre tivesse se mostrado, de fato, do lado
mais inescrupuloso polytropoi. Um propósito como esse poderia, talvez, interpretado
brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas poderia t ambém
161
roberto barros
ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à vida… “vontade de v erdade”
– isso poderia ser uma velada vontade de morte – (FW/GC § 344).
Essa referência, no momento em que é feita, relacionada aos textos que foram
escritos para servirem de fio condutor a Assim falava Z aratustra, como o quinto livro
de A gaia ciência e o prefácio de Aurora, indica que a consideração positiva da perspec-
tiva mítica grega e de seu fundamental viés estético é ainda uma influência importante
para Nietzsche. Isso aponta também a possibilidade de se compreender Assim falava
Zaratustra e sua inspiração como aproximada da dos poetas do passado, como uma obra
que deseja conferir ao seu discurso a mesma força de afirmação e embelezamento que
Nietzsche sempre interpretou na arte grega, na qual Homero é por ele indicado como
personagem decisivo por ser o modelo do artista ingênuo, imerso na produção da apa-
rência que se justificava por si mesma pelo efeito estético que propiciava.29
Mas a cultura mítica grega é fonte de inspiração para Nietzsche ainda por outro
motivo: ela é a prova da possibilidade de uma cultura apartada e distinta de uma moral
unívoca e de seus pressupostos. Ela continua a representar para ele uma perspectiva
29
Maria Bindschedler analisa esta referência a Homero no contexto da crítica da lógica e seus juízos
e do elogio do poeta como “idólatra involuntário” (unfreiwilliger Vergöttlicher), que, porém, pode ser
tido como louco – no sentido de Nietzsche – diante da necessidade e de suas intenções. Segundo
a autora, essa referência deve ser entendida como esforço de Nietzsche em refutar as formas tradi-
cionais de consideração da mentira e da criação artística, para então poder afirmar que o que há de
notável na arte é precisamente a sua afinidade com a mentira - o que, portanto, exclui Homero do
âmbito da repreensão de Platão. Cf. Nietzsche und die poetische Lüge (Bindschedler, 1966, p. 60).
162
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diferenciada daquela que, segundo ele, se estabeleceu no ocidente a partir de Platão, foi
continuada pelo cristianismo e deu origem à ciência. Esta tem o seu efeito mais nefasto
não apenas na afirmação dogmática de seus princípios, mas a inda na condenação de
toda outra forma de avaliação e consideração do mundo e da vida. Este, com efeito, é
o tema do aforismo 261 de Humano, demasiado humano, que antecede ao aforismo in-
titulado “Homero”, ao qual é relacionado.
O aforismo é intitulado Os tiranos do espírito (Die Tyrannen des Geistes) e nele po
demos confirmar que Nietzsche, mesmo nessa obra, exclui os gregos do período mítico
de sua crítica, ao afirmar que apenas onde cai o raio do mito brilha a vida dos gregos e
que o restante são sombras (MA/HH I § 261). Os filósofos, por sua vez, são acusados
de tirania no que diz respeito à sua crença no conhecimento, na esperança de, com um
único salto, chegar ao ponto final de todo o ser e lá solucionar o enigma do mundo
(ibid.). Crentes na plausibilidade de seus anseios, os filósofos teriam rebaixado tanto o
mito como os seus concorrentes, o que teria sido uma manifestação daquilo que todo
grego queria ser: um tirano e essa tirania da verdade entrou-lhes furiosamente no cor-
po como um veneno (id.). O direcionamento dado à argumentação precede significa-
tivamente pontos que serão enfatizados nas obras seguintes e se remete a problematizar
aquilo que foi interpretado como o curso natural da história grega.
Segundo esta consideração, a cultura grega que sucedeu o período mítico pode ser
vista como uma forma de empobrecimento de suas possibilidades, quando vista sob a
ótica da continuidade, pois: “Eles [os gregos] tinham uma grande multiplicidade para
serem sucessivos, como a tartaruga na corrida com Aquiles: e é a isso que se chama
evolução natural” (ibid).
Posta a partir da pressuposição de que algo descontínuo teria ocorrido na filosofia
grega, a pergunta decisiva é: se Platão tivesse ficado livre do enfeitiçamento socrático
(socratische Verzauberung), não se teria encontrado uma outra espécie mais elevada de
filósofo? Os séculos sexto e quinto, escreve Nietzsche, parecem prometer algo mais e
ainda mais elevado do que ele próprio produziu, e acrescenta: “E não há ainda nenhuma
perda mais pesada, como a perda de um “tipo”, de uma nova e até então não d escoberta
da mais alta possibilidade de vida filosófica (ibid.). Referindo-se a uma ruptura na
evolução do tipo filosófico manifesto na Grécia no período de Tales a Demócrito, que
teria demarcado o malogro dessa espécie filósofo, Nietzsche denomina tirania do e spírito
filosófico a crença na possibilidade da posse da verdade absoluta (Besitzer der absoluten
Wahrheit), cujo alcance chegou até épocas recentes, mas cujo período e ntão se encerra,
em favor de um novo domínio, indicado como o dos oligarcas do espírito (Oligarchen
des Geistes). Esses se reconhecem como membros de uma sociedade correspondente,
unindo todas as opiniões e juízos que antes separavam e dividiam e que assim se opõem
163
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164
o além-do-homem enquanto ideal estético
Nós apreciamos, por exemplo, novamente Homero: é talvez nosso mais venturoso
avanço, o fato de sabermos desfrutar Homero, do qual os homens de uma cultura
nobre (os franceses do século XVII, tal como Saint-Evemond que, digamos, lhe cen-
surou o espirit vaste, e mesmo o último soar dessa cultura, Voltaire) não souberam e
nem sabem tão facilmente se apropriar – e que não se permitiram aproveitar.
