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Virginia Ungar*
RESUMO
Minha intenção é fazer um breve xos que recebe na sua infância, adquire
resumo do percurso freudiano sobre o uma especificidade determinada para o
tema da transferência, para depois passar exercício da sua vida amorosa (...) Isto dará
à visão kleiniana e pós-kleiniana, além de como resultado, por assim dizer, um clichê
(ou vários) que se repete – é reimpresso –
reservar um espaço para o que poderia se
de maneira regular na trajetória da vida...
considerar uma discussão da questão na
região a qual pertenço.
Ou seja, agora aparecem na visão
Como se sabe, o descobrimento
de Freud duas formas de recordar: uma,
central da clínica freudiana foi a transfe-
pela rememoração do paciente a respeito
rência. Quando Freud encontrou-se com
do que aconteceu; outra, pela repetição,
ela, não duvidou em pensá-la, no início,
em sessão, do esquecido. Isto fica mais
como um obstáculo à sua prática.
claro no famoso trabalho de 1914, Recor-
Em Estudos sobre a histeria
dar, repetir, elaborar.
(Freud, 1895), três parágrafos antes de
mencionar pela primeira vez o termo trans- A partir de 1920, a teoria freudiana
ferência no sentido psicanalítico, e ao da transferência se enriquece e torna-se
falar das resistências, mas dirigindo-se mais complexa. Freud postula em Além
irremediavelmente ao conceito, diz Freud: do princípio do prazer que aquilo que é
“Este caso sobrevém quando o vínculo do convocado pela repetição não é somente
doente com o médico vê-se perturbado e o que se encontra sob a égide do Princípio
significa o mais aborrecedor dos obstácu- do Prazer, mas também pelo que está
los com que se pode tropeçar”. além do mesmo. Repete-se o que se
Poucas linhas depois, explica sua encontra dominado por tendências tanáti-
hipótese a respeito do falso enlace que cas.
permitia a transferência, para a figura do Da perspectiva atual, podemos afir-
médico, de conteúdos emergentes duran- mar que tanto a resistência como a trans-
te a análise. ferência, aqueles obstáculos iniciais, trans-
Anos mais tarde, descobriu-se que formaram-se rapidamente em guias e
o mencionado “obstáculo” podia conter ferramentas insubstituíveis e essenciais
uma valiosa informação: o paciente resis- da clínica freudiana. Como dissera Freud,
tia, mas o fazia repetindo com seu analista no epílogo de Dora (1905), e em Recor-
clichês (imagos internas) construídos no dar, repetir, elaborar (1914), é através
seu passado. Freud, em 1912, já dizia o da repetição transferencial (que aparece
que permanecerá referendado, em 1914, no clímax da resistência) que emergem as
em Recordar, repetir, elaborar: lembranças mais reveladoras de uma
análise.
...todo ser humano, por efeito conjuga- Assim como para Freud a clínica
do de suas disposições inatas e dos influ- com pacientes adultas, afetadas princi-
palmente por quadros de histeria, o levou ra e nos possibilita encontrar uma Klein já
à idéia da transferência como resistência mais velha, que nos convida a percorrer
e evocação repetitiva do passado, para sua própria história como psicanalista,
Melanie Klein foram outras experiências nos apresenta fragmentos das análises de
que determinaram o começo de sua práti- seus pequenos pacientes assinalando, em
ca. Suas conclusões, por isso, foram dife- cada situação, aspectos de sua teoria que cada
rentes daquelas do criador da Psicanálise. criança tratada lhe permitiu iluminar.
Como se sabe, Klein começou pri- Nesse texto, esclarece que seu
meiramente observando crianças. Logo trabalho analítico com adultos não é uma
se atreveu, alentada por seu analista, a aplicação da técnica do brincar, mas re-
tratar seu primeiro paciente, a quem cha- vela o quanto a tarefa com crianças a
mou Fritz (na realidade, seu filho Erich). muniu de uma compreensão profunda do
Estimulada por suas descobertas e pela desenvolvimento precoce, dos processos
publicação de seus primeiros trabalhos, inconscientes e da natureza das interpre-
bem como pela repercussão dos mesmos, tações psicanalíticas.
continuou analisando crianças de tenra Se seguirmos atentamente a leitu-
idade. ra dos artigos – que contêm abundantes
A experiência da relação transfe- exemplos clínicos de sessões com seus
rencial em seu trabalho diário na análise pequenos pacientes, descritos de maneira
de crianças pequenas parece ter se im- muito detalhada –, podemos ver como
posto com tanta força que, tanto as modi- Melanie Klein, ao se deparar com obstá-
ficações técnicas (por exemplo, seu des- culos na prática clínica, cria recursos
cobrimento da técnica do brincar), como técnicos que, por sua vez, a levam a novas
suas propostas teóricas surgiram de ma- inferências teóricas, numa contínua espi-
neira natural para Klein. ral que percorre sua obra do princípio ao
Não parece arriscado supor que fim.
