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Stefano Bolognini

“Traume sind shaume”: Os so-


nhos são espuma.
Assim Freud, no texto O In-
consciente (1915), referia-se à opi-
nião normalmente difundida sobre a
vacuidade de sentido atribuída aos
acontecimentos oníricos.
A vivência popular, por sua
vez, em relação ao sonho, oscila
freqüentemente entre a idealização
e a desvalorização completa: os so-
nhos ou não significam nada ou
contêm grandes verdades, quando
não espantosas premonições.
Stefano Bolognini Se, de um lado, Freud (que,
pela sua índole, não era absoluta-
mente propenso ao mágico) havia
clamorosamente desmentido a idéia
da falta de significado, de outro cer-
tamente perdera de vista o perigo oposto, isto é, o de uma idealização do
sonho como produto psíquico de alta qualidade funcional, e tinha expresso
uma posição equilibrada entre esses extremos, segundo a sua bem conheci-
da forma de proceder entre duas polaridades.
Em Comentários sobre a Teoria e Prática da Interpretação de Sonhos
(1923), por exemplo, ele sinalizava aos analistas o perigo de idealizar “um
inconsciente misterioso”, ao ponto de afirmar: “Esquecemos muito
freqüentemente que um sonho é um pensamento como qualquer outro”
(p.424).
Em relação ao trabalho onírico, já em 1901 (Sobre os Sonhos), havia
se expressado de forma desencantada, quase redutiva:

não é criativo, não desenvolve nenhuma fantasia que lhe seja peculiar,
não conclui, não faz outra coisa senão condensar, deslocar, dar novo
formato visual ao material. Para dizer a verdade, encontramos no con-
teúdo onírico muitos elementos que gostaríamos de considerar como
resultado de uma outra e mais elevada atividade intelectual: mas a aná-
lise demonstra toda vez, de forma convincente, que essas operações
intelectuais já aconteceram nos pensamentos oníricos e foram simples-
mente assumidas pelo conteúdo onírico. (p.33)

