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Conhecer a sua própria

mente
Donald Davidson
Tradução de Luís M. S. Augusto

O tipo de indícios de que nos servimos para inferir aquilo que os


outros pensam não é nenhum segredo: observamos as suas
acções, lemos as suas cartas, estudamos-lhes as expressões,
ouvimos aquilo que dizem, ficamos a saber as suas histórias e
observamos as suas relações com a sociedade. Como
conseguimos juntar essa informação num quadro convincente de
uma mente já é outro assunto; sabemos como fazê-lo sem
necessariamente sabermos como o fazemos. Por vezes fico a
saber aquilo em que acredito da mesma maneira que qualquer
outra pessoa o fica a saber, observando aquilo que digo e faço. Há
vezes em que esta é a única maneira de ter acesso aos meus
próprios pensamentos. Segundo Graham Wallas,
A rapariguinha tinha em si a alma de um poeta que, quando lhe diziam para ter a certeza
daquilo que queira dizer antes de falar, respondia: — Como é que eu posso saber em que
é que penso antes de ver aquilo que digo?1
Robert Motherwell deu voz a um pensamento semelhante: “Eu
diria que a maior parte dos bons pintores não sabem aquilo que
pensam até o pintarem”.
Gilbert Ryle compreendia perfeitamente o poeta e o pintor; ele
afirmava peremptoriamente que conhecemos as nossas próprias
mentes exactamente do mesmo modo que conhecemos as mentes
dos outros, observando aquilo que dizemos, fazemos e pintamos.
Ryle estava enganado. Raramente necessito de indícios ou
recorro à observação para saber aquilo em que acredito;
normalmente sei aquilo que penso antes de falar ou agir. Mesmo
quando tenho indícios, raramente faço uso deles. Posso estar
enganado acerca dos meus próprios pensamentos, pelo que
recorrer àquilo que pode ser publicamente determinado não é de
todo irrelevante. Mas a possibilidade de podermos estar
enganados acerca dos nossos próprios pensamentos não deita
por terra a suposição dominante que uma pessoa sabe aquilo em
que acredita; de um modo geral, a crença de que temos um
pensamento é o bastante para justificar essa crença. Mas embora
tal seja verdade e até mesmo óbvio para a maioria, o facto, tanto
quanto sei, não é facilmente explicável. Embora as estratégias
que usamos para saber aquilo que os outros pensam sejam
bastante óbvias, pelo menos em termos gerais, é um facto assaz
obscuro porque é que, no nosso próprio caso, podemos com tanta
frequência saber aquilo que pensamos sem necessitar de indícios
nem de recorrer à observação.
Visto que geralmente sabemos aquilo que pensamos (e
desejamos, questionamos e pretendemos) sem necessitarmos ou
servirmo-nos de indícios (mesmo quando eles estão disponíveis),
as nossas declarações mais sinceras a respeito dos nossos estados
de espírito presentes não estão sujeitas aos erros das conclusões
baseadas em indícios. Assim, as pretensões sinceras formuladas
na primeira pessoa do presente do indicativo relativas a
pensamentos, embora não sejam infalíveis nem incontestáveis,
têm uma autoridade que nenhuma pretensão na segunda ou na
terceira pessoas, ou na primeira pessoa de outro tempo verbal,
poderá vir a ter. Reconhecer um tal facto não é, contudo, o
mesmo que explicá-lo.
Desde Wittgenstein que se tornou um lugar comum minimizar
as nossas dúvidas acerca do conhecimento que temos das outras
mentes dizendo que se trata de um aspecto essencial do uso que
fazemos de certos predicados mentais o facto de os aplicarmos
aos outros com base em indícios comportamentais enquanto,
pelo contrário, os aplicamos a nós próprios sem recorrermos a
uma tal ajuda. Esta observação é verdadeira e, se correctamente
formulada, deveria responder a alguém que se interrogue sobre
o modo como podemos conhecer as mentes alheias. Mas como
resposta ao céptico, a intuição de Wittgenstein (se é que é mesmo
dele) não deve proporcionar grande satisfação. Pois que, e em
primeiro lugar, é estranho pensar que as pretensões feitas sem
recurso a indícios ou ao comportamento devem ser favorecidas
em deterimento daquelas que se servem de um tal recurso. é claro
que, se não se pode recorrer a indícios para justificar uma
pretensão, então ela não pode ser contestada pondo em causa a
verdade ou a relevância dos indícios. Mas tal não basta para
supor que de um modo geral as pretensões que não se apoiam em
indícios sejam mais fidedignas do que aquelas que o fazem. A
segunda e principal dificuldade é esta. é costume dizer que aquilo
que conta como indícios para a aplicação de um conceito ajuda a
definir o conceito ou, pelo menos, põe restrições à sua
identificação. Se dois conceitos dependem normalmente de
diferentes critérios ou tipos de indícios para a sua aplicação,
devem ser conceitos diferentes. Assim, se aquilo que
aparentemente é a mesma expressão é empregue por vezes de
modo correcto com base num certo tipo de indícios e por vezes
com base num outro tipo de indícios (ou em nenhum), a
conclusão óbvia seria a de que a expressão é ambígua. Porque
deveríamos então pensar que um predicado como “x acredita que
Ras Dashan é a montanha mais alta da Etiópia”, por vezes
enunciado com base em indícios comportamentais e outras vezes
não, não é ambíguo? Se é ambíguo, então não há qualquer razão
para pensar que tem o mesmo significado quando aplicado a nós
própios e quando é aplicado a outros. Se afirmarmos (como
devíamos) que o carácter necessariamente público e interpessoal
da linguagem garante que aplicamos frequentemente estes
predicados de forma correcta aos outros e que por isso sabemos
frequentemente de facto aquilo que os outros pensam, então
temos que colocar a questão acerca das razões em que nos
apoiamos para pensar que sabemos aquilo que (no mesmo
sentido) pensamos. O tipo de resposta wittgensteiniana pode
resolver o problema das outras mentes, mas cria um problema
correspondente acerca do conhecimento da nossa própria mente.
Contudo, a correspondência não é completa. O problema original
das outras mentes motivou a questão acerca de como podemos
saber que os outros têm sequer uma mente. O problema com que
agora nos confrontamos tem que ser posto da seguinte forma: Sei
o que procurar ao atribuir pensamentos aos outros. Usando
critérios bastante diferentes (ou nenhuns), aplico os mesmos
predicados a mim próprio; então surge a dúvida céptica de
porque é que eu deveria pensar que são pensamentos aquilo que
atribuo a mim próprio. Mas visto que os indícios de que me sirvo
no caso dos outros são públicos, não há qualquer razão para eu
não atribuir a mim próprio pensamentos da mesma maneira que
o faço aos outros, à maneira de Graham Wallace, Robert
Motherwell e Gilbert Ryle. Por outras palavras, não o faço, mas
poderia, tratar os meus próprios estados mentais do mesmo
modo que trato os dos outros. Alguém que procure o mesmo tipo
de autoridade relativamente aos pensamentos dos outros que
aparentemente tem em relação aos seus próprios pensamentos
vê-se sem qualquer estratégia a que recorrer. Assim a assimetria
entre os casos continua a ser um problema e é a autoridade da
primeira pessoa que causa o problema.
Sugeri uma resposta para este problema num outro
artigo.2 Nesse artigo defendi que se prestarmos atenção ao modo
como atribuimos pensamentos e significações aos outros
podemos explicar a autoridade da primeira pessoa sem atrair
dúvidas cépticas. Nos últimos anos, contudo, alguns dos mesmos
factos acerca da atribuição de atitudes em que eu me baseava
para defender a autoridade da primeira pessoa foram empregues
para atacar essa mesma autoridade: defendeu-se, com base
naquilo que se pensa serem provas novas, que embora os
métodos do intérprete na terceira pessoa determinem aquilo que
comummente pensamos serem os conteúdos da mente de um
agente, os conteúdos assim determinados podem ser
desconhecidos do próprio agente. No presente artigo debruço-
me sobre alguns destes argumentos e afirmo que eles não
constituem uma verdadeira ameaça à autoridade da primeira
pessoa. A explicação que dei no meu artigo acerca da assimetria
entre atribuições de atitudes na primeira pessoa e nas outras
pessoas parece-me ter-se tornado mais forte à luz das novas
considerações, ou daquelas que dentre elas parecem ser válidas.
É bom frisar que o problema que aqui me preocupa não exige
que as nossas crenças acerca dos nossos próprios estados de
espírito presentes sejam infalíveis ou incontestáveis. Podemos
cometer erros e fazêmo-lo de facto com respeito àquilo que
pensamos, desejamos, aprovamos e pretendemos; há também
sempre a possibilidade de nos iludirmos a nós próprios. Mas
esses casos, embora não infrequentes, não são nem poderão ser
paradigmáticos. Não trato agora disto, mas vejo-o como um dos
factos que têm que ser explicados.
