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P sicose e ética do pensador na

clínica de B ion : panorama dos


artigos dos anos 50
Psychosis and the thinker’s ethics in Bion’s clinic:
a scenario of papers from the fifties

Resumo Na década de 1950, Wilfred Bion publicou artigos dedi-


cados ao aprofundamento e à ampliação das concepções de Me-
lanie Klein sobre a psicose. O olhar do autor sobre os processos
intrapsíquicos ajudou a elucidar as dificuldades do psicótico em
constituir e sustentar uma vida subjetiva vinculada à consciência
das realidades interna e externa. Porém, o entendimento dessas
dificuldades ganhou uma complexidade teórica e técnica ainda
maior quando Bion passou a explorar o potencial intersubjetivo
da identificação projetiva, tomada como veículo de comunicação
e como forma primitiva de se obter conhecimento de si. Neste
estudo, mostra-se o processo pelo qual Bion chegou a essa com-
preensão em uma experiência clínica sua, e a importância desse A driana S alvitti
processo para o tratamento. Também se delineiam as ideias do Universidade de
São Paulo (USP).
autor naquela época sobre o significado do objeto externo, em
adrianasalvitti@hotmail.com
especial sobre o papel do analista no processo de subjetivação.
Palavras-chave identificação projetiva normal, pensamento
pré-verbal, comunicação primitiva, atitude analítica.

Abstract In the 1950s, Wilfred Bion published articles dedi-


cated to deepening and expanding Melanie Klein’s concepts
on psychosis. Bion’s view of intrapsychic processes helped to
elucidate the difficulties faced by psychotics in constituting and
sustaining a subjective life linked to the awareness of internal
and external realities. However, the understanding of these dif-
ficulties gained even greater theoretical and technical complex-
ity when Bion began to explore the intersubjective potential of
projective identification, which was taken as a means of com-
munication and a primitive way of obtaining self-knowledge.
This study shows the process through which Bion reached this
understanding in a clinical experience and the importance of this
process for treatment; it also outlines his ideas at that time re-
garding the significance of the external object and especially the
analyst’s role in the process of subjectivation.
Keywords normal projective identification; pre-verbal thou-
ght; primitive communication; analytic attitude.
Introdução de mente mais regredidos, incluindo maior

O
tema desta edição, voltado para a dis- atenção ao próprio estado mental e emocio-
cussão das noções de alteridade e éti- nal do analista, muito em função da maneira
ca na psicanálise, deflagra o que há de como o paciente se comporta na sessão e
mais central e, ao mesmo tempo, problemá- emprega a linguagem para fazer e comunicar
tico na prática clínica. Certamente o conceito coisas concretas, em vez de transmitir signifi-
de inconsciente e as compreensões sobre as cados verbais.
formas do homem admitir ou ignorar aquilo O psicanalista inglês Wilfred R. Bion
que há de estranho, intolerável e de desco- (1897-1979) desenvolveu a sua obra no bojo
nhecido em si, bem como fora de si, constitui das contribuições e inovações trazidas pelo
o estofo dessa disciplina desde o plano mais pensamento de Melanie Klein com relação
abstrato, teórico explicativo, até o plano mais a esse grupo de pacientes; além disso, cola-
concreto, ligado ao dia a dia do consultório. borou de maneira original para o aprofunda-
As formas de subjetivação e de conduta ten- mento na compreensão dessas questões no
do em vista o outro interno e externo com- âmbito teórico e técnico. A experiência clíni-
põem uma discussão fundamental no que diz ca de Bion com esquizofrênicos, neuróticos
respeito à clínica psicanalítica, uma vez que as graves e pacientes borderline deu origem, na
questões relacionadas ao reconhecimento de década de 1950, a formulações originais sobre
uma alteridade fazem parte da natureza da o funcionamento mental primitivo e sobre a
relação analítica seja no âmbito transferen- qualidade da relação analítica. Veremos que
cial, seja contratransferencial. O trabalho psi- ele contribuiu para o entendimento do esta-
canalítico com a psicose, em especial, veio dar do precário das funções do ego em virtude
a essas questões uma agudeza ainda maior. do ódio e do sadismo direcionados a elas, e
Do ponto de vista da história da psicaná- do quanto era difícil a esses pacientes alcan-
lise, já vem de longa data a problematização çarem e manterem um contato minimamente
em torno das mudanças que ocorreram na enriquecedor com a realidade interna e exter-
teoria e na técnica analítica em função do tra- na. Essas compreensões são acompanhadas
balho com pacientes não neuróticos, isto é, de descrições clínicas bastante minuciosas,
que apresentam transtornos mais ou menos que surpreendem pelo conteúdo bizarro das
severos na constituição do narcisismo (GRE- experiências e pela capacidade de Bion per-
EN, 2008). Essas mudanças se impuseram ao ceber os diferentes usos que os pacientes
analista pela sua necessidade em examinar faziam de seus instrumentos psíquicos, tanto
o seu papel e a função do enquadre quando no sentido de impedir como de promover o
falham a manutenção do dispositivo analítico desenvolvimento.
e a capacidade de simbolização no paciente, A partir da década de 1960, Bion realizou
bem como no próprio analista. Mas não ire- importantes reflexões sobre o método, des-
mos nos deter sobre os aspectos históricos tacando as funções de personalidade no ana-
desse tema. Apenas destacamos a excelente lista no tratamento de ansiedades primitivas.
abordagem feita por André Green (1975), que A essas reflexões Bion acrescentou o interes-
combina uma perspectiva objetiva relaciona- se pela natureza da “matéria” ou do objeto
da à diversidade de quadros psicopatológicos de investigação psicanalítico combinado à sua
que passaram a ser descritos na literatura possibilidade de apreensão dentro e fora do
psicanalítica e nos quais predominam funcio- consultório. Neste último caso, referimo-nos
namentos psicóticos, com uma perspectiva a uma preocupação de Bion com a possibilida-
subjetiva relacionada a mudanças no analista. de de transmissão da psicanálise por meio de
Green entende que, ao longo do desenvolvi- trabalhos científicos.
mento da psicanálise, houve uma ampliação Dada a extensão de seu pensamento, fa-
na sensibilidade e na percepção para estados remos um recorte em sua obra, abrangendo

