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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Centro de Teologia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia

TEORIAS DA PERSONALIDADE
Professor: Ricardo Torri de Araújo

Rio de Janeiro - RJ
1º Semestre / 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

INTRODUÇÃO

“Minha vida, impregnada, tecida, unificada por uma obra,


foi centrada num objetivo:
o de penetrar no segredo da personalidade.
Tudo se explica a partir desse ponto central
e toda a minha obra se relaciona com esse tema”
(JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p.182).

[1] A psicologia da personalidade é uma área da psicologia.


[2] O marco de fundação dessa área é a publicação, em 1937, por Gordon Willard Allport
(1897-1967), da obra “Personality: a psychological interpretation” [“Personalidade: uma
interpretação psicológica”].
[3] Historicamente, a teoria da personalidade e a psicologia científica se desenvolveram, de
início, como duas tradições independentes. Os primeiros a se interessarem pela
personalidade foram os clínicos: os psiquiatras, os psicanalistas e os psicólogos
praticantes. Apenas tardiamente, a psicologia acadêmica voltou-se para o estudo científico
da personalidade.
[4] O objeto de estudo da psicologia da personalidade é a personalidade. Mas, o que é
personalidade?

[5] A um primeiro exame, a etimologia da


palavra não é muito feliz. “Personalidade”
vem de “persona”. “Persona”, por sua vez,
é o nome da máscara de teatro utilizada
por atores romanos, nos séculos I e II a.C.,
na encenação de dramas gregos antigos.
Ora, a máscara é uma figura de
empréstimo, aparente, externa,
superficial. Além disso, a máscara oculta a
verdadeira identidade de quem a utiliza. A
personalidade de uma pessoa, pelo
contrário, é o que ela tem de mais pessoal,
íntimo, subjetivo e, num certo sentido,
profundo. Ela se constitui na verdadeira
identidade de uma pessoa.
[6] No pensamento de Carl Gustav Jung (1875-1961), por exemplo, a persona é a
personalidade pública de uma pessoa, a sua fachada social; é a forma pela qual um
indivíduo se apresenta ao mundo no esforço de corresponder às expectativas que a
sociedade tem a seu respeito. Segundo Jung, a persona é necessária, mas o verdadeiro
núcleo da personalidade é o self, não a persona. Por isso, não é psicologicamente saudável
que o ego se identifique inteiramente com a persona. Ao fazê-lo, o indivíduo se aliena de si
mesmo e adoece psiquicamente.
[7] Há, contudo, uma forma positiva de encarar a etimologia da palavra “personalidade”.
De fato, a máscara oculta o ator, mas revela o personagem. E, numa encenação teatral, é
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isto o que importa: não o ator, mas o personagem que ele representa. Nessa medida, a
persona tem compromisso com a revelação – e não com o ocultamento – da verdade e
pode ser encarada positivamente.
[8] Independentemente da origem da palavra, o que os psicólogos entendem por
personalidade? A resposta é difícil. Na verdade, não há uma definição universalmente
aceita pelos estudiosos do tema.
[9] Em sua obra seminal de 1937, Allport propôs esta definição: “A personalidade é a
organização dinâmica, dentro do indivíduo, daqueles sistemas psicofísicos que
determinam seus ajustamentos únicos ao ambiente” (ALLPORT apud HALL; LINDZEY;
CAMPBELL, Teorias da personalidade, p.228).
[10] Em “Pattern and growth in personality” [“Personalidade: padrões e desenvolvimento”]
(1961), Allport modificou um pouco a sua definição: “A PERSONALIDADE É A
ORGANIZAÇÃO DINÂMICA, NO INDIVÍDUO, DOS SISTEMAS PSICOFÍSICOS QUE
DETERMINAM SEU COMPORTAMENTO E SEU PENSAMENTO CARACTERÍSTICOS”
(ALLPORT, Personalidade: padrões e desenvolvimento, p.50).
[11] Citadas as definições do “pai” da psicologia da personalidade, podem-se também
acrescentar as definições sugeridas por alguns autores de célebres manuais de psicologia
ou de teorias da personalidade.
[12] A personalidade é o “...padrão característico de pensar, sentir e agir de cada indivíduo”
(MYERS, Psicologia, p.421).
[13] A personalidade são “...padrões relativamente consistentes e duradouros de
percepção, pensamento, sentimento e comportamento que dão às pessoas identidade
distinta” (DAVIDOFF, Introdução à psicologia, p.504).
[14] A personalidade “...é um padrão de traços relativamente permanentes e de
características singulares, que confere, ao mesmo tempo, consistência e individualidade ao
comportamento de uma pessoa” (FEIST; FEIST, Teorias da personalidade, p.4).
[15] A personalidade é “...um agrupamento permanente e peculiar de características que
podem mudar em resposta a situações diferentes” (SCHULTZ; SCHULTZ, Teorias da
personalidade, p.6).
[16] A personalidade são “...‘aqueles aspectos relativamente estáveis e duradouros do
indivíduo que o distinguem de outras pessoas e, ao mesmo tempo, constituem a base de
nossas predições quanto ao seu futuro comportamento’” (WRIGHT et al. apud PECK;
WHITLOW, Teorias da personalidade, p.12).
[17] “A personalidade é aquilo que permite uma predição do que uma pessoa fará em uma
dada situação” (CATTELL apud HALL; LINDZEY; CAMPBELL, Teorias da personalidade,
p.258).
[18] É possível extrair das definições acima elencadas algumas características da
personalidade. Com efeito, pode-se afirmar que ela é: (a) integrada, (b) consistente, (c)
mutável, (d) distintiva do indivíduo e (e) determinante em relação ao seu comportamento.
Noutras palavras, a personalidade é o conjunto organizado das características
relativamente estáveis de uma pessoa que a distingue das outras pessoas e que responde
pelo seu modo habitual de se comportar.
[19] A personalidade é, portanto, o que explica o comportamento de uma pessoa, podendo,
inclusive, ajudar a predizê-lo. As teorias da personalidade são, nessa medida, teorias gerais
do comportamento.
[20] Vale o registro de que B. F. Skinner (1904-1990) considera improcedente explicar o
comportamento dos organismos com base no conceito de personalidade. Em sua opinião, a
personalidade é uma ficção explanatória. O que os psicólogos chamam de “personalidade”
não é outra coisa senão o conjunto das respostas costumeiras de um organismo, o seu
sistema de hábitos. E esses comportamentos são, todos eles, aprendidos e mantidos pelas
suas consequências – isto é, por reforço e punição.

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[21] Por outro lado, não são poucos os autores que recorrem ao conceito de personalidade
na tentativa de explicar o comportamento humano. Um curso de Psicologia da
Personalidade, naturalmente, reconhece o valor explicativo do referido conceito.
[22] Assim como as definições de personalidade são várias, são também numerosas as
teorias da personalidade.
[23] Por que há tantas teorias da personalidade? Há, pelo menos, três maneiras de
responder a essa pergunta. (a) Porque a psicologia da personalidade encontra-se ainda
num estágio inicial, pré-paradigmático, de desenvolvimento. (b) Porque a personalidade
humana é alguma coisa muito complexa, multifacetada, sendo necessários vários enfoques
para abarcá-la. (c) Porque há vários teóricos da personalidade; dado o caráter
autobiográfico das teorias da personalidade, com a sua abordagem, cada teórico oferece o
seu autorretrato.
[24] Talvez se possa afirmar que cada teoria da personalidade tenha a sua parcela de
verdade. Por conseguinte, a relação entre as várias teorias seria de complementaridade,
não de exclusão. Esse parecer é comum entre os autores de manuais de psicologia da
personalidade.

[25] Na introdução do manual em que apresentam 12 teorias da personalidade, James


