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Ana Costa e Maria Cristina Poli

Alguns fundamentos da entrevista


na pesquisa em psicanálise

Neste artigo buscamos situar o lugar e a função da pesquisa em psicanálise no recurso


à entrevista. Partimos da leitura de Freud sobre a estrutura das manifestações do
inconsciente. Para que estas possam representar um sujeito é preciso um tempo de
apropriação por parte de quem é afetado por elas. Esse tempo requer um circuito de
transferência. Resta como dificuldade a aplicação da entrevista fora de um contexto
propriamente analítico. Situamos algumas experiências onde podem estar
preservadas as condições da experiência psicanalítica. Deste modo, pensamos
contribuir para uma discussão das dificuldades de um campo de pesquisa, ao mesmo
tempo em que apresentamos suas possibilidades.
> Palavras-chave: Pesquisa em psicanálise, sujeito do inconsciente, entrevista,
transferência
artigos > p. 14-21

In this article we discuss the place and function of research in psychoanalysis based
on interviews. We first present quotes from Freud on the structure of manifestations
of the unconscious. For them to represent a subject, the person who is affected by
them needs time to appropriate them, and this time requires a circuit of transference.
It is difficult to hold an interview outside a specifically analytical context. We discuss
experiences under which the conditions of the psychoanalytic experience can be
pulsional > revista de psicanálise >

guaranteed. It is in this vein that we hope to contribute to the debate on the


difficulties in a field of research, although we also present its potential.
ano XIX, n. 188, dezembro/2006

> Key words: Research in psychoanalysis, subject of the unconscious, interview, transference

A prática da pesquisa em psicanálise situa A questão principal que se impõe é de que o


a entrevista com uma complexidade que “objeto” desta pesquisa possui a paradoxal
merece ser abordada em sua especificidade. característica de ser também “sujeito”. Não
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se trata, no entanto, de simetria entre os liberal: a representação de indivíduo que tem
dois termos, sujeito-objeto; tal homologia se o domínio e a suficiência de seu “eu”.
organiza por relação ao ponto de fuga: olhar É nesta interface entre as “palavras” e as
do terceiro incluído/excluído que, assim “coisas”, conforme a bela expressão de Fou-
como o espectador diante do quadro de cault (1966), que o inconsciente surge, na
Velàsquez, Las meninas, é capturado pelo obra de Freud, como um conceito-chave, em
enigma do que se furta ao olhar (Foucault, ruptura com as evidências “claras e distin-
1966). Invisibilidade constitutiva do que se tas”, objeto da ciência moderna. Inúmeros
dá a ver e que promove a transmutação do debates já tiveram lugar e seguem se produ-
campo escópico em pulsão epistemofílica. zindo sobre o estatuto científico da psicaná-
O sujeito na pesquisa em psicanálise é, pois, lise. Reconhecemos a importância destas
aquele que, através da linguagem e na lin- discussões e das diversas contribuições que
guagem – assujeitado às leis que a organi- os estudos conjugados de epistemologia e
zam –, constitui o universo físico como psicanálise aportaram para os fundamentos
universo discursivo, trazendo junto a marca desta nossa particular ciência. Não preten-
de sua presença. Essa “presença” contém demos, no entanto, nos limites deste artigo,
seus paradoxos, na medida em que costuma- avançar sobre estas questões. Gostaríamos
mos pensar a partir de dicotomias. Corpo e de situar o tema que nos ocupa – a “entre-
espírito, como representantes da religião vista” na pesquisa em psicanálise – a partir
por um lado, e sujeito e objeto como repre- do entendimento da constituição deste cam-
sentantes da ciência de outro, já se torna- po como estruturado sobre o tripé da inter-
ram as clássicas dicotomias da sociedade venção, produção e investigação deste
ocidental. Esses referentes, no entanto, particular objeto que é o sujeito do incons-
nunca conseguiram esgotar as mediações ciente.
que pudessem representar os humanos no As premissas que nos permitem situar os
seu mundo. nossos argumentos podem ser encontradas
É em um contexto de insuficiência destas já em Freud, mesmo que a referência a La-
artigos