165
roberto barros
Esse aforismo evidencia em que sentido Nietzsche se refere a Homero. Ele não
pensa em um retorno puro e simples aos ideais gregos, muito menos em uma restauração
da cultura mítica daqueles, mas, antes de tudo, ele visa a fundar uma nova consideração
do heroísmo descrito no épico grego, que ele então deseja assimilar a sua filosofia como
forma de oposição e de refutação do dogmatismo da moral platônico-cristã (NF/FP:
KSA 11, 25 [293], janeiro de 1884). Isso lhe possibilita então reavaliar o bárbaro i nerente
ao homem, enquanto forma de oposição àquilo que se tornou necessário, clássico, na
cultura. A referência a Homero, então, evidencia-se como a alusão ao primeiro objeto
de crítica do platonismo, quando do surgimento de uma nova mentalidade moral g rega
fundada no racionalismo platônico. Relacionado ao sentido histórico p ositivamente pen-
sado, Homero também é ligado à fortuna, que, todavia, o épico pode propiciar apenas
relacionando o viver com o constante perigo, o que em A Gaia Ciência implica a neces-
sidade de uma “grande saúde”, remetendo a um novo ideal, ao ideal de um bem estar e
benevolência sobre-humano, que perece frequentemente inumano (FW/GC § 382).
A relação entre o aforismo de Além do bem e mal escrito em 1886 e o tópico de
Para a para a genealogia da moral, tem como nexo a referência a Homero. A relação
entre estes textos e o aforismo 382 de A gaia ciência pode ser estabelecida a partir da
referência às formas de ideal contidas neste escrito. A alusão a Homero indica a perma
nência de um termo que é inegavelmente repleto de significados em Humano, demasiado
humano e que deve então ser relacionado com ideia da Transvaloração de todos os v alores
(Groddeck, 1997, p. 190). Esta relação pode ser antevista no título que ele desejou dar
ao quinto livro de A gaia Ciência: Wir Umgekehrten (ibid., p. 197). Um outro aspecto
que deve ser mencionado é o fato de que o filósofo cogitou a hipótese de publicar, por
uma questão de tom e conteúdo, o quinto livro de A Gaia ciência em uma nova edição
de Além do bem e mal (ibid., p. 193). Isso colocaria de maneira mais próxima a perspec
tiva segundo a qual Homero significa para Nietzsche um exemplo positivo de formu-
lação de saúde afirmativa, em uma “grande saúde”, a qual, tendo em vista as relações
entre o quinto livro de A gaia ciência e Assim falava Zaratustra, podem ser prioritaria-
mente remetida ao prefácio e à primeira parte deste livro.
Pressupondo estas aproximações, desejamos retornar ao comentário de Assim falava
Zaratustra feito em Ecce homo, especificamente à já mencionada inspiração que Nietzsche
afirma ser atuante na concepção do livro, remissão a partir da qual podemos compreender
que essa noção, referida aos poetas de outrora, pode ser facilmente relacionada ao traço
artístico que Nietzsche sempre elogiou nos gregos anteriores ao século VI a. C, repre-
sentantes da cultura mítica.
Estudos confirmam essa interpretação, de que no mundo grego anterior ao surgi-
mento da grafia, o poeta ocupa a posição de portador e transmissor daquilo que então
166
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30
O que é evidenciado na Ilíada na afirmação de Agamenon a Aquiles:
“Reis não queremos ser todos que, aqui, nos achamos reunidos.
É mau que muitos comandem; um, só, tenha o posto supremo;
Um, seja o rei, justamente a quem Zeus, descendente de Crono,
deu cetro e leis, para o mando, no povo exercer inconteste.” Ilíada. Canto II (204 – 207), p. 62.
31
A relação entre Homero e autossuperação já foi aqui indicada no § 224 de BM.
32
Acerca do significado desse conceito, escreve Jaeger: “Não temos na língua portuguesa um equivalente
exato para esse termo; mas a palavra ‘virtude’, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente
moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao
heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.” (1989, p. 18).
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Zaratustra menciona que foi durante uma tal existência, sobre a qual se dança e
se passa por cima dançando, que foi recolhida a palavra além-do-homem, assim como a
convicção de que o homem é algo que deve ser superado, de que ele é uma ponte e não
um fim (Zweck), e que lhe cabe ser feliz pelo seu meio dia e crepúsculo, como que no
caminho para novas auroras (ibid., § 3). Com o seu poetar, Zaratustra vem para redimir
os homens do acaso, ensina-lhes a criar o futuro e a redimir de maneira criadora tudo
o que foi, a isso ele chama de redenção.
Redimir o passado no homem e recriar todo o “assim foi” até que a vontade diga: “Mas
assim eu o quis! Assim irei de querê-lo”.
Isso lhes designei redenção. Somente isso ensinei-lhes a chamar redenção (ibid.).
Não de onde viestes, seja, doravante, a vossa honra, mas para onde ides! Que a vossa
vontade e o vosso pé, que quer ir além de vós mesmos – seja a vossa própria honra!
(ibid., § 12).
Mas o fito da honra não está na restituição do passado, mas sim no futuro, no
porvir pleno de possibilidades.
A terra dos vossos filhos deveríeis amar: seja esse amor a vossa nova nobreza – o não
descoberto, nos mais longínquos mares! A elas digo para as vossas velas procurar e
procurar!
Deveis fazer bem aos vossos filhos, para que eles sejam filhos de seus pais: deveis assim
redimir todo o passado! Essa nova tábua eu coloco acima de vós! (Ibid § 12).
170
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Espreitam-se uns aos outros, espreitam uns aos outros alguma coisa – chamam isso
“boa vizinhança”. Oh, bem aventurado tempo longínquo em que um povo dizia a si
mesmo: “eu quero ser senhor dos outros povos!”
Então, meus irmãos, o melhor deve dominar, o melhor também quer dominar! E, onde
o ensinamento soa diferente, há, por lá – falta do que é melhor (ibid., § 21) .
Essa concepção hierárquica das relações entre os homens advém do passado, pois:
Aquele que penetrou a fundo as antigas origens acabará, estai certos, por procurar
fontes do futuro e novas origens. (…)
Porque o terremoto mesmo – obstrui, sim, muitas fontes e cria muita gente sedenta,
mas, também, traz à luz forças internas e misteriosas.