Fadiman e Robert Frager avisam: “Acreditamos que cada uma das teorias que
apresentamos neste livro tem um valor e uma relevância únicos. Cada grande teórico
isolou e esclareceu certos aspectos particulares da natureza humana. Sentimos que cada
um deles está essencialmente ‘correto’ na área que examinou com maior cuidado. O único
erro em que a maioria tem incorrido é argumentar que a sua é a melhor e a única resposta
abrangente. As principais discordâncias entre os teóricos da personalidade com freqüência
parecem assemelhar-se à história do cego e do elefante. [...] Acreditamos que cada teórico
tem uma compreensão profunda de uma parte do todo, mas, às vezes, ao invés de
reconhecer que é apenas uma parte, ele tenta convencer os outros de que a porção que
abrange é ou a mais importante ou o elefante inteiro” (FADIMAN; FRAGER, Teorias da
personalidade, p.xvii).
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[26] Depois de percorrer 13 teorias da personalidade, Calvin S. Hall, Gardner Lindzey e
John B. Campbell concluem: “...em cada caso descobrimos algo a aprovar ou admirar”
(HALL; LINDZEY; CAMPBELL, Teorias da personalidade, p.492); “...as teorias da
personalidade possibilitam construções alternativas da personalidade, nenhuma das quais
está completamente certa ou errada, cada uma das quais tem diferentes forças e fraquezas,
e cada uma das quais enfatiza diferentes componentes do comportamento” (HALL;
LINDZEY; CAMPBELL, Teorias da personalidade, p.39).
[27] Tendo escolhido oito perspectivas sobre a personalidade, Howard S. Friedman e
Miriam W. Schustack escrevem: “...todas oferecem alguns insights psicológicos
importantes sobre o que significa ser uma pessoa. [...] podemos tirar proveito do
aprendizado das potencialidades (e das fragilidades) de todas as oito perspectivas. [...]
cada uma dessas perspectivas enriquece nossa compreensão da personalidade” (FRIEDMAN;
SCHUSTACK, Teorias da personalidade, p.9).
[28] Por fim, Duane P. Schultz e Sydney Ellen Schultz afirmam: “Podemos pensar em cada
um desses teóricos [da personalidade] como peças que contribuem para a construção de
um grande quebra-cabeça” (SCHULTZ; SCHULTZ, Teorias da personalidade, p.3); “...todas
elas [as teorias da personalidade] discutem fatores que são influentes, até certo ponto, na
formação da personalidade. Cada um dos teóricos contribuiu com peças vitais ao quebra-
cabeça” (SCHULTZ; SCHULTZ, Teorias da personalidade, p.409); “...cada teoria que
discutimos contribuiu para acrescentar algo a essa questão vital [o estudo da
personalidade]. [...] todas elas acrescentaram algo ao nosso entendimento” (SCHULTZ;
SCHULTZ, Teorias da personalidade, p.417).
[29] Embora reconhecendo o valor de cada teoria, não se trata simplesmente de justapô-
las, fazendo delas uma somatória, para se chegar a uma perspectiva abrangente sobre a
personalidade. Há diferenças importantes entre as várias teorias. Algumas talvez sejam
compatíveis; outras, porém, são simplesmente irreconciliáveis.
[30] A natureza humana é boa ou má? Qual é a principal força motivadora da psicologia
humana? A personalidade é inata ou adquirida? O que exerce mais influência sobre a
formação da personalidade: a herança genética ou os fatores sociais? O ser humano é livre
ou determinado? Há processos psicológicos inconscientes? Em havendo, em que extensão
eles influenciam o comportamento humano? Em seu agir, o homem é movido por fatores
racionais ou irracionais? O comportamento humano é decidido por causas pretéritas ou
por metas futuras? O que tem mais peso: as experiências da infância ou os eventos
contemporâneos? A personalidade já está estruturada ao cabo da primeira infância ou
pode se modificar nos anos posteriores? O que merece mais atenção: a doença mental ou o
bom funcionamento psíquico? Como abordar a personalidade: de uma forma atomista ou
numa perspectiva holista? Privilegiando a singularidade ou as características comuns? Eis
algumas questões que dividem – de forma nem sempre harmonizável – os teóricos da
personalidade.
[31] Além da diversidade de teorias, outro aspecto da psicologia da personalidade em que
se constata certa variedade são os métodos de avaliação.
[32] Entre os métodos utilizados pelos teóricos da personalidade, estão: as entrevistas
clínicas, os testes objetivos – entre os quais, o MMPI [Minnesota Multiphasic Personality
Inventory (Inventário Multifásico de Personalidade Minnesota)], o MBTI [Myers-Briggs
Type Indicator (Indicador de Tipo Myers-Briggs)], a técnica Q etc. –, e os testes projetivos
– entre os quais, o teste de Rorschach, o TAT [Thematic Apperception Test (Teste de
Apercepção Temática)], o teste de associação de palavras, o teste de completar sentenças,
os desenhos etc. Pode-se ainda mencionar: a análise de documentos, as observações
comportamentais, a interpretação do comportamento expressivo etc.
[33] Para concluir, uma pergunta: qual é o interesse de estudar psicologia da
personalidade? Por que dedicar-se a isso? A resposta óbvia é: para compreender melhor
porque as pessoas são como são e ajudá-las a resolver os seus problemas psicológicos.
Certo... mas há mais do que isso envolvido.
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[34] Quem quer que se interesse por psicologia está interessado, antes de tudo, em
conhecer-se melhor, em entender um pouco mais a própria personalidade: “...pessoas com
algum tipo de problema psicológico tendem a estudar psicologia” (FRIEDMAN; SCHUSTACK,
Teorias da personalidade, p.507).
[35] O depoimento é de Viktor Frankl (1905-1997): “Eu, como psiquiatra, estou convencido
de que, a menos que tenhamos encontrado, em nós mesmos, ao menos um pouco de
neurose, nós, sequer, teríamos nos tornado psiquiatras, porque não teríamos tido, para
começo de história, interesse em nossa ciência” (FRANKL, A vontade de sentido, p.167).
[36] Ora, estudar a teoria da personalidade vem diretamente ao encontro dessa motivação.
Antes de qualificar quem o faz para prestar serviços psicológicos a outras pessoas, estudar
a personalidade humana é fazer um esforço de autocompreensão. Pode-se, pois, afirmar:
“Dedicar-se ao estudo da psicologia da personalidade é, necessàriamente, admitir a si
próprio como objeto de estudo” (BRASIL, Curso de psicologia da personalidade, p.17). E
uma aventura como essa não tem como não ser interessante...

Referências bibliográficas:
1. ALLPORT, Gordon W. Personalidade: padrões e desenvolvimento. 2.ed. São Paulo:
EPU, Editora da Universidade de São Paulo, 1973. 724p. (Ciências do comportamento.)
2. BRASIL, Maria Auxiliadora de Souza. Curso de psicologia da personalidade. Belo
Horizonte: Lê, 1971. 156p.
3. DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia; terceira edição. São Paulo: Makron
Books, 2001. 800p.
4. FADIMAN, James; FRAGER, Robert. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra,
2002. 396p.
5. FEIST, Jess; FEIST, Gregory J. Teorias da personalidade. São Paulo: McGraw-Hill,
2008. 636p.
6. FRANKL, Viktor E. A vontade de sentido; fundamentos e aplicações da logoterapia.
São Paulo: Paulus, 2011. 240p. (Logoterapia.)
7. FRIEDMAN, Howard S.; SCHUSTACK, Miriam W. Teorias da personalidade; da
teoria clássica à pesquisa moderna. 2.ed. São Paulo: Pearson, 2011. 556p.
8. HALL, Calvin S.; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. Teorias da personalidade.
4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. 592p.
9. JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
364p.
10. MYERS, David G. Psicologia; nona edição. Rio de Janeiro: LTC, 2012. 668p.
11. PECK, David; WHITLOW, David. Teorias da personalidade. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976. 152p. (Curso básico de psicologia.)
12. SCHULTZ, Duane P.; SCHULTZ, Sydney Ellen. Teorias da personalidade. 2.ed. São
Paulo: Cengage Learning, 2013. 480p.
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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

Psicanálise e caráter
Psicanálise, uma teoria da personalidade?

[1] Num curso de psicologia da personalidade, cabe tratar de psicanálise? Noutras


palavras, a psicanálise é uma teoria da personalidade?
[2] Alguns estudiosos entendem que não; outros, porém, que sim.
[3] De saída, vale o registro de que, em “A história do movimento psicanalítico” (1914),
Sigmund Freud (1856-1939) afirmou: “A psicanálise jamais pretendeu oferecer uma teoria
completa da atividade mental humana em geral...” (FREUD, A história do movimento
psicanalítico, in FREUD, A história do movimento psicanalítico, Artigos sobre
metapsicologia e outros trabalhos, p.64) – o que equivale a dizer: jamais ambicionou
constituir-se numa psicologia geral ou, talvez, numa teoria da personalidade.
[4] Ao longo da sua obra, Freud utilizou a palavra “personalidade” algumas vezes.
[5] A palavra “personalidade” consta do título da tese de doutorado de Jacques Lacan
(1901-1981): “Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade” (1932).
[6] Contudo, não se pode dizer que a noção de “personalidade” seja um conceito
psicanalítico.
[7] Por outro lado, vários autores não hesitam em tratar a psicanálise como se ela fosse
uma teoria da personalidade.
[8] Nos manuais de psicologia da personalidade, em particular, a primeira teoria
apresentada costuma ser a psicanalítica.
[9] Alguns estudiosos consideram a teoria freudiana do aparelho psíquico – a primeira e a
segunda tópicas – como uma teoria da personalidade.
[10] E essa opinião parece autorizar-se pelo fato de que a “Conferência XXXI” das “Novas
conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933) – que trata da divisão do psiquismo
em ego, id e superego – tenha por título “A dissecção da personalidade psíquica” (o grifo é
nosso; cf. FREUD, Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, in FREUD, Novas
conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos, p.75).
[11] Outros, por fim, entendem a teoria freudiana do caráter como uma teoria da
personalidade.
[12] Deixaremos aberta essa questão; o nosso objetivo era apenas fazer notar a sua
existência.
[13] Se a teoria psicanalítica em seu conjunto ou a teoria freudiana do aparelho psíquico
equivalem a uma teoria da personalidade, esse é um ponto controverso.
[14] Há, contudo, na teoria psicanalítica, indiscutivelmente, uma teoria do caráter. E essa
teoria nos interessa. O que se segue é dedicado a ela.
[15] Para apresentá-la, contaremos não apenas com o recurso a Freud, mas também com
as contribuições de alguns dos seus discípulos.

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Uma caracterologia psicanalítica

[16] Segundo a teoria psicanalítica, o caráter encontra a sua origem na sexualidade infantil.
[17] Antes de atingir a sexualidade adulta, o indivíduo passa por um processo de
desenvolvimento. A evolução psicossexual comporta fases sucessivas: oral, anal, fálica,
latência e genital. Ao longo desse percurso, pode haver fixações. Tendo se fixado a uma
etapa, deparando-se com alguma dificuldade posterior, o indivíduo tende a regredir ao
ponto de fixação previamente estabelecido. Satisfação insuficiente ou gratificação excessiva
podem ocasionar fixações.
[18] Os traços de caráter, por sua vez, advêm de impulsos libidinais infantis – ou seja, pré-
genitais – transformados por mecanismos de defesa. A sublimação e a formação reativa
são os mecanismos que atuam na formação do caráter.
[19] A sublimação consiste na satisfação de um impulso libidinal por meio de atividades
não-sexuais e socialmente valorizadas. Trata-se do mecanismo predominante na formação
do caráter normal.
[20] A formação reativa consiste no desenvolvimento de uma atitude em sentido oposto a
um impulso sexual recalcado. Esse mecanismo costuma concorrer para que o caráter
assuma uma feição patológica.

