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Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética

Editores
Antonio Florentino Neto
Douglas Ferreira Barros

Conselho Editorial
Adriano Naves Brito
Alcino Eduardo Bonella
Daniel Omar Perez
Eder Soares Santos
Henry Burnett
Jeanne Marie Gagnebin
Luiz Paulo Rouanet
Marcio Suzuki
Marcos Lutz Muller
Oswaldo Giacoia Jr.
Robson Ramos Reis
Sofia Stein
Nietzsche:
além-do-homem e
idealidade estética

Roberto Barros

phi
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880

B277n Barros, Roberto de Almeida Pereira de.


Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética / Roberto
de Almeida Pereira de Barros. -- Campinas, SP :
Editora Phi, 2016.
198 p. ; 16x23 cm.
Inclui referências
ISBN: 978-85-66045-39-0
Original, apresentando como dissertação (mestrado),-
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciencias Humanas
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte -
Filosofia. 3. Tragédia. 4. Estética. I. Título.
CDD 701
193

Índice para catálogo sistemático:

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900


2. Arte - Filosofia
3. Tragédia
4. Estética

Copyright © by Editora PHI LTDA

Todos os direitos reservados a Editora PHI LTDA.

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Rua Castro Mendes, 133 – Taquaral – 13076-120 – Campinas – SP
www.editoraphi.com.br – editoraphi@editoraphi.com.br
Agradecimentos

Gostaria de registrar aqui meus agradecimentos a todos que, direta


ou indiretamente, contribuíram para a elaboração do presente livro.
Aos colegas pesquisadores e alunos, que com suas pesquisas, textos e
questionamentos, influenciaram a conclusão deste.
Em especial aos colegas Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) e Oswaldo
Giacoia Júnior (UNICAMP), pelos respectivos comentários. Agra-
deço também ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Universidade Federal do Pará (UFPA) e a seu Diretor, Nelson
Souza Júnior, assim como a CAPES, pelo apoio recebido.
À editora PHI, pelo profissionalismo.
Índice

Lista de abreviações | 9

Apresentação | 11

Introdução | 15

I A perspectiva trágica | 27

II Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte | 66

III A fala poética em Assim falava Zaratustra | 96

IV O além-do-homem enquanto ideal estético | 126

Considerações finais | 181

Referências bibliográfica | 192


Lista de abreviações*

GT/NT O nascimento da tragédia

UB/CE Considerações extemporâneas

DS/DS David Strauss, o devoto e o escritor

HL/HL Da utilidade e da desvantagem da história para a vida

SE/SE Schopenhauer como educador

WB/WB Richard Wagner em Bayreuth

MA I/HH I Humano demasiado humano I

MA II/HH II Humano demasiado humano II

VM/OS Opiniões e sentenças variadas

WS/AS O andarilho e a sua sombra

M/A Aurora

FW/GC A gaia ciência

ZA/ZA Assim falava Zaratustra

JGB/BM Além do bem e do mal

GM/GM Para a genealogia da moral

WA/CW O caso Wagner

GD/CI Crepúsculo dos ídolos

AC/AC O anticristo

EH/EH Ecce homo

* Todas as referências feitas aos escritos de Nietzsche e às suas cartas se reportam à edição crítica
(Kritische Studien Ausgabe, (KSA), Berlin/New York, DTV: Walter de Gruyter, 1988. Em caso de
recorrência a outras edições, elas serão indicadas nas notas. As abreviações se referem aos títulos em
alemão e em português. Textos sem divisão em tópicos e não aforismáticos serão indicados pelo
volume e número da página. Fragmentos póstumos serão citados a partir do volume e mencionarão
a numeração do apontamento e a indicação de seu período provável de acordo com a edição men-
cionada.
NW/NW Nietzsche contra Wagner

EP Escritos póstumos

PHG/FT A filosofia na época trágica dos gregos

GMD/DM O drama musical grego

ST/ST Sócrates e a tragédia

DW/VD A visão dionisíaca do mundo

GTG/NPT O nascimento do pensamento trágico

WL/VM Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral

NF/FP Fragmentos póstumos

PS/EF Escritos filológicos

HPH/HF Homero e a filologia clássica


Apresentação

Poucos temas despertaram tanto interesse na história da filosofia de Nietzsche, quanto


o de além-do-homem (Übermensch). Nele, cruzam-se diversas questões impostas ao seu
pensamento durante a década de 1880; questões que dizem respeito, no fundamental,
às possibilidades implicadas no processo de “transvaloração de todos os valores”. Im-
portantes pesquisadores estudaram, sob diversas perspectivas, a gênese dessa ideia na
própria obra de Nietzsche até o momento fundamental no qual se formula de maneira
mais incisiva e peremptória, logo no início do Zaratustra; aquele, cuja boa nova é jus-
tamente o anúncio do além-do-homem. Tema arriscado e complexo – uma vez que sua
recepção mais intensa e, ao mesmo tempo, mais problemática, se deu por ocasião da
apropriação nazista do pensamento de Nietzsche. O além-do-homem passou a ser então
confundido com a “besta loura”, representante da “raça pura, superior”, ou ainda como
a personificação de uma espécie de aprimoramento, melhoramento da humanidade no
sentido do darwinismo. Além disso, o fato de que no além-do-homem se constitua uma
espécie de primeiro ensinamento de “Zaratustra” traz consigo outro problema, o modo
específico de expressão própria de Assim falou Zaratustra, que, como se sabe, apresenta-
-se na forma de um poema. Essa dimensão poética, tão cara a Nietzsche e tão decisiva
no seu intento de recriar a própria ideia de filosofia, sempre foi um problema para seus
intérpretes, de modo que chamar Nietzsche de “poeta”, ou o Zaratustra de “poesia”,
passou a ser quase um insulto, uma desqualificação de sua atividade como fi­ló­sofo. Às
expensas de Nietzsche, combateu-se nele o poeta de modo a valorizar o filó­sofo, v­ isando
inseri-lo, muitas vezes a qualquer preço, no Panteão dos filósofos clássicos, dignos de
atenção e respeito. É no interior desse dilema que o presente livro se situa. Ou melhor,
é onde seu autor ousa situar-se para, como o leitor poderá constatar, construir sua pró­
pria posição, anunciada desde seu título. Não se trata, para R­ oberto Barros, de negar a
dimensão filosófica do Zaratustra. Muito pelo contrário! Mas não se trata tampouco
de negar sua dimensão “poiética”, isto é, de ser indiferente à forma do livro, rebaixando
assim o esforço nietzschiano ao encontrar outras formas de e­ xpressão para a filosofia
que não aquelas já consagradas em sua época, quando a filosofia já e­ sta­va consolidada
como “filosofia universitária”. Lembremos aqui, de propósito, o título do pequeno livro
de Schopenhauer tanto admirado por Nietzsche, que desmontava o ensino u­ niversitário
da filosofia na Alemanha como uma espécie de morte pouco trágica da atividade do

11
apresentação

pensamento. Daí decorre o posicionamento de Roberto Barros e a singularidade de seu


percurso, que o fizeram formular, desde muito tempo atrás, a hipótese que norteia esse
trabalho singular: a de que o além-do-homem possui uma dimen­são necessariamente
estética!
Nessa perspectiva, apresentar este livro é também testemunhar uma época; é re-
cortar, no Brasil, um pequeno fragmento da recepção de Nietzsche entre nós, aquele
que se situa no seu Norte ou, para usar uma expressão mais pujante, na Amazônia. Sim,
este livro é resultado de um trabalho iniciado há mais de vinte anos, quando o autor era
um jovem estudante da graduação. Entre o ardor juvenil – a “juventude”, disse N ­ ietzsche
certa vez a propósito da sua própria, “se caracteriza pela falta de nuances” – e o ­resultado
extraordinário que é o livro, seu autor acrescentou, certamente, o trato fino, o exercício
paciente da “lapidação”, para lembrar outra imagem nietzscheana, ao definir seu “leitor
ideal”, no Prefácio de 1886 à Aurora. Esse processo de fineza significou, c­ oncretamente,
uma Dissertação de Mestrado defendida em 2000 na Unicamp, e uma Tese de Dou-
torado defendida na Universidade Técnica de Berlim, em 2006, aos quais se acrescen-
taram intensa atividade de pesquisa e ensino na Universidade Federal do Pará e d ­ iversas
temporadas de estudo na Alemanha. Todas essas atividades já resultaram numa signi-
ficativa lista de publicações de artigos e capítulos de livros, que tornam o trabalho de
Roberto Barros, no âmbito dos temas de sua predileção, um interlocutor cada vez mais
importante na cena dos estudos brasileiros sobre a filosofia do autor do Zaratustra.
Roberto Barros, como os ilustres antecessores citados no seu livro e com quem
dialoga, se confronta, se aproxima e se distancia, dos acima citados, como parte da
premissa de que o estudo do tema do além-do-homem implica no estudo da própria
filosofia de Nietzsche, isto é, de que uma mínima compreensão de seu estatuto ­pressupõe
a compreensão da filosofia de Nietzsche no seu todo. Com isso, ele também se alinha
a uma vertente de interpretação segundo a qual não se pode medir a extensão e a im-
portância de um tema nietzschiano pelo número de citações feitas por Nietzsche na
obra publicada, tendo em vista o caráter esparso das referências, também aqui, ao além-
-do-homem. Contudo, isso não implica que devamos, par contre, nos aliar à posição de
Heidegger, que certa vez disse que o essencial da filosofia de Nietzsche se e­ ncontrava
nos seus apontamentos póstumos, não publicados.
Por outro lado, a longa maturação que resultou nesse livro, fez com que Roberto
Barros pudesse aprofundar suas intuições juvenis que já haviam ganhado uma p ­ rimeira
versão em sua Dissertação de Mestrado, qual seja, a de que a ligação entre o tema do
além-do-homem e o conjunto do pensamento de Nietzsche se dá pelo fato de que o além-
-do-homem também possui uma dimensão necessariamente estética. A partir ­dessa hi-
pótese, cujo refinamento incorporou as reflexões atuais de Roberto Barros acerca do

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apresentação

estatuto da ciência na chamada segunda fase do pensamento de Nietzsche (tema de sua


Tese de Doutorado publicada na Alemanha em 2007) ou ainda a do estatuto psicofisio-
lógico da questão do conhecimento em Nietzsche, este livro nos convida, nos incita e
nos insere numa aventura sem dúvida fascinante: a de retomarmos o pensamento de
Nietzsche como se fosse a primeira vez. Não que os temas candentes e largamente es-
tudados pela Nietzsche-Forschung ganhem sempre, nesse livro, uma nova formulação. Mas
sim, que esses mesmos temas – essas mesmas questões – podem ser revisitados a partir
de uma perspectiva pouco usual, na medida em que seu objetivo é justamente ressaltar
o contorno, a “idealidade estética” do além-do-homem. Para isso, Roberto ­Barros recua
até o Nascimento da tragédia, atravessa o período iniciado com Humano, ­demasiado hu-
mano, a fim de mostrar, justamente, o quanto as formulações, anteriores ao ­Zaratustra,
acerca das relações entre arte e verdade, arte e dimensão trágica da existência, serão
fundamentais para a compreensão do projeto filosófico, mas também poético, que o
Zaratustra representa. Por fim, Roberto Barros, num último capítulo, muito especial e
significativo da Nietzsche-Forschung brasileira, “lapida” ao extremo as relações entre além-
-do-homem e “Eterno retorno”. Com isso, ele nos mostra, com perturbadora c­ lareza, o
quanto sua leitura ilumina, nesses mais de cem anos de história da recepção de Nie­tzsche,
não só o que ainda estava na sombra, mas também o que já parecia definitivamente
iluminado.

Ernani Chaves
Professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará

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Introdução

Não foram poucos os autores que se referiram, positiva e negativamente, às múltiplas


características da filosofia de Nietzsche; às múltiplas e alternantes facetas das formas
de exposição1 do seu pensamento. As suas temáticas, formas de abordagem e os dife-
rentes estilos destoam de maneira acentuada das formas acadêmicas de argumentação
filosófica, deci­sivamente da alemã. No que diz respeito às críticas, grande parte delas
se refere às mudanças de perspectivas e presumidas contradições lógicas de um pensa-
mento que não imediatamente apresenta uma linha de continuidade.2 Esse aspecto não
passou despercebido pelo próprio Nietzsche. Os prefácios de 1886, acrescidos às obras
anteriores e também à sua biografia intelectual, Ecce homo (1888), revelam o empenho
do autor em indicar uma unidade em seu pensamento, sem, todavia, desejar subordi­
ná-lo aos padrões tradicionais da exposição filosófica acadêmica alemã. Baseado na
noção de experiência individual (Erlebnis) do pensar, Nie­tzsche afasta-se do princípio
do sujeito neutro do conhecimento da fi­losofia moderna, assim como de esquemas
categoriais norteadores da reflexão, optando, assim, por uma multiplicidade de modelos
de exteriori­zação dos quais uma das matrizes mais significativas é a arte. Os p
­ ressupostos
que lhe permitem essa tomada de direção são vários, mas alguns devem ser ­mencionados:
(a) a identificação da insuficiência de meios da perspectiva metafísica em lograr os seus
objetivos secularmente propostos, tais como a demonstração da existência de um co-
nhecimento pleno e final do real. A isso se segue, (b) a negação de qualquer conceito
normativo de verdade enquanto princípio fundante da exposição filosófica (Schacht,
1985, p. 52). A partir disso, parece ser possível afirmar que em Nietzsche a multipli­
cidade de estilos consiste por si mesma em uma nuance filosófica, que, por sua vez, tal
como se deseja mostrar com a ar­gumentação a seguir, constitui um fator preponde­
rante à compreensão de seus direcionamentos filosóficos, pois exprime uma forma de
­oposição à tradição dogmática da filosofia (Nehamas, 1985, p. 58).

1
Um exemplo bastante significativo disso, como bem menciona Ernst Nolte, é o livro Nietzsche als
Philosoph, de Hans Vaihinger, no qual o neokantiano, um dos fundadores dos Kantstudien, consi-
dera Nietzsche como um modismo filosófico, o critica pela ausência de sistematicidade e ainda
duvida de sua saúde mental, Cf. Nolte, 1990, p. 228.
2
Essa parece ser, como também compreende Wolfgang Müller-Lauter (1981, p. 136), a dificul-
dade de Karl Löwith, que ainda tenta compreender a filosofia de Nietzsche segundo a orientação
clássica da história da filosofia ocidental.

15
roberto barros

Esses aspectos se revelam como imprescindíveis para uma consideração de Assim


falava Zaratustra enquanto obra filosófica. Referida pelo próprio autor como sendo sua
obra fundamental, ela associa emble­maticamente uma profusão de pressupostos mobili­
zados nos escritos que lhe antecedem e, por esse motivo, esse se revela como um mo-
mento decisivo para o pensamento filosófico de Nietzsche. Com Assim falava Z ­ aratustra
o filósofo encerra um ciclo em seu pensamento – sem, todavia, abandoná-lo. Nele en-
contra-se pressuposta uma elucidação crítico-­moral dos valores fundantes e basilares
da cultura ocidental, que busca ­evidenciar a improbidade de toda forma de ­fundamento
erigida em princípios hegemônicos. Com isso, sua meta é tornar evidente a possibi­lidade
de ­novas e afirmativas possibilidades de expressão filosófica, que não aquelas tornadas
canônicas pela tradição racionalista-metafísica.
Sem que se considere a crítica aos princípios e às metas da metafísica, a aproxi-
mação crítica da filosofia das ciências naturais (Marietti, 1997, p. 267) e a indicação dos
pressupostos morais destas, a obra de Nietzsche se torna de difícil compreensão, assim
como a riqueza de variantes que, ainda hoje, lhe garantem uma posição singular dentre
os escritos filosóficos. Com Assim falava Zaratustra, Nietzsche estabelece um ato de
liberdade do pensamento, que então já demonstrara a sua criativa oposição a todas as
restrições formais da filosofia, seja de ordem sistemática, seja de ordem estilística. Nes-
sa obra, o conceito é preterido em favor da imagem. Isso é possível porque o primeiro
é caracterizado pela superficialidade de suas abstrações e, assim, tem evidenciadas as
suas limitações e arbitrariedades. Isso acaba por aproximá-lo da noção de representação,
todavia, dissociada de qualquer fundamento de verdade. Ambos são compreendidos
como formas de simplificação de um mundo múltiplo e em câmbio. Entretanto, para
Nietzsche a imagem tem a pretensão de ser mais “verídica”, precisamente por evidenciar-
-se como repre­sentação a partir de pressupostos, e não como “verdade”.
A fonte dos conceitos é o intelecto, desqualificado por Nietzsche enquanto ins-
tância superior e relacionada à verdade, tal como pensara toda a filosofia desde Platão.
Para ele, a sua elevada valorização se baseia muito mais decisivamente na satisfação da
necessidade de fixidez, que se deixa transparecer no caráter arbitrário da aferição dos
nomes, que antecede o surgimento dos conceitos. A atuação do intelecto é superficial,
simplificatória, de forma alguma remete a uma verdade ou designação definitiva da
multiplicidade dinâmica que constitui a efetividade. Mas o principal argumento contrá­
rio a essa forma de consideração não é esse, mas a indicação do fundamento de crença,
segun­do a qual a verdade fixa e final existe e é possível de ser alcançada. Com ele,
Nietzsche se afasta de toda consideração meramente conceitual da verdade. Ele a ­analisa
a partir de uma ótica exterior, composta de vários traços perspectivísticos, cujo pressu-
posto central é a compreensão da verdade como uma criação humana.

16
introdução

Para Nietzsche, a atitude intelectual que cria conceitos é metafó­rica, restritiva e


de modo decisivo não vinculada a nenhum fundamento. Em verdade, apenas por au-
toindução ela se funda na pressuposição de que suas determinações podem, por si
mesmas, constituir verdades. A partir da percepção de que a metáfora é a origem tanto
da representação figurativa como do conceito, ele indica a forma restritiva deste, pois
ele se mostra como um produto de um processo de simplificação, que se deixa enclau-
surar por formalismos sistemáticos que lhes são impostos, os quais passam a ser t­ omados
como canônicos. Disso decorre a conclusão de que a racionalidade não pode mais ser
tomada como instância intangível de consideração. Se ela, por muitos séculos, desfrutou
desse status repetidas vezes reafirmado, isso se deve não a uma demonstração da efetivi­
dade dele e de sua presumível potencialidade, mas à obrigatoriedade moral de sua ne-
cessidade. Baseado na percepção de que a verdade e todas as formas de fundamentação
e de fixação, nos mais diferentes domínios, podem ser entendidas como necessidades
orgânico-mentais do homem, Nietzsche desarticula e prescinde da verdade metafísica,
que ele interpreta como basilar a toda significação posterior desse termo.
Todavia, toda a sua filosofia é orientada no sentido da veracidade (Wahrhaftigkeit),
fundada na compreensão da impossibilidade de superação do anseio pela verdade. O
posicionamento basilar que disso re­sulta consiste na percepção segundo a qual o anseio
pela verdade acaba por suprimir a própria verdade, ao remeter à constatação epistemo-
lógica da impossibilidade desta, entendida enquanto princípio inalterável e determi-
nante. A questão decisiva torna-se, então, não mais o que é, mas o que pode significar
a pretensão à verdade. Essa questão é analisada por diferentes prismas na obra de
Nietzsche e tem, por isso, diferentes respostas no decorrer de sua elaboração.
Assim falava Zaratustra consiste em um escrito que marca uma tomada de posição
e uma tentativa de superação da vacuidade advinda da percepção do desaparecimento
das condições dessa consideração da verda­de, que nele é associada à morte de Deus. Os
ensinamentos (Lehre)3 de Zaratustra apenas tornam-se possíveis de serem proferidos a
partir dessa constatação e, desse modo, não constituem doutrinas (Doktrinen), pois não
mais podem ser justificados enquanto tal (Stegmaier, 2009, p. 16). A desmistificação
moral da verdade faz com que o ensinamento abissal do eterno retornar de todas as
coisas e a perspectiva da vontade de poder possam ser justificadas como hipotéticas,
como criações possíveis no domínio perspectivístico de um mundo transformado num
mar desconhecido a ser singrado e num manancial de novas interpretações.
3
Muito embora, no Brasil, tradicionalmente se traduza o termo Lehre como “doutrina”, optou-se aqui
por “ensinamento”, devido ao forte caráter determinista da palavra doutrina (Doktrin) em alemão.
Conforme se verá, o ensinamento de Zaratustra, em muito devido às suas influências e aos seus
direcionamentos artísticos, deixa poucas possibilidades para que se lhe compreenda como cânone.
Antes, ele apenas pode ser considerado como ensinamento devido ao seu traço não doutrinal.

17
roberto barros

Essa empreitada, porém, traz consigo um perigo inerente e ­nenhuma garantia de


um porto seguro e definitivo, enquanto ponto final da jornada. Em oposição a isso, ela
é, antes de tudo, indicada como um percurso incontornável rumo ao acaso. P ­ recisamente
por isso ela pode ser considerada como trágica, pois se distancia de qualquer concepção
­teleológica de redenção. Todavia, a compreensão trágica das implicações que a ­morte de
Deus e a supressão do conceito de verdade trazem consigo cria para Nietzsche a possi-
bilidade de formular uma alternativa para o niilismo moderno, que é avesso à criação de
novos valores, e assim é ultrapassada a gravidade do trágico antigo. Essa é a feliz ­aceitação
incondicional do ocaso inerente à vida, que não mais é considerada segundo perspectivas
de sua correção ou superação de sua dureza e de seu sofrimento i­ nerente (Löwith, 1956,
p. 113). A leda aceitação dessa gravidade trágica é a meta da alegre ciência, que se pro-
paga e está implícita na relação dos ensinamentos de Zaratustra.
Tomado como ensinamento fundamental de Zaratustra (EH/EH Z/Z § 1), o
pensamento do eterno retorno implica na aceitação de um princípio da indeterminação
compreendido como intrínseco à vida. Ele caracteriza o assentimento dessas proposições
à necessidade da tentativa de determinação do próprio ocaso. O além-do-homem, o pri-
meiro ensina­mento de Zaratustra após o anúncio da morte de Deus, é o princípio ate-
nuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos trazem consigo.
Ele é o fator de embelezamento necessário à aceitação do trágico, cuja primeira caracte­
rís­tica pode ser indicada como a força imagé­tica de embelezamento que a sua imagem
traz consigo. Essa imagem é, todavia, transmitida oralmente por Zaratustra, o que evi-
dencia a sua significação imagética e lhe atribui uma característica notadamente ­estética.
A compreensão dessa função aproxima Assim falava Zaratustra dos pressupostos
mobilizados por Nietzsche em O nascimento da tragédia. Isso é indicado pelo próprio
autor e pelos traços trágicos de Zaratustra. Nesse sentido, pressupondo-se a indicação
da tragicidade dionisíaca de Zaratustra, ele pode ser associado ao princípio apolíneo,
indicado por Nietzsche como constitutivo e imprescindível à constituição do trágico.
A abordagem a seguir busca demonstrar a relação desses aspectos e, com isso, evidenciar
que na obra de Nietzsche o esforço filosófico fundado na compreensão valorativa ineren­
te ao pensar redunda em uma filosofia com forte conotação artístico-estética e que esse
aspecto é significativo para que se possa compreender o ensinamento do além-do-homem
em Assim falava Zaratustra. A argumentação visa, assim, acenar com uma proposta de
interpretação desse ensinamento, antevisto enquanto expressão da i­nclinação artística
da filosofia de Nietzsche, que assim associa o rigoroso pensamento filosófico com a
força plasmática da arte.
Tal abordagem parte dos seguintes pressupostos: em primeiro lugar, da considera­
ção das indicações do próprio autor, segundo as quais os escritos que antecedem Assim

18
introdução

falava Zaratustra devem ser entendidos como etapas de um esforço criativo de ­ampliação
das possibilidades da expressão filosófica e de redimensionamento v­ alorativo que re-
dunda naquela obra. Isso significa pressupor a existência de uma re­lação íntima e in-
dissolúvel entre os escritos que, muito embora respeitem momentos diferenciados, nos
quais encontramos mudanças de ênfase e de perspectivas, possibilitam tacitamente que
se compreenda entre eles um liame temático, de imprescindível consideração.
Dessa tomada de posição decorre um segundo ponto, decisivo para a abordagem
aqui proposta: a consideração de aspectos que se fazem presentes na filosofia de ­Nietzsche
desde O nascimento da tragédia (1872) e nos textos que se circunscrevem no seu perí-
metro temático, enquanto fatores que demonstram tendências de significativa impor-
tância para a formulação de concepções expostas em Assim falava Zaratustra (1883/5).
A consideração da importância e significação efetiva desses escritos – em especial de O
nascimento da tragédia – baseia-se no pressuposto de que eles consistem não na deter-
minação decisiva do direcionamento da especula­ção filosófica de Nietzsche,4 porém em
seu ponto de partida, que, a despeito das próprias críticas feitas pelo filósofo, não o
impediram, em Ecce homo (1888), de considerar que aquele livro, apesar de suas falhas e
comprometimentos, já anunciava “inovações decisivas” (EH/EH NT § 1).
A valorização da arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra
o desafio apavorante do existir, mais ainda, a crítica da perspectiva racional, compreen-
dida sob o ponto de vista de sua significação vital e intencionalidade inerente, parecem
ser traços que, mesmo mediante reformulações e utilização de diferentes estilos argu-
mentativos, se fazem presentes nos mais variados momentos de expressão da ­filosofia
de Nietzsche. Esses aspectos podem ser encontrados, com diferentes formulações, t­ anto
nos primeiros escritos, remetidos e intencionalmente relacionados à interpretação da
arte e cultura gregas, como em Assim falava Zaratustra, sendo que, nesse livro, com
pressupostos formulados mediante significativa presença de caracteres gregos.
Dessa proximidade decorre uma nova consideração afirmativa e posterior de O
nascimento da tragédia, que reforça a importância desse livro para a filosofia de Nie­
tzsche como um todo. Essa relação é largamente documentada pela pesquisa sobre
Nietzsche, a partir da publicação da edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinati. Com efeito, Eckhard Heftrich indica o primeiro livro de Nietzsche como
uma prefiguração de sua filosofia e acentua a relação de proximidade temática entre
ele e Assim falava Zaratustra (Heftrich, 1962, p. 115). Volker Gerhardt acentua a im-
4
A esse respeito, escreve Fink: “posto que desse a impressão de formular um problema estético,
psicológico, fisiológico, representou no fundo a primeira tentativa tateante de Nietzsche para ex-
pressar a sua concepção filosófica do mundo. Essa inadequação, que já caracteriza a primeira obra
de Nietzsche, permanece, de certo modo, embora com sensíveis transformações, traço de toda a sua
produção.” Cf. Fink, 1983, p. 22.

19
roberto barros

portância de noções relacionadas à metafísica do artista e formulações posteriores de


Nietzsche, mesmo levando-se em conta o afastamento dessa posição estética inicial e
a inexistência de uma linha direta de ligação entre as temáticas (Gerhardt, 1984, p. 388).
Nesse sentido, pode ser mencionado, com respeito ao escrito inicial de Nie­tzsche, a
descoberta da necessidade artística do homem enquanto estímulo vital, aspecto posto
como significativo para os delineamentos básicos da obra à qual foi acrescido, tais como
a periculosidade do conflito entre arte e ciência e a positividade vital da primeira, men-
ção que demonstra a importância desses pressupostos para a sua filosofia como um todo.
O traço singular indicado nesse momento é a reafirmação da compreensão da ciência
como produtora de aparência (Schein), devido à refutação da infalibilidade de seus
­pressupostos lógicos e racionalmente concebidos, o que também a torna passível de
uma ­interpretação estética,5 perspectiva que, segundo o filósofo, a racionalidade lógico-
-conceitual tentou desqualificar desde sua origem.
Desse modo, a racionalidade filosófica grega, para Nietzsche depreciadora da arte
e fonte primeira do impulso científico, não extrapolaria o âmbito daquilo que ela própria
considerou como fonte de erro e de ilusões sem valor. Pois ela teria sua efetiva origem
em uma necessidade de refutação valorativa e não na justificação de seus pressupostos
fundamentais. Entretanto, o fracasso do “projeto racional”, que não alcança seus o­ bjetivos
diferenciadores: o alcance da verdade em si mesma (diferenciada do mundo fenomê-
nico, tomado então como transitório e aparente) e, por conseguinte, a universalização
do conhecimento desta, põe-na, sob a ótica de Nietzsche, em um patamar ainda inferior
ao que a ciência relegou à arte, o de produtor de aparência sem conteúdo estético ­válido,
em outros termos, de ilusão (Wahn) sem conteúdo vital ­afirmativo.
Nietzsche adota esse posicionamento, partindo de uma concepção artística da
tragédia grega, que o inclina a analisar todo o racionalismo filosófico ocidental, desde
Sócrates até a ciência de seu tempo, e o leva a concluir que ambos se fundam ­unicamen­te
sobre pressupostos valorativos, posicionamentos unicamente morais, decorrentes de um
conflito, de uma oposição de perspectivas que, assim compreendidas, tornam sem ­sentido
qualquer discussão acerca da superioridade unicamente epistemológica de uma pers-
pectiva sobre a outra.
Feita essa constatação, a intenção de Nietzsche é mobilizar essa oposição sob a
consideração de uma noção afirmativa de vida, das vanta­gens afirmativas para esta e,
portanto, fazer oposição a qualquer t­ endência valorativa que a deprecie. Essa, por con-
seguinte, parece ser a temática que mobiliza as energias do autor tanto em seus ­primeiros

5
Pois a obra, inovadoramente, propõe-se a ver “a ciência sob a ótica do artista” e a arte sob a ótica
da vida. NT. “Tentativa de autocrítica” § 2.

20
introdução

escritos como nos últimos, sendo que, em ambos os momentos, pressupondo uma
reavaliação positiva da força criativa da arte.
É evidente que tais aspectos problematizados pelo filósofo inserem-se em uma
longa tradição de reinterpretação da cultura grega e de seu significado para a cultura
ocidental, que, na Alemanha, se estabelece decisivamente a partir de Winckelmann,
passando por Lessing, Goethe, Schiller e Hölderlin. É importante, todavia, indicar que
Nietzsche dialoga com essa tradição de pensamento de forma crítica e que isso não
apenas possui implicações, mas marca fortemente as nuances centrais de seus posicio-
namentos. É a partir dessa diferenciação que o exercício filosófico de Nietzsche se di-
reciona a novos objetivos. Os escritos subsequentes a O nascimento da tragédia são
muito mais voltados para uma crítica dos valores morais da cultura ocidental e de sua
proveniência do que para uma nova tentativa de afirmar a necessidade de uma consi-
deração estética do mundo. Todavia, embora não declarados, é possível, nessa nova
tomada de posição, apontar significativos aspectos dos trabalhos iniciais.
Humano, demasiado humano, que, na opinião quase unânime de comentadores,
inaugura a segunda fase da filosofia de Nietzsche, mostra outro posicionamento com
relação à arte. Cônscio da impossibilidade de supressão das influências metafísicas na
cultura – e, portanto, de um retorno a uma forma original de fruição estética –, o autor
analisa a significação cultural da arte em seu tempo e as formas tradicionais de conside­
rá-la a partir da própria hegemonia científica. Trata-se de um ponto de vista novo,
decisivo e bastante significativo à nova postura com relação à cultura, pensada anterior-
mente a partir da metafísica do artista. A decepção com o wagnerianismo, que também
veio significar uma recon­sideração da filosofia schopenhaueriana, remete Nietzsche a
um posi­cio­namento mais atualizado com relação à cultura. Parece-lhe então e­ vidente
que, se a arte pode ter direito a pleitear significação na contemporaneidade, ela só pode
fazê-lo se considerada a perspectiva dominante do seu tempo, a científica. Fora disso,
ela se torna meramente epígono, presa ao passado, mas sem significação cultural deter-
minante.
Entretanto, esse novo posicionamento não significa nem um distan­ciamento das
influências estéticas da filosofia da Nietzsche, menos ainda a pretensão de adequação
da arte à ciência. Essa última pressuposição significaria um retorno ao projeto p ­ latônico,
ao qual Nietzsche atribui não apenas o ocaso da arte, como o desmerecer da sensibili-
dade artística no ocidente. Ao pressupor a importância da interiorização à consideração
do discurso estético contemporâneo, o autor busca, por outros caminhos, dar c­ ontinuidade
à crítica à metafísica, presente em sua consideração inicial da arte. A percepção de uma
influência metafísica em sua própria filo­sofia se reverte, então, na identificação do des-
virtuamento do romantismo e em sua justificação da arte, identificável na crença no

21
roberto barros

gênio e na ­inspiração, enquanto fontes da criação artística. O aspecto negativo dessas


noções repousa na percepção da vetustez de sua importância para a criação artística
moderna, pois elas possuem, na modernidade, uma significação apenas periférica e
transferem este mesmo significado para a arte. Para Nietzsche, o descompasso dessas
justificações com relação ao tempo histórico é responsável pela restrição da arte a uma
significação ­subordinada na modernidade. Toda pretensão a uma outra significação, de
maior acento que ainda possa ser remetida à sua antiga primazia, é inexequível, pois
esta necessitaria novamente ser vinculada a princípios metafísicos ou transcendentes,
os quais não possuem mais nenhuma precedência na modernidade e seriam, então,
injustificáveis.
Essa percepção de Nietzsche viabiliza uma nova tomada de rumos e a adoção das
observações psicológicas e históricas, compreendidas como formas de análise das confi­
gurações valorativas atuantes na cultura, da sua “química” (MA I/HH I § 1). A mobi-
lização da ciência a partir de Humano, demasiadamente humano se insere na ­interpretação
histórico-psicológica desta e consiste decisivamente na perspectiva de lhes examinar as
formas de justificação. Em última análise, o ponto de vista científico de Nietzsche
consiste em uma forma de oposição à metafísica e aos valores promulgados por ela. Aos
seus olhos, princípios basilares da teoria do conhecimento metafísico não resistem à
aplicação dos próprios critérios de verdade no qual esta se baseou durante séculos, os
da não refutação e da demonstrabilidade. Essa empresa tem continuidade nos demais
escritos da década de 80, e é decisiva para a compreensão do movimento ­argumentativo
da filosofia de Nietzsche.
É da união de paixão pelo conhecimento e desejo de afirmação da arte que surgem
A gaia ciência e Assim falava Zaratustra, com respeito aos quais o autor afirma, repetidas
vezes, a importância da atenção aos pressupostos artísticos presentes nos livros ante-
riores para a compreensão dos seus conteúdos.6 Por conseguinte, não deve ser tomado
como alea­tó­rio o fato de que, em Assim falava Zaratustra, podemos constatar a r­ etomada
de temas e conceitos que recebem claramente influências do entusiasmo inicial. A esse
respeito, torna-se ainda possível dizer que, nesse ­momento, mantém-se presente na
filosofia de Nietzsche uma consi­deração trágica da existência (FW/GC § 342), que o
autor tenta reafirmar como necessária, a partir da refutação do dogmatismo de outras
formas de consideração (GT/NT § 6).
É, portanto, desde sua obra inaugural que Nietzsche indica que a ciência não pode
ser analisada sob o ponto de vista meramente ­científico, pois seu real fundamento de-

6
No caso de A gaia Ciência, expressa na influência dos artistas e trovadores ­provençais (EH/EH FW/
GC §1). No caso de Assim falava Zaratustra, o renascimento da arte de ouvir, a restauração da
antiga inspiração dos poetas e o uso do ditirambo. (EH/EH Z/Z §1, 3 e 7).

22
introdução

corre de outro impulso que o desejo de conhecer. Por esse motivo, uma análise meramen­
te epistemológica ou analítica de seus pressupostos, com vistas a afirmar a sua necessi-
dade, perde o sentido (Machado, 1999, pp. 7-8). A filosofia, ou mesmo toda p ­ retensão
científica, passa a ter significado apenas quando relacionada a uma concepção de vida
baseada no positivo fortalecimento e embelezamento dos impulsos fundamentais, tidos
ainda como única forma de suportar o aspecto trágico da existência. Esta se torna sinô­
nimo positivo de indetermi­nação, e a hierarquização dos pressupostos de c­ onsideração
e dos valores da cultura sofre uma significativa mudança: a racionalidade e a ­perspectiva
científica deixam de ser as instâncias privilegiadas de consideração do mundo, p ­ assando
a ser decisivos os princípios efetivamente ativos na valorização do existente, tais como a
sua aceitação incondicional, mesmo em seus mais duros e terríveis aspectos e consequên­
cias. Isso Nietzsche nomeia “visão trágica do mundo”, dissociada de qualquer compro-
metimento com as formas tradicionais de aspiração à pureza científica.
O ensinamento do eterno retorno do mesmo, que tem seu anúncio nos escritos
que precedem Assim falava Zaratustra (FW/GC § 341), pode exemplificar satisfatoria­
mente esses direcionamentos. Ele encontra seu fundamento justamente na concepção
da existência considerada sob o ponto de vista do caráter dionisíaco (Machado, 1993,
p. 123) da vida compreendida como eterno movimento ou jogo de crianças (NF/FP:
KSA 14 [188], primavera – outono de 1881). O postulado da eterna re­corrência de
todas as coisas afirmado por ele remete a sua significação tanto à reflexão acerca de ­no­vas
possibilidades éticas e de consideração da existência humana como também ao âmbito
da estética (FP: KSA 9, II [162], primavera – outono de 1881), pois considera o mun-
do unicamente como eterno devir e fluxo constante de aparências, do que ­resulta a sua
aproximação com o que se convencionou chamar a primeira filosofia de Nietzsche.
Nesse sentido, são dignas de nota referências a pensadores como Martin H ­ eidegger
e Gilles Deleuze que, mesmo de modos diferenciados, já consideravam o princípio for­
mador dessa concepção do eterno devir do mundo e de seu jogo de forças como funda-
mentada na imagem e conteúdo vital dos valores anunciados esteticamente. Heidegger,
com efeito, mesmo considerando a filosofia de Nietzsche e sua formulação da noção de
vontade como sendo o ponto derradeiro ao qual chegou a metafísica ocidental, conside-
ra que, para que se compreenda o que o filó­sofo desejava expressar com o ­ensinamento
do eterno retorno do mesmo, é necessário um remetimento à experiência trágica descri-
ta em O nascimento da tragédia, cuja essência é determinação fundamental do pensamen-
to de Nietzsche (Heidegger, 1989, p. 279), o que lhe revela a ­dimensão estética (Ibidem
p. 280).
Para Deleuze, a concepção de trágico posta em O nascimento da tragédia seria a
exposição da contradição original da existência e a s­ olução trágica desta contradição.

23
roberto barros

Isso teria remetido Nietzsche à sua interpreta­ção genealógica dos valores ocidentais e
da metafísica, e o levado a enten­dê-las enquanto formas de velamento desse caráter
original. A comprovação desse velamento resultaria em uma concepção de existência
descrita como um jogo de dados, cujo princípio primeiro seria a afirmação do acaso,
expressa na doutrina do eterno retorno (Deleuze, s.d., p. 45).
A relação entre concepções formuladas em momentos diferenciados é e­ videnciada
em inúmeras passagens pelo próprio Nietzsche. Para ele, Zaratustra, o anunciador do
além-do-homem, é justamente aquele que alcançou as ideias mais profundas, que não vê
nenhuma objeção contra a existência, assim como contra o eterno retornar de todas as
coisas, o qual, por conseguinte, é a expressão de Dionísio (EH/EH Z/Z § 6). Com
efeito, sendo o pensamento do eterno retorno do mesmo o ensinamento fundamental
de Assim falava Zaratustra (Ibidem § 1), que marca o reapa­recimento do dionisíaco em
obras publicadas, precisamente com ­respeito a este colocam-se imediatamente questões
acerca do seu estatuto: a) se ele permanece segundo a mesma caracterização que no
livro inicial de Nietzsche; b) se mantém a relação posta como indissolúvel com o seu
par complementar, o apolíneo.
Um aspecto em favor deste último ponto pode ser primeiramente mencionado.
Do mesmo modo que em O nascimento da tragédia, Nie­tzsche expõe a perspectiva de
que os gregos foram salvos do ­aniquilamento pela arte figurativa de Apolo, associada à
música dionisíaca. Em Assim falava Zaratustra, o ensinamento dionisíaco do eterno
retorno do mesmo também possui o seu consolo aparente, trata-se do ensinamento do
além-do-homem. Estudos mostram que essa é precisamente a relação entre os ensina-
mentos (Haase, 1984, p. 230), e ainda que esse livro fora pensado por seu autor segun-
do uma concepção trágica, como um drama em quatro partes (Ibidem p. 223). Diante
dessas proximidades formais e temáticas, que ligam os diferentes momentos, uma consi­
deração atenta dessas fontes adquire grande significação. A argumentação que se segue
tenciona tornar claros os fatores de aproximação entre o fator dionisíaco do ­pensamento
do e­ terno retorno e os caracteres apolíneos do e­ nsinamen­to do além-do-homem, a p­ artir
da consideração da relevância de formu­lações dos primeiros traba­lhos de Nietzsche
para a análise dos ensinamentos de Zaratustra. Nesse sentido, e a partir dos pontos de
vista acima expostos, tenciona-se empreender uma análise de formulações p ­ osteriores
da filosofia Nietzschiana, em especial do ensinamento do além-do-homem, visando ex-
plicitar a significação das formulações estéticas dos primeiros escritos de Nietzsche para
a sua compreensão.
Assim sendo, a abordagem é composta de quatro momentos. Primei­ramente, na
análise do trágico e do dionisíaco nos escritos ­compreendidos no perímetro temático
de O nascimento da tragédia, este tomado como escrito de significação particular no

24
introdução

contexto pleno da filosofia de Nie­tzsche.7 Em um segundo momento, tratar-se-á do


novo posicionamento de Nietzsche acerca da ciência e da arte nas obras posteriores ao
seu afastamento definitivo das influências da concepção artística de Wagner e da filo-
sofia de Schopenhauer, nas quais ambas são objetos de novas considerações. No t­ erceiro
capítulo, tratar-se-á da perspectiva artística de Assim falava Zaraustra e da relação
entre os ensinamentos do além-do-homem e do eterno retormo, partindo-se do pressu-
posto de que um dos traços mais atuantes e subjacentes a eles é justamente a c­ ompreen­são
trágica e dionisíaca da existência, o que Nietzsche afirma em 1889 e que confere a
Assim falava Zaratustra uma decisiva significação estética.

E com isso toco no ponto de onde eu pela primeira vez saí – o “Nascimento da Tra-
gédia” foi a minha primeira transvaloração de todos os valores: com isso eu retorno
novamente ao solo de onde meu querer, meu poder crescem – Eu, o último discípulo
do filósofo Dionísio – Eu, o mestre do ensinamento do eterno retorno (GD/CI “O
que devo aos antigos” § 4).

Todavia, o reaparecimento do dionisíaco em Assim falava Z ­ aratustra implica na


questão de seu estatuto. Se, em O nascimento da tragédia, Dionísio é associado a Apolo
dando origem à arte trágica, naquela obra posterior, Apolo não é mencionado, muito
embora aspectos associados a ele possam ser antevistos tanto na figura resplandecente
de Zaratustra (Machado, 1997, p. 40) como no ensinamento do além-do-homem, com
o qual ele deseja criar a mais bela imagem.
A partir desses pontos, o quarto e último capítulo se direcionará à consideração do
ensinamento do além-do-homem a partir de seu traço apolíneo, p ­ osto como preparação
e consolo que antece­de o ensinamento dionisíaco do eterno retorno. A possibilidade de
interpretá-lo como ideal baseia-se justamente nessa proximidade entre o ensinamento
e a perspectiva apolínea de que Nietzsche faz uso, aproximando-a da inspiração dos
gregos na fase mítica de sua cultura e, portanto, diferenciado do idealismo artístico e
filosófico de seu tempo. Segundo esses fatores, é possível pensar o além-do-homem como
ensinamento que se justifica esteticamente, porque a intenção de Nietzsche não é mais
fundamentar a sua filosofia segundo argumentos tradicionais, teóricos ou científicos
(Abel, 1998, p. 249), mas fazê-lo por meio da sua força ­afirmativa e embelezadora da
vida.

7
Pois, mesmo a despeito das críticas posteriores feitas pelo próprio Nietzsche àquele livro, ele ­também
afirma que, dentre as inovações decisivas (entscheidenden Neuerungen) contidas nele, são dignas de
atenção o entendimento do fenômeno dionisíaco (dionysichen Phänomens) entre os gregos, a inter-
pretação do socratismo (Sokratismus) como instrumento de dissolução grega (Werkzeug der ­griechischen
Auflösung), assim como a caracterização de Sócrates como decadente típico (typischer décadent). EH/
EH GT/NT §1. KSA 6.

25
Capitulo I
A perspectiva trágica

1. O apolíneo, o dionisíaco e o mistério de unidade

O Nascimento da tragédia é um livro que tematicamente se insere em um longo ­contexto


da reflexão na Alemanha acerca dos gregos e de sua sig­nificação para a formação do
homem (Bildung), para a arte e para a cultura. Desde o século XVII, com Winckelmann,
os gregos foram toma­dos pelos alemães como modelos a serem seguidos e copiados,
enquanto arquétipos para a formulação de uma concepção de cultura elevada, carac­te­
rizada pela naturalidade e pela idealidade (Winckelmann, 1995, p. 13). Dessa t­ endência
resultou um forte anseio por uma compreensão originária dos helenos, a partir do es-
tabelecimento de clara diferenciação entre eles e as culturas alexandrina e romana.
Mesmo que de modo multifacetado, a via de consideração iniciada por Winckelmann
percorre toda a reflexão alemã acerca dos gregos e, sem dúvida, deixa seus vestígios nas
reflexões iniciais de Nietzsche sobre os helenos (NF/FP: KSA 7, 7[66], final de 1870
– abril de 1871). Pode-se perceber a sua influência em O nascimento da tragédia, na
interpretação da arte apolínea, na concepção da arte enquanto produto da manifestação
dos impulsos artísticos da natureza e da serenidade grega, se considerada a nobre sim-
plicidade e grandeza serena que Winckelmann interpreta no Laocoonte (­Winckelmann,
1995, p. 20). Mas a tendência, que esse autor tão emblematicamente inicia e identifica,
origina, na Alemanha, dois movimentos concernentes à interpretação dos gregos. A
primeira variante de valorização dos ­helenos é o neoclassicismo, que viria a aferir
marca indelével à filologia germânica que, influenciada inicialmente pelo luteranismo
(­Britto, 2009, p. 12) e pela interpretação das Escrituras, já se encontra e­ stabelecida em
Baumgarten (Mattos, 2008, p. 76) e Wolff. Essa encaminha-se, decididamente, a par-
tir do romantismo, para um esforço em buscar uma interpre­tação purista da língua
alemã, a partir do ­pressuposto da originalidade da língua grega. A segunda tendência,
a filosófico-artística, romântica, busca encontrar dados da singularidade helênica não
apenas em fatores históricos, geográficos e políticos, mas também em suas qualidades
inerentes, a partir de uma “interpretação” naturalista.1 Essa t­endência que, apesar de
igualmente ter em Winckelmann seu principal precursor (Süssekind, 2008, p. 76), pode
1
Utilizo aqui essa designação no sentido segundo o qual Rudolf Steiner se refere à arte grega, como:
“uma extensão do viver e atuar dentro da natureza”. Steiner, 1998, p. 13.

27
roberto barros

ser estendida, ainda que de forma bastante díspare, a Lessing, ­Herder, Goethe, ­Schiller
e Hölderlin. Os três últimos podem ser caracterizados como grandes expoentes de
uma corrente de interpretação naturalista da arte grega, que buscou se afastar dos
forma­lismos e modismos modernos, fundamentalmente do c­ lassicismo francês, obje-
tando com isso identificar uma forma natural de manifestação artística. Hölderlin
apresenta uma tendência que pode ser aproximada da inaugurada por ­W inckelmann,
na medida em que, em Hyperion, o protagonista, que dá nome à obra, nasce e cresce
em meio à natureza. Educa­do pelo irmão, Adamas, segundo os antigos mitos, Hy­perion
apenas ­supera a solidão e a crueldade da guerra reencontrando, na Grécia, a natureza
de sua juventude, apresentada pelo autor como oposta à civilização e à condição da
cultura alemã. “Trata-se de palavras duras, que eu mesmo assim profiro, pois são ver-
dadeiras: Eu não posso pensar em nenhum outro povo que fosse mais dilace­rado
(zerrissner) que os alemães” (­Hölderlin, 1979, p. 190). Goethe e Schiller oscilam entre
críticas direcionadas às artes francesas2 e influências gregas, sendo que, este último
pode ser visto já como voltado à problematização do modo de se inter­pretar os helenos,
o que o leva, de modo bastante particular, a até mesmo afirmar a superiori­da­de dos
modernos sobre os antigos (Süssekind, 2005, p. 168). Esse aspecto possui ­grande re-
percussão nas posições adotadas por Nie­tzsche, desde a inovação de sua inter­pretação
filosó­fica da tragédia grega – e não unicamente filológica (EF HF/HF, p. 268) – até a
sua declaração de independência de sua interpretação dos helenos com respeito à
­tradi­ção (EH/EH “O que devo aos antigos”, § 2). Com isso, ele se aproxima de um
ponto de vista já defendido por Goethe, que associa o espírito evoluído com a alta
erudição da época e não se deixa restringir pela mera cópia dos antigos, mas pensa na
assimilação de seus princípios como forma de impulsionar um impulso criativo (­Goethe,
2008, p. 233).
Essas duas disposições estão decisivamente presentes nos posiciona­mentos de
Nietzsche em O nascimento da tragédia, influenciando expressivamente em pressupostos
que constituem eixos argumentativos centrais do livro. Nesse sentido, uma referência
direta e positiva a Winckelmann, Goethe e Schiller encontra-se no § 20, e direciona-se
respectivamente à crítica do enfraquecimento do impulso de consideração dos helenos.
Os caracteres dessa censura, associados à forma de exposição do livro, como já dito,
fundamentalmente filosófica – o que vem a ser um dos pontos centrais da crítica pos-
terior de Wilamowitz-Möllendorff à interpretação da tragédia de Nietzsche –, revelam
que, em seu livro inaugural, o autor encontra-se muito mais próximo da interpretação
filosófico-literária dos gregos que da filológica (Machado, 2005, p. 15). Desse modo, a
2
Como nos casos de Goethe, com Ifigênia em Táuris, e de Schiller, com Don Carlos, em que perso-
nagens nobres e não mais apenas burgueses constituem as principais personagens.

28
a perspectiva trágica

sua reflexão se remete diretamente ao modo de como, a propósito de ­considerar a sig-


nificação da arte trágica grega para a contemporaneidade (Chaves, 2007, Introdução,
p. 8), é necessário ressaltar a singularidade da expressão artística dos helenos, que então
ele interpreta como exemplo ­característico de uma experiência estética original. Nie­
tzsche considera um contínuo avanço para a ciência estética compreender que a conti-
nuidade no de­sen­volvimento (Fortentwickelung) da arte decorre da atuação dos dois
impulsos estéticos da natureza sem mediação humana, do apolíneo e do dionisíaco, por
meio dos quais o autor visa considerar os profundos ensinamentos secretos da intuição
artística grega (­Geheimlehren ihrer Kunstanschauung), (GT/NT § 1).
A significação desse retorno à Grécia arcaica se deve, por sua vez, a um projeto
de reforma cultural que o autor então vincula à arte wagneriana e que o leva a inter-
pretar a arte helênica como produto de uma cultura unitária, fundada na sabedoria
intuitiva e natural da vida, assim como no desfrute estético da arte. Influenciado pela
filosofia ­voluntarista de Schopenhauer e mediante uma supervalorização de sua consi-
deração da arte tida como meio contra o sofrimento do existir, Nietzsche interpreta o
trágico grego como verídica manifestação da força vital daquele povo, fundada, para ele,
na compreensão do caráter atroz da existência, que se torna singular pela superação
estética do temor dessa intuição. A arte grega parece-lhe, então, como o núcleo possi-
bilitador da existência dos helenos, pois é por seu intermédio que a própria existência
lhes é tornada possível. A partir dessa concepção pulsional, que associa arte e vida,
segundo a qual, nos gregos, se manifesta artisticamente em um jorro pleno e i­ ncessante
de criação e experimentalismos, Nietzsche elabora o princípio nuclear de uma ­concepção
de ­cultura, que lhe servirá de base para as suas considerações sobre os rumos da c­ ultura
europeia. Com efeito, ele faz uso de uma noção de unidade cultural decorrente de sua
interpretação dos helenos, mas que contém forte conotação estética, advinda da fi ­ losofia
de Schopenhauer. Ambos os aspectos são decisivos para que se entenda o seu e­ ngajamento
em prol da arte wagneriana que, em última análise, tinha em vista um projeto maior de
reforma da cultura ocidental.
Na obra de Wagner, Nietzsche interpreta a possibilidade de demons­trar a virtuo-
sidade de uma coesão de valores e da fundação de uma concepção outra de cultura,
distanciada daquela por ele vivenciada na Alemanha, ainda em efervescência devido à
unificação lograda por Bismarck. O sentido para isso lhe é indicado precisamente pela
interpretação natural dos gregos, enquanto contraposto a conceitos políticos, a ele con-
temporâneos, de cultura e de formação (Bildung). As questões da ­cultura e da formação
constituem os temas prioritários dos primeiros empreendi­mentos filosóficos de Nie­
tzsche, e é, então, tendo-os em vista que ele retorna aos gregos. A sua perspectiva ­estética,
fundada em uma interpretação bastante particular e já crítica da filosofia de S
­ chopenhauer,

29
roberto barros

assim como no interesse pela obra de arte total de Wagner associada aos gregos, evi-
dencia fatores fundamentais desse projeto reformador (Britto, 2010, p. 200). Parte-se
aqui do ponto de vista de que o remetimento a aspectos centrais da interpretação da
arte helênica realizada pelo autor consiste em um passo necessário e mesmo ­decisivo
para a compreensão da sua filosofia no período.
Em O nascimento da tragédia, o fator primário que para Nietzsche caracteriza a
singularidade dos gregos é o apreço daquele povo pela existência, apreço este que se
manifesta artisticamente. Essa interpretação se baseia na compreensão da significação
da experiência estética dos helenos diante da percepção sem anteparos do sofrimento
inerente à existência. Ao invés de negá-lo, os gregos criaram artisticamente meios para
o seu embelezamento, superando assim o horror do existir. Esses são temas com presen­
ça enfática e constante tanto nos escritos como nos f­ ragmentos póstumos do primeiro
período de elaboração do pensamento do autor, e que podem, por isso, ser considerados
como demarcadores de ­problemáticas centrais do mesmo (Fink, 1983, p. 17). Eles
possuem significação decisi­va tanto no que diz respeito à problematização do modelo
cultural euro­peu fundado na racionalidade universalista da ciência, como na c­ onsidera­ção
desse direcionamento como problema estético-vital (GT/NT § 1).
Nietzsche parte do pressuposto de que a sensibilidade grega demonstra que a expe­
riência artística possui um grau de significação vital obliterado em seu tempo e que
precisamente esse desconhecimento é sintoma de uma depreciação do significado da
experiência estética e mesmo da vida. Esses traços ele identifica como presentes. de ma­
neira decisiva, no horizonte da cultura europeia. Tal ampliação do significado da arte
apresenta, portanto, um segundo foco, subjacente à sua abordagem estética (Young, 1992,
p. 25), o da significação vital da fruição artística, aspecto que Nietzsche visa tornar
claro por meio da consideração do significado da tragédia e do trágico no contexto da
cultura grega, assim como pela contraposição com a experiência suscitada pela arte em
seu tempo. Influenciado pelos novos direcionamentos da filologia na Alemanha, d ­ evido
aos rumos estabelecidos pela interpretação de Goethe dos gregos e pelo consequente
afastamento do classicismo alemão norteado por Lessing,3 Nietzsche interpreta a arte
grega por meio de dois p ­ rincípios estéticos fundamentais, com os quais ele busca deli-
near e demonstrar a significação da tragédia grega. Seu ponto de partida é o de que a
arte grega advém do mistério da unidade (Einheitsmysteriums) (GT/NT “Tentativa de

3
Efetivamente Nietzsche se distancia do procedimento acadêmico filológico clássico alemão, para
o qual a estética de Lessing ocupa uma posição central. Essa mudança de direcionamento está
relacionada à leitura dos livros de Jakob Bernays, Die Gründzüge der verlorenen Abhandlung des
Aristoteles über die Wirkungen der Tragödie (1857) e Die Katarsis des Aristoteles und der Oedipus C
­ oloneus
des Sofokles (1866), de Paul Graf York von Wartenburg, livros que constroem uma leitura não tra-
dicional da catarse na tragédia. Cf. Crescenzi, 1994, p. 213-16.

30
a perspectiva trágica

autocrítica” § 5) de dois impulsos estéticos da natureza, cujo entendimento poderia


esclarecer o conteúdo vital da arte helênica (Young, 1992, p. 30) e, desse modo, demons-
trar a sua significação para um ­projeto de renovação artística da cultura.
Logo nas primeiras linhas de O nascimento da tragédia, Nietzsche é claro ao afirmar
que os termos (Namen) por ele analisados são originários dos gregos e tomados como
forma de expressar uma perspectiva eminente­mente artística, ou seja, isenta de qualquer
conceituação (GT/NT § 1). Esse traço o autor interpreta na arte grega e constitui o
aspecto decisivo para que ele possa considerar os helenos como um povo singular, sob
o ponto de vista de sua sensibilidade artística. Tal comentário decorre do fato de Nie­
tzsche compreender a arte grega, em especial a tragédia, como oriunda de uma moti-
vação singular dos helenos para os sentimentos, para o desejo impetuoso e com ­grande
aptidão para o sofrimento (Leiden) e que tais características seriam evidentes na sua
arte e, consequentemente, na sua cultura. O filósofo deseja, com isso, ressaltar a signi-
ficação da arte para a cultura e para a vida e, assim, propor uma avaliação s­ emelhante
para a arte wagneriana, entendida por ele como via para uma possível renovação c­ ultural
da Europa. Tal ponto de vista decorre da interpretação de que, na modernidade, dá-se
o embotamento da compreensão do significado da arte e de que isso também significa
um sintoma de desagregação vital e cultural.
Os helenos, segundo Nietzsche, possuíam uma relação natural para com a vida e
expressavam a dor e o sofrimento através do filtro e­ mbeleza­dor da arte (Schacht, 1995,
p. 134). A arte trágica grega, em seu misto de beleza e sofrimento, é interpretada por
ele como expressão de um desejo inconteste do homem grego por continuar vivendo.4
Ele sustenta a sua posição no argumento segundo o qual, na arte grega, o não mascara-
mento da verdade essencial do mundo em sua crueldade – fonte incessante e intranspo­
nível de sofrimento – consiste em uma justificação artística da existência, por meio da
qual os gregos não apenas superaram o ­pessimismo diante do existir, como ainda lo-
graram produzir uma cultura exuberante e afirmativa. Segundo essa interpretação, a
arte grega, considerada pela ótica de Nietzsche, comporta dois significados: a) ela é
considerada – como na tragédia – representação de uma estória de final infeliz, na qual
o espectador já sabia o destino cruel reservado ao protagonista; b) ao mesmo tempo – e
contrariamente ao primeiro efeito que poderia suscitar –, ela é também uma forma
manifesta de apreço e júbilo pela ­existência, pois, a partir dela, os gregos teriam criado

4
GT/NT § 3. Para Baranger, a abordagem de Nietzsche da arte trágica grega o faz descobrir uma
nova espécie de pessimismo. Segundo o autor, mesmo que Nie­tzsche tenha partido da ­interpretação
schopenhaueriana do pessimismo, de raízes hindus, ele se refere a outro tipo de pessimismo, o
pessimismo ativo, da força, concebido a partir do modelo dos gregos pré-socráticos. Baranger, 1946,
p. 29.

31
roberto barros

um antídoto contra uma compreensão pessimista do existir, cuja imagem excelsa seria
a dos deuses olímpicos (GT/NT, § 3).
Tomar a arte trágica grega como ponto de partida para a consideração das possi-
bilidades da arte adquire significação para Nietzsche precisamente em decorrência da
relação segundo a qual, nela, a união da arte com sofrimento e vida, ao contrário dos
orientais que se voltaram para o quietismo e para a interiorização, teria levado os gregos
à glorificação da existência ativa e ao anseio pelo viver. Na arte trágica, manifesta-se a
própria vontade, de forma ideal, na música e nos personagens representados no palco.
Esse aspecto singularizaria tanto os gregos como a sua arte, pois teria sido justamente
ela o instrumento primeiro desse anseio, da expressão máxima do desejo de afirmação
e embelezamento da vida:

Esta é a esfera da beleza, na qual eles [os gregos] viam a sua imagem refletida, os
olímpicos. Com essa arma lutava a vontade helênica contra o correlativo talento para
o sofrimento e para a sabedoria do sofrimento. Desta luta, e como monumento de sua
vitória, nasceu a tragédia (EP: GG/NP. KSA 1, p. 590).

Desse modo, a arte trágica grega constitui-se em um objeto paradig­mático de


consideração por parte de Nietzsche, não unicamente devido à sua significação e­ stética,
mas em decorrência da concepção de que ela possui uma significação outra, ainda mais
fundamental, que extrapolaria o campo da expressão artística. Essa qualidade foi apar-
tada da arte contemporânea, em decorrência do processo de racionalização da expressão
artística, assim como devido à desvinculação da arte da formação do indivíduo (Bildung),
ocorrida no transcurso do tempo que separa a cultu­ra grega da moderna.5 Essa é uma
das afirmações centrais da obra inaugural de Nietzsche, por conseguinte, a partir dela
ele busca argumentar em favor da interpretação segundo a qual a arte grega não se
restringe a uma mera forma de expressão artística, tal como ela seria ­modernamente
interpretada. Antes, ela é manifestação dos impulsos artísticos naturais (Kunsttriebe der
Natur) (GT/NT § 1), procedentes da vontade, que, na tentativa de manter na ­existência
as suas próprias manifestações, atuam no sentido de criar modos estéticos de represen-
tação do mundo, e­ nquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência.
Por meio dos impulsos, a vontade tenta obstar a sua própria manifestação sem limites,
o que Nietzsche identifica nos filósofos pré-platônicos e interpreta como a negação da
vontade em prol da própria vontade (NF/FP: 7, 21 [16] verão de 1872 – início de 1873).
Os impulsos e a arte gerada a partir de sua manifestação são formas e resultados da
5
A partir disso, Nietzsche pode afirmar que, no que se refere à Ópera, esta seria apenas o quadro
distorcido (Zerrbild) do antigo drama musical, de onde decorre diretamente o macaquear
(­Nachäffung) da antiguidade tornada sem força e ­segundo uma teoria abstrata. Cf. EP. “O drama
musical grego” (NS/EP: GM/DM. KSA 1, p. 516).

32
a perspectiva trágica

domesticação (Bändigung) da vontade, que ocorre esteticamente, por intermédio da


criação de mundos artísticos (Kunstwelten).
A singularidade da arte grega decorre da característica de que nela os impulsos
naturais se manifestam esteticamente, produzindo estímulos sensoriais e transmutando
em experiência estética a percepção de fenôme­nos naturais, tais como a fecundidade do
impulso primaveril (Fruhlingstrieb) e a ordenação do ciclo natural (EP: NPT, KSA 1,
p. 582). Convencido dessa concepção, Nietzsche identifica dois impulsos naturais que,
em contraposição mútua, a exemplo do sonho e da embriaguez, exprimem a origem da
arte grega. O primeiro é expresso pela percepção apolínea do mundo, pré-condição para
toda a arte figurativa (bildende Kunst) (GT/NT § 1), manifestação do mundo onírico
dos gregos e que atua como anteparo embelezador diante da compreensão trágica da
existência. A outra forma de manifestação natural, surgida posteriormente, é a arte
dionisíaca, expressão livre dos impulsos vitais, que remete o homem novamente ao
centro da natureza e da dura realidade desta. Por seu intermédio, é explicitada ao grego,
pela segunda vez, a veracidade trágica da existência. Porém, ao mesmo tempo em que
traz de volta a ­experiência pré-apolínea, titânica, do mundo, a arte dionisíaca une-se a
Apolo e b­ usca transfigurar e redimir essa percepção por meio de um sentimento mís-
tico de unidade (Mystische Einheitsempfindung), (Higgins, 1987, p. 22), responsável pela
reconciliação não apenas entre homem e homem, como também deste com a natureza
(EP: DW/VD § 1, KSA 1) e, portanto, com a vontade, o uno primordial (Ureinen),
(GT/NT § 2), o ser original (Ursein), a essência contraditória do mundo, que coloca tu­do
no espaço e no tempo e em forma de aparência.
Para Nietzsche, o efeito primeiro do apolíneo é possibilitar o pricipium individuationis,6
ou seja, o fator subjetivo atenuante na relação direta entre homem e natureza, que se
manifesta na experiência estética ­consciente. Movidos por sua sensibilidade singular e
pela percepção da inclemência do mundo presente na sua primeira religião, os gregos
criaram a arte figurativa de Apolo, fundada na bela aparência, como meio atenuante do
retorno da antiga percepção. Mas, contrariamente aos modernos, eles criaram não uma
negação do caráter ameaçador da existência, mas sim geraram uma forma afirmativa de
6
Young indica dois sentidos na utilização do termo “Apolo” por Nietzsche: em uma primeira ocor-
rência, ele se relaciona à arte e, em uma segunda, tem sentido metafísico. Com respeito ao ­primeiro
significado, o comentador indica que Nietzsche deseja falar da conexão necessária entre o apolíneo
e a beleza; no que se refere ao segundo, o filósofo utiliza a terminologia schopenhaueriana e pensa
Apolo aproximando-o do pricipium individuationis, a faculdade humana que divide o mundo em
uma pluralidade de impressões espaço-temporais individuais. (Op. cit., p. 32). De fato, na atuali-
dade, é consenso que Nietzsche faz uso da dicotomia conceitual schopenhaueriana de vontade de
representação para conceber o dionisíaco e o apolíneo. Porém, é importante ressaltar o seu distan-
ciamento com relação a Schopenhauer já em seu primeiro livro. Fator que se evidencia no fato dele
interpretar a arte grega não como um mero paliativo contra o sofrimento do existir, mas como
antídoto efetivo contra o pessimismo causado pelo sofrimento deste.