formas representacionais que surge a psica- can no avanço destas questões seja de fun-
nálise (Lacan, 1964, 1966). Vem dar conta de damental importância. Freud foi um
uma limitação da ciência, na medida em que pesquisador, um teórico e um clínico, sendo
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ela se focaliza no objetivismo, ou seja, na sua obra escrita um testemunho da indisso-


ano XIX, n. 188, dezembro/2006

tentativa de eliminar o sujeito de seu para- ciabilidade destes termos. A “metodologia”


digma. A psicanálise o reintroduz, mas de adotada pelo autor na constituição da
uma maneira peculiar, como sujeito do in- psicanálise foi bastante variada e revela um
consciente, o que é diferente da represen- procedimento próprio à pesquisa em psica-
tação que cada indivíduo tem de si. O sujeito nálise até hoje. Em síntese, para a psicaná-
do inconsciente interroga tanto a ciência lise não é o “instrumento” ou a “técnica” que
quanto a religião, subvertendo os limites ati- define a qualidade de um trabalho de pes-
nentes às clivagens internas a estes cam- quisa. Pode-se muito bem produzir uma pes-
pos. Mas ele interroga, também, a ideologia quisa em psicanálise a partir de casos
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clínicos – forma que se tornou tradicional simbólico nem a uma semiologia fisiológico-
apenas depois de Freud –, mas também corporal.
pela análise das mais diferentes produções Conjugando, ao mesmo tempo, símbolo e
nas quais o sujeito do inconsciente esteja corpo, as formações do inconsciente inter-
em causa. A obra freudiana é exemplar em pelam a quem é afetado por sua produção.
seu legado de uma série de estudos culturais Elas são expressões relacionais (Costa,
e lingüísticos – que indicam a importância 2001), ou seja, representam impasses nos
de um “além da clínica” –, mas também aná- encontros entre elementos heterogêneos –
lises de produções tão idiossincráticas, como pulsão e representação – e sua orde-
como, por exemplo, os sonhos, os atos fa- nação pela lógica da fantasia. Isto pode ser
lhos e os chistes. testemunhado no lapso de um esquecimen-
A estes fenômenos sobre os quais Freud se to. Quando alguém esquece um nome em um
debruçou e se empenhou a pesquisar, ele grupo, por exemplo, este lapso “contagia” os
denominou de formações do inconsciente. demais. Neste simples caso, percebe-se que
Isto porque, para dizer brevemente, trata-se o esquecimento em causa não é do indiví-
de expressões onde a “marca da presença” duo, mas é resultado do laço instituído por
do sujeito é indelével. Quando um sonho, aquele grupo. Também em análises de crian-
um ato falho ou um chiste se produz é por- ças é preciso um trabalho preliminar para
que há um sujeito ali, mesmo que não reco- diferenciar o que é sintoma da criança da-
nhecido. É certo que em toda manifestação queles dos seus pais. Com estas breves co-
discursiva podemos atestar o lugar necessá- locações queremos sublinhar que “sujeito do
rio de um sujeito na produção dos enuncia- inconsciente” é resultante de um laço dis-
dos. Mas, no caso destas manifestações, cursivo, que vai ser reproduzido na transfe-
ditas “do inconsciente”, ocorre a exposição rência. Freud mesmo sempre assinalou este
“a nu” do princípio organizador da implica- aspecto, tanto na análise das formações do
ção do sujeito, da produção de uma conjun- inconsciente quanto do processo de produ-
ção das “palavras” com as “coisas”. Nos ção de recalcamento.
artigos

termos da psicanálise diríamos que uma for- No que isto interessa ao tema da entrevis-
mação do inconsciente conjuga significante ta na pesquisa em psicanálise? Pois, justa-
e corpo (símbolo e pulsão, como uma forma- mente, parece-nos fundamental partir da
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ção de compromisso entre representantes leitura de Freud sobre a estrutura das mani-
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antagônicos), produzindo uma outra coisa. festações do inconsciente para podermos