O caráter oral

[21] Em 1924, Karl Abraham (1877-1925) publicou “A


influência do erotismo oral na formação do caráter”.
Tomando as ideias de Freud como ponto de partida, ele
contribuiu de forma importante para a compreensão do
caráter oral.
[22] A primeira fase da evolução psicossexual é a fase
oral. Ela tem lugar durante o primeiro ano de vida, no
qual a criança é amamentada.
[23] A zona erógena da fase oral é a boca – isto é, a
cavidade oral e as regiões circunvizinhas: os lábios, a
língua, os dentes etc.
[24] A forma típica de prazer da fase oral é aquela
ligada à excitação da boca. Trata-se, pois, da satisfação
de comer, ingerir, engolir, incorporar, sugar, chupar,
lamber, cuspir, morder, mastigar, mascar etc.
[25] O objeto próprio da fase oral é o seio da mãe.
[26] Na fase oral, é possível reconhecer duas subfases: a fase oral incorporativa e a fase
oral agressiva.
[27] A fase oral incorporativa centra-se no prazer da sucção e da ingestão.
[28] A fase oral agressiva – também chamada sádico-oral ou oral-canibálica – coincide
com o surgimento dos dentes e está ligada ao prazer de morder. Essa subfase inclui,
portanto, a satisfação de impulsos hostis.
[29] Pessoas supersatisfeitas ou privadas oralmente podem se fixar na fase oral.
[30] Entre os sinais de uma fixação desse tipo, estão: o apreço demasiado por comer,
beijar, beber, fumar; a tendência a chupar balas, mascar chicletes, morder lápis, mordiscar
constantemente alguma coisa; a predileção pelo sexo oral etc.
[31] Uma pessoa pode fixar-se na fase oral incorporativa ou na fase oral agressiva,
desenvolvendo, por conseguinte, o caráter correspondente.
[32] Havendo fixação na fase oral incorporativa, é possível identificar dois tipos: o tipo oral
satisfeito e o tipo oral insatisfeito.
[33] Traços de caráter do tipo oral satisfeito: autoconfiança, otimismo, despreocupação,
dependência, passividade, inatividade, ingenuidade, credulidade etc.
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[34] Traços de caráter do tipo oral insatisfeito: pessimismo, negativismo, avidez,
consumismo, atitude de pedinte, comportamento de sanguessuga etc.
[35] A fixação também pode acontecer na fase oral agressiva. Traços de caráter do tipo
sádico-oral: uso agressivo da fala, sarcasmo, mordacidade, língua ferina, maledicência,
fofoca, malícia, vampirismo etc.

O caráter anal

[36] Freud se interessou especialmente pelo caráter anal. Entre os textos que dedicou ao
assunto, cumpre destacar: “Caráter e erotismo anal” (1908) e “As transformações do
instinto exemplificadas no erotismo anal” (1917).
[37] Abraham publicou o artigo “Contribuições à teoria do caráter anal” (1921). Outros
psicanalistas – como Isidor Sadger (1867-1942), Sándor Ferenczi (1873-1933) e Ernest
Jones (1879-1958) – também contribuíram para a compreensão psicanalítica do caráter
anal.
[38] Talvez os psicanalistas tenham se interessado especialmente pelo caráter anal porque
ele é mais marcado do que o caráter oral. A configuração mais definida do caráter anal
decorre do fato de que o erotismo correspondente é mais censurado do que o oral.
Consequentemente, os elementos anais da sexualidade são transformados em traços de
caráter numa proporção maior do que os elementos orais.
[39] A fase anal é a segunda fase da evolução psicossexual. Ela tem lugar durante o
segundo ano de vida, quando começa o treinamento de toalete.
[40] A zona erógena da fase anal é o ânus.
[41] Nessa fase, o prazer passa a ser buscado preferencialmente na função excretória. A
criança experimenta, então, o prazer de defecar, o prazer de reter as fezes, adiando a
evacuação, bem como o prazer de ver, sentir o cheiro e brincar com as próprias fezes.
[42] O objeto da fase anal são as fezes.
[43] As crianças pequenas têm um grande apreço pelas fezes que produzem. O primeiro
presente que uma criança dá a alguém por ela amada são os seus excrementos.
[44] Na fase anal, é possível identificar duas subfases: a fase anal precoce, em que a criança
obtém prazer evacuando, e a fase anal tardia, em que o prazer é encontrado na retenção.
[45] Consequentemente, há o tipo anal-expulsivo e o tipo anal-retentivo. Esse último é
mais típico e foi descrito por Freud mais pormenorizadamente.
[46] Os traços caracterológicos anais são expressões da obediência e/ou da resistência ao
treinamento de toalete. Os traços do caráter anal resultam da sublimação de impulsos
eróticos anais ou de formações reativas contra os mesmos impulsos.
[47] O tipo anal-retentivo costuma apresentar três características principais: a ordem, a
parcimônia e a obstinação.
[48] Ordem: amor à ordem, temperamento ordeiro, hábito de manter tudo muito
organizado, gosto pela simetria, obsessão por limpeza, asseio pessoal, esmero individual,
apego à minúcia, meticulosidade, precisão, exatidão, pontualidade, regularidade,
conscienciosidade, escrupulosidade, correção, fidedignidade, formalismo, etc.
[49] Esses traços de caráter são uma expressão da obediência ao treinamento de toalete,
podendo ser também encarados como formações reativas contra o impulso de sujar-se com
as próprias fezes.
[50] Eventualmente, porém, uma pessoa de caráter anal-retentivo pode mostrar-se
excepcionalmente desorganizada, suja ou impontual, o que aponta para uma dinâmica
conflitiva.
[51] Parcimônia: ambição, cobiça, cupidez, usura, desejo de enriquecer, amor ao dinheiro,
avareza, sovinice, economia, frugalidade, mesquinhez, falta de generosidade, tendência a
acumular, prazer de possuir, apreço pela propriedade, colecionismo, tendência a guardar
objetos, gosto por arquivar, dificuldade para desfazer-se de quinquilharias, tendência a ser
mesquinho com o tempo etc.
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[52] Esses traços de caráter são uma expressão do hábito de retenção e acúmulo das fezes.
Equivalem a uma prisão de ventre psicológica.
[53] Obstinação: teimosia, perseverança, apego à própria vontade, insistência no próprio
querer, costume de aferrar-se ao próprio parecer, tendência a manter a própria posição a
despeito dos outros etc.
[54] Esses traços são uma expressão da rebeldia contra o treinamento de toalete;
manifestam a teimosia em não defecar, afirmando a própria vontade.
[55] Além do tipo anal-retentivo, há também o tipo anal-expulsivo. Caracterizam-no:
criatividade, produtividade, generosidade, magnanimidade, tendência ao desperdício,
franqueza, prazer de pintar e modelar, tendência à sujeira, desleixo, gosto pela desordem
etc.
[56] O tipo anal expulsivo pode também ganhar uma feição agressiva. Nesse caso,
caracterizam o seu comportamento a hostilidade, a destrutividade, a crueldade, o sadismo
etc.
[57] Por tudo o que ficou dito nesta seção, é fácil perceber que há uma estreita relação
entre o caráter anal e a neurose obsessivo-compulsiva.

O caráter fálico

[58] O caráter fálico é o mais sumariamente caracterizado dos três caráteres identificados
pela teoria psicanalítica.
[59] Na fase fálica, apenas um órgão sexual é reconhecido: o órgão sexual masculino, ou
seja, o pênis.
[60] O indivíduo de caráter fálico sente-se possuidor de um objeto onipotente ou sente-se,
ele mesmo, onipotente, pela identificação do ego ao falo.
[61] O caráter fálico apresenta, pois, as seguintes características: ambição, aspiração pelo
poder, autoconfiança, segurança de si mesmo, sentimento de invulnerabilidade,
narcisismo, egocentrismo, tendência enérgica a conquistar posições de liderança, decisão,
coragem, arrojo, valentia, audácia, intrepidez, agressividade, disposição para enfrentar
desafios, competitividade, hiper-masculinidade, orgulho, arrogância, ostentação,
exibicionismo etc.