33
roberto barros

suportá-lo, por intermédio do embele­zamento da crueldade própria do existir. É esta,


para Nietzsche, a caracte­rística fisiológica – porém não patológica – fundamental do
apolíneo e que marca toda a arte helênica: simultaneamente, ser manifestação da expe-
riência onírica, condição primeira de toda arte plástica e, destarte, a força de apazigua-
mento do caráter destrutivo da natureza.7 Desse modo, ele é o meio de afirmação da
existência por intermédio do seu embeleza­mento, o que o torna uma potência artística
afirmativa.
Diante do terror do homem grego, suscitado pelas exigências do existir e repre-
sentado na anterior teogonia titânica, a arte apolínea não nega uma compreensão verí-
dica e cruel da existência, mas protege a­ quele do poder destrutivo dessa compreensão
através de sua arte figurativa, cujo monumento é Homero (Machado, R., 1999, p. 20),
o artista ingênuo,8 imerso no mundo da figuração (Barrack, 1974, p. 116) de um ­mundo
determinado pelo destino inevitável. Assim, a salvação do homem grego é possível
devido à arte e às criações do mundo figurativo do sonho, cuja expressão primeira seria
o mundo intermediário dos olímpicos (Mittelwelt der Olympier) que, em última a­ nálise,
é a expressão da vontade helênica (hellenische Wille). Esta coloca a arte diante de si como
um espelho transfi­gurador (verklärender Spiegel), como forma de lutar contra o corre-
lativo talento artístico para o sofrer e para a sabedoria do sofrer própria do homem
grego (GT/NT § 3).
A compreensão desses aspectos é essencial para se entender a descri­ção de N­ ietzsche
do processo de surgimento da tragédia. Segundo ele, é necessário associar a arte a­ polínea
com outra de manifestação artística grega, a poesia popular, para, então, ser possível
compreender a origem do trágico. As raízes da poesia popular remontam ao solo do
impulso dionisía­co, que – em formulação claramente influenciada por Schopenhauer
– seria a expressão da vontade, da essência volitiva do mundo, em sua ­busca de redenção
do sofrimento causado pelo querer, mediante a bela a­ parência. O filósofo recorre, então,
a uma das fábulas referentes a Sileno, o sátiro habitante das florestas e servidor de
Dionísio, para justificar a interpretação da poesia popular como exemplo p ­ aradigmático
do conteúdo de sofrimento inerente à arte grega.
7
Com tal proposição, Nietzsche busca acentuar a significação do pessimismo entre os gregos. Com
ela, ele pode se afastar da interpretação tradicional dos gregos desde Winckelmann, que descreve
os helenos como povo sereno e comedido. Baranger, op. cit., p. 34.
8
A indicação da proximidade entre as posições de Nietzsche e de Schiller se faz aqui necessária. Ao
relacionar o artista ingênuo (naif) ao impulso apolíneo, Nie­tzsche se aproxima claramente da in-
terpretação de Schiller, para quem o poeta, mesmo ao buscar representar o natural, nunca o faz de
modo real. O seu representar permanece sempre ideal (Schiller. Acerca do coro trágico na tragédia,
1999, p. 688), pois esta, manifestada no poeta ingênuo, pode ser interpretada como uma atitude
natural, sem jamais ser naturalista (Idem. Sobre a poesia ingênua e sentimental. p. 375). Em ­Nietzsche,
como será abordado na terceira parte deste livro, o aspecto ideal da arte épica consiste em um
ponto central de sua consideração positiva da arte grega.

34
a perspectiva trágica

O sábio Sileno, perseguido por longo tempo na floresta pelo rei Midas, um dia
veio, finalmente, a tornar-se deste prisioneiro. Inquirido acerca do que seria entre todas
as coisas o mais preferível para os homens, o seguidor de Dionísio, forçado a responder,
o fez com ironia, afirmando que, para os homens, estirpe miserável de filhos do acaso e
do tormento, o melhor seria inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser,
e que, depois disso, o melhor seria logo morrer (GT/NT § 3).
Segundo Nietzsche, essa narrativa, produto da sabedoria popular dos gregos, ex-
prime claramente os dois aspectos essenciais da natureza grega e de sua arte: o retratar
a existência em toda a sua dureza9 e o caráter embelezador da sua representação. ­Desse
modo, ela é interpretada como visão desesperançada, no que se refere ao amenizar da
dureza inelutável da existência e do destino – aspecto perceptível na primeira r­ eligião
grega –, mas que ameniza tal compreensão de forma afirmativa, por meio da represen-
tação artística esteticamente sedutora.

A embriaguez do sofrer e do belo sonho tem seus diferentes mundos de deuses. O


primeiro penetra, na onipotência de sua essência, nos mais profundos pensamentos da
natureza, ele reconhece os terríveis impulsos para o existir e, ao mesmo tempo, a con-
tínua morte de todos os ­ingressos na existência. Os deuses que ele cria são bons e maus.
Assemelhados ao acaso, assustam através da imediata alteração da sistematicidade, são
impiedosos e sem o prazer no belo. Eles são parentes da verdade, e se aproximam do
conceito; raros e pesados, comprimem-se em formas. Olhar para eles transforma em
pedra; como se deve viver com eles? Mas isso também não se deve: Este é o seu ensi-
namento (EP: GTG/NPT, KSA 1, p. 590/1).

Segundo esse ponto de vista, os deuses pré-olímpicos seriam unicamente a ex-


pressão da verdade da natureza e, portanto, a expressão mais fiel da existência; de onde
decorre o seu caráter sombrio e duro, pois esses traços são justamente representação da
existência em sua verdade (Baranger, 1946, p. 33). Como antídoto contra esse saber, os
gregos teriam criado para si a bela imagem do mundo olímpico, com as elevadas repre-
sentações dos deuses em sublimes figuras, como forma de tornar suportável a dor por
meio da aparência (Machado, 1989, p. 18).
O que caracteriza essencialmente para Nietzsche a cultura apolínea é não apenas
o seu conteúdo ter sido transmitido por meio do efeito embelezador da arte, mas nela

9
Vale ressaltar aqui que a temática da dor do mundo (Weltschmerz) consiste em um aspecto central
do movimento Sturm und Drand. Para os representantes do movi­mento, ela é associada aos c­ onflitos
entre indivíduo (gênio artístico) e sociedade, no qual a libertação das regras artísticas se dá por meio
da liberação de impulsos, naturais e vigorosos. Outros aspectos relativos aos pré-românticos alemães,
e a serem indicados como pertinentes à compreensão de determinados elementos presentes no
primeiro livro de Nietzsche, são: a referência à idade média, a crítica da interpretação aristotélica
do drama e a redescoberta de Homero. Cf. Werle, 2000. p. 23.

35
roberto barros

não se encontrar nenhuma condenação ou desejo de abandono do mundo e da ­existência,


pois a verdadeira dor dos homens homéricos está em separar-se da existência (GT/NT
§ 3). Esse posicionamento, que desempenha importante papel em toda a sua filosofia
e influencia determinantemente a sua consideração da arte, o impulsiona a afirmar que
o embelezamento apolíneo funcionaria como uma poção mágica (Zaubertrank), que a
tudo diviniza, não importando se bom ou mau. Ele seria, portanto, a fonte de uma
religião que encontraria a sua máxima expressão na imagem da montanha mágica do
olimpo e na figura de seus deuses (NS/EP GTG/NPT § 1, KSA 1, p. 595).
Desse modo, o grego é salvo da compreensão terrificante da verdade do existir pela
arte figurativa de Apolo, através da serena alegria (Heiterkeit)10 da transfiguração a­ polí­nea
dos deuses olímpicos. Destarte, para Nietzsche, a arte apolínea origina uma forma de
embelezamento como meio de suportar o terrível que caracteriza a existência (GT/NT
§ 2). Disso decorre a sua afirmação de que toda a beleza e o ­comedimento do apolíneo
repousam sobre um substrato de sofrimento (GT/NT § 4). Utilizando de nomencla-
tura schopenhaueriana, Nietzsche, ao explicitar aquilo que entende como impulso apo-
líneo e sua significação para a cultura grega, refere-se primeiramente ao Uno-primordial,
a vontade, cujo alvo é a sua redenção pela aparência. É a partir da vontade que o grego
percebe, de modo sublime, quão necessário é o mundo do t­ ormento para a sua i­ nclinação
à arte e à beleza artística, o que lhe serve então de motivação para buscar uma visão
redentora (erlösenden Vision) (GT/NT § 2) da existência.
Um dos objetivos primordiais de O nascimento da tragédia consiste justamente em
decodificar para o seu tempo essa nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofri-
mento e da arte trágica dos gregos. Isso, a partir do ponto de vista de que, se ela se
fundava em uma concepção acerca da existência, esse sentimento e a interpretação do
mundo que ele suscita possuem um caráter estético afirmativo, que deve ser necessaria­
men­te aclarado, o que apenas pode ser feito mediante uma análise da proveniência e
do sentido da arte grega. Todavia, esse intento não pode ser levado a cabo utilizando-se
unicamente o discurso teórico (Barranger, 1946, p. 25), que de imediato já tem i­ ndicados
os seus aspectos conflitantes com uma perspectiva fundamentalmente artística (­Machado,
1997, p. 25).
Se, para Nietzsche, a tragédia grega tem uma origem natural, ou seja, se ela é a
expressão da unidade primordial do mundo, da vontade (Higgins, 1987, p. 22), ­expressa
artisticamente, precisamente por esse aspecto ela não deve ser interpretada segundo
10
Com respeito à opção pela tradução de Paulo Cesar de Souza (1999) do termo Heiterkeit como
“serena alegria”, deseja-se ressaltar aqui também a validade da solução encontrada por J. Guinsburg
(1992) em sua tradução brasileira da ­primeira obra de Nietzsche, ao expressá-la a partir do com-
posto “sereno-jovialidade”. Com efeito, Heiter está associada à ideia de uma paz interior, ao passo
que Heiterkeit aproxima-se mais de noções como alegria e hilaridade.

36
a perspectiva trágica

pressupostos unicamente teóricos, pois esses pouco ou mesmo nada têm a ver com os
instintos artísticos dos antigos gregos. É a consideração dos impulsos estéticos dos
helenos que guia a interpretação nietzschiana do trágico, que pressupõe a total circuns-
crição no mundo natural, apenas passível de ser p ­ lenamente compreendida por meio
dos dois impulsos estéticos da natureza. Desse modo, aquilo que Nietzsche ­compreende
como ensinamento grego dos mistérios foi transmitido artisticamente e expressa uma
visão natural de mundo e evidencia a sua dupla fonte (Doppelquell). No campo da arte,
após um período de franca oposição e em um momento de fl ­ orescimento da vontade
helênica, os dois impulsos aparecem confundidos, em uma contraposição que teria
constituído o ponto culminante da arte grega (EP: NPT, KSA1, 583). Apolo é d ­ escrito
por Nietzsche por meio de uma inter­pretação psicológica, que se estabelece ao dar
vazão nos gregos à alegre necessidade da experiência onírica (freudige Nothwendigkeit
­Traumerfahrung), expressa mediante a arte apolínea.11 Isso torna a divindade grega
­sinônimo de todas as forças figurativas, o Deus áugure, pois, segundo a raiz do próprio
nome, Apolo significaria o “deus aparente” (scheinende), a divindade da luz, que reina, por
meio da bela aparência, sobre o mundo interior da fantasia (Nietzsche, GT/NT § 1).
Em contraposição ao mundo cotidiano, a aparência apolínea apresenta-se como
uma verdade superior, mais perfeita e ainda relacionada à capacidade reparadora e cura-
tiva do mundo do sonho, por meio da qual a vida torna-se digna e possível de ser vivida.
A imagem apolínea, no entanto, não aspira alcançar o mesmo grau da realidade gros­seira
(Young, 1992, p. 31), e eis em que consiste um de seus traços mais significativos. Para
ela, não constitui qualquer falha o permanecer unicamente como imagem onírica, pois
somente assim ela pode alcançar a liberdade frente às emoções mais selvagens e ­expressar
a sábia tranquilidade própria do deus figurativo (Bildnergottes) (GT/NT § 2). Segundo
Nietzsche, o apolí­neo consiste inicialmente no impulso dominante e solitário na arte
­grega, produtor da bela aparência do mundo do sonho, onde todo homem é um artista
completo. Ele é, portanto, o pai de toda a arte figurativa, cuja expressão primeira são
tanto as artes plásticas como também uma importante metade da poesia.
Entretanto, a avaliação da origem da tragédia e do gênio trágico entre os gregos
requer a consideração do dionisíaco em sua relação confli­tante, porém complementar
(Young, 1992, p. 32) com o apolíneo. S ­ egundo o autor, o efeito da arte apolínea, o pro-
11
Muito embora não encontremos em NT referências a uma perspectiva psico­lógica específica, é
inegável que nessa obra é possível antever traços que se fazem presen­tes na reflexão posterior do
filósofo. A esse respeito, o próprio Nietzsche se refere, no “Prefácio” acrescido em 1886 a NT, às
inovações psicológicas presentes no livro (§ 2). Dentre estas, podemos indicar aqui a relação entre
o corpo, os instintos, as pulsões e a expressividade, que visa, desde a obra inicial, refutar as inter-
pretações idealistas, racionalistas e moralizantes acerca das criações da ­cultura. A esse respei­to,
conferir o artigo de Wotling, Patrick. “Der Weg zu den Grundproblemen”. Statut et structure de la
psicologie dans la pensée de Nietzsche. Nietzsche-Studien, 26, 1997.

37
roberto barros

piciar a serenidade mesmo diante da realidade apavorante, torna-se inócuo após nova
revelação do verdadei­ro caráter da existência, suscitada na Grécia pela inserção do
dionisíaco estrangeiro (Machado, 1999, p. 21). Dionísio é descrito por Nietzsche como
o deus vindo do oriente, como a manifestação de impulsos ­artísti­cos que, sem a ­mediação
do artista, irrompem da própria natureza e se satisfazem (befreidigen) por via direta
(GT/NT § 1). Adentrando na Grécia, ele encontra na grande inclinação da sensibili-
dade helênica para o sofrimento uma qualidade ausente entre os orientais (NS/EP:
GTG/NPT, KSA 1, p. 591). O seu efeito primeiro é a destruição da bela aparência da
arte figurativa apolínea, remetendo o homem novamente ao estado de completa ­imersão
e inconsciência no cerne da natureza, no qual a v­ erdade desta se manifesta imediata-
mente (Ibidem., p. 583). Segundo Nietzsche, tudo o que até então servira como f­ rontei­ra
e medida de determinação, mostra-se, a partir de então, como aparência artística, e a
desmesura é descoberta como verdade (Ibidem., p. 598).

Nunca, porém, foi a luta entre verdade e beleza maior que na invasão dos servidores
de Dionísio. Neles a natureza descobria-se e falava de seu segredo com terrível c­ lareza,
com o tom, diante do qual a sedutora aparência anterior perdia o ser poder (NS/EP:
GTG/NPT, KSA 1, 591).

No mundo da aparência apolínea, que tem por objetivo o respeito ético às medidas
e ao estabelecimento das fronteiras do saber e do conhe­cimento da verdade, o preceito
fundamental seria justamente a a­ dvertência “conhece a ti mesmo” (GT/NT § 4). O tom
arrebatador das festas dionisíacas, o seu excesso de natureza, o seu desejo pelo sofrer e
o reconhecimento da verdade da existência apresentam-se como o oposto desse ­princípio
e teriam, novamente, desvelado a verdade encoberta pelo apolí­neo (Young, 1992, p. 35).
Desse modo, o dionisíaco empalidece o brilho dos deuses olímpicos, do mesmo modo
que afugenta as musas das diferen­tes artes, pois põe por terra os anteriores limites e
medidas e, n­ ovamente, expõe a sabedoria de Sileno (NS/EP: GTG/NPT, KSA 1, 594).
Para Nietzsche, o efeito imediato da inserção do dionisíaco na ­cultu­ra e nas artes
gregas resulta no aniquilamento dos hábitos e dos limites im­postos à compreensão da
existência pelo apolíneo. O estado letárgico no qual são deixados os adoradores de Dio-
nísio, durante o qual eles mer­gu­lham em suas experiências mais instintivas, deixa nova-
mente à mostra o abismo estabelecido entre o mundo apolíneo e o mundo da realidade
natural. O resultado mais assustador dessa experiência é a chegada da realidade da
existência à consciência do grego, que lhe suscita asco e t­ er­ror diante de sua c­ ompreensão
sem anteparos, do que resulta o desejo maior e imediato dos helenos, a fuga de um
mundo a partir de então sentido como repleto de culpa e de destino atroz e inexorável.
Ao grego resta, portanto, apenas a compreensão do terrível e do absurdo da existência.

38
a perspectiva trágica

As musas das artes da “aparência” empalideceram diante de uma arte que em sua
embriaguez falava a verdade. A sabedoria de Sileno gritava: “Sofrimento! Sofrimento!”
contra os serenos olímpicos. O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, caía no
esquecimento de si dos estados dionisíacos e esquecia os preceitos apolíneos. A desme­
sura se desvelava como verdade; a contradição e o enlevo nascido da dor se expressavam
do coração da natureza. E assim foi que, em todo lugar onde penetrou o dionisíaco, o
apolíneo foi superado e aniquilado (GT/NT § 4).

Esse conflito, no entanto, antes de se constituir em uma contraposi­ção ­unicamente


negativa, revela-se também como um momento de realização da intenção básica da
vontade. Para Nietzsche, a finalidade da vontade seria a manutenção da vida por meio
de sua redenção estética, o que significa o seu apaziguamento através do efeito da ação
artística. Esse conflito, segundo o autor, tem como fator primeiro justamente a reafir-
mação da necessidade do apolíneo, pois teria sido exatamente o seu impulso figurativo
e o seu senso de medida, ao retirar as armas destruidoras do dionisíaco, que salvaram o
grego do aniquilamento (Machado, 1993, p. 23).

Aqui é alcançada a perigosa fronteira que a vontade helênica, com seu princípio
funda­mental apolíneo otimista poderia permitir. Aqui ele [o apolíneo] atua imedia-
tamente com sua força curativa da natureza, para novamente dobrar aquele ânimo
negador. Seu meio é a obra de arte trágica e o pensamento trágico (NS/EP. GTG/
NPT. KSA 1, p. 595).

Portanto, antes de significar o banimento dos princípios e da arte apolínea, esse


conflito teria revelado novamente ao grego a importância e a necessidade desta, de-
monstradas mediante a indicação de uma reconciliação de Apolo com Dionísio, na qual
ocorreu a supressão do traço letal do deus estrangeiro e a transformação dos p
­ ensamentos
sobre o terrível e o absurdo da existência em representações, com as quais, então, seria
possível viver. Desse modo, o Deus délfico salva novamente os g­ regos da renúncia ao
viver, por meio da adequação das suas forças representativas à música dionisíaca, e assim
supera, com descargas artísticas, os sentimentos de asco e de absurdo, suscitados pela
compreensão da verdade da existência (Ibidem., p. 595).
Essa interpretação serve de base para Nietzsche na descrição do processo de for-
mação da tragédia, a partir da consideração das expressões artísticas dos dois impulsos
naturais. Segundo essa concepção, a tragédia se originou da imagem embelezadora
apolínea, fonte da qual adveio o epos, resultado da atuação do artista épico em inserção
total no mundo da contemplação estética, associada à música dionisíaca. Dessa originou-
-se o coro de seguidores do Deus bárbaro, enquanto expressão isenta de imagem, mas
como contemplação intuitiva da dor original do existir. Ambos os impulsos são, cada

39
roberto barros

um a seu modo, claras e nítidas representações do mundo, porém manifestas por dife-
rentes meios e, portanto, nada mais que expressões da vontade, manifestas em sua
busca por redenção estética. Da união de ambas resultou a canção popular (Volkslied),
perpetuum vestígium da fusão do epos apolíneo e da música dionisíaca (GT/NT § 6).

A canção popular, porém, se nos apresenta, antes de mais nada, como espelho musical
do mundo, como melodia original, que procura agora uma aparência onírica paralela
e a exprime na poesia. A melodia é, portanto, o primeiro e universal, podendo, ­portanto
por isso, suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos (Ibidem).

Para Nietzsche, a poesia lírica origina-se da tentativa de imitação da música por


meio de imagens e conceitos, resultado do momento no qual aquela, na sua amplitude
e maior inteligibilidade (NS/EP: GMD/DM, KSA 1, p. 529), aspira ser a expressão
musical do mundo; como melodia primeira que deseja uma aparência onírica e se expri­
me na ­poesia. Assim, na poesia da canção popular, a “linguagem se empenharia ao
máximo para imitar a música” e a sua amplitude de possibilidades. Isso põe à mostra
que a palavra, na imagística do conceito, atua como ­vontade, por também aspirar o
mesmo grau de expressão da música. Ela faz oposi­ção ao estado de ânimo estético,
puramente contemplativo: a afonia; ou o ânimo destituído de vontade (Willenlose
­Stimmung), que, desse modo, diferencia o conceito de essência do fenômeno (Wesen von
der ­Erscheinung), ou seja, a vontade de sua manifestação estética (GT/NT § 6).
A música torna-se, então, o veículo primeiro da vontade, a eterna sofredora e
plena de contradição, que necessita para a sua redenção da aparência prazerosa (GT/
NT § 4). Isso dispõe Nietzsche a concluir que a tragédia se origina da união da repre-
sentação com o coro, enquanto tentativa de apaziguar o impulso insaciável da vontade;
o que ele descreve segundo a interpretação de Schiller, para quem o coro foi como uma
muralha viva que a tragédia trazia em volta de si, a fim de salvaguardar sua base ideal
e a sua liberdade poética (GT/NT § 8).
Desse modo, os gregos criam um mundo real, dotado de mesma realidade que o
mundo olímpico, que se constitui em um consolo meta­fí­sico (metaphysischer Trost), o
qual assevera que a vida, apesar de toda a transitoriedade dos fenômenos, é i­ ndestrutível
e cheia de alegria. Esse efeito pode ser visto no coro satírico, com seus seres naturais,
eternamente existentes na história dos povos (GT/NT § 7).
Para Nietzsche, é justamente com esse coro que se confortam os gregos em sua
aptidão singular para o sofrimento. Eles veem o centro da terrível ação destrutiva na
história e a crueldade da natureza, mas, ante o perigo de desejar uma negação do q­ uerer,
encontram a salvação por meio da arte. A arte é, para os gregos, o antídoto contra o
sofrimento causado pela percepção do sofrimento. Por meio dela, este se torna não

40
a perspectiva trágica

apenas suportável, mas também apreciável, o que possibilita aos helenos a ­continuidade
do querer viver. Nietzsche enfatiza essa função vital da arte na seguinte afirmação: “A
arte o salva, e através da arte salva-se nele – a vida.”12 Nessa perspectiva, o êxtase dio-
nisíaco funciona como um elemento letárgico (lethargisches Element), no qual emerge
toda a vivência pessoal do passado e separa, por esquecimento, o mundo da realidade
cotidiana e a realidade sem anteparos. Ele afasta assim o asco (Ekel) advindo desta,
assim como também a tendência à disposição ascética resultante desse estado.
Da consideração desse poder de transformar os pensamentos sobre o horror e o
absurdo da existência em representações sublimes, que servem como descarga artística
do asco e do absurdo do existir, Nietzsche pode, então, dizer que: “o coro satírico dos
ditirambos é o salvador da arte grega” (GT/NT § 7). Desse modo, a tragédia é consi-
derada como o coro dionisíaco descarregado em um novo mundo apolíneo de imagens,
daí o autor poder dizer que a arte trágica grega repousa sobre um ­mistério da unidade
(Einheitsmysterium) (GT/NT § 5).

2. O dionisíaco como potência natural

A consideração do dionisíaco implica em um aspecto ­imprescindível não apenas


para a compreensão do que Nietzsche entendia por tragédia e perspectiva trágica entre
os gregos, mas também para a análise do conflito entre essa visão de mundo e a perspec-
tiva teórica, a qual o filósofo atribuiu a responsabilidade pela morte da tragédia e pelo
estabelecimento da primazia da consideração teórica da arte. Muito embora tanto o
apolíneo como o dionisíaco sejam considerados pelo autor como impulsos estéticos
naturais, isto é, como manifestações da vontade em seu desejo de redenção pela a­ parência,
o dionisíaco é considerado como ­impulso decisivo, por possibilitar uma maior aproxi-
mação de um entendimento da vontade, caráter que a sua arte exprime por meio de sua
desmesura e intrínseca indeterminação formal. Diferentemente do apolíneo, através do
qual a vontade visaria manter, na vida, os seres mediante a aparência e o ­embelezamento
do mundo e do estabelecimento de ­marcas fronteiriças, tanto para o agir como para o
conhecer, o dionisíaco é inter­pretado inicialmente como força bárbara, sem configuração
formal definí­vel e irrefreável, mediante a qual o homem, sob sua influência, ­encontra-se
totalmente inserido no seio da natureza, da mesma forma que experimenta sem a­ nteparos
a verdade do existir.
Em O nascimento da tragédia e nos escritos tematicamente próximos do período,
o dionisíaco recebe a caracterização de impulso natural relacionado à inconsciência, ao
esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico. Dessa forma, ele é posto i­ nicialmente

12
“Ihn rettet die Kunst, und durch die Kunst rettet ihn sich - das Leben.” Ibid. § 7, KSA 1, p. 56.

41
roberto barros

em completa oposição ao sentimento de plena consciência visado pelo princípio apo-


líneo de individuação.

Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, com tal ruptura do Principium
individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, olhamos
a essência do dionisíaco, que é aproximado o máximo possível de nós, pela analogia da
embriaguez. Seja pela beberagem narcótica, da qual todos os homens primitivos falam
em hinos, ou como com a penetrante proximidade da primavera a impregnar toda a
natureza de alegria, despertam aqueles sentimentos dionisíacos, em cuja elevação o
subjetivo se desvanece em completo autoesquecimento (GT/NT § 1).

Entre os gregos, o dionisíaco foi puro impulso natural, não imediata­mente relacio-
nado ao artístico, mas sim ao corpóreo e, sob o seu efeito, se daria um estado de aproxi-
mação tanto entre homem e homem como entre homem e natureza. Na e­ mbriaguez
dionisíaca, todos os princípios diferenciadores caem por terra, originando unicamente
uma crescente massa de enfeitiçados que festeja a harmonia universal (Weltenharmonie).
Artisticamente, a embriaguez dionisíaca manifesta-se em seus discípulos no canto, na
dança, no andar sem rumo e no desaprender da fala, e, a­ inda mais, na sensação de tornar-
-se outro, como possessão. Nessa alte­ração, os possessos sentem-se como animais, tomam
leite e mel da ­terra e soam como algo supranatural (Übernatürliches), atitude que carac-
teriza justamente a proximidade com a divindade, a sensação de divinização que cons-
tituiria o inacreditável idealismo da natureza (Wesen) grega (GT/NT § 1).
Repousa justamente nesse traço a distinção entre a obra de arte apolínea e a dio-
nisíaca. Enquanto a primeira é indicada como fruto da figuração do mundo dos sonhos
do homem grego, a segunda é caracterizada pelo discípulo de Deus em estado de ­êxtase
e em busca da ­assimilação do divino:

A força artística da natureza não se manifesta mais aqui como de um único homem:
um tom mais nobre, um mármore mais precioso será aqui trabalhado e modelado: o
homem. Este homem formado pelo artista Dionísio relaciona-se com a natureza como
a estátua para o artista apolíneo (GT/NT § 1).

Nesse universo de significados, o sátiro, seguidor do deus Dionísio – figura mo-


delar e motivadora dos seguidores dessa divindade – é a imagem original do homem
(Urbild des Menschen), expressão das mais altas e fortes emoções, anunciador da v­ erdade
mais profunda da n ­ atureza e que, assim, encontraria correlação plena com o mundo, a
indisfarçada expressão da vontade (GT/NT § 8).
A ideia de corporeidade, presente na imagem do sátiro, implica a precedência do
impulso, da palavra, com respeito à forma (música), o que explica o processo de ­abstração
da arte dionisíaca, que, concomitantemente, significa uma manifestação estética ainda

42
a perspectiva trágica

mais elevada da ­vontade, que em si é inestética (GT/NT § 6). A música dionisíaca, que
tem sua origem justamente no coro de sátiros dos seguidores de Dionísio, em seu anseio
de um retorno à natureza sem a interferência de nenhum conhecimento. Esse compor-
tamento lhes revelaria a verdadeira compreensão da natureza, à qual eles se adequavam
sem conjecturar, pois, em tal e­ stado de possessão, a natureza em seu devir constitui a
única realidade.
Esse é, portanto, o aspecto diferenciador entre o homem dionisíaco e o grego da
cultura apolínea. Enquanto o primeiro vê a natureza e o mundo em sua expressão mais
clara e a festeja e anseia, o homem da cultura apolínea considera a sua realidade com
assombro, mas, muito embora também a aceitando, o faz mediante o véu da bela aparên­
cia, algo que o seguidor de Dionísio não necessitaria (Schacht, 1995, p. 132). Desse modo,
o dionisíaco é interpretado por Nietzsche como a manifestação plena do natural, como
a sua aceitação incondicionada e que, assim, gera a canção popular e a tragédia. Nesta, o
coro, a visão tida pela massa dionisíaca, de acordo com a interpretação de Schiller13, é o
“muro vivo contra a realidade assaltante”.

O coro é o muro vivo contra a tempestiva efetividade, porque ele – o coro satírico –
retrata a existência (Dasein) de maneira mais veraz, mais real, mais completa do que o
homem culto, que usualmente julga ser a única realidade. A esfera da poesia não se
encontra fora do mundo, qual fantástica impossibilidade de um cérebro de poeta. Ela
quer ser exa­tamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e necessita, justa­
mente por isso, desfazer-se do atavio mendaz daquela pretensa efetividade do homem
civilizado (GT/NT § 8).

Para Nietzsche, a constituição posterior do coro trágico é a imitação artística des­


se fenômeno natural, momento no qual se estabeleceu a sepa­ração entre os especta­dores
e os servos de Dionísio. Entretanto, essa relação primeira não foi perdida, pois não deixa
de estar presente na relação entre o público e o coro, na qual não se dá nenhuma opo-
sição, s­ ignificando este a expressão daquele. Desse ponto de vista o coro, na sua fase
primiti­va, é o espelhamento do próprio homem dionisíaco, pois:

13
A opção pela interpretação de Schiller e, por conseguinte, o afastamento com respeito às interpre-
tações aristotélicas e schleguianas reforçam o caráter filosófico-artístico que Nietzsche deseja
conferir à sua análise da tragédia. Sua concepção, porém, apresenta um aspecto que não pode ser
desmerecido aqui: mesmo ­enquanto manifestação dos impulsos estéticos, a tragédia advinda do
coro nunca é para ele uma representação natural, mas sim ideal da natureza, pois a idealização
consiste em um traço inseparável da arte grega. Esse aspecto é de grande significação para que se
entenda a diferença entre o ideal artístico manifesto pelos helenos e o idealismo das interpretações
alemãs, o que auxilia na compreensão da posterior retomada de Nietzsche por caracteres e temas
relacionados aos gregos.

43
roberto barros

O coro dos sátiros é primordialmente uma visão da massa dionisíaca, assim como, por
outro lado, o mundo do palco é a visão desse coro de sátiros: a força dessa visão é
forte o suficiente para, contra a impressão da “realidade”, contra os círculos enfileirados
dos homens cultivados, tomar insensível e embotado o olhar (ibid. § 8).

Dessa relação participaria, ainda, o poeta trágico. Ele também ­estaria envolto em
imagens e seria poeta apenas por compreender-se cercado de pequenas figuras que
vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais í­ntimo o seu olhar penetraria. O sátiro,
enquanto personagem do mundo ­artístico, é visto pelos gregos como um ser divino e
sublime, representação da satis­fação ante a natureza, que destrói a ilusão de sua imagem
original (Urbild) erigida pela cultura apolínea, deixando à mostra o verdadeiro homem,
o sátiro barbudo, que, completamente imerso nos eflúvios da natureza, se rejubila ­diante
de seu deus (GT/NT § 8).

O sátiro era algo sublime e divino: assim necessitava parecer, em e­ special ao olhar
dolorosamente quebrantado do homem dionisíaco. (…) sua vista passeava com ­elevada
satisfação sobre os traços grandiosos da natureza, ainda não velados nem atrofiados;
aqui a ilusão da cultura fora apagada da imagem original do homem; aqui era ­desvelado
o ­verdadeiro homem, o sátiro barbudo, que jubilava seu deus (ibid. § 8).

Para Nietzsche, a figura do sátiro representaria para o grego a reintegração do


homem à natureza, expressa através da sugestão artística do coro, que o colocaria, por
intermédio de um estado de júbilo, em proximidade com o seu deus. A consideração
do real significado do coro dioni­síaco como expressão natural consiste, para Nietzsche,
em movimento de declarado afastamento das interpretações clássicas e “ideais” de seu
tempo (GT/NT § 7) e, por isso, tem uma acentuada significação crítica em O ­nascimen­to
da tragédia. A partir de então, da argumentação em fa­vor de um r­ edimensionamento
do significado do trágico, da significação do dionisíaco e da música dionisíaca para os
gregos, o autor pode tornar evidente o distanciamento entre a perspectiva moderna
(NS/EP: GMD/DM, KSA 1, p. 523) e a dos helenos defendida por ele.
Desse modo, o primeiro ponto mencionado como base para a crítica das interpre-
tações modernas é o da tentativa de desnaturalização do trágico grego, para ele, reflexo
do transcurso dessa significação durante os séculos que separam o grego do período
mítico e o homem do final do século dezenove. Para Nietzsche, como se verá em se-
guida, essa alteração de significado é o efeito tácito de uma desmedida racionalização
e moralização da arte e da natureza que, porém, evidentes na contemporaneidade,
constituiriam a prova do distanciamento do sentido original da arte (NS/EP: GMD/
DM, KSA 1, p. 523). Diferentemente da concepção de poesia vigente na modernidade,
mediada pela intelectualização do poetar, para o grego, a esfera da poesia não se c­ olocaria

44
a perspectiva trágica

fora do m
­ undo, como uma fantástica impossibilidade própria do cérebro do poeta. Di­
ver­samente, ela visa ser a indisfarçada (ungeschminkte) expressão da ­natureza, algo outro
que a moralização patente na perspectiva moderna.
Nesse sentido, a tragédia grega significa a manifestação dos ­impulsos naturais
mediante representação e música (Fink, 1983, p. 20), cujo aspecto fundamental c­ onsiste
na tentativa de representação visual desta última. A primeira manifestação vocal da
música, no coro dos seguidores de deus Dionísio, teria posteriormente originado a
poesia lírica, e esta, finalmente, o coro, a estátua viva do deus (NS/EP: GMD/DM,
KSA 1, p. 517). Do coro decorre a tragédia, em um momento no qual os gregos, ­diante
do novo desvelar da verdade da existência, fundiram a música dionisíaca com a repre-
sentação épica, como forma de restabelecer o seu princípio perdido de consolação e,
desse modo, superar a náusea causada pelo defrontar-se com o absurdo do existir. Por
conseguinte, o ­dionisíaco é justamente a causa dessa sensação, que, por meio da bela
representação apolínea, teria sido atenuado em seu caráter aniquilador e se t­ ransformado
em coadjuvante do apolíneo na nova expressão artística grega possibilitada por essa
conciliação. A esse respeito escreve Nietzsche:

O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Nesse encantamento, o


entusiasta dionisíaco vê a si mesmo como sátiro e, como sátiro, por sua vez contempla
o deus, isto é, em sua metamorfose ele vê uma nova visão exterior a ele, como a p­ erfeição
apolínea de sua condição. Com essa nova visão, o drama está completo (GT/NT § 8).

O dionisíaco é, portanto, interpretado por Nietzsche, em O nascimento da tragédia


e escritos tematicamente próximos, como manifestação natural dos instintos, respon-
sáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da
verdade da existência. Disso decorreria o seu imoralismo, ou seja, na aceitação plena da
existência, mesmo em seus aspectos mais terríveis e destruidores. A esse respeito, a
distinção entre o dionisíaco bárbaro, estrangeiro, e o dionisíaco grego, em seu viés ar-
tístico, adquire grande significação na caracterização do dionisíaco elogiado pela ­cultura
grega. Se, em um primeiro momento, o dionisíaco tem ressaltadas as suas c­ aracterísticas
conflitantes, agressivas e mesmo destrui­doras, em uma segunda consideração, ele tem
claramente ressaltados os seus traços positivos. Se ele rompe o “véu de Maia” da apa-
rência apolínea, é por meio dele que, posteriormente, se reafirma e fortalece o ­significado
dessa experiência estética, precisamente aquela que atenua os seus efeitos destruidores.
Segundo as suas características e efeitos estéticos de sua manifestação, o Dionísio é
também um salvador dos gregos, pois é a música, que a partir de então é a responsável
pela mais elevada forma de expressão artística dos helenos, justamente o seu antídoto
contra o pessimismo (EH/EH GT/NT § 1).

45
roberto barros

3. A morte da tragédia e o pensamento trágico

Como mencionado anteriormente, segundo Nietzsche, a tragédia grega decorre


da associação entre música e representação. Seu primeiro motivo é a necessidade dos
gregos em encontrar uma forma de superar a sensação de asco e de absurdo diante da
existência. Nesse momento, o princípio metafísico que o filósofo chama de “a vontade
helênica” aproxima os dois impulsos naturais conflitantes e, então, atenua o efeito do
conhecimento trazido novamente à consciência dos gregos pelo deus estrangeiro. A
representação da dor do existir em espetáculos terríveis propiciou ao homem grego
encontrar um meio de redimir o eterno ansiar próprio da vontade e mantê-lo na exis-
tência por meio da experiência artística.
Os pensamentos terrificantes de asco e de absurdo acerca da existência (Dasein),
vividos pelo herói trágico, são apresentados, a partir de então, em representações em-
belezadoras do sofrimento, com o que é possível ao grego continuar a viver, pois o
destino trágico do protago­nista transforma-se em vitória (NF/FP: KSA 7, 7 [128], fins
de 1870 – abril de 1871). Com isso, os gregos geraram os princípios artísticos do s­ ubli­me
(Erhabene) e do cômico (Lächerlich), respectivamente, a domesticação (Bändigung) e a
descarga (Entladung) artística desses sentimentos. ­Desse modo, os helenos encontraram
na imitação e no jogo com a embriaguez artística um meio para a sua salvação, pois o
sublime e o cômico são atenuantes da verdade por intermédio da beleza. O resultado
primordial dessa atitude é a criação de um mundo intermediário entre beleza e verda-
de, possível unicamente pela associação entre Apolo e Dionísio, união que consistiu no
ponto máximo da cultura artística grega, a partir da conversão do ditirambo em repre-
sentação trágica.
Entretanto, esse mundo da beleza e da contenção do elemento dionisíaco ­destruidor
é também o mundo da expressão natural, de modo que é ainda possível reconhecer nele
o homem instintivo, o cantor, o dançarino e o poeta, os quais, possuídos pela embriaguez
dionisíaca, ainda são a manifestação mais clara da vontade natural em júbilo; com o
diferencial de que, então, a partir de sua associação com o apolíneo, eles são apenas
representados. Através da representação, os gregos teriam buscado alcançar esse m ­ odelo
(Vorbild) da comoção do sublime e do cômico, o que teria marcado o momento em que
o dionisíaco transitaria pelo mundo da beleza e não mais buscaria a imersão na v­ erdade
da existência (NS/EP: DW/VD § 3, KSA 1). Sob o ponto de vista do mundo apolíneo,
segundo Nietzsche, a Hélade é salva e expiada pela arte representativa, daí o autor dizer
que Apolo, enquanto deus figurativo, é o salvador dos gregos, confrontados com o asco
causado pela clara visão da existência novamente posta à mostra pelo dionisíaco, pois
esse é o efeito do êxtase suscitado pela obra de arte no pensamento trágico-cômico
(Ibidem. § 3).

46
a perspectiva trágica

Nietzsche utiliza o adjetivo ingênuo (naiv) para caracterizar a singularidade da


sensibilidade artística do homem grego, inserido em um mundo artístico no qual o poe­
ta apresenta-se como a figura singularíssi­ma, justamente por estar imerso em seu ­mundo
de imagens de sonho. Um aspecto a ser ressaltado na caracterização desse caso, é que,
nesse estado estético, o artista não efetua nenhuma separação de planos, tais como entre
o mundo da vigília e outro mundo dos sonhos. Daí o autor afirmar que o ­verdadeiro
poeta apenas assim o é se estiver cercado de figuras que vivem e atuam diante dele, e que
ele é aquele para quem a metáfora não é uma mera figura de retórica, mas uma imagem
substitutiva posta à sua frente em lugar de um conceito (GT/NT § 8). ­Partindo desse
ponto, em uma diferenciação que adquire grande importância n ­ esse momento, Nietzsche
considera que o fenômeno estético é apenas a capaci­dade de ver incessantemente o jogo
vivo da existência e de viver continua­mente rodeado de hostes de ­espíritos, cuja ­capacidade
caracteriza tanto o poeta como o dramaturgo, enquanto aqueles que sentem o impulso
de metamorfosear-se e passar a falar de dentro de outros corpos e almas (ibid.). Essa
sensação, não unicamente uma experiência estética, mas um sentimento representativo
da unidade entre homem e homem e entre homem e natureza, seria o efeito suscitado
pelo coro trágico (­Tragödienchor), o fenômeno dramático primordial (dramatisches Urphä-
nomen), de onde decorre que, para Nietzsche, a tragédia seria justamente a representação
dos impulsos cantados pelo coro, em uma união que teria originado o drama musical:

Portanto reconheçamos na tragédia uma radical oposição de estilos: linguagem, cor,


mobilidade, dinâmica da fala entram na lírica dionisíaca do coro e, por outro lado, no
apolíneo mundo onírico da cena como esferas de expressão totalmente diferenciadas
uma da outra. As aparições apolíneas, nas quais Dionísio se objetiva, não são mais o
eterno mar, um tecer mutável, um viver incandescente, como é a música do coro, não
mais são aquelas forças unicamente sentidas, forças poéticas intransponíveis em ima-
gens, em que o entusiasmo do servidor de Dionísio pressente a proximidade do deus.
Agora fala Dionísio, fala não mais através de forças, mas como herói épico, quase com
a linguagem de Homero (GT/NT § 8).

Desse modo, a tragédia grega pode ser compreendida como o descarregar (­entladen)
do coro dionisíaco em sempre novos mundos de imagens apolíneas. Ela é tomada como
a objetivação dos estados dionisíacos por meio da redenção apolínea da aparência, do
quebrantar e unificar do indivíduo com o ser primordial (Ursein), o que pode c­ aracterizá-la
como a encarnação apolínea de saberes (Erkenntnisse) e efeitos dionisíacos, estando, por
conseguinte, amplamente separada do Epos (ibid.). O coro exprime a experiência mais
profunda e veraz da natureza e profere, em seu entusiasmo, sentenças oraculares de
sabedoria acerca dela, pois, como aquele que descreve os sofrimentos do existir: “ele é,
ao mesmo tempo, o sábio que, do coração do mundo, enuncia a verdade” (ibid.).

47
roberto barros

Feitas tais distinções a respeito do apolíneo, do dionisíaco e da signi­ficação de


ambos na compreensão do conteúdo estético da tragédia, Nietzsche pode, então, dire-
cionar sua argumentação à consideração dos fatores por ele antevistos como ­determinantes
do ocaso desta. Seu ­ponto de partida consiste justamente na interpretação de que o
tema básico e eternamente subjacente da representação trágica foi sempre o ­sofrimento
do deus Dionísio (GT/NT § 10), e que, a partir dessa compreensão, é possível ­demonstrar
que a morte da tragédia decorre de sua retirada da cena e da restrição do efeito musical
no espetáculo trágico.
Essa interpretação provém da constatação de um distanciamento antevisto pelo
autor, entre os três grandes expoentes do gênio trágico grego: Sófocles, Ésquilo e
­Eurípedes. Para Nietzsche, as tragédias, em especial as de Sófocles e em segundo plano
as de Ésquilo (NS/EP ST/ST, KSA 1, p. 549), são a expressão límpida da bela e clara
aparência da arte apolínea, encobrindo o outro aspecto, que é o fundo subjacente da
tragédia, a sabedoria dionisíaca expressa no destino e no sofrimento do herói. A c­ lareza
e a beleza do diálogo trágico, expressas nas obras desses dois autores, consistem na ex­
pressão máxima das capacidades simbólicas da inspiração apolínea, que, por meio da
bela imagem da trama dramática, atenua os efeitos do sofrimento inerente ao destino
do ­protagonista que, por sua vez, subsume em si a significação clara da realidade da
existência e, portanto, da sabedoria dionisíaca. Nietzsche interpreta, nas obras de És-
quilo e Sófocles – não isento de pressupostos schopenhauerianos –, a sabedoria trágica
como evidência da relação indissolúvel entre saber e sofrer (GT/NT § 9), cujo ensina-
mento está contido exemplarmente ­tanto no “Édipo” como no “Prometeu”. Entretanto,
ao mesmo tempo, a beleza do desenrolar trágico da trama, resultado da serenidade
(Heiterkeit) expressa na criação artística, desafia qualquer sentimento de infortúnio,
gerando uma imagem luminosa ante a tristeza do saber trágico. Essa configuração da
tragédia encontrou o seu fim em decorrência daquilo que Nietzsche chama de a “nova
comédia ática” (ibid. § 11), a qual, nada mais é do que a clara manifestação e o ­produto
final dos verdadeiros motivos que, segundo ele, levaram a tragédia grega ao seu fim. Na
indicação dos traços e personagens decisivos dessa nova perspectiva, o autor aponta para
a mudança efetuada por Eurípedes no cerne da concepção trágica, o qual, em franco
distanciamento com relação à antiga tragédia e aos seus antecessores, deixou, pela pri-
meira vez, de representar em suas obras Dionísio como o herói trágico (ibid. § 10). Essa
atitude põe à luz a significativa mudança de perspectiva ocorrida no cerne da cultura
­grega e que teria também demarcado o fim de sua cultura trágica. Os fatores que pos-
sibilitam a Nietzsche efetuar tal consideração de Eurípedes e da concepção empreen-
dida por ele são: a) primeiramente, que, com ele, ocorreu uma sensível e determinante
depreciação do coro trágico e da música, em favor da busca por uma maior clareza do

48
a perspectiva trágica

conteúdo expresso no espetáculo, alcançável por meio da palavra falada, da poesia (NF/
FP: KSA 7, 7 [129], fins de 1870 – abril de 1871); b) em segundo lugar, a ­supressão de
Dionísio como o herói da cena trágica. Para justificar essa i­nterpretação, Nietzsche
busca como argumento, além dos fatores anteriormente aludidos, também a contrapo-
sição desses traços com aquilo que ele chama de doutrina dos mistérios da tragédia (die
Mysterienlehre der Tragödie. GT/NT § 10), com a qual ele torna clara a sua concepção
acerca do significado dos fatores componentes da arte trágica.
Segundo esse delineamento básico, a tragédia decorre de três ­fatores artísticos
fundamentais: em primeiro lugar, da visão de Dionísio como herói lutador individual,
que, por isso, experimenta os sofrimentos da individuação. Em segundo lugar, da visão
de Dionísio destroçado pelos titãs, símbolo do anseio desmedido pelo titânico. E, fi-
nalmente, o ­terceiro fator: o Dionísio renascido, que, com o simples anúncio de seu
reaparecimento – enquanto símbolo de reconciliação com a natureza –, levou a alegria
ao coração dos helenos, por significar a superação da individuação, cônscia do sofri-
mento inerente à existência. Para Nietzsche, esses três fatores levaram os gregos à
compreensão da individuação como causa do mal, ao conhecimento da unidade de tudo
o que existe e da arte como suspensão da individuação e, assim, a sua compreensão como
símbolo de uma unidade restabelecida (GT/NT § 10).
Partindo desses pressupostos, enquanto fatores determinantes para a compreensão
da significação do trágico para os gregos, o autor empreen­de a análise da nova comédia
ática, da qual Eurípedes, justamente d
­ evido às inovações que empreendeu, é posto como
um dos representantes. O traço primeiro aludido por Nietzsche nessa consideração é o
ponto de vista segundo o qual, pela primeira vez na história da representação trági­ca,
o povo, o homem comum é levado à cena, sendo, por conseguinte, abandonada toda a
“idealidade” que marcara sempre as figuras represen­ta­das (ibid. § 10). Com Eurípedes
e a nova tragédia ática, a música, decisi­vamente atuante para o nascimento da tragé-
dia, é posta em plano secundário, do mesmo modo que o coro. Isso em favor de uma
nova concepção, realista, vinculada a uma pretensão de significação histórica da tragé-
dia, que deve se tornar uma representação do mundo aparente (NF/FP: KSA 7, 7 [124],
fins de 1870 – abril de 1871). Essa perspectiva exige que o poeta se volte para a
­inteligibilidade do circundante e, portan­to, seja remetido a conceber a separação entre
música do coro e linguagem (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 542), como forma de conferir
maior realismo à tragédia.
Como resposta à questão do porquê da mudança de ­direcionamento da represen-
tação trágica em Eurípedes, Nietzsche afirma a necessidade da consideração de dois
protagonistas e de seus traços específicos de atuação para a compreensão desse aconte-
cimento. Em primeiro lugar, do próprio Eurípedes, posto então não como poeta t­ rágico,

49
roberto barros

mas como pensador, que tornou necessárias consciência e crítica como aspectos pri-
mordiais da criação artística.14 Em segundo lugar, Sócrates que, com a exigência de
inteligibilidade da arte e de sua vinculação com a beleza e a virtude, exposta nas m
­ áximas
“tudo deve ser inteligível para ser belo” e “só o sábio é virtuoso”, funda aquilo que
Nietzsche chama de o socratismo estético (aesthetischer sokratismus), pelo qual E­ urípedes
se viu atraído.

Também Eurípedes foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava por
intermédio dele não era Dionísio, mas tampouco Apolo, porém um demônio de nas-
cimento recente chamado Sócrates. Esta é a nova oposição: O dionisíaco e o socrático,
e, devido a ela, a obra de arte da tragédia grega morreu (GT/NT § 12).

Os efeitos da assimilação dos princípios socráticos por Eurípedes são constatáveis


por Nietzsche primeiramente na estrutura de sua representação trágica. Nela foi intro-
duzido, por esse trágico, no início da representação, um prólogo, no qual uma ­personagem
individual se apresen­ta contando quem ela é, o que precedeu a ação, o que aconteceu
até então e, ainda, o que acontecerá posteriormente (GT/NT § 12). Essa inovação põe
fim ao efeito das grandes cenas retórico-líricas, que uniriam a paixão e a dialética do
protagonista na arte dionisíaco-apolínea. Ela remete de­cisivamente a tragédia a um
novo campo de pressuposições e direcionamentos, que, em última análise, marcam o
afastamento decisivo com relação ao sentido visado pelos dois impulsos originários.

Separar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e o­ nipotente e voltar a cons­


truí-la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma consideração do mundo
não dionisíacas – essa se revela em clara luz como sendo a tendência de Eurípedes
(GT/NT § 12).

Essa atitude marca, segundo Nietzsche, o momento de ­afastamento do elemento


dionisíaco da tragédia, assim como do apolíneo que, sem a necessidade de superar as
verdades desveladas por aquele, não e­ ncontraria mais justificação para a sua pretensão
de redenção da existência pela aparência. Eurípedes teria afastado não apenas o dioni-
síaco musical da representação trágica, mas também o apolíneo, e colocando em sua
substi­tuição frios pensamentos paradoxais (kühle paradoxe Gedanken), que são pensa-
mentos altamente realistas e de modo algum imersos no éter da arte (GT/NT § 12).
Não conseguindo fundar o drama unicamente no apolíneo e, ainda, com sua tendência
antidionisíaca, ele perde-se em um caminho naturalista e inartístico (naturalistische und
unkunstlerische), que caracterizaria o socratismo estético (ibid. § 12), ou seja, a ­concepção
14
Disso decorre a afirmação de Nietzsche segundo a qual: “Eurípedes é o primeiro dramático a
seguir uma estética consciente. Intencionalmente ele busca o mais compreensível: seus heróis são
reais como eles falam”. NS/EP. ST/ST, KSA 1, p. 539.

50
a perspectiva trágica

de que a arte deve ser baseada na lucidez consciente, de forma a minimizar seus efeitos
aparentes.
Essa tomada de posição possibilita a Nietzsche considerar a morte da tragédia
como decorrente da aproximação de Eurípedes com a perspectiva socrática (ibid. § 12).
Desta decorre a imposição do imperativo da inteligibilidade racional15 a toda a tradição
trágica, posto então como único princípio de justificação e legitimação.

A dialética, pelo contrário, a partir do fundamento de sua essência, é otimista: ela


acredita em causa e consequência e, com isso, em uma necessária relação entre culpa e
delito, virtude e felicidade: seus ­exemplos de aritmética necessitam nascer sem resto:
ela nega tudo aquilo que não consegue decompor conceitualmente. A dialética ­alcança
­continuamente o seu objetivo, qualquer conclusão é para ela uma festa de júbilo, clarida­
de e consciência, o ar, no qual apenas ela pode respirar. Quando esse elemento adentra
na tragédia, provém o dualismo entre noite e dia, música e matemática (NS/EP: ST/
ST, KSA 1, p. 547).

No contexto das diretrizes argumentativas de O nascimento da tragé­dia, a caracte-


rização do socratismo adquire sentido enquanto delineamen­to da tendência antidio­
nisíaca e, portanto, antitrágica por excelência. Nesse sentido, e com relação à oposição
entre o socratismo e a arte, o conflito entre ambas as perspectivas se inicia com o
aparecimento na Grécia da perspectiva socrática, mas se estende até a atualidade do
autor. Esse ponto de vista possibilita ao filósofo considerar a sua concepção do trágico
segundo esse mesmo conflito, identificado por ele no cerne da cultura grega. Essa
contraposição pode ser basicamente compreendida a partir da diferença aludida por
Nietzsche entre os produtos dessas duas tendências. Segundo a consideração delas,
tendo como pressuposto rele­vante a significação existencial das duas formas de ilusão,
a artística e a científica, Nietzsche tenta tornar claro o conflito entre a experiência in-
gênua do artista e a consideração racional da arte fundada na inteligibi­lidade. Todavia,
se Nietzsche fala em oposição, ele também indica a proxi­midade entre as perspectivas
socrática e trágica. O socratismo aproxi­ma-se do artístico por se fundar na ilusão da
verdade (Steinmann, 2000, p. 47), anunciada por Sócrates e divinizada por Platão. Por
jamais ter demonstrado a existência da verdade, a tendência socrática é considerada por
ele também como produtora de aparência, pois, segundo os postulados da própria ra-
cionalidade, a verdade não ratificada torna-se aparência, o que desvela os ­pressupostos
artísticos da posição socrática: o fato de ela ser apenas uma “representação ilusória”
(Wahnvorstellung) (GT/NT § 15), que jamais alcançou seus objetivos anunciados, mas
mesmo assim logrou negar o valor da arte.
15
Ou como Nietzsche se refere à nova comédia ática: “schachspielartige Schauspiel”. NF/FP. KSA 7, 7
[124], fins de 1870 – abril de 1871.

51
roberto barros

Nietzsche busca apoio para esse ponto de vista em uma c­ onsideração psicológica,
de grande significação, tanto para esse momento, quanto para toda sua filosofia poste-
rior. Com efeito, para ele, a tendência socrática não está totalmente dissociada do
mesmo impulso que leva os gregos a criar os seus mundos artísticos. Antes, ela é
­primeiramente um produto dessa mesma necessidade da aparência, porém d ­ eterminada
pelo imperativo da racionalização de suas concepções. Em outras palavras, a n ­ ecessidade
socrática de sabedoria e do conhecimento é, sob o ponto de vista de sua justificação,
também instinto, mas desprezada enquanto tal e dissimulada como desejo de conhecer.
Por essa via, Sócrates negou a sabedoria da arte considerando-a como inconsciente,
repousando um dos seus princípios fundamentais na afirmação: “Não se sabe o que não
se pode dizer para se levar outros ao convencimento” (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 541).
A partir de Sócrates, a sabedoria torna-se apenas o saber ­consciente, assim justi-
ficado segundo a sua possibilidade de aceitação universal inequívoca, capacidade que a
arte, em sua origem e significado, jamais tenciona possuir. Isso consiste em algo que,
para Sócrates, ela jamais ­alcança, por ser meramente uma figuração da figuração (Abbild
des Abbildes) (NF/FP: KSA 7, 7 [124], fins de 1870 – abril de 1871) e, por isso, deve
ser submetida ao conhecimento. Todavia, a sabedoria de Sócrates demonstra, para
Nietzsche, possuir um traço instintivo, constatável em um laivo de inconsciência, ma-
nifesto em seu “demônio”, que nada mais é que o afirma­tivo e criativo que age em toda
natureza produtiva, com a única distinção que: “em Sócrates, o instinto teria se t­ ornado
crítico e a consciência pro­dutora” (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 542).
Outro aspecto aludido por Nietzsche, e que marca ­exemplarmente esse aspecto
fisiopsicológico da perspectiva socrática, seria o fato de o pensador grego, no final de
sua vida e às portas da morte, narrar a seus amigos um sonho imagéico (Traumbild),
que lhe ocorrera ­frequentemen­te e que lhe dizia que ele, enquanto homem racional,
“fazia música”, o que o teria levado a se convencer que a sua filosofia seria a música mais
elevada (ibid., p. 544). Desse modo, Nietzsche pode dizer que o socratismo estético é
uma expressão racionalizada e espiritualizada do impulso artís­tico grego e que incor-
pora oportunamente alguns traços apolíneos, tais como a as­piração pela clareza e pela
moderação. Devido a essa união ­concomitante de caracteres, ele aparenta ser, para os
gregos, uma pura e nítida luz, de modo a conseguir colocar-se como precursor e arauto
de uma sabedoria que deve nascer na Grécia. Esse traço da sabedoria socrática reforça
a interpretação do autor de que ela é apenas outra manifestação da ­vonta­de helênica,
porém exteriorizada inartisticamente. Sócrates teria renegado o instintivo inerente da
arte grega em favor de um pressuposto de inteligibilidade criado por ele mesmo, o que
teria lhe permitido ­descaracterizar o mito grego como sabedoria, devido à sua falta de
coerência lógica. Tais princípios, entretanto, não estariam dissociados da tendência

52
a perspectiva trágica

apolínea de clareza no diálogo, que seria mesmo o princípio originário da d ­ ialética,


instrumento socrático por excelência (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 541). Assim interpre-
tada, também a dialética tem origem no drama musical, na troca de falas entre o herói
e o mestre do coro, sendo que, no ­entanto, a disputa entre ambos apenas se iniciou com
a igualação da importância de ambos. A partir de então, a dialética se engrandece, de
acordo com um impulso helênico basilar, a luta competitiva (Wettkampf ), que no diá-
logo torna-se a disputa com palavra e princípio (Grund), durante a qual o apaixonado
diálogo da tragédia grega fica sempre distante. A partir do desagrado dos espectadores,
que denominam essa tendência de “má Éris” (böse Eris), ela é banida como inimiga das
artes e odiada pelas musas. A “boa Éris” (gute Eris), no entanto, permanece e, então, pas-
sa a dominar toda a ação musical e a inserir no meio trágico os três poetas concorrentes
diante dos juízes e do povo.
Contudo, a dissensão da palavra do meio judicial já se encontra na tragédia e
disso decorre, pela primeira vez, um dualismo na essência e no efeito do drama musical.
A partir de então, há partes da tragédia nas quais o sofredor retorna e soa mais alto o
jogo de armas da dialética. Devido a isso, não é mais permitido ao herói do drama su­
cumbir (unterliegen), como na acepção trágica dos antigos mestres, sendo-lhe mesmo
necessário tornar-se herói da palavra (NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 545/6).
Nietzsche interpreta esses traços em Sócrates, com a diferença de que, se no an-
tigo drama domina um dualismo entre dialética e música, no pensador ele interpreta
unicamente a supremacia da palavra, efeito similar ao que é por ele apontado na t­ ragédia
euripidiana. Esse aspecto lhe serve de indicação para constatar que a oposição entre a
arte trágica grega e o racionalismo socrático tem como centro de disputa a refutação
do dionisíaco (GT/ NT. § 9, KSA 1). Por conseguinte, se, para Nietzsche, o dionisíaco
significa instinto, proximidade com a natureza, possessão e inconsciência, cujo trans-
porte é precisamente a música, Sócrates se põe para eles como o homem de c­ onsciência
permanente, sempre clara e atuante, que aponta como erro de seus contemporâneos
justamente o fato de eles não saberem o que fazem e que, portanto, agem por instinto
(NS/EP: ST/ST, KSA 1, p. 545/6). Por outro lado, na constituição do drama musical,
a música é a expressão do dionisíaco, da eterna manifestação da multidão de possessos
e enfeitiçados seguidores desse deus, ou seja, do indivíduo que erra, anela e sofre, e que
justamente é retratado com ­preci­são e nitidez épicas pelo apolíneo. Desse modo, para
o autor de O ­nascimento da tragédia, o socratismo ainda labora segundo pressupostos
artísti­cos de atuação, entretanto (e eis o que consiste em um dos pontos centrais da
diatribe de Nietzsche à estética socrática), ele não se considera como tal, antes faz o
contrário, passa a considerar a arte e mesmo a existência segundo padrões lógicos e em
aberta diferença com o mundo da e­ xperiência, de onde decorre o desejo de Sócrates de

53
roberto barros

corrigir (GT/NT § 13) a existência, muito embora, com essa proposta, ele ajuíze a sua
filosofia como música.
Segundo o direcionamento possibilitado pela interpretação fisiopsi­cológica da
estética socrática, tanto a arte quanto a racionalidade científica são encaradas por Nie­
tzsche como impulsos. A distinção entre ­ambas é que a primeira, e, em especial, a
música é tida como linguagem i­mediata do Ser original (Gubernikoff, 1990, p. 101),
portanto, como manifestação dos estímulos mais profundos da natureza e, assim, ex-
pressão da vontade em sua onipotência (Allmacht) (GT/NT § 16). A cientificidade, por
sua vez, é tida como uma forma mitigada de expressão da vontade, mas que, antes de
tudo, ao estabelecer as dicotomias entre falso e verdadeiro, real e aparente, consciente
e inconsciente, traz consigo o problema da negação da manifestação mundana da von-
tade como aparência.16 Nessa constata­ção se baseia o cerne da crítica de Nietzsche à
metafísica e à ciência nos primeiros escritos. Ela parte do princípio de que o efeito mais
evidente da supremacia desse ponto de vista é a desvalorização da existência concebida
esteticamente. Essa é posta em segundo plano pela perspectiva científica, em favor dos
pressupostos logicamente concebidos. As repercussões artístico-culturais desse desdo-
bramento são enormes. Diante da logicização e racionalização do Ser, operada por
Sócrates e por Platão, resta à arte o terreno da mera impossibilidade de justificação
­unicamente estética. A partir de então, ela passa a ser subordinada à razão, e isso, no
platonismo, significa à moral.
O cerne para o qual se direciona a argumentação do autor consiste, portanto, na
compreensão de que, nesses novos domínios, a aparência – tudo aquilo que não se
adéqua aos princípios lógicos de não contradição e de estabilidade do Ser – é relegada
a um segundo plano de validade, cujo exemplo significativo para Nietzsche é Platão,
para quem os dados captados pela percepção sensorial seriam já cópias de semelhança
apenas aparente com modelos eternos, tal como podemos ler em um fragmento do
período: “A ideia platônica é a coisa com a negação do impulso (ou a aparência da
negação do impulso). A harmonia demonstra o quanto é correta a proposição da ne-
gatividade” (NS/FP: KSA 7, 7 [28], fins de 1870 – abril de 1871).

16
A importância da observação psicológica na filosofia de Nietzsche, d­ ecisivamente presente no se-
gundo livro do primeiro volume de Humano, demasiado humano, é significativa e digna de nota.
Todavia, é importante perceber o início da formação da teoria pulsional nietzschiana já em NT,
então, especificamente a partir da indi­cação de uma patologia do socratismo, que posteriormente
vai ser ampliada à consideração do homem moderno de forma geral. Esse aspecto, com se verá
poste­riormente, possui significativa importância para a mudança de perspectiva estético-teórica de
Nietzsche na assim chamada segunda fase de sua obra.

54
a perspectiva trágica

A aproximação entre ciência e arte não atenua para Nietzsche a animosidade de


Sócrates e Platão para com esta, ela continua a ser compreendida por eles como pro-
dutora de ilusão, pois a superioridade dos postulados racionais, em detrimento dos
artísticos, no que se refere à verdade do existente, já está posta e estabelecida. Assim,
Nietzsche ­afirma sucessivas vezes, no decorrer de O nascimento da tragédia, que o obje-
tivo da arte trágica grega apolíneo-dionisíaca seria convencer acerca do ­eterno prazer
da existência, pois: “As criações da arte são os mais altos alvos do desejo da vontade”
(NF/FP: KSA 7, 7 [27], fins de 1870 – abril de 1871). Justamente nesse ponto parece
consistir o cerne da perspectiva científica que, em sua versão primeira e original, com
Sócrates, partia de uma desvalorização da existência factual e tencionava não apenas
investigar os abismos mais profundos da existência, mas também corrigi-la (GT/NT
§ 15). A partir disso, o autor pode afirmar a existência de uma luta entre a consideração
trágica do mundo e a consideração teórica (GT/NT § 17), a qual ele responsabiliza
pela morte da tragédia grega.
Porém, para Nietzsche, o diagnóstico da modernidade, feito a p ­ artir da constata-
ção da retração da capacidade estética humana, acaba por revelar os verdadeiros efeitos
da perspectiva socrática, tanto os estéticos quanto os científicos. Para o filósofo, já é
evidente em Sócrates a incapacidade da tendência científica em alcançar os seus fins
visados. Por esse motivo, mesmo no socratismo, eles precisam ser justificados a partir
de pressupostos estéticos. Em seus traços mais característicos, Sócrates utili­za uma
forma artística de atuar que, mesmo no seu desejo de distanciamen­to da representação
popular, retorna a ela para se fazer compreensível e colocar-se como fundamental (NF/
FP KSA 7, 7 [125], fins de 1870 – abril de 1871). A característica unicamente apolínea
da noção de conhecimento do socratismo revela que a verdadeira oposição entre ele e
a arte repousa precisamente na negação da sabedoria dionisíaca, justamente na contra-
posição à aceitação da incondicional realidade da existência, mesmo em seu caráter mais
elementar e brutal. O socratismo, ao negar essa manifestação do mundo, o faz uni­
camente fundado em um artifício valorativo-moral, que mascara o seu verdadeiro fun-
damento, a saber, a tentativa de uma manifestação outra da vontade de alcançar uma
posição de domínio, mediante a negação dos princípios anteriores e o estabelecimen­to
de uma nova escala valorativa, o mesmo que Nietzsche identifica também na concepção
trágica de Eurípedes:

Também aqui percebemos a vitória da aparência sobre o universal e o prazer no prepa­


rado singular, quase anatômico, respiramos imediatamente o ar de um mundo teórico,
que para o conhecimento científico é válido como mais elevado que a reverberação
artística de uma regra do mundo (GT/NT § 17).