Ao ler essa passagem, chamou-me atenção o fato de que, logo em


seguida (p.34), Freud cita, quase associativamente, os cálculos matemáti-
cos como exemplo possível da “outra e mais elevada atividade intelec-
tual”, caracterizada evidentemente por abstração e conceitualização, que
nós hoje, certamente, não entendemos mais como a única significativa e
nobre, dentre as possíveis atividades integradas de nível elevado (veja, por
exemplo, a atual valorização do conceito, nem um pouco banal, de inteli-
gência emocional e o de sintonização harmônica Eu–self, e das explora-
ções sobre o pensamento criativo, em geral, e sobre a criatividade artística
em particular).
O trabalho do sonho consiste no processo de transformação do con-
teúdo latente em conteúdo manifesto através dos quatro mecanismos
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fundamentais de condensação (Verdichtung), de deslocamento
(Verschiebung), de cuidado pela figurabilidade (Ruecksicht fur
Darstellbarkeit) e de elaboração secundária (Sekundaere Bearbeitung).
Em relação a essa última componente, a elaboração secundária estará
mais presente nos “sonhos diurnos”, freqüentemente inconscientes
(FREUD, 1900), e menos nos sonhos propriamente ditos.
Em Trabalho do Sonho, Trabalho com o Sonho (2000), eu havia cita-
do as contribuições de alguns autores que, de diferentes formas, nas déca-
das sucessivas, haviam atribuído funções mais complexas ao trabalho do
sonho, como se tivessem notado uma espécie de relativa redução concei-
tual na rigorosa delimitação estabelecida por Freud.
Com contribuições nem sempre convincentes, mas interessantes ao
menos pela tendência de conjunto que aos poucos foram compondo, eles
sugeriram a idéia de um trabalho mais complexo que aquele dedicado ao
mascaramento de conteúdos profundos: ao ponto de que talvez fosse mais
correto, de um ângulo filológico, conservar historicamente o sentido freu-
diano do conceito de trabalho do sonho e propor o de elaboração onírica
para as ulteriores atribuições funcionais sugeridas por diversos autores.
Resumo brevemente, selecionando os autores e declaradamente não
entrando no mérito especifico de seus trabalhos: Adler (1911) tinha falado
de “função de premeditação” do sonho; Maeder (1912), de uma “function
ludique” onírica como exercício preparatório para sucessivas operações na
realidade externa; Grimberg et al. (1967), descrevendo os sonhos “de ela-
boração” das fases de integração, mostraram a crescente capacidade repa-
radora do paciente, que começa a saber tomar conta de si mesmo; a linha
teórica que parte de Winnicott e chega a Bollas, que valorizou a dimensão
experiencial do sonho; De Moncheaux (1978) fez a hipótese de uma fun-
ção reintegradora do sonho em relação ao trauma; Matte Blanco (1981)
reexaminou um possível aspecto do deslocamento, no sonho, como uma
abertura, às vezes criativa, em direção a novos lugares, tempos e represen-
tações possíveis, e a condensação como uma tentativa de integração de
categorias espaço-temporais diversas.
Ainda: Kramer (1993) ocupou-se dos efeitos da atividade onírica so-
bre a função de regulação do humor, e Greenberg e Perlman (1993) do
aumento do sono REM em situações de aprendizado complexo; Fosshage
(1997) valorizou a função sintética geral do processo primário que, através
de imagens sensoriais e visuais de alta intensidade, enfatiza a coloração
afetiva da vivência.
No ápice dessas contribuições coloca-se, em uma direção geral em
alguns aspectos consoante, a grande contribuição de Bion (1962, 1971)
sobre a função metabólica do sonho, depois retomada e desenvolvida de
maneira original especialmente por Ferro (1998, 2002) e por Ogden (2003).
Sempre, naquele trabalho, eu havia desenvolvido essa perspectiva de
uma área onírica potencialmente e ocasionalmente criativa [com todas as
cautelas e os limites propostos por Freud, para não cair na já mencionada
idealização do sonho...], baseada nas possibilidades de representação, de
decomposição e de re-combinação dos elementos em jogo no mundo inter-
no do sujeito, graças ao efeito solvente e re-conjugador do processo pri-
mário e à reorganização permitida pelo processo secundário, que se alter-
nam em diferentes medidas.
Nessa perspectiva, é possível conceber vértices não só defensivos no
trabalho do sonho, ao ponto de podermos falar de um processo de elabora-
ção onírica das vivências e provavelmente – às vezes – dos pensamentos.
Eis um primeiro e pequeno exemplo clínico que pode ser considerado
nessa perspectiva.
Uma paciente, já num estágio bastante avançado de sua análise, às
voltas com uma vivência depressiva ocasional (depois bem superada) por
ocasião da saída de casa do filho, de vinte e cinco anos e economicamente
independente, fala na sessão de estar se sentindo para baixo. Logo depois
lembra de um sonho da noite anterior: “Colocava uma ‘rede de arame’ nas
flores do vaso da sala para ‘mantê-las em pé’; depois desmontava e remon-
tava as pétalas, trocando-as, ‘para encontrar a combinação certa’.”
O sonho colocava em cena, com clareza, a necessidade da paciente de
receber um suporte, mas também seu nascente projeto de elaboração inter-
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na: como nas flores do vaso e na sua família em dolorosa mudança, seriam
necessárias operações de re-colocação e de re-combinação dos elementos
em jogo também dentro de si mesma, para encontrar uma nova organização
de vida.
A busca sobre a figurabilité (BOTELLA; BOTELLA, 2001), que na
última década caracterizou certa parte da pesquisa psicanalítica francesa,
valorizou ainda mais a função de representação mental como um aconteci-
mento progressivo em si: no sentido de que o fato de o paciente ter condi-
ções, depois de um certo trabalho, de desenvolver essa função aparece, por
si só, como um fato dinamicamente positivo no âmbito do processo analí-
tico.
O paciente consegue dar representação a vivências e conteúdos que
não obviamente, a priori, ele possa representá-los, e que aliás necessitam
de importante trabalho analítico para chegar a esse resultado.
Já vimos, no passado, a recuperação teórica-técnica de outras aparen-
tes sobras analíticas negativas, como, por exemplo, a valorização dos as-
pectos positivos implícitos na negação (que é, de qualquer forma, mesmo
com o não à frente, uma representação que faz existir mentalmente uma
coisa, ainda que seja para negá-la no momento) (FREUD, 1925).
Green (1993, 1998) estudou esse vértice especifico do funcionamento
mental. Da mesma forma, hoje, nós podemos pensar que a representabili-
dade de algo é um acontecimento não banal, que justamente faz existir na
mente do sujeito a coisa representada aguardando ulteriores possíveis
transformações de elaboração.
Nesse sentido, eis dois sonhos bastante simples de dois pacientes dife-
rentes – sonhos ligados de forma evidente às suas implicações transferen-
ciais.
Uma paciente, ao mesmo tempo substancialmente desiludida na sua
necessidade infantil de ser compreendida, depois de um mês de análise,
sonha: “Meu pai, completamente vestido, enfia o meu casacão azul; fica
apertado, não consegue abotoá-lo”.
O casacão azul é o que veste quando vem à sessão. A paciente teme
que também o analista, hoje, como na época seus pais, não saiba ou não
possa colocar-se no lugar dela1.
Podemos considerar essa produção onírica segundo duas óticas dinâ-
micas diferentes, que eu chamaria, muito simplesmente, de a ótica do copo
meio vazio e a do copo meio cheio: de certo ponto de vista, a paciente ainda
não está em condições de pensar e de comunicar diretamente o seu medo,
então o trabalho onírico esconde o cenário subjacente para contrabandeá-lo
para aquém da censura; de um outro ponto de vista, a relação entre paciente
e analista está começando a se tornar representável, ainda que de forma
deslocada, e com o recurso de uma curiosa solução mista, que implica tan-
to a imagem quanto o jogo de palavras.
Ambos são verdadeiros: se por um lado a paciente se defende, por
outro progride.
O que muda, dependendo dos dois diferentes pontos de vista, é a
vivência subjetiva do analista ao trabalho: apreciando os progressos do
paciente, trabalhará com maior sensação de utilidade e, no fundo, com
maior satisfação.
Uma outra paciente soube que estarei ausente por causa de um con-
gresso: “No sonho havia minha mãe na cama, sozinha, com rolos na cabe-
ça. Eu senti uma grande raiva.”
Digo que provavelmente sente raiva porque sua mãe, na época, e eu,
hoje, temos outras coisas na cabeça, a cabeça cheia de outras coisas (a
mãe da paciente dedicou-se intensamente e por longo tempo à irmãzinha
doente).
Das associações emerge, depois, que está brava comigo porque pensa,
sim, que eu tenha outras coisas na cabeça, mas não de maneira inespecífica:
tenho na cabeça coisas, justamente, com as quais me embelezar!
Os rolos, diz abertamente a paciente, são os seminários, os congres-
sos, etc., que alimentam também o narcisismo do analista, ironicamente