O terremoto revela novas fontes. Em terremotos, do ruir de velhos povos, irrompem
novas fontes.
O traço de inatualidade dessa nova concepção de nobreza também pode ser ante
visto a partir de sua total oposição aos atuais bons e justos, àqueles que representam o
maior perigo para o futuro dos homens (die grösste Gefahr aller Menschen-zukunft) (ibid.,
§ 26). O que eles mais odeiam é o criador (Schaffender), aquele que parte as tábuas dos
velhos valores; o destruidor (Brecher), ao qual chamam de criminoso (Verbrecher) e, d esse
modo: “sacrificam a si mesmos o futuro – crucificam todo o futuro dos homens!” (ibid.).
Esse futuro decorre do descobrimento da terra do homem, o que exige dele que se
torne navegador esforçado e paciente, a fim de se lançar no mar e atingir a terra pátria,
a terra de seus filhos (Kinder – land), que se encontra longe, mas para onde arremete o
grande anseio (grosse Sehnsucht) (ibid., § 28). Essa vida, que assim exige dureza, é volta-
da à criação e “os criadores mesmos são duros” (Die Schaffenden nämlich sind hart), para
assim poderem criar obras eternas:
Felicidade, escrever na vontade dos milênios, como em bronze – mais duros do que o
bronze, mais nobres do que o bronze. Duríssimo é somente o mais nobre.
Essa nova tábua, meus irmãos, suspendo por cima de vós: tornai-vos duros.
171
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Uma estrela pronta e madura em seu meio dia, incandescente, traspassada, feliz ante
destruidoras setas solares : -
Um sol mesmo e uma inexorável vontade solar; pronta para destruir na vitória
Ó vontade, mudança de toda necessidade, tu, minha necessidade! Reserva-me para
uma grande vitória!
Assim falava Zaratustra. (Z/Z “Das velhas e novas tábuas” § 30)
O tópico final desta parte de Assim falava Zaratustra confirma aquilo que aludimos
acima, que a retomada de pressupostos gregos e a sua utilização efetiva como discurso
contrário às valorações morais torna-se possível apenas devido à transvaloração de
todos os valores (Marton, 2014, p. 123), ação que derruba os antigos dogmas e então
possibilita ao homem voltar-se para si mesmo, para sua história e seu passado mais
verdadeiros, não deturpados pela moral religiosa (NF/FP: KSA 9, II [175] Primavera-
-outono de 1881). Então, a partir deles, torna-se possível desejar superar-se e querer
determinar o próprio futuro de uma maneira altiva e viril ante a vida e a sua dureza.
É a transvaloração que possibilita que o passado seja retomado e redimido com
vistas ao homem futuro, liberto da moral das antigas tábuas e tendo a sua frente o além-
-do-homem (Wotling, 1995, p. 335) como ideal e contraideal, como forma não apenas
de se contrapor aos ideais vinculados à moral (Müller-Lauter, 1971, p. 114), mas t ambém
como expressão de uma nova concepção do mundo, entendido por meio do pressuposto
da vontade de poder. Considere-se ainda que, para Nietzsche, um ideal apenas se afirma
se ele se confronta com outro ideal; assim se supera o ideal único (ibid., p. 118), pois
esta é a condição que evita o dogmatismo de toda e qualquer idealidade.
A indicação desta passagem de Assim falava Zaratustra em Ecce homo, justamente
após a referência ao antigo conceito de inspiração, possibilitaa confirmação de que
naquela obra é possível pensar em um novo olhar para o passado, não relacionado à
moral das antigas tábuas. O sentido futuro conferido à atitude da destruição da velha
moral revela, no entanto, que não se trata de um retorno unicamente, mas, a partir do
seu resgate como contradiscurso,34 de mostrar que já houve outras formas de valorar e
34
Nesse ponto parece ser pertinente a interpretação do movimento de Nietzsche em favor do mito,
não como um anseio de restabelecimento, porém como a rgumento de uma crítica aos rumos e
padrões adotados pela cultura ocidental. A esse respeito cf. Salaquarda (1979, p. 179).
172
o além-do-homem enquanto ideal estético
que, portanto, é possível que se criem novas, aspecto que o apelo por uma nova n obreza
evidencia.
Mas voltemos aos traços com os quais Zaratustra deseja caracterizar esta nova
nobreza: o amor à terra, a decisão pessoal, a oposição à plebe (NF/FP: KSA 10, 16 [27],
outono de 1883), incapaz de aspirar algo além de si mesma e de seus pequenos p razeres,
o desejo de autossuperação, o sacrifício futuro, o viver na adversidade e a sua diferenciação
dos bons da moral, e os aproximemos dos traços da aristocracia grega, tal como são
retratados na poesia homérica e em Arquíloco. Uma primeira forma de aproximar
ambas as p erspectivas pode ser alcançada por intermédio da análise da aristocracia
guerreira grega. Segundo Werner Jaeger, em seu longo estudo sobre a Paideia grega,
este conceito deve ser pensado na Hélade, imediatamente a partir de um retorno à
antiga aristocracia guerreira que, com seus princípios seletivos e de diferenciação, é a
fonte da identidade dos gregos:
173
roberto barros
pelo alcance da supremacia entre seus pares, uma corrida para alcançar tal distinção
( Jaeger, 1989. p. 21) e esse ponto pode ser estendido até o campo da delimitação do
espaço no qual atuava o aristocrata grego. Desse modo, na delimitação do seu âmbito
de presença e atuação, o guerreiro se circunscrevia a um espaço delimitado, ao centro
(eς mesoν das assembleias dos aristoi, local da partilha do butim de guerra, feito segun-
do o desempenho de cada combatente (Detienne, 1988, p. 47). A esse âmbito, tal como
podemos ler na Ilíada, apenas tinham acesso aqueles que afirmaram o seu singular
valor individual em combate ou com f açanhas, o que o tornava para a elite guerreira o
lugar comum, que pelo próprio caráter aristocrático da epopeia, apresentava-se como
uma assembleia dos heróis.