todo o edifício teórico kleiniano construiu- Como ela própria diz, pode-se afir-
se a partir da experiência da transfe- mar que as bases de todo o edifício teórico
rência com seus pequenos pacientes. de Melanie Klein reside na análise de
É ela mesma que assim se expres- crianças. Suas afirmações a respeito do
sa em seu artigo “A técnica psicanalítica Édipo precoce, a intensidade da ação de
do brincar: sua história e significado” um superego precoce, a possibilidade de
(1955), no qual afirma que toda sua con- estabelecer transferência na analise de
tribuição à teoria psicanalítica deriva da crianças, a importância da detecção e
técnica do brincar desenvolvida com cri- interpretação da transferência negativa,
anças pequenas. Esse artigo, escrito cin- o estabelecimento de situação analítica
co anos antes de sua morte, é uma espé- através da interpretação da transferên-
cie de autobiografia psicanalítica da auto- cia, a existência de mecanismos de defe-
que a Psicanálise pode ser incluída no lhe algo do que ocorre em sua mente,
grupo das transformações. ajudando-o a continuar pensando.
É justamente Bion que estuda e Ainda nessa conferência, trouxe
inclui Meltzer em seus desenvolvimentos Meltzer a interessante idéia de que o
clínico-teóricos. analista pode ter a responsabilidade da
Tal como foi lembrado, Meltzer transferência durante um tratamento
retoma a idéia kleiniana da transferência analítico, e de que também o paciente
no sentido de que, longe de ser uma pode depositar sua confiança nele, pois
evocação repetitiva do passado, é a não é o analista que tem a responsabilida-
externalização das relações com os obje- de em relação a seu paciente, mas seus
tos internos no aqui e agora da sessão objetos internos que “carregam” a trans-
analítica. ferência. Disso surgirá a inspiração para
Numa conferência que esse autor a construção da transferência. Esta pos-
proferiu em Buenos Aires sobre transfe- tura outorga mais força à idéia kleiniana
rência (Meltzer, 1990), referiu-se à mes- da prevalência da realidade psíquica.
ma como o descobrimento em torno do Esta já é minha opinião. Daí a
qual se organiza a psicanálise. Definiu importância da análise didática, na qual o
Psicanálise como a arte e a ciência da analista treinou sua capacidade de confi-
interação entre transferência e contra- ar em si mesmo, em seus objetos internos
transferência como um processo. Nessa e tem de estar alerta às armadilhas que
mesma conferência, disse que o método seu próprio narcisismo lhe oferece para
psicanalítico tem uma qualidade estética, abandonar essa confiança.
porque juntos, paciente e analista, cons- Antes de entrar no que poderia se
troem um objeto – o objeto psicanalítico – considerar a polêmica atual sobre a trans-
que não é apreensível pelos órgãos dos ferência na região geográfica a qual per-
sentidos. tenço, América Latina e, em especial,
Na situação analítica, vemos per- Argentina, desejo acrescentar duas con-
manentemente a interferência da tribuições fundamentais na minha ativida-
antiemocionalidade com a emocionalidade, de clínica.
no contexto da flutuação entre as ansie- A primeira corresponde à noção
dades esquizoparanóides e depressivas. de transferência como situação total,
Na mesma oportunidade, Meltzer trazida por Betty Joseph (1985), que su-
arriscou ao propor que a transferência blinha uma frase de Melanie Klein no
não é um fato, mas uma construção na artigo sobre as origens da transferência.
mente do analista. E foi mais longe ao A citação de Klein diz: “Ao desentranhar
dizer que, ao formular sua interpretação, os detalhes da transferência, segundo
o que o terapeuta faz é aproximar uma minha experiência, é essencial concebê-
opinião para o paciente, e assim iluminar- la em termos de situações totais que se
rigir os fatos, mas sim conceituá-los nova- relação analítica repetem-se “clichês”
mente; 10) Se aceitarmos que existe uma direcionados sobre a figura do analista –, ou
transferência precoce, capaz de desenvol- se na relação entre paciente e analista
ver-se plenamente no tratamento e susce- ocorrem fatos que evidenciariam a exis-
tível de ser resolvida com métodos psica-
tência de fenômenos que não se limitam
nalíticos, abrimos a possibilidade de usá-
la como teoria e pressuposto para investi-
às repetições do passado, mas que, ainda
garmos o desenvolvimento precoce, e tes- assim, são de relevância na clínica psica-
tarmos as teorias que procuram explicá- nalítica. Os defensores desta linha
lo... (Etchegoyen, 1986:327). (Berenstein, Moreno, Puget), sustentam
que a interpretação desses emergentes
Sua proposição, de que interpreta- novedosos1 ou inéditos em termos de
ção e reconstrução são fases comple- repetição do passado poderia anular seu
mentares de um mesmo processo, é im- efeito possível no trabalho terapêutico.