1. Em italiano, a expressão colocar-se no lugar de alguém é colocar-se nas roupas de alguém.


(Nota do Tradutor = NT)
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representado como parecido com a célebre mãe desnaturada da canção
Brinquedos e Perfumes.
Aqui também, como no exemplo clínico anterior, podemos adotar
duas perspectivas diferentes e ver o copo como meio vazio ou como meio
cheio: é mais relevante a função de mascaramento a que chamamos de
“trabalho onírico”, ou a de representação e de pré-pensamento, que pede
para ser pensada e depois, na troca que ocorre na sessão, referida mais
diretamente ao destinatário atual, equivalente do objetal profundo?
Portanto, se observarmos esses dois breves sonhos do ponto de vista
do trabalho onírico entendido no sentido histórico freudiano, vemos ope-
rando especialmente mecanismos bem conhecidos de mascaramento do
significado profundo (através das quatro operações fundamentais descritas
no início).
Essa ótica nos fornecerá, principalmente, indicações preciosas sobre a
impostação intrapsíquica e sobre o funcionamento do ego defensivo do
paciente.
Se, ao contrário, captamos o gradiente progressivo de representação e
de comunicação intra-analítica, temos condições de apreciar o progresso
funcional positivo do paciente, especialmente na relação com o self e com
o objeto-analista: o paciente está conseguindo representar mentalmente
vivências e conteúdos difíceis de pensar porque são desagradáveis e dolo-
rosos, e difíceis também de comunicar porque são desagradáveis também
para o interlocutor; portanto potencialmente suscitadores de desenvolvi-
mentos relacionais negativos temíveis (se não forem contidos e elaborados
por uma dupla analítica suficientemente boa).
Todo esse avanço funcional não é nada óbvio, e a capacidade de apre-
ciar esses acontecimentos mentais e relacionais dá ao terapeuta uma pers-
pectiva dinâmica diferente, aumentando sua percepção fina, sua confiança
e satisfação pelo evoluir do processo analítico.
O vértice experiencial do sonho, também importante – como o da
representabilidade – aos fins dessas considerações teórico-clínicas, foi con-
siderado e valorizado por diversos autores de diferentes tradições, por
exemplo, Winnicott (1971), Atwood e Stolorow (1984), Bollas (1987),
Fosshage (1997) e Ogden (2003).
Esse vértice permite operações de reconhecimento de potencialidades
do self que até aquele momento não haviam sido contatadas e experimenta-
das e cria uma condição psíquica especial que permite aos seres humanos,
também a posteriori, sentir as representações do sonho como “ ‘verdadei-
ras’, mesmo que não ‘reais’” (BOLOGNINI, 2000).
Tal sensação de “veracidade” experiencial do sonho é transmitida,
freqüentemente, também ao analista, a quem é narrado o sonho, e o coloca
em condições, por sua vez, de compartilhar ao vivo a experiência do pa-
ciente; essa condição de “sonho conjugado”, ou rêverie, permite “sonhar
sonhos não sonhados e pesadelos interrompidos” (OGDEN, 2003).

A partir das premissas até agora expostas, apresentarei material relati-


vo a dois casos clínicos nos quais reencontrei, em algumas ocasiões, vestí-
gios significativos de uma atividade de elaboração parcial já presente em
nível onírico.
Desejo reafirmar com clareza que o objetivo deste meu artigo não é o
de identificar e descobrir novos fatos ou conceitos psicanalíticos, mas de
evidenciar e valorizar fatos e conceitos já conhecidos, de qualquer forma
propondo-os segundo uma perspectiva diferente, isto é, colocando em des-
taque os aspectos elaborativos nascentes mais do os de trabalho defensivo,
ainda que esses estejam presentes. Uma perspectiva que pode permitir ao
analista captar de maneira fina o progresso de seu trabalho na sessão, mes-
mo quando, aparentemente, o paciente pareça somente resistir, mascarar e
confundir o terapeuta e a si mesmo.

