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Daseinsanalyse 32 (2016) 23–29

O que significa ouvir como terapeuta daseinsanalista?

Uta Jaenicke

Resumo

Eu gostaria de considerar a questão do que torna a terapia daseinsanalítica especial do ponto de vista
prático. O que significa concretamente que, como daseinsanalista, me interesso por questões filosóficas
concernentes à existência humana e ao próprio ser?

Meu ponto de partida é a afirmação de Heidegger em ‘Ser e Tempo’ de que os seres humanos sempre de
alguma forma sabem sobre sua existência e estão preocupados com isso “explicitamente ou não,
apropriadamente ou não”. Então, como daseinsanalista, estou alerta para a dimensão existencial das
experiências concretas com que meus pacientes estão preocupados, eu os "escuto com um terceiro
ouvido".

É claro que o desafio de detectar uma preocupação existencial particular de um paciente deve ser
considerado de maneira bastante individual, dependendo do que sentimos ser inerentemente consistente
em um determinado contexto e momento. Mas a questão não é apenas como encontrar uma
interpretação ontológica convincente de uma questão ôntica, mas também se é essencial torná-la uma
questão na terapia.

Quero discutir essas questões com a ajuda de um breve exemplo clínico.

* * *

Em daseinsanálise as questões filosóficas sobre a existência humana desempenham um


papel central. Quero discutir o que isso pode significar na prática, particularmente no que
diz respeito à visão daseinsanalítica contemporânea desenvolvida por Alice Holzhey. Mas,
primeiro algumas palavras sobre a teoria daseinsanalítica em geral: apesar de sua
orientação filosófica básica, a terapia daseinsanalítica pode, em aspectos importantes, ser
definida como um método terapêutico baseado nos princípios fundamentais de Sigmund
Freud. Assim como a psicanálise, a daseinsanálise considera as experiências da infância
como significativas para o desenvolvimento do sofrimento mental. Além disso, em relação
ao método, a maioria de nós segue as regras fundamentais de Freud de associação livre,
atenção flutuante e postura do terapeuta de abstinência - Medard Boss, como sabemos,
apesar de sua discordância com a maioria dos insights teóricos de Freud, valorizava muito
essas regras.

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Alice Holzhey, no entanto, tem uma dívida especial com o pensamento psicanalítico,
porque, semelhante a Freud e em contraste com Boss, ela considera que os sintomas
psicopatológicos têm um significado. A novidade é que, para Alice Holzhey, esse significado
deve ser entendido filosoficamente. Ela entende o sofrimento psíquico não apenas como um
sofrimento de reminiscências de experiências infantis, mas também em um sentido mais
fundamental, como um sofrimento do próprio ser e suas condições incontornáveis - sua
orientação para isso é a antropologia hermenêutica e filosófica de Heidegger em Ser e
Tempo. Consequentemente, para Alice Holzhey, uma situação atual concreta deve ser visto
como determinado histórica e existencialmente. O que isso pode significar na prática, quero
ilustrar usando o exemplo a seguir.

Exemplo clínico

Steve, um jovem sóbrio e prudente, que veio para a terapia sentindo-se deprimido e
solitário depois de ter rompido com uma namorada, por vezes sofria de reações agressivas
repentinas e irreprimíveis. Certa vez, por exemplo, ao pedalar em uma via onde também
pedestres caminham, um homem não saiu do seu caminho. Como se tratava de uma estrada
para veículos, Steve sentiu que estava certo. Então ele continuou pedalando no meio da rua.
Mas o homem também não se esquivou. No último momento Steve teve que ceder para
evitar um acidente, mas ao passar acertou o ombro do homem com força. Sabendo que
esse era um comportamento agressivo muito inapropriado, ele pedalou o mais rápido que
pôde. Sentindo-se culpado, envergonhado e com medo de si mesmo, ele não sabia como
evitar tais reações destrutivas no futuro. Ele pediu minha ajuda.

Nosso primeiro objetivo, é claro, foi tentar entender essa ação altamente emocional.
Perguntei a Steve que ideias espontâneas vinham à sua mente ao considerar seus
repentinos e fortes sentimentos de raiva - sentimentos irracionais, porque talvez o homem
simplesmente não soubesse que lado escolher para se esquivar. “Não pude evitar, minha
reação foi mais rápida do que eu imaginava”, disse. Várias outras ocasiões, também alguns
sonhos, em que ele havia sentido e às vezes também agido de forma semelhante, vieram à
sua mente. Já quando criança, disse ele, muitas vezes sentiu a mesma raiva, por exemplo,
uma vez no jardim de infância, quando ele não conseguia entender por que o professor tirou
uma pá de brinquedo dele, só porque alguma outra criança queria. Característico de todas
essas experiências foi um sentimento intenso de fúria impotente, uma raiva por se sentir

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negado o que lhe era devido, de estar bloqueado em seus objetivos e não ser respeitado
como alguém com suas próprias necessidades e opiniões. Agora, o que significa ouvir isso
como um terapeuta daseinsanalista? Como já mencionado, temos que escutar as diferentes
dimensões das experiências concretas.

