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exigido “do analista pessoal e tecnicamente lado for o escolhido, será talvez a sombria
na condução” de uma análise (Cartocci & e solipsista violência pulsional que, em sua
Franco, 1996, p. 8). Ferenczi e Winnicott clausura, deixará analista e analisando em
alertam, cada um a seu modo, que resis- solidão, desarticulados um do outro. Quem
tir ao enquadre que o paciente necessita sabe esta última hipótese possa traduzir um
traduz um limite do analista em sustentar pouco do destino da clínica nos primór-
as transferências primitivas. A partir da clí- dios pós-sugestão, já que ver a transferência
nica contemporânea, a noção de amadu- como obstáculo ao tratamento significava
recimento do self passa a ser também um não só desconsiderar a função clínica dos
referente diagnóstico, e seguimos nos per- investimentos pulsionais do paciente sobre
guntando sobre a instalação das primeiras o analista como também assumir a necessi-
estruturas organizadoras do psiquismo. dade de se erguer uma barreira de contato
Não deixa de ser arriscado o que fazem entre os dois. Mas, promovida a transferên-
algumas correntes da psicanálise atual em cia de obstáculo para a cura à categoria de
ver como adversárias as teorias que privile- método clínico – simultaneamente campo
giam o campo do pulsional e aquelas que e mecanismo –, o par analítico pôde, com
se orientam pelas relações de objeto. De essa nova versão da clínica, reencontrar-
fato, depois de mais de um século de pes- -se no espaço transferencial das trocas
quisa clínica e esforço de teorização, não se simbólicas.
trata de rivalizar com uma ou outra posição A transferência tomada como campo
teórica, numa espécie de Fla-Flu religioso, nem interno nem externo ao par analí-
o que levaria necessariamente ao desman- tico, mas na intersecção dos dois, designa
telamento da visão, tão cara e útil à clínica, o lugar onde jogam, brincam e tramitam
que concebe imbricados objeto e pulsão as pulsões enlaçadas a seus objetos – ambos
sob o regime da complementação e ine- copartícipes nessa arena. A análise da trans-
rência – aliás, muito bem assinalado por ferência é uma experiência na qual está
Green (1990) na conhecida afirmação de em questão não apenas o inconsciente do
que a pulsão só pode ser revelada em pre- paciente, mas também o do analista, o
sença do objeto, que a recorta. Presença que faz, por exemplo, da análise pessoal a
que faz falta e se faz sentir pela urgên- principal via para se tornar um psicanalista
cia, necessidade, anseio ou desejo, é ela o capaz de construir teoria. Ora, é próprio do
motor pulsional, seu engate e tensão, que método psicanalítico aproximar-se de seu
chama ou grita por socorro. objeto através das características dele, isto
Pois bem, se se arrisca torcer por um é, o método é baseado na lógica do incon-
dos lados dessa disputa, o do objeto, pode- sciente, na lógica de seu objeto, o que faz
-se incorrer no erro de personalizar por com que sua apreensão tenha que passar
demais o trabalho analítico, reduzindo-o obrigatoriamente pela experiência con-
a um drama que se passa entre as duas creta entre paciente e analista. De modo
pessoas da cena clínica. Mas, se o outro que a figura do analista não é apenas a de
ao paciente, que participam de todo pro- estenda por um espaço, no ritmo do reco-
cesso analítico, estão em íntima conexão lhimento necessário, recolhimento que
com a dimensão do materno. Os gestos têm pode ser do piscar os olhos ao dormir.
sentido metafórico. As palavras sustentam O tempo da interpretação é outro ele-
corpo. Assim, o enquadre é tanto gesto que mento a ser cuidado para que surja a con-
funda, ação inaugural, quanto sentido. fiança. Antes do tempo, a interpretação
Afinal, o pagamento acertado poderá ser pode soar estrangeira, seja por ação do
presente ou fezes ou bebês, aquilo que se recalque, seja pela falta de timing em apre-
desprende e produz espaço livre e angús- sentar-nos como objeto, quebrando assim
tia. Matriz, material, oco, ressonância. O a ilusão criadora. Às vezes, isso acontece e
tempo das sessões e sua frequência dão saímos prematuramente do pano de fundo.