Essa “outra coisa” não pertence nem aos situar o lugar e a função do pesquisador em
sentidos consensuais compartilhados social- psicanálise no seu recurso à entrevista. Um
mente, nem às representações de prazer. É paradoxo imediato nos ocorre: para que as
por isto, também, que a psicanálise não formações do inconsciente possam repre-
pode ser reduzida a um capítulo da herme- sentar um “sujeito” e não somente um “ob-
nêutica. A interpretação de uma formação do jeto” é preciso um tempo de apropriação por
inconsciente não pode ser adequadamente quem é afetado por elas. Esse tempo requer
produzida no recurso a um deciframento a inclusão em um circuito de transferência.
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É isso que faz com que um sonho, ou mes- constitui. A isso denominamos em psicaná-
mo um lapso, narrado para alguém não te- lise “transferência”. Não é, pois, um saber
nha o mesmo valor de experiência do prévio que já estava ali, no “entrevistado”,
inconsciente do que quando narrado, ou como um dado a ser colhido pelo “entrevis-
mesmo produzido para um analista. Temos tador”. É algo que se situa num espaço
exemplos cotidianos disso: quando um so- transferencial em que o “insabido” se ex-
nho é narrado para amigos ele pode repre- pressa como formações do inconsciente.
sentar qualquer coisa, ou qualquer sujeito, Logo, ele inclui o pesquisador na própria for-
porque o sonho, em si mesmo, não diferen- mação.
cia o sonhador, ele pode ser de qualquer um. Para o psicanalista trata-se de apresentar
É também por essa razão que ele pode ser assim as condições éticas da produção de
“socializado” facilmente, numa referência conhecimentos sobre o sujeito. Pois, se um
mística ao augúrio do destino. Os sonhos cientista dirige-se aos seus “sujeitos de pes-
muitas vezes serviram, em diferentes so- quisa” com uma questão ou hipótese, ele já
ciedades, para interpretar o destino. Nesses está implicado na construção das interpre-
momentos o sujeito se apresenta afetado tações que produzirá. Conforme os critérios
por um código que ele não entende, que o objetivos da ciência positivista, porém, ele
situa na sua face mais objetal. Por essa ra- precisa negar sua implicação neste pré-jul-
zão, um percurso em transferência por essas gamento. Em psicanálise, ao contrário, reco-
formações do inconsciente permite um reco- nhece-se o compartilhamento de um código
nhecimento e apropriação desse lugar obje- que define de antemão as condições de es-
talizado em que o sujeito se encontra. Sendo tabelecimento de um campo de transferên-
assim, como pensar uma entrevista em que cia. É justamente este reconhecimento que
pudessem ser expressas essas condições impede que se caia em “subjetivismos” inter-
mínimas de uma apropriação que não expul- pretativos. A transferência compartilha com
sasse o sujeito para o lado de fora? as formações do inconsciente uma estrutu-
Situaríamos aí as pré-condições para que ra na qual um saber sobre o Unbewusst se
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uma pesquisa em psicanálise se produza. produz, podendo ser apreendido e nomeado.


Isto é, que a entrevista seja pautada pelo Esta estrutura é que permite que se reco-
pressuposto da transferência, o que signifi- nheça ao que foi produzido o seu valor de
ca a constituição de um campo relacional no verdade (semelhante à objetividade de
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qual esteja em causa a hipótese do incons- um sintoma, por exemplo) e de transmissi-