A primeira dimensão que ouvimos é a experiência concreta como tal

Ao ouvir o relato de Steve sobre o incidente de bicicleta, ficamos surpresos com a


inadequação de sua emoção e ação em relação ao contexto aparentemente inofensivo.
Como é que este jovem educado e tranquilo de repente age de forma tão irracionalmente
agressiva? Por que essa interpretação errônea da situação? Como podemos entender o
sentimento avassalador de impotência que é a causa de sua intensa raiva? Ficamos
perplexos. Qual poderia ser um contexto adequado em que esse sentimento e conduta
possam se tornar compreensíveis?

A dimensão histórica

Com a ajuda das associações livres do paciente, encontramos um contexto adequado em


certas experiências infantis significativas - a dimensão histórica do evento concreto.
Historicamente os sentimentos de Steve podem ser compreendidos, quando sabemos que
seu pai, que nunca desejou filhos e era incapaz de atender às necessidades emocionais de
um filho, sempre tentou não atender a vontade de seu filho, e que sua mãe, por causa de
sua carreira, teve que colocá-lo já nos primeiros anos em uma creche que ele odiava. Ele
deve ter se sentido no caminho de seus pais, indesejado e desprezado em seus sentimentos
pelas pessoas de quem mais dependia - como se ele não devesse existir. Não admira que
ele fosse uma criança difícil e infeliz, constantemente se rebelando. Seu medo de ser
desconsiderado persistiu até a idade adulta em relação à maioria das pessoas com quem
tinha de lidar com mais intensidade. Estar junto com outras pessoas era uma tensão
constante para ele, porque constantemente se sentia compelido a lutar para ganhar estima.
Trabalhou muito, tirou as melhores notas nos estudos, foi eficiente e responsável no
trabalho e viveu uma vida saudável com muito esporte. Mas todo sucesso não o livrou de
sentir-se fundamentalmente sem importância para seus semelhantes. Sua intensa fúria em
situações em que se sentia ignorado deve ser visto como um sintoma psicopatológico,
significando sua tentativa desesperada, embora ilusória e mais do que isso,

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contraproducente, de prevalecer e conseguir o que achava ser seu direito. Como o exemplo
ilustra, esse presente sentimento de impotência e raiva pode surgir em qualquer situação,
por mais insignificante que seja. Obviamente, tais sentimentos tinha raízes em seu passado,
principalmente em seu relacionamento com seu pai. Estando sempre em uma posição
defensiva, temendo que alguém lhe negue o que lhe é devido ou bloqueie seu caminho, ele
tende a mal interpretar situações inofensivas de acordo com o passado traumático.

A dimensão filosófica

Mas o que mais nos interessa aqui é a terceira dimensão desse incidente. Qual pode ser o
significado filosófico da reação impulsiva de Steve? O que percebemos se ouvirmos sua
dimensão existencial? Martin Heidegger afirma que, como seres humanos, estamos
fundamentalmente preocupados com a tarefa de nossa própria existência e suas condições
insondáveis, como ser mortal, ser finito e sem determinações prévias. A condição dessa
consciência básica a respeito de nosso próprio ser, entretanto, varia muito. Heidegger
afirma: “Seja explicitamente ou não, seja apropriadamente ou não, a existência é de alguma
forma entendida também. Todo entendimento ôntico ‘inclui’ certas coisas, mesmo que
apenas pré-ontologicamente” Então, na visão de Heidegger, em todos os nossos
sentimentos e ações concretas, em todos os nossos desejos e sofrimentos, estamos
relacionados a certas questões relativas ao nosso próprio ser. A relação com nosso próprio
ser pode ser percebida conscientemente, seja como um insight explícito ou como uma
experiência emocional alarmante. Ou pode agenciar nossa conduta mais ou menos
inconscientemente, disfarçada como um fato implícito que não precisa de nenhuma
consideração especial, como costuma ser o caso nos assuntos do dia-a-dia. Ambas as formas
são comuns, apropriadas e, portanto, imperceptíveis. Mas, Heidegger menciona também
uma possível maneira de se relacionar com o próprio ser que é inadequada. O que ele quis
dizer com isso? Acredito que uma forma de conduta de vida visivelmente estranha e que
não se encaixa em nossos padrões normais de bom senso, algo como o comportamento
violento e impróprio de Steve.

