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não é criativo, não desenvolve nenhuma fantasia que lhe seja peculiar,
não conclui, não faz outra coisa senão condensar, deslocar, dar novo
formato visual ao material. Para dizer a verdade, encontramos no con-
teúdo onírico muitos elementos que gostaríamos de considerar como
resultado de uma outra e mais elevada atividade intelectual: mas a aná-
lise demonstra toda vez, de forma convincente, que essas operações
intelectuais já aconteceram nos pensamentos oníricos e foram simples-
mente assumidas pelo conteúdo onírico. (p.33)
2. Goliardesco: conforme Dicionário Houaiss, aquele que graceja grosseiramente, devasso. (NT)
Stefano Bolognini
É uma liberdade diferente daquela adquirida com carro, é uma liber-
dade mais individual, mais jocosa, mais ligada ao prazer de ir por aí, e não
ao compromisso de ter de ir em um determinado lugar para desenvolver
uma tarefa preestabelecida.
Não faço esforço para me sintonizar com essas sensações; é suficiente
lembrar da minha adolescência para reencontrar o gosto daquela indepen-
dência e daquela liberdade sem tempo, sem obrigações, sem compromis-
sos por demais finalizados e precisos.
Penso que, com o avançar da análise, Enrico progressivamente apren-
deu a vagar bastante livremente pelos próprios pensamentos, percorrendo
o equivalente a ruas urbanas, tangenciais, picadas de montanha, etc., e com
um crescente sentimento de reapropriação de sua liberdade e capacidade
mental; penso também que, aos poucos, a sexualidade foi por ele explorada
e conquistada como uma experiência pessoal, na qual agora se move a seu
modo, com satisfação, guiando com um estilo original.
Mas o que é aquela traição representada no sonho? Por que trai a
namorada e o melhor amigo? Quais configurações, quais fantasias, quais
movimentos internos estão expressos utilizando as correntes profundas e
em quais formas externas do Édipo, pela qual a parte melhor amigo do pai/
rival, ainda que amado conflitualmente, ou a parte namorada regular da
mãe, são traídas, em sintonia com a compra secreta da moto japonesa?
Percebo-o quase no fim da sessão, quando o pensamento de poder
terminar a análise dentro de um tempo não distante surgirá, inesperada-
mente e com certo embaraço, entre os pensamentos dedicados ao crescer,
ao saber guiar e ao partir.
Mais cedo ou mais tarde, Enrico irá embora, irá para além de mim/pai/
melhor amigo e para além da análise/mãe/namorada regular: começa a sen-
tir que tem os meios, o desejo e também um pouco a culpa.
Num certo sentido, a Honda fui eu quem a vendeu para ele, pedaço
por pedaço, a construímos juntos na oficina analítica ao longo desses anos,
mas a culpa existe igualmente: a culpa de crescer e de fazer envelhecer os
pais, indo embora e deixando-os atrás de si, fazendo parte do passado.
O sonho de Enrico pode certamente ser vivido nos seus aspectos de
mascaramento do conteúdo profundo, com o objetivo de permitir a possi-
bilidade de ele ser sonhado e lembrado para além das garras da censura
onírica.
Mas eu fico impressionado pela riqueza comunicativa do sonho, que
não coloca em cena somente o conceito subentendido (= ir embora, tendo
conquistado os meios), mas transmite a experiência emocional e sensorial
do desejo, e representa a vivência da traição conectada tanto à separação do
objeto de base materna quanto à conquista edípica em prejuízo do pai rival,
com uma direção e um prenúncio de posteriores passagens de elaboração.
Para voltar ao sonho e aos seus desdobramentos intra e interpsíquicos,
como um típico pai italiano, um pouco apreensivo, devo ter pensado que os
níveis excitadores implícitos em uma moto de corrida como a Honda, com
tantos cavalos vividos talvez como indispensáveis para ir além dos objetos
parentais e para vencer sua corrida pessoal, necessitavam ainda de uma
certa tranqüilização.
Era necessário ainda um pouco mais de análise, para fazer as malas
com calma, para transformar Enrico – Valentino Rossi em um mais relaxa-
do Enrico – si mesmo [possivelmente dotado de uma tranqüilizadora Ves-
pa] e para podermos nos separar em uma atmosfera menos intensa e baru-
lhenta, mas também menos excitante.
O que depois aconteceu de forma bastante natural, sem heroísmos e
sem incidentes particulares, em aproximadamente um ano.
Duas Irmãs
Após a morte do pai, inicia-se uma disputa legal entre as duas irmãs
pela herança: o pai, que preferia Giovanna, essencialmente pelo caráter
mais afetivo dela em relação à outra filha, mal-humorada e contestadora,
deu-lhe mais também, de um ponto de vista material, com o que a irmã não
concordou.
Traz um sonho: “Vejo no espelho que tenho duas pupilas aumentadas,
mas uma é muito maior do que a outra. Meu Deus! Então tenho algo de
errado na cabeça!... é a confirmação... sensação de ter uma doença incurá-
vel. Será possível que essa coisa não vá embora?... não é normal!”