O caráter social

[62] Antes de concluirmos, talvez valha a pena ampliar


o alcance das considerações acima tecidas.
[63] Segundo Erich Fromm (1900-1980) – autor, entre
muitos outros livros, de “O medo à liberdade” (1941) e
de “Psicanálise da sociedade contemporânea” (1955) –,
além do caráter individual, há também o caráter social.
[64] O caráter social é o caráter compartilhado pela
maioria dos indivíduos de uma mesma sociedade.
[65] O caráter social é produzido pela sociedade de
acordo com os interesses da sua estrutura
socioeconômica. Fruto da interiorização de
necessidades externas, a função do caráter social é
modelar a personalidade dos indivíduos de forma que
eles tendam a se comportar do jeito que se espera que
se comportem.
[66] O caráter social decorre, portanto, do ajustamento
do indivíduo às expectativas da sociedade em que vive.
[67] Novas condições econômicas podem exigir um novo caráter social. Segundo Fromm,
isso pôde ser observado recentemente. Em meados do século passado, a orientação
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acumulativa das sociedades industriais cedeu lugar a uma orientação predominantemente
consumista. Consequentemente, o caráter oral tornou-se mais interessante, do ponto de
vista social, do que o caráter anal.
[68] Dando continuidade a essa linha de pensamento, em 1973, Michael Schneider (1943-)
publicou “Neurose e classes sociais”.
[69] Segundo Schneider, na esfera da produção, o caráter anal é, sem dúvida, o caráter
social mais adequado. Na esfera do consumo, porém, outra espécie de caráter se mostra
mais apropriada, o caráter oral. Houve um momento na história do capitalismo em que a
ênfase recaiu sobre a produção. Nessa etapa, o caráter social requerido era o caráter anal-
retentivo. Em seguida, a ênfase deslocou-se da produção para o consumo. O caráter oral-
consumista tornou-se, então, o novo caráter social.
[70] Schneider observa que, no consumo, o que está em jogo não é o valor de uso do
produto, mas os seus valores imaginários. Ou seja, ao comprar um artigo, o consumidor
não adquire simplesmente um bem que satisfaz a uma necessidade determinada. Ao
adquirir uma mercadoria, o comprador não compra o produto, mas a embalagem que o
reveste, não a coisa, mas a sua aparência, bem como as ideias que a propaganda associa ao
artigo comercializado. As mercadorias são dotadas de uma aura de associações, tornam-se
verdadeiros fetiches e são investidas libidinalmente pelos consumidores.
[71] Por fim, numa abordagem afim, em 1983, Yiannis Gabriel (1952-) publicou “Freud e a
sociedade”.
[72] Para Gabriel, nas sociedades ocidentais, depois da Segunda Guerra Mundial, as
neuroses transferenciais – dominantes no tempo de Freud – foram ofuscadas por
distúrbios da personalidade associados ao narcisismo. A cultura contemporânea é uma
cultura do narcisismo. E o narcisista moderno tem um caráter oral. Ele enriquece o seu ego
e exerce a sua oralidade na esfera do consumo.
[73] Eis como a coisa funciona. A publicidade e a propaganda associam às mercadorias
disponíveis para o consumo uma série de valores imaginários. Sob a influência disso, o
narcisista dos nossos dias investe a sua libido nesses objetos. E, ao comprar um produto,
ele incorpora ao seu ego os supostos valores atribuídos pela sociedade capitalista às
mercadorias. Ou seja, ele incrementa a sua autoimagem por meio da aquisição imaginária
das qualidades associadas aos objetos que consome. Essa incorporação se dá à maneira da
experiência oral primitiva. O consumo, porém, embora, por um momento, lhe empanturre
o ego, longe de preencher o seu vazio interior, só faz aumentá-lo ainda mais. Daí a
necessidade de consumir mais, a compulsão ao consumo em que o narcisista moderno se
vê enredado.

10
Bibliografia
1. ABRAHAM, Karl. A formação do caráter no nível genital do desenvolvimento da libido.
In: _______. Teoria psicanalítica da libido; sôbre o caráter e o desenvolvimento da
libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970. p.195-205.
2. ABRAHAM, Karl. A influência do erotismo oral na formação do caráter. In: _______.
Teoria psicanalítica da libido; sôbre o caráter e o desenvolvimento da libido. Rio de
Janeiro: Imago, 1970. p.161-173.
3. ABRAHAM, Karl. Contribuições à teoria do caráter anal. In: _______. Teoria
psicanalítica da libido; sôbre o caráter e o desenvolvimento da libido. Rio de Janeiro:
Imago, 1970. p.174-195.
4. FENICHEL, Otto. Teoria psicanalítica das neuroses. Rio de Janeiro; São Paulo:
Livraria Atheneu, 1981. 672p. (Psicologia, psicanálise, psicoterapia, parapsicologia.)
5. FREUD, Sigmund. A disposição à neurose obsessiva; uma contribuição ao problema da
escolha da neurose. In: _______. O caso de Schreber, Artigos sobre técnica e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, s.d.. p.391-409. (Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud; 12.)
6. FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico. In: _______. A história do
movimento psicanalítico, Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1974. p.11-119. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud; 14.)
7. FREUD, Sigmund. As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal. In:
_______. História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. p.155-166. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud; 17.)
8. FREUD, Sigmund. Caráter e erotismo anal. In: _______. ‘Gradiva’ de Jensen e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.171-181. (Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud; 9.)
9. FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In: _______.
Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. p.11-220. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud; 22.)
10. FROMM, Erich. Apêndice: O caráter e o processo social. In: _______. O medo à
liberdade. 13.ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.219-235.
11. FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6.ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1970. 352p. (Biblioteca de ciências sociais.)
12. GABRIEL, Yiannis. Freud e a sociedade. Rio de Janeiro: Imago, 1988. 406p.
(Analytica.)
13. REIS, Alberto O. Advincula. Teorias da personalidade em Sigmund Freud. In: REIS,
Alberto O. Advincula; MAGALHÃES, Lúcia Maria Azevedo; GONÇALVES, Waldir
Lourenço. Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. 7.ed. São Paulo: EPU,
2005. p.1-61. (Temas básicos de psicologia; 7.)
14. SCHNEIDER, Michael. Neurose e classes sociais; uma síntese freudiano-marxista. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1977. 362p. (Psyche.)

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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

Alfred Adler
[1] Alfred Adler (1870-1937) é o descobridor do complexo de inferioridade e o criador da
psicologia individual.
[2] Adler costuma ser apresentado como um discípulo dissidente de Sigmund Freud (1856-
1939), mais exatamente, como o primeiro desertor da psicanálise, como o responsável pela
cisão inaugural da turbulenta história do movimento psicanalítico.
[3] Ele próprio, contudo, não se reconhecia nessa descrição. Asseverava que nunca fora
propriamente um discípulo de Freud. Possuía já as suas próprias ideias antes de se
associar ao criador da psicanálise. Por algo em torno de uma década, colaboraram. Mas,
desde o começo, discordou de Freud sobre diversos pontos, manifestando sempre
claramente a sua divergência.

Cronologia da vida

[4] 7 de fevereiro de 1870: Nasce, em Viena,


Alfred Adler.
[5] Alfred foi uma criança frágil e enfermiça. Não
possuía boa aparência, tinha baixa estatura e era
mau aluno. Tinha um irmão mais velho, o qual
era forte e saudável. O seu nome, Sigmund...
[6] 1895: Forma-se em medicina pela
Universidade de Viena.
[7] 1898: Casa-se com Raissa Epstein (1872-
1962), nascida em Moscou, feminista e
comunista.
[8] 1900: Lê “A interpretação de sonhos”, recém-
publicada, e se interessa pelas ideias de Freud.
[9] 1902: Freud convida Adler, Wilhelm Stekel
(1868-1940) e outros dois médicos vienenses
para reunirem-se em sua casa, nas noites de
quarta-feira, a fim de discutirem problemas de
psicologia. Surge, assim, a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras.
[10] 1904: Judeu de nascimento, Adler se converte – mais por conveniência do que por
convicção – ao protestantismo.
[11] 1908: Contando já com uns 20 membros, a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras
passa a se chamar “Sociedade Psicanalítica de Viena”.
[12] 1910: Funda-se a Associação Internacional de Psicanálise. Com o apoio de Freud, Carl
Gustav Jung (1875-1961) é eleito o seu primeiro presidente.
[13] 1910: Adler é eleito presidente da Sociedade Psicanalítica de Viena; Stekel, vice-
presidente.
12
[14] 1911: Freud e Adler rompem relações. Adler é expulso da Sociedade Psicanalítica de
Viena, levando consigo alguns seguidores.
[15] 1912: Adler funda a Sociedade de Psicanálise Livre. No mesmo ano, o novo grupo
passa a denominar-se “Sociedade de Psicologia Individual”.
[16] A cafeteria Siller torna-se o “clube” dos psicólogos adlerianos, passando a funcionar
como o ponto de encontro dos praticantes da psicologia individual.
[17] 1912: Freud e Stekel rompem relações.
[18] 1912: Após as saídas de Adler e Stekel e durante a crise que terminaria com a defecção
de Jung, funda-se um comitê secreto com o objetivo de defender a causa psicanalítica.
Além de Freud, o grupo conta com Ernest Jones (1879-1958) – o autor da ideia –, Sándor
Ferenczi (1873-1933), Otto Rank (1884-1939), Karl Abraham (1877-1925), Hanns Sachs
(1881-1947) e Max Eitingon (1881-1943) – este último, a partir de 1919.
[19] 1913: Freud e Jung rompem relações.
[20] Granville Stanley Hall (1844-1924) convida Adler para fazer conferências na
Universidade Clark, nos Estados Unidos. Explode a Primeira Grande Guerra, impedindo a
viagem de Adler.
[21] 1914-1918: Durante a Primeira Guerra Mundial, Adler serve como médico do exército
austríaco.
[22] Entreguerras: Adler funda dezenas de clínicas de orientação infantil em escolas
públicas de Viena e outras cidades. Orienta também a criação de uma escola experimental
na capital austríaca, onde são aplicadas as suas ideias sobre educação.
[23] Adler dedica-se, com grande sucesso, à difusão da psicologia individual. Viaja
frequentemente, profere inúmeras conferências, publica livros diversos. Em vários países,
surgem grupos de psicologia individual.
[24] 1925 a 1927: Depois de “flertar” com a psicanálise, Viktor Emil Frankl (1905-1997)
torna-se membro da Sociedade de Psicologia Individual.
[25] 1926: Adler faz a sua primeira viagem aos Estados Unidos da América.
[26] Profere conferências na Universidade de Columbia e na Nova Escola para a Pesquisa
Social, ambas em Nova York.
[27] 1932: Torna-se professor visitante de psicologia médica na Faculdade de Medicina de
Long Island, em Nova York.
[28] 1934: Com a ascensão do nazismo, as clínicas de orientação infantil fundadas por
Adler são fechadas. Adler muda-se para Nova York.
[29] 28 de maio de 1937: Em meio a uma viagem de palestras, morre Alfred Adler, aos 67
anos, em Aberdeen, na Escócia, vítima de um ataque cardíaco.
[30] 1º de setembro de 1939: A Alemanha invade a Polônia. Tem início a Segunda Grande
Guerra. O conflito armado desmantela toda a estrutura da psicologia individual edificada
por Adler na Europa.