Primeiro Caso – Enrico


Enrico era um jovem de 19 anos muito duro e hostil quando iniciou
uma análise de três sessões, que, após dois anos, se tornaram quatro; a
análise durou ao todo seis anos, durante os quais uma fundamental descon-
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fiança paranóide na relação de objeto foi ao encontro de profundas e sig-
nificativas transformações.
Os dois sonhos que vou relatar são relativos respectivamente ao perío-
do imediatamente anterior à passagem para quatro sessões, e ao período
final da análise.
Fim do segundo ano de análise: somente há algum tempo começou a
relatar sonhos na sessão, e nas últimas semanas, está trazendo muitos, cada
vez mais coloridos.
Enrico é um grande cinéfilo e freqüentemente faz lapsos durante a
narração dizendo filme em vez de sonho e vice-versa.
A minha fantasia de que se ele sonhar mais terá menos necessidade de
ver tantos filmes é sem dúvida teoricamente discutível e, além disso, pouco
realística, mas se liga à impressão de que, se ele confiar mais em mim, em
si mesmo e na análise, acabará por produzir com maior facilidade filmes/
sonhos seus, originais, artesanais, pessoais.
Sonha, então, que “ele empresta videocassetes a si mesmo e os anota
em um caderno, como faz na realidade quando empresta aos amigos”.
Digo-lhe que começou a me “emprestar” (= trazer à sessão) seus
“videocassetes”/ sonhos, mas que sente ainda a necessidade de “anotá-los
em um caderno”, isto é, de controlar um pouco essa oferta onírica: pode
confiar? Vou estragá-los? Vou devolvê-los corretamente?
Ao lhe dizer essas coisas, não coloco o acento concretamente sobre
começou a, mas dentro de mim reservo um pensamento especial em rela-
ção a esse especifico elemento evolutivo.
O progresso de Enrico nessa pequena passagem pode dificilmente ser
limitado, de forma unívoca, ao registro do intrapsíquico e ao do
interpsíquico, que na realidade estão presentes ao mesmo tempo de forma
complexa, e que, em qualquer abordagem, resultam alternadamente predo-
minantes um sobre o outro, dependendo do momento, mas sempre interli-
gados (GREEN, 2000; BOLOGNINI, 2004).
Se, num plano interpessoal, ele me traz seus sonhos, é, porém, tam-
bém verdade que, no plano intrapsíquico, o seu Eu defensivo está afrou-
xando a censura e lhe permite ver seus filmes/sonhos, contanto que isso se
dê em um regime bastante vigiado de trocas comigo, de um lado, e entre
setores diferentes da sua mente, de outro.
Nas associações sucessivas, ao longo da mesma sessão, aparece pela
primeira vez a idéia da possível passagem para quatro sessões. Nos dois
meses seguintes, esse projeto aos poucos ganha corpo e, no fim, se realiza.
Três anos depois: Enrico está muito melhor, muitas coisas mudaram
em sua vida, e algumas vezes apareceu em minha mente a fantasia de que,
mais cedo ou mais tarde, começará a pensar em terminar nosso trabalho.
Traz um sonho que o surpreendeu muito:

Sonha com trair simultaneamente a sua namorada e o seu melhor ami-


go, tendo um encontro secreto com uma jovem japonesa que, no so-
nho, parecia ser a companheira oficial do amigo. Fica chocado, ao fa-
zer amor com ela; com a sua voz, emite gemidos deliciosos,
sensualíssimos.

Após algumas pausas e uma desorientação inicial, associa o fato de


haver finalmente realizado um sonho de sua vida: contra a opinião dos pais
e da namorada, comprou escondido uma moto, uma Honda; ficou entusias-
mado quando o vendedor lhe fez ouvir o barulho do motor: uma maravilha!
Rimos os dois, e, nas trocas sucessivas, nasce uma brincadeira humo-
rística: no sonho, quem representa quem? Visto que ele é da região da
Romanha (e os indivíduos daquela região são conhecidos pela sua paixão
automobilística), conterrâneo de Valentino Rossi, que é seu ídolo e que
corre em motos japonesas... A moto representa a mulher ou a mulher repre-
senta a moto? Qual é o verdadeiro, grande, poderoso objeto de desejo?
Na realidade, o resto da sessão toma um rumo inesperado e decidida-
mente menos goliardesco2.
Para Enrico, desde sempre, a moto é símbolo de liberdade.

2. Goliardesco: conforme Dicionário Houaiss, aquele que graceja grosseiramente, devasso. (NT)
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É uma liberdade diferente daquela adquirida com carro, é uma liber-
dade mais individual, mais jocosa, mais ligada ao prazer de ir por aí, e não
ao compromisso de ter de ir em um determinado lugar para desenvolver
uma tarefa preestabelecida.
Não faço esforço para me sintonizar com essas sensações; é suficiente
lembrar da minha adolescência para reencontrar o gosto daquela indepen-
dência e daquela liberdade sem tempo, sem obrigações, sem compromis-
sos por demais finalizados e precisos.
Penso que, com o avançar da análise, Enrico progressivamente apren-
deu a vagar bastante livremente pelos próprios pensamentos, percorrendo
o equivalente a ruas urbanas, tangenciais, picadas de montanha, etc., e com
um crescente sentimento de reapropriação de sua liberdade e capacidade
mental; penso também que, aos poucos, a sexualidade foi por ele explorada
e conquistada como uma experiência pessoal, na qual agora se move a seu
modo, com satisfação, guiando com um estilo original.
Mas o que é aquela traição representada no sonho? Por que trai a
namorada e o melhor amigo? Quais configurações, quais fantasias, quais
movimentos internos estão expressos utilizando as correntes profundas e
em quais formas externas do Édipo, pela qual a parte melhor amigo do pai/
rival, ainda que amado conflitualmente, ou a parte namorada regular da
mãe, são traídas, em sintonia com a compra secreta da moto japonesa?
Percebo-o quase no fim da sessão, quando o pensamento de poder
terminar a análise dentro de um tempo não distante surgirá, inesperada-
mente e com certo embaraço, entre os pensamentos dedicados ao crescer,
ao saber guiar e ao partir.
Mais cedo ou mais tarde, Enrico irá embora, irá para além de mim/pai/
melhor amigo e para além da análise/mãe/namorada regular: começa a sen-
tir que tem os meios, o desejo e também um pouco a culpa.
Num certo sentido, a Honda fui eu quem a vendeu para ele, pedaço
por pedaço, a construímos juntos na oficina analítica ao longo desses anos,
mas a culpa existe igualmente: a culpa de crescer e de fazer envelhecer os
pais, indo embora e deixando-os atrás de si, fazendo parte do passado.
O sonho de Enrico pode certamente ser vivido nos seus aspectos de
mascaramento do conteúdo profundo, com o objetivo de permitir a possi-
bilidade de ele ser sonhado e lembrado para além das garras da censura
onírica.
Mas eu fico impressionado pela riqueza comunicativa do sonho, que
não coloca em cena somente o conceito subentendido (= ir embora, tendo
conquistado os meios), mas transmite a experiência emocional e sensorial
do desejo, e representa a vivência da traição conectada tanto à separação do
objeto de base materna quanto à conquista edípica em prejuízo do pai rival,
com uma direção e um prenúncio de posteriores passagens de elaboração.
Para voltar ao sonho e aos seus desdobramentos intra e interpsíquicos,
como um típico pai italiano, um pouco apreensivo, devo ter pensado que os
níveis excitadores implícitos em uma moto de corrida como a Honda, com
tantos cavalos vividos talvez como indispensáveis para ir além dos objetos
parentais e para vencer sua corrida pessoal, necessitavam ainda de uma
certa tranqüilização.
Era necessário ainda um pouco mais de análise, para fazer as malas
com calma, para transformar Enrico – Valentino Rossi em um mais relaxa-
do Enrico – si mesmo [possivelmente dotado de uma tranqüilizadora Ves-
pa] e para podermos nos separar em uma atmosfera menos intensa e baru-
lhenta, mas também menos excitante.
O que depois aconteceu de forma bastante natural, sem heroísmos e
sem incidentes particulares, em aproximadamente um ano.