36
O interesse de Nietzsche pelos antigos gregos está documentado nos três primeiros volumes da
Kritische Gesammtausgabe (KGW). Nesses volumes, encontram-se textos da pré-adolescência do
autor com significativas referências a temas da história e da cultura grega. Conf. Barros (2006).
Em um escrito póstumo de 1883 podemos ler:
“Conquistar para mim a completa imoralidade do artista no sentido de minha matéria [(Stoff )]
(Humanidade) [(Menschenheit)]: Esse foi o trabalho de meus últimos anos.
Para conquistar para mim a liberdade espiritual (geistige Freiheit) e alegria (Freudigkeit), para poder
criar e não ser tiranizado por estranhos ideais (fundamentalmente pouco advém disso, do que eu
tinha me desprendido: porém, minha forma favorita de desprendimento (Losmachung) era a a rtística:
isto é, eu esboçava uma figura (Bild) de quem eu tinha me interessado até então: assim Schopenhauer,
Wagner, os gregos (o gênio, o santo, a metafísica, todos os ideais até agora, a mais alta moralidade)
– ao mesmo tempo um tributo de gratidão” (NF/FP: KSA 10, 16 [10] Outono de 1883).
174
o além-do-homem enquanto ideal estético
1884). Deve-se ressaltar que o louvor se remete a uma sociedade que tem seus valores
transmitidos e perpetuados por uma longa tradição artística através unicamente de
relatos orais (EF: HF, p 256), apenas a partir da qual um indivíduo tem ou não direito
à existência.
Hoje sabemos que tanto a Ilíada como a Odisséia representam a última fase do
movimento épico na Grécia, originados dos poemas, sagas, lendas e mitos dos gregos.37
Estudos como o de Marcel Detienne, Jean Pierre Vernant, dentre outros, nos possibi-
litam uma maior aproximação do período de elaboração desse material, assim como do
ambiente no qual ele foi produzido. Sabemos que em uma cultura sem grafia, a memória
possuía uma enorme importância na transmissão e manutenção dos caracteres culturais.
No que diz respeito ao poeta e sua atividade a ssociada aos valores da soberania guer-
reira, seu louvor se direcionava imediatamente aos fatos e grandes feitos afirmativos da
importância desta casta, os quais apenas por intermédio do aedo poderiam ser perpe-
tuados. Por mais prodigiosa que fosse a sua memória, ela jamais poderia reter todos os
fatos ocorridos, o que implica em uma dupla significação da memória na Grécia arcaica:
primeiramente a necessária seletividade da memória do poeta, que, explicitamente ado-
tando o critério da excelência e superioridade afirmada na religião, adota a memória
como princípio temático de suas composições elogiosas da excelência divina, humana
e animal. Disso decorre o segundo aspecto a ser indicado, o da necessidade do indivíduo
inserido em uma tal cultura de cada vez mais acentuar a sua singularidade e destacar-se
dos demais homens (Detienne, 1988, p. 20), pois apenas assim, e mediante grandes
feitos no campo de batalha, ele poderia aspirar à perpetuação de seu nome para as
gerações futuras.38
37
Nunes, Carlos Alberto. A questão homérica § 1, São Paulo: Ediouro, s. d.
38
É precisamente isso que canta o poeta no início do V canto acerca do Herói Diomedes:
“Palas Atenas, a donzela de Zeus, em Diomedes infunde
força e coragem sem par, para que entre os Argivos pudesse
sobressair mais que todos e glória imortal conquistasse.” Ilíada. canto V (1-3).
175
roberto barros
39
Exemplo significativo com respeito a esse aspecto são as palavras de Agamenon a Aquiles, o herói
modelar da epopeia:
“És, dos monarcas alunos de Zeus, a quem mais ódio tenho.
Sempre encontraste prazer em contendas, combates e lutas”. Ilíada. Canto I. 176-7.
40
Ilíada. Canto III. 287.
176
o além-do-homem enquanto ideal estético
41
Por conseguinte, são estas as palavras de Heitor, ante as muralhas de Tróia e ao perceber a proxi-
midade de sua morte pelas mãos de Aquiles:
“Pobre de mim! É bem certo que os deuses à morte me votam.
Tive a impressão de que o forte Deífobo estava a meu lado,
mas na cidade se encontra; foi tudo por arte de Atena.
Inevitável, a morte funesta de mim se aproxima.
Há muito tempo, decerto, Zeus grande e seu filho flecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem, pois eles,
sempre benévolos, soíam salvar-me; ora o Fado me alcança.
Que pelo menos, obscuro não velha eu a morrer, inativo;
hei de fazer algo digno, que cheque ao porvir, exaltado” (id.., Canto XXII. 297- 305).
42
Dai Aquiles dizer a Ulisses acerca de Agamenon na cena da comitiva:
“Tal como do Hades as portas, repulsa me causa a pessoa
que na alma esconde o que pensa e outra coisa na voz manifesta”. Ilíada. Canto IX. 312 – 313.
43
Id., Canto XXIII. 623.
44
Id., Canto XXII. 446-7.
45
Acerca da significação desse legado para a “formação” do herói homérico, nos remetemos à figura
do próprio Aquiles. Afastado dos combates e recluso ao seu navio, é descrito no momento da
chegada da pequena comitiva que pretende demovê-lo de sua decisão de não mais participar dos
combates nos seguintes versos:
“Quando chegaram às tendas e naves dos fortes mirmidões,
aí enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora
177
roberto barros
e desejam impelir, no mesmo caminho, os homens futuros. É neste sentido que se deve
entender a lógica da honra heroica, o seu apreço pela vida, manifesto simultaneamente
como desejo de morte, pois segundo a sua ótica: “São mais poupados na guerra os que
sabem morrer bravamente; os fugitivos nem glória jamais terão nem defesa” (Ilíada.
Canto XIX. 564-5).