Conceito daseinsanalítico de Alice Holzhey

Alice Holzhey considera o termo que Heidegger definiu como "inclusão (pré) -ontológica" a
chave decisiva para compreender filosoficamente os sintomas psicopatológicos. Ela afirma

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que os sentimentos e ações manifestamente inadequados de pessoas que sofrem


mentalmente são o resultado de uma sensibilidade especial para a tarefa da própria
existência. A inclusão ontológica de uma questão concreta abre e obstrui emocionalmente
essas pessoas, absorvendo-as e sobrecarregando-as a ponto de perderem o seu terreno no
bom senso. Eles não podem mais lidar com as questões incômodas concretas de uma
maneira normal geralmente válida, mas têm que encontrar sua própria resposta individual
para a irrefutável demanda existencial. Isso faz com que sua conduta pareça tão claramente
inadequada. Portanto, ao ouvir como um daseinsanalista com um "ouvido filosófico" o
relato de Steve, ouço-o como a manifestação de alguma preocupação existencial sua, à qual
ele é sensível.

O humor como diretriz

Para compreender sua sensibilidade específica é essencial considerar o humor específico no


qual as ações impulsivas de Steve se baseiam. Heidegger declara que nosso próprio ser nos
é revelado principalmente nos estados de ânimo (ST § 29). Também a inclusão ontológica,
respectivamente, a dimensão ontológica de uma questão concreta é sentida em primeiro
lugar emocionalmente, a saber, a emoção muito especial que Heidegger chama de angústia,
ou ansiedade. Deve-se notar que a ansiedade de Heidegger não é nossa ansiedade
coloquial; não se dirige a um objeto, como o medo, mas a facticidade de nosso próprio ser
e ao que isso significa para nós. A angústia nos confronta com a tarefa de ser a nossa
existência (ST § 40). Na maioria das vezes, porém, não sentimos diretamente angústia, mas
a experimentamos mais ou menos encoberta, embrulhada ou disfarçada em algum outro
estado de espírito, correspondendo à sua intensidade variável. Quanto mais evidente e
inadequada uma emoção aparece em seu contexto concreto, mais prevalece a angústia,
onerando e transformando as questões concretas correspondentes às preocupações
ontológicas básicas. Portanto, nesta visão, a assustadora e ineficaz fúria de Steve deve ser
entendida como sua experiência específica de angústia, ou uma resposta a ela, uma emoção
crua na qual ele se sente confrontado com um aspecto aparentemente inaceitável da
condição humana contra o qual ele busca se revoltar. Para ele, a impotência fundamental
do ser humano – utilizando o termo de Heidegger denominado como nosso estar-lançado
(ST § 12) - é uma imposição inaceitável, uma exigência totalmente irracional. Assim, ele
considera o comportamento inofensivo do homem que está em seu caminho como uma

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insinuação existencial ameaçadora, uma alusão velada para o fato de que, embora
certamente tenhamos que escolher nosso próprio caminho para conduzir nossas vidas, ao
mesmo tempo somos basicamente impotentes e limitados, incapazes de escolher
livremente. Steve está se revoltando contra essa verdade, à qual provavelmente se tornou
sensível em relação ao pai. Extremamente consciente do verdadeiro fato ontológico de ter
que decidir por si mesmo como conduzir sua vida, ele não pode aceitar o igualmente
verdadeiro fato contrário de estar fundamentalmente limitado em suas possibilidades de
agir segundo suas decisões. Pequenos incidentes diários o lembram incessantemente do
fato de que, como seres humanos, não podemos escolher livremente, mas temos que nos
submeter, como no acidente em sua bicicleta. Devido à sua sensibilidade, ele está
exagerando em um desejo ilusório de superar esse fato existencial inalterável - depois, é
claro, ele se sente profundamente envergonhado, culpado e ansioso.

Os sonhos como diretriz

Também em seus sonhos, ele muitas vezes se sente compelido a lutar com uma intensidade
inadequada pelo que ele acredita merecer, às vezes sentindo vagamente que está lutando
com muito vigor e, ao mesmo tempo, também com argumentos vazios. Este último acho
muito interessante. O fato de que sonhando ele experimenta a si mesmo empregando
argumentos vazios mostra que ele mesmo duvida, em certa medida, da legitimidade de sua
raiva. Obviamente, essas dúvidas são justificadas não apenas no contexto de sua conduta
na vida em vigília, mas também no nível existencial. Em primeiro lugar, ele está se
revoltando no lugar errado, confundindo passado e presente e preocupações ônticas e
ontológicas. Mais do que isso, porém, sua luta constante como tal é questionável
existencialmente. Como seres humanos, temos de existir fundamentalmente sem qualquer
legitimação; portanto, nunca podemos ter certeza se alguma decisão nossa é justificada -
em nosso exemplo, se a decisão de lutar é justificada de alguma forma. Consequentemente,
o fato de Steve, emocionalmente e sonhando, raramente duvidar de sua luta como tal,
apenas às vezes de sua maneira de lutar, é interessante. Isso deve ser levado em
consideração quando tentamos definir mais detalhadamente o caráter peculiar do
sofrimento e o intrínseco desejo de Steve.