55
roberto barros

A tragédia morre do conflito entre saber teórico e visão artística, quando é estabe­
lecida a inserção do pressuposto de verdade na considera­ção da arte. Assim, é depre-
ciando o próprio espírito formador dos mitos, a música, que passa a ser considerada
como uma mera pintura sonora (Tonmalerei) voltada para a representação com a­ spiração
à verdade (GT/NT § 17).
A consideração do socratismo e da cientificidade por meio de um ponto de vista
estético termina por remeter a sua análise a um problema moral, evidenciado pela
análise do desejo socrático de verdade (EH/EH GT/NT § 2), que revela, finalmente,
um terceiro aspecto: a análise do conflito travado entre arte e racionalidade filosófica
sob o ponto de vista fisiológico ou da vida, pois se trata de um dos aspectos que apare-
ce de maneira significativa nas obras que se circunscrevem ao ciclo temático de Assim
falava ­Zaratustra e da concepção trágica de filosofia.17 A esse respeito, além da argu-
mentação de ­Nietzsche desenvolvida em O nascimento da tragédia, pode-se encontrar
diversos retornos a esse tema nos escritos posteriores referentes a esse trabalho inicial.
Em 1886, a propósito de solucionar o problema da pouca receptibilidade de sua
filosofia, Nietzsche escreve novos prefácios para os seus livros, desde O nascimento da
tragédia até A gaia ciência. Essa ação é repleta de significados e de grande importância
para o direcionamento que o filósofo desejava dar a partir de então ao seu pensamento,
que naquele momento tinha Assim falava Zaratustra como obra decisiva (Burnett, 2000,
p. 88). O primeiro desses prefácios foi acrescido à sua primeira obra e recebeu o título
significativo de: “Tentativa de autocrítica”. Nele o autor busca não apenas fazer a crí-
tica da obra inicial, como também reafirma os pontos decisivos da mesma, seus traços
inovadores e ainda a sua importância para a filosofia posterior.
Dentre os pontos que lhe parecem dignos de ser ressaltados com relação ao seu
primeiro livro, ele indica imediatamente a significação de sua reflexão passada a ­respeito
do conteúdo da arte trágica para os gregos, isso sob o ponto de vista da interrogação
acerca de um suposto p ­ essimismo daqueles (GT/NT “Prefácio” § 1). Antes de argu-
mentar a favor ou ­contra essa possibilidade, Nietzsche põe em questão o próprio sig-
nificado d­ esse sentimento entre os helenos. Seu intento, nesse momento, é claro, e se
relaciona diretamente com uma das diretrizes primeiras desenvolvida na obra, para a
qual esse escrito posterior é posto como esclarecimento, a saber: o questionamento do
verdadeiro significado do conflito entre arte trágica e razão teórica.
O ponto central, considerado inovador e defendido pelo autor como presente na
obra, é justamente a descoberta da positividade do monstruoso fenômeno do dionisía-

17
Como se verá na terceira parte desta dissertação, a perspectiva de empreender uma filosofia ­segundo
pressupostos dionisíacos e trágicos é essencial para que o ensinamento do além-do-homem possa
ser satisfatoriamente compreendido em Assim falava Zaratustra em sua significação estética.

56
a perspectiva trágica

co (ungeheure Phänomem des Dionysischen), em sua oposição ao socratismo. Isso, s­ egundo


ele, esclarece o significado oculto da moral socrática, da dialética, da sobriedade e da
serenidade do homem teórico (ibid. § 1). A reafirmação desses pontos, quase uma
década e meia depois da publicação de O nascimento da tragédia, assim como e após o
rompimento com suas influências iniciais, ao que seguiu o remetimento da reflexão
filosófica em Nietzsche a outros âmbitos que não os da arte e da estética, apresenta-se,
então, cheia de significados, dada a indicação dos efetivos fins visados por sua obra
inicial e que teriam ficado obscurecidos pelos comprometimentos no momento da
publicação.
A primeira indicação feita a esse respeito é a de que, muito embora se trate de um
livro problemático, ele originou-se de uma questão de primeira ordem, a qual, então, é
indicada como profundamente pessoal (GT/NT “Prefácio” § 1). Segundo essa nova
consideração, a temática central do pensamento que o livro encerra é a da relação entre
os gregos e a música, em especial no que diz respeito à relação entre os mesmos e a
tragédia (ibid. § 1). Esse questionamento remete imediatamente a outros, referentes ao
valor atribuído à existência pelos helenos e ao significado de seu suposto pessimismo,
do mito trágico e do fenômeno dionisíaco (ibid. § 12). A intenção de Nietzsche é
afirmar novamente que, apesar dos muitos anos que separam livro e prefácio, o trata-
mento dessa questão mantém inalterados seus traços fundamentais. Dentre esses, se
pode, com grande segurança, cogitar que o elogio da antiga arte grega ainda visa m ­ ostrar
que, tal como fora afirmado em 1872, o verdadeiro sintoma de cansaço, doença e cre-
púsculo dos gregos foi precisamente o otimismo teórico da filosofia grega, nascida sob
a influência de Sócrates. Nesse sentido, o argumento primeiro do autor é de que fora a
racionalidade, com sua aspiração por conhecer os aspectos mais fundamentais do Ser
e ainda por corrigi-lo, o verdadeiro sintoma de declínio dos gregos, pois, pela primeira
vez, eles passaram a considerar a existência manifesta como problemática. Entretanto,
essa significativa referência posterior à sua obra original pressupõe todo o trabalho
especulativo que separa os dois textos, o que possibilita compreender que a crítica à
ciência se remete mais precisamente aos princípios metafísico-morais de justificação
da ciência e não efetivamente à postura científica em sua totalidade, posicionamento
que Nietzsche confessamente adota desde Humano, demasiado humano, adequando-a a
uma justificação não metafísica do saber (Barrenechea, 2011, p. 38).
Desse modo, ele afirma que um novo e ameaçador problema está posto à sua
frente, pois então, pela primeira vez, a ciência é associada à moral e, por esse motivo,
passa a ser tida como problemática. Da constatação da imanência valorativa da ciência,
Nietzsche chegava à compreensão de que a questão a seu respeito não poderia ser re-
solvida no terreno da própria ciência (GT/NT “Prefácio” § 2). Para o filósofo, a p
­ ercepção

57
roberto barros

desse problema não resolvido confere significado à consideração do trágico grego em


seu tempo, pois essa contraposição ­permanece a mesma, sendo que o fator que a faz
verdadeiramente significativa, a crença na infalibilidade da ciência, é justamente o fator
novo a ser, então, considerado.
Opor arte e ciência significa explicitar um problema obliterado e, portanto, dirigir-
-se diretamente a enormes desdobramentos presentes no cerne da cultura ocidental.
Sua intenção se delineia sob esse ponto de vista como tentativa de indicar as ­contradições
de uma cultura que festeja de modo altissonante a supremacia dos valores racionais e
científicos sobre todos os outros, compreendendo estes como de segunda ordem, sem,
no entanto, demonstrar a pertinência de tal posição, em evidente dificuldade na mo-
dernidade devido ao não alcance do conhecimento definitivo proposto por Platão.
Nesse sentido, Nietzsche indica os a­ spectos que o fizeram voltar a se referir ao p
­ roblema
da arte trágica grega e a sua consideração anterior acerca do trágico. Longe da ­metafísica
do artista, o ocaso da tragédia, considerada como manifestação vital positiva (GT/NT
“Prefácio” § 16), pode tornar claro o momento de decadência da cultura europeia, a
partir da compreensão das causas e significados do conflito travado entre os dois a­ spectos,
sem correlativos na história da cultura contemporânea. Os dois fatores são: primeira-
mente, uma imedia­ta forma de manifestação artística, a qual é fundamentalmente a
­expressão dos impulsos vitais manifestos esteticamente, e, em segundo lugar, a crítica
dessa perspectiva, que marca o nascimento de uma forma também inaudita de conside­
ração do mundo, a perspectiva teórica (GT/NT “Prefácio” § 15).
O que se evidencia como problemático a Nietzsche são os efeitos subsequentes da
hegemonia da razão teórica e dos valores afirmados por ela. A mobilização de esforços
em favor de indicar e elucidar esse entrechoque decorre da desconfiança das ­consequências
dessa vitória e dos seus reflexos na ciência. Essa é antevista nesse momento, segundo o
­ponto de vista de seus objetivos afirmados pela tradição, a partir dos fundamentos de
sua justificação. Estes direcionaram durante séculos a filosofia, a fonte de justificação
moral da ciência, que acabaram por referendar desprezo e desejo de afastamento con-
denatório do mundo e da vida, entendidos como fontes de erros e de imperfeições.
Essa referência posterior ao problema do ocaso do trágico grego visa, em verdade,
reconsiderar os fatores e os efeitos dessa depreciação no domí­nio da cultura. Conside-
rando-se como o primeiro a antever esse conflito, Nietzsche reinsere na análise o pres-
suposto da vida pensada como força ativa e desejosa de perpetuação, qualidade que ele
interpreta nos gregos míticos e indica como declinante no homem teórico. Por esse
motivo, é-lhe possível afastar-se toda consideração unicamente teórica acerca do confli­
to entre arte e conhecimento, a partir do pressuposto de que o problema da ciência não
pode ser resolvido no campo de significa­ção próprio da ciência, ou seja, do saber que

58
a perspectiva trágica

se sobrepõe ao erro, mas, antes, que aquela deve ser considerada mediante a ótica da arte,
tomada como sinônimo de manifestação de vida afirmativa (GT/NT “Prefácio” § 2).
Desse modo, a compreensão das contradições dos dogmas metafísicos, reveladas
pela própria ciência positiva, é fator de restauro da validade da perspectiva artística. Na
fase final da filosofia de Nietzsche, o fator positivo desta não repousa mais no seu ca-
ráter trágico, mas justamente na representação sem restrições do traço múltiplo, inde-
terminável e móvel da existência, de onde decorre que o movimento de reconsideração
positiva da perspectiva trágica traz, como aspecto subjacente, a necessidade de uma
compreensão vital e extramoral, ou ainda, não científica, do dionisíaco. Justamente para
o que, segundo o próprio autor, o livro daria uma resposta (GT/NT “Prefácio” § 14).
Isso significa conside­rar essa questão em um nível ainda mais profundo que a mera
­clarificação desse fenômeno estético e da singularidade de sua expressão. A partir ­dessa
mudança de perspectiva, a pergunta fundamental, então posta no prefácio, é a da r­ elação
dos antigos helenos com a dor, com o seu grau de sensibilidade. Seu questionamento
visa analisar se o anseio cada vez mais forte por beleza, festas, divertimentos e novos
cultos entre os gregos brotou da carência, da privação, da melancolia e da dor (GT/NT
§ 4). A questão central é a possibilidade de sopesar o anseio pelo feio, a vontade i­ nclinada
para o pessimismo, para o trágico, terrível, enigmático e aniquilador – de onde se ori-
ginou a tragédia – como sintoma de força, de prazer, de ­saúde transbordante, de ­grande
plenitude (GT/NT § 4).
A proposição de Nietzsche a esse respeito é a de que o trágico, assim considerado,
possui entre os gregos um significado fisiológico, imediatamente relacionado ao dioni-
síaco, este tomado enquanto símbolo fecundo, como sinal da riqueza e abundância de
força juvenil dos helenos. Contrariamente ao otimismo da lógica e ao anseio por racio-
nalização, sinônimos de serenidade para o homem científico, Nietzsche os interpreta
como sintoma de força em declínio, pois atestaria justamente o decréscimo de forças
necessárias à aceitação incondicional da vida, aspecto presente na expressão artística.

Como? Se os gregos tivessem, precisamente na riqueza de sua juventude, a vontade


para o trágico e fossem pessimistas? Se fora ­justamente a loucura, para utilizar uma
palavra de Platão, que tivesse trazido as maiores bênçãos sobre a Hélade? E se, por
outro lado e em contrário, os gregos, precisamente nos tempos de sua dissolução e
fraqueza, tivessem sido sempre mais otimistas, superficiais, teatrais, bem como mais
ansiosos pela lógica e pela logicização, portanto, ao mesmo tempo, “mais serenos” e
“mais científicos”? (GT/NT “Tentativa de autocrítica” § 4).

Essa interpretação explicita a importância da consideração do trágico feita em O


nascimento da tragédia, ao mesmo tempo em que o ­motivo de sua posterior consideração
positiva, malgrado os comprometimentos da obra. O conflito entre o trágico e o teóri-

59
roberto barros

co, ocorrido na Grécia, ainda possui significação devido aos seus efeitos ainda serem
decisivamente sentidos na contemporaneidade e nas ideias modernas, o que lança sobre
estas o mesmo grau de suspeita indicado na perspectiva inicial. Por conseguinte, a ­tácita
constatação da influência dos mesmos pressupostos teóricos utilizados pela racionali-
dade grega para descaracterizar a arte encontrar-se-ia ainda no cerne dos pensamentos
dominantes na modernidade, o que deixa à mostra que o conflito ocorrido entre os
gregos não se limitou ao campo da arte ou da estética, mas que, pelos seus próprios
efeitos, alcançou o campo das significações morais. Isso implica, para Nietzsche, que a
própria moral deve ser posta em questão, pois, tal como a ciência – com a qual ela
nesse momento é relacionada –, ela deve ser interrogada não mais segundo os seus
próprios pressupostos, mas s­ egundo o princípio da vida abundante, tornado fundante
e imprescindível para qualquer consideração. O que Nietzsche formula na seguinte
questão: “O que significa, vista sob a ótica da vida, a moral?” (GT/NT “Tentativa de
autocrítica” § 4).
Contrariamente ao que Nietzsche interpreta ser a concepção dominante na cul-
tura ocidental, a arte – e não a moral ou a ciência – passa a ser tida como a verdadeira
atividade metafísica do homem, ao mesmo tempo em que, restituído o seu valor, o
mundo passa a se justificar novamente como fenômeno estético e que sabe redimir-se
apenas na ­aparência (GT/NT § 5). O pressuposto para uma nova menção a esse posi-
cionamento em 1886, que não pode ser totalmente esclarecido aqui, é precisamente a
reafirmação dos aspectos perspectivístico e moral da arte, que o autor identifica no
dionisíaco e no pessimismo para além do bem e do mal do homem grego. Isso resulta
em uma filosofia que reverte valorações ancestrais e que assim pode rebaixar a própria
moral e a metafísica ao mundo da aparência, dessa vez, porém, não como ilusão ou erro,
mas como interpretação depauperante, como resignação ante a vida, e isso por meio da
própria arte (ibid. § 5).

4. A nova consideração do trágico e do dionisíaco

A argumentação desenvolvida em “Tentativa de autocrítica” indica os desdobramen­


tos das ideias expostas em O nascimento da tragédia na filosofia posterior de Nietzsche.
Nesse texto, todavia, há algo de novo. A crítica da moral e da cientificidade a ela rela-
cionada é estendida à morali­dade cristã, entendida como fonte de sustentação dos
dogmas metafísicos que determinam as formas de valoração da cultura ocidental. N ­ esse
momento, argumenta Giacoia, Nietzsche passa a compreender o c­ ristianismo como “a
mais extravagante figuração do tema moral que a humanidade já chegou a executar”
(Giacoia, 1997, p. 14). Uma análise mais pormeno­rizada desse aspecto será feita no
terceiro capítulo deste livro. Neste momento, no entanto, no que se refere à temática

60
a perspectiva trágica

que relaciona c­ ientificidade e moralidade cristã, é necessário indicar que o ponto nuclear
da crítica feita por Nietzsche à cientificidade e à moral incide sobre o desejo comum de
ambas por estabelecer padrões absolutos, o que desterrou toda a arte no terreno da men­
tira (GT/NT § 5). Por isso, a moralidade cristã é aproximada da racionalidade dogmá-
tica e com ela considerada como hostil à vida, pois, demonstrada a intencionalidade das
dicotomias com as quais ambas laboram, chega-se à conclusão de que toda a vida ­repousa
sobre aparência, ilusão, múltiplas óticas e, finalmente, sobre arte. Ela necessita do erro e
da manutenção do perspectivismo. O que leva Nietzsche a afirmar que todo posiciona-
mento que tenta negar essa constatação demonstra ser restritivo e perigoso para a vida.

O cristianismo foi, desde o início, essencial e, basicamente, asco e inape­tência de vida


na vida, que, sob a crença em uma vida “outra” ou ”melhor”, apenas se disfarçava, es-
condia, adornava. O ódio ao “mundo”, a ­maldição dos afetos, o medo à beleza e à
sensualidade, um além, inventado para melhor difamar o lado de cá. No fundo, uma
aspiração pelo nada, pelo fim, pelo repouso, com vistas ao “sabá dos sabás” – tudo isso
pareceu-me, assim como a vontade incondicionada do cristianismo, [vontade] de ­deixar
valer somente valores morais. Sempre como a mais perigosa e sinistra de todas as
formas possíveis de uma “vontade de declínio”. Ao menos um sinal do mais profundo
adoecimento, cansaço, esmoreci­mento, esgotamento, empobrecimento de vida – pois
ante a moral (espe­cialmente a cristã, que significa moral incondicional), a vida neces-
sita carecer de razão de maneira constante e inevitável, porque vida é algo essencial-
mente amoral (Unmoralisches) – não necessita enfim a vida, opressa sob o peso do
desprezo e do eterno não, ser sentida como indig­na de desejo, como desvalorizada em
si (GT/NT “Tentativa de autocrítica” § 5).

A oposição ao cristianismo, leia-se a toda moral com aspirações dogmáticas, é


feita sob uma perspectiva dionisíaca, entendida como ­força atuante e de incondicional
aceitação de tudo, a partir do que são ­indicados os motivos do afastamento da filosofia
da resignação de Schopenhauer, considerada como manifestação exemplar do ­horizonte
da modernidade, do ambiente alemão e suas ideias modernas e do romantismo, que
desconhece o significado do dionisíaco e que, por isso, constitui-se na menos grega de
todas as artes (GT/NT § 6).
Desse modo, Nietzsche considera, também nesse momento, o ­trágico como o
verdadeiro caráter da existência e a sua arte como sinônimo de prazer e de força supera­
bundante. Isso passa a caracterizar a negação e o esquecimento dela como manifestação
de um problema psicológico e fisiológico (GT/NT “Prefácio” § 4), pois, como princípio
motivador da vida, a cientificidade e a moral a ela inerente não ultrapassariam o nível
de uma manifestação vital incompleta, ou ainda, seriam formas de sobre­vivência e ob­
tenção de poder de manifestações vitais em declínio.

61
roberto barros

A crítica da moralidade cristã, sob o ponto de vista da compreensão trágica da


existência, sofre as mesmas críticas que a racionalidade ­teórica socrática. Ambas teriam
criado uma nova forma de consideração do mundo, que, entretanto, ao invés de afirmá-
-lo, tal como a arte grega, o deprecia­ria, por julgar e afirmar que haveria para esse
mundo e suas aparências uma possibilidade de refutação, ordenação, logicização e, por-
tanto, de correção. Afastando-se de uma consideração teórica acerca da validade do
conhecimento, Nietzsche interpreta tais aspectos sob o ponto de v­ ista psicológico, se-
gundo o qual ele considera não os pontos de disputa da teoria e do pensar, mas as
causas intencionais desses pontos (Fink, 1983, p. 15). Parece-lhe, então, claro que pas-
sados mais de dois mil anos, a inexequibilidade e o fracasso do projeto de correção da
existência anunciado pela metafísica, que, por sua vez, nada mais seria, sob a ótica
desta mesma intencionalidade, que um sintoma de decadência, de decréscimo de força
vital, a qual, sob sua necessidade de negar o mundo dos fenôme­nos, acobertaria terminan­
temente uma forma de expressão fisiológica. A perspectiva trágica, portanto, deve ser
compreendida como contrária aos valores morais vigentes, decorrentes da ­racionalidade
teórico-moral grega e, desse modo, em favor de outra concepção de mundo (Baranger,
1946, p. 37).

O mundo, em cada instante, alcançada redenção de Deus, o mundo como ­eternamente


cambiante, eterna nova visão do mais sofredor, mais antitético, mais rico em ­contradições,
que só na aparência sabe redimir-se: toda metafísica do artista pode denominar-se
como arbitrária, ocio­sa e fanática – o essencial nisso é que ela já anuncia o espírito que
um dia, qualquer que seja o jogo, se porá contra a interpretação e a significação moral
da existência. Aqui se anuncia, porventura pela primeira vez, um pessimismo “além do
bem e do mal” (GT/NT “Prefácio” § 5).

O que torna para Nietzsche a arte dionisíaco-trágica preferível à ilusão científica


é justamente que aquela se afirma de imediato como ex­pressão da existência em sua
verdade mais profunda, e que assim a afirma por meio da representação gerada pela
intencionalidade da natureza. Nesse contexto, surgem o dionisíaco como divindade na-
tural plena, como o deus artista completamente inconsiderado e imoral (unbedenklichen
und unmoralischen Künstler-Gott), e o trágico, como a expressão artística da visão des-
se Deus:

(...) que no construir como no destruir, no bom como no ruim, quer perceber-se de
seu idêntico prazer e autocracia, que criando mundos, aparta-se da necessidade da
abundância e superabundância do sofrimento das contradições nele acumuladas (GT/
NT “Prefácio” § 5).

62
a perspectiva trágica

A reconsideração positiva do valor do trágico como expressão do natural c­ onverge


e elucida-se nas perspectivas com as quais Nietzsche empenha esforços na segunda
metade da década de oitenta (Schacht, 1995, p. 133). Com efeito, no tópico final de
“Tentativa de autocrítica”, o autor nos mostra que a sua reconsideração do trágico já tem
como objetivo ser um pressuposto para a compreensão do seu Zaratustra, indicado então
como aquele que profere o consolo dionisíaco para a aceitação incondicional da e­ xistência
(GT/NT “Prefácio” § 7). Em Ecce homo, escrito posterior aos prefácios, mas que mantém
com eles íntima relação devido ao traço autobiográfico dado a eles pelo autor, o dioni-
síaco é relacionado com o ensinamento do Eterno retorno do mesmo, cuja compreensão
ele condiciona à percepção de mundo do deus grego (EH/EH GT/NT § 3), que é in-
dicada por Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos (1888) como o primeiro momento de sua
transvaloração de todos os valores (GD/CI “O que devo aos antigos” § 4).
O tema da morte da tragédia adquire, segundo esses ­desdobramentos, grande
significação no âmbito pleno da filosofia de Nietzsche, pois encerra aspectos que, mes-
mo após a autocrítica do autor e a indicação dos traços incompatíveis com a sua real
interpretação, ainda relaciona-se com direcionamentos nucleares da sua perspectiva
filosófica. A partir dessa relação, o núcleo do conflito indicado por Nietzsche se pola-
riza, então, em três princípios claramente delineados, que são: a vida, a arte e a ­moral
(Baranger, 1946, p. 40). No que diz respeito a esta última, o dado significativo indicado
é o da sua oposição em relação à vida, do mesmo modo que com relação à arte. Arte e
vida, pelo contrário, significam, para o autor, sintomas de impulsos em livre e imediata
atividade, e assim contrários a qualquer forma de resignação (Resignation) (GT/NT
“Prefácio” § 6). Desse modo, a perspectiva trágica, que constitui o primeiro ponto a ser
elucidado em O nascimento da tragédia, delineia-se primeiramente como opção do autor
por uma forma de expressão e valorização afirmativa do mundo e da vida, oposta a
todas as formas compreendidas como depreciadoras da existência, tal como o raciona-
lismo niilista do s­ ocratismo (EH/EH GT/NT § 3) e a moralidade judaico-cristã. A
opção pelo t­rágico se justifica como opção pela aceitação da vida em sua plenitude,
tanto dos seus belos como de seus mais terríveis aspectos; significa desejo de justificá-
-la e afirmá-la, desse modo, ela desvincula-se de todas as convenções morais vigentes.
A partir da colocação desses fatores, o autor pode, então, considerar-se como o ­primeiro
filósofo trágico (erster tragischer Philosoph) e, de acordo com o que isso significa, a mais
exterior oposição e antípoda da filosofia pessimista relacionada com a moral e com o
idealismo; oposição que, pela transposição (Umsetzung) do dionisíaco em Pathos filo­
sófico (philosophisches Pathos), originou a filosofia trágica ibid. § 3):

O conhecimento, o dizer sim à realidade, constituem para o forte a mesma ­necessidade


que para o fraco; sob a inspiração da fraqueza, são a covardia e a fuga ante a realidade

63
roberto barros

– o “ideal”. Não se é livre para o conhecer: os decadentes necessitam da mentira, ela é


para eles uma condição de conservação. Quem a palavra “dionisíaco” não apenas com-
preende, porém se compreende a si mesmo na palavra “dionisíaco”, não carece de re-
futar nem Platão, nem o cristianismo, nem Schopenhauer: Ele cheira a putrefação
(ibid. § 2).

Em se tratando tanto de O nascimento da tragédia como dos escritos posteriores


que fazem referência a esse livro inicial, a contraposição primeira, que visa esclarecer a
morte da tragédia entre os gregos, perma­nece a mesma. Ela ainda é mostrada como
sendo a oposição entre as visões teórica e trágica do mundo (Delleuze, 1979, p. 22) que,
para Nietzsche, tem o seu cerne na negação moral do significado e do valor da existên-
cia, isso devido a metafísica ter tentado por longo tempo negar o impetuoso e inces-
sante fluxo conflitante do devir do mundo fenomênico como algo digno de considera-
ção. A racionalidade socrática continua a consistir no símbolo dessa mudança, a qual
Nietzsche se contrapõe e busca refutar em dois campos: a) primeiramente, no que se
refere à justificação por meio da consideração eminentemente lógica dos princípios.
Nietzsche os considera não como efetivos, mas como meramente aparentes, pois ver-
dade e Ser têm a pressuposição de sua existência muito mais ligada às determinações
de nossas estruturas linguísticas que a uma demonstração de sua existência efetiva; b)
o segundo âmbito de crítica se dá no d ­ omínio da arte, pois a percepção do fator esté-
tico da persuasão teórica revela precisamente a sua limitação artística e, por c­ onseguinte,
vital. Com isso, a racionalidade socrática pode ser resumida à mera produção de a­ parência
sem conteúdo vital pleno.
Finalmente, mesmo que se considere as influências e anseios de Nietzsche em O
nascimento da tragédia, o conflito entre racionalidade lógico-conceitual e experiência
artística lhe fornece um conjunto de instrumentos conceituais e interpretativos, que
sempre se farão presentes com maior ou menor ênfase na sua filosofia. Nesse sentido,
o ponto central e frequente nessas considerações é, significativamente, a relação entre
saber e vida, sob o ponto indisputável para o autor de que esta deve ser n­ ecessariamente
afirmada, mesmo em seus aspectos mais cruéis e duros. Isso já teria ocorrido na arte
grega, efeito que o autor deseja reproduzir no domínio das formas contemporâneas de
consideração do mundo, incluída a própria ciência, daí decorre ele considerar a sua fi-
losofia como sendo a transposição do dionisíaco para o âmbito do filosofar.

O dizer sim à vida, ainda nos seus mais estranhos e duros problemas; a vontade de viver
comprazendo-se em sacrificar seus mais altos tipos de ser à inesgotabilidade do devir
– isso eu chamei de dionisíaco e e­ ntendia como a fonte de compreensão do poeta trá-
gico. Não para nos ­libertarmos do terror e da compaixão, não para nos purificarmos de

64
a perspectiva trágica

uma perigosa descarga – como Aristóteles erradamente pretendeu –, mas para, além do
terror e da compaixão, mas para ser mesmo o eterno prazer do devir, prazer que e­ ncerra
em si também o prazer em destruir...” Nesse s­ entido me considero o primeiro filósofo
trágico – isso significa o extremo contraste e antípoda de uma filosofia pessimista.
Antes de mim não há tal transposição do dionisíaco em Pathos filosófico: faltava a sa-
bedoria trágica (EH/EH GT/NT § 3),

65
Capítulo II
Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

A análise das duas últimas considerações extemporâneas, dos fragmentos póstumos e das
cartas do final da década de 70 possibilita que se compreendam os motivos do rompi-
mento de Nietzsche com respeito a Richard Wagner e à filosofia de Schopenhauer
(Barros, 2006, p. 78). Essas fontes possibilitam entender que esse afastamento se deve
fundamentalmente a dois fatores: primeiramente, à decepção do autor com a r­ essonância
cultural do festival inaugural em Bayreuth e, em relação direta com isso, à compreensão
de que uma reforma cultural concebida segundo parâmetros gregos não se realizaria.
Fosse por meio da filosofia de Schopenhauer, fosse pela da arte wagneriana. Mesmo que
nas extemporâneas Schopenhauer como educador e Richard Wagner em Bayreuth Nie­tzsche
se refira a Schopenhauer e a Wagner de forma quase ideal, esses são escritos de despe-
dida. Neles subjaz uma série de desassossegos com posicionamentos de ambos que não
se coadunavam com as suas concepções, mesmo que se considere a metafísica do artis-
ta. Como é sabido, o rompimento definitivo com ambos ocorre efetivamente em 1878,
com a publi­cação do primeiro volume de Humano, demasiadamente humano, escrito e
publicado pouco após a inauguração do teatro operístico de Wagner em Bayreuth.
As afirmações referentes ao assunto presentes em escritos poste­riores, tal como
nos prefácios de 1886 e no autobiográfico Ecce homo, mostram Nietzsche tentando
justificar o seu distanciamento como um livramento (Loslösung) daquilo que não per-
tencia a sua natureza. Associa­do aos aspectos constatáveis nos próprios textos ­anteriores
ao r­ompimento, um argumento obtém grande plausibilidade e é aqui pressuposto, a
saber: o de que Nietzsche assimilou a reflexão estética e a metafísica de Schopenhauer
até a medida em que essa podia ser associada à sua interpretação dos gregos e de sua
arte (Goedert, 1978, p. 3) e que Nietzsche se afasta daquele ao perceber mais claramen-
te os pontos de distanciamen­to de sua concepção de filosofia trágica do pessimismo
schopenhauriano (Young, 1994, p. 26). O mesmo se aplica a Wagner. Ao considerar o
compositor alemão como um novo Ésquilo e crer que por meio da sua obra seria pos-
sível restabelecer a dignidade da arte entre os antigos helenos perdida na modernidade,
Nietzsche revela importantes pressupostos de seu interesse pela arte wagneriana.
No que se refere a esta nova interpretação de ambos, um dado relevante pode ser
encontrado nos últimos escritos e consiste em associar Wagner e Schopenhauer – aque-

66
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

le como leitor deste – com o conceito de décadence. Considerando o conteúdo de e­ scritos


tardios como Nietzsche contra Wagner e O caso Wagner, é possível perceber claramente
que as caracterizações de ambos não se direcionam prioritariamente às pessoas destes,
mas à significação cultural de suas obras.1 O conteúdo das críticas feitas nos escritos
do final da década de 80 pode ser significativamente elucidado com a compreensão do
significado da música na primeira filosofia de Nietzsche. Como já mencionado anterior­
mente, a música fora pensada como a mais elevada forma de representação da essência
do mundo, entendida em caracteres schopenhaurianos como a mais elucidativa ­expressão
da vontade. Nela a infinita possibilidade de formas se aproxima representativamente da
forma de manifestação da vontade no mundo. O diagnóstico da decadência da moder-
nidade a partir da afirmação do banimento do dionisíaco da arte feito em O ­nascimento
da tragédia se faz novamente presente nesses últimos escritos, mas então d­ ecisivamente
direcionado ao tema da supressão do dionisíaco – este já distanciado da metafísica do
artista – da cultura enquanto força criativa. Desse modo, o mesmo pressu­posto, que nos
primeiros escritos fora apresentado por meio de terminologia schopenhauriana e ilações
à obra de Wagner, é usado então contra ambos. Wagner e Schopenhauer são compreen-
didos por Nietzsche como modelos exemplares do pessimismo e da decadência mo-
derna, ou seja, como efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da
religião cristã oposta ao dionisíaco. O esclarecimento desse aspecto é decisivo para a
argumentação aqui levada a cabo. Sob o ponto de vista de que para Nietzsche, Wagner,
com o seu Parsifal, enquanto justificação artística das ideias cristãs de inocência e de
castidade,2 e Schopenhauer, com o seu pessimismo teórico e estético, tornam-se os
símbolos mais emblemáticos da décadence moderna, do não dionisíaco, por excelência
(Goedert, 1978, p. 6). Décadence significa aqui o movimento de desagregação e despo-
tencialização da vida e do mundo, que Nietzsche interpreta em Sócrates, mas também
no cristianismo e então, de forma emblemática, na filosofia e na arte de seu tempo. Ela
resulta na perda da capacidade de aceitação da existência e com isso de abandoar o
1
Ou como o próprio Nietzsche escreve no prefácio de O caso Wagner: “Através de Wagner, a moder-
nidade fala a sua linguagem mais íntima” (KSA 6, p. 12).
2
Wagner ocupou-se desde 1845 com o material da narrativa, ao mesmo tempo em que compunha
Lohengrin e desenvolvia a ideia dos Mestres cantores de Nuremberg. O título inicial era Parzival, já
em um rascunho de Zürich de 1857. A encenação apenas foi decidida em 1865, com o apoio fi-
nanceiro do rei Ludwig II da Baviera. É deste período o desenvolvimento do texto em prosa da
ópera. Todavia, apenas depois do primeiro festival de Bayreuth (Bayreuther Festspiele), Wagner
iniciou a elaborar os libretos. Em 1877 deu-se a determinação dos procedimentos visando à ence-
nação do drama musical, com um aspecto importante: a alteração do nome título de “Parzival” para
“Parsival”, que em persa advém da fusão de tolo (parsi) e puro (fal). O herói do drama foi então
concebido como uma espécie de puro ingênuo. O processo de composição foi iniciado por Wagner
em 1877. Em abril de 1879, a escritura das partituras para os três atos ficaram prontas, assim como
toda a obra. Mas a obra apenas viria a ser apresentada em janeiro de 1882, muito embora Wagner
tenha feito uma pequena apresentação privada em 1880 para o Rei Ludwig II em Munique.

67
roberto barros

desejo de sua alteração ou mesmo superação, como forma de por fim ao sofrimento
inerente à existência. Em contraposição a isso, Nietzsche concebe a sua filosofia dioni-
síaca como forma de inverter as categorias de valor da tradição metafísico-cristã e por
meio do embelezamento do viver e da atitude heroica de sua aceitação incondicional
da vida, revalorizar os seus perigos e desafios. O dionisíaco mobilizado por Nietzsche
comporta, portanto, uma dimensão estético-cultural, mas também uma decisiva signi-
ficação teórica, pois implica também igualmente em uma nova concepção de saber, para
a qual o existente não é visto como problema, mas como domínio de possibilidades de
interpretação e de criação. Neste contexto, tanto a arte quanto a própria ciência ­consistem
em noções decisivas para que se compreenda tanto a alegre ciência ­quanto Assim ­falava
Zaratustra, esta obra entendida como escrito fundamental3 de seu autor. Entretanto,
como a própria intenção dos prefácios e de Ecce homo revelam, Nietzsche deseja indicar
que a compreensão destas mudanças pressupõe também o entendimento das caracte-
rísticas e da dimensão das alterações ocorridas no percurso intelectual que o levou a
Zaratustra.
Isso posto, a questão a ser esclarecida aqui é: a partir da ­consideração crítica da
arte e de seu significado na modernidade presente em Humano, demasiadamente h­ umano,
como é possível entender o ressurgimento do dionisíaco nos escritos posteriores? A
resposta a essa questão parece remeter necessariamente à consideração dos ­pressupostos
dessa m­ udança e, por conseguinte, do rompimento de Nietzsche com as suas influên-
cias anteriores, especificamente com o wagnerianismo e com o pessimismo schope-
nhauriano. A este respeito, as afirmações feitas em Nietzsche ­contra Wagner e em O caso
Wagner mostram-se decisivas. Elas levam a perceber que o abandono da concepção
centrada na metafísica do artista se deve em grande monta à não adequação da fi ­ losofia
de Schopenhauer e da significação cultural e artística de Wagner à concepção de arte
e cultura de Nietzsche, fundada decisivamente em uma elevada e positiva consideração
dos antigos gregos (UB/CE HL prefácio). Ao considerar Assim falava Zaratustra como
uma obra filosófica capital, Nietzsche dá a entender que as suas compreensões tanto da
arte como da ciência sofreram mudanças significativas e, desse modo, que o entendi-
mento desses aspectos é um dado decisivo para abranger o sentido de sua obra. A as-
similação de Assim falava Zaratustra como obra filosófica pressupõe destarte a inclusão
3
EH/EH “Prefácio” § 4. O reaparecimento do dionisíaco nos últimos escritos, segundo as próprias
afirmações de Nietzsche, está vinculado ao seu Zaratustra e por esse motivo é um aspecto impres-
cindível à compreensão dos objetivos e significados do autor com aquela obra e com as suas ­doutrinas.
Como podemos ler em Tentativa de autocrítica, o dionisíaco associado a Zaratustra não mais é
aquele da metafísica do artista. O caráter autobiográfico dos prefácios e de Ecce homo demonstra
que Nietzsche deseja esclarecer a sua obra a partir de sua própria vivência, de seu percurso intelec-
tual, o que significa que, no que se refere à essa noção, ela se alterou no decorrer do percurso inte-
lectual do autor.

68
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

do movimento conceitual efetuado nos escritos que o antecederam, enquanto fator


imprescindível à compreensão de Zaratustra, assim como da motivação dionisíaca da
filosofia de Nietzsche.

A arte nos escritos anteriores a Zaratustra

Posto que o entusiasmo de Nietzsche pela filosofia de Schopenhauer se deve de-


cisivamente à possibilidade antevista pelo então jovem ­professor de filologia em apro-
ximar as posições filosóficas do autor de O mundo como vontade e representação das suas
interpretações da cultura e arte gregas, pode-se entender que a partir da percepção de
que essa aproximação repercute em inúmeras limitações e problemas, os p­ osicionamentos
concernentes à metafísica do artista precisam também ser reconsiderados. A percepção
das dificuldades desta aproximação incide sobre aspectos de ordem tanto teórica ­quanto
prática e dizem diretamente respeito aos pressupostos a partir dos quais o drama mu-
sical wagneriano é interpretado por Nietzsche, sob a perspectiva do empreendimento
de uma reforma da cultura. A consideração da obra wagneriana por Nietzsche parte
prioritariamente da interpretação schopenhauriana da música associada ao interesse
pelo trágico grego (Meyer, 1995, p. 25). O fundamento universalizante da metafísica
da vontade o leva a identificar um processo de depreciação do valor estético da arte, que
teria conduzido a cultura ocidental a um movimento de depreciação da vida, cujos
efeitos negativos teriam se tornado evidentes em seu tempo. A música wagneriana,
interpretada por Nietzsche como signo da inversão dessa tendência, consistiria no pro-
pulsor de um movimento de reforma e de renovação da c­ ultura, que teria por fi ­ nalidade
última restaurar o sentido de elevação e de engrandecimento da vida, que Nietzsche
interpreta nos gregos antigos.
Em Schopenhauer, a música é retratada como a mais verídica repre­sentação da
vontade (WV/MV III § 52), que Nietzsche denomina de Uno primordial (Ureinen), o
princípio fundamental e incondicio­nado de todo existente (NF/FP: KSA 7, 12 [1],
início de 1871). Ela é representação intuitiva apenas da infinitude formal, um abstrac-
tum da efetividade (ein Abstracktum der Wirklichkeit) (WV/MV III § 52), através do
qual é pos­sível a aproximação da própria essência do mundo, não por meio do concei-
to, mas da pura intuição artística. Em diferenciação das demais artes, vinculadas em
­diferenciados graus a referências e à representação, a música é pura forma e “têm como
finalidade comum revelar e ­esclarecer a ideia que constitui a obra de arte, a vontade em
cada grau de sua objetivação” (WV/MV III § 51). A sua singularidade se deve ao seu
caráter abstrato, que a impede de se deixar limitar pela reprodução estática da ideia em
suas objetivações. Ela suplanta a tendência à objetivação da ideia e devido a isso con-
siste em uma imitação imediata da vontade, “visto que ela nunca exprime o fenômeno,

69
roberto barros

mas a essência íntima, o interior do fenô­meno, a própria vontade” (WV/MV III § 52).
A música é então a forma superior de representação das manifestações da vontade em
sons, que diante da infinita polissemia de formas possíveis de expressão, se deixa mais
fielmente expressar na multiplicidade infinita das formas musicais. Esta interpretação
da música, como veículo e mais elevada forma de manifestação sensível do princípio
metafísico do mundo, é decisiva para aproximação de Nietzsche com respeito à arte
wagneriana e para a sua formulação inicial do dionisíaco.4 Ao entrar em contato com
a obra de arte total (Gesamtkunstwerk) de Wagner, ele também leitor de Schopenhauer,
Nietzsche interpreta o drama musical Wagneriano como signo da nova manifestação
de um impulso artístico natural, longamente represado pelo racionalismo estético, cujo
efeito primeiro é fundamentalmente o restabelecimento da significação da música,
fator decisivo para a aproximação da ópera da tragédia ática.
É, por conseguinte, precisamente desses caracteres que Nietzsche deseja se afastar
nos escritos que marcam a sua ruptura com pressupostos basilares de seus direciona-
mentos iniciais. Como documentos elucidativos neste sentido, podem ser indicados os
prefácios publicados em 1886, anexados aos livros anteriormente publicados, mas ori-
ginalmente não prefaciados. Esses textos são significativos, pois com eles o autor tenta
tornar evidente o sentido de sua filosofia até então, do mesmo modo que busca oferecer
aspectos para uma melhor compreensão do Zaratustra. Um dos objetivos centrais dos
prefácios é esclarecer as bases a partir das quais fo­ram concebidas noções decisivas
deste escrito então considerado como fundamental. Dentre essas noções, uma das mais
significativas é precisamente o dionisíaco. O modo como o autor empreende a sua
reapre­sentação, afastando-o de associações que possam ligá-lo originariamente tanto à
filosofia de Schopenhauer, como à concepção de obra de arte total de Wagner, é signi-
ficativo. Para isso, é-lhe necessário afastar-se destas tendências, que ele então identifica
como expressões do pessimismo romântico, da arte de efeito (Wirkungskunst) e do
cientificismo classi­ficatório identificável por ele na filologia academicista. Esse projeto,
entretanto, como se lhe bem mostrara Bayreuth, não poderia ser levado a cabo na con-
temporaneidade unicamente por meio do ­restabelecimento da perspectiva artística
grega e de sua sensibilidade intrínseca. Ele neces­sitaria, e é isso que Nietzsche mostra
perceber com Humano, demasiado humano, ser efetivado mediante uma crítica das pró-
prias bases valorativas da cultura ocidental, que então ele identifica como decorrentes
da metafísica.
Esse é o principal ponto revisionista de Nietzsche no livro de 1878. Para ele, é a
partir da vitória hegemônica da perspectiva científica, que os valores metafísicos se
4
Aspecto que viria a se tornar central na crítica de Willamowiz Möllendorf à perspectiva filosófico-
-filológica de Nietzsche em NT (cf. Möllendorff, 2005, p. 70).

70
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

associaram ao conhecimento e mantiveram vivas as suas perspectivas de sustentação.


Um dos mais significativos desdobramentos desse acontecimento foi a manutenção do
pressuposto da inferio­ridade da arte e da sensibilidade em favor da valoração superior
do conhe­cimento racional. Esse aspecto evidencia que a ruptura de Nietzsche com
respeito aos seus direcionamentos iniciais não é total, pois sua p ­ erspectiva permanece
ligada ao pressuposto do caráter ilusório da verdade socrática. Ele faz uso da própria
perspectiva aberta por essa para criticá-la, demonstrando-lhe as próprias contradições.
Em outras palavras, é a própria concepção de verdade do socratismo que acaba por
demonstrar a fragilidade das posições deterministas relativas ao conhecimento. Isso se
desdobra na compreensão do caráter ilusório das valorações por ele estabelecidas.
No que se refere à arte, o que o Nietzsche percebe a partir do primeiro festival em
Bayreuth (EH/EH MA I/HH I § 2), é que a crítica do socratismo e da metafísica não
poderiam, por si só, garantir a possibilidade de renascimento de uma forma outra de
sensibilidade artística. Devido a isso, a metafísica do artista necessita ser abandonada.
A indicação do aspecto insuperável da criação artística humana não poderia por si
mesma reverter a hierarquia avaliativa estabelecida pela metafísica. Para Nietzsche
torna-se evidente que as condições para isso não mais existem e que a indicação das
fragilidades do princípio hegemônico do homem teórico não poderiam remeter a um
renascimento da arte trágica. A crítica a Wagner e ao romantismo caminha neste ­sentido.
Ela visa a tornar claro o afastamento de Nietzsche das formas de justificação estética
que retornam a princípios daquele movimento cultural fundado na ­valorização nostál-
gica do passado, com os quais ele pensara tanto a arte wagneriana como a filosofia de
Schopenhauer. O novo posicionamento significa o surgimento de duas percepções
básicas: a compreensão de que a sua jus­tificação não poderia mais ser feita mediante
recursos a concepções de tempos passados (HDRH II, OS § 178), pois as condições
para a compreensão dessas não mais existem e, neste sentido, a arte pode mesmo ser
mesmo considerada como fonte de erros e ofuscamentos (MA I/HH I § 2), pois, se-
gundo Nietzsche, na modernidade, ela buscou refúgio no único âmbito que lhe foi
permitido pelo pensamento racional, na metafísica do gênio e da natureza e, desse modo,
se a­ ssociou aos pressupostos que determinaram a sua própria derrocada.
A sua primazia foi transferida à ciência rigorosa, que, se ­inicialmente faz uso de
concepções míticas relativas à verdade, à racionalidade e ao conhecimento, pelos seus
próprios avanços precisa desmascarar toda a crença na inspiração e na comunicação
milagrosa de verdades (ibid.). É a ciência, portanto, que revela a inatualidade negativa
dos pressupostos de justificação da arte, que traz à luz o mitológico e o arcaico dos m
­ odos
tradicionais de justificação que, em última análise, advém da forma ancestral de consi-
derar da própria arte. Por esse motivo, o artista, em sua atitude de perpetuar o passado,

71
roberto barros

“não figura mais nas primeiras filas da ilustração” (ibid.). A partir disso, Nietzsche pode
afirmar: “No que toca ao conhecimento das verdades, o artista tem uma moralidade mais
fraca do que o pensador” (MA I/HH I § 146), pois na luta pela superior d ­ ignidade e
importância, “não deseja abrir mão do fantástico, mítico, incerto, extremo, o sentido para
o simbólico, a superstição da pessoa, a crença em algo miraculoso no gênio” (id.).
A precedência do conhecimento científico na modernidade e o declínio dos ­dogmas
religiosos, passíveis de serem constatados mesmo no luteranismo, são processos que
tornam evidente o pouco valor efetivo dado a interpretações sem fundamento, muito
embora ainda ocorra o uso daqueles como forma de justificação. Ainda que afastada,
por motivos histórico-metodológicos, do anseio por verdades metafísicas, a ciência não
logra distanciar-se suficientemente destes pressupostos de consideração, o que revela a
sua relação histórica com aspectos daquela tradição, que ela, em sua significação ­efetiva,
refuta como incongruentes. Isto se revela de maneira evidente para Nietzsche na justi-
ficação do conhecimen­to e da ciência dogmática. Essa se dá ainda por intermédio de
utiliza­ção de pressupostos cuja origem não é científica, mas determinantemente reli-
giosa e metafísica. Esse aspecto a mantém relacionada a estágios anteriores da cultura,
quando o verdadeiro conhecimento da verdade5 ­ainda não havia se efetivado e as formas
de glorificação da religião e da metafísica se davam por intermédio de uma justificação
similar à utilizada pelos artistas. Para Nietzsche, isso determinou o direcionamento da
arte para o domínio da inverdade, do fantasioso e do mero enaltecimento, o que pro-
duziu a sua desvalorização e descrédito (NF/FP: KSA 8, 30 [171]).
Entretanto, o desempenho desta função e a sua justificação por meio dela revela
o segundo aspecto a ser aqui abordado acerca da arte na contemporaneidade: ele traz à
luz a evidência de uma necessidade humana, que nem a metafísica nem o cientificismo
conseguem apaziguar. Nesse sentido, segundo Nietzsche, mesmo servindo a finalidades
estabelecidas por uma cultura racionalizada, a arte demonstra o valor do seu modo de
afirmação por meio do embelezamento mítico. A sua inatualidade e obso­lescência
decorrem disso e não de um aspecto inerente a ela, mas pela forte influência metafísica
de sua consideração e justificação. Essa se tornou extemporânea, remetendo com isso
a arte ao âmbito das falsificações, por mobilizar crenças injustificáveis na atualidade
científica, tais como a crença na inspiração, na comunicação milagrosa de verdades e na
genialidade. Isto resulta apenas na tentativa baldada de perpetuar a importância de uma
espécie de criação, baseada no ato milagroso do gênio, o que, porém, segundo o autor,
a coloca no lado oposto da ainda fraca pretensão científica à verdade de suas figuras
(MA I/HH I § 146).

5
Portanto, o conhecimento de sua relatividade (MM II/HDH II, OS, § 7).

72
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

O conceito de inspiração é um dos pontos centrais da crítica de Nietzsche à pro-


dução artística de seu tempo. A depauperação crítica da metafísica e o avanço das
ciências a tornou impossível, fruto de crenças e superstições. A justificação da arte por
meio de uma crença na genialidade do artista, que o poria em contato com a essência
do mundo, a qual ele traduziria em sua obra (MA I/HH I § 164), tornou-se ­insustentável.
Foi apenas a partir dessa crença encoberto o processo de proveniência da arte, que,
segundo ele, revela que, por detrás da obra haveria mais do artista (Fink, 1983, p. 52)
que do homem que a cria, porém, nunca como médium que capta uma essência meta-
física. Vista segundo esses pressupostos, a arte adquire uma aproximação criticável com
a religião e com a metafísica (MA I/HH I § 220), justamente no que tange à crença
de ambas na compreensão da essência do mundo, contrariamente àquilo que aquela
deve significar, posto que ascende principalmente de um declínio da religiosidade (MA
I/HH I § 150).
Para designar um estágio de percepção desses caracteres, Nietzsche mobiliza o
conceito de cultura superior. Esse lhe é útil para identificar o estágio em que o estimar
a verdade6 é se distanciar dos erros metafísicos e artísticos. Nela, a atividade intelectual
não pode ser associada a formas de justificação e legitimação milagrosas, formuladas
sem a observância do então necessário pensamento rigoroso. Durante a sua vigência,
necessita-se de coragem, de virilidade e de moderação, para que se possa perceber e
novamente lidar com as novas verdades atinentes ao mundo e à vida. O efeito mais
evidente disso é a intelectualização da arte e a espiritualização dos sentidos, de modo
que as formas de justificação, fundadas no remetimento direto ao simbólico, tornam-se
símbolos de um estágio inferior da cultura e, desse modo: “ao rico olhar agora é permiti­
do ter maior validade que a mais bela estrutura e a construção mais sublime” (MA I/
HH I § 3). Nessa condição, na modernidade a arte demonstra uma séria ambiguidade,
que a despotencializa. O posicionamento crítico com relação a ela responde ao mesmo
estatuto utilizado na c­ rítica à metafísica e remete à ausência de justificação racional de
seus a­ rgumentos. Ambas, metafísica e arte, são consideradas como produtos da paixão,

6
Cabe aqui indicar que para Nietzsche o termo verdade não traz consigo nenhum cunho metafí-
sico, mas sim propositivo, no sentido de que o apreço pela verdade significa o apreço pela sua
busca e não pelo desejo de sua posse (MA II/HH II § 20). Se pensada a influência do ­pensamento
positivista das ciências naturais neste momento da reflexão do autor, deve-se compreender também
que para ele essas são, decisivamente, formas outras de lidar com a verdade e com o conhecimento
e que com as suas pesquisas demonstram a vacuidade de posicionamentos metafísicos dogmáticos
(Marietti, 1997, p. 264). Para Nietzsche, porém, é claro que mesmo em seu tempo uma desejosa
separação entre ciência e metafísica ainda não está consumada, o que se constitui em uma das
metas de seu empenho filosófico que, ao distanciar o desejo de conhecer do desejo de posse de
verdades definitivas, vê ampliadas as possibilidades de evidenciar o aspecto interpretativo-represen­
tacional da ciência, criando com isso possibilidades de uma reconsideração positiva, isenta de
condicionamentos morais, da arte na modernidade.

73
roberto barros

como fonte de erros e de autoilusão (MA I/HH I § 9) e esta constatação é resultado


da busca pelo conhecimento, que, na modernidade, acaba por ser movido por um lidar
sóbrio, realista com relação ao mundo, como proce­dimento metodológico passível de
ser exemplarmente constatado nas ciências naturais (MA I/HH I § 6). Entretanto, a
virtuosidade da ciência se limita a possibilitar essa compreensão. Ela se empenha em
afastar de sua referência todo e qualquer padrão de consideração que remeta a formas
metafísicas de justificação, fundamentalmente aquelas que pressupõem verdades finais.
O grande mérito das ciências naturais consiste em demonstrar a fragilidade fática da
metafísica e não o de tê-la levado à comple­tude, a partir da demonstração da exatidão
da verdade e do ­conhecimento (Vattimo, 1987, p. 53-54). Por intermédio da referência
às ciências, Nietzsche visa a restabelecer um processo de valoração criativa na busca
pelo conhecimento, o que historicamente fora obstado pelos dogmatismos metafísico-
-filosófico e religioso. Desse modo, a desconfiança com respeito à verdade se t­ ransforma
em um princípio de criação cujos efeitos mais elevados são a valorização do ­desconhecido
e a probidade (NF/FP KSA 9, 6 [67], outono de 1886). É a ciência, enquanto única via
para a ­verdade (MA II/HH II § 213), que liberta a criação de novas formas de interpre­
tação e de representação. Ela se aproximada do processo criativo da arte e demonstra a
possibilidade de justificação desta, muito embora ambas necessitem ser afastadas de
pressupostos interpretativos canônicos.
Esse aspecto determina os fatores decisivos de uma das mais signifi­cativas mu-
danças sofridas por Nietzsche, a saber, o abandono dos pressupostos relacionados à
metafísica do artista (Young, 1992, p. 60) e o surgimento do espírito livre. Essa ligação
é ressaltada no conjunto dos prefácios de 1986, de modo que, no escrito para a ­primeira
parte de Humano, demasiado humano, o filósofo já se refere a esse livro como resultado
de um “grande livramento” (grosse Loslösung), e no qual também se deu a invenção do
“Espírito livre” (MA I/HH I, prefácio § 2-3). O “Espírito livre” relaciona-se com o
“grande livramento” por meio do ­dese­jo e do interesse pelo que fora até então proibido
e ainda por uma curiosidade que se contrapõe aos valores e às formas tradicionais de
­consideração (ibid., § 3). O novo espírito concebido por Nietzsche significa não apenas
a efetivação de um afastamento, mas também o início de uma fase de experimentos na
qual, segundo Vattimo, ele busca uma nova forma literária compatível com a sua missão
de pensador e seus novos temas teóricos (Vatimo, 1987, p. 88).
No que se refere a um significado estético do “Espírito livre”, Nietzsche ressalta
tal aspecto ainda no primeiro prefácio de Humano, demasiado humano:

(...) aquele excedente de forças plásticas, curativas, modelares (nachbildenden) e restau-


radoras, que é justamente o sinal da grande saúde. Aquele excedente que dá ao ­Espírito

74
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

a livre, a perigosa prerrogativa de viver para o experimento (Versucht) e poder o­ ferecer-se


à aventura: a maestria – prerrogativa do Espírito livre (MAM I/HH I, prefácio § 4)

Conforme essa indicação, fica claro que, mesmo em Humano, dema­siado humano
I, livro no qual Nietzsche se encontrava empenhado em empreender uma ampla mu-
dança nos rumos de sua reflexão, não deixa de estar presente uma importante dimensão
estética, que diretamente se relaciona aos temas centrais de seus novos direcionamentos.
­Considerada a partir do grande “livramento”, a obra representava uma reconsideração
do posicionamento do autor com respeito à arte e à perspectiva trágica, aspectos se
mostram significativos para a presente abordagem, quando considerada a importância
do sentido estético da linguagem em Assim falava Zaratustra (Fink, 1983, p. 55).
Um dos primeiros posicionamentos que possibilitam compreender a mudança de
pressupostos e o distanciamento da consideração da arte em Humano, demasiado ­humano
com respeito à fase anterior, pode ser notado na afirmação presente no segundo a­ forismo
do quarto livro ­desta obra, intitulado “Da alma dos artistas e escritores”. Nele Nietzsche
mencio­na o abandono moderno da crença nas possibilidades da arte como veículo de
amadurecimento da humanidade (Vermännlichung der Menschheit)7, assim como a sua
consideração sob a ótica do esclarecimento (MA I/HH I § 147). A compreensão d ­ esse
direcionamento pode ser feita por duas vias interpretativas: inicialmente, a partir da
alteração de perspectiva sofrida por Nietzsche após a sua já mencionada decepção com
Wagner e o wagnerianismo, o que veio a abalar a sua perspectiva inicial, de uma r­ efutação
da validade dos princípios norteadores da cultura ocidental através de uma restauração
da visão de mundo artístico – mítica (NF/FP KSA 8 II [25], Verão de 1875). Em se-
gundo lugar, da constatação de que, para tornar-se efetiva, a arte necessitaria de um
certo mundo e de uma certa cultura (Vattimo, 1987, p. 52) e que essas condições não
mais existiriam. Como resposta e contraposição a essa constatação, Nietzsche cria o
“Espírito livre”, com o qual ele visa a levar ao extremo a inelutável vitória da ciência e
do desejo de verdade, visando (Brusotti, 2010, p. 67), todavia, a mostrar com esse apro-
fundamento tanto a beleza, como os perigos e limitações dessa tendência. Portanto, em

7
A opção por traduzir “Vermännlichung” por amadurecimento e não por masculinização ou v­ irilização,
se deve a vários fatores: muito embora a raiz da palavra possa ser relacionada ao termo que pode
indicar um sentido remetido ao gênero masculino (männlich), no aforismo, o termo está r­ elacionado
ao artista de uma idade impúbere e por isso parece indicar algo mais amplo que os significados
primeiramente mencionados. Nesse sentido, optou-se amadurecimento, muito embora se com-
preenda a pertinência dessa última opção que, por exemplo, consta na ótima tradução de Paulo
Cesar Souza (Cf. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 147). Uma
outra justificativa à solução aqui encontrada está presente no aforismo 159 da mesma seção. Nele,
Nietzsche insiste na ideia de um atraso nas formas de manifestação artística e se refere a esse a­ specto
mediante os termos atraso e infantilidade (Kindheit), o que, ao nosso ver, pode referendar ainda
mais a opção de tradução aqui feita.

75
roberto barros

um primeiro momento, a arte é posta como adversária do conhecimento, justamente


porque a sua já men­cionada recorrência ao passado e a princípios vetustos de j­ustificação
a afastam da perspectiva científica. Todavia, esse é apenas de um aspecto da crítica que,
como se verá, não se direciona à arte propriamente dita, mas a sua forma ­contemporânea
de justificação, que a mantém estática, presa a um passado inalterável. A seu favor,
Nietzsche simultaneamente r­essalta a necessidade humana dessa referência estético-
-criativa e a sua positividade, enquanto forma de alegria para com a vida (­Lebensfreunde),
através da qual até mesmo a própria metafísica poderia ser esclarecida enquanto jogo
criativo (NF/FP: KSA 8, 29 [45], Verão de 1878). Afastando-se da concepção ­romântica
de arte, o autor afirma que ela deve requerer uma nova espécie de genialidade, aquela
que já superou a descon­fiança na mul­tiplicidade das paixões (MA I/HH I § 629), a
confiança na neutralidade do método e no recurso à autoridade (ibid. § 633), qual seja
ela, a justiça (Gerechtigkeit), aquela que evidencia a multiplicidade de opiniões nascidas
das paixões e que torna o “Espírito livre” – aquele que não quer se limitar à estreiteza
dessas opiniões, que é um andarilho, que transita entre elas e entre os partidos – um:
“traidor de todas as coisas que em geral poderão ser traídas – e ainda sem o s­ entimento
de culpa” (MA I/HH I § 637).
Essas passagens revelam aspectos significativos da crítica feita à arte em Humano,
demasiado humano. Essa deve então ser compreendida não como uma condenação da
arte em favor da noção tradicional de ciência estabelecida na modernidade, mas antes
muito mais como uma contrapo­sição a uma concepção de arte que, em sua justificação,
se funda em princípios vetustos e diretamente responsáveis pela sua depreciação. A
crítica incide, portanto, não sobre toda a arte, mas especificamente à justificação esté-
tica da arte fundada em concepções que não têm mais lugar na modernidade e que
podem ser facilmente relacionadas a pressupostos metafísicos (MA I/HH I § 222). Por
outro lado, os limites dessa crítica podem ser percebidos nas indicações das p­ ropriedades
posi­tivas da manifestação artística, tais como o embelezamento, o realce e o prazer
advindo de suas formas de expressão. Essas qualidades evidenciam a sua possível inde-
pendência de justificações relacionadas a pressupostos metafísicos, ao mesmo tempo
que o seu caráter afirmador da vida, o qual Nietzsche busca transpor para a sua fi ­ losofia.

Esse ensinamento da arte, de ter prazer na existência e de ver a vida humana como
uma parte da natureza, sem um movimento comum violento, como objeto de um
desenvolvimento regular, – essa doutrina cresceu em nós, ela retorna à luz agora como
onipotente necessidade do conhecer (MA I/HH I § 222).

A inclinação metafísica da arte de seu tempo torna-se digna de atenção para


Nietzsche apenas em sentido histórico, pois demonstra o ­fracasso da tentativa de jus-

76
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

tificá-la mediante um remetimento a princípios supramundanos. Em Humano, ­demasiado


humano, o filósofo nega à c­ iência a capacidade de proporcionar um conhecimento de-
finitivo das coisas. Destarte, a sua reflexão com respeito à arte e à ciência se revela como
prioritariamente direcionada a uma crítica da cultura, de seus valores norteadores, para
Nietzsche responsáveis pela perpetuação e consolidação de princípios que obstam ­tanto
o desenvolvimento cultural no sentido de um não dogmatismo interpretativo, quanto
a criação afirmativa e embelezadora da vida, advinda de formas outras de interpretação
e representação. Para Nietzsche, naquele momento – e em diferenciação ao projeto de
reforma da cultura – esse objetivo não poderia ser alcançado sem o ­auxílio da cientifi-
cidade, porém de uma determinada forma de atuação dessa,8 livre da influência dos
erros consolidados pela tradição ligada a uma ­forma determinada de moral (MA I/HH
I § 153), fator que delimita de modo significativo a sua apologia da ciência (Vattimo,
1987, pp. 54-5).
Percebe-se então que, no que se refere às novas e às antigas perspec­tivas, em linhas
gerais, Nietzsche mantém princípios norteadores básicos de sua filosofia anterior, tais
como a negação da possibilidade de alcance de uma verdade definitiva (MA I/HH I § 2)
e da hierarquia que esse princípio passou a suster, do mesmo modo que reafirma o vín-
culo afirmativo entre arte e vida, sem, entretanto, relacioná-las essencialmente (NF/FP
KSA 8, 23 [150], inverno 1876 – verão 1877). Esses aspectos, por sua vez, são redimen-
sionados segundo a radicalização do próprio desejo científico de verdade, que a partir de
então, afastado da busca por um conhecimento definitivo, revela um mundo constituído
unicamente por perspectivas diferentes, no qual toda forma de comunicação tem em
vista ser a expressão daquele que a constrói e utiliza.
Ao considerar o homem científico como o desenvolvimento do homem artístico
(MA I/HH I § 222), Nietzsche não tem em vista negar o valor da manifestação a­ rtística,
mas apenas conferir-lhe um significado novo, em uma época que não mais ­efetivamente
crê em antigas noções como a de inspiração ou vincula a significação das representações
a um suposto e determinante pressuposto de verdade. É dessa maneira que a arte pode
auxiliar a ciência e a filosofia, pois nela as representações metafísicas – tais como alma,
corrupção e salvação – se conservam em m ­ uito menor grau. Nela tais noções obtêm um
grau bem menor de ­necessidade e, por esse motivo, através dela se pode mais ­facilmente
ultrapassar a pressuposição metafísica e chegar a uma filosofia científica libertadora
(MA I/HH I § 27).

8
Eugen Fink defende a ideia de que o elogio da ciência em HH parte primeiramente da utilização
de uma psicologia destrutiva e desmascaradora, que revela os subterrâneos anseios do homem. A
ciência é então tomada positivamente como instrumento de dissipação das ilusões que por um
longo tempo se mantiveram na cultura ocidental (Fink, op.cit., pp. 49-50).

77
roberto barros

Como via para a inversão das formas tradicionais de consideração, a arte pode
então ser inserida no horizonte da ciência e ser aproximada do espírito livre, tendo em
vista as suas próprias potencialidades. Por outro lado, evidencia-se também que nem
todas as formas de arte podem prosperar, fundamentalmente a arte com pressuposições
metafísicas (MA I/HH I § 220). Desse modo, esta nova justificação estética da arte
apenas parcialmente permanece trágica9 ou romântica, do mesmo modo que apenas
parcialmente é moderna. Ela é muito mais apresentada como aliada da beleza da repre­
sentação a serviço da vida, pois os pressupostos morais – e, destarte, as formas de justi­
ficação – sempre se alteraram (MA I/HH I § 126). A arte de que fala Nietzsche é
aquela que possibilita a criativa libertação dos pressupostos dogmáticos e que, como
contínua reanimação e reformulação, caracteriza-se decisivamente como processo de
recriação. O sentimento de liberdade que disso decorre, renova sentimentos positivos
com relação à vida e a existência, aspectos que Nietzsche deseja integrar à busca ­científica.

Antes de tudo, durante milênios ela [a arte] ensinou a olhar com interesse e desejo à
vida em todas as formas e a levar nosso sentimento tão longe, até que finalmente di-
gamos: “seja como ela for, a vida, ela é boa”. Este ensinamento da arte, de ter prazer na
existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza, sem demasiado
brusca simultaneidade (Mitbewegung), como objeto de uma evolução regulada – esse
ensinamento cresceu em nós, ele chega agora à luz como a mais atual necessidade do
conhecimento. Poder-se-ia renunciar à arte, mas com isso não seriam lesadas as capa-
cidades assimiladas (gelernte) por meio dela: de modo similar, como a religião, foi
abandonada, não porém as [capacidades] obtidas por meio de elevações de s­ entimentos
(Gemüths-Steigerungen) e sublevações (Erhebungen). Tal como as artes plásticas e a
música são a medida da riqueza de sentimentos realmente aumentada e adquirida
através da religião, assim ocorreria com a multiplicidade e intensidade de viver plan-
tadas por elas, que exigiriam sempre satisfação. O homem científico é a continuação
do desenvolvimento (Weiterentwicklung) do homem artístico (MA I/HH I § 222).

O enfoque que desejamos dar a esta abordagem é o de demarcar claramente a posi­


ção que Nietzsche adota a partir de Humano, ­demasiado humano I acerca da arte, a fim
de melhor compreender como é possível e qual a significação da forte conotação artís-
tica dada a Assim falava Zaratustra. Nesse sentido, a partir da consideração geral do

9
Em um Fragmento póstumo de 1878, Nietzsche escreve: “Motivo de uma visão trágica do mundo:
a luta glorifica o perdedor. Os fracassados estão em maioria. O terrível comove mais fortemente.
Desejo pelo paradoxal, preferir a noite pelo dia, a morte à vida.
Tragédia (Trag<ödie>) e comédia (Kom<ödie>) dão uma caricatura da vida, não um modelo ‘Pa-
tológico’.
Goethe contra o trágico – Por que tentá-lo?
- Conciliante Natureza.” NF/FP: KSA 8, 29 [15].