A perspectiva aristocrática forneceu o germe da noção de autoaprimoramento, que
posteriormente constituirá o cerne da concepção clássica de Paideia grega, que Platão
busca alterar e adequar segundo seus pressupostos filosóficos. A oposição a Platão feita
por Nietzsche mediante um retorno à cultura grega pré-filosófica oferece importantes
indícios de que pressupostos compreendidos por ele na época mítica dos gregos são
transpostos para a sua filosofia como forma de oposição ao platonismo e ao cristianis-
mo. Diante do momento histórico de construção de identidades nacionais na Europa
e decisivamente na Alemanha, o autor de Assim falava Zaratustra faz uso do culto à
singularidade grega em oposição ao processo de massificação interpretado por ele como
em franco andamento na Europa. Nesse sentido, a noção grega de aprimoramento
individual lhe fornece um ponto de partida, até mesmo histórico, a partir do qual a
oposição ao dogmatismo filosófico possa ser levada a cabo (NF/FP: KSA 11, 25 [208],
janeiro de 1884). A mentalidade aristocrática grega expressa na epopeia tinha por
princípio primeiro a formação do indivíduo segundo padrões ativos, afirmativos e em-
belezadores de sua conduta, direcionados a fazê-lo ambicionar insaciavelmente os mais
altos valores distintivos.46 Sua expressão poética era simultaneamente o elogio e o culto
á excelência, critério primeiro e único estatuto da palavra elogiosa, na qual o homem
comum não se fazia presente. Esses são critérios que Nietzsche claramente pressupõe
à sua aristocracia espiritual. A perspectiva aristocrática se justifica por ser o escol en-
tendido como fonte originária das valorações morais (NF/FP: KSA 10, 7 [22], prima-
vera – verão de 1883), o que torna imprescindível o seu reaparecimento tendo como
fundamento um conceito elevado de cultura e de indivíduo. O conceito de aristocracia
de Nietzsche pode ser solidamente interpretado a partir desses princípios, ele não de-
signa especificamente uma classe social ou política (NS/FP: KSA 13,16 [17], prima-
vera – verão de 1888), mas uma disposição de espírito cuja comunicação poética Zara-
tustra faz por meio do ensinamento do além-do-homem.
178
o além-do-homem enquanto ideal estético
Isso não deve significar que Nietzsche tente restabelecer historicamente a menta-
lidade aristocrática grega. Antes, ela lhe serve para evidenciar as formas moralizadas de
dominação inerentes à própria universalização moderna. O seu intuito fundamental é
apresentar uma forma de superação possível do niilismo e do fim da criação (NF/FP:
KSA 10, 4 [81], novembro – fevereiro de 1882) cuja retomada á a intenção da assimi-
lação do trágico e do dionisíaco à filosofia e expresso pelo pensamento do eterno r etorno
do mesmo. O ensinamento do além-do-homem possui com isso uma forte e determi-
nante significação estética, cuja j ustificativa fundamental (MA II/HH II § 218) é o seu
significado existencial, tal qual a arte grega.47
Trata-se, portanto, na filosofia de Nietzsche voltada para a figura de Zaratustra,
de uma revalorização positiva da força de embelezamento da arte, o que lhe confere
significação vital, precisamente como antídoto contra o niilismo e a sensação de vazio
causada pela crise dos antigos valores da tradição (Machado, 1997, p. 19). Mostrar os
traços de proximidade entre o ensinamento do além-do-homem e a perspectiva heroica
da poesia épica homérica significa indicar que, com a constatação do ocaso dos valores
tradicionais, outras formas de consideração podem ser consideradas possíveis no domínio
da expressão (NF/FP: KSA 13, 16 [16], primavera verão 1888). É a percepção da pe-
riculosidade para a vida dos antigos pressupostos estabelecidos desde Platão, mantidos
e acentuados pela crença judaico-cristã ( JGB/BM § 62), que Nietzsche interpreta como
sendo o ponto culminante que a cultura ocidental alcança em seu tempo (NS/FP: KSA
13,16 [15], primavera – verão de 1888). A evidência do ocaso desses valores manifesta
no fatalismo da cultura, de onde decorre a constatação da morte de Deus, que significa
o abandono dos pressupostos tradicionais fundados na afirmação da paridade entre
verdade e virtude. O vazio causado pela supressão do absoluto expresso pela deidade é
por Nietzsche, contudo, interpretado positivamente, como indício da possibilidade do
novo, de novas criações. A retomada dos pressupostos gregos respeita esta perspectiva.
Ela significa não o desejo de restabelecer um novo modelo canônico, absoluto para o
homem enquanto cura contra o niilismo, mas antes mostrar a virtualidade mesmo de
uma aceitação deste como elevado desafio para indivíduos de uma cultura, que assim
se veem confrontados com a experiência de um mundo desconhecido, da imprevisibi-
lidade dos conflitos dinâmicos de força, que Nietzsche filosoficamente nomeia de dio-
nisíaco (Marton, 2010, p. 146).
47
Em um escrito póstumo do período final da elaboração da primeira parte de Zaratustra, intitulado
Discursos aos meus amigos (Reden an meine Freunde), podemos constatar o retorno de Nietzsche a
temas postos em NT. Nesse pequeno escrito pode-se encontrar claramente posta a noção de justi-
ficação estética da vida, em contraposição à moral, cujo modelo é precisamente a arte trágica grega.
Cf. NF/FP: KSA 10, 7 [7] Verão de 1883.
179
roberto barros
Eu não quero a vida novamente. Como eu a suportei? Criando. O que me faz suportar
o momento? O vislumbrar o além-do-homem, aquele que afirma a vida. Eu mesmo
tentei afirma-la – Há! (FP: KSA 10, 4 [81], novembro de 1882 – fevereiro de 1983).
180
Considerações finais
Ao conceber Assim falava Zaratustra como tragédia Nietzsche pode v oltar a fazer uso
de pressupostos dos princípios artísticos para ele fundantes do trágico grego: do dioni-
síaco e do apolíneo. Tal fator aproxima este livro de seu escrito inaugural. Esta proxi-
midade, como foi mostrada, é indicada pelo próprio autor no prefácio posterior a crescido
à obra, onde podemos encontrar toda a confluência de argumentos que possibilitam
esse retorno, tais como o afastamento do romantismo e da metafísica e, a partir disso,
a possibilidade do dionisíaco e de uma nova arte da qual Zaratustra é trasgo (Unhold)
(GT/NT Tentativa de autocrítica § 7).