Algumas obras

[31] Ao longo de três décadas, contando livros e artigos, Adler publicou algo em torno de
100 títulos. Segue-se uma pequena amostra.
[32] 1907: “Studie über Minderwertigkeit von Organen” [“Estudo sobre a inferioridade de
órgãos”] – em francês, “Étude sur l’infériorité des organes” ou “La compensation
psychique de l’état d’infériorité des organes”.
[33] 1912: “Über den nervösen Charakter” [“Sobre o caráter neurótico”] – em francês, “Le
tempérament nerveux”.
[34] 1914:“Heilen und Bilden” [“Curar e educar”] – em francês, “Guérir et instruire”.
[35] 1920: “Praxis und Theorie der Individualpsychologie” [“Prática e teoria da psicologia
individual”] – em francês, “Pratique et théorie de la psychologie individuelle”.
[36] 1927: “Menschenkenntnis” [“Conhecimento do homem”] – em francês, “Connaissance
de l’homme”.
13
[37] 1930: “Die Technik der Individualpsychologie” [“A técnica da psicologia individual”] –
em francês, “La technique de la psychologie individuelle”.
[38] 1933: “Der Sinn des Lebens” [“O sentido da vida”] – em francês, “Le sens de la vie”.

A psicologia individual

[39] “Psicologia individual” é o nome que Adler escolheu para a sua abordagem em
psicologia. “Individual” não significa “individualista”. A expressão tem em vista a unidade
e a unicidade de cada pessoa. Ou seja, primeiramente, o fato de que cada pessoa é una
(indivisível). E, em segundo lugar, o fato de que cada pessoa é única (singular), possuindo
um estilo de vida próprio.
[40] A psicologia adleriana é, portanto, uma psicologia holista e diferencial.
[41] Além desses dois aspectos, sugeridos pelo seu próprio nome, a psicologia individual de
Adler apresenta ainda algumas características gerais que podem ser, desde já, apontadas.
[42] Determinismo ou liberdade? O ser humano é livre. Ele sofre a influência da
hereditariedade e do meio. Mas permanece livre para, servindo-se dessa matéria-prima,
moldar a própria personalidade. Cada indivíduo cria o seu próprio estilo de vida. E é
responsável por ele.
[43] Prazer ou poder? A luta pela superioridade – e não a sexualidade – é o motivo
principal do comportamento humano.
[44] Inconsciente ou consciente? Geralmente falando, as pessoas sabem o que fazem e por
que o fazem. O indivíduo é uno, e não dividido; é consciente, e não movido por impulsos
inconscientes.
[45] Fatores biológicos ou sociais? O ser humano tem uma natureza social; o homem é um
ser social. Na psicologia humana, os fatores de ordem social têm muito maior importância
do que os de natureza instintiva.
[46] Causa ou finalidade? Para compreender o comportamento de uma pessoa, as suas
expectativas em relação ao futuro são mais relevantes do que a sua experiência de vida
passada. Não se deve perguntar “por quê?”, mas “para quê?”; não “de onde vem?”, mas
“para onde vai?”. A psicologia adleriana é, portanto, uma psicologia teleológica, não
arqueológica, finalista, não causalista.
[47] Como se vê, a psicologia individual de Adler é a antítese da psicanálise de Freud. Em
todas as alternativas acima relacionadas, Freud está de um lado, e Adler do outro.

O dinamismo inferioridade-superioridade

[48] A teoria de Adler é uma teoria simples. Ela gravita em torno de um dinamismo
fundamental: a luta pela superioridade como compensação para o sentimento de
14
inferioridade. No final de sua vida, Adler deu-se conta da importância de um segundo
fator: o interesse social. Comecemos, porém, pelo dinamismo identificado por Adler já no
começo de sua carreira.
[49] Esquematicamente, a dinâmica inferioridade-superioridade pode ser pensada em
duas condições: o funcionamento normal e o adoecimento psíquico. Nos termos seguintes.
[50] Dinâmica do funcionamento normal: Fragilidade infantil  Sentimento de
inferioridade  Compensação  Luta pela superioridade.
[51] Dinâmica do adoecimento psíquico: Inferioridade orgânica / Superproteção / Rejeição
 Complexo de inferioridade  Supercompensação  Complexo de superioridade.
[52] Tomemos cada um dos elementos que figuram nos diagramas acima a fim de
explicitar o seu significado.
[53] Fragilidade infantil: Todo ser humano começa a sua vida num estado de franca
desvantagem diante daqueles que o cercam. Comparada a um adulto, uma criança é
pequena, fraca, impotente, indefesa, desamparada, dependente. Sente-se, por conseguinte,
inferior.
[54] Sentimento de inferioridade: O sentimento de inferioridade é um sentimento
universal. Ser homem é sentir-se inferior. Todas as pessoas têm um sentimento de
inferioridade. Esse sentimento é o ponto de partida de todos os esforços humanos.
[55] Compensação: O sentimento de inferioridade impulsiona o ser humano a superar-se a
si mesmo. Sentindo-se inferior, o homem procura compensar essa inferioridade. Como?
Lutando pela superioridade.
[56] Luta pela superioridade: A luta pela superioridade é o esforço desde uma situação
“menos” para uma situação “mais”. Eis a lei suprema da vida, a principal força motivadora
do comportamento humano.
[57] Ao longo da evolução do seu pensamento, essa força foi nomeada por Adler de muitas
maneiras, como “impulso agressivo”, “protesto masculino”, “vontade de poder”, “luta pela
perfeição” e, por fim, “luta pela superioridade”.
[58] A luta pela superioridade de Adler não está distante da tendência para a
autorrealização de Kurt Goldstein (1878-1965), um conceito importante também para Carl
Rogers (1902-1987) e Abraham Maslow (1908-1970).
[59] O estilo de vida de uma pessoa é, justamente, o padrão de comportamento por ela
desenvolvido a fim de compensar o seu sentimento de inferioridade e lutar pela
superioridade.
[60] Dito isso, passemos aos termos do dinamismo inferioridade-superioridade
relacionados ao adoecimento psíquico.
[61] Inferioridade orgânica / Superproteção / Rejeição: Há três condições desfavoráveis
que podem gerar um complexo de inferioridade, concorrendo, assim, para o adoecimento
psíquico e o desenvolvimento de um estilo de vida patológico: a inferioridade de órgãos, o
mimo e a negligência.
[62] O primeiro fator identificado por Adler foi o que ele chamou de “inferioridade
orgânica” (“Minderwertigkeit”). Ao empregar essa expressão, ele tinha em mente alguma
deficiência física grave. Mais tarde, Adler percebeu que vários outros fatores poderiam ter
o mesmo efeito que essa imperfeição orgânica, tais como a doença, a debilidade, a fealdade
etc. Crianças marcadas por condições como essas tendem a se sentirem incapazes de
enfrentar os desafios da vida. Mas não estão condenadas a isso. Diante da inferioridade de
órgãos, há, na verdade, duas reações possíveis. A desvantagem pode levar uma pessoa a
tentar superar-se heroicamente a si mesma, impelindo-a a realizações de grande valor,
assim como pode abater psicologicamente o indivíduo, decorrendo em consequências
patológicas.
[63] O segundo fator patogênico identificado por Adler é o mimo, a superproteção, a
indulgência demasiada. A mãe excessivamente solícita mantém a criança numa situação de
dependência; não estimula a iniciativa, a autonomia, o desenvolvimento dos próprios
15
recursos. Consequentemente, a criança não aprende a enfrentar por si mesma os
problemas da vida. Quando eles surgirem, ela provavelmente fracassará. Sem saber que o
seu fracasso decorre de uma falta de treinamento, ela poderá desenvolver um complexo de
inferioridade. Crianças muito bonitas, o filho caçula e o filho único tendem a ser mimados.
[64] Por fim, a terceira condição desfavorável que Adler reconheceu é a rejeição. Crianças
não desejadas, mal amadas, não queridas; crianças feias, deformadas, odiadas; crianças
tratadas com negligência ou maltratadas; crianças cuidadas – ou descuidadas – por uma
“madrasta”; filhos ilegítimos; meninas nascidas quando se esperava que nascesse um
menino – ou o contrário –; órfãos, crianças sem “mãe”; filhos de pais indiferentes ou hostis
– todas essas crianças tendem, com razão, a suspeitar dos outros e a não confiar em si
mesmas.

[65] Complexo de inferioridade: A inferioridade orgânica, a superproteção e a rejeição


concorrem para a formação do complexo de inferioridade. O complexo de inferioridade é
um sentimento de inferioridade grave. Uma pessoa com complexo de inferioridade tem
uma opinião extremamente negativa sobre si mesma. O sentimento de inferioridade é um
sentimento normal; o complexo de inferioridade tem um caráter patológico. O primeiro
leva a pessoa a tentar superar-se; o segundo tende a paralisar o indivíduo.
[66] Supercompensação: Quem se sente inferior tende a reagir tentando compensar esse
sentimento. Sendo grave o sentimento de inferioridade – tratando-se, portanto, de um
complexo de inferioridade, mais do que simplesmente de um sentimento de inferioridade
–, haverá necessidade de uma supercompensação, mais do que de uma compensação
apenas.
[67] Complexo de superioridade: Uma forma de supercompensar um complexo de
inferioridade é o desenvolvimento de um complexo de superioridade. Uma pessoa com
complexo de superioridade tem uma opinião favorável exagerada sobre si mesma. Pessoas
assim costumam ser detestáveis aos olhos dos outros. Essa rejeição social pode agravar o

16
complexo de inferioridade do indivíduo em questão, desencadeando uma
supercompensação ainda mais agressiva. Entra-se, desse modo, num círculo vicioso.