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O caráter existencial do sofrimento de Steve

Na verdade, Steve está preocupado em fazer o que quer, não principalmente para alcançar
uma determinada meta, mas em ser respeitado como uma pessoa autodeterminada,
alguém que luta por seu direito de ter uma opinião e posição legítimas - um direito que ele
sente que seus semelhantes o negam tal como o seu pai fez. Sua revolta é dirigida à
aparentemente determinação de "os outros" tentarem impedi-lo em suas próprias
atividades. Existencialmente, isso significa que ele sofre particularmente com o fato de que
temos que nos adaptar aos diferentes "outros", bem como defender nossas próprias
intenções. Mais especificamente, Steve está particularmente preocupado com o fato a sua
própria "alteridade", que ele sente não ser respeitada pelos “os outros”. Ele sofre com o
fato de que 'o outro' - no início seu pai - não o percebe e não o respeita como alguém
diferente, alguém que também é um 'outro'.

As principais preocupações da terapia daseinsanalítica

Mas vamos voltar à questão de como a filosofia surge concretamente em uma terapia
daseinsanalítica: com este jovem foi possível falar sobre todas as três dimensões de sua
recente experiência dolorosa. Isso deve ter causado um forte impacto sobre ele. Ele me
disse que algo havia mudado em seus sentimentos e em sua conduta ao ir de bicicleta para
o trabalho. Antes, ele estava em uma tensão constante, apenas com o intuito de alcançar
seu objetivo o mais rápido possível, atento apenas a qualquer obstáculo irritante. Agora ele
pedala mais devagar e pensando em outras questões. O que mais o impressionou foi o fato
surpreendente de que agora ele podia sentir-se alegre e feliz, apenas porque não havia
obstáculo em seu caminho!

Mesmo sonhando, ele recentemente foi capaz de renunciar e controlar sua raiva. Em vez de
agir irracionalmente ao se sentir injustiçado, em alguns sonhos ele agora era capaz de se
defender de uma forma razoável. Os sonhos, em minha visão daseinsanalítica, concentram-
se na dimensão existencial daquelas questões emocionais que nos preocupam
profundamente. Os sonhos mostram de forma condensada e particular como
experimentamos momentaneamente nossa luta com certas condições difíceis da vida
humana que não estamos dispostos a suportar.

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Como podemos entender essa mudança de atitude em relação às questões existenciais


particulares às quais ele é sensível? Nenhum conselho poderia ter causado isso. Deve ter
sido nossa assídua "elaboração" compartilhada de seus problemas ônticos e ontológicos
que produziram essa mudança. Essa elaboração deve ter impelido a um insight emocional,
não apenas intelectual, sobre as condições inalteráveis da existência humana, que
simplesmente precisam ser suportadas. Tendo aceitado isso por enquanto, ele era capaz
agora de considerar o fato de ser limitado sobretudo em sua livre escolha como uma algo
supostamente natural. Consequentemente, ele agora pode até mesmo se sentir grato pelo
fato de que as limitações nem sempre são perceptíveis, respectivamente, mas que também
é possível se sentir livre. A prontidão para aceitar aspectos indesejáveis da existência
humana é, de fato, uma pré-condição para estar aberto e acolher estes aspectos da própria
existência.

Claro que nem sempre é possível discutir as questões concretas também sob uma luz
existencial. Mas isso também não é necessário. A escuta do terapeuta para a dimensão
existencial por si só já é suficiente - atribuir às emoções incômodas uma verdade
fundamental em vez de desconsiderá-las como interpretações errôneas devido às
experiências da infância.

* * *
Referências

Heidegger M. (2010) Being and Time (BT), translated by Joan Stambough, revised by Dennis J. Schmidt,
State University of New York Press.

Holzhey-Kunz A. (2014) Daseinsanalysis, translated by Sophie-Leighton, Free Association books, Great


Britain.

Jaenicke U. (2008) The issue of human existence as represented in dreaming: A new Daseinsanalytic
interpretation of the meaning of dreams. International Forum of Psychoanalysis, 2008; 17: 51-55.

A autora:

Dr. med. Uta Jaenicke, GAD-DAS (Zurique, Suíça)


Sociedade de Antropologia Hermenêutica e Daseinsanálise
Seminário de Daseinsanálise

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