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apenas o período em que Bion estava em vias contato com uma vida psíquica que, em seus
de organizar as suas ideias naquela que ficou aspectos fundamentais, mantinha-se inviabili-
conhecida como a Teoria do Pensar, apresen- zada.2 Uma análise do artigo Sobre arrogância
tada em 1962.1 Nossa intenção é apresentar (1958b) nos permitirá acompanhar a atenção
um panorama das concepções do autor sobre de Bion aos transtornos de pensamento tam-
a psicose, presentes em artigos publicados bém no que diz respeito à mente do analista
nos anos 50, e chamar a atenção para um mo- e à forma com que foi possível a ele chegar
mento clínico no qual Bion enfoca o papel do a certas compreensões na sessão, a partir de
analista no evolver de uma situação analítica. mudanças em seu estado de mente. Ao con-
Nesses artigos, ainda não encontramos trário do que se poderia imaginar, o enfoque
os conceitos que comumente caracterizam o não é propriamente sobre a contratransferên-
pensamento de Bion, como função-alfa, ele- cia no sentido do que se passa com o analista,
mento beta e reverie, muito menos a formula- e sim na atividade de pensar ansiedades mui-
ção já clássica sobre a necessidade do analista to primitivas e seus percalços.
manter uma atitude livre de memória, desejo Além de essas concepções terem uma
e compreensão. Vale dizer que esses concei- importância clínica em si, esperamos que elas
tos estão na base de qualquer discussão que ajudem o leitor interessado em Bion a cons-
se pretenda fazer sobre alteridade e ética em truir pontes entre ideias que se encontram
Bion. A pergunta natural a se fazer é por que, espalhadas em sua obra, e facilitem o acom-
então, deixá-las de lado e, mais ainda, por que panhamento de alguns desdobramentos em
tirar do leitor a oportunidade de conhecer ou seu pensamento.
de revisitar conceitos tão complexos?
Obviamente não se trata de ignorá-los. Concepções teóricas sobre
O que pretendemos fazer é expor algumas a psicose e experiências clínicas
das questões que somente a posteriori irão Quando nos voltamos aos textos escri-
compor a sua teoria de modo explícito, mui- tos por Bion na década de 1950, observamos
to porque encontramos nesses artigos iniciais todo o seu empenho em elucidar os meca-
traços de uma abordagem que está na base nismos arcaicos do funcionamento mental,
de formulações bastante abstratas, presen- a gênese psíquica da psicose, bem como a
tes em livros como O aprender da experiên- descrição de uma série de fenômenos psicóti-
cia (1962b) e Elementos da psicanálise (1963). cos em pacientes severamente perturbados.
Entre a publicação desses livros e os artigos Notamos também que essas descrições tive-
da década de 1950 há um grande salto na for- ram como base a observação da qualidade da
ma e no conteúdo apresentado. Bion não é comunicação entre paciente e analista, prin-
um autor sistemático ou didático, e muito do cipalmente no que diz respeito à forma de o
processo de amadurecimento de suas ideias paciente empregar a linguagem verbal. Esta,
e das questões que fazem a ponte entre seus além de ser um modo de pensamento e co-
trabalhos não são evidentes. municação, é um veículo para a concretização
O interesse de Bion pelo método, asso- de fantasias primitivas com o objeto. A fim de
ciado ao desenvolvimento de uma capacida- evitar ansiedades aniquiladoras, mas também
de de pensar tanto no paciente como no ana- a fim de fazer valer seus impulsos sádicos e
lista pode ser visto em algumas passagens de seu anseio pela onipotência, o psicótico frag-
seus artigos. Nelas, notamos a relação mais menta o pensamento verbal e usa a lingua-
ou menos direta entre a emergência de insi- gem para descarregar ansiedades e fazer coi-
ght no analista e a entrada do paciente em sas concretas com o objeto externo. Ao invés
Nos últimos anos, essas ideias têm sido aprofundadas
2