78
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

estatuto da arte em Humano, demasiado humano, passaremos à consideração específica


da poesia nessa mesma obra. Essa incursão se justifica pela ­referência do próprio Nie­
tzsche à inspiração poética de seu Zaratustra, de modo que, se em Assim falava ­Zaratustra
Nietzsche faz uso do discurso com preocupações artísticas como veículo transmissor
de seus pensamentos abissais, deve-se compreender que a sua consideração com res-
peito à arte se alterou, que então ele antevê a possibilidade de conferir a ela n
­ ovamen­te
um uso efetivo no que se refere a sua significação cultural. Por conseguinte, ao escrever
Assim falava Zaratustra da maneira como o fez, ele pressupõe que algo nesse contexto
pode ter sido alterado. Desejamos abordar esta discussão nos novos horizontes que se
abrem para o pensamento do autor a partir de sua concepção de um projeto de
­transvaloração de todos os valores, o qual, com efeito, segundo ele mesmo, já se ­iniciara
em O Nascimento da tragédia (GD/CI. “O que devo aos antigos” § 5).
Em favor de ambas as hipóteses, nos remetemos basicamente a dois textos: pri-
meiramente ao aforismo 568 de Aurora e, em seguida, à seção de Crepúsculo dos ídolos
intitulada “Como o ‘mundo verdadeiro’ tronou-se enfim uma fábula”, na qual, ­mediante
um pequeno esquema de seis pontos, Nietzsche condensa toda a história da filosofia,
de Platão ao seu Zaratustra, e a retrata como a manutenção do pressuposto metafísico
do “mundo verdadeiro” em contraposição ao “mundo aparente”. Essa oposição, com
efeito, é resolvida por Zaratustra no último tópico desta seção, com a abolição de ambos,
solução considerada pelo autor como o ponto culminante para a humanidade (GD/CI
“Como o mundo verdadeiro ‘tornou-se finalmente uma fábula’”).
Obviamente, esse pequeno esquema, escrito em 1888, já pressupõe aspectos que
ocupam o centro da reflexão madura de Nietzsche e que não podem ser aqui dire­tamente
tratados, tais como a concepção do mundo como vontade de poder e o pensamento do
eterno retorno do mesmo. Todavia, é certo que, como ponto de partida, a posição ado-
tada em Humano, demasiado humano, delineada em Aurora e que se faz decisivamente
presente em A gaia ciência e em Assim falava Zaratustra, pode fornecer dados impor-
tantes para a consideração e explicitação dos fatores que se alteraram e possibilitaram
a Nietzsche escrever uma obra de conteúdo filosófico peremptório para ele sob a forma
de exercício literário, que, muito embora comporte diferentes estilos, possui uma clara
ênfase ­artística.
A consideração da poesia em Humano, demasiado humano, em traços gerais, res­
pei­ta em muitos aspectos os mesmos pressupostos usados na interpretação da arte em
sentido amplo. Nesse momento ela é tomada por Nietzsche como experimentando a
mesma estagnação da arte em geral, causada por ligação e dependência excessiva com
o passado (MA II/HH II, OS § 176). O que lhe parece problemático, nesse caso, é a
consequência dessa ligação com o tempo presente, fortemente marcado ­pelas inter­

79
roberto barros

pretações teleológicas e superadoras do passado. Esses traços podem ser encontrados


nos aforismos no quarto capítulo do livro, intitulado “da Alma dos artistas e escritores”.
No que se refere à poesia, o § 148 dessa secção é significativo, pois evidencia os pres-
supostos da crítica de Nie­tzsche, mas também indica aspectos positivos da arte na
modernidade. Em um sentido geral, essa seção versa sobre a já mencionada i­ maturidade
das tradicionais formas de justificação da arte na atualidade. O título do aforismo já é
por si só sugestivo: “O poeta como facilitador (Erleichter) da vida”. Nele os poetas são
indicados como aqueles que, apesar de quererem facilitar a vida através de suas criações,
desviam o olhar da árdua atualidade, ou proporcionam que se veja o momento ilumi-
nado e com novas cores, porém com as que eles trazem do passado. Para isso, eles ne-
cessitam virar-se para trás e, assim, se tornam pontes para tempos e representações
longínquas, para religiões agonizantes ou mortas, meros epígonos (Epigonen), que jamais
propiciam ao homem uma efetiva cura de seus males, mas apenas paliativos para o
momento:

[os poetas] impedem os homens até mesmo de trabalhar pela efetiva melhoria de suas
condições, na medida em que superam precisamente a paixão da insatisfação, que
impulsiona à ação, com descargas p
­ aliativas (MA I/HH I § 148).

O que para Nietzsche constitui o fator próprio da decadência da arte na moder-


nidade consiste precisamente o status central adquirido pelo conhecimento científico
e pela sua nova concepção de veracidade e falsidade. O retorno aos antigos torna-se
problemático porque, diferentemente dos modernos, os antigos artistas não se iludiam
com a arte, mas deliberadamente cercavam e embelezavam a vida com mentiras (MA
I/HH I § 154). O poeta moderno, mesmo diante da constatação da superioridade
valorativa da verdade, ainda busca, sem sucesso, ofuscar essa característica e, anacroni-
camente, justificá-la como algo divino ou demoníaco e nisso ele fracassa c­ ompletamente,
pois a modernidade não respeita mais tais princípios. Mas Nietzsche busca ressaltar os
aspectos positivos desta constatação. Ele argumenta em favor da aversão ao forma­lismo
que o grande artista, o artista criador, então pode vivenciar. Afastado dos antigos – que
no seu apreço pela forma, mostravam-se ­exteriores às suas paixões e encantamentos e,
desse modo, como domadores da vontade (Willens-Bändiger), transformadores de ani-
mais (Thier-Verwandler), criadores de homens (Menschen-Schöpfer) e, de modo geral,
plasmadores (Bildner), transformadores e aperfeiçoadores da vida (Um-und ­Fortbildner
des Lebens) – o grande artista moderno pode ser, decisivamente, um desencadeador da
vontade (Entfesseler des Willens), porém ainda de modo desordenado e excessivo. Toda-
via, no contexto da possibilidade moderna de superação da crença no determinismo
metafísico, ele pode ainda ser interpretado positivamente, como um libertador da vida

80
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

(Befreier des Lebens), pois com sua atitude, ele pode desarrear, desagrilhoar e derrubar
(MA II/HH II § 172). Com isso, ele revela, novamente, funções primordiais da arte,
tais como o necessário, embelezar e tornar suportável a vida, assim como o ocultar e o
reinterpretar tudo que é feio, doloroso e horro­roso que irrompe da natureza (MA I/
HH I § 174).
O grande poeta moderno é aquele que, em seu ato de comunicar algo aos outros
homens,10 imprescindivelmente retorna à atividade ­poética original e mediante a au-
sência de respeito à forma, remete o ouvinte para um movimento de libertação das
convenções que o cercam. É por isso que ele não pode exercer a antiga exigência feita
pelos gregos aos seus poetas, de serem mestres dos adultos, pois neste caso o artista
moderno mostra-se como um mau mestre de si mesmo, como mau poeta e m ­ odelo,
portanto:

Nos casos mais favoráveis, como que a tímida, atraente pilha de ruínas de um templo
mas, ao mesmo tempo, uma caverna de desejos, com flores, figueiras, ervas daninhas
crescidas sobre ruínas, onde moram e visitam cobras, vermes, aranhas e pássaros – um
objeto para reflexões enlutadas acerca de por que agora o mais nobre e caro deve cres-
cer exatamente como ruína, sem o passado e o futuro do ser perfeito? (MA II/HH II
§ 172).

A dificuldade do poetar e da criação artística na modernidade repousa então basi­


ca­mente em dois aspectos: na inatualidade do seu referencial originário e no seu e­ xtravio
do sentido original deste mesmo referencial, que é o embelezar a vida (das Leben vers-
chönern) (MA II/HH II § 174). Um dos traços dessa condição é indicado como o afas­
tamento do antigo entendimento da arte como discurso de convenções, o qual, quando
é abolido, remete ao sacrifício da inteligibilidade (ibid., OS § 122). Mesmo vista desse
modo, a arte mantém um estatuto positivo nesse aforismo. Pois mesmo tendo indicadas
as suas limitações, ela, na interpre­tação de Nietzsche, ainda possui as c­ ondições e o
contexto de manter o seu antigo significado de potência embelezadora, mesmo em um
mundo no qual os pressupostos valorativos foram alterados (Fink, 1983, p. 52).
Todavia, Nietzsche insiste na indicação de que apenas a possibilidade da função
afirmativa da arte não é suficiente para poder lhe restituir significação. Isso apenas pode
ser levado a cabo em uma acepção mo­derna, científica, não mais fundada em concepção
ancestral e adequada aos padrões da contemporaneidade. As condições para isso Nie­

10
Para Young, esse aspecto demarca a espécie de poeta ao qual Nietzsche direciona o seu elogio;
não aquele voltado para vôos metafísicos (metaphysical flight), mas o que se volta para o futuro,
portanto o poeta voltado para a atualidade, apenas para a vida. O comentador indica ainda que
isso não significa que N
­ ietzsche caia em um naturalismo, mas sim que ele opta decisivamente
pela realidade (1992, p. 74).

81
roberto barros

tzsche indica já em Humano, demasiado humano I, quando refuta as formas u ­ nicamente


simbólicas de representação (MA II/HH II § 173). Os fatores decisivos para tal ­intento
demandam, todavia, a consideração histórico-crítica da proveniência das categorias
morais de valoração, como forma de evitar uma confiança excessiva na capacidade
cognitiva da ciência. Essas ca­tego­rias são responsáveis pela definição das formas dos
modos culturais de valoração e avaliação que, dentre outros casos, determinam os ­modos
de justificação da arte, sem, porém, jamais necessitar de uma verdade definitiva.

Ciência, moral e o renascimento da arte

Aurora, publicado em 1881, deixa transparecer a intenção de seu autor já em seu


subtítulo: “pensamentos acerca dos preconceitos morais”, que desde já indica a consi-
deração da moral como algo não imanente, mas de forma perspectivística.11 Se em
Humano, demasiado humano, Nietzsche encontra-se empenhado em marcar o seu afas-
tamento com respeito a Wagner e ao wagnerianismo, mostrando a vacuidade de
­qualquer projeto direcionado a uma redenção do homem teórico fundada em uma
perspectiva estética, em Aurora, ele aborda diretamente as causas da impossibilidade
desse anseio, as valorações morais. Por conseguinte, nesse livro, o filósofo aprofunda
sua reflexão a respeito dos valores morais atuantes na cultura e inicia a sua campanha
contra a sua essencialização e absolutização. Trata-se do início daquilo que Gilles
Deleuze chamou de a filosofia dos valores, ou seja, a única maneira de realizar a ­crítica
total da filosofia e que implica em uma inversão crítica (Deleuze. s.d, p. 6). Essa pode
ser entendida como o esforço do autor em mostrar que a moral, assim como os valores
que ela representa, tem uma proveniência e que na sua gênese agiu precisamente uma
força criadora, o que torna peri­gosa e empobrecedora toda rígida tentativa absoluta de
determinação moral.
Temas decisivos tratados nesse livro são a crítica das noções tradicio­nais de racio-
nalidade, de consciência e do Eu (M/A § 116), então analisadas não mais como puras
substancialidades, mas como produtos de processos fisiológicos. A isso acrescente-se a
análise do próprio processo de surgimento da forma tradicional de avaliação moral de
ambas, cujas origens remetem Nietzsche a uma análise crítica da influência de i­ mpulsos
vitais (M/A § 102), entendidas enquanto fontes de ­dogmatismos religiosos e ­metafísi­cos
assimilados pela cultura e pela ciência ocidental. Tais direcionamentos se opõem ao
posicionamento racionalista, a partir do qual a racionalidade poderia ser a fonte pri-

11
Para Nietzsche, considerações morais são sempre pré-determinadas (NF/FP KSA 10, 4 [133]), ele
não mais aceita hipóteses acercas de ações ou avaliações desinteressadas ou não egoístas. Para ele,
juízos trazem sempre consigo a expressão das valorações morais prévias, com as quais aquele que
avalia labora. Um dos objetivos centrais de Aurora é expor esses pontos de vista.

82
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

mordial de determinação de valores morais e de pressupostos epistemológicos neces-


sários. O autor percebe que a insistência neste padrão de consideração redunda de
maneira significativa na inércia da filosofia (M/A § 542), na delimitação de sua ­atividade
em um jogo conceitual abstrato, moralmente autojustifi­cado, que resultou em inevitável
distanciamento daquela com respeito à ciência e ao mundo.
Não se trata de negar e assim superar todas as valorações morais (M/A § 103),
mas de levar, a partir da compreensão da proveniência e não da necessidade fundante
delas, ao estabelecimento de um outro tipo de relação para com as mesmas (N/FP KSA
10, 4 [147]). Ao Compreendê-las como produtos humanos, afastando-as de qualquer
caráter ­essencial ou superior, significa em Nietzsche o desejo de suprimir-lhes toda
neces­sidade de veneração. Assim, é possível compreendê-las como outra coisa que
“obediência a costumes” (M/A § 9). O que Nietzsche almeja com isso é uma nova,
inaudita, amplitude para todos os domínios de ­interesse humano, pois a partir de então
todas as antigas dimensões e limites morais precisam ser revistos, sem a perspectiva de
uma valoração mais verídica, mas apenas de modos outros de valoração possíveis. Os
­impactos de uma tal perspectiva na filosofia de Nietzsche são significativos e infringem
direcionamentos decisivos às suas considerações acerca da ­ciência e da arte.
Com respeito à primeira, a impossibilidade de indeterminação moral – que não
consiste em ceticismo moral como contemporaneamente se insiste em se referir a essa
posição, mas antes na negação da possibilidade de seu determinismo – implica uma
amplitude de novas significações a serem experimentadas, cuja percepção acaba por
romper os domínios do saber e adentrar nos domínios da sensibilidade e então da arte,
pois a percepção deste novo contexto acaba por superar o pessimismo científico de
origem metafísica presente a seu ver no cerne da modernidade e por conferir n ­ ovamente
beleza à infinidade de significações então redescobertas. Mais especificamente, trata-se
de uma redescoberta, pois essa experiência já existira na atividade artística, antes do seu
rebaixamento moral levado a cabo pela metafísica. Ao ser desqualificada pela ­metafísica
em sua aspiração pelo incondicionado, não apenas a arte, mas o mundo sensoriamente
perceptível e simbolicamente expresso foi negado e banido do domínio das atividades
superiores em favor do mundo metafísico ou transcendente. A forma de oposição a esta
hierarquização em Nietzsche se dá em seu esforço por demonstrar a inexistência da
necessidade deste mundo, assim como da moral que o afirma. Desse modo, é-lhe pos-
sível romper com os formalismos impostos pela tradição, tal como os das relações ne-
cessárias e determinadas entre os domínios epistemológico, moral e estético. Assim, é
possível poder pleitear, mediante a consideração moral da ciência e da metafísica, a
justificação da primeira, aproximando-a da experiência simbólico-interpretativa da arte.
Isso é plausível para Nietzsche a partir da possibilidade da transformação da incomen-

83
roberto barros

surável amplitude significativa do existente em um critério estético de beleza (Schulz,


1983 p. 4), a partir da aferição de significação positiva mesmo à realidade mais feia, pois
essa passa a possuir novo e amoral potencial de significação.

A felicidade do homem do conhecimento (Erkennender) aumenta a beleza do mundo


e torna tudo o que existe mais ensolarado; o conhecimento põe sua beleza não só em
torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas – possa a humanidade futura dar o seu
testemunho dessa afirmação! (M/A § 550).

Assim pode-se falar de um ressurgimento de condições possibilitadoras da ativi-


dade artística criadora em Aurora. Todavia, essas decorrem não de uma tentativa de
refutação, mas da própria aspiração científica pelo saber que, liberta de todo d­ ogmatismo
moral, percebe-se ­aproximada da arte enquanto atividade interpretativa e plasmadora
do real (­Brusotti, 1998, p. 267). Para Nietzsche, é nesse sentido que se pode mencionar
a possibilidade de um renascimento da arte. Não da arte restrita a uma moralidade
excludente, mas de uma arte afirmativa, meio de um ­impulso criativo fundado nas
possibilidades de interpretação e reinterpretação, assim como na alegria e no desafio da
representação do existente (M/A § 468). Para isso, ela deve se tornar uma atividade
interpretativa e se justi­ficar pelo direcionar-se a outras bases e pressupostos que não os
da arte romântica. Mesmo quando ela faz uso de termos que podem ser rela­cio­nados a
essa, o faz em outro sentido, justificado-se não apenas no efeito, mas na força afirma-
tiva do modo de como ela se relaciona com o mundo e com a vida. É exatamente esse
princípio que Nietzsche deseja inovadoramente transpor para a filosofia e para a ­ciência
(M/A § 550), a fim de salvá-las do ceticismo (M/A § 477) e do pessimismo que ele
inter­preta no horizonte da modernidade e denuncia como sintoma de decadência.
O renascimento de novas possibilidades de justificação da arte é anunciado no
penúltimo aforismo de Aurora, após o autor ter empreendido todos os seus ataques ao
problema das convenções morais. Neste aforismo encontra-se uma passagem signifi-
cativa para a compreensão do reaparecimento afirmativo de possibilidades para uma
consideração da arte e de suas possibilidades. O aforismo, bastante sucinto, mas de
­grande significação, é o seguinte:

Poeta e pássaro – A Fênix mostra ao poeta um papel inflamado e ­quase carbonizado.


“Não te assustes! Diz ela, é a tua obra! É que não tinha o espírito do tempo, e ainda
menos o espírito dos que são contra o ­tempo: devia consequentemente ser queimada.
Mas é bom sinal. Há várias espécies de auroras” (M/A § 568) .

Se forem considerados o conteúdo e os pressupostos que Nietzsche indica no seu


livro posterior, A gaia ciência, esse aforismo contém cla­ramente a indicação do renascer

84
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

do discurso poético12 e, consequentemente, de suas novas possibilidades na moderni-


dade. O espírito contrário ao tempo aqui mencionado, se referido ao aforismo 225 de
Humano, demasiado ­humano I, pode ser facilmente reconhecido como o “Espírito livre”,
aquele que é uma criação do próprio autor, portanto, que antes não existia, mas que é
o espí­rito de seu tempo. A Fênix, como símbolo da ressurreição após a des­truição13,
indica o ressurgimento da poesia após a crítica em Humano, demasiado humano, o que
então requer que se o­ bserve quais as novas condições que tornaram isso possível.
O tema que começa a surgir aqui – e que expressa ­significativamente o horizonte
de Aurora, é o da transvaloração de todos os valores, ideia que tem o seu conceito for-
mulado em 1883 (Machado, 1999, p. 85), mas que já se encontra posto em algumas
anotações do outono de 1881: “Al­teração da valoração – é minha tarefa” (NF/FP: KSA
9, 11 [76], primavera – outono 1881).
O significado estético dessa alteração é indicado em outro ­fragmento do mesmo
período:

O belo, o asqueroso etc., é o juízo mais antigo. Tão logo ele p­ retenda a verdade abso-
luta, o juízo estético transforma-se em exigência moral.
Tão logo neguemos a verdade absoluta, devemos renunciar a todo exigir absoluto e
nos voltarmos para os juízos estéticos. Esta é a tarefa: criar uma abundância de valo-

12
Dois fragmentos póstumos, do outono de 1880, fornecem aspectos que possibilitam pensar em
uma tendência de Nietzsche em valorizar a poesia com relação à música depois de seu ­afastamento
de Wagner. No primeiro, ele afirma: “A música não tem mais som para o encantamento do e­ spírito,
ela quer reproduzir (wiedergeben) a condição do Fausto, Hamlet e Manfredo. Assim, ela mantém
afastado o espírito e pinta disposições de ânimo que são altamente desagradáveis, sem espírito ou
outra coisa que sirva para ver. Ela embrutece (vergröbert) e pinta o desconforto e o lamento, talvez
com espírito musical, porém que terrível é essa arte, quando ela pinta o feio sem critério: Que
martírio são os próprios tons, os ­maçantes tons” (NF/FP KSA 9, 6 [39]). Ainda nesse fragmento,
após falar da desnaturalização da música em seu tempo e da tendência dessa para o sentimento e
para os sentidos, o autor afirma com respeito à poesia: “O poeta é mais elevado que o músico, ele
eleva mais, diga-se a todos os homens, e o pensador tem ainda p ­ retensões mais elevadas” (ibid.).
Que uma tal mudança de perspectiva está relacionada com Wagner, pode-se confirmar no frag-
mento seguinte: “Eu amei o homem. Como ele vivia. Como em uma ilha e, sem ódio, se mantinha
­fechado do mundo. Assim eu entendia isso! Quão distante ele se tornou de mim, assim como ele
agora, nadando na torrente do egoísmo e da hostilidade nacional, vai ao encontro às necessidades
­religiosas deste povo emburrecido pela política e pela avidez pelo ­dinheiro. Antes eu pensava: ele
não tinha nada com a atualidade – eu era um louco completo.” (ibid., 6 [40]). Esses fragmentos
mostram que a valoração da poesia, a forma de expressão de Zaratustra, em detrimento da música
se dá devido à frustração de Nietzsche com Wagner.
13
Segundo Maria Cristina Ferraz, a figura da Fênix tal como aparece em várias passagens dos ­escritos
de Nietzsche (em § 208 e 209 de MM I/HH I, EH/EH Z § 1, M/A § 568, Z/Z “Do caminho do
criador”) é frequentemente empregada pelo filósofo para caracterizar a relação entre certo tipo de
criador e sua obra, entre o artista que transpôs o seu fogo para ela e que, mesmo transformando-se
em cinzas, encontra-se feliz por vê-lo preservado em sua obra. Segundo a autora, a figura da Fênix
se relaciona ainda com o pensamento do eterno retorno e com o dionisíaco, a partir da noção de
destruição e eternização pelo fogo. Cf. Ferraz, 1994, pp. 73-80.

85
roberto barros

rações estéticas com direitos iguais: para cada um indivíduo o último fato e a medida
das coisas.
Redução da moral à estética!!! (NF/FP: KSA 9, 11 [79], primavera – outono 1881).

Que Aurora – cuja arte é, todavia, a música (NF/FP: KSA 9, 12 [119], outono de
1981) –, contém a preparação para o ressurgimento da arte em A gaia ciência,14 a qual
tem como aspecto subjacente uma alteração dos valores fundada primeiramente na
decisiva negação da possibilidade de um pressuposto verdadeiro absoluto, Nietzsche
mesmo o indica em 1888, em Ecce homo, quando volta a comentar o seu livro e ­descreve
onde buscou a sua nova alvorada:

(...) uma transvaloração de todos os valores, em um livramento de todos valores morais,


em um dizer sim e ter confiança em tudo quanto foi até hoje proibido, desprezado,
maldito (EH/EH, M/A § 1) .

Um outro aspecto a ser trazido aqui à discussão, pois compõe um dado significa-
tivo para que se compreenda a nova tomada de posição de Nietzsche em A gaia ciência,
é que a transvaloração de todos os valores marca também o ressurgimento do ­dionisíaco
na filosofia do autor. Como ele próprio afirma, o primeiro momento da transvaloração
de valores se iniciara com O nascimento da tragédia e com a descoberta do dionisíaco
(GD/CI “O que devo aos antigos” § 5). Com respeito a esse ponto em particular, deve
ser lembrado que desde então o dionisíaco é ­diretamente contraposto ao socratismo e
à interpretação moral do mundo, isso em favor de uma perspectiva estética e de uma
concepção artística ­inovadoras.
Desse modo, o renascimento do poético anunciado em Aurora, filosoficamente
manifesto em A gaia ciência e que tem já em vista Assim falava Zaratustra, deve ser
compreendido segundo estes dois aspectos, a saber: o do projeto de transvaloração de
todos os valores – o qual em sua amplitude implica em uma mudança radical não ­apenas
no que se refere às formas de expressão, mas também decisivamente ao seu significado
e alcance – e com o reaparecimento da visão dionisíaca do mundo.
A inversão dos valores possibilita a reaparição positiva da arte e do dionisíaco, pois
são abolidas as antigas dicotomias de bom – mau, falso – verdadeiro, verdadeiro – apa-
rente, possibilitando assim a afirmação incondicional de tudo o que existe, aspecto
próprio daquele Deus e de sua arte. Esses mesmos traços se fazem presentes em A gaia
ciência e aparecerão decisivamente nas considerações posteriores de Nietzsche a r­ espeito
de Assim falava Zaratustra. Essa perspectiva estética transposta para o campo da ­atuação

14
Enquanto escrito, A gaia ciência foi inicialmente concebida por Nietzsche como um ­prosseguimento
de Aurora (Salaquarda, 1999, p. 76).

86
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

filosófica visa a restabelecer, ao pensar a condição de possibilidade dessa a partir da sua


aproximação da arte, justamente o seu traço originário que fora obliterado devido à
adequação da filosofia ao determinismo da moral. A suspeição com respeito à n ­ ecessidade
dos valores morais é aquilo que para Nietzsche marca o limiar da moder­nidade, que
então passa a ser caracterizada justamente pela compreensão de que formas de consi-
deração sem atribuição de valores não existem, de igual modo que verdades devem ser
compreendidas como formas de aferição de valor e, portanto, que não há verdades em
si mesmas (NF/FP: KSA 9, 3 [19], primavera de 1980). Assim, em A gaia ciência a arte,
liberta da tutela da verdade, passa a significar para Nietzsche a possibili­dade de ­expressão
simbólica e imoral da existência, que a embeleza quando a representa simbolicamente,
pois lhe revela e afirma a beleza por meio da evidência da infinidade de possibilidades
de consideração.
A filosofia compreendida por Nietzsche visa a esse mesmo r­ esultado, conferir ir-
restrita significação à existência, o que a aproxima da representatividade interpretativa
da arte. Entretanto, a esse respeito, é necessário diferenciar simbolização e falsificação.
A primeira se caracteriza como representação por meio de formas e modos não pe-
remptórios e que não necessita alterar valorativamente aquilo que representa, mas ­apenas
alterar-lhe a forma de percepção e expressão. A falsificação, por seu turno, significa a
moralização formalista, que impede e delimita ­arbitrariamente a experiência do repre-
sentado, chegando mesmo a negá-la ou buscando substituí-la por uma forma mais
positiva de expressão, ainda que por meio de mediações simbólicas tornadas v­ erdadeiras
por meio de alguma convicção moral (FW/GC § 334). A alegre ciência e a arte ­pensadas
por Nietzsche constituem o antípoda desta forma de manifestação moral. Elas visam
a levar à percepção de que na ciência as convicções não têm direito de cidadania, assim
como as boas razões devem ser rebaixadas ao domínio das hipóteses (ibid.).
As implicações mais significativas desses posicionamentos é o afastamento de toda
e qualquer justificação moral da objetividade e o remeti­mento ao perspectivismo sin-
gularista. Ambas são compreendidas como impulsos à exteriorização em busca de uma
aproximação afirmativa para com o mundo e para com a vida, que, porém, não podem
ser restringidos por pressuposições morais. A arte e ciência para Nietzsche devem ser
compreendidas como manifestações de singularidades que não temem expressar-se
enquanto tal, que se exteriorizam sem nenhuma pretensão pia de universalidade ou
verdade (FW/GC § 381), mas que sim o fazem apenas por um impulso instintivo
próprio (Kofman, 1983, p. 43), o qual apenas podem entender os que tiveram ­experiência
semelhante (FW/GC § 87 e § 93). A arte embeleza aquilo que representa, pois dá à
imperfeição das coisas novas formas de significação além da existência comum. Ela é
um convite à exteriorização, porque induz à autoexpressão, devido à afi­nidade da expe-

87
roberto barros

riência estética do artista com a dos demais homens. Esse caráter Nietzsche deseja
tornar comum tanto à arte quanto à ciência (NF/FP: KSA 9, 11 [23], primavera – ou-
tono de 1881).

Pelo que devemos ser gratos. – Foram primeiro os artistas e nomeadamente os do


teatro, que primeiro colocaram nos homens olhos e o­ uvidos para ver e ouvir com algum
divertimento aquilo que cada um é, aquilo que particularmente vive, aquilo que cada
um quer; primeiro eles nos ensinaram os valores do herói que se esconde no homem
ordinário, eles que ensinaram a arte de se autoconsiderar como herói, a distância e
significado e transfiguração de alguma forma – a arte de se “pôr em cena” ante a si
mesmo. Apenas assim nós conseguimos ultrapassar algum detalhe mesquinho de nós
mesmos!. Sem essa arte viveríamos sempre no primeiro plano e inteiramente no do-
mínio dessa ótica que faz parecer enorme o mais próximo e o mais vulgar, como se
deixasse a realidade aparecer em si mesma (FW/GC § 78).

A acentuação e o elogio da significação da experiência estética da arte, compreen-


dida amoralmente, como desejo de expressão e aparência, reabre a contenda entre razão
e sensibilidade, inaugurada pelo socratismo e, nesse momento, concede primazia à arte.
Ela é então posta como neces­sidade vital para aqueles que têm inclinação por ela e que,
por isso, não podem ser obrigados a se adequarem a um princípio universal falso que,
dogmatizado, é o responsável pela supressão de inúmeras outras formas de pensar e,
portanto, de possibilidades. Em A gaia ciência, portanto na obra que anuncia uma nova
experiência filosófica, Nietzsche associa deci­sivamente uma interpretação fisiopsicoló-
gica da aspiração humana pelo conhecimento a uma perspectiva valorativa, o que o faz
afastar-se de todas as formas de convencionalismos deterministas e rumar para um
experimentalismo interpretativo, não metafísico, concebido como resultado da análise
crítica dos processos de proveniência dos princípios tidos como fundamentais. Sua
intenção é demonstrar que o desejo de fixidez, que está na base de toda metafísica e da
moral e que as sustém, nada mais é que uma manifestação de ordenação e orientação,
cuja proveniência é primeiramente orgânica, mas que devido à tradição filosófico-ra-
cionalista, foi interpretada moralmente como possuindo uma origem justificada.

Proveniência do lógico. – De onde decorreu (entstanden) a lógica na cabeça humana?


Sabiamente do ilógico, cujo reino, na origem, há de ter sido ingente. Mas uma multi-
plicidade incontável de seres, que inferiam de modo diferente do que nós inferimos
agora, pereceram: isso poderia até mesmo ter sido mais verdadeiro! Quem, por e­ xemplo,
não soubesse descobrir o “igual” com suficiente constância, com respeito à alimentação
ou aos animais inimigos, quem, portanto, subsumia excessivamente demorado, era
demasiado cuidadoso na subsunção, tinha menor possibilidade de sobrevivência do
que aquele que em mesmo caso sobrevinha logo a igualdade. A inclinação ­preponderante,

88
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

porém, a tratar o semelhante como igual, uma inclinação ilógica – pois não há em si
nada igual –, criou primeiramente todos os fundamentos da lógica (FW/GC § 111).

Diferente do pensamento lógico, a arte relaciona criador e ­espectador de forma não


redutiva, muito embora o desejo de persuadir não possa ser excluído da ­perspectiva do
artista. A sua forma de imposição é, todavia, simbólica, sem a pretensão de exatidão, mas
sim de persuasão estética. Nesse sentido, considerados imoralmente, a arte e o pensa-
mento racional se aproximam, evidenciando que a valorização da universalização o­ rientada
pela lógica é determinada por valores culturais e não pela realidade de seus pressupostos.
Mas Nietzsche busca afirmar uma relação hierárquica outra no que diz respeito à mani­
festação artística. Nela é indicada a pos­sibilidade de existência de um princípio decisiva­
mente afirmativo, decorrente do caráter próprio da criação em detrimento da determina­
ção. Ele se apresenta na atuação simbólica, que produz uma diferenciação entre os homens
e os faz pensar em si mesmos como animais superiores e in­feriores – isso devido aos
primeiros: “pensarem que veem e ouvem indizivelmente mais e pensando veem e ouvem”
(FW/GC § 301). Essa superioridade se funda na significação criativa, propositiva e não
em axiomas ou dogmas morais ou essenciais. Tal aspecto determina um fator decisivo
de justificação da arte, que remete positivamente à sua possibilidade de criação e afir-
mação que, segundo Nietzsche, enriquece e eleva a vida e suas possibilidades, ao mesmo
tempo que possibilita a compreensão do aspecto valorativo de toda criação.

Nós, que pensando e sentindo somos os que fazem realmente e sem cessar alguma
coisa que ainda não existe – todo o mundo que sempre aumenta em avaliações, cores,
pesos, perspectivas, escalas, de afirmações e de negações. (…) O que possui valor ­neste
mundo atual, não o possui por si mesmo, segundo sua natureza – a natureza é sempre
sem valor: – porém atribuiu-se-lhe certa feita um valor e fomos nós que os demos, nós
os presenteadores! Nós criamos o mundo que interessa ao homem! Mas esta é precisa­
mente a ciência que nos falta, se a encontrarmos por um instante, a esquecemos no
seguinte; desconhecemos nossa melhor força e os contemplativos nos avaliam por
baixo – não somos nem tão orgulhosos, nem tão felizes quanto poderíamos ser (FW/
GC § 301).

O que há de se festejar na arte é precisamente a impossibilidade de se proferir ou


manter uma determinação, um juízo ou princípio universal acerca de qualquer coisa.
Nela até mesmo o formalismo é entendido como meio de expressão e não como ver-
dade, o que a torna um meio de autoconhecimento do homem, pois é uma ­representação
do mundo humano sem restrição de perspectivas.
O elogio da arte em A gaia ciência, ao mesmo tempo que reabilita p­ osicionamentos
anteriores de Nietzsche, tal como o da possível amoralidade e da força de ­embelezamento

89
roberto barros

da manifestação artística, apresenta ainda aspectos novos e de grande importância.


Dentre eles, é necessário notar que a reconsideração positiva da arte se dá conjunta-
mente com a proposta de uma nova ciência, que por si só implica em uma crítica da
noção tradicional de cientificidade. Esta é alvo de críticas, porque Nie­tzsche interpreta
nela, no seu desejo por uma explicação cabal e final do mundo, um aspecto negativo,
que é o do desmerecimento de tudo ­aquilo que não pode ser enquadrado nas suas ge-
neralizações e postulados.
No quinto livro de A gaia ciência é denunciada a periculosidade e restrição dessa
crença em um mundo compreendido cada vez mais segun­do as medidas e avaliações
estabelecidas pelo intelecto humano. O resultado mais evidente disso Nietzsche chama
de “mundo da verdade” (Welt der Wahrheit), cuja principal característica reside na ava-
liação negativa do caráter múltiplo da existência em favor de uma regularidade ­requerida
pela racionalidade humana (FW/GC § 373). Contra essa concepção ele alega, utilizan-
do-se do exemplo prático da arte, que talvez seja possível que o que é considerado como
aparente na existência possa vir a tornar-se o seu caráter específico, por conseguinte,
que a aparência nada mais venha a ser que aparência, sem, entretanto, necessitar possuir
uma e­ ssência (cf. Canções do príncipe Vogelfrei. Para Goethe). Isso significa compreender
que a expectativa de uma verdade acerca do mundo cria uma tensão valorativa entre
dois opostos que efetivamente não existem. A dicotomia verdade-falsidade é ilegítima
sob o ponto de vista do conhecimento, pois a compreensão dos processos de construção
do conhecimento humano pode demonstrar que ela não existe como algo efetivo.
Para Nietzsche, todo desejo de descrição final da realidade revela-se como um
resquício da aspiração metafísica pela verdade, o que é por ele ainda perceptível na
ciência.

Uma interpretação científica do mundo, como vós a entendeis, poderia por c­ onsequência
ser ainda uma das interpretações do mundo mais estúpidas, isto é, ser a mais pobre de
sentido de todas as interpretações de mundo. Isso dito ao pé de ouvido e à consciência
dos senhores mecanicistas, que atualmente gostam de transitar entre os filósofos e que
imaginam que a mecânica seria a doutrina das leis primeiras e últimas, sobre as quais,
como sobre um fundamento, toda a existência necessita ser edificada. Entretanto, um
mundo essencialmente mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sen-
tido (FW/GC § 373).

Opor-se a toda forma de dogmatismo e de moralização do saber consiste na mo-


tivação de Nietzsche e para isso ele busca referenciais na arte. Isso se evidencia no
aforismo acima citado, que é significativamente concluído com a hipótese de que o
modo mecânico-causal de consideração, aplicada à música, resultaria na não ­compreensão

90
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

desta. A oposição estabelecida aqui entre mecanicismo e música apresenta grande sig-
nificado quando entendido que para Nietzsche a música pode ser ­comparada ao jogo
de forças (FW/GC § 10) e assim se converte em um ­símbolo de indeterminação e de
ilimitadas possibilidades de manifestação. A ciência com influências metafísicas é então
mobilizada como o antípoda da expressão artística criadora e é, desse modo, caracteri-
zada por um elevado grau de restrição. Essa referência à música indica o cerne daquilo
que Nietzsche deseja criticar na ciência. Muito embora o aforismo se refira particular-
mente à física mecânica, as críticas direcionadas a ela podem ser estendidas a toda
ciência tradicional, de pretensões finalistas, pois se trata primeiramente de uma crítica
de seu modo de considerar voltado à tentativa de estabelecer determinações absolutas,
não importando as restrições das mesmas. Por outro lado, a arte, desvinculada dessa
pretensão (FW/GC § 85), pode ser tida como outra forma de se relacionar com o
mundo e com a existência, devido a sua forma de relacionamento com ambos.

Nossa última gratidão para com a arte. – Não tivéssemos mencionado boas as artes e
inventado essa espécie de culto ao não-verdadeiro: a compreensão da universal inver-
dade e mentira (Verlogenheit), que a­ gora nos é dada por intermédio da ciência – a
compreensão da ilusão e do erro como uma condição do existente que conhece e
sente –, não pode­ria ser suportada. A probidade (Redlichkeit) teria como consequência
o nojo e o suicídio. Mas agora a nossa probidade possui um poder opositor (Gegenmacht),
que nos ajuda a mitigar tais consequências: a arte como boa vontade (guten Wille) para
com a aparência. Nós não proibimos sempre nosso olho de arredondar, de poetar até
o fim: e então não é mais a eterna incompletude que transpomos sobre o rio do
devir – então pensamos portar uma deusa e somos orgulhosos e infantis nessa serven-
tia. Como fenômeno estético a existência, ainda é sempre suportável para nós e pela
arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, a partir de nós
mesmos, podermos realizar um tal fenômeno. Temos de nos serenar temporariamen-
te, por intermédio do olhar-nos de longe, de cima e de uma distância artística, rindo
e chorando de nós; nós temos de descobrir o herói, assim como o tolo que reside em
nossa paixão do conhecimento, temos de ocasionalmente alegrar-nos com nossa ­tolice,
para que possamos manter alegre a nossa sabedoria! (FW/GC § 107).

Com A gaia ciência, Nietzsche rompe com qualquer pretensão de um saber defi-
nitivo. A sua nova concepção de saber une a compreensão científica da inexistência da
verdade e do perspectivismo com o experimento criador da arte para então justificar a
ambos por meio da criação e do experimento (NF/FP: KSA10, 5 [1] 214, novembro
de 1882 – Feve­reiro 1883). É este movimento programático (Brusotti, 1998, p. 382)
que o leva a escrever Assim falava Zaratustra como obra filosófica, todavia escrita poe-
ticamente. Esse livro se insere no projeto de rever as tábuas valorativas sob as quais foi

91
roberto barros

erigida a cultura moderna e assim poder aspirar rever as antigas hierarquias em favor
da dinamicidade do pensamento. A perspectiva desta mudança não busca efetuar uma
condenação pura e simples da ciência e do conhecimento – do mesmo modo que não
afirma incondicionalmente toda manifestação artística – mas se empenha em fazer a
crítica da crença na infalibilidade de ambos e da necessidade da moral (FW/GC 335),
para então lhes propor uma outra forma de ver o mundo, a da arte liberta, não d ­ ogmática,
criadora, em contraposição às aspirações fixas por definições e valorações irretorquíveis.
No que concerne a esse ponto específico, é possível então iniciar a aproximação
entre A gaia ciência e Assim falava Zaratustra. Sob o ponto de vista dos pressupostos
que Nietzsche mobiliza naquele primeiro livro, percebe-se que nele se encontra o ­passo
definitivo para o experimento da forma que constitui Assim falava Zaratustra. É a
partir da afirmação do caráter múltiplo das perspectivas humanas, consideradas então
já sob a ótica do sentimento de Poder (FW/GC § 13), que resulta a crítica das formas
gregárias de avaliação (ibid., §§ 23; 116) e, o que desejamos acentuar aqui, dos pressu-
postos tradicionais de consideração da comunica­bilidade.
A respeito desta questão podem ser indicados os breves aforismos 179, 189 e 226
de A gaia ciência. Eles evidenciam o novo estatuto conferi­do por Nietzsche à linguagem
e ao estilo. Ambos não são mais r­ elaciona­dos à objetividade, à veracidade ou à neutra-
lidade. Antes, eles são decisi­va­mente considerados como formas perspectivísticas de
expressão, meios e formas observáveis das relações entre os homens e desses com o
­mundo. Neles podemos ler que Nietzsche compreende não apenas a impossibilidade
da expressão total dos sentimentos pelo pensamento (GC § 179), mas também a sim-
plificação do que é expresso por este (ibid., § 189). Es­ses aspectos, antes de constituírem
pontos de crítica, são indicados e saudados como ampliação das possibilidades de co-
municação, pois implicam na afirmação da necessidade do exercício de criação voltado
a formas indetermináveis de comunicação. Este posicionamento também deve ser en-
tendido como esforço, com vistas a uma libertação da l­inguagem com respeito à meta-
física (Marietti, 1997, p. 265), o que deve, todavia, resultar em uma tentativa de lhe
conferir não apenas maiores possibilida­des artísticas, mas também científicas, pois re-
mete o lidar com ela necessariamente ao exercício do experimento à criação. Esse po-
sicionamento, cujo pano de fundo é a própria percepção científica da impossibilidade
da verdade metafísica, não significa, todavia, o direcionamento a um ce­ticismo cientí-
fico, mas a indicação da necessidade de formas outras de justificação tanto da arte
quanto da ciência. Assim sendo, ele não significa a refutação da pretensão de cientifi-
cidade, ou do seu rigor; muito pelo contrário, significa o anúncio e o desejo de uma
forma ainda mais rigorosa de conhecimento, fundada na compreensão da atuação da
vontade de poder entre as perspectivas, que resulta decisivamente em uma atitude

92
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

perspectivo-interpretativa, da qual deve decorrer um elevado rigor das interpretações


que visam à amplitude e à validade.

Matemática. – Nós queremos introduzir em todas as ciências a ­sutileza e a severidade


das matemáticas, mas isso apenas é possível sem a c­ rença de que nesse caminho che-
garemos a conhecer as coisas, mas somente a determinar nossas relações humanas com
as coisas. A matemática é simplesmente o meio do conhecimento humano geral e
último (FW/GC § 246).

Apartado da moral e de seus sucedâneos, o rigor e a necessidade de probidade do


conhecimento levam Nietzsche a afirmar o aspecto humano deste. É precisamente a
compreensão desse caráter que o leva a afirmar que o ápice do conhecimento e de sua
busca consiste precisamente em compreender a impossibilidade de seu alcance (Marques,
2000, p. 196). Neste sentido, a arte é novamente mobilizada para remediar um possível
ceticismo pessimista com respeito ao conhecimento e à ciência. É ela que lhe fornece
argumentos para propor uma estetização da aspiração ­humana pelo saber. Com ela,
Nietzsche visa a mostrar que a motivação p ­ ropiciada pelo desfrute estético do conhecer,
do descobrir e da ampliação de novas possibilidades para o conhecimento, pode suplan-
tar o possível temor causado pela constatação da inexistência da verdade. A arte de que
fala Nietzsche é aquela que aprendeu a superar a elevada consideração de suas r­ epresenta­ções
(NF/FP: KSA 9, 5 [19], verão de 1880) e que assim não é mais tentada a ­considerá-las
como revelações. Isso deve assimilar a ciência, ela deve compreender que tornar o não
verdadeiro como verdadeiro, porém sem essencializá-lo, pode servir de grande impulso à
vida (ibid., 5 [22]) e à ciência, pois assim renascem possibilidades infinitas de ­consideração.
O mundo sem verdades absolutas, mas apenas condicionadas, é o mundo do pers-
pectivismo, no qual a amplitude tornada possível para o surgimento de novas possibili­
da­des de pensamento leva ao confronto criativo e seletivo entre perspectivas. Tal ­aspecto
é referido por Nietzsche no § 374 de A gaia ciência como um novo “infinito”, que reto-
mando o pressuposto do intelecto como fonte de nossas representações – agora não
mais tomadas como verdadeiras ou possivelmente essenciais – signi­fica a possibilidade
de criação de infinitas formas representacionais.

Mas penso que hoje pelo menos estamos distantes da risível imodéstia de decretar, a
partir de nosso ângulo, que somente dele é permitido ter perspectivas. Mais que isso,
o mundo tornou-se novamente “infinito” para nós: na medida em que não podemos
rejeitar a possibilidade de que ele encerre em si infinitas interpretações. Mais uma vez
acomete o grande calafrio – mas quem teria imediatamente desejo de divinizar no­
vamente este mundo monstruoso e desconhecido à maneira antiga? E então a adorar
o desconhecido como “O desconhecido”? Ah, são tantas possibilidades não divinas

93
roberto barros

(ungöttliche) de interpretação desse desconhecido, demasiada diabrura, estupidez, lou-


cura de interpretação – mesmo a nossa própria, humana, demasiadamente humana,
que nós conhecemos... (FW/GC § 374).

Perspectivismo significa o afastamento com relação a posicionamentos unilaterais


(Marques, 2000, p. 183) que podem exemplarmente ser constatados nas dicotomias
metafísicas e morais. Fazer a crítica d
­ esses posicionamentos consiste em afastar-se de
toda convicção de proferir um discurso ultimativamente verdadeiro, em oposição a um
falso. Esse aspecto é decisivo para a compreensão de A gaia ciência inserida no ­projeto
de transvaloração de valores e no mundo pensado como vontade de p ­ oder, mas também
a importância de sua posição como obra que antecede o experimento poético de Assim
falava Zaratustra, compreendido como obra filosófica.
A confirmação de que com Zaratustra se justifica como tal a partir da pressupo-
sição do fim da dicotomia entre falso e verdadeiro, podemos ler em um trecho posterior,
de Crepúsculo dos ídolos, ao qual já nos referimos anteriormente. A intenção do tópico
intitulado “Como o ‘mundo verdadeiro’ tornou-se enfim uma fábula”, ao qual acompa-
nha ainda o esclarecedor acréscimo: “A história de um erro”, é a de sinteticamente
mostrar a história da antiga criação de um “mundo verdadeiro” pela meta­física platô-
nica. A argumentação se pauta em indicar as diferentes formas com que tal criação
percorre a história da cultura ocidental, no interior da qual ela se torna inalcançável,
indemonstrável, intransmissível, desconhecida, inútil e supérflua, até ser finalmente
refutada. A conclusão do percurso de tal ideia se dá com Zaratustra, entretanto, não
com a simples refutação do mundo verdadeiro ou ainda com um remetimento ao seu
contrário, um mundo aparente, que também seria criado pela metafísica. Com a per-
sonagem nietzscheana ambos os mundos são abolidos.

Nós abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? O aparente talvez?… Não! com
o mundo verdadeiro abolimos também o mundo das aparências!
(Meio dia: momento da sombra mais curta, fim do erro mais d
­ emorado, ponto culmi-
nante da humanidade: Zaratustra.) (GD/CI “Mundo verdadeiro”, p. 81).

A rejeição dos mundos verdadeiro e aparente (Abel, 2010, p. 39) não se dá, por-
tanto, em favor de um princípio superior fundado na veracidade, mas afirma-se exata-
mente no espaço criado pela supressão deste pressuposto (Kaulbach, 1980, p. 167).
Nietzsche opta pela despoten­cialização da oposição instaurada pela metafísica, a partir
da ­demonstração genealógica do erro original que tal princípio constitui. É-lhe então
possível abandonar esta lógica dicotômica de consideração e optar por uma forma de
justificação baseada na força afirmativa da criação. A alegre ciência é o exercício destes
direcionamentos, do mesmo modo que o arrojo estilístico de Assim falava Zaratustra.

94
filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte

O experimento estilístico desse livro tem um significado decisivo para Nietzsche não
apenas pelos seus ensinamentos,15 mas pela sua significação com respeito a toda a
tradição metafísica que o autor almeja superar. Deste último aspecto trataremos nos
tópicos seguintes. Neste momento desejamos apenas acentuar que essa mudança de
rumo potencializa novamente a arte e as possibilidades de sua força de e­ mbelezamento
do mundo então concebido como unidade dinâmica indeterminável, o que torna a
criação artística uma forma privilegiada de expressão desse caráter, do mesmo modo
que de sua afirmação e embelezamento.

15
Como parece tornar evidente o fato de que os dois ensinamentos fundamentais do livro, o pensa-
mento do eterno retorno do mesmo e o ensinamento do além-do-homem, desaparecerem quase que
completamente dos escritos posteriores. As referências mais significativas a ambos e mesmo com
respeito a Zaratustra dizem respeito muito mais ao esclarecimento do percurso intelectual e espi-
ritual de Nietzsche, que o levaram a feitura da obra, que a tentativa de salvaguardar e afirmar a
pertinência teórica de ambos.

95
Capítulo III
A fala poética em Assim falava Zaratustra

Na segunda parte de Assim falava Zaratustra, no discurso intitulado Dos poetas, ao ser
indagado acerca da afirmação de que “Os poetas mentem excessivamente”,1 Zaratustra
exclui-se daqueles que fazem questionamentos acerca do porquê das coisas e então
direciona o esclarecimento da pergunta a sua experiência pessoal (Erlebnis). Em s­ eguida,
porém, ele mesmo faz referência a si como poeta, ao mesmo tempo em que afasta de
suas palavras qualquer aspiração à verdade, então colocada como princípio de fé: “A fé
não me faz bem-aventurado”, diz ele, “sobretudo a fé em mim” (Z/Z Dos poetas).
Entretanto, segundo Zaratustra, todos os poetas têm a crença de que percebem
mais das coisas existentes entre o céu e a terra, a partir do que se vangloriam em relação
a todos os outros mortais (ibid.). Daí serem eles os produtores de um mundo apenas
sonhado, o mundo elevado dos deuses e do além-do-homem.

Ah, há tantas coisas entre o céu e a terra com que somente os poetas se deixam sonhar!
E, especialmente, acima do céu: pois todos os deuses são parábolas e apreensão de poetas!
Em verdade, algo nos leva sempre para o alto – precisamente, para o reino das nuvens:
nelas pousamos as nossas coloridas roupagens e, então chamamo-lhes deuses e além-
-dos-homens (Z/Z II Dos poetas).

Mesmo que nas palavras seguintes Zaratustra afirme estar cansado dos poetas
(Z/Z II Dos poetas), isso se dá muito mais pela vaidade (Eitelkeit) e pela s­ uperficialidade
dos mesmos, que por qualquer outro argumento referente ao poetar, pois nesse r­ epousam
ainda esperanças:

Transformados eu via os poetas que voltavam o olhar para si mesmos.


Penitentes do espírito eu via chegar: O que cresceu deles.
Assim falava Zaratustra (Z/Z II Dos poetas).

Segundo tais aspectos, pode-se compreender que, para Nietzsche, nesse m ­ omento,
a fala poética já adquire uma outra significação e se justifica devido ao seu traço criador,
capaz de fomentar potencialidades humanas. Entretanto, o autor tenta evidenciar que

1
“Mas os poetas mentem em demasia”. Afirmação semelhante e que se refere à poesia encontra-se
em GC § 84 e, naquele momento, atribuída a Homero.

96
a fala poética em assim falava zaratustra

segundo esta nova ótica, ela jamais ultrapassa o nível de exteriorização individual daque­
le que faz uso dela. A expressão poética dos pensamentos de Zaratustra não r­ espeita o
anseio cristão da aspiração poética universal, quer dos pré-românticos como Hölderlin,
quer da filosofia da arte de Hegel (Heise, 1988, p. 14). A opção por ela em Assim ­falava
Zaratustra justifica-se por ser um elogio à expressão individual daquele que se entende
como apto e acessível a esta forma de linguagem e que, desse modo, não mais aspira à
universalidade, mas motivar outras subjetividades a realizar o mesmo. Assim, é ­superado
o conceito de verdade e a própria filosofia é compreendida como uma forma de ­expressão
singular, mas que aspira aceitação por parte de outras perspectivas. Essa noção é central
em Assim falava Zaratustra e expressa todo o horizonte transvalorativo de seu autor.
Esses traços podem ser demonstrados exemplarmente em duas passagens p­ resentes
na terceira parte de Assim falava Zaratustra, intituladas respectivamente de Da face e do
enigma e O convalescente. Na primeira, Zaratustra encontra-se em um barco e ­abandona
a ilha dos bem aventura­dos e a seus amigos. Nesse barco, motivado a falar, ele narra o
seu ­encontro com o espírito de gravidade (Geist der Schwere), que, meio anão, meio
toupeira, anuncia a queda de tudo o que fora lançado para o alto, nisso incluso o próprio
Zaratustra. Provocado pela repetição desta máxima proferida pelo anão, que tenta ­afirmar
a falta de sentido de toda busca por elevação, Zaratustra pronuncia o seu ensinamento
fundamental, o pensamento do retornar cíclico de todas as coisas que, porém, não é
desconhecido do seu adversário, que isso demonstra ao mencionar a mentira de toda
retidão, assim como a tortuosidade de toda verdade (Alle gerade lügt... Alle Wahrheit ist
krumm. Z/Z III Da face e do enigma § 2). Mas entre Zaratustra e o anão há uma dife-
rença decisiva: Zaratustra não se limita a simplesmente mencionar a circularidade de
tudo, como faz o seu opositor, ele a afirma. Isso torna o pensamento intolerável para o
seu adversário e o faz desaparecer, pois ele pode suportar ideia da circularidade, mas
não a sua aceitação, que significa a aquiescência também do declínio mencionado pelo
espírito de gravidade (Salaquarda, 1979, p. 33). Um aspecto tão relevante nessa p­ assagem
quanto o anúncio e a afirmação do pensamento do eterno retornar de todas as coisas é
a relutância de Zaratustra em pronunciá-lo. Ele menciona aos ouvintes o temor que
tinha de seus próprios pensamentos: “Assim eu falava, cada vez mais baixo, pois tinha
receio de meus próprios pensamentos e das intenções por detrás deles (Hintergedanken)”
(ibid.). O mesmo temor é demonstrado por Zaratustra na seção O covalescente. Nesta,
Zaratustra, após um tumultuado despertar, fala consigo mesmo: “levanta-te de meu
imo, pensamento abissal! Eu sou o teu galo e o teu alvorecer, verme dorminhoco! De
pé, de pé! A minha voz deve acordar-te!”
O pensamento abissal de Zaratustra é o pensamento do eterno retorno do mesmo,
que ele insta a falar do abismo mais profundo do seu eu (Z/Z III O convalescente § 1).

97
roberto barros

Esse, com efeito, consiste em uma das mais significativas fontes para a compreensão do
ensinamento em seu sentido individual. A esse respeito, a cena inicial, que descreve o
levantar de Zaratustra, é esclarecedora, devido a vários aspectos: Zaratustra é aquele
que com o seu canto desperta o seu próprio pensamento mais profundo, aquele que é,
em última análise, ele mesmo (Heidegger, 1997, p. 102), pois já está separado de toda
outra possibilidade de recurso à autoridade exterior a si mesmo. E assim lemos na
passagem seguinte:

Moves-te, espreguiças-te, agonizas? Levanta! Levanta! Não agonizar – falar-me é o


que deves! Zaratustra, o sem Deus, te chama!
Eu, Zaratustra, o anunciador da vida, o anunciador da dor, o anunciador do círculo –
chamo-te, meu mais abissal pensamento! (Z/Z III O convalescente § 1)

O pensamento abissal de Zaratustra é desperto pelo seu canto e é, antes de tudo,


seu pensamento, pois: “À toda alma pertence um outro mundo; para toda alma, qualquer
outra alma é um por trás do mundo” (hinterwelt) (ibid.). Com os dizeres referentes e
remetidos ao próprio eu de Zaratustra, Nietzsche indica o caráter particular de toda
forma de referência humana com respeito ao mundo. A sua insegurança em descrever
o seu pensamento – que é demonstrada pela comunicação desse não por ele mesmo,
mas pelos seus animais – evidencia o abandono da percepção de que qualquer imagem
ou menção do humano seja ou possa aspirar ser a expressão derradeira da totalidade e
da existência. Este ­traço se comprova imediatamente na consideração da fala, que é uma
loucura (Narrethei), pois com ela ele dança sobre todas as coisas e entrega-se à mentira
dos tons (Lüge der Töne). Para os que pensam como Zaratustra o mundo é um eterno
retornar de todas as coisas, um eterno florescer, transcorrer e morrer, tudo permanece
na roda do Ser (Rad des Seins). Devido a essa constatação, Zaratustra encontra-se
doente de sua própria redenção (Krank noch von der eigenen Erlösung/ Z/Z III O con-
valescente § 2), cujo consolo (Trost) por ele inventado é a necessidade de voltar a cantar
(wieder singen müsse). Para isso, ele necessita de novos cantos, de novas liras, para assim
carregar o seu próprio destino, que não foi ainda o de nenhum ser humano. O saber de
Zaratustra é a compreensão da singularidade de seu próprio destino e de seus perigos.
O primeiro deles inicia-se com o tornar-se ele mesmo e, portanto, com a necessidade
de aceitar o eterno retornar e o peso de sua própria existência (Salaquarda, 1979, p. 33).

Então bem sabem os teus animais, ó Zaratustra, quem és e quem necessi­tas te tornar: Tu
és o mestre do eterno retorno – este, agora, é o teu destino (Z/Z III O ­convalescente § 2).

O que marca a singularidade de Zaratustra é que ele ensina, interme­diado pelos


animais que o acompanham, o eterno retorno, com vistas a superar o grande fastio do

98
a fala poética em assim falava zaratustra

homem (Der grosse Überdruss am Menschen), suscitado pelo retornar do pequeno homem
(Z/Z III O convalescente § 2), e isso é feito a partir dos ensinamentos do eterno retorno
e do além-do-homem, entendidos como convicções advindas do seu meio-dia, m ­ omento
no qual os princípios de elevação do homem encontram-se com ele em maior simetria.
Mas como indicado no prólogo, o grande astro necessita dos homens como fonte de
significação. São esses que o v­ eneram. Por esse motivo, os ensinamentos de Zaratustra
permanecem criações do seu interior, ao qual ele se encontra restrito, o que não lhes
constitui argumento contrário, do mesmo modo que não o impede de querer transmi-
ti-los. A validade dos mesmos se justifica no desejo e nos perigos de sua exteriorização,
que se manifesta após a invenção do consolo do c­ anto, que, segundo os animais, possi-
bilita a Zaratustra carregar o seu grande e particular destino.
Se considerada, como veremos posteriormente, a relação intrínseca entre o ensina-
mento do além-do-homem e o ensinamento do eterno retorno (Abel, 1988, p. 190), en-
quanto criações do próprio Zaratustra, como produtos de sua inclinação artística indi-
cada na passagem anterior, pode-se compreendê-los como consolo ante a sua enfermi-
dade, causada pelo seu confronto com o seu próprio destino. Então a afirmação: “Para
mim – como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior” (Z/Z O convalescente §
2), associada à ideia de que com os nomes e sons os homens apenas dançam sobre as
coisas, ou ainda, de que a fala pode ser associada à mentira dos tons, impossibilita de
imediato a hipótese de Zaratustra proferir seus ensinamentos mediante o pressuposto
de uma verdade objetiva,2 passível de ser rigorosamente transmissível aos outros homens.
É o cansaço suscitado pela perpetuação da pequenez humana que faz com que
Zaratustra tenha de se confrontar com a responsabilidade do seu próprio destino e com
sua enfermidade. Se ele a supera com as suas canções, é porque ele já se livrou do
monstro moral que lhe penetra­ra na goela, sufocando-o.3 Esse é responsável por toda

2
No discurso intitulado Das moscas da feira, Zaratustra afirma: “Não invejes esses homens absolutos
e apressadores, ó amante da verdade! Nunca, até aqui, andou a verdade de braço dado com qualquer
ser absoluto” (Z/Z I).
3
Esta cena, não com Zaratustra como protagonista, mas com um pastor, encontra-se também na
terceira parte da obra, na passagem intitulada Da visão e do enigma. Nela após Zaratustra ter sido
perturbado pelo espírito de gravidade, confronta-se com ele proferindo, ainda timidamente, o seu
pensamento abissal. A exposição do ensinamento é interrompida por uivos, que Zaratustra pensa
serem eles de um cão; trata-se porém de ganidos de um homem, de um jovem pastor sufocado e
convulso devido a uma negra cobra que se lhe agarrara à garganta. Após tentar puxar a cobra, sem
conseguir, Zaratustra grita ao jovem que ele morda a cabeça do animal e a decepe. Ele, de quem a
identidade é o enigma, o faz, após o que levanta-se imediatamente, não mais um pastor, porém
como um homem que ri um riso que, segundo Zaratustra, nunca se extinguirá. Esta cena mostra
claramente a superação da moral, do espírito de gravidade e as novas possibilidades que se abrem
para a vida humana com a extirpação da moral que sufoca os homens; dai as palavras finais de
Zaratustra: “Meu anseio por esse riso me devora: oh, como posso, ainda, suportar viver! E como,
agora, suportaria morrer!” (Z/Z III, p. 202).

99
roberto barros

ideia do absolu­to, cuja supressão gera a vacuidade do incondicional. É com as suas can-
ções e poetar que Zaratustra suporta desde então o peso de seu destino e pode aspirar
pelo futuro e pelo além-do-homem. Nas palavras de Zaratustra:

Eu caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro, daquele futuro que
eu vejo.
E isso é toda a minha poesia e aspiração: que eu junte e componha em unidade o que
é fragmento e enigma e horrendo acaso.
E como suportaria eu ser homem, se o não fosse também, poeta e decifrador de ­enigmas
e redentor do acaso! (Z/Z II Da redenção).

A partir dessas indicações, podemos constatar que em Assim falava Zaratustra o


experimentalismo com o estilo está ligado a uma desvinculação teórica do princípio
tradicional de verdade (Abel, 2007, p. 27). Esse é um fator determinante às pretensões
artísticas e filosóficas de seu autor. Tendo-se em vista toda a acerba crítica feita por
Nietzsche aos pressupos­tos que inviabilizavam a união entre saber e arte, em Assim
falava Zaratustra este traço possui importância decisiva não apenas no que se refere ao
estilo, mas também à estrutura e à disposição das partes. A este respei­to, o ponto central
a ser aqui em seguida analisado é a posição do enunciado ensinamento do além-do-
-homem e a sua significação na estrutura argumentativa do livro.
O pensamento do eterno retorno do mesmo é o ensinamento funda­mental de
Assim falava Zaratustra, obra à qual Nietzsche se refere posteriormente como escrita a
partir de inspiração poética identificada como dionisíaca. Entretanto, tal concepção não
surge nessa obra e nem está unicamente relacionada a pressupostos artísticos que o
autor integra a sua filosofia. A sua elaboração, como mostram inúmeros estudos a res-
peito do tema, deve ser compreendida no contexto de um movimento de interesse e de
valorização das ciências naturais na Alemanha da segunda metade do século XIX, que
no ambiente filosófico é fortemente marcado pela tendência de retorno à filosofia
kantinana, anunciada por Otto Liebmann em seu livro de 1865 Kant e os epígonos (Kant
und die Epigonen). Nietzsche particularmente segue com entusiasmo o trabalho do
proto-neokantiano Friedrich Albert Lange, cuja significação para a sua filosofia não
deve ser minimizada.4 Mas ele acompanha também as posições defendidas por Ludwig
Von Hartman, Eugen Dühring, Otto Caspari e William Thompson, os quais sofreram
fortes influências de Afrikan Spir, mas também da pesquisa teórico-física (D’Iorio,

4
Acerca desse tema, que não pode ser desenvolvido aqui por questões textuais, devem ser feitas três
referências significativas. O artigo de Jörg Salaquarda, publicado em 1978 no volume 7 dos N
­ ietzsche
Studien, intitulado Nietsche und Lange, o livro de George L. Stack, Nietzsche and Lange (De G
­ ruyter,
1983) e, no Brasil, a premiada tese de doutorado do Prof. Rogério Lopes (UFMG), intitulada
Naturalização do transcendental, defendida em 2008.

100
a fala poética em assim falava zaratustra

2006, p. 78). Isso o leva, com respeito à física, a afastar-se do pressuposto da estabi­lidade
substancial, que ele interpreta como conceito oriundo da metafísica, assim como das
ideias de linearidade, de determinação e de antropomorfização da natureza. A mobili-
zação de pressupostos das ciências naturais em oposição à reflexão metafísica finda por
fornecer-lhe pressupostos para criticar posições defendidas por filósofos de grande
renome na época – Caspari, Hartmann e Düring – devido a insustentabilidade ­científica,
em sua visão, de suas posições. A insistência dos filósofos neste modelo de ­pensamento
lhe evidencia o horizonte de significação moral e perspectivística das ciências (ibid., p. 94).
Todavia, a relação de Nietzsche no que se refere a elas permanece crítica. Mesmo com
a mobilização de r­esultados da investigação científica ele permanece cético no que
tange à ­possibilidade de dados definitivos e inalteráveis referentes às suas descobertas.
Os ­dados científicos que mobilizam o seu interesse se referem prioritariamente à b ­ usca
de argumentos demonstráveis com vistas a evidenciar a própria temporalidade dos
resultados e das perspectivas científicas. Em consonância com o movimento de t­ ransição
do problema da relação sujeito-objeto para o da relação objeto-conceito, própria do
século XIX (Rehinberger, 2007, p. 11), Nietzsche aproxima a ciência da história com
vistas a se afastar de qualquer essencialização da primeira (Marietti, 1997, p. 263). Sua
abordagem direciona-se marcadamente ao problema da conceituação, da origem de
nossas referências com respeito ao mundo e essa abordagem o leva a um sentido outro
que o da filosofia idealista alemã. O seu objetivo não é mais descrever um suposto pro­
cesso de objetivação do pensamento, que para a filosofia racionalista é tomado como
evidente. Ele busca demonstrar a construção e a dimensão histórica dos princípios nos
quais essa pressuposição se baseia. Todavia, o pensar histórico em Nie­tzsche não se
associa com qualquer forma de teleologia ou de processualismo, mas com ele o autor
visa desconstruir valorativamente toda forma de dogmatismo por meio da evidenciação
de sua proeminência histórica. Um importante instrumento de implementação desse
empreendimento – que apenas de modo superficial poderia ser tratado aqui – é a ­análise
psicológica baseada na noção de estímulo (Reiz), bastante presente no horizonte do
neokantismo alemão da segunda metade do século XIX (Lambert, 2000, p. 23) e que
possibilita evidenciar o processo interno, não imediatamente autoconsciente, de constru­
ção de nossas ­representações do mundo e mesmo da linguagem (MM I/ HDH I § 11).
Esse direcionamento apresenta consequências decisivas no que se refere ao con-
teúdo e à forma de comunicação do pensamento do eterno retorno nos escritos de
Nietzsche. Ele esclarece a forma comedida com que o mesmo é anunciado nos escritos
publicados. Por seu intermédio deve-se compreender a própria tentativa de Nietzsche
de buscar argumentos científicos de justificação ao pensamento do retornar de todas as
coisas. Essa tentativa se baseia fundamentalmente em encontrar argumentos sólidos na

101
roberto barros

própria ciência, os quais possibilitem a demonstração da incoerência do desejo de conhe­


cer com qualquer forma teleológica ou causal de interpretação do existente. Ante a
percepção da fragilidade das justificações metafísicas do saber, Nietzsche interpreta o
desejo de conhe­cer como motivado por princípios não inteiramente relacionados à
verdade. Segundo ele, a aspiração pelo saber pode ser esclarecida em outros níveis, tais
como o fisiológico e o psíquico, ela pode ser entendida enquan­to necessidade orgânica
– do mesmo modo que a lógica – ou ainda segundo o pressuposto da vontade de poder,
que também pode ser constatado no orgânico (Fleischer, 1993, p. 120).
Essas vias de interpretação possibilitam a Nietzsche retomar a perspectiva da
morte da arte enunciada em O nascimento da tragédia, dessa vez com vistas à refutação
dos princípios de sua decadência. Seu intento é demonstrar que conhecimento e arte
apenas foram dissociados pela invenção da verdade metafísica, que em última análise
caracteriza-se por uma perspectiva artística inestética. Ciência e arte podem ser asso-
ciadas em dois pontos determinantes, a saber: (a) A partir da produção simbólica, seja
por meio de imagens, sons ou conceitos, que não necessitam ser remetidos, como pen-
saram Sócrates e Platão, a um axioma. (b) Em segundo lugar, por meio da percepção,
por parte da própria ciência, da inexistência e mesmo da impossibilidade da verdade, o
que remete Nie­tzsche a prescindir desta para a justificação do conhecimento (Kaulbach,
1990, p. 229). Mediante tais pressupostos ele interpreta como evidente a autodissolução
da verdade e isso implica na impossibilidade de essencia­lização de qualquer ­pensamento.
Os efeitos de tais posicionamentos possuem influência decisiva na forma e no
estilo de comunicação do pensamento do eterno retorno. Nietzsche faz uso de três
formas estilísticas para comunicá-lo: O ensaio, o aforismo e a narrativa (Nehamas, 1991,
p. 35). A mudança deve indicar, em oposição à tradição metafísica, o afastamento da
ideia de verdade, assim como o perspectivismo dela resultante (ibid., p. 35). A esse
respei­to, podem ser aqui mencionadas duas referências importantes a ele nas obras
publicadas. Primeiramente, a menção de forma ensaística à circularidade do existente
na segunda das considerações extemporâneas. Mesmo de modo crítico o pressuposto
do retornar dos acontecimentos é mencionado utilizando o conjuntivo II (HL/HL §
2) e é contra­posto à exaltação olímpica da vida e não à veracidade icônica (ikonische[r]
Wahrhaftigkeit) da história monumental. Uma segunda referência importante e que se
opõe a essa, evidenciando uma alteração de Nietzsche na forma de consideração do
pensamento se dá por meio da metáfora da destruição e do renascimento no já ante-
riormente mencionado aforismo 568 de Aurora. Esse aforismo aproxima, por meio da
figura da Fênix, as duas referências dos ensinamentos da narrativa referente a Zaratus-
tra, constituindo com isso uma unidade temática de diferentes estilos que pode, como
acentua Nehamas, indicar a independência de ideia e de estilo (Nehamas, 1991, p. 57).