Pondo, pois, de lado o caso em que nos iludimos a nós próprios
e outros fenómenos anómalos ou ambíguos, a questão é se
podemos, sem sermos irracionais, incoerentes ou confusos, de
modo simples e directo, pensar que temos uma crença que não
temos ou pensar que não temos uma crença que de facto temos.
Bastantes filósofos e psicólogos de veia filosófica têm defendido
nos últimos tempos perspectivas que implicam ou sugerem que
tal pode ocorrer com a maior das facilidades — que deve, de facto,
acontecer constantemente.
A ameaça já se encontrava presente na ideia russelliana das
proposições que podiam ser tidas como verdadeiras mesmo
quando continham “ingredientes” com os quais a mente do
cognoscente não estava familiarizada; à medida que o estudo das
atitudes de re [relativas a uma coisa] se desenvolveu, aumentou
o perigo.
Mas foi Hilary Putnam quem deu o golpe de misericórdia.
Pensemos no argumento de que Putnam se serviu em 1975 para
mostrar que os significados, segundo ele, pura e simplesmente
não estão na cabeça.3 Putnam defende de forma convincente que
aquilo que as palavras significam depende de algo mais do que
aquilo que está na cabeça. Ele apresenta algumas histórias cuja
moral é que as características da história de como alguém
aprendeu a usar uma palavra influenciam necessariamente o seu
significado. Daqui parece seguir-se que duas pessoas podem
estar em estados fisicamente idênticos e mesmo assim querer
dizer coisas diferentes com as mesmas palavras.
As consequências são importantíssimas. Pois se as pessoas
podem (habitualmente) exprimir os seus pensamentos
correctamente por palavras, então os seus pensamentos — as
suas crenças, desejos, intenções, esperanças, expectativas —
também têm que em parte ser identificados por acontecimentos
e objectos exteriores à pessoa. Se os significados não estão na
cabeça, então, ao que parece, também o não estão as crenças,
nem os desejos, nem o resto.
Visto que alguns de vós poderão já estar um pouco cansados do
sósia de Putnam na Terra Gémea, deixem-me contar-vos a minha
própria história de ficção científica — se é que ela o é. A minha
história evita algumas dificuldades irrelevantes da história de
Putnam, embora introduza alguns problemas novos.4 (Voltarei
depois à Terra e à Terra Gémea.) Imaginemos que um relâmpago
atinge uma árvore morta num pântano; eu encontro-me junto à
árvore. O meu corpo é reduzido aos seus elementos, enquanto,
completamente por coincidência (e a partir de moléculas
diferentes), a árvore se transforma na minha réplica física. A
minha réplica, o Homem dos Pântanos, move-se exactamente
como eu o fazia; seguindo a sua natureza ele sai do pântano,
encontra e parece reconhecer os meus amigos e parece responder
às suas saudações em inglês. Vai para a minha casa e
aparentemente escreve artigos sobre interpretação radical.
Ninguém nota a diferença.
Mas há uma diferença. A minha réplica não pode reconhecer os
meus amigos; ela não pode reconhecer nada, pois nunca
conheceu nada em primeiro lugar. Não pode saber o nome dos
meus amigos (embora certamente aparente sabê-lo), não pode
lembrar-se da minha casa. Não pode querer dizer o mesmo que
eu com a palavra ‘casa’, por exemplo, pois o som ‘casa’ que ela
produz não foi aprendido num contexto que lhe daria o
significado correcto — ou um significado qualquer. Na verdade,
não consigo ver como é que se pode dizer que a minha réplica
pode querer dizer seja o que for com os sons que faz, nem como
é que ela pode ter pensamentos.
Putnam poderá não concordar com esta posição, pois ele diz
que se duas pessoas (ou objectos) se encontram em estados
físicos significativamente semelhantes, é absurdo pensar que os
seus estados psicológicos sejam algo diferentes.5 Seria um erro
afirmar com certeza que eu e Putnam discordamos em relação a
este ponto, contudo, visto que ainda não se esclareceu o modo
como a expressão “estado psicológico” está a ser usada.
Putnam pensa que muitos filósofos assumiram erroneamente
que estados psicológicos como acreditar e saber o significado de
uma palavra são simultaneamente (1) “internos” no sentido em
que não pressupõem a existência de quaisquer outros indivíduos
para além do sujeito a quem o estado é atribuído e (2) que estes
são os próprios estados que geralmente identificamos e
individualizamos como o fazemos com crenças e outras atitudes
proposicionais. Visto que geralmente identificamos e
individualizamos estados mentais e significados em termos
parcialmente de relações com objectos e ocorrências para além
do sujeito, Putnam acredita que (1) e (2) caem por terra: segundo
ele, não há nenhum estado que possa satisfazer as duas
condições.
Putnam denomina “limitados” (narrow) os estados
psicológicos que satisfazem a condição (1). Ele vê esses estados
como solipsistas e associa-os à perspectiva cartesiana do mental.
Putnam pode considerar estes estados como sendo os únicos
estados psicológicos “verdadeiros”; na maior parte do seu artigo
ele omite o predicado “limitado”, apesar do facto de os estados
psicológicos limitados (assim chamados) não corresponderem às
atitudes proposicionais tal como são normalmente identificadas.
Nem toda a gente está convencida de que há que fazer uma
distinção clara entre estados psicológicos limitados (ou internos,
cartesianos, ou individualísticos — todos estes termos são moeda
corrente) e os estados psicológicos identificados (se é que alguns
o são) em termos de factos externos (sociais ou outros). Por isso
John Searle defendeu que as nossas atitudes proposicionais
comuns satisfazem a condição (1), não havendo, logo,
necessidade de estados que satisfaçam a condição (2), enquanto
Tyler Burge negou que hajam, em qualquer sentido significativo,
atitudes proposicionais que satisfaçam a condição (1).6 Mas
parece haver unanimidade relativamente ao facto de que
nenhum estado satisfaz ambas as condições.
A tese deste artigo é que não há nenhuma razão para pensar
que estados mentais comuns não possam satisfazer ambas as
condições (1) e (2): penso que tais estados são “internos”, na
medida em que são idênticos a estados do corpo, sendo logo
identificáveis sem referência a objectos ou ocorrências exteriores
ao corpo; ao mesmo tempo eles são “não- individualistas” no
sentido em que podem ser, e geralmente são-no, identificados em
parte pelas suas relações causais com ocorrências e objectos
exteriores ao sujeito de quem são estados. Um corolário desta
tese será que, contrariamente ao que se pensa habitualmente, a
autoridade da primeira pessoa pode ser aplicada sem contradição
a estados que são habitualmente identificados pelas suas relações
com ocorrências e objectos exteriores à pessoa.
Começo pelo corolário. Porque é que seria natural supor que os
estados que satisfazem a condição (2) não podem ser conhecidos
pela pessoa que se encontra nesses estados?
Agora tenho que falar da Terra Gémea de Putnam. Ele pede-
nos que imaginemos duas pessoas exactamente iguais
fisicamente e (por isso) iguais no que diz respeito a todos os
estados psicológicos “limitados”. Uma das pessoas, um habitante
da Terra, aprendeu a usar a palavra “água” quando lhe
mostraram água, ao ler e ouvir falar sobre ela, etc. A outra, um
habitante da Terra Gémea, aprendeu a usar a palavra “água” em
circunstâncias não diferentes em termos observacionais, mas a
substância a que foi exposta não se trata de água mas sim de uma
substância parecida a que podemos chamar “bágua”. Nestas
circunstâncias, defende Putnam, o primeiro falante refere-se a
água quando usa a palavra “água”; o seu gémeo refere- se a bágua
quando ele usa a palavra “água”. Parece, assim, que estamos
perante um caso em que estados psicológicos “limitados” são
idênticos e, contudo, os falantes querem dizer coisas diferentes
ao usar a mesma palavra.
E no que diz respeito aos pensamentos destes dois falantes? O
primeiro diz de si para si quando vê um copo de água “Isto é um
copo de água”; o segundo murmura exactamente os mesmos sons
para consigo quando vê um copo de bágua. Ambos estão a dizer
a verdade, visto que as suas palavras significam coisas diferentes.