1
BION, 1962a. Uma visão geral sobre a obra e a vida de por nós por meio de diferentes ângulos (SALVITTI,
Bion pode ser encontrada em BLÉANDONU, 1993. 2004, 2006, 2011).

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de as palavras representarem ideias e emo- realidade ao seu redor, tornando ainda mais
ções e servirem para pensar, elas equivalem intoleráveis as ansiedades as quais está sub-
a uma parte não admitida da personalidade. metido. Ousar sonhar, pensar e constituir um
Por meio de fantasias onipotentes que subja- mundo interno mais enriquecido promoveria
zem à fala e às ações, as ansiedades primitivas a percepção de toda essa destrutividade e o
seriam expelidas e colocadas para dentro de surgimento de significados bastante doloro-
uma pessoa, ou de uma coisa qualquer, pro- sos e quase impossíveis de serem admitidos.
vocando, de fato, reações no ambiente exter- Porém, Bion também mostrou as formas
no. Em um conhecido trecho de Notas sobre com que esses pacientes tentam reconstituir
a teoria da esquizofrenia (1954), Bion faz a se- seu aparelho psíquico e tomar contato com
guinte afirmação: a realidade odiada. Mecanismos comumente
associados à psicopatologia psicótica, como
[...] o paciente fala de um modo so- a alucinação, o delírio e a identificação pro-
nolento com a intenção de fazer o jetiva, também seriam usados para a recons-
analista dormir. Ao mesmo tempo, tituição do ego na busca por conhecimento.
estimula a curiosidade do analista. Em meio a tantas dificuldades e contando
A intenção [...] é dividir o analista, com recursos tão incipientes, é surpreenden-
que é impedido de dormir e de fi- te encontrarmos nos relatos de Bion peque-
car acordado.3 nos momentos – não menos sofridos – nos
quais o paciente sente que há cooperação,
Como diz Meltzer (1998), o recém-apre- em que experimenta alívio diante de um ob-
sentado conceito de identificação projetiva jeto que o ajuda quando consegue dar vazão
por Melanie Klein, em 1946, estava no centro ao seu “impulso para comunicar” e obter a
dessas constatações, proporcionando impor- “ingestão de cura”. Especialmente em Sobre
tantes ampliações teóricas e avanços na téc- alucinação (1958a), Bion mostra que a cisão,
nica. Segundo a concepção original de Klein a alucinação e o delírio poderiam ser usados
(1946), a identificação projetiva seria o meio como atividades criativas a serviço da “intui-
pelo qual, em fantasia, um aspecto odiado ou ção terapêutica”.4
idealizado que está cindido da personalida- Bion detectava, assim, a presença de
de é reconhecido como pertencente a outra um pensamento primitivo que existiria à par-
pessoa, deixando o projetor esvaziado desse te de significados verbais, relacionado a me-
mesmo aspecto. As ansiedades envolvidas canismos tipicamente patológicos, que não
nesse processo acarretariam inibições no in- tinham essa como sua única característica. A
telecto e na formação de símbolos, prejudi- descrição de aspectos criativos presentes na
cando a formulação e resolução de problemas psicose trouxe uma importante contribuição
relacionados com o conhecimento e o desen- à literatura da área, cujo enfoque se dá, so-
volvimento da personalidade. bretudo, nos aspectos mais doentios do pa-
Bion foi um dos principais colabora- ciente. Essa descrição é importante, também,
dores de Klein na investigação da dimensão por deixar entrever o significado clínico de o
patológica e anormal da identificação proje- analista acompanhar as diferentes qualidades
tiva, descrevendo os efeitos da destrutivida- e empregos que os fenômenos assumem na
de direcionada ao ego e às suas funções. Em sessão de momento a momento. Voltaremos
seus artigos sobre a psicose, mostra que o pa- a isso no próximo item.
ciente fica impossibilitado de usar a atenção, Bion nota que na posição esquizopara-
a memória, o pensamento verbal e a capaci- noide haveria a expressão de um simbolismo
dade de julgar para conhecer a si mesmo e a rudimentar ou de um pré-simbolismo seme-