ciente. Lembramos aqui a origem deste ter- bilidade (cujo modelo do chiste é para-
mo, “inconsciente”: Unbewusst foi a palavra digmático).
utilizada por Freud. Literalmente: “insabido”. Indicadas assim as balizas de um campo de
Operar com o inconsciente implica, pois, a pesquisa em psicanálise, resta como dificul-
suposição de um saber que “não se sabe” dade a realização da entrevista fora de um
mas que é suposto. As condições de produ- contexto propriamente analítico, fora das
ção de conhecimento sobre este “insabido” condições que a prática clínica oferece.
são internas ao campo relacional que o Como não temos a pretensão de apresentar
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um modelo, porque a referência a padrões a passagem de uma passividade à consti-
situa-se fora de um campo propriamente tuição de uma demanda, que é o primeiro
psicanalítico, situaremos algumas experiên- momento em que o sujeito se reconhece
cias onde podem estar preservadas as con- nas formações do inconsciente;
dições da experiência psicanalítica. Deste • também por meio dessa passagem, as for-
modo pensamos contribuir para uma discus- mações do inconsciente podem represen-
são das dificuldades de um campo de pes- tar enigmas e formações simbólicas, que
quisa, ao mesmo tempo em que podem ser trabalhadas por meio da pala-
apresentamos suas possibilidades. Duas des- vra. Nesse momento é possível estabele-
sas referências constituem a “porta de en- cer a confiança na fala e na escuta de
trada” e a de saída de uma análise. São elas quem banca o endereço da fala.
as entrevistas preliminares e as experiên- As entrevistas preliminares têm importância
cias que Lacan (1967) denominou de “passe”, decisiva para uma entrada em transferên-
relativas a um fim de análise. cia. Também por essa razão exercem função
As entrevistas preliminares são assim deno- capital nos trabalhos em clínicas públicas,
minadas por serem prévias à construção da onde a constituição de um endereço para os
transferência e à entrada num percurso de sintomas encontra-se mais problematizado.1
análise. Elas podem ter tempos distintos, É onde o sujeito fala para “qualquer um”.
conforme o estilo de cada analista e as con- São inúmeros os exemplos em que a fala do
dições de implicação do paciente, em cada paciente se produz da mesma forma, seja o
caso. Elas se destinam à construção de uma ouvinte as secretárias do serviço ou o tera-
série de balizas, das quais destacaremos as peuta que o atende. Nesse sentido, um pes-
seguintes: quisador em psicanálise pode muito bem
• a chegada do paciente a uma entrevista ocupar o lugar das entrevistas preliminares,
se dá numa posição de queixa. Isso signi- como um sítio de passagem, até sua deriva-
fica que ele não se reconhece nos sinto- ção para um outro endereçamento.
mas e padecimentos que o afetam, Num outro caso, em que a entrevista em um
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relacionando-se com um saber que ele si- trabalho de pesquisa não se situa num con-
tua todo do lado do entrevistador. Essa texto de clínica, acrescenta-se a dificuldade
posição de desimplicação é a mesma que da demanda situar-se do lado do entrevista-
o objetaliza, instrumentalizando-o a um dor e não do entrevistado. O pesquisador
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saber construído como exterioridade. As dirige-se ao entrevistado com base na supo-


formações do inconsciente, nesse senti- sição de que este sabe algo e pode transmi-
do, situam-se também como um saber ex- tir-lhe esse saber. Trata-se de uma inversão
terior, do qual o sujeito não se apropria. do modelo clínico no qual o paciente ende-
Nas entrevistas preliminares é construída reça uma demanda ao analista, supondo-lhe

1> Referimo-nos aqui à experiência de uma das autoras – Ana Costa – no serviço de atendimento psicoló-
gico disponibilizado pelo COESP (UFRGS) durante os anos de 1983-1993.