Segundo Caso – Giovanna


Giovanna é uma mulher de 39 anos, de aspecto agradável, caracteriza-
da por uma elegância mista, com traços de um autêntico cuidado feminino
(inclusive com um sapiente uso de acessórios e enfeites) mesclado ao uso
freqüente de elementos masculinos (penteado curto e energizante, sempre
de calça comprida, atitude rápida e prática, relógio de homem).
O conjunto da pessoa é, de qualquer forma, harmônico.
Tem problemas de equilíbrio que foram objeto de investigações clíni-
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cas muito refinadas, com testes vestibulares de todos os tipos, Tomografia
axial computadorizada – Tac e repetidas ressonâncias magnéticas, etc.
Tem um casamento bastante feliz com um homem rude e seco, mas
amoroso, por quem se sente amada e que, por sua vez, aprecia, muito espe-
cialmente pela sua autenticidade e franqueza; ela é bastante reticente se-
xualmente, nunca pensa em fazer amor e, quando ele – como
freqüentemente acontece – se aproxima para uma relação, num primeiro
momento ela se opõe drasticamente, não sentindo desejo; depois, porém,
superado o bloqueio inicial, participa com muito prazer.
Tem dois filhos no ensino fundamental, que ama, mas com os quais é
extremamente apreensiva, com excesso de ligação fusional (permanência
noturna na cama de casal, etc.).
A mãe, dona de casa afetiva e base segura, morreu quando Giovanna
tinha 18 anos, repentinamente, enquanto a filha estava de férias.
O luto parece não ter sido adequadamente elaborado; a paciente lem-
bra de não ter chorado, mas de ter ficado em um estado de distanciamento
e de relativa frieza, superado naquele momento através do cuidar de coisas
práticas, e de ter novamente partido para a praia dois dias depois, quase
como se nada tivesse acontecido.
Oito anos depois, a paciente procura a análise – com uma analista
mulher – para os primeiros distúrbios de equilíbrio, sempre após extenuan-
tes investigações clínicas sem resultado.
O tratamento durou quatro anos e a situação melhorou bastante, ainda
que não completamente.
Dessa experiência, Giovanna conserva uma lembrança parcialmente
positiva: a doutora era profissionalmente correta, mas, segundo ela, fria e
pouco criativa.
Dois anos atrás, em concomitância a uma grave doença do pai, a pa-
ciente me procura e começa um tratamento com três sessões, apresentando
a sintomatologia habitual ligada aos problemas de equilíbrio, com um
acréscimo hipocondríaco notável, convencida de ter um mal incurável.
Nas primeiras semanas de hospitalização, Giovanna não vai ao hospi-
tal para ver o pai, considerando que deve se proteger de emoções muito
fortes que não teria condições de suportar. O marido e a irmã mais velha da
paciente, ainda que com raiva mal disfarçada, acabam por dar o aval a essa
sua posição de auto-isenção e a substituem em todas as ocasiões
perturbadoras. Na realidade, depois de poucos meses de análise e de pro-
gressivo reconhecimento do significado dessas hesitações defensivas,
Giovanna consegue visitar o pai no hospital e suportar o medo das próprias
reações ao vê-lo naquelas condições.
Após cinco meses, o pai morre.
Giovanna enfrenta esse segundo luto de forma um pouco mais inte-
grada do que aquele relativo à morte da mãe, mas sua tendência é fechar
muito rapidamente a experiência da dor.