O interesse social

[68] Além do dinamismo inferioridade-superioridade, outro fator psicológico de primeira


grandeza identificado por Adler é o “interesse social”, também chamado “sentimento
comunitário” (“Gemeinschaftsgefühl”).
[69] O interesse social é um sentimento de unidade com as outras pessoas e de identidade
com toda a humanidade. Manifesta-se como solidariedade, capacidade de cooperação,
consideração pelos outros, interesse pelo bem-estar alheio.
[70] O interesse social é um conceito que foi crescendo em importância aos olhos de Adler
ao longo da sua vida e, em particular, a partir da Primeira Guerra Mundial. Pode-se
mesmo afirmar que, como o tempo, o eixo da psicologia adleriana se deslocou do
dinamismo inferioridade-superioridade para a problemática do interesse social.
[71] As noções de luta pela superioridade e interesse social parecem, contudo,
contraditórias: a primeira faz pensar num certo egocentrismo, ao passo que a segunda tem
um caráter eminentemente altruísta. Caberia, pois, falar num “segundo” Adler?
[72] Na verdade, Adler não abandonou o dinamismo inferioridade-superioridade. Mas a
problemática foi ressituada. No final da sua carreira, ele estabeleceu uma distinção entre a
luta pela superioridade e a luta pelo sucesso: a primeira, sim, tem uma natureza
egocêntrica, mas a segunda tem um caráter marcadamente social.
[73] Com a evolução do seu pensamento, o interesse social veio a se converter, para Adler,
no próprio critério da saúde mental. Ou seja, o nível de interesse social apresentado por
uma pessoa determina o grau da sua maturidade psicológica. Indivíduos saudáveis têm
altos índices de interesse social e buscam o sucesso, meta que contempla o bem-estar de
todos. Pessoas imaturas carecem de interesse social, são autocentradas e lutam pela
superioridade pessoal.
[74] As causas da deficiência do interesse social, por sua vez, são as mesmas que estão por
trás do complexo de inferioridade, ou seja, a inferioridade orgânica, a superproteção e a
rejeição.
[75] Psicólogos adlerianos desenvolveram testes para medir o interesse social: a Escala de
Interesse Social [Social Interest Scale (SIS)], de Crandall, o Índice de Interesse Social
[Social Interest Index (SII)], a Escala Sulliman de Interesse Social etc.

Terapia

[76] O complexo de inferioridade e a falta de interesse social são as principais


características do desajuste psicológico.
[77] Os objetivos da terapia adleriana são, por conseguinte, a superação do complexo de
inferioridade e o desenvolvimento do interesse social.
[78] As três principais vias de acesso ao mundo subjetivo das pessoas são a ordem de
nascimento, as primeiras lembranças e os sonhos.
[79] A ordem de nascimento é decisiva na configuração do estilo de vida de uma pessoa.
Quatro posições apresentam um interesse especial: o primogênito, o filho do meio, o caçula
e o filho único. Cada qual tende a fazer uma experiência típica; consequentemente,
costuma apresentar características próprias da sua posição no quadro familiar.
[80] O mais velho é o destronado. De início, ele é o centro das atenções. Mas, numa certa
altura, é destituído pelo nascimento do irmão seguinte. Tende a lutar para reaver o status
perdido. E uma das maneiras de fazê-lo é tornando-se um filho exemplar. Não raro, faz as
vezes de cuidador dos seus irmãos mais novos. Entre as suas características habituais
estão: o saudosismo, o pessimismo, o autoritarismo, o conservadorismo, a
conscienciosidade e a responsabilidade.
17
[81] O segundo filho compete com o mais velho. Ele nunca foi o filho único, mas nasceu à
sombra de um irmão maior. Tenderá, portanto, a tentar superá-lo. Algumas das suas
características costumeiras são: a inveja, a ambição, a competitividade e o otimismo.
[82] O mais novo, por sua vez, é o mimado. Não faz a experiência de ser destronado pelo
nascimento de um irmão seguinte. E costuma ser superprotegido, não apenas por seus
pais, mas também por seus irmãos mais velhos. A superproteção, como vimos, tanto pode
gerar complexo de inferioridade como carência de interesse social.
[83] Além de nunca ser destituído pela chegada de um irmão mais novo, o filho único, por
fim, costuma passar mais tempo na companhia de adultos do que de outras crianças.
Tende a amadurecer cedo e assumir precocemente ares de adulto. Tende, igualmente, a ter
um interesse social subdesenvolvido.
[84] Com o objetivo de desvendar o mistério de seus pacientes, a segunda via explorada
por Adler são as primeiras lembranças. Devidamente interpretada, a recordação mais
remota, a lembrança mais marcante que se conserva da infância, é muito reveladora do
estilo de vida de uma pessoa.
[85] Por fim, a terceira via de acesso ao mundo interior de uma pessoa é a interpretação
dos sonhos. Os sonhos, segundo Adler, devem ser interpretados em função das
preocupações presentes e futuras – mais do que passadas – do sonhador.

Influência

[86] Durante a sua vida, Adler foi um psicólogo muito prestigiado. Hoje, contudo, ele é um
autor raramente citado.
[87] É preciso reconhecer, porém, que Adler foi o primeiro teórico da personalidade a
formular uma série de ideias que outros, depois dele, abraçaram. Ele pode ser considerado
um precursor do culturalismo, da psicologia humanista e da psiquiatria existencial.
[88] Nomeadamente, os culturalistas Karen Horney (1885-1952), Harry Stack Sullivan
(1892-1949) e Erich Fromm (1900-1980), os humanistas Gordon Allport (1897-1967), Carl
Rogers (1902-1987) e Abraham Maslow (1908-1970) e os existencialistas Viktor Frankl
(1905-1997) e Rollo May (1909-1994), todos esses autores, entre outros, apresentam
grande afinidade com o pensamento de Adler e lhe são posteriores, tendo sido
influenciados por ele.

Bibliografia
1. ADLER, Alfred. Connaissance de l’homme; étude de caractérologie individuelle. Paris:
Payot, 1949. 192p. (Bibliothèque scientifique.)
2. ADLER, Alfred. La compensation psychique de l’état d’infériorité des organes suivi de
Le problème de l’homosexualité. Paris: Payot, 1956. 256p. (Bibliothèque scientifique.)
3. ADLER, Alfred. Le sens de la vie. Paris: Payot, 1954. 208p. (Bibliothèque scientifique.)
4. ADLER, Alfred. Le tempérament nerveux; éléments d’une psychologie individuelle et
applications a la psychothérapie. Paris: Payot, 1948. 384p. (Bibliothèque scientifique.)
5. ANSBACHER, Heinz L.; ANSBACHER, Rowena R. (Eds.). The individual psychology
of Alfred Adler; a systematic presentation in selections from his writings. New York,
Hagerstown, San Francisco, London: Harper Torchbooks, 1964. 520p.
6. HANDLBAUER, Bernhard. A controvérsia Freud-Adler. São Paulo: Madras, 2005.
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8. ORGLER, Herta. Alfred Adler et son œuvre; libération du complexe d’infériorité.
Paris: Librairie Stock, 1955. 320p.
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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

Jung e os tipos psicológicos


[1] Nascido em Kesswil, na Suíça, o
psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-
1961) é o criador da psicologia
analítica.
[2] Por sete anos, aproximadamente,
Jung manteve uma estreita relação de
amizade e colaboração intelectual com
Sigmund Freud (1856-1939), o “pai”
da psicanálise. Em 1913, porém, os
dois homens romperam relações,
sejam pessoais, sejam profissionais.
Jung desenvolveu, a partir daí, a sua
própria abordagem em psicologia,
denominando-a “psicologia analítica”.
[3] A psicologia analítica é uma teoria
complexa e abrangente. Uma de suas
peças é a teoria dos tipos psicológicos.
O que se segue ocupa-se desta
pequena – mas importante – peça do
pensamento junguiano: a tipologia.
[4] A principal obra de Jung sobre a
tipologia foi publicada em 1921:
“Tipos psicológicos” (Psychologische
Typen). Um esboço da sua tipologia
pode, contudo, ser encontrado na
comunicação que ele fez ao Congresso Psicanalítico de Munique, em 1913, intitulada “A
questão dos tipos psicológicos”. Jung ofereceu resumos e desenvolvimentos da sua
tipologia em duas conferências que realizou nos anos 1920 – “Tipos psicológicos” (1923) e
“Tipologia psicológica” (1928) – e ainda em um pequeno artigo publicado em 1936 sob o
título “Tipologia psicológica”.
[5] A tipologia junguiana tem uma origem clínica e, por conseguinte, uma base empírica.
[6] A tipologia junguiana – em particular, a sua distinção entre os tipos extrovertido e
introvertido – é tão popular que, numa certa medida, pertence já ao senso comum. A
distinção entre extroversão e introversão é também a ideia de Jung mais bem acolhida pelo
mundo da psicologia.
[7] A tipologia junguiana se baseia: [a] no movimento dominante da energia psíquica – isto
é, nas atitudes – e [b] no modo preferencial como cada indivíduo se orienta no mundo – ou
seja, nas funções. Iniciemos nosso estudo pelas atitudes.