ritmo e embalo à sustentação do espaço Alguns podem suportar sem maiores gra-
interno daquele que nos procura… O vidades; com outros, corremos o risco de
divã pode representar o colo do analista deixá-los cair. Faltas, atrasos, mudanças na
ou, dependendo do caso, ser em algum disponibilidade interna do analista fazem
momento o colo da mãe, porém, quando emergir o que estava silencioso, dado como
da eminente queda, pela eclosão da angús- constituído e, talvez, seguro. Quem, como
tia ou desestruturação psíquica, é a pol- analista, não sofreu as consequências de
trona que permitirá que o olhar também algum atraso? São situações em que inad-
esteja presente como suporte. O ritmo, vertidamente saímos do tempo do paciente
aquilo que permanece constante num antes que ele possa tolerar nossa alteridade.
certo número de vezes por semana, esta- Lembra-nos Jacques André (2008) que o
belece a confiança necessária da continui- enquadre, ou setting, da mesma forma que
dade, confiança que permitirá justamente o eu, é um “ser de fronteiras” (p. 66) que se
que o imprevisível faça sua emergência. projeta na superfície da análise – projeção,
Afinal, o traumático a ser revivido na aná- aqui, no sentido geométrico. Por isso supo-
lise é sempre imprevisível, paradoxo com mos que sofrimentos primários ligados à
que trabalhamos o tempo todo, pois “não constituição precária do eu poderiam estar
há imprevisível sem confiança previamente na base de ataques ao enquadre, desde o
restabelecida” (André, 2008, p. 68). mais material (pagamento, horário) até a
Se o tempo da sessão pode variar é por- capacidade de pensar do analista.
que há um ritmo de imersão a ser respei- A palavra proferida pelo analista é inau-
tado até que surjam experiências psíquicas, gural. A enunciação da regra fundamental
criem-se sentidos e uma elaboração neces- obedece a uma formatação de transferên-
sária seja alcançada, garantindo que uma cia apoiada no modelo do sonho. Para isso,
duração coextensiva à vida psíquica se a figura do analista funciona mais como
tela ou suporte, e sua presença em nega-
tivo tem efeito na medida em que oferece
ao analisando as condições para se entregar
Lo maternal de la clínica. Aspectos sobre el The maternal side of the psychoanalytic practice.
encuadre y el cuerpo del analista Aspects on the frame and the analyst’s body
Este trabajo presenta y desarrolla una discusión This paper presents and develops a discussion about
sobre el método psicoanalítico y sus afinidades the method in the psychoanalytic practice, and
con el campo de lo materno. En él se resaltan its likenesses with the maternal field. The authors
aspectos del encuadre y su manejo así como las highlight some aspects of the frame and its handling.
cualidades de la presencia del analista y su cuerpo They also emphasize features of the psychoanalyst’s
que corresponderían a las modalidades del materno presence and body that would correspond to maternal
instituyentes y organizadoras de la clínica. Sin ways, which establish and organize the practice.
olvidarse de la dimensión paterna del encuadre – Without disregarding the paternal dimension of the
aquella referida a su función terciaria –, el presente frame (which is related to its tertiary function), this
trabajo destaca en la función materna la propiedad paper highlights the property, better known as frame, in
más conocida por moldura. Operando doblemente, the maternal function. By operating in two fronts, the
la moldura crea un topos a ser relleno, al mismo frame creates a topos to be fulfilled while protecting
tiempo que protege los procesos y vivencias the processes and experiences that are produced there.
producidos allí. Llamado clínica de la presencia, The practice of presence (also called presence practice
o de lo sensible, y basado en la afectación mutua or sensitive practice) is based in the mutual affection of
del par analítico, el campo de lo materno descrito the psychoanalytic pair. The herein described maternal
acá sigue de cerca el de los intercambios ofrecidos field follows closely the field of the exchanges that
por la madre sin, no obstante, confundirse con la are offered by the mother, despite not being confused
maternidad – lo que dejaría de ser psicoanálisis. with mothering – otherwise, it would be considered no
Ferenczi y Winnicott son autores de referencia, longer psychoanalysis. Ferenczi and Winnicott, whose
cuyas propuestas inspiran las reflexiones de este proposals have inspired this paper, are the referential
trabajo. authors.
Palabras clave: materno; encuadre, transferencia, Keywords: maternal; frame; transference; presence;
presencia, reflexividad. reflexivity.
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Luciana Cartocci
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