Duas Irmãs
Após a morte do pai, inicia-se uma disputa legal entre as duas irmãs
pela herança: o pai, que preferia Giovanna, essencialmente pelo caráter
mais afetivo dela em relação à outra filha, mal-humorada e contestadora,
deu-lhe mais também, de um ponto de vista material, com o que a irmã não
concordou.
Traz um sonho: “Vejo no espelho que tenho duas pupilas aumentadas,
mas uma é muito maior do que a outra. Meu Deus! Então tenho algo de
errado na cabeça!... é a confirmação... sensação de ter uma doença incurá-
vel. Será possível que essa coisa não vá embora?... não é normal!”
Associa que, ao falar de outras pessoas, gostaria de vê-las, dar-lhes
um rosto.
Não entendo e pergunto a que se está referindo, e acrescento, para
fluidificar: “... por exemplo...?”
Paciente (P) – Depois da morte da minha mãe, fiz uma entrevista com
uma psicóloga que me pediu para ver as fotos da minha família. Assim,
hoje trouxe comigo as fotos da minha mãe, do meu pai, dos meus filhos:
pode servir ou é inútil?
Analista (A) – Creio que você pensou no que eu disse duas sessões
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atrás, quando lhe propus de me ajudar a imaginar sua mãe, pois você nunca
fala dela. Hoje parece que você quer me ajudar a imaginar esses seus fami-
liares, trazendo-me suas imagens.
P – É, assim você compreende. Eu lhe disse somente, para descrevê-
la: é uma mãe. [Tira a foto da bolsa, levanta-a para mostrá-la a mim, olho-
a: é verdade, é uma mãe. Depois mostra da mesma forma o marido e os
filhos, e o pai com os netos.]
A – [Em tom de constatação] É verdade, é uma mãe.
P – [Refletindo] Não peguei as fotos da minha irmã. Nem pensei nis-
so. Não a considero.
A – No sonho, as duas pupilas estão alargadas, isto é, num certo senti-
do colocadas em evidência, mas uma é muito maior do que a outra. Você
foi a pupila do papai, que via mais você do que ela e que lhe deixou uma
herança maior. Pupila deriva de pupa3 que é boneca, menina. A bonequi-
nha/menina preferida do papai. Quanto à sua irmã, hoje você não vai
mostrá-la mesmo....
[Pausa; silêncio de mais ou menos dois minutos.]
P – [Chocada] No filme Joe Black, o protagonista fala separadamente
com as duas filhas antes de morrer. Uma coisa de dar arrepios. A maior tem
um afeto secreto pelo pai, mas sempre se sentiu a número dois. Com a
menor, que é a luz dos seus olhos, há um diálogo quase amoroso.
A – Isso a tocou?
P – Sim. Há uma afinidade. Ali, no filme, é um diálogo de verdade...
também exprime... Eu sempre recebi, nunca... [sensação de um discurso
desconexo, que tem dificuldade em recompor] porque eu não sentia de ...
[faz com os braços o gesto de dar ou de ir ao encontro de]: diferentemente
da filha menor do filme, que se acocorava ao lado, eu absolutamente não...
Aliás, lembro do profundo constrangimento no divã de dois lugares na sala,
eu e ele, um ao lado do outro, sozinhos. O medo de receber elogios, como
freqüentemente acontecia (ainda que, na realidade, muito comedidos),

3. Pupila vem do latim pupilla, diminutivo de pupa, que significa menina. (NT)
constrangimento; dizia: A minha menina!.
A – [Explorador] Só constrangimento ou também prazer?
P – Eu diria mesmo constrangimento, se responder de imediato. Ha-
via uma relação parecida entre ele e a minha filha. Pensei que teria preferi-
do o menino, que não tinha tido: para ir pescar, etc. Ele era muito ligado ao
menino, mas era louco pela minha filha, talvez uma eu pequena, é uma
menina muito doce.
A – [Divertido] Uma outra pupila...
P – [Ri] É.

Papai e Mamãe
Numa sessão um mês depois, Giovanna relata um outro sonho:

A rua da sua casa está visivelmente fechada ao fundo, não dá para


passar. Você está do lado de fora de seu carro, parado na rua com a
porta do carro aberta, com seu pai sentado no interior no banco de
passageiro; você está falando com uma neuropsiquiatra infantil que
conhece, e enquanto fala percebe que do capô do carro começam a sair
cerejas, bonitas e vermelhas.

Diz que gosta muito de cerejas; as do sonho eram mesmo apetitosas.


Ao longo da sessão emergem – com muito esforço – outras ligações e
fragmentos de lembranças relativas ao amor do pai por ela e dela pelo pai,
quando criança e mocinha; até um bloqueio sucessivo desse canal relacio-
nal, quando havia percebido que ele era mesmo como que apaixonado por
ela, e isso a tinha perturbado e embaraçado, como havíamos visto na sessão
trazida precedentemente.
Desde então, tinha ficado longe dele e desses pensamentos.
Também na análise a paciente deixou emergir, aqui e ali, tímidos si-
nais de uma transferência amorosa (BOLOGNINI, 1994) apenas perceptí-
veis, logo recolhidos.
Digo-lhe que as “cerejas bonitas e vermelhas”, que inesperadamente
começam a sair do capô do carro [isto é, do motor transferencial da nossa
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relação e da cura], parecem simbolizar, com cor e sabor, o surgir inespera-
do de algo de doce e desejável, aqui e agora, como então, com seu pai. A
minha vivência contratransferencial é espontaneamente afetiva: sinto
reviver com facilidade a contratransferência bastante complementar, perti-
nente ao objeto paterno, sem dificuldades particulares e sem componentes
excitantes perturbadores; a paciente é simpática, inspira uma certa ternura,
e é natural reconhecermos um amadurecimento genital que efetivamente se
manifesta com o marido, mesmo com reticências e na maneira conflituosa
que havia descrito tempos atrás.
No sonho, o analista está representado, naquilo que se refere às suas
funções escuta, pela neuropsiquiatra infantil, figura feminina reassegura-
dora (que eu conheço), capaz de dar espaço a aspectos infantis de Giovan-
na.
As associações sucessivas, que não transcrevo por brevidade, levam a
paciente a momentos de contato e de emoção, pensando no pai e na mãe, e
a sessão termina com uma calorosa sensação de reencontro de objetos e
afetos.