E visto que ambos são sinceros, podemos pensar que acreditam
em coisas diferentes: o primeiro acredita que vê um copo de água
à sua frente e o segundo acredita que há um copo de bágua à sua
frente. Mas saberão eles aquilo em que acreditam? Se os
significados das suas palavras e, logo, as crenças expressas pelo
uso dessas palavras, são parcialmente determinados por factores
externos acerca dos quais os agentes nada sabem, as suas crenças
e significados não são limitados no sentido de Putnam. Logo, não
há nada com base no qual qualquer um dos falantes pode dizer
em que estado se encontra, pois não há quaisquer pistas internas
ou externas em relação à diferença disponível. Devíamos, ao que
parece, concluir que nenhum dos falantes sabe aquilo que diz ou
pensa. Esta conclusão foi tirada explicitamente por bastantes
filósofos, entre os quais se encontra Putnam. Putnam afirma
rejeitar completamente a ideia de que se existe uma diferença de
significado então tem que haver alguma diferença no que
respeita aos nossos conceitos (ou ao nosso estado psicológico). O
que determina o significado e a extensão não é, regra geral,
completamente conhecido pelo falante.7 Aqui “estado
psicológico” quer dizer estado psicológico limitado e parte-se do
princípio que só estes estados são completamente conhecidos.
Jerry Fodor acredita que as atitudes proposicionais comuns estão
(quase literalmente) na cabeça, mas concorda com Putnam que
se as atitudes proposicionais fossem em parte identificadas por
factores exteriores ao agente, não estariam na cabeça, e não
seriam necessariamente conhecidas pelo agente.8 Também John
Searle, ainda que por diferentes razões das de Fodor, defende que
os significados estão na cabeça (segundo ele, não há outro sítio
onde eles possam estar), mas parece aceitar a inferência de que
no caso de tal não ser assim, perder-se-ia a autoridade da
primeira pessoa.9 Aquela que é talvez a formulação mais simples
desta posição aparece na introdução de Andrew Woodfield a um
livro de ensaios sobre os objectos do pensamento. Referindo-se à
ideia de que os conteúdos da mente são frequentemente
determinados por factos externos e talvez desconhecidos da
pessoa que possui essa mente, diz ele:
“Visto que a relação externa não é determinada subjectivamente, o sujeito não tem
qualquer autoridade sobre ela.Uma terceira pessoa pode muito bem estar numa posição
melhor para saber qual o objecto em que o sujeito está a pensar e, logo, estar numa
posição melhor para saber qual era o pensamento”.10
Aqueles que aceitam a tese de que os conteúdos das atitudes
proposicionais são em parte identificados em termos de factores
externos parecem ter um problema semelhante ao problema do
céptico que descobre que podemos estar completamente
enganados acerca do mundo “exterior”. No caso presente, evita-
se o cepticismo tradicional em relação aos sentidos partindo-se
do princípio que é o próprio mundo que determina mais ou
menos correctamente os conteúdos dos pensamentos acerca do
mundo. (O falante que pensa estar frente a água tem
provavelmente razão, pois ouviu a palavra “água” a ser utilizada
num contexto aquático; o falante que pensa em bágua tem
provavelmente razão pois aprendeu a palavra num contexto
baquático.) Mas o cepticismo não é eliminado; é simplesmente
direccionado para o conhecimento das nossas próprias mentes.
As nossas crenças habituais acerca do mundo exterior são (nesta
perspectiva) direccionadas para o mundo, mas não sabemos
aquilo em que acreditamos.
Há, é claro, uma diferença entre água e bágua, e essa diferença
pode ser descoberta por meios normais, quer seja descoberta ou
não. Assim, uma pessoa pode descobrir aquilo em que acredita
descobrindo a diferença entre água e bágua e descobrindo o
bastante acerca das suas próprias relações com ambas de forma
a determinar acerca de qual delas é que ela fala e tem crenças. A
conclusão céptica a que parece termos chegado diz respeito à
extensão da autoridade da primeira pessoa: é muito mais
limitada do que pensámos. As nossas crenças acerca do mundo
são na sua maioria verdadeiras, mas podemos enganar-nos com
facilidade acerca daquilo que pensamos. é uma imagem inversa
do cepticismo cartesiano.
Aqueles que defendem que os conteúdos dos nossos
pensamentos e os significados das nossas palavras são
frequentemente fixados por factores acerca dos quais nada
sabemos não se têm preocupado muito com a consequência
aparente das suas perspectivas que eu tenho estado aqui a
salientar. Eles perceberam, é certo, que se tiverem razão, a ideia
cartesiana de que a única coisa de que podemos ter certeza são os
conteúdos das nossas próprias mentes e a noção de Frege dos
significados completamente “apreendidos” têm que estar
erradas. Mas não se esforçaram muito, tanto quanto sei, para
resolver o conflito aparente entre as suas perspectivas e a
poderosa intuição de que a autoridade de primeira pessoa existe
de facto.
Uma razão para esta falta de preocupação pode ser o facto de
que alguns deles parecem ver o problema como estando restrito
a um tipo muito limitado de casos, casos em que conceitos ou
palavras se associam intimamente a objectos que são
seleccionados ou referidos através de nomes próprios, indexicais
e palavras para espécies naturais. Outros, porém, defendem que
os laços entre a linguagem e o pensamento por um lado e as
coisas exteriores por outro são tão omnipresentes que nenhum
aspecto do pensamento tal como ele é habitualmente concebido
permanece intocado. Neste sentido Daniel Dennett afirma que
temos que estar bem informados acerca do mundo em geral e
intimamente ligados a ele, aos seus ocupantes e às suas
propriedades, para que se possa dizer com justiça que temos
crenças.11 Ele defende que a identificação de todas as crenças está
contaminada por factores externos e não- subjectivos que se sabe
funcionarem no tipo de caso de que temos estado a tratar. Burge
também realça a extensão em que as nossas crenças são afectadas
por factores externos, embora por razões que deixa por explicar
aparentemente não veja isso como uma ameaça à autoridade da
primeira pessoa.12
A questão tomou um rumo inquietante. No passado o
behaviorismo foi invocado para mostrar como era possível a uma
pessoa saber aquilo que se passava na cabeça de outra; o
behaviorismo foi então rejeitado em parte porque não podia
explicar um dos aspectos mais óbvios dos estados mentais: o
facto de que eles são regra geral conhecidos pela pessoa que os
tem sem recurso a indícios comportamentais. A corrente mais
recente, embora não estritamente behaviorista, identifica de
novo os estados mentais parcialmente em termos de factores
sociais e de outros factores externos, permitindo assim, nessa
medida, que possam ser descobertos publicamente. Mas
reintroduz ao mesmo tempo o problema da justificação da
autoridade da primeira pessoa.
Aqueles que defendem a dimensão externa dos conteúdos dos
pensamentos tal como são habitualmente identificados e
individualizados reagiram de diversos modos. Uma das reacções
foi fazer uma distinção entre os conteúdos da mente enquanto
determinados subjectiva e internamente, por um lado, e as
crenças, os desejos e as intenções habituais, tal como
normalmente as atribuimos com base em relações sociais ou
outras relações externas, por outro lado. Este é claramente o
sentido do argumento de Putnam (embora a palavra “água”
tenha diferentes significados e seja utilizada para exprimir
crenças diferentes quando é usada para indicar água e quando o
é para indicar bágua, as pessoas que usam a palavra para estas
finalidades diferentes podem estar “no mesmo estado
psicológico”.) Jerry Fodor aceita a distinção para certos casos
mas defende que a psicologia devia assumir uma posição de
“solipsismo metodológico” (a expressão é de Putnam), ou seja,
devia tratar exclusivamente de estados internos, os estados
psicológicos verdadeiramente subjectivos que não devem nada às
suas relações com o mundo exterior.13
Steven Stich faz essencialmente a mesma distinção, mas chega
a uma moral mais severa: enquanto Fodor pensa que nós só
precisamos de mexer um pouco nas atitudes proposicionais tal
como elas são habitualmente concebidas de modo a isolarmos o
elemento puramente subjectivo, Stich argumenta que os estados
psicológicos tal como nós os vemos contemporaneamente fazem
parte de uma “psicologia do senso comum” primitiva e confusa
que temos que substituir por uma “ciência cognitiva” ainda por
inventar. O subtítulo do seu último livro é “O Argumento contra
a Crença” (The Case Against Belief).14
Decerto que aqueles que chegam a uma tal conclusão se
asseguraram que o problema da autoridade da primeira pessoa,
pelo menos da forma que eu o pus, não pode ser resolvido. Pois o
problema que pus foi o de como explicar a assimetria entre o
modo como uma pessoa conhece os seus estados mentais
contemporâneos e o modo como os outros os conhecem. Os
estados mentais em questão são crenças, desejos, intenções, etc.,
tal como são habitualmente concebidos. Aqueles que aceitam
algo parecido com a distinção de Putnam nem sequer tentam
explicar a autoridade da primeira pessoa com relação a estes
estados; se há uma autoridade da primeira pessoa, ela deve estar
associada a outros estados bastante diferentes. (No caso de Stich,
é difícil dizer se ela poderá estar associada ao que quer que seja.)