3
BION, 1954, p. 35. 4
Idem, 1958a, p. 82;96.

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lhante ao material onírico, capaz de propor- toda a análise, o paciente recorreu
cionar alguma consciência da realidade psí- à identificação projetiva com uma
quica e uma comunicação primitiva. Se de um persistência tal que sugeria que
lado o pensamento verbal estaria associado à se tratava de um mecanismo de
posição depressiva devido a sua qualidade de que jamais conseguira valer-se o
síntese e de integração, por outro, seria pos- suficiente; a análise deu-lhe uma
sível detectar já na posição esquizoparanoide oportunidade para o exercício de
um pensamento pré-verbal e tentativas de re- um mecanismo de que havia sido
constituição do ego. privado. [...] Quando o paciente se
Essas ideias foram bastante discutidas esforçava por livrar-se dos temores
em um de seus artigos mais importantes, inti- de morte, sentidos como sendo de-
tulado Diferenciação entre a personalidade psi- masiado intensos [...], ele cindia e
cótica e a personalidade não-psicótica (1957), afastava tais temores e os colocava
por meio de uma perspectiva eminentemente dentro de mim, com a ideia de que,
intrapsíquica, mas já com algum destaque para se lhes fosse permitido ali repousar
a maneira como o analista lidou com material por tempo suficiente, minha psique
tão primitivo. A dimensão intersubjetiva ga- os modificaria, podendo eles então
nhará uma exposição mais ampla nos artigos ser reintrojetados sem perigo.5
Sobre arrogância (1958b) e Ataques à ligação
(1959), quando Bion descreve em maiores A partir de constatações clínicas como
detalhes a natureza da relação analítica. Sem essa, a identificação projetiva, que até então
fazer menções diretas, Bion parecia estar refle- havia sido amplamente descrita em seus as-
tindo intensamente sobre o papel do analista pectos defensivos, ganhou novos contornos
no tratamento quando predominam formas conceituais e proporcionou importantes des-
primitivas de pensamento e de comunicação. dobramentos técnicos. Além de Bion explici-
Em acréscimo à descrição dos modos tar as diferenças do conceito, mostrando as
com os quais o paciente impede a formação suas implicações metapsicológicas, ele tam-
do psiquismo, em Ataques à ligação (1959) Bion bém enfocou o trabalho clínico, em especial,
inclui o ódio dirigido a tudo aquilo que promo- a importância de o analista atentar para as
ve vínculo intrapsíquico e intersubjetivo, como diferentes qualidades que os fenômenos pri-
a linguagem, a curiosidade, as emoções, a ca- mitivos poderiam assumir durante a sessão.
pacidade de entendimento, o seio, o pênis, a Notamos, assim, nesses últimos arti-
criatividade do casal parental e, por extensão, gos da década de 1950, a exposição de uma
da dupla analítica. Porém, Bion chama a nossa característica nova do conceito de identifica-
atenção para a importância e a necessidade ção projetiva, associada à descrição de uma
de o psicótico habitar plenamente a posição percepção nova que surge no analista no
esquizoparanoide e nela encontrar uma forma decorrer da situação analítica. Sobre arrogân-
de transmitir e de elucidar as suas ansiedades. cia (1958b) é o artigo que melhor ilustra essa
Reproduzimos a seguir uma passagem que ex- mudança subjetiva no analista, conforme a
plicita bastante bem essa problemática. afirmação de Green (1975) mencionada na in-
trodução de nosso texto. Dado o enfoque de
Esta impressão decorre em parte de Bion, tomamos essa afirmação também como
uma característica da análise de um expressão de mudanças que ocorrem na sin-
paciente que foi difícil de interpre- gularidade de um processo analítico. Apesar
tar pois não parecia, em momento de representar um avanço técnico, a aten-
algum, chamativa o bastante para ção do analista à qualidade assumida pelos
que a interpretação se apoiasse
em evidência convincente. Por 5
Idem, 1959, p. 119-120.