Mais em Profundidade
Porém, na sessão do dia seguinte, Giovanna aparece surpreendente e
duramente regredida à fixação hipocondríaca.
Foi até o Pronto Socorro por causa das vertigens e não acredita na
ausência de patologia orgânica.
Sinto uma sensação de nítido deslocamento em relação ao clima emo-
cional e relacional do dia anterior, com a estranha sensação de me encon-
trar em uma espécie de realidade outra que é incongruente e descontínua
em relação ao previsto, como se tivessem acontecido coisas importantes a
respeito das quais estou completamente no escuro; sinto também um incô-
modo por algo em seu tom de voz, que é muito distante, e me sinto clara-
mente acusado pela falta de progresso, aliás pela piora de sua condição
subjetiva.
Finalmente, estou perturbado também pelo fato de que parece que ela
quer contrapor um forte sentido de objetividade da sua subjetividade, como
dizendo: “Veja doutor, o senhor remetia minhas vivências a coisas psicoló-
gicas e, ao contrário, quem sabe quantos fatos orgânicos existem por
trás!”... (Isto é: “Bem entendido, tudo aquilo que apareceu ontem na sessão
eram bobagens”.)
Seguem-se de fato longos minutos de lamúria e depois uma acusação
aberta, e, em seguida, o relato de um sonho daquela noite:

Giovanna vê sua cachorra escavar um buraco no gramado que ela gos-


ta muito (a cachorra, na realidade, escavava buracos quando era pe-
quena, e ontem, de fato, escavou um buraco, não se sabe por quê).
Giovanna briga com ela e corre para impedi-la, mas escorrega com o
pé justamente no buraco e cai para trás, indo parar embaixo da cachor-
ra, que faz xixi. Giovanna tenta se proteger com as mãos, mas o liquido
acaba em parte sobre seu rosto; inexplicavelmente, ela não tenta evitar.

Fico muito impactado pela presença do cachorro no sonho.


Os cachorros, esses nossos inigualáveis companheiros de vida, muitas
vezes são engajados pela direção profunda do sonho como representantes
de partes do self e de aspectos instintuais do sujeito.
Aqui há uma atividade (o “escavar”) que a paciente (representante do
Eu no sonho) não quer que aconteça; talvez ontem eu e ela começássemos
a escavar um pouco demais, estragando um “gramado”/cobertura que man-
tém a superfície das coisas em ordem e agradável; além disso, escavando
se ressuscitam coisas e pessoas mortas e sepultadas...
A “queda para trás” do sonho testemunha a regressão em curso na
análise, com a paciente que termina deitada, como aqui no divã.
Chama atenção também o fato de que, mesmo não querendo (= confli-
to), Giovanna permanece ali, embaixo da cachorra, sentindo o contato com
um líquido orgânico quente, visceral, proveniente do interior, que molha
seu rosto.
A natureza urinária do líquido se conecta também com a qualificação
de desprezo, nojento, que marca o contato conflitante com elementos dese-
Stefano Bolognini
jados, sim, mas, ao mesmo tempo, rejeitados pelo superego; na cena des-
crita, está representado o aspecto humilhante de ter de se submeter a essa
contaminação corpórea-emocional; entra em jogo também o problema da
continência, do saber-se conter ou não (do ponto de vista da relação ego/
superego), mas também de saber se exprimir ou não (do ponto de vista da
relação ego/self).
Ontem, falando de seus pais mortos, a paciente estivera visivelmente
prestes a chorar, e a mim haviam se umedecido os olhos, por uma espécie
de consonância visceral; mas ela havia se bloqueado logo, brecando a emo-
ção.
Penso que o sonho reabriu – sempre de forma conflitante – essa situa-
ção, que pede intensamente para ser vivida.
A – [Lentamente, com pausas, para dar espaços aos pensamentos e
para re-visitar, inclusive sensorialmente, o relato da paciente] Aquele lí-
quido quente... que escorre no rosto... você não o evitava, no sonho...
P – [Mais rápida do que eu, ritmo menos reflexivo do que o meu] É
estranho: eu não queria, mas ficava ali. Depois acontecia também uma ou-
tra coisa estranhíssima: eu enfiava o dedo no ânus da cachorra, que tinha a
barriga cheia de ar, e ela se libertava do ar e do inchaço.
Interpreto que há muita raiva que cria tensão dentro dela, que é neces-
sário fazê-la sair de alguma forma e que ela precisa de uma ajuda nesse
sentido; creio que esteja ressentida comigo, pelo nosso escavar, talvez em
certos momentos preferiria colocar uma pedra em cima e deixar o grama-
do intacto.
Diz então que está tentando ajudar a filha da cunhada, que é uma moça
hermética e que está com depressão. Fechou-se desde a morte do pai, e
Giovanna lhe disse: “Vi você humana, você mesma, quando você gritou no
momento em que desceram o caixão no túmulo. Você precisa da ajuda da
análise”.
Digo que está falando daquela moça, mas que está falando também de
si mesma.
P – Creio que você tem razão. Ontem vi um programa sobre a vida de
Santa Rita. Quando morreu a mãe da santa, eu fiquei desesperada. Chorei
muito, demais. [Pausa] Não é equilibrado.
A – Você está na condição da sua cachorra: tem tanto para chorar e
tem necessidade de fazê-lo; mas teme que fazê-lo não seja equilibrado e
teme também, se sente a dor e chora, de perder seu equilíbrio.