Penso que Putnam, Burge, Dennett, Fodor, Stich e outros têm
razão em chamar a atenção para o facto de que os estados
mentais comuns, pelo menos as atitudes proposicionais, são em
parte identificados pelas relações com a sociedade e com o resto
do ambiente, relações essas que podem ser ignoradas pela pessoa
que se encontra nesses estados. Têm também razão, na minha
opinião, ao defenderem que por este motivo (que pode mesmo
ser o único), os conceitos da “psicologia do senso comum” não
podem ser integrados num sistema de leis coerente e
omniabarcante do tipo almejado pela física. Estes conceitos
fazem parte de uma teoria do senso comum que descreve,
interpreta e explica o comportamento humano de forma um
tanto ou quanto caótica mas que é indispensável (na minha
opinião). Posso imaginar uma ciência tendo por objecto as
pessoas expurgada da “psicologia do senso comum”, mas não
consigo ver que interesse teria essa ciência. Este não é, contudo,
o assunto deste artigo.
O que aqui me interessa é a descoberta intrigante que
aparentemente não sabemos aquilo que pensamos — pelo menos
do modo como pensamos sabê-lo. Isto é um verdadeiro enigma
para aqueles que, como eu, acreditam ser verdade que os factores
externos determinam em parte os conteúdos dos pensamentos e
que acreditam ainda que regra geral sabemos de facto, e de uma
maneira que os outros não sabem, aquilo em que pensamos. O
problema surge porque a aceitação dos papéis identificadores e
individualizadores dos factores externos leva aparentemente à
conclusão que os nossos pensamentos não podem ser conhecidos
por nós.
Mas será que a conclusão se segue? A resposta depende,
segundo creio, do modo como cada um pensar que a identificação
de conteúdos mentais depende de factores externos.
Esta conclusão segue-se, por exemplo, para qualquer teoria que
defenda que as atitudes proposicionais são identificadas por
objectos (tais como proposições, espécimes de proposições ou
representações) que não se encontram na mente ou “antes” dela
e que contêm ou incorporam (como “ingredientes”) objectos ou
ocorrências exteriores ao agente; é claro que ninguém conhece as
características infinitas de todos e cada um dos objectos
exteriores. Que a conclusão se segue destas suposições é algo
geralmente aceite.15 Contudo, por razões de que falarei mais
tarde, rejeito as suposições nas quais a conclusão se baseia neste
caso.
Tyler Burge sugeriu que há um outro modo pelo qual factores
externos entram na determinação dos conteúdos de fala e de
pensamento. Uma das suas “experiências de pensamento” vem
mesmo a calhar para mim. Até há pouco tempo atrás eu pensava
que a artrite era uma inflamação das articulações causada por
depósitos de cálcio; não sabia que qualquer inflamação das
articulações, por exemplo a gota, também era artrite. Por isso
quando um médico me disse (erradamente, como depois se
verificou) que eu tinha gota, pensei que tinha gota mas não
pensei que tinha artrite. Neste ponto Burge pede-nos que
imaginemos um mundo em que eu fosse o mesmo fisicamente
mas em que a palavra “artrite” só se utilizasse de facto para
inflamações das articulações causadas por depósitos de cálcio.
Deste modo a frase “A gota não é uma forma de artrite” teria sido
verdadeira, não falsa, e a crença que eu teria expresso com esta
frase não teria sido a crença falsa de que a gota não é uma forma
de artrite mas sim uma crença verdadeira acerca de uma outra
doença que não a artrite. Contudo no mundo imaginado todos os
meus estados físicos, as minhas “experiências qualitativas
internas”, o meu comportamento e as minhas disposições
comportamentais são as mesmas que neste mundo. A minha
crença teria mudado mas eu não teria qualquer razão para supor
que tal tivesse acontecido e, logo, não se poderia dizer que eu
soubesse aquilo em que acreditava.
Burge realça o facto de que o seu argumento depende da
“possibilidade de alguém ter uma atitude proposicional apesar de não dominar
completamente uma ou outra noção no seu conteúdo[…] se se quer que a experiência de
pensamento funcione, temos que encontrar num momento qualquer o sujeito a acreditar
num (ou a ter alguma atitude caracterizada por um) conteúdo, apesar de uma
compreensão incompleta ou de um erro de aplicação”.16
Daqui parece seguir-se que, se Burge tem razão, sempre que
alguém está errado, confuso ou parcialmente mal informado
acerca do significado de uma palavra, ele está errado, confuso ou
parcialmente mal informado acerca de toda e qualquer uma das
suas crenças que é (ou seria?) expressa com o uso dessa palavra.
Visto que uma tal “compreensão parcial” é “comum ou até
mesmo normal no caso de um número bastante grande de
expressões no nosso vocabulário”, segundo Burge, deve ser de
igual modo comum ou normal estarmos errados acerca daquilo
em que acreditamos (e, é claro, acerca daquilo que receamos,
esperamos, desejamos que assim fosse, duvidamos, etc.).
Burge aparentemente aceita esta conclusão; pelo menos é
assim que interpreto a sua recusa de que “a compreensão total de
um conteúdo é de um modo geral uma condição necessária para
acreditar no conteúdo”. Ele rejeita explicitamente “o velho
modelo de acordo com o qual uma pessoa tem que conhecer
directamente ou tem que apreender imediatamente os conteúdos
dos seus pensamentos […]. [O] conteúdo do pensamento de uma
pessoa não é fixado pelo que se passa no seu interior ou por
aquilo a que ela tem acesso simplesmente por via de uma reflexão
cuidadosa”.17
Não sei muito bem como é que devo entender estas afirmações
na medida em que não sei se devo levar a sério esta conversa de
“conhecer directamente” e de “apreender imediatamente” um
conteúdo. Mas de qualquer modo estou certo que se aquilo que
queremos dizer e pensamos é determinado pelos hábitos
linguísticos daqueles à nossa volta do modo postulado por Burge,
então a autoridade da primeira pessoa fica seriamente em risco.
Visto que o grau e o carácter deste risco me parecem ser
incompatíveis com aquilo que sabemos acerca do tipo de
conhecimento que temos das nossas próprias mentes, tenho que
rejeitar alguma das premissas de Burge. Concordo que aquilo que
quero dizer e penso não é “fixado” (exclusivamente) por aquilo
que se passa em mim, logo, aquilo que tenho que rejeitar é a
teoria de Burge de como os factores sociais e outros factores
externos controlam os conteúdos da mente de uma pessoa.
Por várias razões sinto-me levado a minimizar a importância
das características das nossas atribuições de atitudes para as
quais Burge chama a atenção. Suponhamos que eu, que penso
que a palavra “artrite” se refere a uma inflamação nas
articulações somente se esta for causada por um depósito de
cálcio, e o meu amigo Artur, que sabe mais do que eu sobre o
assunto, dizemos ao Silva com toda a sinceridade que “O Carlos
tem artrite”. Segundo Burge, se as nossas circunstâncias são mais
ou menos as mesmas (ambos falamos inglês fluentemente,
ambos aplicámos frequentemente a palavra “artrite” a casos
verdadeiros de artrite, etc.) então as nossas palavras nesta
ocasião significam o mesmo, eu e o Artur queremos dizer a
mesma coisa com as nossas palavras e expressamos a mesma
crença. O meu erro no que diz respeito ao significado
estabelecido da palavra (ou no que diz respeito àquilo que é a
artrite) não faz qualquer diferença no que diz respeito àquilo que
quis dizer ou pensei nessa ocasião. As provas que Burge
apresenta para defender esta ideia parecem basear-se na sua
convicção de que isto é o que alguém (não corrompido pela
filosofia) diria acerca de mim e do Artur. Duvido que Burge tenha
razão neste aspecto mas, mesmo que ele tenha razão, não penso
que isso confirme a sua ideia. As atribuições de significados e
atitudes habituais baseiam-se em suposições abundantes e vagas
acerca daquilo que é e não é partilhado (em termos linguísticos
bem como noutros termos) por aquele que faz a atribuição, a
pessoa a quem a atribuição é feita e a audiência visada por quem
faz a atribuição. Quando se verifica que algumas destas
suposições são falsas, podemos alterar as palavras que usamos
para fazer a descrição, muitas vezes de forma substancial. Se a
questão não for muito importante, temos tendência a escolher o
caminho mais fácil: tomamos as palavras de outrem literalmente,
mesmo que isso não reflicta na perfeição algum aspecto do
pensamento de quem fala ou daquilo que ele quer dizer. Mas isto
não é porque somos obrigados (pelo menos fora de um tribunal)
a ser legalistas em relação a isso. Frequentemente não o somos.