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estados primitivos de mente não é uma con- a sua superioridade e, principalmente, atacar
dição a priori de observação. Na década de um modo singular de comunicação.
1960, Bion indica que será necessário explorar Aos poucos, Bion notou uma ligação en-
as condições emocionais e as funções de per- tre arrogância, curiosidade e estupidez, surgi-
sonalidade envolvidas nos impedimentos e fa- das nas sessões de maneira esparsa e isolada,
vorecimentos da observação em psicanálise. e que ora seriam identificadas com o paciente,
ora com o analista. O trabalho de recolhimen-
Sobre atitude analítica, to e reunião em um todo significativo dessas
arrogância e tratamento informações esparsas é um dos pontos mais
A união entre a percepção da natureza interessantes e inovadores do artigo. A ideia
da relação analítica e a atitude do analista rela- de Bion é que elementos edipianos poderiam
cionada a uma ética é talvez o grande tema de ser reconhecidos no processo de investigação
Sobre arrogância (1985b). Este artigo dá uma analítico em si. Isto é, a busca de um sentido
ideia muito clara do momento em que um sen- para o caos, seja por parte do paciente, seja
tido emerge e organiza uma situação caótica por parte do analista, poderia se dar por meio
na qual paciente e analista formavam uma du- do respeito à realidade psíquica e sua verdade,
pla frustrada. O texto ilustra por meios clínicos ou de modo arrogante, impaciente e sem me-
algumas das reflexões mais abstratas de Bion didas, tal qual Édipo quando busca desvendar
sobre a teoria da técnica na década seguinte, o crime a qualquer custo e impõe a sentença
formuladas em torno da relação entre o pen- antes de ter mais informações sobre o crimi-
sador que passa a existir para dar conta de noso. Esses elementos do mito compõem uma
pensamentos até então não pensados. Vamos imagem significativa da natureza do relacio-
agora à narrativa clínica presente no artigo. namento analítico, no qual tanto o paciente
Bion iniciou seu relato de caso no mo- como o analista representaria um objeto pou-
mento em que passam a predominar caracte- co tolerante que rapidamente procura uma
rísticas psicóticas em um paciente neurótico. resposta para se livrar de culpa persecutória,
A ênfase é sobre uma forma especial de objeto ou para evitar qualquer desconhecimento.
interno ou de força – Bion usou os dois termos, Embora Bion estivesse perdido em meio
um teórico e outro mais próximo ao caráter a um caos de significados já esclarecidos, po-
“palpável” do fenômeno –, que passou a im- rém ineficientes do ponto de vista interpretati-
pedir o contato criativo do par e a emergência vo, o paciente diz sentir que o analista era tan-
de insight. Ao longo da narrativa, constatamos to capaz quanto incapaz de suportar “algo”. O
que se trata de um objeto que falha em suas significado desse “algo” foi alcançado quando
capacidades de tolerar a identificação pro- Bion se deu conta de que a identificação pro-
jetiva, e que há uma relação intrínseca entre jetiva, mais que a linguagem verbal, seria uma
essa falha e a qualidade excessiva no emprego forma de relação de objeto apoiada não ape-
da identificação projetiva. Antes de Bion nos nas na destrutividade. Nomeou de normal essa
apresentar essa compreensão, há a descrição forma de identificação projetiva, em contrapo-
de uma situação caótica, em que o pensa- sição ao seu caráter excessivo e patológico.
mento e a comunicação verbal do paciente A identificação projetiva normal estaria
tornaram-se prejudicadas. As interpretações relacionada à constituição do narcisismo de
alcançadas ao longo dos anos de nada serviam vida (GREEN, 1988) desde que o objeto exter-
para dar conta dessa nova circunstância. Bion, no, alvo das projeções e identificações pudes-
percebendo-se desorientado, formou, com o se tolerar, modificar e nomear as ansiedades
paciente, um casal impotente e frustrado. A primitivas despertadas. Essas constatações de
psicanálise e o emprego da comunicação ver- Bion podem ser aproximadas ao trabalho de
bal eram sentidos pelo paciente como uma colegas como Winnicott, que tinha no ambien-
forma do analista se impor sobre ele, mostrar te emocional primitivo um importante foco de