102
a fala poética em assim falava zaratustra

Esta aproximação, porém, não ocorre por paridade de ­pressupostos, mas por similari-
dades artísticas, o que significa semelhanças estéticas. A história monumental encontra
a sua justificação, a sua causae e o seu e­ ffectus, na produção do “exemplar e no digno de
ser imitado” (­vorbildlich und nachahmungswürdig) (HL/HL § 2), como forma sugestiva
de afirmação vital, precisamente naquilo cujas possibilidades Nietzsche antevê priori-
tariamente na arte. A história monumental, apologética e relacionada ao épico e ao
renascimento da arte, anunciada mediante a metáfora da fênix grega, aproxima os en-
sinamentos de ­Zaratustra ao dos gregos pré-socráticos, todavia não decisivamente dos
filósofos, mas dos artístas (Cancik, 2000, p. 109-112), daqueles que não conheceram e
não necessitaram da verdade enquanto fundamento. Esta proximidade remete a um
aspecto não menos ­decisivo: tanto a história monumental, quanto a poesia e a tragédia
gregas se baseiam na transmissão de princípios cuja assimilação é individual (Collins,
1997, p. 293). Elas se caracterizam não por transmitir modelos ou princípios morais
absolutos ou isentos de contradições – como Platão acentua em sua crítica à poesia
homérica em A república. O seu fundamento é a geração de uma experiência de criação
de represen­tações de mundo que Nietzsche identifica como estético-fisiológica e que
é inerente à arte. O alvo da arte grega e da história monumental, do mesmo modo que
dos ensinamentos de Zaratustra, não é a humanidade quantitativa, mas o homem jus-
tificado pela individualidade afirmativo-criadora.
O pensamento do eterno retorno adquire com isso uma pluralidade de contextua-
lizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais, estéticas, cos-
mológicas, mas também evidencia uma experiência física redutível ao indivíduo. Se lhe
cogitarmos um conteúdo ético atinente ao seu sentido cosmológico,5 precisamos tam-
bém compreender, como anteriormente mencionado, que na filosofia de Nietzsche,
pensada a partir do princípio teórico da vontade de poder, universalismos são interpre-
tados como fundamentalmente perspectivos (Fleischer, M., 1993, p. 35), ou seja, como
manifestações pulsionais direcionadas à sintetização de verdades, mas não com a pres-
suposição da possibilidade de que essas possam se constituir em princípios universais
incondicionados (Abel, 1998, p. 189). O caráter fisiológico do pensar em Nietzsche
pode ser mobilizado para aproximar os diferentes sentidos que o eterno retorno a­ glutina,
pois é por meio dele que Nietzsche problematiza e nega a possibilidade de fixação da
verdade, ao demonstrá-la como necessidade orgânica (FW/GC § 111). A inclinação
humana à ciência apenas pode ser interpretada como uma necessidade natural, se a
verdade for compreendida como metáfora, como necessidade fisiológica (Moore, 2002,
p. 74), e que por esse motivo deve ser apartada de toda conotação metafísica. O mesmo

5
Muito embora não podendo restringi-los a esses aspectos. Conf. Marton, 2000, p. 93.

103
roberto barros

vale para as pretensões morais e cosmológicas, sem que isso porém signifique recair em
um pessimismo cético, pois a ausência da verdade não é mais um problema a ser supe-
rado e, por conseguinte, a afirmação da inexistência da verdade metafísica não implica
na contradição da inverdade de sua afirmação. É neste sentido que parece poder ser
compreendido o caráter e a pretensão de demonstração científica do eterno retornar de
todas as coisas. Em Nietzsche, o perspectivismo pare­ce seguir os mesmos caminhos da
física de seu tempo, que, porém, tende não à verdade ou à fixidez, mas ao experimen-
talismo, sendo este decisivamente não dogmático ou metafísico. Antes, a sua forma de
justificação baseia-se na ideia de uma grande possibilidade de perspectivas sustentáveis,
ao que Nietzsche acrescenta o pressuposto de um incessante conflito entre elas. A for­
ma de exposição de pressupostos do pensamento passa então a não ser decisiva para a
aceitação ou não daquilo que se deseja comunicar, a partir do ponto de vista de sua li-
berdade criativa ­frente a delimitações morais. Isso leva o postulado da liberdade ­criativa
do pensamento não à verdade científica em sentido clássico, mas ao experimento a­ rtístico
como forma de convencimento (Marton, 2000, p. 109), porém com irrealizáveis preten­
sões hegemônicas. O traço não universalizante do pensamento do eterno retornar de
todas as coisas se a­ presenta significativamente presente em Ecce homo e nos prefácios
de 1886, cuja finalidade era fornecer esclarecimentos sobre o significado filosófico, mas
também existencial da obra do autor, assim como fazer entender os sen­ti­dos dos ensina­
mentos de Zaratustra. A partir destas possibilidades interpretativas – relacionadas ­tanto
à oposição à metafísica e a sua teleologia, quanto ao experimento estilístico entendido
como símbolo de liberdade ante as formas históricas de cerceamento do pensamento e
de sua expressão que ele identifica na tradição filosófica ocidental – d ­ esejamos aqui
indicar dois aspectos associados e imprescindíveis aos direcionamentos temáticos pro-
postos: a) A significação do estilo e da forma de anúncio do pensamento do eterno
retorno em obras publicadas e, b) o caráter individual da justificação estilística em
Nietzsche, permitida pela negação da possibilidade de uma verdade peremptória. Por
meio deles tenciona-se evidenciar a importância do experimento filosófico-estético em
Assim falava Zaratustra (Loeb, 2013, p. 926), compreendido enquanto produto da ade-
quação de pressupostos artísticos à filosofia (Kaulbach. 1980, p. 270).
Partindo das indicações de Nietzsche em Ecce homo encontramos importantes
indicativos acerca da história de seu Zaratustra que se mostram com particular riqueza
de conteúdo, no que diz respeito à compreensão estilística de seus direcionamentos.
Quando o autor indica que fora na primavera de 1881 que lhe ocorreu a ideia do e­ terno
retorno do mesmo, a tese fundamental de Zaratustra, ele se refere a um r­ enascimento
da arte de ouvir e que, por esse motivo, dever-se-ia considerar Assim falava Zaratustra
como uma obra musical (EH/EH Zaratustra § 1).

104
a fala poética em assim falava zaratustra

A metáfora, indicada como a expressão desse momento, é a de uma Fênix musical.


Entretanto, segundo Nietzsche, o parto (Niederkunft), que trouxera a obra ao mundo
se daria apenas dezoito meses depois, em 1883, sendo que, nesse período intervalar,
nasce A gaia ciência, “que tem ­centenas de sinais da proximidade de algo sem ­semelhante,
afinal ela dá inclusive o início de Zaratustra, na penúltima parte do quarto livro, ela dá
o pensa­mento abissal” (ibid., § 1). Conforme a análise dessa referência, c­ om­preende-se
que tanto no que concerne à concepção, como à forma de comunicação do ­pensamento
do eterno retorno, Nietzsche encontra-se envolvido com uma ideia de atividade filosó-
fica cujo modelo de criação e de expressão é o da arte e, em especial, o da música e da
poesia, aspectos que devem ser analisados na consideração do significado da obra de
seus diferentes estilos e na forma de comunicação dos seus ensinamentos.
Portanto, como aspecto importante à compreensão dessa relação, deve ser i­ ndicado
que desde O nascimento da tragédia o impulso artístico remete Nietzsche a um ­afastamento
das formas clássicas de exposição do pensamento filosófico; em especial, da forma do
sistema e com aspiração à determinação das regras de exposição,6 o que é ­determinante
na forma de comunicação do pensamento do eterno retorno e que claramente ainda se
evidencia em Assim falava Zaratustra (Groddeck, 1997, p. 187). A esse respeito, deve
ser citada aqui novamente a influência de Goethe e de Schiller nesta tomada de posição.
Enquanto leitor atento da Correspon­dência entre Schiller e Goethe e do prefácio de Noiva
de Messina no ­período da elaboração de sua obra inaugural, Nietzsche assimila de a­ mbos
a problemática de uma nova estética, que busca fundir a percepção concreta da natu-
reza com símbolos estéticos. Dessa leitura, decorre a decisiva problematização da r­ elação
entre palavra (épico) e música (lírica), que não apenas lentamente o afasta de Wagner
(Venturelli, 1989, p. 192), mas que determina aspectos decisivos de sua “metafísica do
artista”, como a afirmação segundo a qual apenas como fenômeno estético a vida pode
ser justificada (ibid., p. 199). Partindo dessa interpretação, observemos que Nietzsche
relaciona o renascimento da arte de ouvir com o seu retorno a um Pathos afirmativo por
excelência, por ele entendido como Phatos trágico (EH/EH Zaratustra § 1), que n ­ aquele
momento, escreve, faz-se presente no Hino à Vida, composição para coro e orquestra
surgida dois anos antes na casa de E. W. Fritsch, com letra de Lou Salomé, cujo s­ entido,
segundo o filósofo, pode ser compreendido nos últimos versos: “A dor não aparece ali

6
Mesmo que não concordemos aqui com a perspectiva de uma sistematicidade da filosofia de
Nietzsche defendida por Löwith (1986, p. 17), o autor não deixa de indicar com pertinência o
aspecto importante de que o que o filósofo combatia nos sistemas filosóficos não era a unidade
metodológica que motiva a vontade fundamental de conhecer, mas sim que o que é renegado no
pensar sistemático é a sua clausura dogmática em um mundo simulado. (dogmatisch fixiert und
“­verklausulierte” Welt).

105
roberto barros

como objeção contra a vida: ‘se já não tens alegria para me dar, pois bem! tens ainda a
tua dor’”.7
O renascimento do trágico, assim considerado, parece decorrer do afastamento do
otimismo teórico da filosofia metafísica e da própria ciência, o que remete Nietzsche à
compreensão da indeterminação das coisas e nele redunda na aceitação do sofrimento,
e na sua anexação à vida, aspecto que exprimem a sua experiência naquele momento
(EH/EH Zara­tustra § 5). A continuidade do relato inclui a descrição de alguns mo-
mentos da vida do autor e de aspectos relativos ao surgimento de suas obras. É a partir
disso que o filósofo afirma ter surgido o primeiro Zaratustra, o personagem como tipo
(Typus), cujo entendimento tem como pressuposto fundamental, a condição fisiológica
da “grande saúde” (­grosse Gesundheit). A compreensão dessa noção como traço pessoal,
remete a um dos últimos trechos do quinto livro de Gaia ciência (ibid., § 2); com ­efeito,
diz o referido texto integralmente citado pelo autor:

Nós – os novos, inominados, difíceis de compreender, os nascidos prematuros para um


futuro ainda não demonstrado – necessitamos para um novo fim também de um novo
meio, precisamos de nova saúde, mais forte, mais arguta, mais tenaz, mais ousada e mais
alegre do que foram todas as saúdes até então. Aquela cuja alma tem sede de vivenciar
(erlebt) todo o âmbito dos valores e desejos (Wünschenbarkeiten) até então; de visitar
todas as costas deste “mediterrâneo” (Mittelmeers) ideal; aquela que quer c­onhecer
pelas aventuras de sua própria experiência (Erfahrung) – como diz a coragem de um
conquistador e de um explorador do ideal – um artista, um santo, do mesmo modo de
um legislador, de um sábio (Gelehrten), de um homem pio, de um adivinho, de um
apóstata (Göttlich-Abseitigen) no velho estilo. Para isso, ele tem antes de tudo ­necessidade
de uma coisa: da grande saúde, aquela que não apenas se tem, mas que c­ onstantemente
se adquire e se necessita conquistar, porque se a negligencia (preisgiebet) incessante­
mente – e é ­necessário negligenciar (preisgeben)!... E agora, após termos estado tanto
tempo a caminho, nós, argonautas do ideal (Argonauten des Ideals), mais corajosos do
que é prudente, náufragos mais que habituais e lesos, mas, como fora dito, mais sau-
dáveis do que se nos desejaria permitir, perigosamente saudáveis, sempre novamente
saudáveis – quer nos parecer, como se nós, como pagamento, tivéssemos à nossa f­ rente
7
“Der Schmerz gilt nicht als Einwand gegen das Leben: ‘Hast du kein Glück mehr übrig mir zu geben,
Wohlan! Noch hast du deine Pein...” A respeito da repercussão no próprio autor desses pensamentos,
segundo Kaulbach, Lou Salomé oferece dados decisivos; em um de seus relatos, ela se refere ao
comportamento de Nietzsche no período em que ele lidava detidamente com o pensamento do
eterno retorno. Ela se refere aos seguintes aspectos: “Verdadeiramente ele se envolvia com aqueles
pensamentos como uma inabalável fatalidade que o queria mudar e estilhaçar; ele se distinguia pelo
ânimo de colocar ao alcance para si e para os homens uma irrefutável verdade. Inesquecíveis são
para mim as horas nas quais ele me confiava algo, primeiro como um mistério, em cuja confirmação
e autenticação ele ­confiava: apenas em voz baixa e falando com todos os sinais de um profundo
espanto. E ele indicava efetivamente que a consciência do eterno retorno da vida lhe deveria ser
algo terrível” (Salomé, Apud. Kaulbach, 1985, p. 40).

106
a fala poética em assim falava zaratustra

uma terra desconhecida, cujas fronteiras ninguém vislumbrou, um além de todas as


terras, rincões do ideal, um mundo tão rico de coisas belas, estranhas, questionáveis,
terríveis e divinas, que nossa curiosidade, do mesmo modo que nossa sede de posse, se
extasiariam – como nós poderíamos nos deixar satisfa­zer nesses momentos – e com
um tal apetite na consciência e no saber – e ainda com o homem atual? Ruim o sufi-
ciente, mas inevitável, que nós apenas possamos olhar – ou até mesmo nem os p ­ ossamos
olhar – com uma nauseante seriedade impaciente para seus mais altos alvos e e­ speranças.
Outro ideal corre diante de nós: um ideal maravilhoso, experimental, rico em perigos,
com o qual nós não gostaríamos de persuadir ninguém, porque nós não declaramos
facilmente a ninguém o direito a ele: o ideal de um espírito ingênuo, isto é, que
­indesejosamente, com sentimentos pululantes e potencialidade, joga com tudo o que
até aqui foi chamado de sagrado, bom, intocável, divino, de onde tira o povo de modo
barato suas medidas de valor, tais como perigo, decadência, subjugo ou minimamente
como repouso, cegueira, esquecimento tempo­rário. O ideal de um humano supra-
-humano (übermenschlich) bem estar e benevolência, que parecerá com ­suficiente fre-
quência inumano, como por exemplo, se colocar ao lado de toda atual seriedade ­terrena,
de toda festividade dos modos, palavra, som, olhar, moral e tarefa, como sua paródia
mais corpórea e involuntária – e com a qual, apesar de tudo isso, somente então c­ omeça
a grande seriedade, o questionamento primeiramente colocado, o destino da alma
altera-se, o ponteiro retorna, a tragédia começa… (FW/GC § 382).

De acordo com as indicações contidas nesse aforismo, a relação ­entre os homens


novos, difíceis de compreender, os precursores de um futuro ainda não demonstrado,
indica claramente aqueles a quem Nietzsche espera que compreendam as ideias do tipo
Zaratustra; aqueles que devem mudar o rumo do filosofar e de seu tempo, o que de-
monstra a seletividade do ensinamento.8 A saúde mais vigorosa caracteriza o aspecto
fisiológico necessário à aceitação do saber trágico, mas que também exige intrepidez na
escolha do reconhecimento e aceitação incondicional de todos os valores e aspirações
existentes até então. Disso decorre a sua sede de aventuras por meio da própria expe-
riência e explorações, capacidade que caracteriza um explorador do ideal, do “mediterrâ­
neo”, ideal a ser descoberto e conquistado.
Nesse delineamento do que Nietzsche entende por grandeza de saúde, encontram-
-se numerosos aspectos que se relacionam claramente à própria existência do autor e
esta com as suas formulações filosóficas, aspecto decisivo para que se compreenda a
significação da opção estilística em sua filosofia. Uma forma de considerar esse ­aspecto
consiste em relacioná-lo com a concepção de mundo segundo a ótica da vontade de

8
O que pode ser constatado nos versos de Zaratustra: “traço em volta de mim, círculos e fronteiras
sagradas; vai diminuindo sempre o número dos que sobem comigo aos altos cumes, onde seduz
montanha cada vez mais alta, de cumeadas mais e mais inacessíveis” (EH/EH Zaratustra § 6).

107
roberto barros

poder, que se faz presente nos apontamentos do período que antecede a primeira publi­
cação de A gaia ciência, mas é definitivamente mencionada no décimo terceiro aforismo
deste mesmo livro e constitui assim um importante pressuposto à compreensão das
pretensões de Assim falava Zaratustra.9
A pesquisa desenvolvida por Wolfgang Müller-Lauter acerca da doutrina da von-
tade de poder chega à constatação de que ao pensar o mundo segundo essa concepção,
Nietzsche o concebia como uma dissensão de vontades conflitantes, tendo por única
finalidade o aumento do âmbito de atuação de sua força. Desse modo, para Müller-
-Lauter, a vontade não teria outra finalidade a não ser a ampliação do alcance e da
imposição de seu poder, tornando a existência sem nenhuma outra finalidade que não
essa, o que revela o traço de mobilidade e indeterminação do mundo:

O mundo de que fala Nietzsche revela-se como jogo e rivalidade de forças ou de von­
tades de poder. Se ponderarmos, de início, que essas aglomerações de quanta de poder
ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades conti-
nuamente mutáveis, não porém da unidade (Müller-Lauter, 1997, p. 75).

Relacionando esta interpretação ao conteúdo do aforismo citado, a “grande saúde”


pode ser entendida como a capacidade de suportar as possibilidades da vida entendida
como multiplicidade e o mundo como vontade de poder, mas que, por isso, jamais pode
ser compreendida como aquisição definitiva. Ela está associada à metáfora do lançar-se
ao mar e, tal como esta, refere-se ao afastamento da segurança da terra, à ­constante
reconquista, a não permanência de estados, de modo que a opção por ela implica ­também
a aceitação de sua perda constante e na necessidade de sua reaquisição. É justamente
isso que caracteriza os argonautas do ideal, aqueles que são “mais corajosos do que
exige a prudência” e que têm diante de si um mundo sem fronteiras, rico de coisas be­
las, estranhas e dúbias, terríveis e divinas. O tema do lançar-se ao mar é introduzido
decisivamente nos textos do período intermediário, desde Aurora (M/M § 575). Com
ele, Nietzsche apresenta metaforicamente o afastamento da estabilidade da terra em
prol de navegar sem destinos definidos. A opção pelo mar decorre da compreensão de
que a terra, entendida enquanto fonte de fixidez e estabilidade, não mais existe (FW/
GC § 124). Lançar-se ao mar significa uma viagem no infinito desconhecido, uma
alegoria da superação do niilismo enquanto consequência da morte de Deus (Hufnagel,
2008, p. 153). À ideia do navegar rumo ao desconhecido associam-se ainda duas pers-
pectivas: a da beleza e da sedução do desconhecimento do mundo (FW/GC § 382) a

9
Gerdhardt, Volker. Da vontade de poder. Para a gênese e interpretação da fi­ losofia do poder em
Nietzsche, In: Frederico Nietzsche. Cem anos após o projeto “vontade de poder – transmutação de
todos os valores”, Org. de Antônio Marques. Lisboa: Vega, 2012, p. 13.

108
a fala poética em assim falava zaratustra

partir do fim do p ­ rincípio de verdade, e a do amor fati (ibid., § 276), enquanto amor
pela vida tragica­mente pensada, em todas as suas consequências.
Esse novo horizonte pensado segundo o princípio da vontade de poder implica a
aceitação da verdade da existência de mundos perspectivos e antagônicos (Müller-­Lauter,
p. 11), aos quais estão limitados ­todos os quanta de poder; concepção que torna insus-
tentável a aspiração por um princípio doutrinal universal, ou mesmo a possibilidade de
comunicação integral de algo.

A totalidade do mundo orgânico é o enredamento de seres com poetizados pequenos


mundos em torno de si: no qual eles exteriorizam suas forças, seus desejos, seus cos-
tumes nas suas experiências, como mundo exterior (Außerwelt). A capacidade de criar
(figurar, inventar, poetizar) é a sua capacidade elementar (Grundfährigkeit): de si mes-
mos têm naturalmente apenas tal representação falsa poetizada simplificada (NF/FP:
KSA 11, 34 [247] Abril-junho de 1885).

A essa condição Müller-Lauter chama de mundos perspectivos e indica ainda que,


na filosofia de Nietzsche, não resultam numa ­somatória de perspectivas, pois elas são
completamente incongruentes (ibid., p. 101).
Segundo tais aspectos, compreender o mundo como vontade de poder remete o
indivíduo a compreender a necessidade de fazer a escolha de exteriorizar-se, de modo
a buscar ampliar o círculo de atuação de seu poder, ou então, submeter-se às outras
vontades eternamente atuantes.10 Müller-Lauter nos indica ainda que essa e­ xteriorização
se dá por meio de interpretações, e desse modo não há nenhuma interpretação correta.
O mundo deve ser desde então compreendido como soma de forças, o que já constitui
uma interpretação perspectivista dele, no qual a noção de verdade seria a intensificação
do poder pressupondo a infinita interpretabilidade (ibid., p. 126). Desse modo, expli-
cita-se o traço de que, para a filosofia da vontade de poder, não pode haver um caráter
meramente contemplativo, porque ela própria é expressão do querer poder em um
mundo liberto de toda tentativa de determinação última e fundamental, ou segundo o
próprio Nietzsche:

Compreendei finalmente o que em verdade sois! Deus está morto, combatei também
então a sua sombra! As tábuas de valores que até aqui elevastes sobre vós não tem
10
A indicação da relação entre as noções de individualidade e vontade de poder pode ser lida no
fragmento do outono de 1887: “O individualismo é uma modesta e ainda inconsciente espécie de
‘vontade de poder’; aqui mostra-se o suficiente do indivíduo: para se livrar (freizukommen) da pre-
dominância da sociedade (seja essa do Estado ou da igreja…), ele se coloca não como pessoa em
oposição, porém claramente como indivíduo (Einzelner); ele representa toda particularidade
(­Einzelnen) contra a coletividade (Gesammtheit). Isso significa que ele se coloca instintivamente como
igual a de todos os particulares. O que ele combate, combate não como pessoa (Person), porém como
indivíduo (Einzelner) contra a coletividade” (NF/FP: KSA 12, 10 [82] (202), outono de 1887).

109
roberto barros

nenhuma validade! Não nos deixeis determi­nar por esses valores, determinais vós mes-
mos os valores! Transvalo­rai os valores antigos; a partir de vossa autocompreensão como
querer-poder, criai novos valores (ibid., p. 135).

Assim, interpretar consiste em criar, em poder transformador, que na consideração


de Müller-Lauter, remete a dois aspectos diretamente relacionados tanto com o além-
-do-homem como com o ensinamento do eterno retorno:11 primeiramente, que a ob-
tenção de novas perspectivas caracteriza a elevação do homem e ainda, que a ­filosofia
entendida como interpretação das interpretações não se compreende em Nietzsche co­mo
absoluta; pelo contrário, por seu intermédio deseja-se a compreender tudo como inter-
pretação (Müller-Lauter, 1978, p. 149).
Mas, a partir desses aspectos, retornemos ao aforismo 382 de A gaia ciência e à
noção de “grande saúde”, a fim de melhor indicar os traços que o remetem ao pensa-
mento do eterno retorno do mesmo e ao seu fundo individual. Segundo o aforismo, a
“grande saúde” faz com que aqueles que puderam optar por ela se separem dos homens
atuais, pois um outro ideal lhes corre à frente, desconhecido, mas que é o ideal de um
“espírito que brinca ingenuamente”, sem intenções e com excesso de forças; o que ul-
trapassa tudo aquilo que serve de razão e medida para os demais e que é considerado a
partir de então como perigo de decomposição, rebaixamento, esquecimento de si. Esse
ideal parece sobre humano, inumano, quando comparado a tudo o que foi sério, ­terrestre,
solene, moral. A verdadeira seriedade inicia-se apenas nesse momento, com o v­ erdadeiro
problema, o do destino da alma, do retorno do indicador para a compreen­são trágica
do mundo.
Essa compreensão, por sua vez, nasce do questionamento dos ­valores morais e da
grande aventura que disso decorre, da necessidade de criar novos valores.12 Isso ­implica
a refutação da moral como medida a­ bsoluta, significa a reabertura da questão do s­ entido
11
Pois a importância da escolha individual já fora posta no próprio questionamento feito ao indivíduo
no momento da revelação do eterno retornar de todas as coisas, o que implica a noção de individua­
lidades diferenciadas e, portanto, conflitantes. A relação entre vontade de poder e o eterno retorno
é indicada também por Eugen Fink (1972, p. 180), que indica a primeira concepção como a fonte
do devir e, portanto, com o eterno retorno do mesmo.
12
Ao analisar a peculiaridade da linguagem que profere o eterno retorno do mesmo, Kaulbach i­ ndica
que esses valores são pensados por Nietzsche como distanciados e mesmo em oposição aos da
tradição religiosa e filosófica, mas que nem por isso são valores reativos – antes, são oriundos de um
desejo consciente de criar sentidos mundanos, os quais, em sua positividade, são passíveis de serem
eternamente desejados e assim afirma a significação e a validade do eterno retorno. ­Acentuando o
traço racional da crítica de Nietzsche à racionalidade, Kaulbach chama esse aspecto de autarquia
da razão perspectiva (Autarkie der perspektivischen Vernunft), que em oposição e como constatação
das consequências do fracasso dos ­pressupostos tradicionais, do perspectivismo moral e da crença
em um sentido pré-­determinado para o mundo, implica a necessidade de reflexão sobre o sentido
dado pela razão perspectiva e a possibilidade de poetizar e filosofar mediante a fantasia do “Pathos
trágico” (tragisches Pathos) Kaubach (1985, p. 48).

110
a fala poética em assim falava zaratustra

da existência e um remetimento ao novo desafio apresentado por esta nova c­ ompreensão.


O abandono dos antigos valores morais e dos pressupostos interpretativos neles ­fundados
recoloca a existência como universo de possibilidades ignoradas e exige daquele que
deseja lançar-se nela a “grande saúde”, ou a capacidade de suportar os perigos e sofri-
mentos que o viver nessas condições pressupõe e ainda o anseio por elas e pela neces-
sidade de nelas criar. Ela implica um viver sem restrições, fundamentalmente isento de
qualquer depreciação do caráter móvel, indeterminado e conflitante do mundo.13
Pode-se dizer, portanto, que a “grande saúde” é necessária em um mundo com­
preen­dido como vontade de poder e, desse modo, segundo o pensamento do eterno
retorno, no qual o indivíduo, momentaneamente diante dessas duas constatações e do
perigo da vontade de nada, cria para si um novo ideal, que é, em verdade, uma oposição
a todo idealismo, o que o torna inquiridor e criador. O criar (schaffen), distanciado dos
pressupostos m ­ orais da tradição, desdobra-se em possibilidades incontáveis e é aproxi-
mado por comparação da criação artística, o que acentua o seu caráter não objetivo. A
indicação da ­importância desse aspecto para a compreensão do pensamento do eterno
retorno e da forma de seu anúncio é indicada por Nietzsche em Ecce homo e com ­relação
a Assim falava Zaratustra. Nesse momento, o autor afirma que se pode justificar a sua
nova concepção de mundo a partir da noção de “Inspiração” (Inspiration), cuja signifi-
cação é relacionada com a antiga noção de inspiração dos poetas de outrora segundo a
qual: “Por pequeno que seja o vestígio da superstição, dentro de si o homem não s­ aberia
repelir a sensação de que seria a representação, mero porta-voz, mero médium de po-
deres superiores” (EH/EH Z/Z § 3).
Com a inspiração não supersticiosa relaciona-se também a noção de revelação
(Offenbarung), indicada como a compreensão repentina de uma certeza que abala e
altera até o mais fundo do ser. Apenas então surge o pensamento, como necessidade
absoluta, sem tateio, sem escolha, relacionado à plenitude de alegria em que formas
extremas do s­ ofrimento e do terror aparecem como partes integrantes e indispensáveis;
desse modo: “como cores necessárias no interior de uma tal superabundância de luz;
relação de instintos rítmicos, que abrange em suas relações um exagerado mundo de
formas” (ibid., § 3). Isso ocorre, afirma o autor, “no mais alto grau da ­involuntariedade”
(unfreiwillig) (ibid., § 3), como uma torrente de sentimento de liberdade, de plenitude,

13
Acerca do que escreve Fink: “Ora, essa construção apriorística, ‘a compreensão ontológica’, é um
ser coisal, que nós pensamos graças às categorias, aos conceitos do entendimento – não tem ne-
nhuma ‘validade objetiva’, é a mentira de uma pressuposição fundamental pertencente à razão
humana. O único real é exclusivamente o vir-a-ser – não um vir a ser de um ente já aí, que se
modificaria, mas um puro vir-a-ser, um escoamento e um fluxo incessante, um movimento sem fim,
essa ‘vida’ jorrando do mundo, que está presente por toda parte, que produz tudo e a tudo aniquila”
(1972, p. 178).

111
roberto barros

de poder, de divindade e então: “A involuntariedade das imagens, das metáforas é o


mais notável; não se tem mais conceitos do que é figura e do que é signo, tudo ­oferece-se
como a mais próxima, a mais correta, a mais simples expressão” (ibid Zaratustra § 3).
Segundo Nietzsche isso se mostra efetivamente nas palavras de Zaratustra: “como
se as coisas mesmas chegassem e se oferecessem para converterem-se em símbolos”
(ibid. § 2). Essa, com efeito, é a ­experiência de Nietzsche de inspiração que, segundo
ele, necessitar-se-ia retornar séculos para encontrar alguém que pudesse dizer possuir
a mesma (ibid. § 3). É por isso que Assim falava Zaratustra coloca-se como trabalho
singular dentre todos os outros, inalcançável até mesmo pelos maiores poetas (ibid. § 6)
e cujo ato excelso (höchste That), a visão do “dionisíaco”, faz com que todas as ações
humanas pareçam pobres e limitadas.
Zaratustra é, por conseguinte, o anunciador do eterno retorno do mesmo e isso
também significa o possibilitador de um ressurgir do dionisíaco enquanto forma de
compreensão ilimitada, amoral e artística do mundo, que permite a compreensão una
da existência, mas modo contrário às antigas morais.14

Ele contradiz com cada palavra, as maiores afirmações do espírito; nele, todas as con-
tradições se conciliam em uma nova unidade. As mais elevadas e as mais baixas forças
da natureza humana, o que há de mais doce, de mais tênue, o que há de mais terrível,
manam de uma fonte com imortal segurança (EH/EH Z/Z § 6).

Zaratustra refuta a antiga moral porque retorna à natureza e a compreende como


una, pondo fim à separação até então imposta entre aparên­cia e essência. Para ele, tudo
é existência, até mesmo o que é percebido como o objeto da imaginação. Por isso, antes
de Zaratustra, escreve Nie­tzsche: “Não se sabe até então o que é grandeza, o que é
profundidade: menos ainda o que é verdade” (ibid., § 6). Segundo essa nova amplitude,
a afirmação das possibilidades da simbolização restaura o valor da superficialidade da
imagem e se afasta de qualquer especulação acerca do funda­mento determinante. A
existência deixa de ser encarada como problema, para então ser vista unicamente como
una em sua manifestação. Nisso consiste a sabedoria de Zaratustra, a sua penetração
psicológica, que resulta que: “a mais poderosa força de simbolização que existiu até
agora é pobre e brincadeira contra este retorno da linguagem à natureza da figuração
(Bildlichkeit)” (EH/EH Z § 6). Essa aceitação incondicional da existência – mas tam-
bém esse novo confronto com ela devido ao seu traço dionisíaco – a constatação do
ocaso dos antigos valores morais, remete à superação do homem estagnado pelos ­antigos
dogmas, leva-o, por conseguinte, ao além-do-homem, que pode ser então ­compreendido

14
A presença dessa oposição na filosofia de Nietzsche é indicada por Heidegger (2000, p. 36), ao
afirmar que desde o início da metafísica ocidental o Ser é ­tomado no sentido da estabilidade.

112
a fala poética em assim falava zaratustra

como a mais alta realidade, que coloca abaixo de si tudo o que até então se chamou
grande (ibid.).
Esse, escreve Nietzsche, é o próprio conceito de Dionísio (ibid.), que remete à
consideração do problema psicológico do tipo Zaratustra:

Como aquele que em um grau inaudito diz não, que nega tudo para o que até então
se disse sim. Todavia pode ser a oposição a um espírito de negação, como aquele que
é o mais pesado, o do destino. Uma ­fatalidade na tarefa de espíritos carregados e, entre­
tanto, o que pode ser o mais leve e afastado – Zaratustra é um dançarino -: Como
aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade (Realität) (ibid., Z/Z § 6).

A reposta a essa questão advém justamente da compreensão de que os “­pensamentos


abissais” (abgründlichste Gedanken), possibilitados por Zaratustra, não acham objeção
contra a existência, mesmo contra o ­eterno retorno (ewige Wiederkunft), o que consiste,
segundo Nietzsche, novamente na própria compreensão de Dionísio.
A tarefa de Zaratustra, que é também a de seu autor: “é a afirmação até a justifi-
cação e até mesmo a redenção de todo o passado” (ibid., Z/Z § 8), sendo que o sentido
dessa tarefa comporta dois significados: a) A aceitação dionisíaca de tudo o que e­ xiste
e existiu, enquanto necessidade de perpetuação de uma existência eternamente cam-
biante e conflitante, que tem sua riqueza justamente nesses aspectos, mas também b) o
desejo do porvir, do futuro, que aceitando todo o passado, integra-o a si, e o redime,
mediante a sua aspiração pela mudança: “Redimir o passado e tudo ‘o que foi’ para
transmutar (umzuschaffen) um ‘assim eu o queria!’ – isso eu chamaria primeiramente
redenção” (ibid., Z/Z § 8).
O homem posto diante dessa nova compreensão não intelectiva do mundo e da
existência, aceita a dor e não deseja a piedade, traços típicos daquilo que Zaratustra
denomina como o grande asco (grosse Ekel ). Ele passa a ser considerado ­primeiramente
a partir de suas possibilidades, como pedra que necessita de figuração. O deixar de
querer, de valorar e de criar é então denominado de o grande cansaço (grosse Müdigkeit),
ao qual é contraposta a vontade de procriar (Wille zur Zeugung), motivo de a­ fastamento
da crença em deuses e outros mundos, por necessidade de criar e de retorno aos homens
(EH/EH Z/Z § 8). Essa é a tarefa de Zaratustra, mostrar aos homens novamente a
necessidade do ansiar por novas pos­si­bilidades, a expressão do destino do homem (EH/
EH, Porque sou um destino § 1), cuja figura fundamental é a do além-do-homem.
A partir do conteúdo dessa seção de Ecce homo, compreende-se que o e­ nsinamento
do eterno retorno do mesmo exige uma nova forma de consideração da existência que,
antes de tudo, exclui toda pressuposição depreciativa dela e a afirma ­incondicionalmente.15
15
Pois, como escreve Heidegger (2000, p. 31), comentando a afirmação de Nietzsche de que o valor

113
roberto barros

Trata-se do saber dionisíaco, da manifestação dos instintos naturais e artísticos que,


desse modo, coloca-se em total contraposição aos valores modernos.16 O dionisíaco de
que fala Nietzsche jamais significou simplesmente um retorno ao mitológico, mas se
insere na ampla percepção e consequência de sua interpretação da crise dos ­pressupostos
tradicionais do pensamento ocidental (Figal, 2008, p. 37). Ele pressupõe a necessidade
da transvalo­ra­ção dos valores, pois é o ato decisivo de retorno da humanidade a si pró­
pria e que no autor se faz carne e gênio (EH/EH Porque sou um d­ estino § 1). O eterno
retornar pensado dionisiacamente é compreendido não a partir de pressupostos metafí­
sicos, mas como meio de reconferir valor à existência imanente, o que Nietzsche ­expressa
na metáfora do retorno à terra e ao homem – esse porém pensado individualmente e
segundo a sua força ativa e criativa. O princípio do pensamento do eterno retorno não
pressupõe um mundo efetivamente compreendido, mas experimentado como indeter-
minação e como jogo estético (Grlic, 1985, p. 41), que, desse modo, é também afasta-
mento de todo idealismo com pretensão ao absoluto (Müller – Lauter, 1971, p. 116/8).
É a partir disso que Nietzsche pode afirmar: “Seu ensinamento, e só ele, considera a
veracidade como superior virtude – e isso significa a oposição à covardia (Feigheit) do
‘idealista’ que foge perante a realidade” (EH/EH Porque sou um destino § 3).
O ensinamento do eterno retorno do mesmo é o ensinamento capital de ­Zaratustra,
considerado como aquele que profere novamente a sabedoria amoral, destrutiva, porém
afirmativa de Dionísio (EH/EH Porque sou um destino § 2), que compreende a ampli-
tude da existência, a aceita e mesmo a deseja, em seus mais estranhos, problemáticos e
terríveis casos, para deles desfrutar esteticamente. Destarte, ela exige uma nova p
­ ostura
diante do mundo e cria a imagem do além-do-homem como ­símbolo da necessidade
humana de superar a si mesmo. Assim compreendido, o conteúdo e­ stético do ensina-
mento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa
para a existência humana (NF/FP: 9 II [165], primavera – outono de 1881). Seu sig-
nificado para o indivíduo singular deve ser pensado como contraposição às g­ eneralizações
sem conteúdo efetivo do saber científico,17 como solução para o vazio decorrente da

pleno do mundo não pode ser avaliado, não se trata de negar a capacidade do homem de avaliar o
valor do mundo, mas que tal conceito de valor é totalmente incompreensível. Buscar um valor
total do mundo, continua o filósofo, significaria condicionar o incondicionado ao condicionado, o
que marcaria na filosofia de Nietzsche a constatação da incompreensão metafísica de que o caráter
do mundo é o do eterno devir e que portanto o existente em sua totalidade não tem nenhum valor.
16
Ou com o resultado ao qual chegaram esses valores, trata-se do Niilismo, ou seja, o resultado final
do desejo de verdade acerca do existente, que resulta na própria destruição da veracidade (Müller-
-Lauter, 1971, p. 116.) e, portanto, no desmascaramento da crença no verdadeiro mundo, o que
resulta na compreensão do Niilismo como consequência da moral e conduz à sua superação, através
da aceitação do pensamento do eterno retorno (Kaulbach, 1985, p. 33).
17
Marton escreve a este respeito: “Com o eterno retorno, Nietzsche desautoriza as filosofias que
supõem uma teleologia objetiva governando a existência, desabona as teorias científicas que presu-

114
a fala poética em assim falava zaratustra

compreensão do fracasso da metafísica e da percepção da morte de Deus. O ­movimento


cíclico e retroativo que o ensinamento anuncia adquire importância primeiramente para
o indivíduo, que não deve ser entendido como sujeito moral ou ontológico, mas como
aquele que compreende e aceita a existência unicamente como um jogo de forças eter-
namente conflitantes, sem fim, e que deve assumir a responsabili­dade de sua própria
existência. Sob o ponto de vista filosófico, o eterno retorno ­pressupõe a não estabilida-
de da existência e uma alternativa para todo pensamento teleológico. Determinante
para a compreensão dessa concepção é a significação desse pensamento para o homem
em sua singularidade, o que reduz o tom cosmológico do ensinamento a sua significa-
ção vital.

O mundo das forças não sofre nenhuma diminuição: pois, antes, ele teria se tornado
fraco e morreria no tempo infinito. O mundo das forças não sofre nenhuma p
­ aralisação:
pois ela teria sido alcançada antes, e o relógio da existência alcançaria momentos de
calma. O mundo das forças não chega nunca a um equilíbrio, ele não tem nunca um
­momento de calma, sua força e seu movimento são igualmente grandes em cada t­ empo.
Quais estados esse mundo também pode apenas alcançar, ele necessita o ter alcançado
não apenas uma vez, mas incontáveis vezes. Assim, esse momento: ele já foi uma vez
e muitas vezes retornará do mesmo modo, toda força se difunde desse modo, como
agora: e do mes­mo modo o coloca com o momento, desse dar à luz, que é a criança do
agora. Homem! Toda a tua vida será como uma ampulheta, será sempre invertida e
sempre voltará a correr – um grande minuto de tempo, até todas as condições, das quais
tu tornaste, no correr circular do mundo, novamente se encontram. Então encontras
cada dor e cada desejo, cada amigo e cada inimigo, cada esperança e cada erro, cada
vergôntea e cada vista do sol novamente, a plena conexão de todas as coisas. Esse anel,
do qual tu és um grão, resplandece sempre novamente. E em cada anel da existência
humana (Menschen-Daseins) em geral, há sempre uma hora onde um, então muitos,
então todos os mais poderosos pensamentos emergem, do eterno retornar de todas as
coisas – isto é, dentre todas as vezes para a humanidade, a hora do meio dia (FP: 9 II
[148]. Primavera – outono de 1881).

Desse modo, o ensinamento do eterno retorno pode ser c­ onsiderado como uma
forma de percepção da existência, que mesmo ­interpretada sob uma ótica positiva,
parece muito mais plausível que as teleologias racionalistas. Com ele, Nietzsche visa
definitivamente a possibilitar a aceitação dessa, compreendida no interior de um jogo

mem um estado final para o mundo, desacredita as religiões que acenam com futuras recompensas
e punições. Recusa a metafísica e o mundo suprassensível, rejeita o mecanicismo e a entropia, ­repele
o cristianismo e a vida após a morte” (2000, pp. 25-6).

115
roberto barros

incessante de f­ orças e de transcorrer de momentos (Marton, 2000, p. 21). A aceitação


dessa verdade cabe unicamente ao homem singular e altera decisivamente a sua vida,
pois significa a exigência sem refúgios da decisão acerca de sua própria existência (Ibid,
p. 16), compreendida no movimento cíclico de possibilidades limitadas, mas indetermi­
nável, cujo único compromisso passa a ser com a vida e com a criação.
O ensinamento do eterno retorno do mesmo revela-se como aceitação da ­existência
singular em sentido amplo, porque leva ao extremo a consideração do mundo como
fluxo incessante e que assim reduz a existência à escolha de pequenos momentos infi-
nitos (Müller-Lauter, 1971, p. 116).18 Não se trata de um saber imposto, mas primeira­
mente de uma compreensão decorrente da percepção interna da vida, em um m ­ ovimento
de afastamento de qualquer consideração teórica e idealista que se justifique pela ne-
cessidade da maior amplitude e rigorosa validade universal.19 Trata-se sim de um ensi-
namento anunciado para poucos e que tem por alvo o homem singular, o indivíduo,
que deve redimensionar a ­significação de sua existência, para então poder suportar a
sua dureza e a responsabilidade para com ela compreendida como devir incessante em
um mundo regido pela vontade de poder e ainda desejá-la eternamente em amplitude
cada vez maior (Heidegger, 1997, 258). Esse anseio constitui a última justificação pos-
sível do ensinamento, posto a partir de então como pressuposto afirmador da vida que,
portanto, pode ter seus pressupostos afirmados segundo uma consideração estética do
mundo (Müller-Lauter, 1997, p. 86/7). Esses direcionamentos determinam a impor-
tância do experimento estilístico de Nietzsche em seu Zaratustra. Manifestar-se esti-
listicamente significa evidenciar a percepção individual do eu, sem, no entanto, poder
conferir a esse qualquer característica essencial (Bornedal, 2010, p. 135). Significa evi-
denciar que a alternância de estilos pressupõe tanto a independência daquilo que é dito
com respeito à forma de expressão utilizada para comunicá-lo, como o seu significado
não dogmático (Nehamas, 1991, p 56-7). Em Nietzsche a pluralidade de estilos possui
uma dimensão existencial, pessoal (NF/FP: KSA 10 I [109], julho – agosto de 1882),

18
Em um fragmento de 1881, Nietzsche escreve: “o pequeno momento infinito é a alta realidade e a
verdade, um quadro relâmpago do eterno fluir. Assim se aprende como todo conhecimento sabo-
reado repousa sobre o erro grosseiro da espécie, o refinado erro do indivíduo, e o mais fino ­equívoco
dos criadores de momentos”... (NF/FP: KSA 9, II [I56], Primavera – outono de 1881).
19
Ao pensar o eterno retorno do mesmo, Löwith (1986, pp. 32-3) indica a significação da libertação
da vontade dos esquemas tradicionais de interpretação do mundo e de sua moral inerente. Indica
ainda a relação entre os espíritos tornados livres em HDH, aqueles que então iniciam o questio-
namento dos valores e concep­ções comuns e passam a perguntar pelo fundamento, até a vontade
tornada livre querer, em oposição ao dever imposto pela moral. Segundo o autor, essa noção que
será expressa na filosofia posterior de Nietzsche pela figura dos s­ enhores da terra tem como pres-
suposto tanto a constatação da morte de Deus, como a superação do Niilismo dela proveniente,
pela compreensão da necessidade do eterno retornar das coisas, como também da ideia de uma
supra-humanidade futura.

116
a fala poética em assim falava zaratustra

mas também filosófica, que apartadas de qualquer significação racionalista ou m­ etafísica,


referem-se prioritariamente a uma relação de proximidade e de interpretação do leitor
(Visensteiner, 2013, p. 227). Esses aspectos possuem significação central no que se re-
fere a Assim falava Zaratustra. Essa obra pressupõe uma filosofia que impulsiona à in-
terpretação e não a uma pretensão dogmática ou doutrinal (Marton, 2014, p. 117). Por
conta disso, a sua forma de persuasão não deve recair nos modelos metafísicos ou posi-
tivistas tradicionais, pois a sua forma de persuasão prescinde da verdade incondicionada.

Forma de anúncio da concepção do eterno retornar de todas as coisas

Compreendido no interior do movimento argumentativo iniciado com Humano


demasiado humano, que relaciona indissoluvelmente a vivên­cia (Erlebnis) do autor com
os seus posicionamentos filosóficos, a consideração da forma de anúncio do ­ensinamento
do eterno retorno do mesmo articula os temas centrais da filosofia madura de Nietzsche.
Se a elaboração desse pensamento encontra-se fundamentalmente nos aponta­mentos
póstumos e não nas obras publicadas, e ainda que esses possuam volume muito maior
do que aquilo veio a lume, isso se deve ao fato de que em seus cadernos o autor expe-
rimentava pensamentos que a­ pareceriam ou não em seus livros (Colli, Montinari, 1972,
p. 59). A isso se vincula o fato de que a invenção do “espírito livre” repercute em uma
liberdade do estilo e das formas de expressão e consideração de pensamentos, e­ ntendidos
a partir de então como produção e manifestação de uma singularidade em um mundo
entendido como percepção singular momentânea (Marton, 2000, p. 28). Isso pode ser
compreendido sob dois aspectos, que encontram correlativos nas posições filosóficas
adotadas por Nietzsche no período. Em primeiro lugar, como uma forma de reflexão
que não encontra mais objeções em partir da perspectiva de seu autor, sem, todavia,
permanecer reduzida a essa. Não se trata de um posi­cionamento filosófico solipicista,
mas de uma concepção compreendida como último resultado da radicalização do d ­ esejo
de conhecer, que resulta na compreensão de que toda atividade reflexivo-interpretativa
pode ser pensada como movimento próprio de expressão que sempre pressupõe a sua
limitação interpretativa.20 Com isso, o pensamento é dissociado da verdade e compreen-
dido a partir de sua significação perspectivística, que assim sendo, invalida todo c­ onceito
universal de verdade (NF/FP 25, 81 [28], janeiro de 1884). Com a crítica à noção
dico­tômica da verdade, são postas por terra as separações entre essência e aparência,
20
Nesse sentido, pode-se ler em um fragmento de 1888: “Eliminemos esses ingredientes: assim não
resta coisa alguma; porém, quanta dinâmicos, em uma relação de tensão com todos os outros dinâ­
micos quanta, cujo Ser sai vitorioso em sua relação com todos os demais quantas, em seu atuar
sobre os mesmos – a vontade de poder não é um Ser, não é um Devir, porém um Pathos da mais
elementar efetividade, que se produz primeiramente em um devir, em uma ação…” (NF/FP: KSA
13,14 [79], Primavera de 1888).

117
roberto barros

essencial e acidental, que poderiam ser remetidas a uma concepção definitiva de v­ erdade.
O pensamento do eterno retorno pode com isso ser baseado no pressuposto da a­ firmação
da existência em sua totalidade. Disso decorre a valorização da ideia de originalidade
desejosa de perpetuar-se no ­tempo cíclico, que Nietzsche menciona com respeito a si
mesmo e que o m ­ otiva a justificar todo exteriorizar-se como manifestação afirmativa e
­ampliação das possibilidades de criação. A justificação do pensamento passa a ser fun-
dada na força de sua ação criativa, pensada no âmbito pleno das demais singularidades
que então adquire como critério o seu grau de afirmação.
Tal interpretação encontra justificativa na constatação da morte de Deus, a partir
da indicação do fim da crença na efetiva validade dos valores da moral judaico-cristã,
anunciado no aforismo 125 de A gaia c­ iência e que nos cadernos de Nietzsche se rela-
ciona com a problemática da ascensão do niilismo enquanto direcionamento da von-
tade para o nada, que para Löwith significa a última forma de possibilidade do querer
(Löwith, 1986, p. 40).
A constatação do niilismo presente no horizonte da cultura o­ cidental decorre da
percepção da morte de Deus e do esgotamento da validade dos valores da tradição
metafísica e judaico-cristã (NF/FP: KSA 13, [6], maio – junho de 1887). A contrapo-
sição a ele se dá em Nietzsche a partir da negação da existência da verdade e, a partir
disso, do critério de ­necessidade atribuído a ela. Com isso ele almeja mostrar como
desnecessário o pessimismo decorrente do seu não alcance e, em consequência remeter
o homem ao “deserto de sua liberdade” (Wüste seiner Freiheit), pois esse é o primeiro
movimento do Eu liberto do dever moral e voltado para o abso­luto querer (Ich will) do
homem.21 Mas niilismo também significa desconfiança em relação ao sentido da exis-
tência (Kaulbach, 1985, p. 38), causada pela crise dos antigos valores e metas, portanto
pela ausência de um consolo para os desafios do existir. Em Nietzsche, a constatação
do niilismo enquanto consequência da autodissolução da moral, ou seja, do e­ sgotamento
da possibilidade de validade dos valores morais fundados em uma verdade estável – a
partir da sua própria ideia de veracidade22 – recoloca, todavia, a existência humana em
primeiro plano e exige a sua eterna perpetuação (Löwith, 1986, p. 44). O pensamento
do eterno ­retorno do mesmo é o resultado dessa vontade, do desejo de afirmar e j­ ustificar
a eternidade do mundo e isso significa imediatamente o afastamento de to­da moral
que, segundo a interpretação de Nietzsche, sempre o desmereceu.23 Ele implica a ne-
21
Ou segundo Kaulbach, da autarquia da razão perspectiva (1985, p. 33).
22
ibid., p. 36.
23
“isso não se relaciona de modo algum com o melhor ou o pior mundo: Não ou sim, essa é a ques-
tão aqui. O instinto niilista diz não: sua mais suave alegação é que não ser é melhor que ser, que a
vontade de nada tem mais valor que a vontade de viver, seu aspecto mais rigoroso é que, se o nada
é sobremodo mais desejável, esta vida em oposição é absolutamente sem valor – será rejeitada” (FP.

118
a fala poética em assim falava zaratustra

gação de uma unidade histórica da humanidade e da ideia de progresso e a necessida-


de de superação dos homens atuais (Löwith, 1986, p. 40).
O anseio por uma humanidade outra, futura, implica a criação t­anto de novos
valores para a sua consideração, como a negação da ­interpretação moral do mundo por
meio da vontade de poder. Significa também a cria­ção de novas formas de expressão
que confirmem a refutação dos antigos valores. Histórica e culturalmente, a crítica se
direciona contra toda a ação teórica e teologia relacionadas, e visa a realizar aquilo que
Nietzsche interpretou como seu estado de vontade livre (Kaulbach, 1985, p. 34), a­ quela
que percebe o perspectivismo do mundo, do mesmo modo que a total ausência de
sentido deste, regido pela necessidade de sentido que constitui o niilismo, cuja consta-
tação decisiva é expressa por ele no anúncio da morte de Deus.
A morte de Deus é constatada na alteração da significação da divindade na mo-
dernidade, na qual a sua necessidade, interpretada como necessidade do absoluto, a­ inda
se sustém apenas devido à sensação da impossibilidade da não existência deste p ­ rincípio.
Nietzsche interpreta esta mudança como sinal da autodissolução da moral tradicional,
que remete a época atual a uma extrema forma de Niilismo, pois a necessidade do
absoluto é então percebida como imperativo irrealizável. O homem moderno, impul-
sionado pelo desejo de verdade que Deus até então representara, compreende a inexis-
tência da verdade e de nenhum s­ entido absoluto (Kaulbach, 1985, p. 38). Isso c­ aracteriza,
para Nietzsche, a autodissolução das antigas significações, que ele interpreta como o
­resultado extremo da absolutização de Deus e de todos os princípios tornados f­ undantes
e a ele relacionados. Com ela, estabelece-se o sentimento de impossibilidade de qualquer
outra alternativa para a sua supressão, pois os homens desaprenderam a criar e por isso
continua-se a viver com a ideia de Deus, muito embora sem significação decisiva.
A morte de Deus só pode ser totalmente dimensionada se levada em consideração
a posição e significação estratégica dessa comunicação com respeito a Assim falava
Zaratustra. Mas, por outro lado, o aforisma 125 de A gaia ciência apresenta-se também
imprescindível para a c­ ompreensão dos ensinamentos de Zaratustra, precisamente a­ quele
que visa rever todas as formas dicotômicas de consideração, justamente aquelas que
fundamen­tam a necessidade de um Deus absoluto. O anúncio, feito primeira­mente no
aforisma acima mencionado, é finalizado com uma interrogativa semelhante a que se
faz presente no anúncio do pensamento do eterno retorno do mesmo. Trata-se do ato
de chamar a atenção para as possibilidades positivas do vazio desvelado pela constata-
ção da morte da divindade e para o ocaso de suas formas de justificação, como possi-
bilidade de transmutá-la em algo positivo. Neste sentido, o niilismo é indicado por

KSA 13, 17 [7], maio).

119
roberto barros

Nietzsche como momento decisivo que, segundo Kaulbach, coloca o homem d ­ iante de
duas possibilidades: ou deixar-se dominar pela ausência de sentido e perder-se na re-
signação ou então tomar uma posição para si mesmo e se fazer livre e independente do
sentido do Ser, passando a compreender a necessidade de criar o seu próprio ­sentido
(Kaulbach, 1985, p. 39).
Em Nietzsche este apelo à criação significa também a valorização da e­ xteriorização
individual como perspectiva antidogmática. Disso decorrem as suas experiências com o
estilo e com a linguagem, pois a crítica da moral se efetiva também como crítica à assi-
milação ôntica dos padrões linguísticos, ao compreendê-los como instrumento de
transmis­são da noção de fundamento e, portanto, de verdade (MA II/HH II, O ­andarilho
e sua sombra § 11). Em um mundo concebido como vontade de poder, ou seja, como
fluxo incessante e indeterminável de forças com suas respectivas perspectivas, a própria
linguagem precisa ser redimencionada para ser veículo dessa nova percepção do ­mundo,
que não é mais a verdade acerca dele, mas o exercício experimental de exteriorização da
individualidade (BM § 43 e § 292), que se expressa no âmbito das demais s­ ingularidades.
Daí decorre que, nos escritos publicados, o pensamento do eterno retorno do m ­ esmo
é anunciado de modo cuidadoso, como experimento, que pressupõe não a afetividade do
retornar de todas as coisas, mas de como o indivíduo se comporta diante dessa possibi-
lidade (Figal, 2008, p. 57). O aforismo 341, no fim do quarto livro de A gaia ciência,
deixa bastante evidente esse aspecto. O retornar é mencionado como pensamento e
questiona a respeito da reação do leitor diante do furtivo e demoníaco anúncio:

Esta vida, como você a vive neste momento e já viveu, você necessitará viver mais uma
vez e por incontáveis vezes; e não haverá nada de novo nela, mas cada dor e cada ­prazer
e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é indizivelmente grande e pequeno em sua
vida, terão de lhe retornar, tudo na mesma sequência e encadeamento – e assim também
essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A eterna
ampulheta do existir será sempre virada novamente e você com ela, partícula de ­poeira!

O demônio áugure desse pensamento apresenta então duas opções: ranger os


dentes e amaldiçoar o anunciador de tal pensamento ou experimentar a sua ­intensidade
como um momento imenso e como revelação divina. Nesse sentido, no que se refere à
aceitação do pensamento, apresentar-se-iam também duas opções: a transformação ou
o esmagamento por meio dele. Entretanto, é importante ressaltar a importância da
afirmação final do demônio, que anuncia a possível e inumerável repetição do ­momento.
A partir dela, pode ser alcançada a compreensão do título do aforismo. O peso que
recairia sobre os atos dos homens significa a percepção dos efeitos da maior das gravi-
dades que, por conseguinte, decorreria da percepção da ausência absoluta de tutela, nem

120
a fala poética em assim falava zaratustra

da divindade, nem do destino, em outras palavras, trata-se da atração do mundo e da


percepção do peso da própria vida. A gravidade pressupõe a aceitação desta percepção,
a necessidade de sua anuência e da aceitação da vida, a fim de alcançar o estado de “não
desejar nada além desta última, eterna confirmação e chancela”.
O questionamento desse último aspecto parece-nos de grande importância, ­diante
do traço existencial do pensamento. Partindo-se do caráter hipotético ou condicional,
marcado em alemão pelo conjuntivo na língua alemã, tal hipótese almeja – mas sabida­
mente não o pode alcançar, nem mesmo por aqueles que a aceitem – ser plenamente
universalizada. Ela recai como um grande peso, o maior deles, sobre os ombros do in-
divíduo, que ciente do ocaso dos valores superiores e mesmo da morte de Deus (NF/
FP: KSA 10, 5 [1]. Novembro de 1882 – fevereiro de 1883) vê-se responsável por si
mesmo e isso significa, diante da possibilidade do eterno retorno do instante, as possi-
bilidades de perpetuação ou alteração desse, sob pena de que o legar essa r­ esponsabilidade
a outras instân­cias significa a necessidade de se submeter eternamente a uma repetição
passiva do instante.
O eterno retorno do mesmo consiste em um pensamento que recai sobre a indi-
vidualidade singularizada e não sobre o gênero humano universalmente pensado. A
necessidade de expressão dessa individualidade, em decorrência da compreensão do
mundo como vontade de poder (NF/FP: KSA 10, 9 [43], maio – junho de 1883),
distancia-se de toda pressuposição ultramundana ou meramente moral acerca da exis-
tência. Desse modo, a singularidade torna-se força produtiva, que desvinculada de qual-
quer fundamento, necessidade de crença, passa a ter e a querer produzir o seu próprio
sentido, portanto, torna-se o espírito livre par ­excellence (FW/GC § 347). Para essa
espécie de homem, a percepção do niilismo resulta não em enfraquecimento, mas em
fortificação das forças necessárias para o viver, para o produzir e, desse modo, para a
liberdade do experimento que, na forma mais radical de afirmação, resulta em viver
segundo o amor fati, ou a prova da vontade afirmativa da força e da confiança na pro-
dução do próprio sentido (Kaulbach, 1985, p. 42.). Com respeito à filosofia e aos fi
­ lósofos,
isso resulta em uma ampliação de significado:

Talvez para o surgimento do espírito e filósofo independente, forte, a dureza e a ­astúcia


forneçam condições mais favoráveis que a suave, fina, complacente disposição, a arte
de aceitar as coisas com leveza, que é apreciada justamente num filósofo. Pressuposto
o que vem antes, que o conceito de “filósofo” não seja restrito ao filósofo que escreve
livros – ou até que traz a sua filosofia aos livros! (BG/BM § 39).

Esta nova forma de considerar a filosofia requer também novas formas de e­ xpressão
que não mais estejam imiscuídas das pressuposições morais da tradição e que se pautem

121
roberto barros

fundamentalmente pela validade da criação de possibilidades. Assim, a linguagem que


profere o pensamento do eterno retornar de todas as coisas pode ser tanto uma l­inguagem
de elevação, de autodeterminação, como uma linguagem racional; porém, em todos
esses casos, ela permanece experimental, criadora de possibilidades, que, porém, devem
ser entendidas como perspectivísticas ­realizações de mundos (Kaulbach, 1985, p. 46).
Decorre disso o aspecto do anúncio do pensamento ser feito por meio da “alegre
ciência”. Apenas através do significado que encerra essa nova concepção de saber, com
sua liberdade diante da gravidade ­negativa da moral e grandeza de ideais, ele pode
pleitear e adquirir validade, que é uma concepção imprescindível de ciência ­justamente
por poder transmitir o ensinamento da nova gravidade, o saber trágico, todavia alegre-
mente, pois o otimismo teórico da ciência moralizada foi superado pela heroica garga-
lhada ante os desafios do existir. É nesse sentido que pode ser entendida a afirmação
de Nietzsche, segundo a qual se pode estabelecer uma hierarquia dos filósofos ­conforme
a qualidade do seu riso ( JB/BM § 294).
Mediante essa nova concepção de ciência e de sua forma de expressão, o saber
trágico contido no ensinamento do eterno retorno é aceito como Fatum, mas que é su­
perado através da criação de novos sentidos possíveis. Essa é a significação da fala dio-
nisíaca de Zaratustra (Kaulbach, 1985, p. 42). O dionisíaco implica o trágico e, segundo
Heidegger, relaciona-se com o pensamento do eterno retorno a partir da compreensão
trágica da existência. O trágico se insere no domínio da estética e é posto por Nietzsche
como o maior dos estilos (grösste Stille), o que o torna um comunicado para poucos. Ele
anuncia a redescoberta do terrível da existência que, entretanto, não deve resultar quer
em sentimento de medo ou aversão, quer em resignação e anseio pelo nada, pelo con-
trário, ele é afirmativo a partir da sua inalterada filiação com o belo, pois a tragédia é
onde o terrível e o belo afirmam-se em sua oposição.
Mas o trágico e o dionisíaco consistem ainda para Nietzsche em uma posição filo-
sófica fundada na necessidade do questionamento e na vivência daquele que aspira e não
teme os perigos inerentes ao desconhecido, que destarte diferencia-se de toda tentativa
dogmática de conhecer e inicia uma nova forma de relação com o saber.

Sim, se me fosse permitido, eu lhe aferiria [a Dionísio], conforme a prática humana,


belos, festivos, pomposos e virtuosos nomes, muitos louvores a sua coragem de explo-
rador e descobridor, a sua ousada probidade, veracidade e amor à sabedoria ( JGB/BM
§ 295).

A forma de anúncio do ensinamento nas obras publicadas deve, pois, considerar


dois aspectos relacionados: a) Primeiramente o vínculo entre a interioridade do autor
e suas obras, em especial a partir de Aurora, livro que tem continuidade em A gaia

122
a fala poética em assim falava zaratustra

ciência. b) O segundo aspecto, que se relaciona a este primeiro, funda-se em uma consi­
deração do movimento interno das concepções no pensamento de Nietzsche que, no
que se refere ao ensinamento do eterno retorno, pressupõe, por parte do leitor a com-
preensão – a partir de sua proximidade instintiva e fisiológica com o autor – do c­ onteúdo
do ensinamento e de sua forma de exposição, para o que a noção do dionisíaco ­consiste
em exigência fundamental.
Com respeito ao primeiro aspecto, podemos considerar a anotação de Heidegger,
que a primeira referência acerca do ensinamento do eterno retorno se dá em Aurora, na
sentença de Rigveda: “Há ainda muitas auroras que ainda não luziram” e que esta
menção altera a intenção inicial de Nietzsche de fazer silêncio a respeito de sua con-
cepção por dez anos (Heidegger, 1989, p. 234). A partir deste dado pode-se ponderar
que o autor não possuía ainda total clareza a respeito do modo de apresentação de sua
concepção, traço que pode ser confirmando por meio da consideração de duas passagens
da correspondência do autor no período da visão de Surlei. Em uma carta de 14 de
agosto de 1881, endereçada a Heinrich Köselitz de Sils-Maria, Nietzsche escreve:

Em meu horizonte surgiram pensamentos, tais como eu ainda não vira antes. Nada
quero falar sobre isso e conservar a mim mesmo em uma tranquilidade imperturbável.
Eu deverei viver ainda alguns anos! (…) As intensidades dos meus sentimentos me
fazem estremecer e rir – já não pude deixar algumas vezes o quarto, por motivos v­ isíveis,
os meus olhos estavam inchados – por quê? Nos dias anteriores, durante os meus
passeios, chorei muito, mas não eram, de fato, lágrimas sentimentais, mas de júbilo; eu
cantava e dizia doidices, possuído por um novo olhar, com o qual eu excedera todos os
homens (KSB 6, p. 112).