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um saber. Esta situação exige do pesquisa- transferência pode esclarecer e fazer avan-
dor o máximo cuidado e atenção aos precei- çar a teoria. O que sempre vem de par com
tos éticos da transferência, pois as a condição de que o compartilhamento des-
condições de objetalização, instrumentali- ta experiência possa ter alguma serventia ao
zação e exteriorização do sujeito estão refor- sujeito que produz a narrativa. Isto é, que
çadas. Para que algo da ordem de um saber ele possa demandar produzi-la, sem força-
analítico se produza é preciso respeitar as gem por parte do entrevistador.
condições, por vezes mínimas, de formula- Além de propor que a hipótese se constrói
ção de uma demanda e de produção do no próprio trabalho da entrevista, haveria
“efeito surpresa”. Isto é, de certa forma, é alguma outra particularidade diferenciado-
preciso que as hipóteses com as quais o pes- ra? O exemplo do trabalho de Mees diz de
quisador em psicanálise opere sejam formu- uma certa condição particular em que as
ladas de modo a não fazer resistência a que entrevistas funcionam como testemunho de
estes dois elementos possam estar em cau- uma experiência que permanece irrepresen-
sa. Elas devem ser suficientemente amplas tável, mas que permite a enunciação de um
e indefinidas, em um primeiro tempo, para ponto de ligação com um Outro e, num se-
que possibilitem ao entrevistado formular gundo tempo da transferência, a saída da
sua própria questão e responder a ela, na experiência. Poderemos situar essas entre-
transferência, de forma singular, sem pres- vistas do lado de que se costuma denominar
crições prévias. A nosso ver a “questão” ou de “testemunho”, em que a pessoa é coloca-
“hipótese” de pesquisa é uma construção ela- da por aquilo que viveu (normalmente si-
borada a posteriori em relação ao trabalho tuações de trauma) como excluída da
de transferência. Sua formulação se faz possibilidade de comunicar. Também a prá-
acompanhar das respostas que foram possí- tica das apresentações de pacientes em hos-
veis construir naquele contexto. pitais psiquiátricos apresenta condições
O livro de Lucia Mees (2001), Abuso sexual: semelhantes. Nestes contextos, as entrevis-
trauma infantil e fantasias femininas, forne- tas permitem a enunciação daquilo que per-
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ce-nos um exemplo dessa forma de conce- maneceu numa condição de mutismo (Costa
ber o uso da entrevista na pesquisa em e Pereira, 2004). Como é possível perceber,
psicanálise. Fruto de um trabalho realizado a pesquisa é também produção de uma ex-
num curso de mestrado em psicologia, Mees periência.
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realizou uma série de entrevistas com uma Que a partir destes testemunhos, obtidos
moça que havia sido abusada sexualmente através de entrevistas, o analista/
por seu pai. No seu trabalho, a autora situa pesquisador possa produzir e transmitir
as entrevistas a partir da definição de um avanços na teoria, isto se deve à sua
determinado campo conceitual. Não há, a inclusão nesta experiência pela
priori, uma questão ou uma hipótese pro- transferência. Trata-se, como já assinalamos
priamente falando. O que há é a pressupo- acima, do mesmo dispositivo em causa nas
sição de uma experiência, singularmente formações do inconsciente. O chiste é o
vivida, cuja transmissão em um contexto de mais ilustrativo dentre eles desta
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propriedade de inclusão e transmissão. Para to é esse terceiro velado que mantém um
que um chiste se produza é preciso não determinado encontro dos parceiros em cau-
apenas de duas pessoas – um que conta e sa. Nesse sentido, naquele momento pode
outro que escuta –, mas de um campo se construir algo a partir da estrutura discur-
compartilhado no qual o riso emerge. A siva estabelecida.
risada é, neste caso, o atestado da inclusão A estrutura do “terceiro ausente” pode ser
do ouvinte na narrativa e, ao mesmo tempo, ampliada para todas as situações de entre-
a pontuação do seu final, a atestação de vistas em psicanálise. Ela é operativa em si-
produção de um dado saber. Este saber tuações nas quais a comunicação fixa sujeito
pode ser transmitido, pode ser passado a e objeto como presenças na realidade. Tanto
outro(s), se as mesmas condições forem as entrevistas preliminares, quanto as en-
estabelecidas. trevistas-testemunho permitem uma quebra
Não estamos sublinhando, aqui, a condição dessa fixidez e a permeabilidade à inclusão
única do riso e sim da possibilidade de cons- do jogo simbólico.
tituição de uma estrutura. Esta é situada ba- Um outro modelo de entrevista é o das nar-
sicamente naquilo que Freud (1905) rativas de fim de análise, o dispositivo que
denominou de “terceiro ausente” de quem o Lacan denominou de “passe”. Lacan interes-
chiste trata. A simplicidade do objeto freu- sava-se por uma maneira de transmitir a
diano por meio do qual ele constrói suas hi- singularidade da experiência de um percur-
póteses (como são os sonhos e lapsos so de análise, por meio de um relato do
cotidianos) não deve nos iludir em relação analisante a testemunhas. Partiu do supos-
à sua facilidade. São estruturas complexas to de que a apropriação da experiência do
porque comportam hibridismos: símbolos, inconsciente, desse percurso pelo insabido,
imagens e sensações corporais. As forma- poderia ser autenticada e passada a público.
ções do inconsciente condensam num mes- O passe seria também uma maneira de saí-
mo ato esses hibridismos. Retomando da da redução à transferência com o próprio
rapidamente o texto freudiano sobre o chis- analista, o que situaria um fim de análise.
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te, o autor propõe diferenciar duas formas Independente das dificuldades que a expe-
de comicidade: quando alguém toma o outro riência do passe trouxe – principalmente de
como objeto de riso; ou quando duas pes- ordem político-institucional – a proposta é
soas riem de algo não explicitado, que ele inovadora e traz elementos importantes
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denominou de terceiro ausente de quem o para pensar em relação às condições de