A consideração dessa imediação implicou por sua vez a necessidade de interpretar
a aproximação entre escritos distanciados por mais de uma década a partir da declarada
importância conferida a Assim falava Zaratustra. Desse modo, pareceu bastante plau-
sível que o ressurgimento do dionisíaco deveria ser pensado como pressuposto de jus-
tificação à presença de caracteres de seu outro complementar, do apolíneo (Barrack,
1974, p. 115), nos ensinamentos de Zaratustra. Segundo a perspectiva de O nascimento
da tragédia, Assim falava Zaratustra, concebida como obra trágica, é passível de também
ser interpretada como contendo caracteres de ambos os impulsos artísticos. Isso possi-
bilita que se compreenda o ensinamento do além-do-homem como a bela imagem, que
serve de preparação e antídoto para o difícil suportar do ensinamento fundamental de
Zaratustra, que é o pensamento do eterno retorno do mesmo.
Mas esse ressurgimento traz consigo pressupostos novos, subentendidos a partir
de novos direcionamentos teóricos de Nietzsche, decisivamente depois de sua decepção
com o wagnerianismo e afastamento do pessimismo de Schopenhauer. Para que fosse
possível analisar de forma pertinente a retomada desses pressupostos mostrou-se ne-
cessário analisar a partir de quais outros intentos o autor remete-se novamente ao seu
O nascimento da tragédia. A indicação dos objetivos desta retomada encontra-se volu-
mosamente indicada tanto nos prefácios de 1886, como em Ecce homo, os quais visam
decisivamente a fornecer dados à compreensão de Assim falava Zaratustra, cuja recepção
e compreensão não satisfizeram as expectativas de seu autor.
Todavia, o estatuto do trágico se altera decisivamente no espaço de tempo que
separa O nascimento da tragédia de Assim falava Zaratustra e isso diz respeito também
a Apolo e Dionísio. Os novos direcionamentos de Nietzsche a partir de Humano, de-
181
roberto barros
masiadamente humano influenciam nesta nova consideração. Enquanto esses dois princí
pios são pensados segundo a perspectiva ontológica da metafísica do artista, que colo-
cava o primeiro como força atuante no nível do fenômeno e o segundo como coisa em
si, como vontade propriamente dita, na filosofia posterior de Nietzsche (Barrack, 1974,
p. 116), o dionisíaco possui significação central, ao passo que em Assim falava Z aratustra
Nietzsche não emprega o termo Apolo uma única vez (ibid., p. 118).
Esse aspecto possui grande importância na nova significação conferida ao dioni-
síaco e deve ser considerado a partir do ponto segundo o qual, se a tragédia de Zaratustra
não se caracteriza mais como o antigo drama grego, portanto pela sua seriedade – m uito
embora ela seja concebida como poesia preceptorial (Lehrgedicht) – ao mesmo tempo
ela deve ser entendida também como paródia tanto do evangelho cristão como de todos
os valores tradicionais (Allemann, 1974, p. 54). Entretanto, mesmo não sendo direta-
mente indicado, o traço apolíneo da obra revela-se na figura de Zaratustra em dois
aspectos: No fato de que com Zaratustra a filosofia se aproxima da arte e se torna uma
atividade antiniilista por excelência, portanto voltada para a redenção do sofrimento,
da ação e do conhecimento, o que pressupõe o heroísmo (NF/FP: KSA 13, 17 [3], 2.
Maio-Junho de 1888). Na sua atitude heroica diante da vida pensada como eterna
recorrência de todas as coisas, Zaratustra necessita da arte como aspecto necessário para
o anúncio da necessidade da criação do mais alto tipo heroico, o além-do-homem (Bar-
rack, 1974, p. 118).
O traço artístico do ensinamento que se evidencia no poetar de Zaratustra deve
ser entendido também em sua dimensão filosófica, i mplícita na aferição de p rofundidade
à revalorização da superficialidade a partir da superficialidade deste. Mesmo afirmando
que os poetas mentem em demasia, Zaratustra justifica a mentira como estando em
serviço da transitoriedade e da aparência, e assim da efetividade e não de uma vaga
visão onírica (Allemann, 1974, p. 57). Com a tragédia de Zaratustra, Nietzsche efetua
um distanciamento com relação à significação dos dois princípios estéticos da metafí-
sica do artista. Ele, todavia, não abandona a virtualidade que os dois princípios tornados
filosóficos passam a possuir. Se o filósofo ainda pensa a produção poética como um meio
de produzir a bela projeção do sofrimento inerente ao mundo que o dionisíaco signi-
fica, tal produção poética passa a ser justificada não mais unicamente por esse fator, mas
antes, fundamentalmente, pela força afirmativa da aparência que produz, que mesmo
parodiando a si mesma, deseja ser tomada a sério (ibid., p. 57). O mesmo se passa com
respeito à concepção tradicional da tragédia e do trágico. A sua finalidade na filosofia
de Nietzsche é a elevação (Steigerung) do sentimento de vida, para o que ele se utiliza da
arte como estimulante (ibid.). Desse modo, são contrapostos o desmascaramento do
poeta pela boca de Zaratustra com o elogio da potência p oética e a sua justificação como
182
considerações finais
1
Ou ainda no póstumo:
“Como eu pensava no objetivo (Zweck), pensava também no acidental.
É necessário ser possível esclarecer o mundo depois dos objetivos e o mundo através do acidental,
do mesmo modo como pensar, como querer, como movimento, como calma: do mesmo modo que
Deus e como o diabo. Então tudo é o eu.
Não são nossas perspectivas, nas quais nós vemos as coisas, porém são as perspectivas uma quali-
dade (Wesens) de nossa espécie, uma da maiores: em cujos quadros (Bilder) nós olhamos”. FP, KSA
10, 4 [172], p. 162.