Essa carta antecede a publicação de Aurora e é escrita por Nietzsche em condição


de total isolamento, no mesmo momento do surgimento em seus cadernos dos p­ rimeiros
esboços da doutrina do eterno retorno do mesmo. A outra referência significativa pode
ser lida em uma carta de 25 de janeiro de 1882, também endereçada a Köselitz:

Duas palavras sobre minha “literatura”. Já há alguns dias terminei os livros VI, VII e
VIII de ‘Aurora’ e, com isso, meu trabalho está feito. Quero repensar os livros 9 e 10
para o próximo inverno – ainda não estou suficientemente maduro para os e­ nsinamentos
elementares que eu quero expor nos livros finais. Há, entre eles, um pensamento que,
de fato, precisa de ‘milênios’ para tornar-se algo. De onde tomarei coragem, para ex-
pressá-lo! (ibid., p. 159).

Os livros referidos por Nietzsche são as primeiras partes de A gaia ciência, mas que
nesse momento eram concebidas como continuações de Aurora. O pensamento que
necessita de milênios é precisamente o ensinamento do eterno retorno, então presente

123
roberto barros

no horizonte do autor, que naquele momento já planejava a feitura de um livro que


receberia o ­título de “O eterno retorno e Zaratustra” ( Janz, 1985, Vol II, p. 84).
Essas indicações fornecem aspectos importantes para a consideração da forma do
anúncio do ensinamento do eterno retorno. Possibilitam considerar que Nietzsche,
muito embora já concebesse a importância do pensamento, ainda não o tinha suficien-
temente elaborado para, naquele momento, levá-lo a lume. Isso pode ser relacionado
com o conteúdo de seus cadernos nos quais o tema surge em seus escritos, sem ­nenhuma
menção às questões científicas que o motivaram até mesmo a cogitar se ocupar com
elas em estudos sobre ciências naturais. As poucas referências podem ser então consi-
deradas, a partir da biografia, como anúncios iniciais, que posteriormente teriam com-
plementação decisiva em obra específica.
No que se refere ao segundo aspecto acima aludido, podemos ler no fragmento:

De onde reconheço o meu igual. – Filosofia, como até agora a entendi e vivi, é a vo-
luntária procura também dos lados indesejados e nefandos da existência. Da longa
experiência, decorrente de uma andança através do gelo e do deserto, aprendi a ­encarar
de outro modo tudo o que se filosofou até agora: – a história ocultada da filosofia, a
psicologia de seus grandes nomes para mim veio à luz. “Quanto de verdade suporta,
quanto de verdade ousa o espírito?” – isso se tornou para mim p­ ropriamente o medidor
do valor. O erro é uma covardia… Cada conquista do conhe­cimento decorre do ânimo,
da dureza contra si, do asseio para consigo…Uma filosofia experimental, tal como eu
a vivo, antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo fundante
(­grundsätzlichen), sem querer dizer com isso que ela se detenha em um não, em uma
negação, em uma vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até o inverso – até
um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção –, quer
o eterno curso circular: – as mesmas coisas, a mesma lógica e ilógica das conexões. O
mais elevado estado que um filósofo pode alcançar: por-se dionisiacamente diante da
existência – minha fórmula para isso é amor fati.
Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente
como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos
lados até agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições
prévias), mas em função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais
verdadeiros, lados da existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior clareza.
Do mesmo modo, faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência;
compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma
medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente
aqui diz sim (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por
outro lado, e aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções). Adivinhei, com
isso, em que medida uma espécie mais forte de homem teria necessariamente de p ­ ensar
a elevação e intensificação do homem em direção a um outro lado: seres elevados

124
a fala poética em assim falava zaratustra

(höhere Wesen), para além do bem e do mal, para além daqueles valores que não podem
negar sua origem na esfera do sofrer, do rebanho e da maioria – eu procurei pelas
indica­ções dessa inversa formação ideal (Idealbildung) na história (os c­ oncei­tos “pagão”,
“clássico”, “nobre”, descobertos e dispostos de modo novo –) (NF/FP: KSA 13, 16 [32],
primavera – verão de 1888).

Finalmente, a análise da forma de anúncio e de alguns pressupostos do pensamen-


to do eterno retorno fornece indicações importantes e rela­cionadas ao ensinamento do
além-do-homem. A acentuada significação do estilo utilizado pelo autor para proferir o
seu ensinamento capital revela o necessário desligamento com a tradição filosófica, com
os seus pressupostos e formas de exposição. Por outro lado, resulta em uma recuperação
das possibilidades da arte que, então, pode, a exemplo dos antigos, pré-­filosóficos, com
sua inspiração e força figurativa, ser veículo do impulso de afirmação da vida.
Além disso, e em favor desta interpretação, a associação entre o dionisíaco e o
trágico que constitui um aspecto significativo do ensinamento do eterno retorno, rela-
ciona-o à perspectiva estética de O nascimento da tragédia, justamente aquela que é
criticada e tem muitos aspectos reconsiderados positivamente nos prefácios de 1886 e
em Ecce homo, o que pensado com respeito a Assim falava Zaratustra e ao ensinamento
do além-do-homem, coloca a questão a respeito da importância desses aspectos na sua
formulação.

125
Capítulo IV
O além-do-homem enquanto ideal estético

A tragicidade

Como já anteriormente mencionado, a relação do ensinamento do além-do-homem com


o pensamento do eterno retorno do mesmo evidencia que em Assim falava Z ­ aratustra
ela necessita ser pensada mediante a busca e a construção de possibilidades de expres-
são para os ­ensinamentos de Zaratustra. A consideração deste tópico visa a retomar
aspectos já indicados pelo próprio Nietzsche, segundo os quais a forma de anúncio do
pensamento do eterno retorno nas obras publicadas, em especial em A gaia ciência, o
liga a Assim falava Zaratustra e que essa ligação ­evidencia a amplitude do en­sinamento
nesta obra. Como a argumentação até aqui tencionou mostrar, essa relação pode ser
debatida com ganhos a partir da análise da estilística utilizada pelo autor para escrever
o livro de 1883 e ainda, que o estilo e sua importância estão decisivamente relacionados
ao renascimento da poesia comunicado em Aurora (§341 e § 342), possibilitado pela
interpretação moral e perspectivista da ciência, que desabo­na a hegemonia dos discur-
sos metafísico e científico ante a outras formas de expressão. Todos esses aspectos levam
a pressupostos que compõem a argumentação a seguir, quais sejam eles: (a) anteposição
prévia da expo­sição de vários temas sem indicada relação direta com o assunto basilar,
mas que formam com ele um conjunto intencionalmente planejado. (b) Que tal recur-
so tem como finalidade selecionar o leitor por meio de um labirinto argumentativo que
garanta que aquele que finalmente chegou a compreender a mensagem final do escrito,
tenha com o autor fortes - ou mesmo as mesmas - afinidades (Löwith, 1987, p. 23).
Esse aspecto se torna evidente quando considerado o empenho de Nie­tzsche em
fornecer, quer nos prefácios de 1886, quer em Ecce homo, indicações acerca de aspectos
que, segundo ele, deveriam ser observados em suas obras, dentre as quais Assim falava
Zaratustra significa um ­ponto de convergência. Estes sinais, com efeito, tencionam
mostrar que com esse livro ele leva ao extremo sua concepção de liberdade de criação
e experimentalismo, que resultam na construção de uma escrita poética associada à
filosofia, entendida como linguagem existencial de seu autor (Kaulbach, 1985, p, 20).
A reconsideração dos escritos anteriores a Assim falava Zaratustra revela que esse traço
tem claramente suas raízes na noção de inspiração artística aludida em O nascimento da

126
o além-do-homem enquanto ideal estético

tragédia,1 o que, por sua vez, pode ser constatado no caráter trágico conferido àquela
obra (Groddeck, 1997, p. 187). É, pois, precisamente em decorrência de Nie­tzsche
concebê-la desse modo que se pode obter uma compreensão mais clara do significado
da figura do além-do-homem anunciado no prefácio, antecedendo à comunicação do
ensinamento do pensamento do eterno retorno do mesmo.2 Considerando-se que a
comunicação da nova gravi­dade do eterno retornar de todas as coisas é feita por Nie­
tzsche em agosto de 1882, nos últimos aforismos da primeira edição de A gaia c­ iência,
e ainda, que no final de abril de 1883 é publicada a primeira parte de Assim falava
Zaratustra, pode-se antever que não é despropositada a opção por uma tal forma de
comunicação.3 Antes, ela fizera parte da estratégia de publicação do próprio Nietzsche,
sendo que a mesma perspectiva atuante no prefácio de Assim falava Zaratustra, ­segundo
o próprio autor, serve de base para a elaboração dos prefácios de 1886.4
Com respeito aos prefácios, um novo aspecto deve ser indicado: o de que eles não
apresentam mais uma referência analítica ou reformuladora dos temas dos livros aos
quais foram acrescidos, mas tinham como questão de grande importância a afirmação
de seu autor como um “Espírito livre” (Groddeck, 1997, p. 190). Essa liberdade do
espírito apresenta-se como determinante para a escolha dos critérios segundo os quais
Nietzsche elabora Assim falava Zaratustra, para cuja compreensão, deve-se novamente
indicar a precedência da “alegre ciência”; justamente uma nova forma de conceber o
saber, e que tem sua origem na inspiração dos artistas da Provença. Relacionada ao

1
Em uma carta de Nietzsche a Franz Overbeck, de 13 de junho de 1885, podemos ler :
“A reflexão acerca dos problemas pr incipais (pr in cip iel l e n Problemen), que involuntáriamente
constitui o conteúdo do meu verão na alta Engadina, traz para mim novamente, não obstante os
ataques muito temerários da minha interiori­dade ‘cética’, as mesmas decisões (Entscheidungen): elas
já estão, da forma mais velada e obscura possível, no meu Nascimento da tragédia e tudo o que eu
assimilei (hinzugelernt) nesse meio tempo é uma parte disso” KSB 7, p. 67.
2
Heidegger (2000, p. 122) se pronuncia a esse respeito dizendo que Zaratustra, enquanto aquele que
ensina o “eterno retorno do mesmo” e o além-do-homem, não pode ensinar imediatamente o pri-
meiro ensinamento porque há um outro enunciado em seu caminho; o segundo, que por sua vez
não designa o homem tal como nós conhecemos, mas como uma espécie que renegaria toda a
humanidade; ele é aquele que se eleva acima do homem de hoje, mas unicamente para conduzir
esse homem primeiramente ao seu Ser.
3
No prefácio de GC, § 4, Nietzsche se refere ao novo gosto que agiria em sua filosofia a partir
desse livro e afirma que nele: “atua a decência de não querer ver tudo nu, assistir a tudo, entender
a tudo e a tudo ‘saber’”, o que, segundo ele, exige que se honre mais o pudor (Scham) e o ­esconder-se
da natureza atrás de enigmas e incertezas.
4
Em uma cara de 7 de agosto de 1886, enviada ao seu segundo editor, E. W. Fritzsch, Nietzsche
apresenta o seu novo plano de publicação. Nessa carta, um dos principais cuidados do autor incide
sobre Assim falava Zaratustra, cujas três primeiras partes deveriam ser publicadas em uma única
edição. Nesse sentido, Nietzsche acentua que o Prefácio do livro, na primeira parte, “serve para toda
a obra” (gilt für das g­ anze werk), do mesmo modo que de modelo para os cinco novo Prefácios que
ele ­planejava para as suas obras anteriores, de NT até GC, aos quais ele se referia pela primeira vez
ao editor. Cf. Groddeck (1997, p. 188).

127
roberto barros

“espírito livre”, a “gaia ciência” tende acentuadamente para o perspectivismo da arte,


conferindo aos ensinamentos proferidos por seu intermédio tanto a pretensão de co-
nhecimento metódico e rigoroso, como a força imagética e plasmadora da perspectiva
artística, a partir do pressuposto de que a própria existência é então com­preendida como
um fenômeno estético (FW/GC § 107).
No que se refere ao pensamento do eterno retorno do mesmo, estes aspectos o
afastam de qualquer pressuposição de um desejo de fundamentação científica da con­
cep­ção nos moldes tradicionais.5 Mesmo as referências de Nietzsche ao mundo natural
e às teorias físicas da época, nada mais são que a confirmação temporal ou histórica da
fragilidade das formas tradicionais de consideração advindas da metafísica, o que impe-
de que se as sobreponha à percepção que constata a não ordenação lógico-causal do
mundo e desse modo tenta justificá-lo.6 O pensamento do eterno retorno é primeira-
mente não metafísico, apenas assim ele pode pleitear ser científico, pois pressupõe a
fragilidade do conceito tradicional de verdade da metafísica, que Nietzsche ainda iden-
tifica na ciência tradi­cional. Nesse sentido, pode-se aceitar parcialmente a interpretação
de Martin H ­ eidegger, que acentua o caráter contrário à metafísica dessa posição, afirman­
do que com ela Nietzsche busca imprimir ao devir o caráter do Ser (Heidegger, 2000,
p. 140). Destarte, é necessário ­acrescentar que a noção de Ser mobilizada por Nietzsche
não pode ser aproximada da concepção metafísica e, destarte, da ideia de fundamento.
Ela se ­refere ao mundo tacitamente percebido em sua imanência, em seu devir (­Werden)
( Jaspers, 1981, p. 321).
Por conseguinte, podemos antever, com um olhar mais cuidadoso, o ­retorno de
Nietzsche a traços bastante próximos da noção de criação da beleza artística como

5
Mesmo que Nietzsche tenha efetivamente planejado levar a cabo estudos de f­ísica e matemática
com vistas a fundamentar cientificamente a concepção do eterno retorno (cf. Marton, 2000, p. 22),
essa iniciativa pode ser vista como resultado da constatação de que os resultados alcançados por
alguns pensadores e cientistas naquele momento, tais como Dühring, Mayer, Boscovich e Helmholtz,
demonstravam a insuficiência interpretativa dos antigos parâmetros científicos. Aproximamos aqui
nossa interpretação da de Vattimo (1987, p. 106), que argumenta que pelo próprio conteúdo e
direcionamento de suas anotações, a justificação científica do pensamento do eterno retorno ser-
viria muito mais a uma tentativa de formular uma versão exotérica do ensinamento que de com-
prová-la segundo padrões positivos.
6
Para Günter Abel, deve-se fazer, com relação à formulação do eterno retorno, uma distinção entre
pensamento e teoria científica. Segundo a sua interpretação, m ­ esmo as menções a um desejo de
justificação científica da concepção enquanto teoria não significam de forma alguma que o pensa-
mento saia da exigência do seu ­próprio sentido. Quando pensado como teoria, o eterno retorno
não exige a mesma justeza da ciência tradicional, que sempre pensou a teoria como a correspondên­
cia da função cognitiva entre entendimento (Verstand) e coisa (Sache), o que remete Nietzsche a
considerar a falsificação das hipóteses científicas e de seus ­pressupostos. (Conf. Abel, 1998, p. 77/81).
Abel ressalta ainda o importante aspecto interpretativo da filosofia de Nietzsche, o qual ele utiliza
na consideração tanto das ­ciências como do conhecimento teórico e que o leva a formular uma nova
concepção de ciência (ibid., pp. 190-1).

128
o além-do-homem enquanto ideal estético

forma de ­tornar suportável a existência, defendida em O nascimento da tragédia. Em


Assim ­falava Zaratustra, entretanto, temos uma perspectiva diferenciada. A crítica à
metafísica o afasta do pressuposto da dicotomia entre aparência e essência, ainda pre-
sente nas concepções do apolíneo e do dionisíaco, aspecto que não lhe é mais necessá-
rio à ­afirmação da potência da expressão artística. Segundo Vattimo, com esta ­perspectiva,
é possível pensar em uma aliança entre ciência e arte, entendida a ­primeira como co-
nhecimento metódico do mundo, como representação e estabele­cimento da consciên-
cia do erro, e a segunda como forma de manutenção da vida, como auxílio que ajuda a
comportar a consciência, do erro necessário (Vattimo, 1987, p. 60). A existência indi-
vidual, decisivamente compreendida como interpretação de um fenômeno esteticamen-
te percebido, encontra seu termo na necessidade de aceitação do perspectivismo e da
multiplicidade inumerável de interpretações e pontos de vista, portanto, na impossibi-
lidade de opção por um “mundo verdadeiro” e por uma interpretação “correta”.
Os efeitos desta concepção se fazem sentir acentuadamente no campo da auto-
determinação do homem. Por conseguinte, um dos aspectos centrais postos pelo pen-
samento do eterno retorno do mesmo. No que se refere ao indivíduo, ela significa a
libertação da moral normativa tradicional e remete aquele à necessidade de uma nova
escolha: ou à afirma­ção das próprias ações pressupondo a nova interpretação da exis-
tência – resultando em posicionamentos restritos fundamentalmente aquele que e­ xerce
a sua autarquia – ou a total anulação de si mesmo e a aceitação de outras interpretações
e determinações.
Para Nietzsche, é precisamente este o perigo fundamental da noção tradicional
de racionalidade. A necessidade imperativa de objetividade e a crença na veracidade
desta redunda na negação de possibilidade de qualquer alteridade não lógico-causal,
identitá­ria e teleológica. A ­oposição a esses pressupostos é um dos traços mais e­ videntes
na perspectiva estilística e filosófica do autor, assim como decisiva à aproximação
delas da arte, deliberativamente, por esta significar para ele uma força i­ nextinguível de
criação e, assim, oposta à metafísica. Esses aspectos estão relacionados às concepções
tanto do ensinamento do eterno retorno do mesmo como do além-do-homem. Para a
sua compreensão, basta considerar a signi­ficação estética do além-do-homem e o afas-
tamento de ambos os ensinamentos dos pressupostos tradicionais. A análise dos frag-
mentos do período de elaboração do primeiro projeto do ensinamento, que se estende
pelo interva­lo de tempo de novembro de 1881 até fevereiro de 1883, mostra que foi
precisamente no mesmo período da conclusão e i­ mpressão dos manuscritos do prefá-
cio e da primeira parte de Assim falava Zaratustra (Haase, 1984, p. 229), que a ideia
do além-do-homem surge nas anotações de Nietzsche. Nos fragmentos póstumos re-
ferentes ao delinear dos traços do pensamento do eterno retorno a partir do fragmen-

129
roberto barros

to II [141] da primavera-outono de 1881, a palavra Übermensch não é mencio­nada. A


partir de apontamentos posteriores e da sua função em Assim falava ­Zaratustra, como
se verá, ela pode ser relacionada com a criação artística da bela imagem i­ndicada no
seguinte fragmento:

Nós quereremos sempre vivenciar novamente uma obra de arte! Assim se deve plasmar
a própria vida, de tal modo que ante suas partes únicas, tenha-se o mesmo desejo! O
do pensamento capital! Apenas no fim será então exposto o ensinamento do eterno
retorno de tudo o que já foi, depois de ser plantada, inicialmente, a tendência para criar
algo que, sob o brilho do sol desse ensinamento, pode prosperar com cem vezes mais
força (NF/FP: KSA 9, II [165], primavera – outono de 1881).

Esse aspecto pode ser confirmando na anotação 4 [75] (KSA 10, novembro de
1882-fevereiro de 1883), onde o além-do-homem é indicado como superabundância da
vida. Associado à aparição causada pelo ópio e pela dança dionisíaca, ele não sofre por
suas consequências. No mesmo período, o ensinamento é então diretamente relaciona-
do ao pensamento do eterno retorno, este entendido como “reluzente sol ­matutino
sobre as últimas catástrofes” (FP: KSA 10, 4 [127], novembro de 1882-fevereiro de
1883) e, desse modo, indicado como princípio consolador para a nova sabedoria ­trágica:

(...) “retorno” aprendido – “eu esqueci a miséria”. Aumenta a sua ­piedade. Ele vê que
o ensinamento não pode ser suportado.
Ápice: a morte divina. Ele inventa o ensinamento do além-do-homem (NF/FP: KSA
10 4 [132], novembro de 1882 – fevereiro de 1883).

Nas anotações do fim da primeira metade de 1882, portanto, ainda no período de


formulação de A gaia ciência, o eterno retorno é relacionado à grandeza heroica ­entendida
como estágio de preparação (NF/PF: KSA 10 I [70], julho – agosto de 1882). Nessas
anotações, é possível constatar um movimento de aproximação entre a compreensão do
­eterno retornar das coisas e a necessidade de um elemento positivo para estabelecer
decisivamente o equilíbrio exigido pela nova gravidade. A ideia do além-do-homem
surge então relacionada às noções de consolo (Trost) (Ibid, p. 231) e de elevação (NF/
FP: KSA 10 4 [180], novembro de 1882 – fevereiro 1883), enquanto fator que torna
suportável o novo ­ensinamento da nova gravidade. Ele é resultado da invenção (Erfin-
dung) e da criação (NF/FP: KSA 10 5 [204], novembro de 1882 – fevereiro 1883), cuja
­fun­ção é servir de opção às consequências da assimilação do eterno retorno do mesmo
e da negação da piedade enquanto sentimento positivo. ­Desse modo, como também
­observou Heidegger, podemos constatar que ambos constituem um único ensinamen-
to e são indissociáveis, de modo que se Zaratustra ensina o além-do-homem, ele o faz
como preparação para o ensino do eterno retorno do mesmo (Heidegger, 1997, p 276).

130
o além-do-homem enquanto ideal estético

Nesses fragmentos, encontram-se ainda três noções fundamentais, que ­relacionadas


constituem significativos aspectos a partir dos quais é possível pensar a relação entre os
dois ensinamentos: primeiramente, a consideração afirmativa da vida por meio de pa-
drões artísticos. Em segui­da, a referência à vida como criação individual e, por fim, o
pressuposto que possibilita os dois primeiros aspectos, o anúncio da morte de Deus
(Machado, 1997, p. 47).
No aforismo 343, o primeiro do quinto livro posteriormente acrescido A gaia
ciência, precisamente aquele a que se segue ao anúncio do eterno retorno e que a­ ntecede
ao Assim falava Zaratustra (§ 344), a m­ orte de Deus é anunciada como “O maior dos
acontecimentos recentes” (Das grösste neuere Ereigniss). Ele significa, segundo a ­indicação
de Nietzsche, um momento singular na história da Europa, pois se trata para ele do
ocaso da moral europeia, muito embora isso seja uma constatação ­restrita, não ­percebida
pela grande maioria de seus contemporâneos. A reflexão que se segue realça a ampli-
tude que o autor deseja dar às suas palavras, especificamente quando utiliza o pronome
pessoal nós (wir) em sentido específico, sempre relacionado a uma semelhança de in-
terpretações diferentes do mundo.

Mesmo nós, adivinhos natos, que esperamos igualmente sobre os montes, colocados
entre o hoje e o amanhã e na tensão entre hoje e amanhã, nós primogênitos e prema-
turos do século vindouro, que percebemos as sombras que necessitam envolver a ­Europa,
que já deveriam chegar-nos à vista: então, onde repousa isso, sem participação direta
neste ressecamento, antes de tudo sem cuidado ou medo do que representa para nós
seu aparecimento? (FW/GC § 343).

Aqueles aos quais Nietzsche se refere são os seus semelhantes, indicados pela
qualidade nata. São os “espíritos livres”, os que nesse momento percebem que o antigo
Deus está morto e quais são as consequências dessa morte. A nova amplitude eviden-
ciada pela libertação da moral dogmática.

Enfim o horizonte nos parece livre novamente, mesmo constatando que ele não e­ steja
claro, é permitido finalmente que nossos navios possam sarpar. Toda ousadia frente ao
perigo é novamente permitida, todos os acasos daqueles que buscam o conhecimento
o são: o mar, nosso mar, repousa novamente aberto diante de nós e talvez nunca tenha
havido mar tão hiante (FW/GC § 343).

A morte de Deus é o acontecimento decisivo para que se possa es­tabelecer uma


nova compreensão de tudo, do saber, do mundo e, decisivamente, da existência. ­Tratada
desde então sob o ponto de vista do distanciamento da dicotomia entre falso e ­verdadeiro,
a partir desta constatação, a reflexão pode não apenas admitir outras formas de se v­ oltar
para a existência, mas também compreender que a própria relação com ela deve ser

131
roberto barros

pensada não mais mediante um desejo de determinação. Isso resulta em uma nova
concepção de ciência, afastada dos pressupostos tradicionais.

De tal maneira a questão “por que ciência?” reconduz a um problema moral: “para que
decisivamente moral, se vida, natureza, história, são ‘imorais’?” Não há dúvida alguma,
o verídico (Wahrhaftige), em sentido transitório e último, como o pressupõe a crença
na ciência, afirma com isso um outro mundo, que não o da vida, da natureza e da
história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo”, como? Não necessita ele com
isso precisamente negar o seu oposto, este mundo, o nosso mundo? Com isso se com-
preenderá aonde eu quero chegar, precisamente, pois é sempre sobre uma crença me-
tafísica que repousa nossa crença na ciência – que também nós, conhecedores de hoje,
nós, os sem-Deus e os antimetafísicos, também ainda tomamos nosso fogo da f­ ogueira
que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de
Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina… (FW/GC § 344).

Essa nova noção de saber afasta-se da necessidade do fundamento que dera origem
à ciência e à lógica, cujo traço indelével pode ser antevisto no conceito de substância
(FW/GC § 111) que, visto sob o prisma da tradição metafísico-teológica, está a­ ssociado
às ideias de princípio primeiro e de Deus. Isso torna relativos todos os valores e põe à
mostra a restrição das tentativas de avaliação absoluta, o que possibilita a compreensão
das infinitas possibilidades de consideração da existência promovidas por essa m­ udança
perspectivista. A noção de existência é então ela mesma reavaliada e posta em ­suspenso.
Ao pensar nela, Nietzsche não mais o faz pressupondo a possibilidade de uma deter-
minação final e definitiva de seu significado (FW/GC § 1), portanto, reflete sobre ele
em completo afastamento da ideia de mundo pensada pela metafísica.
Essa temática é apresentada em A gaia ciência, por meio da relação entre sabedoria
e manutenção da vida – desse modo não mais com a verdade – e ainda com a p­ erspectiva
trágica ampliada pelo riso e pela sabedoria.

Não apenas o riso, mas o trágico, com toda a sua sublime desrazão, são os únicos que
pertencem aos meios e às necessidades de manutenção - E, Consequentemente! Conse­
quentemente! Consequentemente! OH, vós me compreendeis meus irmãos? Entendeis
esta nova lei da v­ azante e da maré? Também nós temos o nosso tempo (FW/GC § 1).

Consideradas essas referências, pode-se compreender que a morte de Deus e a


“alegre ciência” se relacionam com uma perspectiva que associa tanto o cômico como o
trágico e o épico em sentido não tradicional e com vistas à afirmação de possibilidades,
de formas de pensamento não dogmáticas. Ela pressupõe a aceitação da tensão, do
conflito e do sofrimento, mas se relaciona com ele de outro modo, não apenas com
­seriedade ou tragicidade, mas também com o audaz riso diante da sua existência. D­ esse

132
o além-do-homem enquanto ideal estético

modo, a discussão e a necessidade metafísica do fundamento passam a ser interpretadas


a partir da noção de intencionalidade inerente à existência, entendida como vontade de
poder7 e determinantemente atuante na aspiração racional e científica pela verdade e
pelo conhecimento. Essa interpretação leva Nietzsche a afirmar o aspecto indefinido
da existência e a impossibilidade de sua interpretação definitiva.

Eu penso, porém, que atualmente estejamos minimamente afastados da risível imo-


déstia de querer decretar tudo a partir do nosso ângulo, que apenas a partir dele seja
permitido ter perspectivas. O mundo tornou-se para nós mais uma vez “infinito”:
enquanto não pudermos repelir a possibilidade que ele encerra infinitas interpretações
(FW/GC § 374).

O mundo tornado novamente infinito significa o retorno à ampla compreensão


dionisíaca, sinônimo de superabundância de vida (­Ueberfülle des Lebens) (FW/GC § 370)
e noção central do ensinamento do eterno retorno e do desejo pela existência como
amor fati (ibid., § 276). O além-do-homem é o ensinamento que não apenas torna su-
portável essa visão da existência, mas a torna desejável. Ele ensina o não se condoer com
a compreensão trágica do mundo, pois ele a aceita como a condição própria da e­ xistência
(Haase, 1984, p. 236) e então impulsiona o homem à ­criação como forma de suportar
a autopiedade e o desejo de fuga do mundo e da vida. Pela aceitação da existência, ele
deve ser afastado de todo o idea­lismo moderno, do mesmo modo que de toda crença e
anseio por um além do mundo. Antes, deve ser compreendido como princípio a­ firmativo
e não como meta (Ziel) pré-estabelecida. Com ele, é ensinada ao indivíduo que anseia
se adequar à compreensão do eterno movimento de recorrência da existência a neces-
sidade da autossuperação, entendida como vontade de poder e que por isso deve, a partir
da percepção da morte da suprema divindade, tomar para si a responsabilidade e o peso
de seu próprio destino.
O caráter trágico da existência evidenciado pelo pensamento do eterno retorno
do mesmo revela-se tanto nos comentários de Nietzsche a respeito de Zaratustra como
também nos fragmentos póstumos. Uma análise desses mostra a relação de comple-
mentaridade dos dois ensinamentos. Numa série de fragmentos do outono de 1883,
pode-se ler no esboço de um drama de quatro atos, cuja morte de Zaratustra evidencia
o caráter trágico:

No ato II, chegam os diferentes grupos e trazem os seus presentes. “O que fazeis ?” –
perguntam eles –; “Isto foi feito do espírito de Zaratustra”.

7
Aspecto que faz com que Zaratustra profira as seguintes palavras: “Onde eu encontrava vida
(­lebendinges), lá eu encontrava vontade de poder; e ainda na vontade do servo, eu encontrava
vontade de ser senhor” (Z/Z. Da autosuperação. KSA 3, p. 147/8).

133
roberto barros

O ensinamento do eterno retorno torna-se primeiramente motivo de riso para a cor-


ja, que é fria e sem grande necessidade interior (innere Noth). Primeiramente, o mais
comum impulso vital (Lebenstriebe) fornece a sua chancela. Uma grande verdade ganha
antes de tudo os homens mais elevados (höchsten Menschen): esse é o ­sofrimento dos
verídicos (leiden der Wahrhaftigen).
Ato I. Solidão decorrente da vergonha de si: Um ensinamento pronunciado, para o
qual ele se sente deveras fraco (ou não suficientemente duro). As tentativas de ­alterá-lo.
O solo dos povos escolhidos o ­convidam para a festa da vida.
Ato II. Ele permanece incógnito nos festejos. Ele se denuncia ao achar-se honrado
demais.
Ato III. Feliz ele anuncia o além-do-homem e seu ensinamento. Todos tombam. Ele
morre de dor pelo sofrimento que criou, quando a visão o abandona.
Festa da morte. “Nós o matamos” – meio-dia e eternidade” (NF/ FP: 10 16 [3]. Ou-
tono de 1883).

A ideia do consolo aparece em fragmentos do mesmo período, que enfatizam a


dureza do ensinamento fundamental de Zaratustra e a necessidade da mesma carac­
terística para aqueles que aceitam o p­ ensamento. Nesse contexto, surge a ideia do além-
-do-homem associada a essa d ­ ureza, assim como a sua concepção como fulcro: […]
Quando ele mostrou ao mesmo tempo a verdade do retorno e do além-do-homem, a
compaixão o dominou (NF/FP: KSA 10, 16 [54] outono de 1883);8 ­posteriormente:

[…] Primeiro a legislação. Então, depois disso, foi-lhe dada, através da mesma, a
perspectiva da geração do além-do-homem – momento mais horripilante! Zaratustra
anuncia o ensinamento do retorno – que agora lhe é suportável pela primeira vez! (FP:
KSA 10 16 [86] Outono de 1883).

Esses fragmentos evidenciam a relação entre o pensamento do eterno retorno do


mesmo e o ensinamento do além-do-homem como seu princípio atenuante. Este aspec-
to é pressuposto necessário à ­compreensão do ensinamento primeiro de Zaratustra
enquanto saber não científico e contrário à compreensão teológica do mundo (Kaulbach,
1985, p. 34). Como será analisado na seção a seguir, a importância desses direciona-
mentos é decisiva mesmo na concepção de Assim falava Zaratustra, pois permite que
ela possa ser pensada segundo padrões de concepção m ­ usical, o que em Nietzsche está

8
“Tudo adverte (warnt) Zaratustra acerca de continuar a falar: Sinal. Ele é interrompido. Um se
mata, outro enlouquece. Disposição de uma divina exuberância artística (Stimmung eines göttlichen
­Übermuths im Künstler) -: é necessário vir à luz. Quando ele mostrou ao mesmo tempo a verdade
do retorno e do além-do-homem, a compaixão o dominou.” Haase menciona apenas a última afir-
mação desse fragmento; de acordo com a perspectiva da presente obra, gostaríamos de acentuar
que ambos os ensinamentos de Zaratustra estão relacionados a uma: “Disposição de uma divina
exuberância artística”.

134
o além-do-homem enquanto ideal estético

associado à figura de Dionísio e a uma perspectiva trágica transposta para a filosofia, o


que pode ser constatado desde o seu planejamento inicial como drama, assim como na
relação entre as suas partes. O reaparecimento do trágico e do dionisíaco relacionados
ao protagonista significa que essas duas concepções, mesmo que de forma outra (­Tevenar,
2013, p 426), são atuantes também na estruturação da obra, sendo esse aspecto rele-
vante para que se compreenda nela a relação entre os ensinamentos proferidos por
Zaratustra.

O ensinamento do além-do-homem em Zaratustra

Segundo a perspectiva da significação da inspiração poética na filo­sofia de Nie­


tzsche, no período de Assim falava Zaratustra pode-se tomar como sugestivas as palavras
de Eugen Fink, que afirma que o livro é uma cadeia de discursos simbólicos mantidos
em conexão por uma débil fábula (Fink, 1983, p. 76). Esta fábula narra os percalços do
protagonista após o seu isolamento voluntário, por dez anos em uma montanha, quan-
do o seu convívio se restringiu apenas aos animais que lhe faziam compa­nhia, uma águia
e uma serpente. A narrativa indica que passados os dez anos, o isolamento torna-se-lhe
fecundo e ocorre a Zaratustra uma nova consideração da existência, e devido a ela, ele
decide retornar aos homens – dos quais ele havia desejosamente se separado -, a fim de
lhes comunicar seus novos ensinamentos (Lehre). Ocorrem então movimentos de afas-
tamento e aproximação entre o sábio e os homens, levando a narrativa a se encerrar
novamente com a solidão de Zaratustra, como ­evidência da incapacidade do homem
moderno em compreender os preceitos do sábio – mesmo os tipos tomados como su-
periores. Todavia, essa nova solidão de Zaratustra adquire uma nova conotação. Ela
significa a autarquia de sua incompatibilidade com a modernidade e a aceitação ­trágica
dos perigos da busca por aqueles aptos a assimilar os seus ensinamentos.
Visto pela ótica da expressividade que Nietzsche desejou dar a A ­ ssim falava Zara-
tustra, os acontecimentos ocorridos no decorrer dos capítulos possuem significação secun­
dária em relação aos ensinamentos proferidos. Isso que pode ser constatado já no título
da obra, que indica claramente que o mais importante são os discursos de Zaratustra e
não as suas vicissitudes. Este aspecto foi também indicado por Heidegger, para quem
“para todos” posto no subtítulo significa o direcionamento dos ensinamentos para todo
homem na medida em que ele é ele mesmo e assim torna-se digno de pensar; e “ninguém”,
todos os curiosos que tem vertigens diante da linguagem meio cantante e meio ­criadora
de Zaratustra, que é o pensamento que procura o seu verbo (Heidegger, 2000, p.101).
A narrativa, com efeito, não é o principal objeto da análise aqui pro­posta. Ao invés
de considerá-la, desejamos insistir na análise da ­concepção de Assim falava Zaratustra
como drama e, ao mesmo tempo, como obra filosófica, estruturada com vistas a produ-

135
roberto barros

zir no leitor um efeito dramático, que, todavia, visa a comunicar ensinamentos compreen­
didos como decisivos à existência humana. Esse aspecto é determinante no que se r­ efere
à interpretação do ensinamento do além-do-homem como contraideal (Müller-Lauter,
1971, p. 118) e ideal estético.
Considerando-se o percurso e os direcionamentos assumidos pela filosofia de Nie­
tzsche, Assim falava Zaratustra realiza aquilo que o autor se pergunta se teria podido
realizar em O nascimento da tragédia: dar vazão ao seu pensamento filosófico sob a for­
ma de poesia (GT/NT Tentativa de autocrítica § 3). A este respeito, a referência a Assim
falava Zaratustra em Tentativa de autocrítica é esclarecedora. Com ela desejamos acen-
tuar que Nietzsche visa claramente mostrar que há afinidades entre O nascimento da
tragédia e aquela obra, isto devido um aspecto decisivo: o reaparecimento do dionisía-
co (ibid., § 6). Com efeito, Zaratustra, relacionado ao Deus grego, marca o ressurgi-
mento da perspectiva trágica, do mesmo modo que serve de indicação de que a história
do ocaso de Zara­tustra é o início de uma tragédia (FW/GC § 342), a qual, como o
próprio Nietzsche afirma em 1872, consiste na expressão do caráter terrível da ­existência,
mas tornado suportável e mesmo desejável por meio do véu da bela aparência da arte
figurativa apolínea.
Sendo Assim falava Zaratustra um drama e o protagonista o anunciador do traço
dionisíaco da existência posto pelo pensamento do ­eterno retorno, encontramos Nie­
tzsche fazendo uma importante referência a uma das duas noções sob as quais ele estru-
turou a sua interpretação inicial do trágico. Se naquele momento o apolíneo e o dionisía-
co enquanto impulsos artísticos tornam para os gregos o sentimento de terror diante
da existência inclemente uma força positiva, as menções posteriores ao dionisíaco e ao
trágico trazem consigo o questionamento acerca do apolíneo. A aproximação entre
essas duas obras serve de indicação de caminho para a abordagem desta questão. Ela
possibilita que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-
-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno
retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu
primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-
-do-homem poderia ser entendido como ensinamento prepa­ratório ao anúncio da visão
dionisíaca do mundo implícita no ­ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o
ensinamento do além-do-homem pode ser tomado como a bela imagem apolínea, posta
previamen­te como forma de consolo e meio de suportar do p ­ ensamento dionisíaco do
eterno retorno do mesmo.
Esses aspectos, com efeito, são pontos que desejamos acentuar em seguida. Neste
momento nos limitaremos a mostrar a significação do ensinamento do além-do-homem
no plano geral da obra, a fim de evidenciar que em Assim falava Zaratustra ele se faz

136
o além-do-homem enquanto ideal estético

presente com a mesma significação de princípio atenuante com a qual está presente nos
fragmentos póstumos e que pode ser claramente relacionada com uma perspectiva
apolínea da primeira filosofia de Nietzsche. Nesse sentido, é digno de nota ­consideramos
a posição central do ensinamento do além-do-homem no prólogo, no qual não há refe-
rências ao pensamento do eterno retorno e que, portanto, apresenta aquele ensinamen-
to como primeira imagem.
O prólogo é iniciado com a descrição do despertar de Zaratustra e a referência a
sua nova compreensão da significação da existência ­humana proferida ao sol matinal:
“Tu grande astro! O que seria tua felicidade se tu não tivésseis aqueles que iluminas!”
(Z/Z Prólogo § 1). A constatação da significação humana para o sol consiste na p ­ rimeira
afirmação da compreensão da mudança perspectivística que se afasta dos princípios
tradicionais da filosofia desde Platão, os quais pressupõem precisamente o contrário, a
dependência humana de um princípio superior e aferidor de valor (Honneth, 2004,
p. 69). A isso se relaciona a própria concepção de Nietzsche do personagem Zaratustra.
Segundo ele, o retorno ao sábio persa se deve ao desejo de retornar precisamente ­aquele
que primeiro estabeleceu a rígida dicotomia entre bem e mal, da qual o ocidente, tanto
na filosofia como na religião, se tornou dependente. Zaratustra é então apresentado
como aquele que apresenta traços daquele que deverá buscar rever esta forma de valo-
ração originária e direcionar o homem a novas buscas de sentido. Com isso é eviden-
ciada a primeira diferença entre o Zaratustra de Nietzsche e o sábio da religião persa,
que expressa sua sabedoria mediante princípios religiosos que pressupõem a dicotomia
entre bem e mal (Spinks, 2003, p. 120), caos e ordem. Nietzsche indica a escolha do
personagem precisamente por reconhecer nele a origem da dicotomia bem-mal, a qual
então ele deveria subverter (EH/EM Porque escrevo livros tão bons § 1). D­ iferentemente
disso, o Zaratustra nietzscheano deseja voltar a ser homem (Z/Z Prólogo § 1) e p ­ rofere
por isso uma sabedoria filosófica, humana em seu sentido pleno, resultado do desejo de
fusão do artista criador (Schaffender), do santo amante (­Liebender) e daquele que aspira
conhecimento (Erkennender) em um fim prático (NF/FP: KSA 10, 16 [11], Outono
de 1883). A sua sabedoria é ­resultado do seu isolamento e da liberdade de seu espírito,
que após o seu ­acúmulo, ele então deseja comunicar em sua nova aproximação dos
homens, esta marcada pelo desejo de transmutação destes.
Esta primeira descrição do prefácio demonstra que a ótica do Zaratustra de Nie­
tzsche não é mais a da dicotomia entre o bem e o mal. Ao buscar afirmar o significado
da existência humana, e não mais de valores transcendentes, ele se revela como repre-
sentante de uma transvaloração de todos os valores (Suffrin, 1988, p. 24), que Nietzsche
identifica como necessária no auge da experiência niilista da modernidade e que ele já
iniciara com sua filosofia desde o primeiro volume de Humano, demasiadamente h­ umano.

137
roberto barros

Nesse sentido, a referência ao sol é significativa. Para o ocidente, desde a filosofia pla-
tônica o astro é considerado como fonte máxima de valores afirmados como universais,
de onde decorrem as noções de bem e a ideia de perfeição moral (virtude) a ser b ­ uscada
pelo homem racional. Disso resultou tornar-se ele o símbolo, a imagem que expressa,
tanto da ideia de bem moral quanto a de meta última do conhe­cimento. Ou nas p ­ alavras
de Sócrates em A República:

O que eu vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do cognoscível


está a ideia do bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos
a conclusão de que é a causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz do mundo visível,
da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da
verdade e da inteligência, que precisa ser contemplada por quem quiser agir com sa-
bedoria, tanto na vida pública como na particular (Platão. A República, 517 c-d ).

A nova compreensão de Zaratustra expressa no início do prólogo inverte esta


relação de significação. Ela refuta a antiga hierarquia metafísica e coloca o homem na
posição de centro de gravidade da existência. Sem o homem, o astro não tem signifi-
cação própria e com a percepção da importância da existência humana, ele se torna até
mesmo ­dependente dela. Este aspecto se confirma na cena seguinte, no encontro de
Zaratustra com o velho crente na floresta, o qual, se imediatamente não reconhece o
viajante, ao fazê-lo percebe nele traços que evidenciam mudanças sofridas desde a sua
primeira passagem pelo local, dez anos antes. Trata-se de qualidades que estão ­expressas
na pureza do olhar de Zaratustra e no seu caminhar semelhante ao de um dançarino
(Z/Z Prólogo § 2). Ambas as qualidades são indicadas em oposição àquilo que ­Zaratustra
afirmará em seguida a respeito dos cristãos e outros crentes, adoradores de um pressu-
posto de verdade superior que cria a falsidade e a esperança em uma outra forma de
existência e em um além do mundo que, nesse momento, tem evidenciada a sua peri-
culosidade. O velho ­santo é a evidência do descaminho a que é remetido o homem que
crê nestes valores. Ele não tem ensinamentos e não se dirige aos homens (Fink, 1983,
p. 72). Direcionou a sua existência unicamente a valores transcenden­tes, necessaria-
mente apartados da terra e do mundo dos homens, considerados então como negativos
em contraposição à positividade divina. Zaratustra se coloca em oposição a essa inter-
pretação, assim como ao responsável pela sua manutenção, que ele denomina de espí-
rito de gravidade (Geist der Schwere).9 Considerando-a negativa, ele visa a ensinar o seu

9
Precisamente o princípio que impede que todas as coisas ascendam, tornando-as pesadas e pren-
dendo-as fixamente a terra. Mesmo se considerado que o retorno à terra é um dos ensinamentos
de Zaratustra, uma redução desse movimento a essa finalidade o tornaria restritivo. A noção de
sentido da terra comporta tanto uma crítica da ontologia metafísica e da desvalorização da vida
mundana, como uma crítica do reducionismo da vida a apenas alguns pequenos desejos e satisfações

138
o além-do-homem enquanto ideal estético

abandono e assim afirmar o seu amor pelos homens e a c­ ompreensão da morte de Deus
(Z/Z Prólogo § 2).10
Esses aspectos consistem em pressupostos para o anúncio do ensinamento do
além-do-homem, que Zaratustra profere no prosseguir da narrativa, tão logo chega à
cidade próxima a montanha onde encontrara o velho santo. Na cena, o povo e­ ncontra-se
reunido na praça do mercado esperando pela apresentação de um equilibrista, m ­ omento
no qual Zaratustra se dirige a todos e se refere pela primeira vez ao além-do-homem:

Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. O que fizes-
tes para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmos; e vós
quereis ser a baixa mar dessa grande maré cheia e retroceder desejosamente ao animal,
em vez de superar o homem?

É necessário observar que essas são as primeiras palavras de Zaratustra, proferidas


imediatamente após sua chegada à cidade e ao encontro com a multidão, o que e­ videncia
a importância do ensinamento do além-do-homem, pois é por meio dele que Z ­ aratustra
se apresenta aos homens após o seu longo retiro. Dois termos são empregados significati­
vamente nesse enunciado, os quais, inseridos no movimento filosófico empreendido por
Nietzsche até este momento, apresentam significativa importância. Primeiramente a
noção de dever da superação (­Überwindung) do homem, indicada pelo emprego do
verbo modal sollen (dever), que implica uma exigência não absoluta,11 assim como o
traço de ­seletividade do ensinamento. Partindo-se disso, pode-se afirmar que a ­superação
da qual Zaratustra fala dirige-se ao homem atual e que ela é o próprio princípio motor
do ensinamento (Fleischer, 1993, p. 67), pois a inexistên­cia do anseio por algo superior
ao homem confronta este com o perigo de uma regressão à animalidade e de uma su-

(Z/Z Prefácio § 4). O sentido da terra significa de forma inerente a capacidade de projetar-se para
além de si, que, segundo Nietzsche, caracteriza o homem, todavia de forma afirmativa e não depre-
ciativa, como a transcendência metafísica r­ eligiosa. Isso consistiria na vitória do espírito de g­ ravidade
e, portanto, na confirmação do último homem como forma última de existência humana. Em úl-
tima análise, a vitória dos valores não autoafirmativos (Nabais, 2007, p. 134).
10
Com respeito ao significado da morte de Deus para a consideração do e­ xperimento estilístico de
Nietzsche em Assim falava Zaratustra, desejamos relacionar duas perspectivas: primeiramente a de
Pierre Suffrin, para quem a morte de Deus faz retornar novas possibilidades de construção (1988,
p. 35). Essa noção, quando transposta para o campo das formas de expressão, parece ser possível de
ser relacionada com a análise de Bindschedler, que considera a morte de Deus segundo o traço
poético de Zaratustra, o qual, por sua vez, decorre da negação da moral e de sua dicotomia entre
verdade e mentira. Segundo a autora, a morte de Deus, que nada mais seria para Nietzsche que
uma imagem poética, significa o apagar da luz com a qual a humanidade tinha mantido o quadro
de sua crença na sua verdade. Se Deus era, portanto, apenas uma imagem poética, são também os
poetas de uma nova poesia, que não acreditam mais na “verdade” que o matam (1966, p. 66).
11
Diferentemente do que pressuporia a utilização do modal “müssen”. Conferir a respeito NF/FP:
KSA 10, 4 [43], 10. Novembro de 1882 – Fevereiro de 1883.

139
roberto barros

pressão de possiblidades. A significação específica dessas duas noções é dada na passa-


gem seguinte:

Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, mas em vós há ainda muito do
verme. Primeiramente fostes macacos e ainda agora, o homem é mais macaco do que
qualquer macaco. (Z/Z Prólogo § 3)

O traço negativo da animalidade no homem é justamente não possi­bilitar a plena


humanidade, expressa na capacidade humana de elevar-se por meio da sua força plás-
tica (Z/Z I Do caminho do criador). O além-do-homem é o ensinamento que visa a su-
perar esta restrição na qual o homem moderno, diante da descrença perante seus anti-
gos e absolutos ideais, vê-se adstrito. A mensagem que o ensinamento contém não é,
todavia, a da necessidade de um retorno, mas a da reafirmação da criação, da capacida-
de humana que deve suplantar a bruta animalidade. Assim sendo, essa não é negada,
mas necessita ser superada com vistas a suscitar sempre novas possibilidades criativas,
pois o dizer sim a tudo ensinado por Zaratustra torna-se pleno apenas na afirmação do
querer (Müller-Lauter, 1971, p. 141). A referência à criação de algo superior, porém,
necessita ser diferenciada do anseio ultramundano. No caso do ensinamento de Zara-
tustra, ele não implica a desvalorização da existência humana ou do mundo; contraria-
mente a isso, ele os afirma a partir da elevação do homem e de sua existência, e assim
desvincula-se de qualquer crença em um além do mundo (Suffrin, 1988, p. 56), efeito
primeiro do enfraquecimento da significação da existência humana:

Vede eu vos ensino o além-do-homem!


O além-do-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: “o além-do-homem
seja o sentido da terra!”
Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acreditais nos que vos falam
de esperanças ultraterrenas! Eles são misturadores de veneno, que o saibam ou não.
Desprezadores da vida são eles, e moribundos, envenenados por seu próprio veneno,
dos quais a terra está cansada: Portanto, que eles logo partam!

O abandono de qualquer especulação que visa a ultrapassar a própria existência


compreendida como percepção e vida decorre da negação de toda perspectiva de hie-
rarquização dessa a partir de valores não imanentes ao mundo, aspecto que se revela
incisivamente no anúncio da morte de Deus.

Inicialmente, era o delito contra Deus o maior dos delitos; mas Deus morreu e, assim,
morreram também esses delinquentes. O mais terrível, agora, é delinquir contra a
terra e atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável que ao sentido da terra! (Z/Z
Prólogo § 3).

140
o além-do-homem enquanto ideal estético

A afirmação da morte de Deus inverte a escala de valores que nele se susta e in-
dica novas possibilidades para a existência, pois com aquela se encerra a fundamentação
no absoluto, entendida como expressão de uma estimativa de valor que, em última
instância, evidencia-se então como perspectivista. Com a morte de Deus, Zaratustra
busca efetuar não apenas a refutação das antigas valorações morais, mas propõe o aban-
dono do absoluto dos antigos valores em favor da redescoberta das posi­tividades afir-
mativas e criadoras da vida e de suas possibilidades. Isso não pode ser feito segundo os
pressupostos tradicionais dos pensamentos metafísico e religioso, que remeteriam a
novas aspirações de correção e melhoramento do mundo enquanto promessa de um
plácido viver. Valo­rizar a terra tal como Zaratustra menciona, significa aceitá-la na
­amplitude espantosa de suas possibilidades e, com isso, afirmá-la i­ncondicionalmente,
mesmo os seus perigos e desafios, o que repercute em uma necessidade incondicional
de redimensionar a expectação de felicidade do antigo anseio.

A hora em que dizeis: “o que me importa a minha felicidade! É miséria, sujeira e


mesquinha satisfação. Mas a minha felicidade deveria justificar a existência mesma!”
(Z/Z Prólogo § 3).

O ensinamento do além-do-homem consiste então primeiramente em um ­aspecto


do princípio de revalorização incondicional e afirmativo da vida, pressuposto na s­ abedoria
de Zaratustra. Ele deve funcionar para os homens como um princípio motivador do
anseio pela elevação da vida e de suas possibilidades, que assim busca motivar o amor
pela existência e o anseio pelo ultrapassamento dos estados básicos que constituem a
mera animalidade e, desse modo, a aspirar pelas possibilidades mais elevadas que a sua
humanidade pode possuir.

O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem – uma corda


sobre um abismo.
Um perigoso transpor, um perigoso estar a caminho, um perigoso olhar para trás,
tremer e parar.
O que há de grande no homem é ser ponte e não meta: o que pode amar-se no homem
é uma transição e um ocaso (Z/Z Prólogo § 4).

O além-do-homem comporta então dois fatores aparentemente contraditórios: a


valorização e o desejo de afirmação da vida vivida e, ao mesmo tempo, o próprio colo-
car-se em risco implícito na busca pela autossuperação. Esses dois traços conciliam-se
como aspectos indissociáveis da aceitação incondicional da vida posta pelo ­ensinamento
do eterno retorno e, portanto, pelo do além-do-homem.
O ensinamento do além-do-homem significa a afirmação incondicional da existên-
cia humana criadora, que com a sua proposição ­denuncia toda consideração metafísico-

141
roberto barros

-religiosa com aspiração à fixidez como uma forma de enfraquecimento (Fink, 1983,
p. 71) e restrição da vida. Por intermédio dele e em sua contraposição ao último-homem,
o homem que aspira a estágios mais elevados recebe uma nova atribuição de valor,
aferida pelas novas e ilimitadas possibilidades que advém do e­ nsinamento. Ele passa a
ser considerado pela sua capacidade de almejar e lançar-se à busca das r­ealizações
desse anseio. A noção de anseio pela elevação, pela autossuperação, é então traço deci-
sivo à compreensão do ensinamento e do efeito motivador que ele visa a suscitar, com
vistas a reafirmar o valor da vida e do mundo pensado então como vontade de poder
(Müller-Lauter, 1871, p. 127).

Amo aqueles que não sabem viver senão como os que sucumbem, porque são aqueles
que transpõem.
Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do anseio
pela outra margem.
Amo aqueles que não procuram primeiro um motivo atrás das estrelas para se ­sacrificar
e sucumbir, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se torne o além-do-
-homem (Z/Z Prólogo § 4).

É por esse motivo que o além-do-homem, apartado de toda justificativa idealista,


não é uma revelação, mas sim um ensinamento ­inaudito na modernidade (Heidegger,
2000, p. 105).12 Esse traço fica claro na continuidade da narrativa do prólogo. Após o
anúncio feito por Zaratustra, a reação do povo reunido é o motejar, justamente o que
leva ­Zaratus­tra a compreender a extemporaneidade de seu ensinamento (Z/Z Prólogo
§ 5): “Necessita-se primeiro partir-lhes as orelhas, para que aprendam a ouvir com os
olhos? Necessita-se retumbar como tambores e pregado­res penitentes? Ou acreditarão
somente em balbuciantes?” O ouvir, n ­ esse caso, significa metaforicamente a força da
cultura e da influência da religião como obstáculo à visão clara do mundo; daí Z
­ aratustra
dizer que o que impede a compreensão do povo é justamente a sua Formação (Bildung),
da qual a multidão se orgulha. O ensinamento do além-do-homem é, desse modo, cla-
ramente caracterizado como inatual e ainda como oposto ao momento em que é anun-
ciado (NF/FP: KSA 10, 5 [1] 250. Novembro 1882 – Fevereiro 1883), aspecto que será
indicado por Zaratustra em sua segunda tentativa de expor esse primeiro ensinamento.

12
Com respeito à interpretação de Heidegger, vale lembrar a observação de Gerard Lebrun (1978,
p. 45-6), segundo a qual Heidegger é cônscio de que Nietzsche não acredita em uma evolução da
humanidade e nem na chegada de uma classe universal, antes, mesmo a superação de um tipo
particular por um tipo que ­possibilita ao ser humano se reconhecer nele, esse tipo, com efeito, deve
ser separado do ideal de dominação humanista, herdeiro do esclarecimento, o que o torna, ­portanto,
uma outra variante da mitologia do progresso.

142
o além-do-homem enquanto ideal estético

Diante de seu fracasso inicial,13 baseado no desprezo pelo presente em favor de


um futuro terreno, Zaratustra profere um novo discurso, com o qual ele visa a alcançar
os espectadores mediante o remetimento ao sentimento de orgulho pelo além-do-homem.
Ele reinicia a sua pregação, fazendo referência precisamente àquilo que dá sentido a
esse e­ nsinamento: as possibilidades humanas e o perigo que paira sobre elas.

É tempo de o homem fincar a sua meta. É tempo de o homem plantar a semente da


sua mais alta esperança.
Seu solo ainda é suficiente rico para isso. Mas logo esse solo estará po­bre e esgotado,
e nenhuma árvore poderá mais crescer nele.
Dor! Chega o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio
para além-do-homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar!

O efeito primeiro da depreciação das possibilidades humanas de ansiar por estados


sempre mais afirmativos de si mesmos é denominado por Zaratustra como o último
homem (der letzte Mensch), imediatamente aquele que desconhece e se embaraça ­diante
de noções elevadas como amor, criação (Schöpfung), anseio (Sehnsucht) e estrela (Stern).
Ele é a­ quele que a tudo apequena, que prolifera com grande rapidez e que tem a vida
mais longa, mas que, antes de tudo, é não criador, pobre em ­possibilidades e, centrado
na medida (Fleischer, 1993, p. 68), busca nivelar tudo aos seus padrões, não aceitando
qualquer outra possibilidade para a existência humana.14 Com a expressão último ho-
mem, Nietzsche visa a denominar o homem e os modos de considerar de seu tempo
(Machado, 1997, p. 53), sentido que é reforçado no prólogo, com a interrupção ­abrupta
do discurso de Zaratustra pelos gritos da multidão pedindo justamente pelo último
homem.15
A cena que se segue é a simbólica interpretação dos traços determinantes da mo-
dernidade niilista, tais como Nietzsche os lê, e contra os quais foi proferido o ensina-
mento do além-do-homem. Imediatamente após a tristeza suscitada em Zaratustra pela
recusa de seu ensinamento, surge o anunciado equilibrista de cordas (Seiltänzer), o
principal motivo da reunião do povo na praça. A isso de segue o seu equilibrar-se entre
as torres e, sob a praça na qual se encontra o povo reunido (Z/Z Prólogo § 6), o surgi-
mento do farsista (Possenreisser), que pulando pela corda profere as seguintes palavras:

13
Suffrin (1988, p. 86) comenta que o fracasso do primeiro discurso de Zaratustra decorre do com-
prometimento dos ouvintes com a tradição moral e seus valores, o que os impede de compreender
o ensinamento do além-do-homem e, pelo contrário, ainda se voltarem em favor do “Último Homem”.
14
“Nenhum pastor é um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de
outro modo, vai voluntário para o manicômio” (Z/Z § Prólogo § 5).
15
Z. Prólogo § 5. Ou seja, aqueles que, diferentemente dos criadores, não aspiram por nenhuma von-
tade criadora ou autoafirmação, mas pela vontade negativa, pelo niilismo. Cf. Suffrin (1988, p. 71).

143
roberto barros

“Em frente, coxo”, dizia a sua voz apavorante, em frente, moleirão, tratante, cara páli-
da! Para que eu não te comiche com o meu calcanhar! Que fazes aqui entre as torres?
Dentro da torre é o teu lugar! Deveriam trancar-te lá, pois impedes a livre passagem
de alguém melhor do que tu!” (ibid.).

A cada palavra, descreve Nietzsche, o farsista aproximava-se mais do primeiro


equilibrista, até que, quando se encontra a apenas um passo atrás dele, fez uma coisa
espantosa, que fez todas as bocas se calarem e os olhos arregalarem-se: Soltou um
grito diabólico e acometeu por sobre o outro, fazendo-o cair, justamente aos pés de
Zaratustra, o único a permanecer em seu lugar. Ferido e com os ossos partidos, o mo-
ribundo ainda direciona a seguinte pergunta a Zaratustra: “Eu sabia já há muito que o
Diabo me daria uma rasteira. Agora, ele me arrasta para o inferno; queres impedi-lo?”
(ibid.). A resposta dada por Zaratustra revela um dos traços mais significativos da sa-
bedoria que o anima, do mesmo modo que o conforto que ela visa a proporcionar.

“Não existe o diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do
que o teu corpo; não temas mais nada! (…) Nada mais”, falava Zaratustra, “fizeste
do perigo o teu ofício, nisso não há nada de desprezível. Agora morres, vítima do teu
ofício; por isso, quero sepultar-te com minhas mãos” (Z/Z Prólogo § 6).

O significado dessa cena, descrita em uma dinâmica que relaciona a delicadeza e


a significativa tensão do equilíbrio do trapezista ao caráter alegórico e mórbido do
farsista, contém dois aspectos imprescindíveis para a compreensão dos fatores que acom-
panham e dão significação ao além-do-homem: a) primeiramente a caracterização de
Zaratustra como o contraditor da moral polarizada entre bem e mal, da moral judaico-
-cristã, posta desde já como depreciadora da vida. Em segundo lugar, b) a c­ aracterização
clara da existência como restrita ao eterno risco da ­queda e que, todavia, precisamente
no perigo, obtém a sua justificação. O trapezista ­representa o homem que aspira, que
deseja, que objetiva algo além que a p ­ assividade da multidão. Ele é aquele que se esfor-
ça por ­alcançar o outro lado da linha.16 c) O terceiro e último ponto a ser mencionado
é o conteúdo das palavras finais de Zaratustra, que antes de se constituir em uma
­mensagem de de­salento, comunica ao moribundo um elogio e um estímulo. Na sua
ousadia, Z ­ aratustra interpreta um símbolo do desejo de elevação e de afirmação da vida
– mesmo com todos os seus perigos, ausência de garantias e do ocaso certo – que ele
deseja ensinar, mesmo que para um moribundo.17
16
O trapezista, pelo seu próprio ofício já se diferencia do “último Homem”; aquele que tem os seus
pequenos prazeres para o dia, outros para a noite e que venera a saúde. Cf. Z § 5, p. 19.
17
Como se verá em seguida, esse traço possui grande significação quando relacionado ao p ­ ensamento
do eterno retorno do mesmo: a vida sob o signo da d ­ estruição implica também na autossuperação
e criação, precisamente aquilo que impede que a existência estagne e se restrinja às valorações do

144
o além-do-homem enquanto ideal estético

A gravidade por si só deve ser entendida a partir da dificuldade dos movimentos


e dos perigos do ofício do equilibrista. Ela simboliza a própria existência humana,
mencionada então como tênue e sem qualquer sentido, a ponto mesmo de um farsista
tornar-se fatal para ela (Z/Z Prólogo § 7). O farsista colorido, a personificação do ­espírito
de ­gravidade (Machado, 1997, p. 59), mesmo fantasiado de forma burlesca denota um
acerbar da gravidade, a exigência da queda e da fixidez. Ele é aquele que, tornando mais
difícil e perigosa a vida do equilibrista, i­ncitando-o à queda. Assim ele se torna não só
o motivo da precoce decaída do homem (Z/Z I Do ler e do escrever), mas também da
desistência do último-homem diante de toda possibilidade e de desejo de anseio e de
elevação.
Após a não compreensão de seus discursos pelo povo e ainda o seu clamor pelo
último-homem, o sétimo tópico do prólogo descreve o final do primeiro dia do ocaso
de Zaratustra. Após o anúncio e a rejeição do ensinamento do além-do-homem, ele se
encontra em meio à escuridão, sentado ao lado do cadáver do equilibrista, prematura-
mente morto pelo espírito de gravidade e que, nesse estado, nada mais pode ansiar.
Imerso em suas reflexões, Zaratustra reafirma o traço de ultrapassamento contido no
seu primeiro ensinamento,18 ao mesmo tempo que a sua caracte­rização como criação
humana ao dizer: “Eu quero ensinar aos homens o sentido do seu Ser: que é o além-
-do-homem, o raio que irrompe da negra nuvem chamada homem” (Z/Z Prólogo § 7).
A chegada do frio noturno e a constatação da impossibilidade de ser imediata-
mente compreendido faz com que Zaratustra se decida por enterrar o cadáver de seu
único companheiro, instante no qual, se aproxima dele o farsista da torre, que declaran-
do-se seu inimigo, afirma o perigo de morte que pesa sobre o sábio, caso ele deseje
permanecer na cidade.

Vai embora desta cidade, oh Zaratustra, dizia ele; demasiados são os que aqui te odeiam.
Te odeiam os bons e os justos, e chamam-te de seu inimigo e desprezador; odeiam-te
os crentes da crença correta (­Gläubigen des rechten Glaubens), e chamam-te um perigo
para a multidão. A tua sorte foi que riram de ti; e, em verdade falaste como um f­ arsista.
A tua sorte foi que te colocaste com esse cão morto, ao rebaixar-te assim, salvaste-te,
por hoje. Mas vai-te embora imediatamente desta cidade - ou amanhã eu pulo por
cima de ti, um vivo por sobre um morto (Z/Z Prólogo § 8).

Esse trecho demarca decisivamente a relação de oposição entre o espírito de gravi­


dade, a moral fundada na fé que, devido à percepção da morte de Deus, se torna n­ iiista

espírito de gravidade. A r­ espeito conferir Barrack (1974, p. 124).


18
Para Heidegger (1997, p. 273) o Übermensch não é um ideal suprassensível, do mesmo modo que
também não “é uma pessoa que em algum momento ou em algum lugar se apresentará. Ele é como
a mais alta subjetividade da subjetividade concluída, o puro potente (Machten) da vontade de poder”.

145
roberto barros

e a oposição de Zaratustra com respeito a ambas. Zaratustra é o inimigo dos bons e


justos dentre a multidão, aquela que é incapaz de compreender o ensinamento do além-
-do-homem e o seu significado. A passagem seguinte, a descrição do encontro de Za­
ratustra com os coveiros na porta da cidade, é a confirmação dessa oposição. Os covei-
ros são aqueles cujo ofício é precisamente o de estabelecer uma última, única e final
forma de relacionamento do corpo imóvel com o mundo. Na cena eles ­encontram-se
relacionados com a morte e, ao mesmo tempo, com uma certa noção de pureza estabe-
lecida por eles e incompatível com o bocado de carne do cadáver (Braten). Os coveiros
têm o seu elo com a moral da antiga gravidade, cuja noção de pureza desqualifica
tanto o corpo quanto o mundo, aspecto indicado pela sua referência ao diabo, símbolo
negativo, referido no gracejo feito pelos coveiros, segundo o qual: “Acaso Zaratustra
pretende roubar do diabo o bocado que lhe cabe?” (Z/Z Prólogo § 8).
A nona parte do prefácio marca o fim dos cuidados de Zaratustra com o morto, o
seu despertar após uma noite passada na floresta e a descoberta de uma nova verdade
que ele comunica ao seu próprio ­coração. Tal verdade consiste no direcionamento de-
cisivo que ele deseja dar à sua sabedoria, a ser transmitida aos vivos e apenas àqueles
que desejem assumir a responsabilidade da própria existência.