chiste trata. Na primeira condição o outro é transmissão de algo singular à ordem cole-
objeto de meu riso; na segunda, os dois são tiva. Elementos estes que, como quisemos
parceiros de riso produzido por um terceiro destacar ao longo deste breve texto, cons-
elemento que permanece ausente, velado, tituem o eixo a partir do qual podem ser
não explicitado. Se estendermos as condi- considerados os diferentes dispositivos da
ções de entrevistas, é possível perceber que pesquisa em psicanálise.
na primeira condição o sujeito é tratado Cada um dos elementos destacados neste
como objeto, enquanto na segunda, o obje- texto merece maior desenvolvimento, ten-
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do em vista a sua complexidade e amplitu- 1967. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro : Jor-
de. Tratamos de situações de entrevista em ge Zahar, 2003.
que estamos diante da possibilidade de M EES, Lúcia. Abuso sexual: trauma infantil e
transmissão de algo singular – como é uma fantasias femininas. Porto Alegre: Artes e Ofí-
formação do inconsciente – ao âmbito públi- cios, 2001.
co. No caso específico da pesquisa em psica-
nálise, entender a entrevista com base na Artigo recebido em junho de 2006
estrutura da transferência e das formações Aprovado para publicação em novembro de 2006
do inconsciente, significa que o “tornar pú-
blico” é produzir modificações no campo psi-
canalítico; campo este que permite entender
o estreito enlace entre o trabalho clínico e
a produção de um novo saber sobre o sujei-
to do inconsciente. CARTA
Referências
COSTA, Ana. Corpo e escrita: relações entre me-
mória e transmissão da experiência. Rio de Ja-
neiro: Relume-Dumará, 2001.
COSTA, Ana e PEREIRA, Lúcia. A experiência do in-
consciente, transferência e transmissão da psi-
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canálise. Revista da Associação Psicanalítica de Carta Pulsional,
Porto Alegre. Porto Alegre, ano XI, n. 27, p. 159-
65, set./2004. com um mailing
FOUCAULT, M. (1966). As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas. São com 14.000 e-mails
Paulo: Martins Fontes, 1990.
da área psi.
pulsional > revista de psicanálise > artigos

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_____ (1922). Psicanalisis y teoria de la libi-
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do. In: Obras Completas. Madrid: Biblioteca Fones: (11) 3672-8345 •


Nueva, 1973. t. I.
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LACAN, J. (1964). O seminário. Livro 11. Os qua-
tro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio e-mail:
de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. divulga@pulsional.com.br
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Zahar, 1998. www.pulsional.com.br
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