portante. Isso quer dizer que, ao pensar a Berenstein propõe, por exemplo,
transferência como uma suposição do caracterizar “...a transferência analítica
passado e presente, não é possível sus- como um vínculo, uma estrutura onde se
tentar que uma interpretação no aqui e relacionam dois ou mais, neste caso, dois
agora possa se dar fora da perspectiva sujeitos do desejo, paciente e analista, que
do passado. Da mesma forma, não se propõem, um ao outro, dois trabalhos a
pode restaurar a história sem responder realizar simultânea e sucessivamente”
ao compromisso transferencial. (Berenstein, 2001). Logo, o autor especi-
Tal como propus no início, quero fica que a primeira tarefa será a de
agora apresentar um breve apanhado do desenvolver as experiências infantis do
que considero o estado atual da discussão paciente com a colocação em cena de
sobre a transferência, centrado em al- suas relações de objeto. Isso implica uma
guns autores argentinos. sutil tarefa de articular determinações
precoces de semelhanças e diferenças no
Estado atual da discussão transcorrer do tempo, ou seja, no funcio-
sobre a transferência namento mental entre a percepção de
novas experiências e a estrutura das que
Considero que um dos eixos de ocorreram na infância.
discussão neste momento é se a transfe- Outro trabalho será o que se dá em
rência é um fenômeno ligado à repetição, ambos os sujeitos no momento do encon-
seguindo a clássica idéia apresentada por tro com o outro da relação, com ajenidad2
Freud (Freud, S. 1912) – em que na que não é atribuível a nenhuma experiên-
1
No sentido de novidade, em português. (N. do T.)
2
No sentido de alheio, em português. (N. do T.)
quer um inevitável recorte na hora de tanto nas crianças como nos adultos a
apresentar as idéias de quem tenha feito situação analítica”.
contribuições fundamentais para a questão. Acredito ser fundamental, além de
Como disse inicialmente, a con- reconhecê-la, pensarmos o que nós, ana-
cepção de transferência e, sobretudo, a listas, fazemos com a transferência, ou
maneira como se trabalha com ela na seja, o manejo clínico da mesma. Alguns
sessão analítica vai depender do modelo de nós a interpretam, dentre eles há quem
de mente que tem cada analista. Esse pense que nem todas as interpretações
modelo se depreende de certos elemen- devem ser transferenciais e que, segundo
tos que se conjugam de maneira constan- nos relembra Etchegoyen, a interpreta-
te e que se relacionam com a concepção ção “completa”, em termos de Pichon
de mente e da teoria do desenvolvimento Rivière, deve considerar o conflito infan-
emocional precoce que cada autor tem. til, o conflito atual e a transferência. Se
Sendo assim, escolheu-se neste artigo retomarmos a idéia da transferência pre-
uma determinada perspectiva que enfati- coce desenvolvida por Etchegoyen, po-
za os desenvolvimentos kleinianos e pós- deríamos postulá-la como um quarto fator
kleinianos. a considerar em relação à interpretação
Percorremos o tema da transfe- completa.
rência partindo de Freud, passando para a Há correntes psicanalíticas que
perspectiva kleiniana, em que tentamos preferem trabalhar “em transferência”,
sublinhar como hipótese a importância do sem necessidade de formular a interpre-
trabalho psicanalítico desta autora ter se tação transferencial. Existe uma grande
iniciado com crianças pequenas. Melanie quantidade de matizes e terreno fértil
Klein reconhece-o em seus escritos e, para discussões frutíferas.
seguindo sua obra, podemos notar o quan- O debate persiste, prova disso está
to a noção de transferência com seus na constante publicação de expoentes e
pequenos pacientes se lhe impôs com trabalhos sobre o tema da transferência
uma força irrefutável a partir da experi- em nossa região e no mundo inteiro. Creio
ência empírica. que isso ocorre em grande parte porque a
Melanie Klein além de reconhecê- obra dos nossos mestres operou como
la, interpretou-a em seus pequenos paci- modelo de fertilidade e abertura. Esse
entes. Vale aqui lembrar uma frase sua, modelo pode continuar propiciando o cres-
escrita já em 1926 (Klein, 1926), sobre cimento da teoria e prática psicanalítica
como se estabelece a situação analíti- em futuras gerações de analistas com-
ca: “...interpretações adequadas, resolu- prometidos com a apaixonante tarefa de
ção gradativa das resistências, e persis- levar adiante um processo analítico.
tente descobrimento pela transferência
de situações anteriores – isto constitui Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
SUMMARY
RESUMEN
Virginia Ungar
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