Porém, preciso de companheiros vivos, que me sigam porque querem seguir-se a si


mesmos – e para lá onde eu quero.
Uma luz veio sobre mim: não para o povo fala Zaratustra, mas para companheiros!
Zaratustra não deve se tornar cão e pastor de rebanho!
Atrair muitos para fora do rebanho - para isso eu vim.
Zangados devem estar comigo o povo e o rebanho: ‘ladrão’, quer chamar-se Zaratustra
para os pastores.
Pastores digo eu, aqueles que se dizem bons e justos. Pastores, digo eu, mas eles se
dizem crentes da fé correta (Z/Z Prólogo § 9).

Essa passagem revela o traço seletivo dos ensinamentos de Zaratustra, posto ­agora
como criador, do mesmo modo que a oposição que ele decisivamente estabelece para
com todos os crentes e crenças afirmadas como absolutas, aspecto possibilitado pela
morte de Deus e que visa a afirmar, a partir de então, novas possibilidades de criação,
pois segundo Zaratustra: O destruidor das tábuas de valores (der zerbricht ihre Tafeln
der Werthe), o criminoso, é o criador (Schaffender).
Criação significa a superação da antiga gravidade e, desse modo, a possibilidade
de uma nova hierarquia de significações e do novo, indicada para o homem através da
individualidade criadora.

146
o além-do-homem enquanto ideal estético

Companheiros, procurem o criador, e não cadáveres; nem, tampouco, rebanhos e c­ rentes.


Participantes da criação, procurem o criador, que escrevam novos valores em novas
tábuas. (…) Aos que criam quero eu me unir, aos que colhem, que festejam; quero
mostrar-lhes o arco íris e todas as escadas do além-do-homem (Z/Z Prólogo § 9).

O ensinamento do além-do-homem justifica-se, portanto, não pela possibilidade


de realização ( Julião, 2007, p. 86), mas por aquilo que fomenta e possibilita seu remeti­
mento a estados superiores não determinados e postos como possibilidades. Daí Zara-
tustra indicar, no final do nono tópico, que sua canção é feita para os solitários ou em
solidão a dois, “aqueles que têm ouvidos para o inaudito” (Z/Z Prólogo § 8).
Nas partes subsequentes de Assim falava Zaratustra, o além-do-homem é mencio-
nado em várias passagens, tanto direta quanto indireta­mente. Entretanto, em nenhuma
delas a noção tem a mesma ênfase que no prólogo. Isso não deve ser entendido como
um afastamento gradual do ensinamento no interior do livro, mas como um dado es-
trutural do mesmo que, concebido como drama, visa a transmitir um Pathos trágico.
Assim, se o ensinamento do além-do-homem é proferido ­enfaticamente no início de
Assim falava Zaratustra, isso se deve ao fato de que ele é a preparação para o anúncio
do ensinamento capital da obra, o do eterno retornar de todas as coisas, o que lhe evi-
dencia o traço antecipatório com respeito àquele.

Efeito estético e idealidade épica

Os aspectos a serem aqui apresentados e explorados com vistas a uma interpreta-


ção estética do ensinamento do além-do-homem, para o que a argumentação anterior
visou a fornecer os pressupostos, são: a) primeiramente, o afastamento efetuado por
Nietzsche desde os seus primeiros escritos de quaisquer noções de fundamento e, por-
tanto, de verda­de, no sentido que esses termos vieram a adquirir para a tradição fi
­ losófica
e metafísica ocidental. Isso pressupõe, no que diz respeito às referências elucidativas a
Zaratustra nos escritos posteriores, uma reconsideração do movimento argumentativo
do autor com respeito a essa obra. Mesmo que isso também signifique um ­afastamento
crítico com respeito a posicionamentos de O nascimento da tragédia, o estudo dos frag-
mentos póstumos trás à luz uma nova gama de importantes referências a algumas
concepções deste escrito, neste segundo momento; porém, mais próximas dos posicio-
namentos teóricos do autor na década de oitenta, tais como o filosofar histórico, anti-
metafísico por excelência, e a compreensão da atuação estético-metafórica da razão
humana. Com isso, chega-se ao segundo aspecto, decisivo e cuja análise foi empreen-
dida nas partes ante­riores: b) A crítica nietzscheana às possibilidades de transmissão
definitiva de qualquer espécie de discurso, a partir da indicação das limitações e arbi-

147
roberto barros

trariedades das línguas e gramáticas;19 posicionamento justificado por ele como forma
de afastamento das aspirações e crenças conceituais e epistemológicas da filosofia racio­
nalista-metafísica (Machado, 1997, p. 17). Esses aspectos possuem ampla importância
quando relacionados à autoconsideração do autor como o mais oculto dos obscuros, do
mesmo modo que na construção do labirinto argumentativo por meio do qual N ­ ietzsche
desejava selecionar o seu leitor (M/A Prólogo § 5). Esses dois pontos possibilitam
analisar a forma de comunicação dos pensamentos nucleares de Nietzsche por meio da
fala poé­tica e da inspiração musical de Zaratustra, aproximando-a da elevada conside-
ração alemã da idealidade dos gregos, mas que, ao mesmo tempo, o distanciam dela,
devido a sua indicação crítica da sua moralização.
O afastamento do racionalismo e da metafísica, a compreensão da i­ mpossibilidade
de justificação do saber segundo pressupostos próprios, remete Nietzsche à formulação
de uma concepção de filosofia fundada nos princípios da interpretação e da criação, que
acabam por aproximá-la da arte. Trata-se de uma filosofia isenta de determinismos,
sejam eles in­terpretativos ou conceituais. Esse posicionamento é, todavia, entendido
por ele como elevada concepção de cientificidade, que surge e se eleva por meio da
compreensão filosófica da fragilidade da moral do conceito metafísico de ­conhecimento
e da sua aspiração por uma verdade final acerca do existente. A filosofia – e esse é o
traço que se deseja aqui significativamente ressaltar –, indissociável do rigor científico
em sentido imanentista, pode com isso ser aproximada decisivamente da experiência
estéti­ca da arte e ainda assim justificar-se como tal, a partir da evidência da justificação
unica­mente moral da verdade absoluta. Não existe uma relação essencial entre valor e
coisa. Todas as relações dessa natureza se deixam reduzir a atitudes metafóricas que, em
última análise, são então interpretadas como estéticas. A história e a psicofisiologia da
história – ou seja, a compreensão dos processos metafóricos de simplificação de onde se
­origi­na a própria história e as demais formas de compreensão humanas – demonstram a
necessidade da superação da ontologia e a evidência do perspectivismo (FW/GC § 242).
Assim sendo, a filosofia em Nietzsche não busca e até mesmo não pode mais se j­ustificar
por meio de verdades axiomáticas, mas busca fazê-lo por meio da compreensão da po-
tencialidade de uma certa espécie de efeito estético que, em última análise, é um dos
fins últimos da arte (FW/GC § 78).
Visando a ser afirmativo para então ser “verdadeiro”, Nietzsche não descarta, mas
reformula a noção de verdade, confrontando-a à ideia de probidade intelectual e reti-
19
Nietzsche escreve em um fragmento de 1882: “O inteligível na linguagem não é a palavra mesma,
porém o tom, força, modulação, tempo, com a qual uma s­ equência de palavras é proferida – ime-
diatamente a música atrás das palavras, as paixões atrás da música, a pessoa atrás dessas paixões:
portanto, tudo que não pode ser escrito. Por causa disso ele não tem nada a ver com literalidade.”
NF/ FP: KSA 10 3 [1] 296. Verão – outono de 1882.

148
o além-do-homem enquanto ideal estético

rando-lhe o acento metafísico. Com isso, é por ele mobilizada a noção de veracidade
(wahrhaftigkeit) (NF/FP: KSA 12, 5[71] 2, verão de 1886 outono de 1887), enquanto
produto tardio da própria verdade (Müller – Lauter, 1871, p. 97), que então perece
junto com a divindade absoluta. A filosofia de Zaratustra, enquanto ­coroamento de um
amplo processo de introspecção criativa, representa o levar às úl­timas consequências o
anseio pela verdade, que acaba por inviabilizar a noção tradicional dessa, estabelecida
pelo racionalismo e pela metafísica. Disso resulta a necessidade de um outro posicio-
namento filosófico, que compreende, a partir da constatação da derrocada dos princípios
originários e fundantes da metafísica, a impossibilidade e a inexistência ­efeti­va da
verdade em si e então precisa aceitar a veracidade como limite interpretativo do homem
(NF/FP: KSA 13, 14[168], primavera de 1888). Apartada da metafísica, a veracidade
não necessita ser compreendida como referente à verdade tradicional, mas sim ser en-
tendida como ­limite interpretativo do homem, em sua relação com um mundo, então
compreendido como desconhecido (ibid.). Contudo, a noção de veracidade não signi-
fica o fim da aspiração pelo conhecimento. O que se altera é apenas a relação do homen
do conhecimento (Wissender) para com ambos. A partir disso, ele pode até mesmo
­continuar a ambicionar a ­universalidade, pois no mundo regido pela vontade de poder
essa aspira­ção é até mesmo irrefreável. A probidade intelectual descortina a impossibi-
lidade ­dessa pretensão tirânica e então remete o filosofar a um exteriorizar interpreta-
tivo da individualidade em sua relação com o mundo. Na elaboração do pensamento
de Nie­tzsche, tais posicionamentos teóricos podem redundar em um perspectivismo
argumentativo, aproximado da arte e indicador de sentido, no qual são valorizados o
experi­mento e a criação, entendidos como forma de valorização estética da própria
ciência, pois conferem uma nova e enigmática beleza ao mundo (FW/GC § 339).
Com Assim falava Zaratustra, Nietzsche visa comunicar uma espécie de pathos
artístico fundamental, que ele então denomina, n­ ovamente, de trágico. Esse é n
­ ecessário
para que se compreenda a aventura que se torna o conhecer livre do domínio moral.
Antes de pensar como os fi­lósofos herdeiros do legado platônico, segundo o qual o
conhecimento levaria à justiça e ao bem, Nietzsche concebe o desejo de conhecer como
uma difícil e arriscada empreitada, que para ele não possui quer um fim, quer qualquer
garantia de benefício para o homem (FW/GC § 309). A única vantagem que pode
advir dela deve ser interpretada sob a égide da experiência estética, advinda do mara-
vilhamento diante de um mundo tornado desconhecido e não previsível, mas que,
desse modo, tornou-se perigoso, incerto e indeterminável. Para suportá-lo - e mesmo
para desejá-lo - é necessária a visão audaz (FW/GC § 324), trágica (FW/GC § 342),
que afere beleza a tal perigo.

149
roberto barros

Deseja-se aqui relacionar o renascimento do pensamento trágico na filosofia de


Nietzsche com a indicação da possibilidade de renascimento da arte, presente no penúl-
timo aforismo de Aurora. Para isso, é n ­ ecessário ainda pressupor a crítica dos pressupos-
tos da arte moderna realizada em Humano, demasiado humano. Partindo-se do ponto de
vista de que esses constituem aspectos imprescindíveis à consideração da importância
do discurso poético em A gaia ciência – enquanto livro que anuncia tanto o pensamento
do eterno retorno como Zaratustra – pode-se encontrar nos escritos de Nietzsche inú-
meras passagens, segundo as quais a arte constitui a forma prioritária de oposição ao
niilismo cultural e teórico.
Tal ponto de vista permite também compreender a filosofia de Nietzsche enquan-
to esforço interpretativo que associa rigor com experimentação de novas possibilidades
de análise da efetividade. O trágico mostra-se então como um aspecto chave para que
se compreenda a asso­ciação dos traços científico e artístico na filosofia de Nietzsche,
assim como para que se possa circunscrever a nova significação da idealidade em seu
interior. Isso se deixa evidenciar na referência posterior, então no quinto livro acrescido
posteriormente A gaia ciência, mais precisamente no penúltimo aforismo (§ 382), já
anteriormente mencionado. Nesse, Nietzsche indica pressupostos para a compreensão
da significação trágica de sua filosofia, precisamente a descoberta e conquista do ideal
(EH/EH Z/Z § 2), mas sobrepõe que é necessário compreender o seu novo estatuto.
A gaia ciência indica o renascimento da concepção trágica do m ­ undo e a integração
do dionisíaco à filosofia. O primeiro aspecto consiste em uma concepção artística, que
ressurge associada à nova perspectiva científica europeia do século XVIII (Thadden,
1993, p. 47), mas que Nie­tzsche então associa à arte, a partir de sua compreensão do
goro da metafísica em sua pretensão de correção do mundo. O trágico daí advém. Ele
significa a aceitação incondicional da vida tomada como algo ­indeterminável e desco-
nhecido e tal afirmação diz respeito mesmo aos seus mais duros e estranhos problemas
(NF/FP: KSA13, 24 [1] § 9, outubro – novembro de 1888). Na obra de Nietzsche, as
menções ao trágico e ao dionisíaco remetem imediatamente à questão de sua concepção,
decisivamente no que se refere à interpretação de ambos presente em O nascimento da
tragédia. Tanto nos escritos tardios como nos póstumos, como Ecce homo e Crepúsculo
dos ídolos, Nietzsche é enfático na diferenciação de suas concepções das por ele a­ tribuídas
aos gregos. O que ele transpõe para a filosofia não é mais a pretensão de restabeleci-
mento, nem do trágico, nem do dionisíaco, mas a importância e o efeito de perspectivas
vitais, fundamentalmente não socráticas e, portanto, não metafísicas. O trágico e o
dionisíaco em Nietzsche não são gregos, eles tornaram-se filosóficos e isso significa em
sua filosofia princípios vitais em sentido amplo. A ­função de ambos é dupla e ambígua.
Ao mesmo tempo em que podem servir de princípios de aceitação da existência, eles

150
o além-do-homem enquanto ideal estético

implicam a indicação do p ­ erigo da busca pelo conhecimento. Por esse motivo, a arte se
faz novamente necessária, para restabelecer a dinâmica de forças indispensável ao homem
para continuar a viver e a desejar viver.
Precisamente essa relação parece ser o motivo da não necessidade de Nietzsche de
enfaticamente mencionar o apolíneo, pois o dionisíaco ao qual Nietzsche se refere, pa-
rece trazer ainda consigo a reconciliação indicada em O nascimento da tragédia e que o
faz poder produzir a b
­ eleza, mesmo diante da insuperável compreensão trágica do m ­ undo.
Partindo-se deste ponto, é possível aproximar a compreensão do ensinamento do além-
-do-homem como o traço apolíneo inerente à filosofia trágica de Nietzsche. Ele pode ser
interpretado como o anteparo contra o temor causado pelas concepções da vontade de
poder e do eterno retornar de todas as coisas e, desse modo, deixa-se aproximar do
princípio apolíneo, tal qual este é descrito no primeiro livro de Nietzsche. Tendo em
vista essa proximidade, desejamos nos deter especificamente na consideração do ­aspecto
ideal aludido no aforismo 382 de A gaia ciência e, mais particularmente, na expressão
“mediterrâneo” ideal, a qual está diretamente relacionada ao início da tragédia e à o­ posição
a toda seriedade e moral experimentadas presentemente pela humanidade. Tomaremos
como primeiro ponto de consideração desses aspectos os movimentos de aproximação
e de afastamento de Nietzsche com relação à perspectiva trágica grega, pois apesar de
aparentarem uma oposição, deseja-se tratá-los aqui segundo uma perspectiva de desdobra­
mento, responsável pela formulação dos princípios criativo e experimental de sua fi ­ losofia.
Como primeira questão a respeito do estatuto da perspectiva artístico-trágica,
mencionamos a noção de inspiração, que é retomada por Nietzsche em Ecce homo, em
uma indicação bastante significativa: Nie­tzsche afirma que a inspiração atuante em
Assim falava Zaratustra deve ser entendida segundo a concepção dos poetas das grandes
épocas passadas; como a criação interpretada como revelação imediata e n ­ ecessidade
absoluta, cujo caráter mais estranho é o da necessidade da imagem e da metáfora (EH/
EH Z/Z § 2). Esse mesmo tópico de Ecce homo se e­ ncerra com o autor reafirmando a
mesma ideia e ainda acrescentando que talvez fosse necessário recuar milhares de anos,
para que se encontrasse alguém que pudesse afirmar ter tido a mesma espécie de sen-
timento (ibid., § 3).
Propomos aqui uma análise do significado do aparecimento da n ­ oção de ­inspiração
remetido a Assim falou Zaratustra, a partir da possibilidade de significação que lhe pode
ser dada após a sua crítica em Humano, demasiado humano. Com isso a intenção é
aproximá-la da referência ­feita em Ecce homo, a fim de saber se há entre elas algum
traço de mediação. Um primeiro indício de aproximação possível é a alteração do modo
de compreender a arte relacionada a antigos padrões de justificação, ­aspecto que ­adquire
importância a partir do reaparecimento do dionisíaco e do poético associados a Zara-

151
roberto barros

tustra e reafirmados em Ecce homo. Humano, demasiado humano, como já mencionado,


marca para Nietzsche ­justamente o momento de libertação de qualquer anseio pelo
restabelecimento de uma perspectiva trágica. Entretanto, isso deve ser melhor obser-
vado, pois simultaneamente a este distanciamento o autor não deixa de considerar
positivamente a cultura grega, muito embora demarque a sua extemporaneidade. Se-
gundo Giorgio Colli e Mazzino Montinari, para que se compreenda a proveniência da
obra, é necessário que se dê especial atenção aos aforismos escritos sem fim literário,
determinado no verão de 1875, que são os seguintes: 32, 33, 108, 114, 125, 148, 154,
158, 163, 224, 234, 261, 262, 360, 474, 607. Todos eles desenvolvem reflexões relacio-
nadas a temas gregos, sendo que, dentre todos, quatro apresentam como aspecto parti-
cular referências a Homero: § 114, § 125, § 154 e § 262 (Colli, KSA 14, p. 115).
O conteúdo desses aforismos apresenta aspectos significativos, passíveis de servir
como dados importantes à consideração da ideia de inspiração e de sua ligação com o
ensinamento do além-do-homem. Um aspecto expressivo desses aforismos é o de que
eles indicam a relação entre arte, embelezamento e afirmação da vida e que constituem
traços ­decisivos à compreensão do ensinamento. Um fator preponderante a ser aqui
indica­do é a ocorrência de vários deles fazerem referências importantes à poesia, ao
épico e a Homero. Com efeito, no aforismo 33 intitu­lado O equívoco sobre a vida ­necessário
à vida, Nietzsche se refere positiva­mente ao pensamento imperfeito, fonte de ­diferentes
formas de consideração do homem e, a partir dele, faz o elogio do retorno do olhar para
as exceções, para os talentos superiores e para as almas ricas, cheias de fantasia, pois
aquele que assim vive supera a vivência eminentemente excepcional (Ausnahme) com
relação aos outros homens. Ele se sente como parte de uma consciência universal da
humanidade (Gesamamtbewusstsein de Menschheit), toma-se como o alvo de todo o de­
senvolvimento do mundo, alegra com as suas obras e supera o desespero causado pela
percepção da ausência de sentido e de objetivos da existência humana, argúcia i­ nerente
à grandeza de sua fantasia. O sentimento de universalidade advém da capacidade de
deixar de ver (übersieht) os outros homens individualmente, o que só é possível por meio
do pensamento impuro (MA I/HH I § 33). Quem procede desse modo (e mesmo
aquele que o faz de modo contrário, considerando todos os homens) é sempre uma
exceção (Ausnahme), como alguém que é forte o suficiente para, mesmo percebendo que
a humanidade não tem nenhum alvo,20 exteriorizar-se e sentir-se como tal, esbanjando
(Vergeudet) como a florescência isolada na natureza, o que é um sentimento acima de
todos os outros. Entretanto, o sentir-se como huma­nidade e não apenas como indivíduo

20
“pois a humanidade em sua totalidade não possui nenhuma meta” (ibid.).

152
o além-do-homem enquanto ideal estético

e desperdiçar-se enquanto tal é um sentimento superior a todos os outros, algo que


apenas um poeta é capaz, pois eles sabem sempre consolar-se (ibid.).
No aforismo 108, Nietzsche aproxima a religião, a arte e a filosofia metafísica
enquanto produtoras de narcóticos que visam a tornar suportável o sofrimento ima-
nente à vida, porém sem aceitá-lo e, assim sendo, alterando os juízos acerca da vida,
produzindo com isso alívio e entorpecimento. Desse modo, elas se aproximam, porém
de forma bastante diferente, do efeito trágico que também existe em decorrência do
sofrimento. Enquanto o trágico necessita precisamente do impiedoso e irrevogável
destino, a religião continua a preterir, em lugar da aceitação do sofrimento, o narcótico
ante o mal humano. Com o decréscimo do e­ feito da religião e da arte, dá-se um afas-
tamento com respeito às causas desse mal, o que afeta também o poeta trágico, pois lhe
falta matéria para compor, pois a sua arte se alimenta precisamente do sofrimento e por
isso se torna cada vez menor.
No aforismo 114 encontramos a primeira referência a Homero, na qual é feito um
elogio do modo como os gregos se relacionavam com os deuses homéricos, os quais não
eram vistos como mestres dos homens, mas: “Viam apenas como o reflexo dos mais
bem logrados exemplares de sua própria casta, portanto um ideal, não o contrário de
sua própria essência (Wesen)” (MA/HH I § 114). Segundo Nietzsche, eles se sentiam
aparentados uns com os outros, como possuindo um interesse mútuo, uma aliança de
guerra (Symamanchie). A peculiaridade daquela crença estava em fazer os homens pos-
suírem uma ideia nobre de si, a partir de sua relação com uma nobreza mais alta. O
oposto de uma tal religião é o cristianismo, que com suas invenções psicológicas quer
“aniquilar, quebrar, aturdir, embriagar” e de modo a não haver nenhuma medida (Maass),
o que o torna, no mais profundo entendimento, bárbaro, asiático, pouco nobre, não-
-grego (ungriechisch).
Nova referência a Homero é feita no aforismo 125, quando o p ­ oeta é indicado
como aquele que estaria tão à vontade entre os deuses que não deveria ser necessaria-
mente religioso (unreligiös). Desse modo, ele ­poderia livremente remodelar a crença
popular, medíocre, rude e em parte horri­pilante – que, porém, é a fonte da poesia – como
um escultor com a ­argila (ibid., § 125), do mesmo modo que Ésquilo e Aristófanes e
os modernos Shakespeare e Goethe. No aforismo 154, Nietzsche se refere à ­necessidade
da fantasia homérica (homerische Phantasie) para os gregos, como meio de superar e
acalentar temporariamente o ânimo excessivamente apaixonado e a acentuada inteli-
gência, que lhes tornava a vida amarga e cruel. Eles, entretanto, não se iludiriam, porém
tinham necessidade da leviandade da fantasia homérica e assim, propositadamente,
driblavam a vida com mentiras. Logo, isso os tornara grandes mentirosos e o tema das
canções feitas para os deuses era a miséria humana (o predileto das divindades), o que

153
roberto barros

os tornou cônscios de que “unicamente através da arte poderiam tornar a miséria ­prazer”
(MA I/HH I § 154), e essa é compreendida por Nietzsche como a característica de
todos os povos poéticos, que associariam o desejo da mentira – assim como o convívio
diário com ela – à inocência.
Como primeiro argumento de justificação da significação da temática desses afo-
rismos para a consideração do além-do-homem, indica-se aqui a forte possibilidade de
interpretá-lo como ensinamento formulado a partir de influências gregas, do mesmo
modo que tal possibilidade adquire significativa relevância, tanto para a interpretação
de seu ­conteúdo, como para sua posição em Assim falava Zaratustra. Deve ser ainda
indica­do a posição do último dos aforismos acima mencionados em Humano ­demasiado
Humano. Com efeito, ao § 154 se seguem dois outros que tratam precisamente do
conceito de inspiração, nos quais Nietzsche c­ riti­ca a ideia da produção artística como
resultado dela, isso a partir do ponto de vista de que “todos os grandes (artistas) foram
grandes trabalha­dores (Alle Grossen waren grosse Arbeiter), incansáveis não apenas no
criar, mas também em repudiar, analisar (Sichten), transformar e ordenar” (MA I/HH
I § 155).
No aforismo seguinte, 156, o autor afirma que a inspiração apenas aparece em
épocas em que a força de produção (Productionkraft) estagnou devido a um obstáculo,
o que gera finalmente um imediato d ­ erramamento (Erguss), sem trabalho interior p ­ révio
(ohne vorhergegangenes inneres Arbeiten), que, porém, é interpretado como inspiração
imediata e como milagre que se realiza (vollziehe). Nietzsche prossegue argumentando
que, mesmo que todos os artistas tentem manter essa concepção, tal ca­pital não caiu do
céu, foi acumulado (angehäuft), do mesmo modo como acontece no domínio do bem,
da virtude, do vício (MA I/HH I § 156).
A crítica à noção de inspiração, destarte, caminha paralelamente a concepção de
uma ciência da arte que deve se opor às falsas conclusões e maus costumes do ­intelecto,
advindas do sentimento mitológico arcaico da justificação artística moderna (MA I/
HH I § 145). Entretanto, muito embora o seu tom crítico, essa perspectiva também se
associa ao elogio da poesia grega arcaica21 e, em especial, da arte homérica, que desde
O nascimento da tragédia é considerada como a arte apolínea por excelência, mas que
nesse momento é tratada como arte demasiado huma­na, por conseguinte, como ­produto
das leviandades fantásticas da menta­lidade poética. Esses aspectos devem ser levados
em consideração para que se possa analisar o último aforismo dos anteriormente indi-

21
Nietzsche não faz nenhuma menção a esse termo em seus escritos, mas ele é utilizado aqui por ser
ele, desde a segunda metade do século XIX, a designação do período da cultura grega a que o autor
se refere como pré-socrática ou trágica, portanto, não clássica. Cf. Cancik (2000, pp. 36; 41).

154
o além-do-homem enquanto ideal estético

cados por Colli e Montinari. Esse, com efeito, refere-se diretamente a Homero, recebe
assim precisamente o nome do poeta como título e inicia-se com a seguinte afirmação:

Homero – a maior evidência na formação grega ainda permanece ­sendo a de Homero


ter se tornado tão prematuramente pan-helênico. Toda liberdade espiritual e humana
que os gregos alcançaram retroage a este fato (MM I/HDH I § 262).

Muito embora essa afirmação inicial, Nietzsche indica que a fatalidade dos gregos
consistiu na trivialização de Homero, que lhes ­restringira o muito circunspecto ­instinto
de independência (ernsterer Instincte der Unabhängigkeit). Mesmo que de tempos em
tempos houvesse ­movimentos contrários a ele, o poeta sempre saiu vitorioso, o que
demonstra que todos os poderes espirituais desempenhariam repressão junto de seu
efeito liberatório (befreiende Wirkung), mas que haveria uma diferença entre a sua ­tirania,
a da bíblia ou a da ciência.22
O elogio da função narcótica da tragédia e da formação grega remetida primeira-
mente a Homero, tal como é tratado nestes aforismos, é aproximada na modernidade
e, muito embora criticamente, do efeito causado pela religião. Esta, todavia, como sa-
bido, é acerbamente criticada por Nietzsche. A referência à ciência da arte, no aforismo
145 do capítulo IV (Da alma dos artistas e escritores) de HH I, indica um importante
aspecto para a consideração noção de inspiração da qual Nietzsche faz uso em Assim
falava Zaratustra. Se essa noção volta a ser utilizada por ele, os aforismos indicam que
é em um sentido não totalmente moderno, mas perpassado pelas compreensões histó-
rica e científica dominantes na contemporaneidade. Tais compreensões podem, porém,
aproximá-la novamente do seu sentido grego, enquanto ordenação e reformulação do
desordenado, e não mais legitimá-la por intermédio de referência a uma miraculosa
origem ou à criação incondicionada. A partir disso, o filósofo pode formular a noção
de “mediterrâneo”, ideal relacionado à “grande saúde”, cujos conteúdos possuem moti-
vações e temáticas facilmente reportáveis aos gregos. A ideia de uma ciência da arte
possibilita compreender e evidenciar a percepção de que um moderno retorno ao épico
é possível, a partir da compreensão das possibilidades do efeito por ele causado e não
pela sua antiga forma de legitimação. Isso pode ser compreendido quando considerada
a aproximação da noção de “grande saúde” com a interpretação épica homérica, repre-
sentada por Nietzsche pela aceitação ampla da vida.23 Mas, por outro lado, a afirmação
final do aforismo 262, que menciona o caráter opressor de todas as potências espirituais,

22
Ibid. I § 262, p. 219.
23
Aspecto que já fora posto por Nietzsche em “A disputa em Homero”, último dos cinco “Prefácios”
escritos por ele e presenteados à Cosima Wagner no natal de 1872. Cf. KSA 1, p. 783.

155
roberto barros

indica precisamente a separação entre a perspectiva épica homérica e a que Nietzsche


faz uso contemporaneidade.
Ante essas indicações, evidencia-se em Humano, demasiado humano uma nova
consideração de um dos aspectos mais presentes no anseio juvenil de Nietzsche: o de
uma reformulação da cultura e da formação dos indivíduos através da perspectiva trá-
gica, o que ele, todavia, já no final da década de setenta, considera impraticável. Por
outro lado, os aforismos indicam claramente que não há uma recusa desses pressupos-
tos pelo a­ utor, muito embora, ao interpretar a atuação e justificação do poeta moderno,
ele o denuncie como inatual, demonstrando a distância entre o momento de seu surgi-
mento e maior vigor e a sua efetiva validade na contemporaneidade.
Desse modo, pode-se entender que muitos dos aspectos com os quais Nietzsche
se refere negativamente à mentalidade artística em Humano, demasiado humano reapa-
recem posteriormente relacionados a Assim ­falava Zaratustra. As novas menções ao
dionisíaco nos apontamentos para a sua obra capital, possibilitam que se fale de uma
nova utilização de pressupostos associáveis ao “Mistério de unidade” de O nascimento
da tragédia, presente na obra posterior na associação entre a aparência apolí­nea do
ensinamento do além-do-homem e o traço dionisíaco do pensamen­to do eterno retorno
do mesmo. Esses aspectos evidenciam a importância de pressupostos r­ ecorrentes a sua
interpretação dos gregos nos escritos posteriores.
Essa relação, com efeito, encontra-se posta em A gaia ciência, no aforismo 143, no
qual Nietzsche articula uma perspectiva ideal e uma crítica das morais de pretensão
absoluta. O direcionamento primeiro do aforismo é mostrar o eterno conflito entre
moralidade e individualidade a partir das religiões politeístas e monoteístas, de modo
a mostrar as vantagens daquelas e as restrições destas:

A maior utilidade do politeísmo. – Que o indivíduo pudesse edificar seu próprio ideal
e dele deduzir sua lei, seus prazeres e seus direitos – isso servia até aqui como o mais
monstruoso dos embaraços humanos e como a idolatria em si (…) (FW/GC § 143).

Segundo Nietzsche, fora graças ao politeísmo, a “maravilhosa arte de criar deuses”,


que esse impulso (Trieb) individual pôde se descarregar, purificar, aperfeiçoar e ­enobrecer,
posto que antes fora considerado como vulgar. O politeísmo é apresentado nesse mo-
mento como oposto à moralidade restritiva, pois embora para ele no passado a palavra
de ordem de toda eticidade (Sittlichkeit) tenha sido combater o instinto de um ideal
próprio (eigene), existia apenas o homem como norma (Norm), que cada povo acredi-
tava possuir como única e última, acima, fora de si, num mundo distante e superior (in
einer fernen Überwelt) e expressa nas suas divindades. Disso resultava uma grande quan-
tidade de normas e deuses que, todavia, não significavam a negação uns dos outros.

156
o além-do-homem enquanto ideal estético

Desse modo, acrescenta, os indivíduos (Individuen) foram aceitos pela primeira vez,
adquiriram direito à existência e toda a criação de seres não humanos te­ve por finali-
dade justificar o egoísmo e a glorificação do indivíduo.

A invenção de deuses, heróis, e além-dos-homens de todas as espécies, assim como de


homens comuns e sub-homens, de anões, fadas, c­ entauros, sátiros, demônios e diabos,
foi a invariável preparação para a justificação do egoísmo e da autoglorificação do
indivíduo (FW/GC § 143).

Este aspecto demarca a diferença entre politeísmo e monoteísmo. O primeiro


concebeu suas divindades em convívio e em liberdade, o que acabou por ser estendido
à sociedade. O segundo, por sua vez, consiste em uma sequencia rígida da doutrina de
um homem normal, de onde decorre a ideia de um deus normal, ao lado do qual os
outros deuses são postos como mentirosos. Este foi o maior perigo para a humanidade,
o perigo de estagnação prematura (vorzeitige Stillstand) em um princípio ideal de nor-
malidade, que a eticidade do costume (Sittlichkeit der Sitte) traduz definitivamente em
carne e sangue (FW/GC § 143).
Por esses aspectos, o politeísmo mostra-se como rico em possibilidades e em li-
berdade, ao passo que o monoteísmo, com sua crença moral na normalidade, mostra-se
restritivo e empobrecedor das possibilidades humanas.

No politeísmo encontrou-se prefigurada a liberdade de espírito e a multiplicidade de


espíritos do homem: a força para se criar olhos novos e próprios, e cada vez mais novos
e mais próprios: de tal modo que, apenas para o homem entre todos os animais, não
haja nenhum horizonte e nenhuma perspectiva eterna (FW/GC § 143).

O conteúdo desse aforismo adquire grande significado para a abordagem aqui


proposta. Se for considerado o fato de que A gaia ciência já antecipa, estilística e tema-
ticamente, traços de Assim falava Zaratustra (Salaquarda, 1999, p. 75), a aproximação
feita entre politeísmo e mito a partir do fator comum em ambos da invenção de seres
e, mais ainda, a relação indissolúvel entre mito e arte, pressuposta pelo termo invenção
(Erfindung), tal conexão remetida ao ensinamento do além-do-homem apresenta-se re-
pleta de conteúdos.
Fica claro na argumentação de Nietzsche que, conjuntamente ao elogio do poli-
teísmo, é feita a indicação da arbitrariedade da moral mono­teísta, voltada não à afir-
mação por embelezamento do indivíduo singular, mas empenhada unicamente em
formular doutrinas rígidas e deterministas de uma suposta normalidade humana. O
politeísmo, por seu turno, é elogiado pelos seus parâmetros humanos, assim como pela
indeterminabilidade destes, o que implica em um processo criativo.

157
roberto barros

Estes mesmos traços podem ser antevistos em Assim falava ­Zaratustra e relacio-
nados ao ensinamento do além-do-homem. O pressuposto b ­ ásico do seu anúncio é a
morte da divindade única, absoluta. Fonte da dominan­te forma de combate à indivi-
dualidade na contemporaneidade. É a percepção de sua morte que possibilita que o
ensinamento seja direcionado decisivamente a um processo criativo, pressuposto na
noção de autossuperação (Selbstüberwindung). A questão naturalmente decorrente ­dessa
analogia diz respeito então ao significado do épico e do mítico grego para Nietzsche
neste momento de sua produção. Uma resposta possível a essa interrogação pode ser
encontrada tanto nos escritos que antecedem, mas também decisivamente em escritos
posteriores a Assim falava Zaratustra, tal como em Ecce homo e em referência a ­Zaratustra.
Referindo-se a ins­piração poética de seu escrito, o autor desvincula a sua criação de
modelos anteriores: “Esta obra vive absolutamente por si própria. Deixemos os poetas
de lado: nada criaram até agora com tamanho poder. A minha visão do ‘dionisíaco’ foi
um ato excelso; à sua medida todas as ações humanas aparecem pobres e limitadas”
(EH/EH Z § 6).
Nessa seção, Nietzsche evidencia o que pretendera com o seu Zaratustra, precisa-
mente efetuar regresso do falar humano à própria natureza da imagem, sem, no e­ ntanto,
indicar uma forma unívoca de fazê-lo. Desse modo, é decisivo bem dimensionar a
afirmação de que aquilo que Zaratustra profere é, segundo o autor, a fala do Deus
Dionísio, aquele que exprime e representa os eflúvios mais fundamentais da natureza.
Dionísio, com efeito, ao ser relacionado à natureza, necessita também o ser com a com­
preensão da indeterminação dessa, aspecto central na filosofia de Nietzsche. D ­ esde os
seus primeiros escritos, inquirir a natureza significa opor-se a toda a pretensão por
defini-la ou corrigi-la. Antes, ele busca tentar livrar os seus posicionamentos de tais
pretensões, para então evidenciar as potencialidades afirmativas de sua indeterminação
(FW/GC Prefácio § 4).
Parece, com efeito, altamente provável que a reaproximação com respeito a noções
bastante significativas de sua primeira fase de produção se deve muito mais a uma re-
tomada de suas possibilidades interpretativas que propriamente uma retomada do a­ nseio
de renascimento da arte g­ rega. Nos escritos posteriores, nos quais Nietzsche se refere
ao dionisíaco como forma de tornar compreensível o seu Zaratustra, ele o faz com
muitos aspectos que ratificam a tendência a utilizar essa noção para criticar a disposição
restritiva e dogmática tanto da religião quanto do racionalismo metafísico, diante do
mundo.24 Ele indica ensinamentos de Zaratustra como os seus “pensamentos abissais”
(abgründlichsten Gedanken) (EH/EH Z/Z § 6), resultantes de um ­refinamento estilís-

24
Como fica claro em Tentativa de autocrítica.

158
o além-do-homem enquanto ideal estético

tico que pode mesmo conferir ao além-do-homem a mais alta realidade (ibid., Z/Z § 6).
É óbvio que a esse respeito Nietzsche pressupõe não apenas a impossibi­lidade de um
fundamento verdadeiro, último e definitivo para o ensinamento, mas também a inver-
são de valores que confere nova significação ao termo realidade. O além-do-homem é a
aparência sem antípoda que se tornou então real, porém sem ultrapassar aquilo que a
partir de então caracteriza o real, o seu devir, a aparência.25 Desse modo, ele não pode
consistir em princípio normativo último ou único para todo homem e toda forma de
relacionamento desse com o mundo, pretensão que o autor já exclui com relação ao
mito desde O nascimento da tragédia 26 e que per­corre toda a sua filosofia. Estes aspectos
constituem pontos decisivos para que os ensinamentos capitais da sua obra madura
possam ser formulados tendo como justificativa a sua força estética.27
A respeito do conteúdo dos aforismos anteriormente analisados e de suas a­ ssociações
com o ensinamento do além-do-homem, desejamos indicar aquilo que apenas foi aludi-
do no decorrer da argumentação: que a libertação do espírito,28 a campanha contra os
preconceitos morais, em outras palavras, a luta pela transvaloração dos valores, possi-
bilita a Nie­tzsche reconsiderar as possibilidades da arte a partir de pressupostos extraí-
dos da mentalidade mítica grega, em especial do épico e do trágico, sem, no e­ ntanto,
pretender restabelecê-la. A confirmação desse aspecto pode ser feita segundo uma
passagem elucidativa presente no prefácio de A gaia ciência, precisamente posterior a
Nietzsche afirmar a neces­sidade de uma nova arte, uma arte apenas para artistas, e
ainda evidenciar que a sua filosofia não corrobora com qualquer vontade de verdade, de
“­verdade a qualquer preço”, que ele denomina de loucura juvenil (­jünglingswahnsinn)
no amor pela verdade. Uma forma diferente de lidar com a verdade é en­tão indicada
nos gregos, que Nietzsche não deseja repetir, mas que, ­todavia, deve ser mencionada:

Oh esses gregos! Como entendiam acerca do viver: para isso é necessário permanecer
corajosamente na superfície, na cobertura, na e­ piderme, para adorar a aparência, formas,
tons, palavras e crer no completo Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais
25
A ponto de Nietzsche escrever em GD/CI: “O mundo ‘aparente’ é o único, o mundo verdadeiro foi
acrescentado (hinzugelogen) pela mentira”. A “razão” na filosofia § 2.
26
Em uma visão retrospectiva, o primeiro momento da transvaloração.
27
Com respeito a isso escreve Roberto Machado: “ao escrever Assim falava ­Zaratustra, Nietzsche não
está propriamente interessado em renovar ou modificar os c­onceitos da filosofia; seu objetivo
principal, do ponto de vista da forma de expressão, é libertar a palavra da universalidade do con-
ceito, construindo um pensamento filosófico através da fala poética, mais do que, como nas outras
obras, através do uso do aforismo, do fragmento ou mesmo do ensaio” (1997, p. 21).
28
“Quem conhece toda a seriedade da minha filosofia na luta contra os ­ressentimentos de vingança
e de ódio, perseguindo estes sentimentos na própria doutrina da “vontade livre” (freien Wille) – a
luta com o cristianismo nada mais é que um caso isolado dessa luta – compreenderá porque m ­ otivo
quero aqui pôr à luz por completo a minha atitude pessoal, a segurança do meu instinto na prática.”
EH/EH Porque sou tão sábio § 6.

159
roberto barros

– na profundidade! E não voltamos a eles, nós, atrevidos do espírito, nós que galgamos
os mais altos e perigosos picos do pensamento atual, e vimos tudo a nossa volta como
abaixo de nós? Não seremos nisso – gregos? Adoradores da f­ ormas, do tom, das p
­ alavras?
Portanto – Artistas? (FW/GC Prefácio § 4).

Esse trecho corrobora com a compreensão de que o novo direcionamento fi ­ losófico


de que fala Nietzsche não é o do racionalismo ou da moralidade canônica judaico-
-cristã, mas que está associado a uma perspectiva artística, para a qual os gregos que
antecederam a conceituação racional da filosofia servem de modelo. Todavia, a título
de dimensionamento do significado dessa passagem, é interessante compará-la com as
afirmações de Nietzsche na seção O que devo aos antigos em Crepúsculo dos ídolos. Nela,
ele faz referência precisamente ao fato de ter com a sua filosofia encontrado um novo
acesso ao mundo antigo (GD/CI O que devo aos antigos § 1), mas, entretanto, afirma
que o apreço por essa influência não se aplica ao estilo, porém aos seus pressupostos,
pois indica, com respeito a este aspecto, dever muito mais ao classicismo romano que
aos gregos. Seu ponto de vista, todavia, é também discordante com relação à tradição
alemã de interpretação dos helenos, nominalmente da de Goethe e de Winckelmann
(NF/FP: KSA 8, 39 [1], 1878 – julho de 1879), que não perceberam um fator decisivo
à sua compreensão, a evidência funda­mental do instinto helênico (Grundthatsache des
hellenischen Instinktis): a sua vontade de viver (Wille zum Leben) que se manifesta no
orgiástico dionisíaco. Com ela, afirma, os helenos garantiram a “vida eterna, o ­eterno
retorno da vida, o futuro, prometido e consagrado no passado, o triunfan­te sim à vida
(...)” (ibid.). A compreensão do orgiástico e da vontade de viver dos helenos consistiu na
via de acesso do autor ao transbordante instinto helênico, do simbolismo de sua mani-
festação dionisíaca. Foi precisamente a identificação da psicologia do orgiástico, enten-
dida como “sentimento transbordante de vida e força”, e segundo a qual “mesmo a dor
age como estimulante”, que possibilitou a Nietzsche dar conteúdo a sua formulação do
trágico, aspecto que ainda deve ser remetido ao seu livro inicial, enquanto primeira
transvaloração de todos os valores e que, por conta do dionisíaco, deve ser vinculado a
Zaratustra e ao ­pensamento do eterno retorno (GD/CI O que devo aos antigos § 5).
Partindo-se dessas afirmações, pode-se concluir que o que Nietzsche assimila nos
gregos e o que ele busca manter no seu pathos filosófico (EH/EH Porque escrevo livros
tão bons § 4) inspirado pelo traço imoral do dio­nisíaco é, decisivamente, a manutenção
de um âmbito possível e ­irrestrito para a criação, tanto para a filosófico-científica, como
para a artística, o que o faz buscar aproximar ambas. O pensamento do eterno retorno,
advindo dessa inspiração e ao ser associado ao ensinamento do além-do-homem, possi-
bilita a interpretação deste segundo ensinamento ­segundo pressupostos apolíneos, por
conseguinte épicos, como se buscou demonstrar com a análise precedente. O traço

160
o além-do-homem enquanto ideal estético

épico, apolíneo, do ensinamento do além-do-homem deixa-se evidenciar no seu c­ aráter


ideal, no anseio pela eternidade da bela forma, na legislação aristocrática (NF/FP: KSA
13 2[106], outono de 1885 – outono de 1886), na experiência ­psicológica fundamental
de um mundo poetizado e sonhado, um mundo da bela aparência como redenção do
devir (FP: KSA 13 2[110], outono de 1885 – outono de 1886). Para que isso seja cor-
retamente considerado, é necessária uma consideração da noção de ideal mobilizada
por Nietzsche, desvinculada de todo o significado conferido ao termo pela tradição
me­tafísico-religiosa.
Com efeito, em 1887, na terceira dissertação de Para a genealogia da moral, ao
fazer a crítica do ideal ascético, Nietzsche se refere aos últimos idealistas entre os fi
­ lósofos
e doutos e os denomina “descrentes”, devido serem aqueles que teriam se ­afastado de
toda forma de crença e nos quais se manifesta decisivamente a consciência ­intelectual
(GM/GM III § 24). Segundo o autor, eles se consideram espíritos livres precisamente
por terem como ideal o mais acentuado desejo de conhecimento e por isso crêem que
se libertaram da tradição. Entretanto, acentua, um olhar mais cuidadoso revela que
não se afastaram da crença metafísica na verdade, daí Nietzsche afirmar: “Esses estão
longe de ser espíritos livres: eles creem ainda na verdade” (ibid.). O verdadeiro afasta-
mento da metafísica e do ideal ascético, entretanto, leva em consideração não mais a
verdade, mas o seu valor, noção que, segundo o filósofo estaria posta no aforismo 344
e em todo o quinto livro de A gaia ciência, no aforismo intitulado “Em que medida nós
também ainda somos devotos” assim como no prefácio de Aurora (GM/GM III § 24).
No aforismo de A gaia ciência acima mencionado, Nietzsche proble­matiza preci-
samente o desejo incondicional e a crença na possibilidade de alcançar uma verdade. A
ciência aparece aos seus olhos como inserida no domínio da crença, na fé em seus
pressupostos, a qual pode ser expressa de modo pertinente segundo o princípio de que:
“Nada se faz mais necessário que a verdade, e em relação a ela todo o restante tem
apenas valor de segunda ordem” (FW/GC § 344). O autor, porém, contrariamen­te a
essa proposição, remete a discussão acerca da verdade para um outro campo, o da sua
utilidade, no qual a dicotomia entre vontade de verdade e não querer ser enganado,
entre verdade e aparência, perde o sentido, diante do efeito que o engano e a aparência
podem ter para a vida.

Pois basta perguntar-se fundamentalmente: “Por que não queres enganar?”, especial-
mente se houvesse a aparência – e há essa aparência – de que a vida dependa dessa
aparência, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocegamento, e se,
por outro lado, a grande forma da vida sempre tivesse se mostrado, de fato, do lado
mais inescrupuloso polytropoi. Um propósito como esse poderia, talvez, interpretado
brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas poderia t­ ambém

161
roberto barros

ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à vida… “vontade de v­ erdade”
– isso poderia ser uma velada vontade de morte – (FW/GC § 344).

Na estruturação da argumentação de Para a genealogia da moral, a referência a esse


aforismo tem sentido como argumento constitutivo da abordagem do tema do ideal
ascético e de seu contendor. Ele explicita aquilo que Nietzsche afirmará em seguida:
que também a ciência não pode ser vista como contrária ao ascetismo, mas que, antes,
ela deve ser compreendida como a “força propulsora na configuração interna desse”
(GM/GM III § 25). Por outro lado, o da aparência que afirma a vida, é a arte que se
apresenta como a efetiva antagonista do ideal ascético. Eis o ponto que aqui nos inte-
ressa: a contraposição fundamental entre ambas é vista por Nietzsche precisamente no
conflito entre Platão e Homero.

A arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa


consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal as-
cético: Assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que
a Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antago-
nismo – ali, o mais voluntarioso ‘partidário do além’, o grande caluniador da vida; aqui
o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea (GM/GM III § 25).

Essa referência, no momento em que é feita, relacionada aos textos que foram
escritos para servirem de fio condutor a Assim falava Z ­ aratustra, como o quinto livro
de A gaia ciência e o prefácio de Aurora, indica que a consideração positiva da perspec-
tiva mítica grega e de seu fundamental viés estético é ainda uma influência importante
para Nietzsche. Isso aponta também a possibilidade de se compreender Assim falava
Zaratustra e sua inspiração como aproximada da dos poetas do passado, como uma obra
que deseja conferir ao seu discurso a mesma força de afirmação e embelezamento que
Nietzsche sempre interpretou na arte grega, na qual Homero é por ele indicado como
personagem decisivo por ser o ­modelo do artista ingênuo, imerso na produção da apa-
rência que se justificava por si mesma pelo efeito estético que propiciava.29
Mas a cultura mítica grega é fonte de inspiração para Nietzsche ainda por outro
motivo: ela é a prova da possibilidade de uma cultura apartada e distinta de uma moral
unívoca e de seus pressupostos. Ela continua a representar para ele uma perspectiva

29
Maria Bindschedler analisa esta referência a Homero no contexto da crítica da lógica e seus juízos
e do elogio do poeta como “idólatra involuntário” (­unfreiwilliger Vergöttlicher), que, porém, pode ser
tido como louco – no sentido de Nietzsche – diante da necessidade e de suas intenções. Segundo
a autora, essa referência deve ser entendida como esforço de Nietzsche em refutar as formas tradi-
cionais de consideração da mentira e da criação artística, para então poder afirmar que o que há de
notável na arte é precisamente a sua afinidade com a mentira - o que, portanto, exclui Homero do
âmbito da repreensão de Platão. Cf. Nietzsche und die poetische Lüge (Bindschedler, 1966, p. 60).

162
o além-do-homem enquanto ideal estético

diferenciada daquela que, segundo ele, se estabeleceu no ocidente a partir de Platão, foi
­­continuada pelo cristianismo e deu origem à ciência. Esta tem o seu efeito mais ­nefasto
não apenas na afirmação dogmática de seus princípios, mas a­ inda na condenação de
toda outra forma de avaliação e consideração do ­mundo e da vida. Este, com efeito, é
o tema do aforismo 261 de Humano, demasiado humano, que antecede ao aforismo in-
titulado “Homero”, ao qual é relacionado.
O aforismo é intitulado Os tiranos do espírito (Die Tyrannen des ­Geistes) e nele po­
demos confirmar que Nietzsche, mesmo nessa obra, exclui os gregos do período mítico
de sua crítica, ao afirmar que apenas onde cai o raio do mito brilha a vida dos gregos e
que o restante são sombras (MA/HH I § 261). Os filósofos, por sua vez, são acusados
de tirania no que diz respeito à sua crença no conhecimento, na esperança de, com um
único salto, chegar ao ponto final de todo o ser e lá solucionar o enigma do mundo
(ibid.). Crentes na plausibilidade de seus anseios, os filósofos teriam rebaixado tanto o
mito como os seus concorrentes, o que teria sido uma manifestação daquilo que todo
grego queria ser: um tirano e essa tirania da verdade entrou-lhes furiosamente no cor-
po como um veneno (id.). O direcionamento dado à argumentação precede significa-
tivamente pontos que serão enfatizados nas obras seguintes e se remete a problematizar
aquilo que foi interpretado como o curso natural da história grega.
Segundo esta consideração, a cultura grega que sucedeu o período mítico pode ser
vista como uma forma de empobrecimento de suas possi­bilidades, quando vista sob a
ótica da continuidade, pois: “Eles [os gregos] tinham uma grande multiplicidade para
serem sucessivos, como a tartaru­ga na corrida com Aquiles: e é a isso que se chama
evolução natural” (ibid).
Posta a partir da pressuposição de que algo descontínuo teria ocorrido na filosofia
grega, a pergunta decisiva é: se Platão tivesse ficado livre do enfeitiçamento socrático
(socratische Verzauberung), não se teria encon­trado uma outra espécie mais elevada de
filósofo? Os séculos sexto e quinto, escreve Nietzsche, parecem prometer algo mais e
ainda mais elevado do que ele próprio produziu, e acrescenta: “E não há ainda ­nenhuma
perda mais pesada, como a perda de um “tipo”, de uma nova e até então não d ­ escoberta
da mais alta possibilidade de vida filosófica (ibid.). Referindo-se a uma ruptura na
evolução do tipo filosófico manifesto na Grécia no período de Tales a Demócrito, que
teria demarcado o malogro dessa espécie filósofo, Nietzsche denomina tirania do e­ spírito
filosófico a crença na possibilidade da posse da verdade absoluta (Besitzer der absoluten
Wahrheit), cujo alcance chegou até épocas recentes, mas cujo período e­ ntão se encerra,
em favor de um novo domínio, indicado como o dos oligarcas do espírito (Oligarchen
des Geistes). Esses se reconhecem como membros de uma sociedade correspondente,
unindo todas as opiniões e juízos que antes separavam e dividiam e que assim se opõem

163
roberto barros

ao oclocrático caráter dos espíritos incompletos (halbgeistes) e da incompleta formação


(Halbbildung), pois eles têm em outros os seus melhores amigos e entendem os seus
sinais (ibid.).
Esse aforismo, mesmo considerando as objeções que se lhe possam fazer com
respeito a sua datação e perspectivas que o norteavam, demonstra claramente o ponto
da história ocidental que Nietzsche toma como decisivo para a formação do pensar
filosófico que se estende até o seu tempo. Com efeito, é no século IV a. C, com a pers-
pectiva socrática, que para ele se estabelece decisiva e rigidamente a crença na possibi-
lidade da posse da verdade e na determinação do mundo, o que teria seduzido to­dos os
filósofos e restringido as possibilidades de outras formas de vida filosófica. Em conside­
ração contrária, a visão dos primeiros filósofos gregos é caracterizada positivamente
devido a sua ampla aceitação da multiplicidade e do alcance da liberdade humana.
A referência ao mundo grego, sob o ponto de vista da identidade Homérica, ­surge
então como significativa para que se possa compreender o ideal ao qual Nietzsche se
refere no aforismo 382 de A gaia ciência; com efeito, a alma daquele que precisa da
“grande saúde” é aquela que deseja experimentar todo o âmbito dos valores e desejos
até o presente e então visitar as costas do “mediterrâneo” ideal. O uso das aspas, distin-
guindo o termo, é significativo, demonstra que Nietzsche se associa, mas mantém res-
salvas ao mesmo, especificamente ao relacionar esse ideal aos valores e desejos que
existiram até o seu tempo. Essa interpretação encontra base na indicação da n ­ ecessidade
de um novo fim e de um novo meio. O autor designa que na verdade esse ideal apenas
lhe propiciou chegar, mediante naufrágios e contusões, à “grande saúde”, àquela que
então, finalmente, possibilita que o antigo ideal tenha a sua limitação reconhecida, o
que torna aqueles que percebem isso argonautas de um novo ideal.
Tomemos agora o que resta das afirmações do aforismo 382 de A gaia ciência: a
distinção entre o “mediterrâneo ideal” e o novo ideal ao qual Nietzsche se refere e então
nos detenhamos nas últimas palavras, na contraposição a toda seriedade, naquilo que
até o momento foi tido como terrestre: a solenidade, a entonação e, f­ undamentalmente,
a moral. Então, relacionando isso com o que Nietzsche afirma em 1887, em Para a
genealogia da moral, acerca da contraposição basilar da cultura ocidental entre Platão e
Homero, compreendamos o retornar do ponteiro e, novamente, ao épico, nesse ­momen­to
associado ao dionisíaco e, desse modo, criando novas possibilidades para o r­ essurgimen­to
de uma perspectiva trágica.
Acrescentemos ainda a esses aspectos, a título de nova justificativa, o conteúdo do
aforismo 224 de Além do bem e do mal, cujas primeiras pa­lavras são:

164
o além-do-homem enquanto ideal estético

O sentido histórico (ou a capacidade de intuir rapidamente a hierarquia de avaliações


segundo as quais um povo, uma sociedade, um homem viveu, o ‘instinto divinatório’
para as relações entre essas valorações, para o relacionamento da autoridade dos ­valores
para com a autoridade das forças atuantes).

O sentido histórico direciona-se à análise das hierarquias morais e decorre preci-


samente da multiplicidade de morais geradas da semibarbárie (Halbbarbarei) da con-
fusão de classes (FW/GC § 103) e de raças que a Europa experimenta no final do
século XIX. Ele faz com que se desenvolva um fino sentimento para o labirinto das
culturas incompletas (unvollendenten Culturen) e toda semibarbárie que existiu até ­então,
o que revela o seu caráter não nobre (unvornehmer). A contraposição aqui é s­ ignificativa
e a posição de Nietzsche está indicada pela utilização dos termos grafados. Desse modo,
podemos entender que a semibarbárie recebe uma consideração positiva em ­detrimento
daquilo que na modernidade é considerado nobre, isso a torna contrária ao seu tempo
e essa diferenciação tem como exemplo mais feliz o retorno aos gregos e em especial a
Homero.

Nós apreciamos, por exemplo, novamente Homero: é talvez nosso mais venturoso
avanço, o fato de sabermos desfrutar Homero, do qual os homens de uma cultura
nobre (os franceses do século XVII, tal como Saint-Evemond que, digamos, lhe cen-
surou o espirit vaste, e mesmo o último soar dessa cultura, Voltaire) não souberam e
nem sabem tão facilmente se apropriar – e que não se permitiram aproveitar.

O gosto pela multiplicidade própria do sentido histórico resulta em homens des-


pretensiosos, desinteressados, modestos, bravos, muito gratos, pacientes, acolhedores e,
o que aqui nos chama particularmente a atenção, plenos de dedicação e de autossupe-
ração (voller Selbstüberwindung). Tal indicação queremos relacionar imediatamente com
as palavras finais do aforismo:

Talvez nossa grande virtude do sentido histórico esteja ­necessariamente em oposição


ao bom gosto, pelo menos ao melhor gosto, e apenas de modo precário, hesitante,
constrangido, possamos copiar em nós as pequenas, breves, excelsas fortunas (­Glücksfälle)
e transfigurações da vida humana, tal como aqui e ali fulgem: aqueles momentos e
portentos nos quais uma grande força ateve-se voluntariamente ante o desmedido e
ilimitado –, em que desfrutamos de uma abundância de sutil prazer na repentina su-
jeição e petrificação, no deter e empertigar-se num chão que ainda trepida. A medida
nos é estranha, confessemos a nós mesmos; o comichão que sentimos é o do infinito,
desmedido. Como um cavaleiro sobre o cavalo em disparada, deixamos cair as rédeas
ante o infinito, nós homens modernos, semibárbaros – e está precisamente lá a nossa
felicidade (Seligkeit), onde nós mais frequentemente estamos em perigo.

165
roberto barros

Esse aforismo evidencia em que sentido Nietzsche se refere a Homero. Ele não
pensa em um retorno puro e simples aos ideais gregos, muito menos em uma ­restauração
da cultura mítica daqueles, mas, antes de tudo, ele visa a fundar uma nova consideração
do heroísmo descrito no épico grego, que ele então deseja assimilar a sua filosofia como
forma de oposição e de refutação do dogmatismo da moral platônico-cristã (NF/FP:
KSA 11, 25 [293], janeiro de 1884). Isso lhe possibilita então reavaliar o bárbaro i­ neren­te
ao homem, enquanto forma de oposição àquilo que se tornou necessário, clássico, na
cultura. A referência a Homero, então, evidencia-se como a alusão ao primeiro objeto
de crítica do platonismo, quando do surgimento de uma nova mentalidade moral g­ rega
fundada no racionalismo platônico. Relacionado ao sentido histórico p­ ositivamente pen-
sado, Homero também é ligado à fortuna, que, todavia, o épico pode ­propiciar apenas
relacionando o viver com o constante perigo, o que em A Gaia Ciência implica a neces-
sidade de uma “grande saúde”, remetendo a um novo ideal, ao ideal de um bem estar e
benevolência sobre-humano, que perece frequentemente inumano (FW/GC § 382).
A relação entre o aforismo de Além do bem e mal escrito em 1886 e o tópico de
Para a para a genealogia da moral, tem como nexo a referência a Homero. A relação
entre estes textos e o aforismo 382 de A gaia ciência pode ser estabelecida a partir da
referência às formas de ideal contidas neste escrito. A alusão a Homero indica a perma­
nência de um termo que é inegavelmente repleto de significados em Humano, ­demasiado
humano e que deve então ser relacionado com ideia da Transvaloração de todos os v­ alores
(Groddeck, 1997, p. 190). Esta relação pode ser antevista no título que ele desejou dar
ao quinto livro de A gaia Ciência: Wir ­Umgekehrten (ibid., p. 197). Um outro aspecto
que deve ser mencionado é o fato de que o filósofo cogitou a hipótese de publicar, por
uma questão de tom e con­teúdo, o quinto livro de A Gaia ciência em uma nova edição
de Além do bem e mal (ibid., p. 193). Isso colocaria de maneira mais próxima a perspec­
tiva segundo a qual Homero significa para Nietzsche um exemplo positi­vo de formu-
lação de saúde afirmativa, em uma “grande saúde”, a qual, tendo em vista as relações
entre o quinto livro de A gaia ciência e Assim falava Zaratustra, podem ser prioritaria-
mente remetida ao prefácio e à primeira parte deste livro.
Pressupondo estas aproximações, desejamos retornar ao comentário de Assim ­falava
Zaratustra feito em Ecce homo, especificamente à já mencionada inspiração que ­Nietzsche
afirma ser atuante na concepção do livro, remissão a partir da qual podemos ­compreender
que essa noção, referida aos poetas de outrora, pode ser facilmente relacionada ao traço
artístico que Nietzsche sempre elogiou nos gregos anteriores ao século VI a. C, repre-
sentantes da cultura mítica.
Estudos confirmam essa interpretação, de que no mundo grego anterior ao surgi-
mento da grafia, o poeta ocupa a posição de portador e transmissor daquilo que então

166
o além-do-homem enquanto ideal estético

significava o vocábulo verdade (alétheia). Na poesia épica, o relato guardado na ­memória


é transmitido com acompanhamento musical, o qual, tido como proveniente dos ­deuses
e transmitido aos homens por intermédio das musas, conferia ao aedo um grau de
autoridade plena no que se refere à própria visão de mundo dos h ­ elenos, ou segundo
Marcel Detienne: “Com efeito, a palavra cantada, pronunciada por um poeta dotado
de um dom de vidência, é a palavra eficaz; ela institui, por virtude própria, um mundo
simbólico-religioso que é o próprio real” (Detienne, 1988 , p. 17).
A interpretação da significação e função imagética do épico i­ ndicadas por Marcel
Detienne adquire ainda mais proximidade com os pontos indicados por Nietzsche, ao
afirmar que tal registro da palavra pode ser esclarecido se posto em relação com o ­traço
fundamental, que é a imbri­ca­ção entre o conteúdo temático, moral, da poesia com a
organização da sociedade em que se inseria (Ibid). No que se refere a ­Nietzsche, a
compreensão desse vínculo possui dois momentos. Inicialmente ele busca retomá-lo,
motivado pela arte wagneriana e com uma perspectiva reformista da cultura segundo
padrões gregos. Em um momento posterior, essa mesma tentativa de restauração é
denunciada como extemporânea, sem âmbito para a sua compreensão na modernidade.
Todavia, mesmo a ­partir disso, o valor da potência da fruição estética não é negado. Isso
é evidenciado no § 261, na primeira parte de Humano, ­demasiado humano I, no indica-
tivo do autor em demonstrar a impossibilidade da expressão ­artística em seu tempo, se
ela for pensada segundo padrões inerentes ao passado. Outro argumento a ser indicado
como passível de aproximar a p ­ erspectiva nietzscheana do épico grego – aspecto que
pode ser remetido a uma consideração tanto do ensinamento do além-do-homem como
do aparecimen­to do termo aristocrático nas obras posteriores a Assim falava Zaratustra
(Wotling, 1995, p. 342) – consiste no fato de que tanto a poesia grega quanto o ensi-
namento de Nietzsche tem um direcionamento formador não canônico, com caracte-
rísticas bastante próximas, tal como a ausência de justificação histórica ou fatual e o
não remetimento a um tipo unívoco e representativo da excelência (aristeia).
Por conseguinte, o elogio poético grego, ao organizar o mundo ­ático, o fazia se-
gundo o modelo da soberania da sociedade arcaica, e, desse modo, pode ser compreen-
dido como um elogio aristocrático (Detienne, 1988, p. 19). A poesia em Nietzsche e
especificamente no que se refere ao ensinamento do além-do-homem, também visa a
elogiar a excelência humana em sentido não específico. Associada ao épico – mas não
­somen­te a ele – ela exprime também o desejo de surgimento de um novo sentimento
aristocrático, mesmo pressupondo que as aristocracias históricas não lhe possam servir
de justificativa. A concepção aristocrática de Nie­tzsche não é, portanto, histórica, mas
estética e, neste sentido, criadora. Se funda na força de sua capacidade imagética, no
sentimento de beleza que suscita e que por meio dele pode servir de anteparo tanto

167
roberto barros

contra o niilismo, como contra o temor advindo da assimilação do pensamento do


eterno retorno.
O que Nietzsche assimila dos gregos é a função e a significação estética da n
­ arrativa
poética para a mentalidade autárquica da soberania. Entre os gregos essa o fazia ­segundo
o modelo de uma ordenação ­ancestral do cosmo, cujas figuras ingentes eram os deuses,
modelos e princípio de justificação da classe dominadora.30 Tratava-se, por ­conseguinte,
de uma cultura para a qual não havia distinção entre real e simbólico e que se j­ustificava
primordialmente por meio do relato poético. Há muitos aspectos que aproximam a
noção de aristocracia em Nietzsche da dos ­gregos arcaicos e os ter integra ao ensina-
mento do além-do-homem.
Se para os gregos os deuses eram seres existentes, a aspiração que suscitavam não
podia ser remetida a um modelo definível. A multiplicidade de deuses e de heróis não
possibilitava tal assentamento. A aristéia não pode ser reduzida a um tipo definível. De
igual modo, o ­ensinamento do além-do-homem, a partir da crítica aos ideais das tradições
filosófica e cristã, assim como de sua significação estética, não implica a ­indicação de
um fim determinado ou de uma meta moral fixa (Stegmaier, 2009, p. 34). Antes, ele
consiste em um ativo ansiar pela superação engrandecedora da condição momentânea
(NF/FP: KSA 10, 4 [20], novembro de 1882 – fevereiro de 1883). Ele representa um
tipo (Art) elevado e não um indivíduo isolado (Wotling. 1995, p. 343) e delimitado,
pois no domínio da cultura a grandeza é medida pela grandeza do estímulo (Reiz),
precisamente quando os mais poderosos pensamentos podem ser suportados e amados
(NF/FP: KSA 10, 2 [5], verão – outono de 1882). Outro ponto significativo é a seleti-
vidade do ensinamento que, considerada a influência da epopeia na filosofia de N­ ietzsche,
possibilita com que o anseio pela superação (Überwindung)31 indicado no ­ensinamento
do além-do-homem possa ser aproximado do desejo incansável do aristocrata ­homérico
pela Areté,32 com vistas à afirmação do indivíduo em um meio que era, antes de tudo, a
expressão e a reprodução de uma concepção de mundo fundada na força e na autori-
dade (MA I/HH I § 461).