Se o Silva (não corrompido pela filosofia) diz a outra pessoa
(talvez a um médico que se encontra longe dali e tenta fazer um
diagnóstico com base numa descrição por telefone) que eu e o
Artur dissemos e acreditamos que o Carlos tem artrite, ele pode
muito bem induzir em erro o médico que o ouve. Se um tal perigo
fosse provável, o Silva, mais atento aos factos, não diria
simplesmente: “O Artur e o Davidson acreditam ambos que o
Carlos tem artrite”; ele acrescentaria algo como, por exemplo,
“Mas o Davidson pensa que a artrite tem que ser causada por
depósitos de cálcio”. A necessidade de uma tal elucidação mostra
bem, na minha opinião, que a mera atribuição não era
completamente correcta; havia uma diferença significativa nos
pensamentos que eu e o Artur expressámos ao dizermos “O
Carlos tem artrite”. é claro que Burge não é obrigado a aceitar
este argumento, visto que pode insistir que a descrição está
literalmente correcta mas pode, como pode acontecer com
qualquer descrição, induzir em erro. Por outro lado, penso que
esta resposta não levaria em conta o grau em que os conteúdos
de uma crença dependem necessariamente dos conteúdos de
outras crenças. Os pensamentos não são átomos isolados; logo,
não pode haver regras simples e rígidas para a atribuição correcta
de um pensamento.18
Embora eu rejeite a insistência de Burge de que somos
obrigados a dar às palavras de uma pessoa o significado que elas
têm na sua comunidade linguística e a interpretar as suas
atitudes proposicionais baseando-nos nesse princípio, penso que
há um outro sentido algo diferente mas muito importante no qual
os factores sociais controlam o que um falante pode querer dizer
com as suas palavras. Se um falante quer ser compreendido, ele
tem que querer que as suas palavras sejam interpretadas de uma
certa maneira e tem, logo, que querer fornecer à sua audiência as
pistas de que ela necessita para chegar à interpretação almejada.
Isto é válido tanto no caso de o ouvinte dominar o uso de uma
língua que o falante sabe como no caso de o ouvinte ser um
aprendente de uma língua materna. é o requisito da
aprendabilidade, da interpretabilidade, que fornece o factor
social irredutível e que mostra porque é que uma pessoa não pode
querer dizer seja o que for com palavras que não possam ser
correctamente decifradas por outra. (Burge parece chegar a esta
mesma conclusão num artigo posterior.)19
Gostaria agora de voltar ao exemplo de Putnam da Terra
Gémea, o qual não depende da ideia de que o uso linguístico
social dita (em condições mais ou menos padronizadas) aquilo
que os falantes querem dizer com as suas palavras, nem, é claro,
quais são os seus estados psicológicos (limitados). Estou
convencido, como disse, que Putnam tem razão; aquilo que as
nossas palavras significam é fixado em parte pelas circunstâncias
em que aprendemos e usámos as palavras. O único exemplo que
Putnam nos dá (o da água) talvez não seja suficiente para resolver
definitivamente este aspecto, pois é possível argumentar que
“água” não se aplica somente a uma substância com a mesma
estrutura molecular da água mas também a substâncias
suficientemente parecidas com ela em termos estruturais para
serem inodoras e potáveis, para servirem para nadar e velejar,
etc. (Sei bem que estas considerações, como muitas outras ao
longo deste artigo, podem sugerir que não sei reconhecer um
designador rígido. Não sei mesmo.) A questão não depende de
casos assim tão especiais nem de como os resolvemos ou
deveríamos resolver. A questão depende simplesmente de como
é que a ligação básica entre palavras e coisas, ou entre
pensamentos e coisas, é estabelecida. Defendo, juntamente com
Burge e Putnam, se é que os compreendi bem, que essa ligação é
estabelecida por interacções causais entre as pessoas e partes e
aspectos do mundo. As disposições para reagir de modo
diferencial a objectos e ocorrências assim estabelecidas são
fulcrais para a interpretação correcta dos pensamentos e do
discurso de uma pessoa. Se assim não fosse, não teríamos
qualquer meio de descobrir aquilo que os outros pensam ou
aquilo que querem dizer com as suas palavras. O princípio é tão
simples e óbvio como isto: uma frase que alguém esteja motivado
(induzido) a aceitar como verdadeira pela e só pela presença da
lua deverá querer dizer algo como “Olha ali a lua”; o pensamento
expresso deverá ser o de que se pode ver a lua; o pensamento
motivado pela e só pela presença da lua deverá ser o de que a lua
está visível. Deverá ser, tendo em conta erros compreensíveis,
relatos em segunda mão, etc. Não se trata do facto de que todas
as palavras e frases sejam assim tão directamente condicionadas
por aquilo a que se referem; podemos perfeitamente aprender a
usar a palavra “lua” sem nunca a termos visto. O que se defende
é que todo o pensamento e toda a linguagem devem ter um
fundamento nestas ligações históricas directas e que estas
ligações condicionam a interpretação de pensamentos e
discursos. Talvez seja bom frisar que os argumentos a favor desta
ideia não se baseiam em intuições relativas àquilo que diríamos
caso certos contrafactuais fossem verdadeiros. Não precisamos
de ficção científica nem de experiências de pensamento.20
Concordo, pois, com Putnam e com Burge que
“[…] o conteúdo intencional das atitudes proposicionais comuns […] não pode ser
explicado em termos de estados ou processos físicos, fenoménicos, causais- funcionais,
computacionais ou sintácticos, ou por processos que são especificados de forma não-
intencional e que são definidos exclusivamente no indivíduo, separadamente do seu meio
físico e social”.21
Falta responder à questão se este facto representa uma ameaça
para a autoridade da primeira pessoa, como Burge parece
defender e Putnam e outros certamente defendem. Rejeitei um
dos argumentos de Burge que, a ser verdadeiro, constituíria essa
ameaça. Mas há a posição descrita no último parágrafo e que eu
defendo, quer outros o façam ou não, pois penso que esta dose de
“externismo” é necessária para explicar como é que a linguagem
pode ser aprendida e como é que palavras e atitudes podem ser
identificadas por um intérprete.
Porque é que Putnam pensa que se a referência de uma palavra
é (por vezes) fixada pela história de como essa palavra foi
adquirida, um utilizador da palavra pode perder a autoridade da
primeira pessoa? Putnam afirma (correctamente, no meu ponto
de vista) que duas pessoas podem ser em todos os aspectos físicos
relevantes (químicos, fisiológicos, etc.) a mesma e contudo
quererem dizer coisas diferentes com as suas palavras e terem
atitudes proposicionais diferentes (tal como estas são
normalmente identificadas). As diferenças devem-se a diferenças
ambientais acerca das quais os dois agentes podem, em
determinados aspectos, nada saber. Porque é que, nestas
condições, deveríamos supor que estes agentes podem não saber
aquilo que querem dizer e pensam? Falar com eles não nos irá
revelar facilmente a razão. Como frisámos, cada um deles,
quando na presença de um copo de água ou de bágua dizem com
toda a sinceridade “Isto é um copo de água”. Se se encontram no
meio ambiente respectivo, cada um deles tem razão; se trocaram
de terra, cada um deles está errado. Se perguntarmos a cada um
deles o que querem dizer com a palavra “água” eles darão a
resposta correcta usando, é claro, as mesmas palavras. Se
perguntarmos a cada um deles em que é que acreditam, eles dar-
nos-ão a resposta correcta. Estas respostas estão correctas pois,
embora idênticas verbalmente, devem ser interpretadas de modo
diferente. E o que é que eles não sabem (no sentido habitual da
autoridade da primeira pessoa) acerca dos seus próprios estados?
Como já vimos, Putnam distingue os estados de que temos estado
a tratar dos estados psicológicos “limitados” que não pressupõem
a existência de quaisquer outros indivíduos para além do sujeito
que se encontra nesse estado. Podemos começar agora a pensar
porque estará Putnam interessado nos estados psicológicos
limitados. Uma parte da resposta é que, é claro, são estes os
estados que ele pensa terem a propriedade “cartesiana” de serem
conhecidos de um modo especial pela pessoa que se encontra
neles. (A outra parte da resposta tem a ver com a construção de
uma “psicologia científica”; isso é um assunto que não tratamos
aqui.)
O raciocínio depende, segundo creio, de duas suposições em
grande medida inquestionadas. São elas:
1. Se um pensamento é identificado por uma relação a algo exterior
à cabeça, não se encontra completamente na cabeça. (Não está na
cabeça.)
2. Se um pensamento não está completamente na cabeça, não pode
ser “apreendido” pela mente do modo exigido pela autoridade da
primeira pessoa.