19
As duas atitudes: extroversão e introversão

[8] A extroversão e a introversão são duas atitudes mentais opostas. Fundamentalmente,


são fenômenos energéticos. Ou seja, tudo depende da direção predominante assumida pela
libido – se para fora ou para dentro.
[9] No extrovertido, a energia vital está voltada para o exterior; a libido está orientada para
o mundo externo – isto é, para as coisas, pessoas e acontecimentos circundantes. No
introvertido, a energia vital está voltada para o interior; a libido está orientada para o
mundo interno – ou seja, para o próprio self.
[10] O extrovertido tem uma relação positiva com o objeto; confiante, ele parte ao encontro
do mesmo; a sua orientação dinâmica é centrífuga. O introvertido tem uma relação
negativa com o objeto; inseguro, ele recua diante do mesmo; a sua orientação dinâmica é
centrípeta.
[11] Extroversão: objeto; introversão: sujeito. Extroversão: diástole, relaxamento,
expansão; introversão: sístole, contração, retração. Extroversão: extrospecção; introversão:
introspecção.
[12] O extrovertido é aberto, comunicativo, sociável, jovial, amigável, franco, influente e
influenciável; faz amizades facilmente e tem uma vida social intensa. O introvertido é
fechado, silencioso, antissocial, reservado, distante, tímido, defensivo e resistente a
influências externas; tende a ser autossuficiente e costuma preferir a solidão.
[13] O extrovertido reage imediatamente a uma situação dada; age primeiro, pensa depois.
O introvertido demora a reagir; reflexivo, pensa muito antes de responder.
[14] O extrovertido é autoconfiante e decidido; o introvertido, hesitante e vacilante. O
extrovertido é aventureiro; gosta de viajar, de conhecer pessoas e lugares novos; sente-se
atraído pelo desconhecido. O introvertido é cauteloso; prefere ficar em casa; tem receio
perante o desconhecido. O extrovertido adapta-se facilmente a uma situação nova; o
introvertido tem dificuldade para adaptar-se ao mundo exterior.
[15] O extrovertido é muito consciente do que está acontecendo à sua volta, mas corre o
risco de perder o contato com o seu mundo interior. O introvertido conhece muito bem a
própria interioridade; pode, contudo, perder o contato com a realidade circundante.
[16] Como se vê, as duas atitudes são diametralmente opostas. O extrovertido e o
introvertido são diferentes. Mas não cabem aqui juízos de valor. Nenhuma das duas
atitudes é melhor do que a outra. A cultura contemporânea preza muito a extroversão.
Assim, costuma haver um “preconceito” contra os introvertidos (cf. JUNG, C. G. Tipos
psicológicos, p.354, 356-357, 371). Diz Jung: “Mais do que o tipo extrovertido, está o
introvertido sujeito a mal-entendidos...” (JUNG, C. G. Tipos psicológicos, p.370). Os
introvertidos “...são subestimados ou, no mínimo, incompreendidos” (JUNG, C. G. Tipos
psicológicos, p.380). Ora, “...uma atitude introvertida normal tem tanto direito de existir e
tanta validade quanto uma atitude extrovertida normal” (JUNG, C. G. Tipos psicológicos,
p.358).
[17] A rigor, ninguém é puramente extrovertido ou introvertido. Diz Jung: “Não existe o
introvertido puro ou o extrovertido puro. Tal homem estaria num manicômio” (EVANS,
Richard I. Entrevistas com Carl G. Jung e as reações de Ernest Jones, p.90-91). Todos
têm capacidade para ambas as atitudes, mas normalmente uma delas predomina.
[18] A que se deve a definição desta ou daquela atitude como dominante? Predisposição
hereditária ou aprendizagem? Jung reconheceu ambos os fatores como determinantes.
[19] Uma pessoa pode mudar de atitude ao longo da vida. É comum, por exemplo, com a
crise da meia-idade, passar-se da extroversão para a introversão. E há pessoas que, ora, são
extrovertidas, ora, introvertidas.
[20] Acrescente-se que, naquele cuja personalidade consciente é extrovertida, há um
movimento inconsciente de introversão; naquele cuja personalidade consciente é
introvertida, há um movimento inconsciente de extroversão. Isso decorre do fato de que a

20
psique é um sistema autorregulado, onde vigora o princípio da compensação. O
inconsciente tende a contrabalançar a unilateralidade da consciência.
[21] Essa tendência à compensação pode também se manifestar na relação entre as
pessoas. É comum uma pessoa sentir-se fascinada por outra cuja atitude dominante seja o
oposto da sua.

As quatro funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição

[22] O segundo fator em que se baseia a


tipologia junguiana são as funções.
Segundo Jung, o ser humano é dotado
de quatro funções psicológicas
fundamentais: o pensamento, o
sentimento, a sensação e a intuição.
[23] A sensação constata a existência de
algo. “Há alguma coisa aí?” – a sensação
responde. O pensamento descobre qual
é o significado do que existe. “O que é
isso?” – o pensamento responde. O
sentimento faz uma estimativa sobre o
valor das coisas que nos cercam. “Que
valor tem isso?” – o sentimento
responde. A intuição se ocupa da origem
e do destino de algo. “De onde isso vem
e para onde vai?” – a intuição responde.
[24] As quatro funções podem ser
divididas em dois pares: o par das
funções racionais ou judicativas e o par
das funções irracionais ou perceptivas.
As funções racionais ou judicativas são o
pensamento e o sentimento; as funções
irracionais ou perceptivas são a sensação
e a intuição.
[25] O pensamento e o sentimento
constituem um par de opostos. De fato,
ao emitir juízos sobre as coisas, o pensamento lança mão de critérios impessoais, lógicos e
objetivos. O sentimento, por sua vez, é sensível ao valor afetivo dos objetos; segue a “lógica
do coração”; avalia as coisas subjetivamente.
[26] A sensação e a intuição constituem um par de opostos. De fato, a sensação é a
percepção através dos órgãos dos sentidos. A intuição, de sua parte, é a percepção por meio
do inconsciente.
[27] Todas as pessoas possuem as quatro funções, mas não igualmente desenvolvidas. É
possível, pois, estabelecer uma hierarquia entre as funções segundo o seu grau de
diferenciação.
[28] A função superior ou principal é a função mais utilizada e desenvolvida. Ela
desempenha um papel dominante na consciência.
[29] A função auxiliar é a segunda função mais empregada e diferenciada. Ela tem um
caráter secundário, complementar; auxilia a função superior. A função auxiliar vem do par
de funções que não contém a função superior.
[30] Por fim, a função inferior – a quarta função – é a função menos utilizada e
desenvolvida. Ela é inconsciente. A função inferior é sempre o outro membro do par que
contém a função superior.

21
Os oito tipos psicológicos

[31] Com isso, dispomos já dos elementos em que se baseia a tipologia junguiana. Toda
pessoa tem uma atitude dominante e uma função superior. Como são duas as atitudes e
quatro as funções, há oito tipos psicológicos.
[32] O extrovertido pensante tem o pensamento como função superior e a extroversão
como atitude dominante. Trata-se de uma pessoa extremamente racional, cuja capacidade
intelectual está voltada para o mundo circundante. Tem a sua vida governada pela razão,
ocupando-se antes do objeto do que da ideia. É indutivo, não dedutivo. Exemplos:
cientistas, pesquisadores, engenheiros, economistas, contadores, governantes, políticos,
dirigentes, advogados, empresários, organizadores, administradores etc.
[33] O introvertido pensante tem o pensamento como função superior e a introversão
como atitude dominante. Trata-se de uma pessoa extremamente racional, cuja capacidade
intelectual está orientada para o mundo das ideias. Gosta de abstrações; é mais teórico do
que prático. É dedutivo, não indutivo. Os dados empíricos servem apenas para documentar
as suas teorias preconcebidas. Exemplos: filósofos, matemáticos etc.
[34] O extrovertido sentimental tem o sentimento como função superior e a extroversão
como atitude dominante. São pessoas amáveis, cordiais, afáveis, acolhedoras, calorosas,
agradáveis, emotivas, afetivas, comunicativas, sociáveis e alegres. Bem adaptadas
socialmente, costumam ter muitos amigos e sabem manter uma boa conversa. Exemplos:
atores, apresentadores de programas de televisão, líderes etc.
[35] O introvertido sentimental tem o sentimento como função superior e a introversão
como atitude dominante. São pessoas capazes de emoções profundas, dotadas de
sentimentos finamente diferenciados, mas que não exprimem externamente a sua intensa
vida afetiva. Muitas vezes, ocultam grandes paixões. São pessoas misteriosas, enigmáticas,
difíceis de compreender. Exemplos: poetas, músicos, monges etc.
[36] O extrovertido sensitivo tem a sensação como função superior e a extroversão como
atitude dominante. Tem a percepção extremamente desenvolvida; observa atentamente
todas as coisas; é um mestre em perceber detalhes. Objetivo, tem um forte senso de
realidade. É prático, concreto e eficiente. É dotado de um poderoso vínculo sensual com o
mundo exterior; compraz-se na apreciação sensorial das coisas; gosta de ver, ouvir,
cheirar, tocar, provar; apresenta uma vigorosa disposição para o prazer. Exemplos:
engenheiros, construtores, pintores de residências, degustadores de vinho, gourmets etc.
[37] O introvertido sensitivo tem a sensação como função superior e a introversão como
atitude dominante. É extremamente sensível às impressões provenientes dos objetos.
Percebe tudo; absorve os menores matizes e os mais íntimos detalhes. Por fora, não se sabe
o que está acontecendo dentro dele; mas, interiormente, a impressão está sendo captada.
Aprecia formas, cores e perfumes com uma requintada sutileza. Valoriza o prazer estético
acima de tudo. Exemplos: estetas, colecionadores de obras de arte, pintores artísticos etc.
[38] O extrovertido intuitivo tem a intuição como função superior e a extroversão como
atitude dominante. Tem grande sensibilidade para reconhecer o que está por vir. Prevê,
pressente, fareja. Adivinha o rumo que os acontecimentos irão tomar; vislumbra
desenvolvimentos futuros; enxerga o que ainda não é visível, potencialidades ainda não
realizadas. Costuma ser inovador, criativo. Exemplos: empresários, homens de negócios,
banqueiros, especuladores, jogadores da bolsa de valores, inventores, jornalistas,
casamenteiros etc.
[39] O introvertido intuitivo tem a intuição como função superior e a introversão como
atitude dominante. Tem boa intuição, mas sobre o universo interior. Normalmente, está
mais interessado no inconsciente do que no mundo objetivo. Tem uma relação frágil com a
realidade externa. Não raro, é incompreendido ou tomado por louco. Exemplos: artistas
surrealistas, místicos, videntes, visionários, feiticeiros, xamãs, profetas, sonhadores,
utopistas, excêntricos etc.