Para empatizar com essa paciente, é necessário que o analista se colo-


que no lugar dela – mas sem se identificar – em relação a ambas as partes
representadas no sonho: a cachorrona, representante do self, que propõe o
contato com vivências elementares, poderosas e necessárias; mas também
a Giovanna do sonho, representante conflitante de um Eu que gostaria de
conservar intacto o gramado de cobertura da própria mente.
Há ainda um longo percurso a ser realizado, para recuperar uma sufi-
ciente porção das próprias lembranças e para integrar, em uma medida acei-
tável, as partes esparsas e distantes da própria humanidade.
Isso é verdadeiro hoje para Giovanna, como foi verdadeiro no passado
para Enrico e para as outras duas pacientes que rapidamente mencionei.
Se olho para trás, como se faz nas excursões às montanhas, captando o
desnível entre o conhecimento e a compreensão atual e o de algum tempo
atrás, me dou conta de quanto percurso fizemos juntos, os pacientes e eu,
com quanto esforço e com quantas incertezas, três passos para frente e dois
para trás, no melhor dos casos.
Freqüentemente, os sonhos tentaram nos confundir, desviar, despistar,
mas também nos deram uma grande ajuda, nos auxiliando a compartilhar a
experiência de cores e atmosferas, a chamar novamente à cena, inesperada-
mente, presenças passadas ou distantes ou simplesmente possíveis, aproxi-
mando entre si, como numa espécie de casting criativo, figuras e sentimen-
tos anteriormente impensáveis de serem combinados: pedindo implicita-
mente para a análise, isso sim, prosseguir e completar, junto como analista,
aquilo que o sujeito, sozinho, não teria condições de fazer.
Assim, trabalho onírico e elaboração onírica parecem, por sua vez,
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proceder juntos, diversamente entrelaçados, não sabemos bem o quanto
em conflito e o quanto em paralelo; pareceria em fases alternadas, confor-
me podemos constatar na sessão.
No fundo, temos de reconhecer que uma certa parte do trabalho são os
pacientes que o fazem, por conta própria, de noite e longe de nós, com um
obscuro, já estudado, mas talvez ainda não suficientemente avaliado
working through: re-saboreando, representando, compondo e arranjando,
no sonho, o que dentro deles se move de forma caótica ou conflitante.
É claro que essa atividade intrapsíquica noturna, para o sujeito em
análise, não pode prescindir do fato de contar com a existência de um po-
tencial destinatário, de um equivalente parental complexo, disponível para
tentar as vias interpsíquicas da rêverie, do co-thinking (WIDLOCHER,
2001) e – quando as coisas funcionam – da empatia psicanalítica.
Mas, freqüentemente, ao analista são servidas, num prato de prata,
novidades e oportunidades de compreensão, mais uma vez por nada óbvias
em suas apresentações, em relação às quais, a meu ver, seria adequado e
também conveniente ter uma atitude de apreciação.
Resta, naturalmente, uma ampla margem de desconhecido em relação
aos dispositivos intra e interpsíquicos que regulam esses acontecimentos
durante o tratamento analítico.
Eu, por exemplo, senti sobre meu corpo o casacão azul da primeira
paciente, reconsiderei os rolos apontados pela segunda, mexi dentro da ofi-
cina na Honda junto com Enrico e escavei no jardim com a irrefreável
cachorra de Giovanna, e certamente algo nasceu; mas o quê, quem colocou
à minha disposição toda essa irrealidade tão verdadeira?

O autor retoma os trabalhos teóricos de Freud sobre os sonhos, acrescenta


trabalhos seus e de outros autores, propondo manter a expressão o trabalho do
sonho dado por Freud e resultando a expressão elaboração onírica, entendendo-
a como um tema mais complexo estudado por autores pós-freudianos. Através da
apresentação de seus casos clínicos, mostra que a elaboração onírica e a compre-
ensão dos sonhos são possíveis através da análise das implicações transferenciais.
Trabalho do Sonho. Elaboração Onírica. Transferência.

The Half Full or Half Empty Glass: work of dream and oneiric
workingthroug
The author reexamines Freud’s theoretical works about dreams, adds his
own works and works by other authors, proposing maintaining the work of dream
expression given by Freud and emphasizing the oneiric production expression,
understanding it as a more complex theme studied by post-Freudian authors.
By presenting his clinical cases, he shows that oneiric production and the
comprehension of dreams are possible through the analysis of the transferential
implications.

Work of Dream. Dream’s working through. Transference.

El Vaso Medio Lleno o Medio Vacío: trabajo del sueño y elaboración


onírica
El autor retoma los trabajos teóricos de Freud sobre los sueños, añade trabajos
suyos y de otros autores proponiendo mantener la expresión el trabajo del sueño
dado por Freud y resaltando la expresión elaboración onírica entendiéndola como
un tema más complejo estudiado por autores postfreudianos.
A través de la presentación de sus casos clínicos muestra que la elaboración
onírica y la comprensión de los sueños non posibles a través del análisis de las
implicaciones transferenciales.

Trabajo del Sueño. Elaboración Onirica. Transferencia.

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