Que este é o raciocínio de Putnam, tal é sugerido pela sua tese de
que, se duas cabeças são a mesma, os estados psicológicos
limitados devem ser os mesmos. Deste modo, se pensarmos que
duas pessoas são a mesma molécula a molécula (no sentido em
que duas gravatas podem ser “idênticas”; podemos acrescentar,
se assim o desejarmos, que cada uma das pessoas pensa os
mesmos pensamentos verbalizados, tem os mesmos dados
sensoriais, as mesmas disposições, etc.), então é absurdo pensar
que um estado psicológico é algo diferente do outro. Trata-se, é
claro, de estados psicológicos limitados, não daqueles que
normalmente atribuímos, que não estão na cabeça.22
Não é fácil dizer exactamente de que modo é que os
pensamentos verbalizados, os dados sensoriais e as disposições
podem ser idênticos sem voltarmos às gravatas; voltemos, pois,
às gravatas. Pois a ideia é esta: os estados psicológicos limitados
de duas pessoas são idênticos quando os seus estados físicos não
podem ser distinguidos. Não valeria a pena pormos isto em
questão, visto que cabe a Putnam definir estados psicológicos
limitados; o que eu quero questionar é a suposição 1 acima que
levou à conclusão que as atitudes proposicionais habituais não
estão na cabeça e que por isso a autoridade da primeira pessoa
não se aplica no seu caso.
Tem que ficar bem claro que simplesmente do facto de que os
significados são identificados em parte por relações a objectos
exteriores à cabeça não se segue que os significados não estejam
na cabeça. Pensar o contrário seria tão erróneo como argumentar
que porque o facto de eu estar queimado pressupõe a existência
do sol, a minha queimadura solar não é uma condição da minha
pele. A minha pele queimada pelo sol pode ser indistinta da pele
de outra pessoa que ficou queimada por outros meios (as nossas
peles podem ser idênticas no “sentido das gravatas”); contudo,
um de nós está realmente queimado pelo sol, o mesmo não se
passando com o outro. Isto é o bastante para mostrar que uma
consideração dos factores externos que entram nos nossos
modos habituais de identificar estados mentais não põe em
dúvida uma teoria da identidade do mental e do físico. Andrew
Woodfield parece pensar o contrário. Ele escreve:
“Nenhum estado de facto acerca de um objecto exterior ao cérebro da pessoa pode ser
idêntico a um estado desse cérebro, pois nenhum estado cerebral pressupõe a existência
de um objecto externo”. 23
Os estados e os acontecimentos individuais não pressupõem
conceptualmente seja o que for em si mesmos; algumas das
suas descrições, contudo, podem fazê-lo. O meu avô paterno não
me pressupôs, mas se alguém pode ser descrito como meu avô
paterno, várias pessoas para além do meu avô, incluindo eu
próprio, têm que existir.
Burge pode bem estar a cometer um erro semelhante na
seguinte passagem:
“[…] Nenhuma ocorrência de um pensamento[…] poderia ter um conteúdo diferente e
ser um espécime da mesma ocorrência […]. Pois […] a ocorrência de pensamento de uma
pessoa não é idêntica a nenhuma ocorrência nela descrita pela fisiologia, pela biologia,
pela química ou pela física. Pois, seja b qualquer ocorrência dada descrita nos termos de
uma das ciências físicas que tem lugar no sujeito enquanto ele pensa o pensamento
relevante. Seja ‘b’ de tal modo que denote a mesma ocorrência física a ter lugar no sujeito
na nossa situação contrafactual […] b não precisa de ser afectado por diferenças
contrafactuais [que não alteram os conteúdos da ocorrência de pensamento]. Assim […]
b [a ocorrência física] não é idêntica à ocorrência de pensamento do sujeito”. 24
Burge não reclama como seu o estabelecimento da premissa
deste argumento nem, logo, da sua conclusão. Mas defende que
a rejeição da premissa é “intuitivamente muito implausível”. Ele
prossegue afirmando que “as teorias materialistas da identidade
habituaram a imaginação a ver o conteúdo de um acontecimento
mental como variando enquanto o acontecimento permanece
inalterável. Mas se tais suposições são factos possíveis ou mera
fantasia filosófica, trata-se de uma outra questão”. é porque ele
pensa que a rejeição da premissa é extremamente improvável que
ele defende que “as teorias materialistas da identidade se
tornam” elas próprias “implausíveis pelas experiências de
pensamento não- individualista”.25
Eu aceito a premissa de Burge; penso que a sua rejeição é não
só implausível como também absurda. Se dois acontecimentos
mentais têm conteúdos diferentes eles são certamente
acontecimentos diferentes. Segundo creio, aquilo que os casos
imaginados por Burge e por Putnam mostram (e aquilo que o
exemplo do Homem dos Pântanos mostra de forma mais directa)
é que pessoas que sejam idênticas em todos os aspectos físicos
relevantes (ou “idênticas” no sentido das gravatas) podem diferir
em relação àquilo que querem dizer ou pensam do mesmo modo
que podem diferir na sua condição de avôs ou de estarem
queimados pelo sol. Mas é claro que há algo diferente acerca
delas, até mesmo no mundo físico; as suas histórias causais são
diferentes.
Concluo que o mero facto de que os estados mentais e os
acontecimentos comuns são individualizados em termos de
relações com o mundo exterior não tende a pôr em dúvida as
teorias da identidade mental-física enquanto tais. Em conjunção
com algumas outras suposições (plausíveis), o “externismo” de
certos estados e acontecimentos mentais pode ser usado,
segundo creio, para pôr em dúvida teorias da identidade que
caem dentro do materialismo dos tipos (type-type identity
theories); mas se ele apoia alguma coisa, então apoia teorias da
identidade que caem dentro do materialismo dos espécimes
(token-token identity theories). (Não vejo nenhuma boa razão
para chamar “materialistas” a todas as teorias da identidade; se
alguns acontecimentos mentais são acontecimentos físicos, tal
não os torna mais físicos que mentais. A identidade é uma relação
de simetria.)
Assim sendo, Putnam e Woodfield não têm razão ao afirmar
que é absurdo pensar que duas pessoas podiam ser fisicamente
idênticas (no sentido das “gravatas”) e contudo diferir
relativamente aos seus estados psicológicos habituais. Burge, a
menos que ele esteja disposto a fazer um uso muito mais efectivo
do que aquele que fez de suposições essencialistas, está errado ao
pensar ter mostrado que todas as teorias da identidade são
implausíveis. Logo, estamos perfeitamente à vontade para
pensar que duas pessoas podem ser idênticas em todos os
aspectos físicos relevantes embora diferirindo psicologicamente:
esta é na verdade a posição do “monismo anómalo” que defendi
num outro texto.26
Um obstáculo ao conhecimento não baseado em indícios das
nossas próprias atitudes proposicionais foi eliminado. Pois que
se as crenças comuns e as outras atitudes podem estar “na
cabeça” mesmo quando são identificadas como sendo as atitudes
que são em parte nos termos daquilo que não está na cabeça,
então a ameaça à autoridade da primeira pessoa não pode vir
simplesmente do facto de que os factores externos são relevantes
para a identificação das atitudes.
Mas resta ainda aparentemente uma dificuldade. É verdadeiro
que a minha queimadura solar, embora descritível como tal
somente em relação ao sol, é idêntica a uma condição da minha
pele que pode (penso eu) ser descrita sem uma referência a tais
factores “externos”. Ainda assim, se, como um cientista
especialista em todas as ciências físicas, eu só tenho acesso à
minha pele e não à história da sua condição, então por hipótese
não há nenhuma maneira de eu poder dizer que estou queimado
pelo sol. Talvez, então, alguém tenha autoridade de primeira
pessoa no que diz respeito aos conteúdos da sua mente só
enquanto esses conteúdos podem ser descritos ou descobertos
sem referência a factores externos. Na medida em que os
conteúdos são identificados em termos de factores externos, a
autoridade de primeira pessoa necessariamente cai. Posso dizer
ao observar a minha pele qual é a sua condição privada ou
“limitada” (narrow), mas nada do que eu poder ficar a saber
neste domínio restrito me poderá dizer que estou queimado pelo
sol. A diferença entre referir-se a e pensar em água e referir-se a
e pensar em bágua é como a diferença entre estar queimado pelo
sol e ter a pele exactamente na mesma condição devido a outra
causa qualquer. A diferença semântica reside no mundo exterior,
para além do alcance do conhecimento subjectivo ou sublunar.
Este pode bem ser o argumento.
Esta analogia, entre a visão limitada do dermatologista e a visão
de túnel do olho da mente, é essencialmente imperfeita. Ela
depende para ter sucesso numa perspectiva defeituosa da mente,
uma perspectiva que aqueles que têm atacado o carácter
subjectivo dos estados psicológicos comuns compartilham com
aqueles que eles atacam. Se conseguirmos abandonar esta
perspectiva, a autoridade da primeira pessoa deixará de ser vista
como um problema; na verdade, a autoridade da primeira
passará a estar dependente dos factores sociais e públicos que se
pensava destruírem essa autoridade e passará a ser explicada por
esses mesmos factores.