183
roberto barros
2
Em anotações direcionadas à escritura de Z Nietzsche escreve:
Isto que vem
O próprio ambicionar no nada.
Guerra sobre o princípio de melhor não ser do que ser.
(A)
Primeira consequência da moral : A vida é para ser negada.
Última consequência da moral = A própria moral é para ser negada.
(B)
Assim: Decorre da primeira consequência.
Liberação do egoísmo.
Liberação do mal.
Liberação do indivíduo.
Os novos bons (“eu quero”) e os velhos bons (“Eu devo”). Liberação da arte como recusa do co-
nhecimento incondicional. Elogio da mentira.
Recuperação da religião.
(C)
Através de todas essas liberações cresce o estímulo da vida.
Sua mais íntima negação, a moral, eliminada.
Com isso início do declínio. A necessidade da barbárie à qual a religião também, por exemplo,
pertence. A humanidade necessita viver em ciclos, única forma de duração (Dauerform). Não a
cultura mais longa possível, porém a mais curta e elevada (hoch). Nós na época do meio dia.
(D)
O que determina a altura da altura (Höhe der höhe), na história da cultura? O momento onde o
estímulo é o maior. Significa, portanto, que o mais poderoso pensamento se tornou suportável
querido. NF/FP: KSA 10, Verão-outono de 1882.
184
considerações finais
mais bela imagem (Barrack, 1974, p. 120), pensada como elevado ideal às gerações futu
ras. Todavia, em Assim f alava Zaratustra, obra em que tanto o dionisíaco como o apolíneo
sofrem significativas mudanças, o estatuto do épico é outro. Em O N ascimento da tragédia,
a seriedade e o sublime eram relacionados à disciplina e ao heroísmo; naquela obra, a
superação do espírito de gravidade é uma das características da personagem apolínea
que é Zaratustra. Por esse m otivo, o além-do-homem e o herói apolíneo não podem ser
os mesmos, pois este precisa perder a sua seriedade e solenidade e dançar como o vento
(ibid., p. 122). Eles podem, porém, ser aproximados pelo desdém de Zaratustra pela
fraqueza e anseio de autossuperação que distinguem o além-do-homem (Wotling, 1995,
p. 333). Desse modo, o além-do-homem apresenta aspectos tanto apolíneos quanto dio-
nisíacos, haja visto que são a spectos indissociáveis: o primeiro é o desejo de autossupe-
ração, e o s egundo, o perigo que tal desejo implica, pois deve ser compreendido em um
mundo onde conflito, criação e destruição lhe são aspectos inerentes.
Em decorrência disso, o dionisíaco e o apolíneo são entendidos não mais como
impulsos artísticos da natureza, mas como estados fisiológicos, por meio dos quais a
arte se manifesta (NF/FP: KSA 13, 14 [36], início de 1888). Em Assim falava Zaratustra
eles devem ainda ser entendidos como relacionados à noção de autossuperação, pois
esse desejo integra o dionisíaco como motriz do ciclo de morte e vida que permanece
em Nietzsche na fase posterior ao distanciamento da filosofia de S chopenhauer (Barrack,
1974, p. 128).
No aforismo 370 de A gaia ciência, em tom de justificativa, Nietzsche diferencia
claramente o pessimismo dionisíaco e o que ele denomina de pessimismo romântico.
Menciona as concepções de toda arte e filosofia consideradas como remédios e auxílio
a serviço da vida em crescimento e em luta, o que pressupõe sempre sofrimento e so-
fredores. Há, porém, aqueles que sofrem por abundância de vida, que desejam a arte
dionisíaca e a visão trágica e aqueles que sofrem por seu enfraquecimento, que exigem
da arte e da filosofia a calma, o silêncio, mar sem ondas, ou então a embriaguez, o es-
pasmo e o delírio. Os últimos, escreve Nietzsche, são os românticos, cujos nomes mais
célebres são os de Wagner e S chopenhauer, e que neste momento são postos em dife-
renciação do homem mais rico em plenitude de vida, o homem dionisíaco: aquele que
pode se permitir a visão do mais terrível, do problemático; o luxo da destruição, da
decomposição, e a negação.
A partir dessa distinção é questionado aquilo que é criado com estas perspectivas
no domínio da arte, ou seja, Nietzsche coloca o problema, se na manifestação artística
de ambas encontram-se traços de abundância ou de empobrecimento da vida, ou como
o próprio autor formula a questão: “aqui foi a fome ou o supérfluo que se tornou criativo?”
(FW/GC § 370) Essa pergunta, de caráter fisiológico, remete a uma outra, que toca no
185
roberto barros
Em suma: todo idealismo filosófico foi até o presente algo como d oença, em que não
foi, como no caso de Platão, a previdência de uma saúde muito rica e perigosa, o medo
dos sentidos preponderantes, a sabedoria de um sábio discípulo de Sócrates. Nós,
homens modernos, talvez não sejamos suficientemente saudáveis para ter necessidade
do idealismo de Platão? E nós não tememos os sentidos, por que… (FW/GC § 372).
186
considerações finais
do dionisíaco referidas no aforismo 370, onde encontramos referências a uma arte ho
mérica (apolínea) e dionisíaca.
A partir desse ponto, pode-se delinear melhor os traços do novo ideal a que Nie
tzsche se refere, que poderia ser denominado “clássico” e deve ser compreendido imedia
tamente como separado das formas vigentes de idealismo, tanto do filosófico como do
romântico, os quais para ele não são expressão de uma saúde atuante, mas ou de uma
moral restritiva ou de um estado doentio, o que acaba por produzir o mesmo efeito. O
ideal ao qual Nietzsche se refere é o ideal dionisíaco, o da aceitação e mesmo da necessi
dade da pluralidade de estados, desafios e de condições adversas; que acaba por exigir
um tipo mais forte de homem, que vive, habitua-se e mesmo deseja viver nas intempéries,
a fim de cada vez mais ver-se necessitado a buscar estados mais elevados. Em favor des
sa distinção, fazemos nova referência à seção Por que escrevo tão bons livros? de Ecce homo,
última obra de Nietzsche. Nessa, encontramos referências claras com respeito à utilização
do termo ideal e de sua significação para se compreender a ideia do Übermensch.
do Alvo do homem? Porém, o alvo mesmo é uma expressão de uma determinada qualidade do
corpo e suas condições. O corpo e a moral.” NF/FP: KSA 10, 4 [217], novembro de 1882 – feve-
reiro de 1883.