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compreensão acerca do estabelecimento do Breve conclusão
narcisismo primário e de suas perturbações.6 A sequência dos artigos escritos por
Em Ataques à ligação (1959), Bion constrói uma Bion na década de 1950, principalmente seus
imagem da relação primitiva de objeto e indica textos finais, nos leva a ver que o tratamen-
as sua importância para a análise: to psicanalítico implica uma abertura para
o outro no sentido de uma disposição para
Sentia que o paciente experimen- acompanhar e pensar o que o paciente faz de
tara na infância uma mãe que cor- seu próprio psiquismo e de suas ansiedades.
respondia zelosa às demonstrações
Mas ao invés de explorar aquilo que se passa
emocionais do bebê. Esta resposta
no analista no âmbito contratransferencial,
zelosa continha certo laivo de um
impaciente ‘não sei o que há com Bion, na década de 1960, voltará sua atenção
essa criança’. Minha dedução foi de à elucidação dos elementos e das funções de
que a mãe, para entender a criança, personalidade envolvidas com a sustentação
deveria ter tratado o choro do bebê emocional dos estados de mente primitivos
como algo mais do que uma exigên- (BION, 1962a e 1962b).
cia da presença dela. [...]. É possível A atitude do analista no sentido de aco-
observar-se na análise uma situação lher e notar esses estados certamente tem
complexa. O paciente sente estar um efeito sobre a disposição mental e emo-
tendo uma oportunidade que até cional do próprio paciente. Em seus artigos,
então lhe havia sido negada [...].
percebemos que a coexistência de processos
A gratidão por essa oportunidade
doentios e normais no funcionamento mental
coexiste ao lado da hostilidade ao
analista como alguém que não en- primitivo e nas relações de objeto exige do
tenderá e impedirá o uso, por parte analista uma abertura para a observação de
do paciente, do único método de fenômenos que não se reduzem a definições
comunicação mediante o qual ele se psicopatológicas estanques. Porém, não bas-
sente capaz de se fazer entendido.7 ta o analista saber que a cisão, a alucinação, o
delírio e a identificação projetiva poderiam se
Diante de um objeto que é capaz de direcionar para a busca de conhecimento so-
acompanhar o tipo de emprego da identifica- bre a vida emocional. Uma vez que é a partir
ção projetiva de modo a poder contê-la em si da qualidade da relação com o paciente que
e discriminar a sua natureza por meio da lin- o analista poderá determinar a natureza dos
guagem verbal, o paciente terá a chance de fenômenos, tornar-se-á importante discutir
conhecer as suas sensações e seus sentimen- as condições de observação em psicanálise, a
tos, como amor, medo, ódio, inveja, e come- relação entre teoria e prática, e a natureza do
çar a forjar para si uma vida subjetiva até en- objeto psicanalítico (BION, 1962b, 1963).
tão renegada. O analista torna-se, assim, um Em Sobre arrogância (1958b), o leitor en-
pensador que passa a existir como uma espé- contra uma descrição muito viva dessa proble-
cie de órgão transformador de pensamentos mática quando Bion faz a aproximação entre
primitivos e ansiedades insuportáveis, com o a identificação projetiva como comunicação
qual o paciente poderá se identificar. e a conquista dessa percepção pelo analista
em uma sessão. Vemos, assim, a constitui-
6
A diferença na abordagem teórica e técnica entre ção de um método de trabalho que pode ser
os autores não nos impede de observar um diálogo mais bem explicitado como uma ética, e que
intertextual entre eles. Imaginamos se parte das
ideias apresentadas por Bion não poderia ser uma
pressupõe do analista uma disposição para
resposta sua às colocações feitas por Winnicott nas conter estados de não saber, uma abertura ao
cartas dirigidas ao autor em meados das décadas de desconhecido de cada situação, e a capacidade
1950 e 60 (cf. WINNICOTT, 1990). de transformar em matéria simbólica aspectos
7
Idem, 1959, p. 120-121.
dolorosos e insuportáveis da personalidade.

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WINNICOTT, D. W. O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

Dados da autora:
Adriana salvitti
Psicanalista. Psicóloga, Pós-doutoranda
pelo Instituto de Psicologia da USP.

Recebido: 21-09-2011
Aprovado: 20-03-2012

Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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