30
O que é evidenciado na Ilíada na afirmação de Agamenon a Aquiles:
“Reis não queremos ser todos que, aqui, nos achamos reunidos.
É mau que muitos comandem; um, só, tenha o posto supremo;
Um, seja o rei, justamente a quem Zeus, descendente de Crono,
deu cetro e leis, para o mando, no povo exercer inconteste.” Ilíada. Canto II (204 – 207), p. 62.
31
A relação entre Homero e autossuperação já foi aqui indicada no § 224 de BM.
32
Acerca do significado desse conceito, escreve Jaeger: “Não temos na língua portuguesa um ­equivalente
exato para esse termo; mas a palavra ‘virtude’, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente
moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao
heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.” (1989, p. 18).

168
o além-do-homem enquanto ideal estético

Em favor da possibilidade de aproximação destes aspectos, nos repor­tamos nova-


mente ao comentário de Assim falava Zaratustra feito em Ecce homo, em especial ao
quarto tópico. Nele, Nietzsche, após ter se referido à “grande saúde” e à sua experiência
inspiratória, indica que em Roma, cidade na qual tivera dificuldades causadas por pro-
blemas de s­ aúde, encontrava-se em local totalmente impróprio para o poeta Zaratustra.
Roma, enquanto antiga capital do império romano, nobre, afirmativo, expressão de uma
moral senhorial - moral que, contudo, cristianizou-se (Witzler, 2001, p. 115) –, não
pode ser o local de surgimento das palavras do sábio persa. A cidade para a qual o
autor se dirigiu em seguida, Áquila, já é indicada por ele como local apropriado, por ter
sido uma cidade que se rebelara contra Roma e que para ele encarna uma ideia ­contrária
à capital romana, tal qual o local que o autor afirma desejar fundar, contrário à igreja
(EH/EH Z/Z § 4).
É claro nessa referência que Nietzsche quer distanciar seu Z ­ aratustra tanto da
assimilação dos gregos pelos romanos, quanto do cristianismo, e isso indica também
um traço a ser considerado ao se cogitar a ­influência grega atuante na sua filosofia,
especificamente com relação ao e­ nsinamen­to do além-do-homem. Com efeito, após as
afirmações mencionadas acima, o autor indica em Assim falava Zaratustra uma parte
decisiva, intitulada “Das velhas e novas tábuas”. Essa se encontra presente na terceira
parte da obra e é composta por trinta pequenas partes, articulando vários posiciona-
mentos; porém, dentre esses, encontramos a indicação de uma nova concepção de
mundo e de formas de relacionar-se com ele, às quais são aliados o além-do-homem e o
apelo pela criação de uma nova n ­ obre­za, tudo isso pressupondo a quebra das antigas
tábuas de valor e a incomple­tude das novas (Z/Z Das velhas e novas tábuas § 1). Dentre
os demais temas mencionados, encontram-se passagens significativas para a argumen-
tação desenvolvida aqui. Inicialmente, a indicação de que a ­destruição das velhas tábuas
implica a superação do debate acerca do bem e do mal e que esta questão deve ser, a
partir das novas condições, remetida ao criador: Mas aquele que cria uma meta para o
homem e dá à terra o seu sentido e o seu futuro: ele primeiramente cria algo que é bem
e mal” (ibid., § 2).
A referência ao bem e ao mal relacionados à atitude criadora, m ­ arca a necessidade
de abandono das velhas cátedras e da velha presunção de conhecer os dois princípios.
O ato criador, desse modo, afastado de toda pressuposição cognoscitiva tradicional,33
encontra sua justificação na criação de um sentido e de um futuro para a terra, ­apartado
desde então do espírito de gravidade e suas criações: constrição, ordenação, n
­ ecessidade,
continuidade, finalidade e vontade de bem e de mal (ibid.).
33
Porém, com uma “verídica selvagem sabedoria” (wild Weissheit wahrlich) como grande anseio.
Ibid § 2.

169
roberto barros

Zaratustra menciona que foi durante uma tal existência, sobre a qual se dança e
se passa por cima dançando, que foi recolhida a palavra além-do-homem, assim como a
convicção de que o homem é algo que deve ser superado, de que ele é uma ponte e não
um fim (Zweck), e que lhe cabe ser feliz pelo seu meio dia e crepúsculo, como que no
caminho para novas auroras (ibid., § 3). Com o seu poetar, Zaratustra vem para ­redimir
os homens do acaso, ensina-lhes a criar o futuro e a redimir de maneira criadora tudo
o que foi, a isso ele chama de redenção.

Redimir o passado no homem e recriar todo o “assim foi” até que a vontade diga: “Mas
assim eu o quis! Assim irei de querê-lo”.
Isso lhes designei redenção. Somente isso ensinei-lhes a chamar redenção (ibid.).

O além-do-homem advém de uma atitude libertária ante a antiga moral e de um


ato criador que, recriando o passado lhe dá um sentido futuro e, desse modo, o redime.
Uma das novas tábuas postas diante de Zaratustra diz precisamente que o homem
necessita ser superado (ibid., § 4) e para isso há muitos caminhos, cuja escolha cabe a
cada um, pois superar a si mesmo é um direito que necessita ser tomado e não dado
(ibid., § 4). O sentido da autossuperação é a criação de uma nova ­nobreza (neuer Adel),
que saiba viver em perigo constante, que não deseje conservar-se e que assim se s­ acrifique
com vistas ao outro lado (ibid., § 6). Precisamente esta ousadia temerária é responsável
por uma nova espécie de verdade de ciência e pela quebra das antigas tábuas (ibid., § 7).
Esta nova nobreza distingue-se da plebe (Pöbel) precisamente pelo seu apreço pelo
passado. Mediante ele, ela deverá escrever em novas tábuas a palavra “nobre” (ibid., §
12), tornando aqueles que o fizerem semeadores do futuro (Säemänner der Zukunft).
Reafirmando a separação entre a sua concepção de nobreza e a de seu tempo, Nietzsche
afirma que esta nova casta nada tem a ver com ouro e não pode ser comprada, ela tem
origem em sua própria honra.

Não de onde viestes, seja, doravante, a vossa honra, mas para onde ides! Que a vossa
vontade e o vosso pé, que quer ir além de vós mesmos – seja a vossa própria honra!
(ibid., § 12).

Mas o fito da honra não está na restituição do passado, mas sim no futuro, no
porvir pleno de possibilidades.

A terra dos vossos filhos deveríeis amar: seja esse amor a vossa nova nobreza – o não
descoberto, nos mais longínquos mares! A elas digo para as vossas velas procurar e
procurar!
Deveis fazer bem aos vossos filhos, para que eles sejam filhos de seus pais: deveis assim
redimir todo o passado! Essa nova tábua eu coloco acima de vós! (Ibid § 12).

170
o além-do-homem enquanto ideal estético

A nova nobreza deve significar o contraposto a toda forma de negação do mundo


sob a justificativa do sofrimento inerente à existência, aos eternos descontentes (Nimmer-
-Frohen). Entretanto, seu significado mais profundo deve advir do eterno desejo de
criação, pois mesmo o que existe de melhor deve ser superado (ibid., § 14). Assim, é-lhe
necessário saber não desperdiçar as suas forças com qualquer oponente, para, desse modo,
poupar-se para o inimigo mais digno, do qual é necessário se orgulhar (ibid., § 21). O
seu ambiente, portanto, não é o do povo, que não merece nenhum rei e está apenas a cata
de vantagens para si:

Espreitam-se uns aos outros, espreitam uns aos outros alguma coisa – chamam isso
“boa vizinhança”. Oh, bem aventurado tempo longínquo em que um povo dizia a si
mesmo: “eu quero ser senhor dos outros povos!”
Então, meus irmãos, o melhor deve dominar, o melhor também quer dominar! E, onde
o ensinamento soa diferente, há, por lá – falta do que é melhor (ibid., § 21) .
Essa concepção hierárquica das relações entre os homens advém do passado, pois:
Aquele que penetrou a fundo as antigas origens acabará, estai certos, por procurar
fontes do futuro e novas origens. (…)
Porque o terremoto mesmo – obstrui, sim, muitas fontes e cria muita gente sedenta,
mas, também, traz à luz forças internas e misteriosas.
O terremoto revela novas fontes. Em terremotos, do ruir de velhos povos, irrompem
novas fontes.

O traço de inatualidade dessa nova concepção de nobreza também pode ser ante­
visto a partir de sua total oposição aos atuais bons e justos, àqueles que representam o
maior perigo para o futuro dos homens (die grösste Gefahr aller Menschen-zukunft) (ibid.,
§ 26). O que eles mais odeiam é o criador (Schaffender), aquele que parte as tábuas dos
velhos valores; o destruidor (Brecher), ao qual chamam de criminoso (Verbrecher) e, d ­ esse
modo: “sacrificam a si mesmos o futuro – crucificam todo o futuro dos homens!” (ibid.).
Esse futuro decorre do descobrimento da terra do homem, o que exige dele que se
torne navegador esforçado e paciente, a fim de se lançar no mar e atingir a terra pátria,
a terra de seus filhos (Kinder – land), que se encontra longe, mas para onde arremete o
grande anseio (grosse Sehnsucht) (ibid., § 28). Essa vida, que assim exige dureza, é volta-
da à criação e “os criadores mesmos são duros” (Die Schaffenden nämlich sind hart), para
assim poderem criar obras eternas:

Felicidade, escrever na vontade dos milênios, como em bronze – mais duros do que o
bronze, mais nobres do que o bronze. Duríssimo é somente o mais nobre.
Essa nova tábua, meus irmãos, suspendo por cima de vós: tornai-vos duros.

171
roberto barros

O que possibilita a criação do além-do-homem, da nova nobreza a ele r­ elacionada,


assim como a redenção do passado, é a transformação de toda necessidade em um
grande destino; de modo que com Zaratustra ela torne o homem pronto e maduro para
o grande meio-dia, pronto para um arco que almeja uma seta, que, por sua vez, deseja
uma estrela ­pronta e madura, que é feliz pelas destruidoras setas do sol e está pronta
para se destruir na vitória, na grande vitória.

Uma estrela pronta e madura em seu meio dia, incandescente, traspassada, feliz ante
destruidoras setas solares : -
Um sol mesmo e uma inexorável vontade solar; pronta para destruir na vitória
Ó vontade, mudança de toda necessidade, tu, minha necessidade! Reserva-me para
uma grande vitória!
Assim falava Zaratustra. (Z/Z “Das velhas e novas tábuas” § 30)

O tópico final desta parte de Assim falava Zaratustra confirma aquilo que aludimos
acima, que a retomada de pressupostos gregos e a sua utilização efetiva como discurso
contrário às valorações morais torna-se possível apenas devido à transvaloração de
todos os valores (Marton, 2014, p. 123), ação que derruba os antigos dogmas e então
possibilita ao homem voltar-se para si mesmo, para sua história e seu passado mais
verdadeiros, não deturpados pela moral religiosa (NF/FP: KSA 9, II [175] Primavera-
-outono de 1881). Então, a partir deles, torna-se possível desejar superar-se e querer
determinar o próprio futuro de uma maneira altiva e viril ante a vida e a sua dureza.
É a transvaloração que possibilita que o passado seja retomado e redimido com
vistas ao homem futuro, liberto da moral das antigas tábuas e tendo a sua frente o além-
-do-homem (Wotling, 1995, p. 335) como ideal e contraideal, como forma não apenas
de se contrapor aos ideais vinculados à moral (Müller-Lauter, 1971, p. 114), mas t­ ambém
como expressão de uma nova concepção do mundo, entendido por meio do ­pressuposto
da vontade de poder. Considere-se ainda que, para Nietzsche, um ideal apenas se ­afirma
se ele se confronta com outro ideal; assim se supera o ideal único (ibid., p. 118), pois
esta é a condição que evita o dogmatismo de toda e qualquer idealidade.
A indicação desta passagem de Assim falava Zaratustra em Ecce homo, justamente
após a referência ao antigo conceito de inspiração, possibilita­a confirmação de que
naquela obra é possível pensar em um novo olhar para o passado, não relacionado à
moral das antigas tábuas. O sentido futuro conferido à atitude da destruição da velha
moral ­revela, no entanto, que não se trata de um retorno unicamente, mas, a partir do
seu resgate como contradiscurso,34 de mostrar que já houve outras formas de valorar e
34
Nesse ponto parece ser pertinente a interpretação do movimento de Nietzsche em favor do mito,
não como um anseio de restabelecimento, porém como a­ rgumento de uma crítica aos rumos e
padrões adotados pela cultura ocidental. A esse ­respeito cf. Salaquarda (1979, p. 179).

172
o além-do-homem enquanto ideal estético

que, portanto, é possível que se criem novas, aspecto que o apelo por uma nova n ­ obreza
evidencia.
Mas voltemos aos traços com os quais Zaratustra deseja caracterizar esta nova
nobreza: o amor à terra, a decisão pessoal, a oposição à plebe (NF/FP: KSA 10, 16 [27],
outono de 1883), incapaz de aspirar algo além de si mesma e de seus pequenos p­ razeres,
o desejo de autossuperação, o sacrifício futuro, o viver na adversidade e a sua ­diferenciação
dos bons da moral, e os aproximemos dos traços da aristocracia grega, tal como são
retratados na poesia homérica e em Arquíloco. Uma primeira forma de aproximar
ambas as p ­ erspectivas pode ser alcançada por intermédio da análise da aristocracia
guerreira grega. Segundo Werner Jaeger, em seu longo estudo ­sobre a Paideia grega,
este conceito deve ser pensado na Hélade, i­mediatamente a partir de um retorno à
antiga aristocracia guerreira que, com seus princípios seletivos e de diferenciação, é a
fonte da identidade dos gregos:

A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação


de uma nação. A história da formação grega – o apa­recimento da personalidade na-
cional helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa no mundo a­ ristocrático
da Grécia primitiva, com o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao
qual aspira o escol da raça” ( Jaeger, 1989, p. 18).

Segundo Jaeger, na distinção grega entre educação como aprendizado prático e


formação do indivíduo em sentido pleno, interior e exteriormente, é necessário com-
preender que a formação postulou-se para essa aristocracia, segundo princípios ideais,
ou ainda, segundo os ­modelos postos figurativamente pela sua religião.

Da educação, nesse sentido, distingue-se a formação do homem por meio da criação de


um tipo ideal, intimamente coerente e claramente d ­ efinido. Essa formação não é pos-
sível sem se oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser. A uti-
lidade lhe é indiferente ou, pelo menos, não essencial. O que é fundamental nela é o
caloν, isto é, a beleza, no sentido normativo da imagem desejada, do ideal (ibid., p, 17).

O conceito decisivo da formação grega, tal como se apresenta na versão mais


antiga e original de sua aristocracia militar, na Ilíada (ibid., p. 28), é o conceito de Are-
té.35 Palavra do mesmo grupo semântico de aristoi, nome que designa um grupo nume-
roso de guerreiros que se ergue acima da massa e no interior do qual se dá enfatica-
mente a luta por ela como mais alto e distintivo prêmio (ibid., p. 20). Segundo Jaeger,
entre os indivíduos desses grupos ocorria o empenho incessante e durante toda a vida
35
A esse respeito escreve Jaeger: “A luta e a vitória, no conceito cavaleiresco, a autêntica prova de fogo
da virtude humana. Elas não significam simplesmente a superação física do adversário, mas a
comprovação da arete conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais” (Paideia, p. 21).

173
roberto barros

pelo alcance da supremacia entre seus pares, uma corrida para alcançar tal distinção
( Jaeger, 1989. p. 21) e esse ponto pode ser estendido até o campo da delimitação do
espaço no qual atuava o aristocrata grego. Desse modo, na delimitação do seu âmbito
de ­presença e atuação, o guerreiro se circunscrevia a um espaço delimitado, ao centro
(eς mesoν das assembleias dos aristoi, local da partilha do butim de guerra, feito segun-
do o desempenho de cada combatente (Detienne, 1988, p. 47). A esse âmbito, tal como
podemos ler na Ilíada, apenas tinham acesso ­aqueles que afirmaram o seu singular
valor individual em combate ou com f­ açanhas, o que o tornava para a elite guerreira o
lugar comum, que pelo próprio caráter aristocrático da epopeia, apresentava-se como
uma assembleia dos heróis.

No grupo dos guerreiros profissionais, a palavra-diálogo com seus t­raços específicos


continua sendo, apesar de tudo, um privilégio, o privilégio dos “melhores”, dos aristoι
do laós. A essa elite opõe-se a ‘massa’, o dêmos, que designa a circunscrição territorial,
depois, o conjunto de pessoas que nele habita. O dêmos “não ordena, não julga, não
delibera…Não é, todavia, nem povo, nem estado” (ibid., p. 53).

Na Ilíada, epopeia que descreve acentuadamente a temática da guerra e dessa


classe, todos os esforços dos anéres (andrés), homens na plenitude de sua natureza viril
(Vernant, 1973, p. 31), são voltados ou para a glória ou para a bela morte no campo de
combate. O aristocrata homérico, nessa epopeia, tinha em vista o reconhecimento do
seu valor como guerreiro, de suas aptidões corpóreas e de seu adestramento para a
atividade da guerra. Com o aprimoramento dessas qualidades, ele desejava suplantar
todos os outros que, como ele, adquiriram o direito estar no centro da assembleia dos
aristoi (NF/FP: KSA 10, 7 [101], primavera – verão de 1883).
Desejamos acentuar, baseados nos traços basilares referentes à descrição norma-
tiva do aristocrata na epopeia homérica, uma possível presen­ça desses mesmos aspectos
na filosofia de Nietzsche.36 Isso a partir da descrição elogiosa da mentalidade aristo-
crática homérica, que o filósofo empreende (NF/FP: KSA 11, 25 [293], janeiro de

36
O interesse de Nietzsche pelos antigos gregos está documentado nos três ­primeiros volumes da
Kritische Gesammtausgabe (KGW). Nesses volumes, encontram-se textos da pré-adolescência do
autor com significativas referências a temas da história e da cultura grega. Conf. Barros (2006).
Em um escrito póstumo de 1883 podemos ler:
“Conquistar para mim a completa imoralidade do artista no sentido de minha matéria [(Stoff )]
(Humanidade) [(Menschenheit)]: Esse foi o trabalho de meus últimos anos.
Para conquistar para mim a liberdade espiritual (geistige Freiheit) e alegria (­Freudigkeit), para poder
criar e não ser tiranizado por estranhos ideais (fundamentalmente pouco advém disso, do que eu
tinha me desprendido: porém, minha forma favorita de desprendimento (Losmachung) era a a­ rtística:
isto é, eu esboçava uma figura (Bild) de quem eu tinha me interessado até então: assim Schopenhauer,
Wagner, os gregos (o gênio, o santo, a metafísica, todos os ideais até agora, a mais alta moralidade)
– ao mesmo tempo um tributo de gratidão” (NF/FP: KSA 10, 16 [10] Outono de 1883).

174
o além-do-homem enquanto ideal estético

1884). Deve-se ­ressaltar que o louvor se remete a uma sociedade que tem seus valores
­transmitidos e perpetuados por uma longa tradição artística através unicamente de
relatos orais (EF: HF, p 256), apenas a partir da qual um indivíduo tem ou não direito
à existência.
Hoje sabemos que tanto a Ilíada como a Odisséia representam a última fase do
movimento épico na Grécia, originados dos poemas, sagas, lendas e mitos dos gregos.37
Estudos como o de Marcel Detienne, Jean Pierre Vernant, dentre outros, nos possibi-
litam uma maior aproximação do período de elaboração desse material, assim como do
ambiente no qual ele foi produzido. Sabemos que em uma cultura sem grafia, a ­memó­ria
possuía uma enorme importância na transmissão e manutenção dos caracteres culturais.
No que diz respeito ao poeta e sua atividade a­ ssociada aos valores da soberania guer-
reira, seu louvor se direcionava imediatamente aos fatos e grandes feitos afirmativos da
importância desta casta, os quais apenas por intermédio do aedo poderiam ser perpe-
tuados. Por mais prodigiosa que fosse a sua memória, ela jamais poderia reter todos os
fatos ocorridos, o que implica em uma dupla significação da memória na Grécia ­arcaica:
primeiramente a necessária seletividade da memória do poeta, que, explicitamente ado-
tando o critério da excelência e superio­ridade afirmada na religião, adota a memória
como princípio temático de suas composições elogiosas da excelência divina, humana
e animal. Disso decorre o segundo aspecto a ser indicado, o da necessidade do indivíduo
inserido em uma tal cultura de cada vez mais acentuar a sua singularidade e destacar-se
dos demais homens (Detienne, 1988, p. 20), pois apenas assim, e mediante grandes
feitos no campo de batalha, ele poderia aspirar à perpetuação de seu nome para as
gerações futuras.38

Ligado aos ritos de soberania e, portanto, às explicações religiosas acerca da orde-


nação do universo, a palavra poética, no que se refere à aris­tocracia guerreira, adquire
um movo significado: ela celebra simultaneamente as façanhas individuais e singulares
dos guerreiros, assim como conta a história dos deuses (ibid., p. 17). Enquanto palavra
laudatória em uma cultura oral é ela que estabelece os graus de significação dos feitos
e da vida vivida. Acerca disso escreve Detienne: “Definitivamente, um homem vale o
mesmo que o seu logos. São os mestres do louvor, os ­serventes das musas, que decidem
sobre o valor de um guerreiro: são eles que concedem ou negam a vitória” (ibid., p. 19).

37
Nunes, Carlos Alberto. A questão homérica § 1, São Paulo: Ediouro, s. d.
38
É precisamente isso que canta o poeta no início do V canto acerca do Herói Diomedes:
“Palas Atenas, a donzela de Zeus, em Diomedes infunde
força e coragem sem par, para que entre os Argivos pudesse
sobressair mais que todos e glória imortal conquistasse.” Ilíada. canto V (1-3).

175
roberto barros

O mundo do herói homérico efetiva-se no âmbito de exigências em graus cada


vez mais elevados, poder-se-ia mesmo dizer que sua e­ xistência consiste em um cons-
tante superar-se, em aprimorar a sua Areté, para pô-la à prova diante da de seus
concorrentes,39 o que pode ser e­ videnciado, por exemplo, na Ilíada, nas palavras de
Glauco diante de Diomendes:

Quanto a mim, tenho orgulho de filho chamar-me de Hipóloco,


que me mandou para Tróia sagrada, insistindo comigo
para que sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me,
sem desonrar a linhagem dos nossos, que sempre entre os fortes
de Éfira foram contados, bem como na Lícia vastíssima
(Ilíada. Canto IV. Versos 206 -210).

O anseio pela memória é o anseio pela eternidade, pela perpetuação imagética de


uma vida, unicamente possível mediante a sua guarda pela memória e pelo exercício
poético. Assim, pela justificação da vida vivida, a partir das exigências vivificadoras da
memória, essa passa a desempenhar o único meio de conferir sentido à vida do ­indivíduo
singularíssimo. Se o herói deseja a morte gloriosa, ele o faz não por uma aspiração de
abandono ou de autodestruição, porém, por uma ambição desmedida de fazer-se pre-
sente eternamente na memória dos homens. Este aspecto podemos antever no canto
III da Ilíada, expresso pelo poeta nas palavras de Agaménone, ao estabelecer os termos
do combate a se dar entre Páris e Menelau : “porque a memória do feito para que às
gentes vindouras se estenda” (Ilíada. Canto III. Verso 287);40 ou ainda no discurso de
Heitor ao lançar aos gregos o desafio de um combate singular:

Se febo Apolo, porém, me fizer vencedor do adversário,


despoja-lo-ei da armadura e, levando-a para Ílio sagrada,
no templo irei pendurá-la de Apolo, frecheiro infalível,
mas o cadáver será restituído aos navios simétricos,
para que os fortes Aquivos cacheados lhe dêem sepultura
e um monumento lhe elevem na margem do lago Helesponto;
para que possam dizer às pessoas dos tempos vindouros,
quando, em seus barcos de remos, cruzarem o mar cor de vinho:
“Eis o sepulcro de um homem que a vida perdeu há bem tempo;
pelo admirável Heitor, em combate esforçado, foi morto”

39
Exemplo significativo com respeito a esse aspecto são as palavras de Agamenon a Aquiles, o herói
modelar da epopeia:
“És, dos monarcas alunos de Zeus, a quem mais ódio tenho.
Sempre encontraste prazer em contendas, combates e lutas”. Ilíada. Canto I. 176-7.
40
Ilíada. Canto III. 287.

176
o além-do-homem enquanto ideal estético

Isso dirão, certamente; imortal há de ser minha glória


(Ilíada. Canto VII. 81-91).

A morte heroica, a ser buscada no campo de batalha, no auge da juventude e da


beleza, impele o aristos a incansavelmente ocupar os primeiros lugares no combate. Dele
é exigido estar sempre onde a luta é mais acirrada e as exigências de força e de ­destreza
sejam maiores que as dos demais combatentes; pois ele aspira fundamentalmente que,
em caso de morte pelo traspasso, essa venha a propiciar-lhe a mais alta e imorredoura
glória.41 A morte heroica tem, por conseguinte, este c­ aráter ambíguo: por um lado, ela
é fruto de um profundo apreço pela existência,42 que impele o herói a desejar vivê-la
intensamente, embelezando-a e fugindo da “inamável velhice, que agrava excessiva-
mente a postura”;43 por outro, ela é a confirmação da condição terrível a qual estão
sujeitos os homens, “os mais infelizes dos seres que vivem na face da terra e sobre ela
se movem”,44 mas que mesmo assim, a desejam intensamente.
Para o aristocrata homérico na Ilíada o sentido da existência é conferido pela sua
possibilidade de embelezamento e salvaguarda da ação aniquiladora do tempo e do
esquecimento. Esta realização encontra-se ao alcance apenas dos indivíduos que, me-
diante grandes feitos heroicos e de uma morte alcançada na tentativa de realização de
atos de bravura, tornam-se a demonstração do sentido da bela morte a ser contada às
gerações futuras. Assim eles perpetuam o mesmo modelo que já lhes fora transmitido45

41
Por conseguinte, são estas as palavras de Heitor, ante as muralhas de Tróia e ao perceber a proxi-
midade de sua morte pelas mãos de Aquiles:
“Pobre de mim! É bem certo que os deuses à morte me votam.
Tive a impressão de que o forte Deífobo estava a meu lado,
mas na cidade se encontra; foi tudo por arte de Atena.
Inevitável, a morte funesta de mim se aproxima.
Há muito tempo, decerto, Zeus grande e seu filho flecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem, pois eles,
sempre benévolos, soíam salvar-me; ora o Fado me alcança.
Que pelo menos, obscuro não velha eu a morrer, inativo;
hei de fazer algo digno, que cheque ao porvir, exaltado” (id.., Canto XXII. 297- 305).
42
Dai Aquiles dizer a Ulisses acerca de Agamenon na cena da comitiva:
“Tal como do Hades as portas, repulsa me causa a pessoa
que na alma esconde o que pensa e outra coisa na voz manifesta”. Ilíada. Canto IX. 312 – 313.
43
Id., Canto XXIII. 623.
44
Id., Canto XXII. 446-7.
45
Acerca da significação desse legado para a “formação” do herói homérico, nos remetemos à figura
do próprio Aquiles. Afastado dos combates e recluso ao seu navio, é descrito no momento da
chegada da pequena comitiva que pretende demovê-lo de sua decisão de não mais participar dos
combates nos seguintes versos:
“Quando chegaram às tendas e naves dos fortes mirmidões,
aí enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora

177
roberto barros

e desejam impelir, no mesmo caminho, os homens futuros. É neste sentido que se deve
entender a lógica da honra heroica, o seu apreço pela vida, manifesto simultaneamente
como desejo de morte, pois segundo a sua ótica: “São mais poupados na guerra os que
sabem morrer bravamente; os fugitivos nem glória jamais terão nem defesa” (Ilíada.
Canto XIX. 564-5).
A perspectiva aristocrática forneceu o germe da noção de autoaprimoramento, que
posteriormente constituirá o cerne da concepção clássica de Paideia grega, que Platão
busca alterar e adequar segundo seus pressupostos filosóficos. A oposição a Platão feita
por Nie­tzsche mediante um retorno à cultura grega pré-filosófica oferece importantes
indícios de que pressupostos compreendidos por ele na época mítica dos gregos são
transpostos para a sua filosofia como forma de oposição ao platonismo e ao cristianis-
mo. Diante do momento histórico de construção de identidades nacionais na Europa
e decisivamente na Alemanha, o autor de Assim falava Zaratustra faz uso do culto à
­singularidade grega em oposição ao processo de massificação interpretado por ele como
em franco ­andamento na Europa. Nesse sentido, a noção grega de aprimoramento
individual lhe fornece um ponto de partida, até mesmo histórico, a partir do qual a
oposição ao dogmatismo filosófico possa ser levada a cabo (NF/FP: KSA 11, 25 [208],
janeiro de 1884). A mentalidade aristocrática grega e­xpressa na epopeia tinha por
princípio primeiro a formação do indivíduo ­segundo padrões ativos, afirmativos e em-
belezadores de sua conduta, direcionados a fazê-lo ambicionar insaciavelmente os mais
altos valores distintivos.46 Sua expressão poética era simultaneamente o elogio e o c­ulto
á ­excelência, critério primeiro e único estatuto da palavra elogiosa, na qual o homem
comum não se fazia presente. Esses são critérios que Nietzsche claramente pressupõe
à sua ­aristocracia espiritual. A perspectiva aristocrática se justifica por ser o escol en-
tendido como fonte originária das valorações morais (NF/FP: KSA 10, 7 [22], prima-
vera – verão de 1883), o que torna imprescindível o seu reaparecimento tendo como
fundamento um ­conceito elevado de cultura e de indivíduo. O conceito de aristocracia
de Nietzsche pode ser so­lidamente interpretado a partir desses princípios, ele não de-
signa especificamente uma classe social ou política (NS/FP: KSA 13,16 [17], prima-
vera – verão de 1888), mas uma disposição de espírito cuja comunicação poética Zara-
tustra faz por meio do ensinamento do além-do-homem.

de cavalete de prata, toda ela de bela feitura,


que ele do espólio do burgo de Eecião para si separara.
O coração deleitava, façanhas de heróis cantando.” (Ilíada Canto IX 185-189, p. 156).
46
Tal é a acusação feita a Aquiles, modelo de excelência mas, ao mesmo tempo, a mais contraditória
personagem de toda a Ilíada, que não demonstra nenhuma deferência com relação ao líder do
exército, mas unicamente o desejo incessante de se sobrepor a todos os demais. Cf. Canto I. V. 287.

178
o além-do-homem enquanto ideal estético

Isso não deve significar que Nietzsche tente restabelecer historicamente a menta-
lidade aristocrática grega. Antes, ela lhe serve para evidenciar as formas moralizadas de
dominação inerentes à própria universalização moderna. O seu intuito fundamental é
apresentar uma forma de superação possível do niilismo e do fim da criação (NF/FP:
KSA 10, 4 [81], novembro – fevereiro de 1882) cuja retomada á a intenção da assimi-
lação do trágico e do dionisíaco à filosofia e expresso pelo pensamento do eterno r­ etorno
do mesmo. O ensinamento do além-do-homem possui com isso uma forte e determi-
nante significação estética, cuja j­ ustificativa fundamental (MA II/HH II § 218) é o seu
significado existencial, tal qual a arte grega.47
Trata-se, portanto, na filosofia de Nietzsche voltada para a figura de Zaratustra,
de uma revalorização positiva da força de embelezamento da arte, o que lhe confere
significação vital, precisamente como antídoto contra o niilismo e a sensação de vazio
causada pela crise dos antigos va­lores da tradição (Machado, 1997, p. 19). Mostrar os
traços de proximidade entre o ensinamento do além-do-homem e a perspectiva ­heroica
da poesia épica homérica significa indicar que, com a constatação do ocaso dos valores
tradicionais, outras formas de consideração podem ser conside­radas possíveis no ­domínio
da expressão (NF/FP: KSA 13, 16 [16], primavera verão 1888). É a percepção da pe-
riculosidade para a vida dos antigos pressupostos estabelecidos desde Platão, mantidos
e acentuados pela crença judaico-cristã ( JGB/BM § 62), que Nietzsche interpreta como
sendo o ponto culminante que a cultura ocidental alcança em seu tempo (NS/FP: KSA
13,16 [15], primavera – verão de 1888). A evidência do ocaso desses valores manifesta
no fatalismo da cultura, de onde decorre a constatação da morte de Deus, que significa
o abandono dos pressupostos tradicionais fundados na afirmação da paridade entre
verdade e virtude. O vazio causado pela supressão do absoluto expresso pela deidade é
por Nietzsche, contudo, interpretado positivamente, como indício da possibilidade do
novo, de novas criações. A retomada dos pressupostos gregos respeita esta perspectiva.
Ela significa não o desejo de restabelecer um novo modelo canônico, absoluto para o
homem enquanto cura contra o niilismo, mas antes mostrar a virtualidade mesmo de
uma aceitação ­deste como elevado desafio para indivíduos de uma cultura, que assim
se veem confrontados com a experiência de um mundo desconhecido, da imprevisibi-
lidade dos conflitos dinâmicos de força, que Nietzsche filosoficamente nomeia de dio-
nisíaco (Marton, 2010, p. 146).

47
Em um escrito póstumo do período final da elaboração da primeira parte de Zaratustra, intitulado
Discursos aos meus amigos (Reden an meine Freunde), podemos constatar o retorno de Nietzsche a
temas postos em NT. Nesse pequeno escrito pode-se encontrar claramente posta a noção de justi-
ficação estética da vida, em contraposição à moral, cujo modelo é precisamente a arte trágica grega.
Cf. NF/FP: KSA 10, 7 [7] Verão de 1883.

179
roberto barros

Dessa maneira, a aceitação do trágico e do dionisíaco da existência implica uma


postura heroica, que em Nietzsche está associada ao conhecimento também trágico,
aquele que não leva a redenção, ao bem moral ou à salvação, mas inapelavelmente à
própria destruição (NF/FP: KSA 10, 222, verão – outono de 1882). Nisso se revela a
sua grande virtude e o seu caráter épico, pois o desejo de conhecer com suas represen-
tações interpretativas não significa nada além que uma luta imagética contra a morte
inevitável. Por meio do embelezamento e do apreço pela indeterminação da existência
confere a concepção trágica do conhecimento nova e positiva valorização da vida e do
existente, mas também no próprio ocaso (Z/Z I “Da morte livre”, p. 95).
Devido a esses traços Assim falava Zaratustra pode ser pensado como uma ­tragédia,
mas também como paródia do próprio trágico, do épico e mesmo do heroísmo, pois o
seu ideal só se torna possível a partir da impossibilidade de crença em qualquer forma
objetiva de idealização fundada no conhecimento incondicionado, daquilo que Nie­tzsche
chama de “loucura do período da virtude” (Wahnsinn der Tugend-Periode). A partir
disso é possível de se falar de heroísmo, designado como “ocaso em consequência da
virtude” (NF/FP: KSA 10, 1[32], julho – agosto de 1882). Ele pode ser interpretado
como anúncio de possibilidade diante da compreensão da falibilidade e do comprome-
timento moral de todo discurso com pretensão a sistema ou doutrina. É por meio da
palavra poética que Nietzsche deseja novamente revelar de modo afirmativo o caráter
trágico da existência, pensada a partir de então segundo a gravidade do eterno retornar
de todas as coisas (Machado, 1997, p. 24), tornada suportável pela beleza desafiadora
do ensinamento do além-do-homem.

Eu não quero a vida novamente. Como eu a suportei? Criando. O que me faz suportar
o momento? O vislumbrar o além-do-homem, aquele que afirma a vida. Eu mesmo
tentei afirma-la – Há! (FP: KSA 10, 4 [81], novembro de 1882 – fevereiro de 1983).

180
Considerações finais

Ao conceber Assim falava Zaratustra como tragédia Nietzsche pode v­ oltar a fazer uso
de pressupostos dos princípios artísticos para ele fundantes do trágico grego: do dioni-
síaco e do apolíneo. Tal fator aproxima este livro de seu escrito inaugural. Esta proxi-
midade, como foi mostrada, é indicada pelo próprio autor no prefácio posterior a­ crescido
à obra, onde podemos encontrar toda a confluência de argumentos que possibilitam
esse retorno, tais como o afastamento do romantismo e da metafísica e, a partir disso,
a possibilidade do dionisíaco e de uma nova arte da qual Zaratustra é trasgo (Unhold)
(GT/NT Tentativa de autocrítica § 7).
A consideração dessa imediação implicou por sua vez a necessidade de interpretar
a aproximação entre escritos distanciados por mais de uma década a partir da ­declarada
importância conferida a Assim falava Zaratustra. Desse modo, pareceu bastante plau-
sível que o ressurgimento do dionisíaco deveria ser pensado como pressuposto de jus-
tificação à presença de caracteres de seu outro complementar, do apolíneo (Barrack,
1974, p. 115), nos ensinamentos de Zaratustra. Segundo a perspectiva de O nascimento
da tragédia, Assim falava Zaratustra, concebida como obra trágica, é passível de também
ser interpretada como contendo caracteres de ambos os impulsos artísticos. Isso possi-
bilita que se compreenda o ensinamento do além-do-homem como a bela imagem, que
serve de preparação e antídoto para o difícil suportar do ensinamento fundamental de
Zaratustra, que é o pensamento do eterno retorno do mesmo.
Mas esse ressurgimento traz consigo pressupostos novos, subentendidos a partir
de novos direcionamentos teóricos de Nietzsche, decisivamente depois de sua decepção
com o wagnerianismo e afastamento do pessimismo de Schopenhauer. Para que fosse
possível analisar de forma pertinente a retomada desses pressupostos mostrou-se ne-
cessário ­analisar a partir de quais outros intentos o autor remete-se novamente ao seu
O nascimento da tragédia. A indicação dos objetivos desta retomada encontra-se volu-
mosamente indicada tanto nos prefácios de 1886, como em Ecce homo, os quais visam
decisivamente a fornecer dados à compreensão de Assim falava Zaratustra, cuja recepção
e compreensão não satisfizeram as expectativas de seu autor.
Todavia, o estatuto do trágico se altera decisivamente no espaço de tempo que
separa O nascimento da tragédia de Assim falava Zaratustra e isso diz respeito também
a Apolo e Dionísio. Os novos direcionamentos de Nietzsche a partir de Humano, de-

181
roberto barros

masiadamente humano influenciam nesta nova consideração. Enquanto esses dois princí­
pios são pensados segundo a perspectiva ontológica da metafísica do artista, que colo-
cava o primeiro como força atuante no nível do fenômeno e o segundo como coisa em
si, como vontade propriamente dita, na filosofia posterior de Nietzsche (Barrack, 1974,
p. 116), o dionisíaco possui significação central, ao passo que em Assim falava Z ­ aratustra
Nietzsche não emprega o termo Apolo uma única vez (ibid., p. 118).
Esse aspecto possui grande importância na nova significação conferida ao dioni-
síaco e deve ser considerado a partir do ponto segundo o qual, se a tragédia de ­Zaratustra
não se caracteriza mais como o antigo drama grego, portanto pela sua seriedade – m ­ uito
embora ela seja concebida como poesia preceptorial (Lehrgedicht) – ao mesmo tempo
ela deve ser entendida também como paródia tanto do evangelho cristão como de todos
os valores tradicionais (Allemann, 1974, p. 54). Entretanto, mesmo não sendo direta-
mente indicado, o traço apolíneo da obra revela-se na figura de Zaratustra em dois
aspectos: No fato de que com Zaratustra a filosofia se aproxima da arte e se torna uma
atividade antiniilista por excelência, portanto voltada para a redenção do sofrimento,
da ação e do conhecimento, o que pressupõe o heroísmo (NF/FP: KSA 13, 17 [3], 2.
Maio-Junho de 1888). Na sua atitude heroica diante da vida pensada como eterna
recorrência de todas as coisas, Zaratustra necessita da arte como aspecto necessário para
o anúncio da necessidade da criação do mais alto tipo heroico, o além-do-homem (Bar-
rack, 1974, p. 118).
O traço artístico do ensinamento que se evidencia no poetar de Za­ratustra deve
ser entendido também em sua dimensão filosófica, i­ mplícita na aferição de p ­ rofundidade
à revalorização da superficialidade a partir da superficialidade deste. Mesmo afirmando
que os poetas mentem em demasia, Zaratustra justifica a mentira como estando em
serviço da transitoriedade e da aparência, e assim da efetividade e não de uma vaga
visão onírica (Allemann, 1974, p. 57). Com a tragédia de Zaratustra, Nietzsche efetua
um distanciamento com relação à significação dos dois princípios estéticos da metafí-
sica do artista. Ele, todavia, não abandona a ­virtualidade que os dois princípios tornados
filosóficos passam a possuir. Se o filósofo ainda pensa a produção poética como um meio
de produzir a bela projeção do sofrimento inerente ao mundo que o dionisíaco signi-
fica, tal produção poética passa a ser justificada não mais unicamente por esse fator, mas
antes, fundamentalmente, pela força afirmativa da aparência que produz, que mesmo
parodiando a si mesma, deseja ser tomada a sério (ibid., p. 57). O mesmo se passa com
respeito à concepção ­tradicional da tragédia e do trágico. A sua finalidade na filosofia
de Nietzsche é a elevação (Steigerung) do sentimento de vida, para o que ele se utiliza da
arte como estimulante (ibid.). Desse modo, são contrapostos o desmascara­mento do
poeta pela boca de Zaratustra com o elogio da potência p ­ oética e a sua justificação como

182
considerações finais

criação; assim, Nietzsche insiste na consideração da força da figuração como redenção


do sofrimento. “Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, atenua o peso da vida.
Mas, para que o criador exista, são necessários o sofrimento e muitas transformações”
(Z/Z Nas ilhas dos bem aventurados).
Indicado como anunciador da concepção dionisíaca do mundo, a aparição ­primeira
de Zaratustra demonstra o seu traço apolíneo no ­desejo de produzir a eterna beleza,
cujo objeto incomum e distante é um não existente e ideal (Barrack, 1974, p. 119). O
além-do-homem é o ­anteparo de beleza colocado entre o homem e o mundo, pensado
dionisiacamente como vontade de poder e eterno retornar de todas as coisas (­Heidegger,
1997, p. 40). Pensado no sentido da nova nobreza, que assimila o p ­ assado e a partir dele
cria, redimindo-o, ele é a imagem ideal, eminentemente não cristã, que ensina uma nova
forma de amor à terra e à vida: o anseio pela autossuperação. Essa é pensada como
preceito para a existência no mundo da nova significação da existência imposta pelo
ensinamento do eterno retorno, para a escolha entre eternidade e aceitação ­incondicional
de tudo o que existe, ou esvaecimento completo no retroagir unívoco de um ciclo signifi­
cativo. O anseio de autossuperação do homem é o estímulo com vistas a sempre pron-
tificá-lo a adequar-se ao mundo pensado como indeterminado, tornado evidente pelo
desmascaramento da ­crença no “mundo verdadeiro” e na moral que a sustenta, conce-
bidos desde e­ ntão como estranhamento com relação a vida (Kaulbach, 1980, p. 33).
O niilismo é o efeito primeiro desta constatação, ele decorre da percepção da dis­
sipação de todos os anteparos morais que ainda mantinham o “mundo verdadeiro” como
possibilidade. Sob a ótica da moral, a necessidade da veracidade servira como antídoto
para o niilismo prático e teórico (“Lenzer Heide”, NF/FP: KSA 12, 5 [71] § 1). A ver-
dade fixa se tornou com isso uma necessidade, de onde decorreu a dependência c­ ultural
da ideia de um mundo potencialmente estável. Quando essa crença arrefeceu, devido
ao próprio aprofundamento da necessidade de v­ eracidade e à percepção da sua inexis-
tencia, expôs-se o mundo efetivo, o do perspec­tivismo (Kaubach, 1980, p. 33).1 Na
perspectiva de Nietzsche, com ele advém uma nova exigência de veracidade, que, no
entanto, não se direciona à criação de um novo mundo, mais verdadeiro, mas à s­ upressão
da dicotomia excludente entre verdadeiro e falso, e à aceitação de tudo o que existe

1
Ou ainda no póstumo:
“Como eu pensava no objetivo (Zweck), pensava também no acidental.
É necessário ser possível esclarecer o mundo depois dos objetivos e o mundo através do acidental,
do mesmo modo como pensar, como querer, como movimento, como calma: do mesmo modo que
Deus e como o diabo. Então tudo é o eu.
Não são nossas perspectivas, nas quais nós vemos as coisas, porém são as perspectivas uma quali-
dade (Wesens) de nossa espécie, uma da maiores: em cujos quadros (Bilder) nós olhamos”. FP, KSA
10, 4 [172], p. 162.

183
roberto barros

como multiplicidade de perspectivas, para as quais o m ­ omento da decisão imposto pelo


pensamento do eterno retorno mostra-se como um compromisso com a criação e com
2

o futuro (Barrack, 1974, p. 41).


É precisamente este sentido futuro, o qual Nietzsche confere às palavras e ensina-
mentos de Zaratustra, que revela um outro aspecto da idealidade do além-do-homem: a
sua inexistência (Z/Z Dos sacerdotes). Entretanto, isso não impede de ele ser posto como
ensinamento tanto para a humanidade atual como para a humanidade futura, com
vistas à superação e à grandeza de ambas (Z/Z Prólogo § 4), mas pensadas como pro-
dutos de individualidades. Esses aspectos nos põem novamente à frente o aspecto
apolíneo do ensinamento, o qual pode ser também antevisto no herói épico homérico,
para quem todo esforço de engrandecimento, embelezamento e autossuperação, são
impulsionados por uma imagem apresentada a ele como modelo a ser seguido. Analo-
gamente, todo o sacrifício do aristocrata épico tem também um significado ­humano,
que extrapola a importância momentânea da Kléos e a amplia, aspecto que se revela na
preocupação pelo legado da memória gloriosa às gerações futuras.
Nesse ponto específico, o além-do-homem se aproxima do herói épico apolíneo,
aquele que se sacrifica não para atingir um alvo exterior imediato, mas para produzir a

2
Em anotações direcionadas à escritura de Z Nietzsche escreve:
Isto que vem
O próprio ambicionar no nada.
Guerra sobre o princípio de melhor não ser do que ser.
(A)
Primeira consequência da moral : A vida é para ser negada.
Última consequência da moral = A própria moral é para ser negada.
(B)
Assim: Decorre da primeira consequência.
Liberação do egoísmo.
Liberação do mal.
Liberação do indivíduo.
Os novos bons (“eu quero”) e os velhos bons (“Eu devo”). Liberação da arte como recusa do co-
nhecimento incondicional. Elogio da mentira.
Recuperação da religião.
(C)
Através de todas essas liberações cresce o estímulo da vida.
Sua mais íntima negação, a moral, eliminada.
Com isso início do declínio. A necessidade da barbárie à qual a religião também, por exemplo,
pertence. A humanidade necessita viver em ciclos, única forma de duração (Dauerform). Não a
cultura mais longa possível, porém a mais curta e elevada (hoch). Nós na época do meio dia.
(D)
O que determina a altura da altura (Höhe der höhe), na história da cultura? O momento onde o
estímulo é o maior. Significa, portanto, que o mais poderoso pensamento se tornou suportável
querido. NF/FP: KSA 10, Verão-outono de 1882.

184
considerações finais

mais bela imagem (Barrack, 1974, p. 120), pensada como elevado ideal às gerações futu­
ras. Todavia, em Assim f­ alava Zaratustra, obra em que tanto o dionisíaco como o ­apolíneo
sofrem signi­ficativas mudanças, o estatuto do épico é outro. Em O N ­ ascimento da ­tragédia,
a seriedade e o sublime eram relacionados à disciplina e ao he­roís­mo; naquela obra, a
superação do espírito de gravidade é uma das caracte­rísticas da personagem apolínea
que é Zaratustra. Por esse m ­ otivo, o além-do-homem e o herói apolíneo não podem ser
os mesmos, pois este preci­sa perder a sua seriedade e solenidade e dançar como o vento
(ibid., p. 122). Eles podem, porém, ser aproximados pelo desdém de Zaratustra pela
fraqueza e anseio de autossuperação que distinguem o além-do-homem (Wotling, 1995,
p. 333). Desse modo, o além-do-homem apresenta aspectos tanto apolíneos quanto dio-
nisíacos, haja visto que são a­ spec­tos indissociáveis: o primeiro é o desejo de autossupe-
ração, e o s­ egundo, o perigo que tal desejo implica, pois deve ser compreendido em um
­mundo onde conflito, criação e destruição lhe são aspectos inerentes.
Em decorrência disso, o dionisíaco e o apolíneo são entendidos não mais como
impulsos artísticos da natureza, mas como estados fisiológicos, por meio dos quais a
arte se manifesta (NF/FP: KSA 13, 14 [36], início de 1888). Em Assim falava ­Zaratustra
eles devem ainda ser entendidos como relacionados à noção de autossuperação, pois
esse desejo integra o dionisíaco como motriz do ciclo de morte e vida que permanece
em Nietzsche na fase posterior ao distanciamento da filosofia de S ­ chopenhauer (Barrack,
1974, p. 128).
No aforismo 370 de A gaia ciência, em tom de justificativa, Nie­tzsche diferencia
claramente o pessimismo dionisíaco e o que ele denomina de pessimismo romântico.
Menciona as concepções de toda arte e filosofia consideradas como remédios e auxílio
a serviço da vida em crescimento e em luta, o que pressupõe sempre sofrimento e so-
fredores. Há, porém, aqueles que sofrem por abundância de vida, que desejam a arte
­dionisíaca e a visão trágica e aqueles que sofrem por seu enfraquecimento, que exigem
da arte e da filosofia a calma, o silêncio, mar sem ondas, ou então a embriaguez, o es-
pasmo e o delírio. Os últimos, escreve Nietzsche, são os românticos, cujos nomes mais
célebres são os de Wagner e S ­ chopenhauer, e que neste momento são postos em dife-
renciação do homem mais rico em plenitude de vida, o homem dionisíaco: aquele que
pode se permitir a visão do mais terrível, do problemático; o luxo da destruição, da
decomposição, e a negação.
A partir dessa distinção é questionado aquilo que é criado com estas perspectivas
no domínio da arte, ou seja, Nietzsche coloca o problema, se na manifestação artística
de ambas encontram-se traços de abundância ou de empobrecimento da vida, ou como
o próprio autor formula a questão: “aqui foi a fome ou o supérfluo que se tornou ­criativo?”
(FW/GC § 370) Essa pergunta, de caráter fisiológico, remete a uma outra, que toca no

185
roberto barros

sentido da criação, pois Nietzsche quer questionar se o que a motiva é a necessidade de


eternizar, de ser, ou então o desejo de destruição, de mudança, do novo, de futuro, de devir
(Werden). Sob tal ótica, este primeiro impulso poder ser interpretado como expres­são
de força abundante, prenhe de futuro (zukunftsschwangeren), cujo termo ­designativo é
dionisíaco. Mas pode também ser o ódio do fracassado, do desprovido, do enjeitado,
que necessita destruir porque todo subsistir o revolta e irrita. Desse modo, a vontade
de eternizar pode vir de duas fontes, primeiramente da arte apoteótica (Apotheosenkunst),
que espalha um brilho homérico de beleza e glória sobre todas as coisas (ibid.); depois,
pode vir do sofrimento, da tortura, que gostaria de moldar o mais pessoal, único e ­estreito
sofrimento em lei e coação obrigatória, para assim cravar a imagem de sua tortura. Essa
segunda origem é o pessimismo romântico, do qual Nietzsche deseja diferenciar uma
outra forma de ­pessimismo, que poder-se-ia chamar clássico, se o temo já não ­estivesse
desgastado pelo uso, o pessimismo dionisíaco (ibid., § 370).
O conteúdo desse aforismo fornece aspectos importantes no que diz respeito ao
sentido com que Nietzsche concebe o dionisíaco que se faz presente em Assim falava
Zaratustra. A ele pode ainda ser acrescida a afirmação do aforismo 372 de A gaia ­ciência,
intitulado “Por que não somos idealistas” (Warum wir keine Idealisten sind ), no qual,
criticando toda a tradição filosófica de desprezo pelos sentidos e analisando essa a­ titude
sob a ótica da fisiologia, o autor afirma:

Em suma: todo idealismo filosófico foi até o presente algo como d­ oença, em que não
foi, como no caso de Platão, a previdência de uma saúde muito rica e perigosa, o medo
dos sentidos preponderantes, a sabedoria de um sábio discípulo de Sócrates. Nós,
homens modernos, talvez não sejamos suficientemente saudáveis para ter necessidade
do idealismo de Platão? E nós não tememos os sentidos, por que… (FW/GC § 372).

Desejamos chamar a atenção para as últimas palavras desse a­ forismo, destacadas


pelo próprio autor, e então relacioná-las com a noção de idealismo à qual Nietzsche se
refere no aforismo 382 de A gaia ciência. Com isso, desejamos argumentar que a crítica
do idealismo feita pelo autor possui um alvo preciso: o idealismo filosófico iniciado por
Platão, propagador do socratismo, que, na compreensão de Nietzsche, alcança o seu
tempo com o romantismo. Trata-se do idealismo fundado na transcendência, na depre-
ciação dos sentidos e que se tornou o elemento c­ onstante em toda a tradição filosófica
até então, mas que se encerra com o aparecimento dos filósofos modernos que Nie­tzsche
anuncia. No aforismo 382, o novo ideal proposto pelo filósofo tem como condição ­prévia
a “grande saúde”, que faz com que aquele que a possui queira lançar-se a aventuras e à
exploração de novos e perigosos mares.3 Essas, por conseguinte, são as mesmas q­ ualidades
3
A relação entre saúde e ideal pode ainda ser lida no póstumo: “Conceito de saúde e ideal d
­ ependente

186
considerações finais

do dionisíaco referidas no aforismo 370, onde encontramos referências a uma arte ho­
mérica (apolínea) e dionisíaca.
A partir desse ponto, pode-se delinear melhor os traços do novo ideal a que Nie­
tzsche se refere, que poderia ser denominado “clássico” e deve ser compreendido imedia­
tamente como separado das formas vigentes de idealismo, tanto do filosófico como do
romântico, os quais para ele não são expressão de uma saúde atuante, mas ou de uma
moral restritiva ou de um estado doentio, o que acaba por produzir o mesmo efeito. O
ideal ao qual Nietzsche se refere é o ideal dionisíaco, o da aceitação e mesmo da necessi­
dade da pluralidade de estados, desafios e de condições adversas; que acaba por exigir
um tipo mais forte de homem, que vive, habitua-se e mesmo deseja viver nas ­intempéries,
a fim de cada vez mais ver-se necessitado a buscar estados mais elevados. Em favor des­
sa distinção, fazemos nova referência à seção Por que escrevo tão bons livros? de Ecce homo,
última obra de Nietzsche. Nessa, encontramos referências claras com respeito à ­utilização
do termo ideal e de sua significação para se compreender a ideia do Übermensch.

A palavra além-do-homem, como designação do tipo mais a­ ltamente bem logrado, em


oposição ao homem “moderno”, ao homem “bom”, aos cristãos e outros niilistas – uma
palavra que na boca de Zaratustra, do aniquilador da moral, torna-se uma palavra que
dá muito a pensar –, foi, quase por toda parte, com tal inocência, entendida no sentido
daqueles valores cujo oposto foi apresentado na figura de Zaratustra: quer dizer, como
tipo “idealista” de uma espécie superior de homem, meio “santo” meio “gênio” (EH/
EH Por que escrevo livros tão bons § 1).

Nietzsche prossegue afastando a significação do termo de qualquer darwinismo


ou “culto de heróis” e acentua que talvez fosse melhor procu­rar o seu significado em um
César Bórgia. Esta referência que se e­ sclarece nas passagens seguintes e precisamente
em contraposição a qualquer forma de idealização de homem, por conseguinte, na
afirmação de que esse é um ato contra a natureza (ibid., § 5) e de que o além-do-homem
seria aquele que teria a capacidade prática de poder suportar a realidade tal qual ela é,
mesmo em seus aspectos mais terríveis e problemáticos (ibid.).
César Bórgia é uma referência justamente por ter sido uma exceção no que se
refere ao ideal e à moralidade cristãs, e ainda por ter sido um homem de ação nas con-
dições mais duras e problemáticas; desse modo, teria sido uma figura singular e supe-
rado a moralidade do seu tempo. A partir dele, é possível se compreender o aspecto
ideal do além-do-homem, devidamente afastado da idealidade em voga,4 pois ele foi um

do Alvo do homem? Porém, o alvo mesmo é uma expressão de uma determinada qualidade do
corpo e suas condições. O corpo e a moral.” NF/FP: KSA 10, 4 [217], novembro de 1882 – feve-
reiro de 1883.
4
Segundo Wotling, na “pré-história” da noção de übermenschlich (surhumain), ou seja, na ­constatação

187
roberto barros

dos que se colocaram acima de sua época e de sua moral,5 demonstrando a ­qualidade
que Nietzsche deseja conferir ao homem futuro através do além-do-homem, a ­exigência
da autossuperação.6
Em favor de uma distinção entre o além-do-homem e o tipo idealista de homem
superior, um outro aspecto importante é a inexistência daquele. Em Assim falava Zara-
tustra ela é afirmada claramente (Z/Z Dos sacerdotes), do mesmo modo como a justi­ficação
estética da vida a partir da força da criação, que não mais necessita de um fundamento
e então se encontra livre para se direcionar para o futuro.

Primeiramente dizia-se Deus, quando se olhava para mares distantes: mas agora, eu
vos ensino a dizer além-do-homem.
Deus é uma suposição; mas quero que o vosso supor não vá além de vossa vontade
criadora.
Podeis criar um Deus? Então calai-vos diante de mim a respeito de todos os deuses!
Mas bem podeis criar o além-do-homem.
Não vós mesmos, talvez, meus irmãos! Mas podeis tornar-vos pais e ancestrais do além-
-do-homem; e que essa seja a vossa melhor criação (Z/Z Das ilhas bem aventuradas).

O ensinamento do além-do-homem diferencia-se do ideal ­idealista porque, para


ele, a noção de criação substitui as noções de Deus e do imperecível. Desse modo, ele
pode servir de modelo a ser seguido no novo tempo que se inicia, o do devir, do novo

de que a palavra precede o conceito, ela apresenta-se sempre em sentido negativo e associada aos
tipos superiores da cultura, o santo e o idealista (HDH II VO, § 73/ HDH I § 143). O autor ar-
gumenta que a análise desta noção feita a partir da ótica da vontade de poder descobre a origem
do dualismo entre alma e corpo e leva Nietzsche, desde Aurora (§ 548), a dar novo sentido ao termo
a partir da hierarquia da vontade de poder e da verdadeira grandeza humana, a partir do dístico da
Überwindung. Esses aspectos servem de base para que o comentador conclua que o pensamento
nietzscheano do além-do-homem se constrói a partir da recusa da interpretação idealista em asso-
ciação com o santo e com a ideia de gênio. (Wotling, op.cit, p. 330 – 5).
5
Segundo Wotling, César Bórgia e Napoleão são tomados por Nietzsche como encarnações histó-
ricas do homem superior, dos criadores, expressão da força dos instintos e da vontade de poder. São
aproximados por Nietzsche de Goethe, H ­ afiz e Shakespeare, que podem ser tidos como modelos
do tipo superior, como prefigurações do tipo “übermenschlich” (ibid, p. 351/2).
6
O que, porém, não significa dizer que César Bórgia representa o tipo último de nobreza para
Nietzsche. A sua interpretação do duque renascentista pode ser bem melhor compreendida a
partir da sua leitura de Maquiavel (Vacano, 2007, p. 73) e da sua admiração pela interpretação de
Jacob Burckhardt (Chaves, 2000, p. 50), que levam Nietzsche a interpretar Maquiavel como um
iluminador da antiguidade (NF/FP, 25 [38], KSA 11, p. 21) e Cesare Bórgia como aquele que une
a animalidade e o refino do artista criador em uma única pessoa, do que resulta uma singularidade
criativa, cuja configuração pulsional (volitiva) o levou a se contrapor à moral e ao poder estabele-
cido de seu tempo, tendo em vista uma visão política sob a ótica do artista. Nietzsche, porém,
mobiliza outras variantes para o conceito de nobreza, tal como nos indica Oswaldo Gaicóia, ao
afirmar que: “o ideal nie­tzscheano da nobreza da força não se perfaz no tipo brutal da fera loira ou
na figura histórica de Cesare Borgia, mas sim na beleza que não mais ataca”. Cf. O Platão de
Nietzsche, O Nietzsche de Platão. Cadernos Nietzsche 3, 1997, p. 33.

188
considerações finais

heroísmo, tornando necessários aqueles que compreendem o pensamento do eterno


retornar de todas as coisas, o qual deve ser justificado pelo desejo de novas criações. Por
isso, enquanto figura que representa o ensinamento da superação, ele pode justificar-se
até mesmo esteticamente.

Más e anti-humanas chamo a todas as doutrinas do uno e da completude, do imóvel,


do sacio e do imperecível.
Todo o imperecível – é apenas uma imagem poética! E os poetas mentem demais.
Mas do tempo e do devir, devem falar as melhores imagens: um louvor, devem ser, e
uma justificação de toda transitoriedade” (Ibid Nas ilhas bem aventuradas).

Assim, se revelam aspectos que possibilitam compreender o ensinamento do além-


-do-homem como ideal estético: a) primeiramente, pela negação da possibilidade ou da
necessidade de um princípio de verdade que deva servir de fundamento e justificação
de qualquer forma de expressão, noção posta por Nietzsche desde O nascimento da tra­
gédia, quando faz o elogio do poeta trágico e o caracteriza como aquele que usa a metá­
fora como imagem substitutiva em lugar do conceito (GT/NT § 8). b) Em decorrência
disso e do projeto de uma transvaloração de todos valores que torne isso novamente
possível, abre-se uma possibilidade de discurso que, voltado totalmente não para a ver­
dade pensada como objetivo, fim ou meta determinada, mas para uma concepção de
vida como criação, busque inspiração na ação criativa da arte. Essa concepção artística,
por sua vez, não pode criar sob o signo na antiga crença na verdade,7 daí a retomada
daquela que, para Nietzsche, fora a única experiência estética ingênua no ocidente, a
arte grega. Disso decorre um novo a­ specto c), o de que esse movimento não é um mero
retornar, mas sim uma revalorização, que tem por objetivo indicar a necessidade da
criação através da demonstração da restrição das estimativas em voga.
A partir desses três pontos básicos, pode-se compreender que Nietzsche conceba
Assim falava Zaratustra como um drama criado sob o símbolo de Dionísio e, portanto,
de Apolo, não das divindades gregas propriamente ditas, mas sob o signo delas, como
novas concepções do mundo e da existência, totalmente afastadas da moralidade e dos
valores que Nietzsche se empenhou em refutar.
Considerar o ensinamento do além-do-homem como um ideal, requer que se escla-
reça em que sentido uma filosofia que faz um duro ataque aos ideais pode comportar
uma proposição do mesmo caráter. Por esse motivo, é necessário compreender de que
modo o termo ideal, tomando positivamente, pode ser compreendido na filosofia de

7
Em NT Nietzsche já afirma que na atuação de Eurípedes, o trágico sob influências socráticas,
encontra-se o fim da idealidade que sempre marcara as figuras representadas na tragédia (GT/
NT § 11).

189
roberto barros

Nietzsche. Um dos caminhos possíveis, como se tentou argumentar aqui, é considerar o


conteúdo artístico do ensinamento do além-do-homem a partir de suas características
apolíneas. Aproximar traços desse ensinamento de outros presentes na epopeia grega se
justifica não como uma tentativa de sua análise, mas como forma de explicitar o traço
apolíneo conferido por Nietzsche a ele. Essa indicação se confirma quando analisados
os pressupostos segundo os quais Nietzsche elabora a obra e a disposição de suas partes,
quando a noção de ideal encontra-se presente no horizonte do autor no período de
elaboração de Assim falava Zaratustra.8 Mas isso podemos constatar ainda nos póstumos,
como, por exemplo, no seguinte fragmento:

Assim como nós não temos mais necessidade da moral, do mesmo modo não temos
da religião. O “eu amo Deus” – a única velha forma de religiosidade – converteu-se em
amor a um ideal, tornou-se criadora, puro Deus-homem (NF/FP: KSA 10, 4 [90],
novembro de 1882 – fevereiro de 1883).

Por conseguinte, utilizando o recurso aos fragmentos como confirma­ção de ­aspectos


que Nietzsche não explicita diretamente nas obras publi­cadas, podemos encontrar ar-
gumento de que Assim falava ­Zaratustra fora concebido segundo perspectiva trágica,
para a qual a arte é posta como necessidade. O ressurgimento do trágico e da inspiração
­dionisíaca aproxima o conteúdo de Assim falava Zaratustra de pressupostos gregos que
Nietzsche já utilizara em seu primeiro livro, no qual os helenos são descri­tos como um
povo de cultura fundamentalmente artística, que t­ eria chegado ao fim devido à crítica
racional do seu caráter ideal (GT/NT § 11).
A concepção de Assim falava Zaratustra como drama, expressa novamente a sa-
bedoria dionisíaca e permite que se considere, com a­ centuadas diferenças, o ensina-
mento do além-do-homem como ensinamento apolíneo e anteparo contra a dureza
implacável do dionisíaco. Desse modo, o além-do-homem pode ser considerado como
um ensinamento ideal no sentido da significação que esse termo possui para Nietzsche,
a partir de sua interpretação dos gregos, como bela imagem que serve de ­impulso à
afirmação e ao embelezamento da vida e, destarte, constitui uma forma de c­ ontraposição
ao niilismo causado pela percepção da ausência dos antigos valores tidos como ­absolutos.

8
Preocupado com a aproximação de Zaratustra da tendência antissemita efervescen­te na Alemanha,
Nietzsche escreve em um rascunho de uma carta a sua irmã: “Agora que tanto já foi alcançado,
tenho de me defender com unhas e dentes da confusão com a canalha antissemita, depois que
minha própria irmã, minha ­antiga irmã, estimulou a mais funesta de todas as confusões. Após ter
lido na correspondência antissemita o nome de Zaratustra, minha paciência se esgotou: encontro-
-me agora em estado de legítima defesa em relação ao partido de seu esposo. Estas malditas cari-
caturas antissemitas não devem tocar no meu ideal!!!” Citado e traduzido por Maria Cristina
Ferraz (1994, p. 61).

190
considerações finais

Criar um ser mais elevado do que nós mesmos somos, é o nosso Ser. Criar algo acima
de nós. Este é o impulso da criação, isto é o impulso da ação e da obra.
Como todo querer pressupõe um alvo, assim o homem pressupõe uma Essência que
não está lá, mas que porém oferece uma finalidade para sua existência. Essa é a liber-
dade de toda vontade! Nessa finalidade repousa o amor, a glorificação, o ver a perfeição,
a nostalgia (FP. KSA 10 5 [1] 203 – Fevereiro de 1883, p. 209).

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Equipe de realização

Editor
Antonio Florentino Neto

Assistente de editoração
Flávio Moreira

Diretora executiva
Simone Viana

Revisão
Adriano F. Guimarães
Elza Ferreira de Sauza
Gabriela Guedes

Diagramação e arte da capa


Eva Maria Maschio

Formato
16 x 23 cm

Papel
Pólen soft 70 g/m2 – miolo
Cartão supremo 250 g/m2 – capa

Tipologia
Adobe Caslon Pro
National

Este livro foi impresso na Gráfica psi7 em ------- de 2016.

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