Associa que, ao falar de outras pessoas, gostaria de vê-las, dar-lhes
um rosto.
Não entendo e pergunto a que se está referindo, e acrescento, para
fluidificar: “... por exemplo...?”
Paciente (P) – Depois da morte da minha mãe, fiz uma entrevista com
uma psicóloga que me pediu para ver as fotos da minha família. Assim,
hoje trouxe comigo as fotos da minha mãe, do meu pai, dos meus filhos:
pode servir ou é inútil?
Analista (A) – Creio que você pensou no que eu disse duas sessões
Stefano Bolognini
atrás, quando lhe propus de me ajudar a imaginar sua mãe, pois você nunca
fala dela. Hoje parece que você quer me ajudar a imaginar esses seus fami-
liares, trazendo-me suas imagens.
P – É, assim você compreende. Eu lhe disse somente, para descrevê-
la: é uma mãe. [Tira a foto da bolsa, levanta-a para mostrá-la a mim, olho-
a: é verdade, é uma mãe. Depois mostra da mesma forma o marido e os
filhos, e o pai com os netos.]
A – [Em tom de constatação] É verdade, é uma mãe.
P – [Refletindo] Não peguei as fotos da minha irmã. Nem pensei nis-
so. Não a considero.
A – No sonho, as duas pupilas estão alargadas, isto é, num certo senti-
do colocadas em evidência, mas uma é muito maior do que a outra. Você
foi a pupila do papai, que via mais você do que ela e que lhe deixou uma
herança maior. Pupila deriva de pupa3 que é boneca, menina. A bonequi-
nha/menina preferida do papai. Quanto à sua irmã, hoje você não vai
mostrá-la mesmo....
[Pausa; silêncio de mais ou menos dois minutos.]
P – [Chocada] No filme Joe Black, o protagonista fala separadamente
com as duas filhas antes de morrer. Uma coisa de dar arrepios. A maior tem
um afeto secreto pelo pai, mas sempre se sentiu a número dois. Com a
menor, que é a luz dos seus olhos, há um diálogo quase amoroso.
A – Isso a tocou?
P – Sim. Há uma afinidade. Ali, no filme, é um diálogo de verdade...
também exprime... Eu sempre recebi, nunca... [sensação de um discurso
desconexo, que tem dificuldade em recompor] porque eu não sentia de ...
[faz com os braços o gesto de dar ou de ir ao encontro de]: diferentemente
da filha menor do filme, que se acocorava ao lado, eu absolutamente não...
Aliás, lembro do profundo constrangimento no divã de dois lugares na sala,
eu e ele, um ao lado do outro, sozinhos. O medo de receber elogios, como
freqüentemente acontecia (ainda que, na realidade, muito comedidos),
3. Pupila vem do latim pupilla, diminutivo de pupa, que significa menina. (NT)
constrangimento; dizia: A minha menina!.
A – [Explorador] Só constrangimento ou também prazer?
P – Eu diria mesmo constrangimento, se responder de imediato. Ha-
via uma relação parecida entre ele e a minha filha. Pensei que teria preferi-
do o menino, que não tinha tido: para ir pescar, etc. Ele era muito ligado ao
menino, mas era louco pela minha filha, talvez uma eu pequena, é uma
menina muito doce.
A – [Divertido] Uma outra pupila...
P – [Ri] É.
Papai e Mamãe
Numa sessão um mês depois, Giovanna relata um outro sonho:
Mais em Profundidade
Porém, na sessão do dia seguinte, Giovanna aparece surpreendente e
duramente regredida à fixação hipocondríaca.
Foi até o Pronto Socorro por causa das vertigens e não acredita na
ausência de patologia orgânica.
Sinto uma sensação de nítido deslocamento em relação ao clima emo-
cional e relacional do dia anterior, com a estranha sensação de me encon-
trar em uma espécie de realidade outra que é incongruente e descontínua
em relação ao previsto, como se tivessem acontecido coisas importantes a
respeito das quais estou completamente no escuro; sinto também um incô-
modo por algo em seu tom de voz, que é muito distante, e me sinto clara-
mente acusado pela falta de progresso, aliás pela piora de sua condição
subjetiva.
Finalmente, estou perturbado também pelo fato de que parece que ela
quer contrapor um forte sentido de objetividade da sua subjetividade, como
dizendo: “Veja doutor, o senhor remetia minhas vivências a coisas psicoló-
gicas e, ao contrário, quem sabe quantos fatos orgânicos existem por
trás!”... (Isto é: “Bem entendido, tudo aquilo que apareceu ontem na sessão
eram bobagens”.)
Seguem-se de fato longos minutos de lamúria e depois uma acusação
aberta, e, em seguida, o relato de um sonho daquela noite:
The Half Full or Half Empty Glass: work of dream and oneiric
workingthroug
The author reexamines Freud’s theoretical works about dreams, adds his
own works and works by other authors, proposing maintaining the work of dream
expression given by Freud and emphasizing the oneiric production expression,
understanding it as a more complex theme studied by post-Freudian authors.
By presenting his clinical cases, he shows that oneiric production and the
comprehension of dreams are possible through the analysis of the transferential
implications.