Há uma perspectiva da mente que ficou de tal modo enraizada
na nossa tradição filosófica que é quase impossível escapar à sua
influência, mesmo quando se reconhece e repudia os seus piores
defeitos. Numa versão rudimentar mas habitual as coisas
passam-se assim: a mente é um teatro no qual o eu consciente
assiste a um cortejo (as sombras na parede). O cortejo compõe-
se de “aparências”, de dados sensoriais, de qualia, daquilo que é
dado na experiência. Aquilo que aparece no palco não são os
objectos habituais do mundo que o olho exterior regista e o
coração aprecia, mas os seus supostos representantes. O que quer
que saibamos acerca do mundo exterior depende daquilo que
conseguimos colher a partir de pistas internas.
A dificuldade aparente desde o início relativamente à descrição
do mental é descobrir como é possível reconstruir um trajecto do
interior para o exterior. Uma outra dificuldade evidente, embora
talvez menos reconhecida, é saber dizer onde se encontra o eu na
imagem. Pois o eu parece por um lado incluir o teatro, o palco, os
actores e a audiência; por outro lado, aquilo que se conhece e se
regista pertence exclusivamente à audiência. Este segundo
problema podia muito bem ser reformulado como o problema da
localização dos objectos da mente: estarão eles na mente ou
serão eles simplesmente vistos por ela?
Não estou aqui interessado nuns tais objectos da mente (hoje
em grande medida rejeitados) enquanto dados dos sentidos mas
sim nos seus primos ajuizadores, os presumíveis objectos das
atitudes proposicionais, quer se pense neles como sendo
proposições, espécimes de proposições, representações ou
fragmentos de “mentalês”. A ideia principal que eu quero atacar
é a de que estas são entidades que a mente pode “manter”,
“captar”, “ter perante si”, ou com as quais pode estar
“familiarizada”. (Estas metáforas têm provavelmente um valor
pedagógico: os voyeurs só querem ter representações perante o
olho da mente, enquanto os mais agressivos as captam; os
ingleses podem estar somente familiarizados com os conteúdos
da mente, enquanto outros tipos mais amigáveis os cultivarão.)
é fácil ver como a descoberta que os factores externos entram
na individuação dos estados mentais perturba a imagem da
mente que eu a tenho estado a descrever. Pois que se estar num
estado mental é para a mente estar numa determinada relação
como apreender um objecto, então seja o que for que nos ajude a
determinar o objecto de que se trata deve ser igualmente
apreendido se a mente quer saber em que estado se encontra. Isto
torna-se especialmente claro se um objecto exterior for um
“ingrediente” no objecto perante a mente. Mas em qualquer um
dos casos a pessoa que se encontra no estado mental pode não
saber em que estado mental se encontra.
é neste ponto que o conceito do subjectivo — relativamente a
um estado mental — parece desmoronar-se. De um lado estão os
estados internos reais em relação aos quais a mente mantém a
sua autoridade; do outro lado estão os estados habituais de
crença, desejo, intenção e significação, que são contaminados
pelas suas relações necessárias com o mundo social e público.
Como uma analogia temos o problema do especialista em
queimaduras solares que não consegue descobrir, ao examinar a
pele, se se trata de um caso de queimadura solar normal ou
meramente de uma condição idêntica com uma outra causa
qualquer. Podemos resolver este problema distinguindo entre
queimado pelo sol e queimado por algo como o sol; queimado por
algo como o sol é simplesmente idêntico a queimado pelo sol
excepto pelo facto de que o sol não tem que estar envolvido. O
especialista pode detectar um caso de queimadura por algo como
o sol só de olhar para ela, o mesmo não se passando com um caso
de queimadura solar. Esta solução resulta porque as doenças da
pele, ao contrário dos objectos da mente, não têm que ser de tal
modo que haja uma pessoa especial que possa dizer ao olhar para
elas se se trata de uma determinada doença ou não.
A solução no caso dos estados mentais é diferente e mais
simples; é livrarmo-nos da metáfora dos objectos perante a
mente. A maioria de entre nós já abandonou há muito tempo
atrás a ideia das percepções, dos dados sensoriais e do fluxo da
experiência como coisas “dadas” à mente; devíamos tratar os
objectos proposicionais da mesma maneira. é claro que as
pessoas têm crenças, desejos, dúvidas, etc.; mas admitir isto não
é sugerir que as crenças, os desejos e as dúvidas
sejam entidades na ou perante a mente, ou que estar nesses
estados exija a existência de objectos mentais correspondentes.
Isto já foi dito anteriormente, de formas mais ou menos
agressivas, mas por razões diferentes. Os escrúpulos ontológicos,
por exemplo, não me preocupam absolutamente nada. Teremos
sempre necessidade de um reservatório infinito de objectos para
nos ajudar a descrever e a identificar atitudes como a crença; não
estou a sugerir de modo algum que as frases que exprimem
crenças e as frases que atribuem as outras atitudes não sejam de
natureza relacional. O que estou a sugerir é que os objectos com
os quais relacionamos as pessoas de modo a descrever as suas
atitudes não precisam de maneira nenhuma de ser
objectos psicológicos, objectos a ser apreendidos, conhecidos ou
mantidos, pela pessoa cujas atitudes são descritas.
Este modo de pensar também nos é familiar; Quine segue-o
quando sugere que podemos usar as nossas próprias frases para
nos mantermos a par dos pensamentos de pessoas que não
conhecem a nossa língua. O interesse de Quine é semântico e ele
não diz nada neste contexto acerca dos aspectos epistemológicos
e psicológicos das atitudes. Precisamos de reunir todas estas
abordagens dispersas. As frases acerca das atitudes são
relacionais; por razões semânticas tem que consequentemente
haver objectos com os quais relacionar aqueles que têm atitudes.
Mas ter uma atitude não é ter uma entidade perante a mente; por
razões psicológicas e epistemológicas convincentes devíamos
negar que existam objectos da mente.
A raiz do problema é o dogma de que ter um pensamento é ter
um objecto perante a mente. Putnam e Fodor (bem como muitos
outros) distinguiram dois tipos de objectos, aqueles que são
verdadeiramente interiores e logo “perante a mente” ou
“apreendidos” por ela e aqueles que identificam o pensamento da
forma habitual. Concordo que nenhum objecto pode cumprir
estas duas funções. Putnam (e alguns dos outros filósofos que
mencionei) pensa que a dificuldade advém do facto de que não se
pode esperar que um objecto parcialmente identificado em
termos de relações externas coincida com um objecto perante a
mente pois a mente pode desconhecer a relação externa. Talvez
as coisas sejam realmente assim. Mas daí não se segue que
possamos encontrar outros objectos que assegurem a
coincidência desejada. Pois se o objecto não está em relação com
o mundo, nunca poderemos aprender nada sobre o mundo tendo
esse objecto perante a mente; e, pelas mesmas razões, seria
impossível detectar um tal pensamento noutra pessoa. Assim,
parece que aquilo que está perante a mente não pode incluir as
suas relações exteriores — a sua semântica. Por outro lado, se o
objecto está relacionado com o mundo, então não pode estar
completamente “perante a mente” no sentido relevante.
Contudo, a menos que um objecto semântico possa estar perante
a mente no seu aspecto semântico, o pensamento, concebido nos
termos de uns tais objectos, não pode escapar ao destino dos
dados sensoriais.
A dificuldade básica é simples: se ter um pensamento é ter um
objecto “perante a mente” e a identidade do objecto determina
aquilo que o pensamento é, então é sempre possível estarmos
enganados acerca daquilo que pensamos. Pois a menos que
saibamos tudo sobre o objecto, haverá sempre sentidos nos quais
não sabemos de que objecto se trata. Muitas têm sido as
tentativas de encontrar uma relação entre uma pessoa e um
objecto que se mantenha em todos os contextos se e só se
podermos dizer intuitivamente acerca da pessoa que ela sabe de
que objecto se trata. Mas nenhuma destas tentativas resultou e
penso que a razão para tal é óbvia. O único objecto que satisfaria
os requisitos relacionados de estar “perante a mente” e de ser tal
que determine aquilo que o conteúdo de um pensamento deveria,
tal como as ideias e impressões de Hume, “ser aquilo que parece
e parecer aquilo que é”. Não existem uns tais objectos, públicos
ou privados, abstractos ou concretos.
Os argumentos de Burge, Putnam, Dennett, Fodor, Stich,
Kaplan, Evans e de muitos outros para mostrarem que as
proposições não podem simultaneamente determinar os
conteúdos dos nossos pensamentos e ser subjectivamente
asseguradas são, na minha opinião, outras tantas variações do
argumento simples e geral que acabei de delinear. Não são só as
proposições que não podem desempenhar essa função; nenhum
objecto o poderá fazer.