4
Segundo Wotling, na “pré-história” da noção de übermenschlich (surhumain), ou seja, na constatação
187
roberto barros
dos que se colocaram acima de sua época e de sua moral,5 demonstrando a qualidade
que Nietzsche deseja conferir ao homem futuro através do além-do-homem, a exigência
da autossuperação.6
Em favor de uma distinção entre o além-do-homem e o tipo idealista de homem
superior, um outro aspecto importante é a inexistência daquele. Em Assim falava Zara-
tustra ela é afirmada claramente (Z/Z Dos sacerdotes), do mesmo modo como a justificação
estética da vida a partir da força da criação, que não mais necessita de um fundamento
e então se encontra livre para se direcionar para o futuro.
Primeiramente dizia-se Deus, quando se olhava para mares distantes: mas agora, eu
vos ensino a dizer além-do-homem.
Deus é uma suposição; mas quero que o vosso supor não vá além de vossa vontade
criadora.
Podeis criar um Deus? Então calai-vos diante de mim a respeito de todos os deuses!
Mas bem podeis criar o além-do-homem.
Não vós mesmos, talvez, meus irmãos! Mas podeis tornar-vos pais e ancestrais do além-
-do-homem; e que essa seja a vossa melhor criação (Z/Z Das ilhas bem aventuradas).
de que a palavra precede o conceito, ela apresenta-se sempre em sentido negativo e associada aos
tipos superiores da cultura, o santo e o idealista (HDH II VO, § 73/ HDH I § 143). O autor ar-
gumenta que a análise desta noção feita a partir da ótica da vontade de poder descobre a origem
do dualismo entre alma e corpo e leva Nietzsche, desde Aurora (§ 548), a dar novo sentido ao termo
a partir da hierarquia da vontade de poder e da verdadeira grandeza humana, a partir do dístico da
Überwindung. Esses aspectos servem de base para que o comentador conclua que o pensamento
nietzscheano do além-do-homem se constrói a partir da recusa da interpretação idealista em asso-
ciação com o santo e com a ideia de gênio. (Wotling, op.cit, p. 330 – 5).
5
Segundo Wotling, César Bórgia e Napoleão são tomados por Nietzsche como encarnações histó-
ricas do homem superior, dos criadores, expressão da força dos instintos e da vontade de poder. São
aproximados por Nietzsche de Goethe, H afiz e Shakespeare, que podem ser tidos como modelos
do tipo superior, como prefigurações do tipo “übermenschlich” (ibid, p. 351/2).
6
O que, porém, não significa dizer que César Bórgia representa o tipo último de nobreza para
Nietzsche. A sua interpretação do duque renascentista pode ser bem melhor compreendida a
partir da sua leitura de Maquiavel (Vacano, 2007, p. 73) e da sua admiração pela interpretação de
Jacob Burckhardt (Chaves, 2000, p. 50), que levam Nietzsche a interpretar Maquiavel como um
iluminador da antiguidade (NF/FP, 25 [38], KSA 11, p. 21) e Cesare Bórgia como aquele que une
a animalidade e o refino do artista criador em uma única pessoa, do que resulta uma singularidade
criativa, cuja configuração pulsional (volitiva) o levou a se contrapor à moral e ao poder estabele-
cido de seu tempo, tendo em vista uma visão política sob a ótica do artista. Nietzsche, porém,
mobiliza outras variantes para o conceito de nobreza, tal como nos indica Oswaldo Gaicóia, ao
afirmar que: “o ideal nietzscheano da nobreza da força não se perfaz no tipo brutal da fera loira ou
na figura histórica de Cesare Borgia, mas sim na beleza que não mais ataca”. Cf. O Platão de
Nietzsche, O Nietzsche de Platão. Cadernos Nietzsche 3, 1997, p. 33.
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considerações finais
7
Em NT Nietzsche já afirma que na atuação de Eurípedes, o trágico sob influências socráticas,
encontra-se o fim da idealidade que sempre marcara as figuras representadas na tragédia (GT/
NT § 11).
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roberto barros
Assim como nós não temos mais necessidade da moral, do mesmo modo não temos
da religião. O “eu amo Deus” – a única velha forma de religiosidade – converteu-se em
amor a um ideal, tornou-se criadora, puro Deus-homem (NF/FP: KSA 10, 4 [90],
novembro de 1882 – fevereiro de 1883).
8
Preocupado com a aproximação de Zaratustra da tendência antissemita efervescente na Alemanha,
Nietzsche escreve em um rascunho de uma carta a sua irmã: “Agora que tanto já foi alcançado,
tenho de me defender com unhas e dentes da confusão com a canalha antissemita, depois que
minha própria irmã, minha antiga irmã, estimulou a mais funesta de todas as confusões. Após ter
lido na correspondência antissemita o nome de Zaratustra, minha paciência se esgotou: encontro-
-me agora em estado de legítima defesa em relação ao partido de seu esposo. Estas malditas cari-
caturas antissemitas não devem tocar no meu ideal!!!” Citado e traduzido por Maria Cristina
Ferraz (1994, p. 61).
190
considerações finais
Criar um ser mais elevado do que nós mesmos somos, é o nosso Ser. Criar algo acima
de nós. Este é o impulso da criação, isto é o impulso da ação e da obra.
Como todo querer pressupõe um alvo, assim o homem pressupõe uma Essência que
não está lá, mas que porém oferece uma finalidade para sua existência. Essa é a liber-
dade de toda vontade! Nessa finalidade repousa o amor, a glorificação, o ver a perfeição,
a nostalgia (FP. KSA 10 5 [1] 203 – Fevereiro de 1883, p. 209).
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