Quando nos tivermos liberto da suposição que os pensamentos
devem ter objectos misteriosos, poderemos ver como é que o
facto de que os estados mentais tal como comummente os
concebemos são em parte identificados pela sua história não só
não consegue atingir o carácter interno desses estados ou
ameaçar a autoridade da primeira pessoa, como também abre a
porta a uma explicação da autoridade da primeira pessoa. A
explicação advém da consciência de que aquilo que as palavras
de uma pessoa querem dizer depende nos casos mais básicos dos
tipos de objectos e de ocorrências que fizeram com que a pessoa
pensasse que se podiam aplicar as palavras; de modo semelhante
para aquilo acerca do qual são os pensamentos da pessoa. Um
intérprete das palavras e pensamentos de outra pessoa tem que
depender de informação dispersa, de uma boa preparação e de
conjecturas imaginativas para conseguir compreendê-la. O
próprio agente, contudo, não está em posição de pensar se está
de modo geral a usar as suas próprias palavras para referir os
objectos e os acontecimentos apropriados, visto que aquilo a que
ele regularmente as aplica dá às suas palavras o significado que
elas têm e aos seus pensamentos os conteúdos que eles têm. é
claro que, em determinados casos particulares, ele pode enganar-
se em relação àquilo em que acredita acerca do mundo; o que é
impossível é que ele possa enganar-se a maior parte do tempo. A
razão é óbvia: a menos que haja uma pressuposição de que o
falante sabe aquilo que diz, ou seja, que está a usar correctamente
a sua própria língua, não haverá nada para um intérprete
interpretar. Para pôr as coisas de uma outra maneira, não
podemos conceber algo como alguém a aplicar mal as suas
próprias palavras de um modo regular. A autoridade da primeira
pessoa, o carácter social da linguagem e os determinantes
externos do pensamento e do significado voltarão a estar todos
juntos, como o deverão estar, assim que abandonarmos o mito
do subjectivo, a ideia de que os pensamentos exigem objectos
mentais.
Donald Davidson
Publicado originalmente em Proceedings and Addresses of the American
Philosophical Association, 61: 441–58; reimpresso em Subjective, Intersubjective,
Objective (Oxford: Clarendon Press, 2001). Marcia Cavell, detentora dos direitos de
autor de Donald Davidson, gentilmente autorizou a tradução e publicação deste
texto.

Notas
1. Graham Wallas, The Art of Thought. ↩︎
2. Donald Davidson, “First Person Authority”, Dialectica, 38 (1984),
pp. 101–111. ↩︎
3. Hilary Putnam, “The Meaning of ‘Meaning’”, reimpresso
em Philosophical Papers, Vol. II: Mind, Language, and Reality,
Cambridge University Press, 1975, p. 227. ↩︎
4. Não tenho aqui quaisquer pretensões a ser original: Steven Stich
usou um exemplo muito semelhante em “Autonomous Psychology
and the Belief-Desire Thesis”, The Monist, 61 (1978), p. 573 ss.
Devo frisar que não estou aqui a sugerir que um objecto criado
acidental ou artificialmente não possa pensar; o Homem dos
Pântanos precisa simplesmente de tempo para adquirir uma
história causal que possa dar sentido à pretensão de que ele está a
falar, a lembrar-se, a identificar ou a pensar acerca de coisas no
mundo. (Voltarei a este assunto.) ↩︎
5. Hilary Putnam, “The Meaning of Meaning”, p. 144. ↩︎
6. Ver John Searle, Intentionality, Cambridge University Press,
1983, e Tyler Burge, “Individualism and Psychology”, The
Philosophical Review, 95 (1986), pp. 3–45. ↩︎
7. Cf. Hilary Putnam, “The Meaning of Meaning”, pp. 164–5. ↩︎
8. Cf. Jerry Fodor, “Cognitive Science and the Twin Earth
Problem”, Notre Dame Journal of Formal Logic, 23 (1982), p.
103. Ver ainda do mesmo autor “Methodological Solipsism
Considered as a Research Strategy in Cognitive Psychology”, The
Behavioral and Brain Sciences, 3 (1980). ↩︎
9. John Searle, Intentionality, capítulo 8. ↩︎
10.Thought and Object, Andrew Woodfield, ed., Clarendon Press,
1982, p. viii. ↩︎
11. Cf. Daniel Dennett, “Beyond Belief”, in Thought and Object, p.
76. ↩︎
12. Tyler Burge, “Other Bodies”, in Thought and Object;
“Individualism and the Mental”, in Midwest Studies in
Philosophy, Vol. 4, Peter French, Theodor Uehling, Howard
Wettstein, eds., University of Minnesota Press, 1979; “Two
Thought Experiments Reviewed”, Notre Dame Journal of Formal
Logic, 23 (1982), pp. 284–93; “Individualism and Psychology”. ↩︎
13. Jerry Fodor, “Methodological Solipsism Considered as a Research
Strategy in Cognitive Psychology”. ↩︎
14. Steven Stich, From Folk Psychology to Cognitive Science, M.I.T.
Press, 1983. ↩︎
15. Ver por exemplo Gareth Evans, The Varieties of Reference,
Oxford University Press, 1982, pp. 45, 199, 201. ↩︎
16. Tyler Burge, “Individualism and the Mental”, p. 83. ↩︎
17. Ibidem, pp. 90, 102, 104. ↩︎
18. Burge sugere que a razão pela qual normalmente pensamos que
uma pessoa quer dizer com as suas palavras aquilo que outros na
sua comunidade linguística querem dizer, quer o falante saiba ou
não aquilo que os outros querem dizer, é que “as pessoas são
frequentemente julgadas, e julgam-se a si próprias, de acordo com
os padrões da comunidade quando se trata de uma má aplicação
ou de uma má compreensão”. Diz ele ainda que tais casos
“dependem de uma certa responsabilidade pela prática
comunitária” (Cf. “Individualism and the Mental”, p. 90). Não
ponho em dúvida o fenómeno mas simplesmente a sua
importância relativamente àquilo que quer mostrar. (a) é de um
modo geral correcto considerar as pessoas responsáveis por
saberem aquilo que as suas palavras querem dizer; nesses casos
podemos encará-las como defendendo posições que
desconheciam ou que não pensavam defender. Isto não tem nada
a ver (directamente) com aquilo que elas queriam dizer com as
suas palavras nem com aquilo que elas pensavam. (b) Como bons
cidadãos e bons pais procuramos encorajar práticas que
fomentem as oportunidades de comunicação; usar as palavras
como pensamos que os outros as usam pode fomentar a
comunicação. Esta ideia (justificada ou não) pode ajudar a
explicar porque é que algumas pessoas têm tendência a atribuir
significados e crenças de um modo normativo; pretendem
encorajar o conformismo. (c) Um falante que quer ser
compreendido tem que querer que as suas palavras sejam
interpretadas (e logo interpretáveis) de acordo com certas regras;
este desejo pode ser satisfeito usando as palavras do mesmo modo
que os outros as usam (embora frequentemente tal não aconteça).
De modo semelhante, um ouvinte que quer compreender um
falante tem que querer interpretar as suas palavras como o falante
queria que elas fossem interpretadas (quer a interpretação seja
“padrão” ou não). Estas intenções recíprocas adquirem
importância moral num número infinito de situações que não têm
nenhuma ligação necessária com a determinação daquilo que
alguém tinha na cabeça. ↩︎
19. Ver, por exemplo, “Two Thought Experiments Reviewed”, p.
289. ↩︎
20. Burge já deu exemplos de “experiências mentais” que nem
sequer envolvem a linguagem; uma destas experiências leva-o a
afirmar que alguém que tivesse crescido num ambiente sem
alumínio não poderia ter “pensamentos de alumínio”.
(“Individualism and Psychology”, p. 5.) Burge não nos diz porque
é que pensa deste modo, mas não é de modo nenhum evidente que
ele necessite de suposições contrafactuais para defender a sua
ideia. Seja como for, as novas experiências de pensamento
parecem basear-se em intuições bastante diferentes daquelas
invocadas em “Individualism and the Mental”; o papel das normas
sociais nas novas experiências não é claro e os hábitos linguísticos
da comunidade parecem ser irrelevantes. é possível que aqui a
posição de Burge esteja próxima da minha. ↩︎
21. “Two Thought Experiments Reviewed”, p. 288. ↩︎
22. “The Meaning of Meaning”, p. 227. ↩︎
23. Andrew Woodfield, in Thought and Object, p. viii. ↩︎
24. “Individualism and the Mental”, p. 111. ↩︎
25. Cf. “Individualism and Psychology”, p. 15, nota 7. Cf. ainda
“Individualism and the Mental”, p. 111. ↩︎
26. “Mental Events”, in Donald Davidson, Essays on Actions
and Events, Oxford University Press, 1982. ↩︎

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