22
[40] A tipologia junguiana pode ser ainda mais específica. Há duas possibilidades para a
atitude dominante, quatro para a função superior e duas para a função auxiliar. Em
consequência, há dezesseis tipos possíveis: 2 x 4 x 2 = 16. A saber: extrovertido pensante
com a sensação como função auxiliar, extrovertido pensante com a intuição como função
auxiliar, introvertido pensante com a sensação como função auxiliar, introvertido pensante
com a intuição como função auxiliar, extrovertido sentimental com a sensação como
função auxiliar, extrovertido sentimental com a intuição como função auxiliar, introvertido
sentimental com a sensação como função auxiliar, introvertido sentimental com a intuição
como função auxiliar, extrovertido sensitivo com o pensamento como função auxiliar,
extrovertido sensitivo com o sentimento como função auxiliar, introvertido sensitivo com o
pensamento como função auxiliar, introvertido sensitivo com o sentimento como função
auxiliar, extrovertido intuitivo com o pensamento como função auxiliar, extrovertido
intuitivo com o sentimento como função auxiliar, introvertido intuitivo com o pensamento
como função auxiliar e introvertido intuitivo com o sentimento como função auxiliar.
[41] Havendo tantas possibilidades, como identificar o tipo a que pertence uma pessoa?
Para isso, há, por exemplo, o Indicador de Tipo Myers-Briggs (Myers-Briggs Type
Indicator), conhecido no Brasil como “Inventário MBTI”.

Do tipo ao indivíduo

[42] Para terminar, uma última observação. Ainda que, às vezes, seja difícil determiná-lo,
toda pessoa pertence a um tipo psicológico. Na medida em que avança no processo de
individuação, porém, a pessoa tende a superar essa identificação a um tipo específico.
[43] O nome junguiano do crescimento psicológico é “individuação”. Etimologicamente,
“individuum” significa não dividido. Individuação é, pois, o mesmo que superação da
divisão, unificação da personalidade. Trata-se do processo de transformar-se num
indivíduo, isto é, numa pessoa inteira. Individuação, noutras palavras, é o mesmo que
união, integração, reconciliação, harmonização, totalização, homogeneização, síntese. Por
meio da individuação, alcança-se um equilíbrio entre os vários elementos e dinamismos
psíquicos.
[44] A individuação consiste no desenvolvimento pleno e na diferenciação completa de
todos os sistemas da personalidade. Na individuação, a persona é reduzida; a sombra é
acolhida; a anima – ou o animus – é assumida/o; o self é realizado; a consciência e o
inconsciente são unificados. Quanto ao que nos interessa, individuar-se é desenvolver
plenamente as duas atitudes fundamentais e as quatro funções psicológicas. Nessa medida,
a individuação contradiz a lógica da tipificação, que se baseia na eleição de uma atitude e
de uma função como dominantes em prejuízo das demais. Uma pessoa individuada não
pertenceria, pois, a tipo algum, porque não teria uma atitude e uma função predominando
sobre as outras. Ela seria igualmente capaz de extroversão e introversão e teria as
faculdades do pensamento, sentimento, sensação e intuição igualmente bem
desenvolvidas.
[45] Na terapia junguiana, trata-se exatamente disto: de promover o processo de
individuação. E isso acontece fortalecendo-se a atitude oposta e desenvolvendo-se a função
inferior. Ambas fazem parte da sombra que precisa ser integrada. Em suma, para Jung,
todos temos um tipo, mas crescer é deixar de pertencer a um tipo psicológico particular.

23
Bibliografia

1. DONN, Linda. Freud e Jung; anos de amizade, anos de perda. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991. 360p.
2. EVANS, Richard I. Entrevistas com Carl G. Jung e as reações de Ernest Jones. Rio de
Janeiro: Eldorado, s.d., 200p. (Anima.)
3. FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico. In: _______. A história do
movimento psicanalítico, Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1974. p.11-82. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud; 14.)
4. HYDE, Maggie; McGUINNES, Michael. Entendendo Jung; um guia ilustrado. São
Paulo, Leya, 2012. 176p.
5. JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
364p.
6. JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 3.ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003. 560p. (Obras
completas de C. G. Jung, VI.)
7. McGUIRE, William (Org.). Freud/Jung correspondência completa. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. 660p. (Psicologia psicanalítica.)
8. SHARP, Daryl. Tipos de personalidade; o modelo tipológico de Jung. São Paulo:
Cultrix, s.d. 136p. (Estudo de psicologia juguiana por analistas junguianos.)
9. SILVEIRA, Nise da. Jung, vida e obra. 14.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1994. 212p. (Vida
e obra.)
10. STORR, Anthony. As idéias de Jung. São Paulo: Cultrix, s.d. 128p. (Mestres da
modernidade.)
11. VON FRANZ, Marie-Louise; HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo:
Cultrix, s.d. 224p.

24
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

Viktor Frankl
[1] Viktor Emil Frankl (1905-1997) – o “prisioneiro no 119.104”, o “sobrevivente de quatro
campos de concentração”, o “psicólogo-mártir”, o “campeão do logos”, o “psicólogo da
esperança”, o “médico da doença do século” – é o criador da logoterapia e da análise
existencial.

Cronologia da vida

[2] 26 de março de 1905: Nasce, em Viena, o


pequeno “Vicki”, filho de Gabriel e Elsa, irmão de
Walter e Stella.
[3] 1920: Estudante de ensino médio, Frankl lê
“Além do princípio do prazer”, de Sigmund Freud
(1856-1939), e se interessa por psicanálise.
[4] Por volta de 1923: Mantém intensa
correspondência com Freud.
[5] 1924: Começa a estudar medicina na
Universidade de Viena. Publica o artigo “Sobre a
formação da mímica da afirmação e da negação”
num periódico freudiano, a “Revista Internacional
de Psicanálise”.
[6] 1925: Passa a frequentar a escola de Alfred
Adler (1870-1937). De forma casual, encontra-se
pessoalmente com Freud. Publica o artigo
“Psicoterapia e visão de mundo” num periódico
adleriano, a “Revista Internacional de Psicologia
Individual”.
[7] 1927: Distancia-se do pensamento adleriano. É expulso da Sociedade de Psicologia
Individual.
[8] 1928 e 1929: Funda – primeiramente, em Viena, e, mais tarde, em outras seis cidades –
centros de aconselhamento para jovens.
[9] 1930: Encontra-se com Wilhelm Reich (1897-1957). Diploma-se em medicina. Inicia a
sua especialização em neurologia e psiquiatria.
[10] 1933 a 1937: Dirige o chamado “Pavilhão das Suicidas” da clínica psiquiátrica de
Steinhof.
[11] 28 de maio de 1937: Morre Alfred Adler.
[12] 1937: Frankl abre um consultório particular como médico especialista em neurologia e
psiquiatria, onde passa a fazer psicoterapias.
[13] 11 de março de 1938: Os nazistas invadem a Áustria.
[14] 4 de junho de 1938: Freud deixa Viena com destino a Londres.
25
[15] 1938: Por imposição nazista, Frankl é obrigado a fechar o seu consultório particular.
[16] 1938: Publica o artigo “Sobre a problemática espiritual da logoterapia”.
[17] 1º de setembro de 1939: Os nazistas invadem a Polônia, desencadeando a Segunda
Grande Guerra.
[18] 23 de setembro de 1939: Morre Sigmund Freud.
[19] 1940 a 1942: Frankl dirige a enfermaria de neurologia do Hospital Rothschild.
[20] 1941: Consegue um visto de emigração para os Estados Unidos, mas não o utiliza,
deixando-o perder a validade, para ficar ao lado dos pais.
[21] 17 de dezembro de 1941: Casa-se com Tilly Grosser.
[22] 1942: Os nazistas obrigam Tilly a abortar. Stella foge para a Austrália; Walter tenta
fugir para a Itália, mas é capturado. O Hospital Rothschild é fechado. Assim como os pais e
a esposa, Frankl é deportado para o campo de concentração de Theresienstadt, na Boêmia.
[23] 1944: É transferido para Auschwitz, na Polônia, e, posteriormente, para Kaufering III
e Türkheim, na Baviera, dois campos de concentração dependentes do campo de Dachau.
[24] 27 de abril de 1945: É libertado pelo exército norte-americano. Em agosto, retorna a
Viena. Toma conhecimento, então, de que os seus pais, a sua mulher e o seu irmão estavam
mortos.
[25] 1946: É nomeado diretor do departamento de neurologia da Policlínica de Viena.
Exerce essa função por 25 anos, até se aposentar.
[26] 18 de julho de 1947: Casa-se com Elleonore Katharina Schwindt.
[27] 1948: Recebe o grau de doutor em filosofia pela Universidade de Viena. Torna-se
professor de neurologia e psiquiatria da Faculdade de Medicina da mesma universidade.
[28] A partir dos anos 1950: Dedica-se a fazer psicoterapia, escrever, dar cursos, fazer
palestras e ministrar conferências pelo mundo todo.
[29] 1984: Participa do “1º Encontro Latino-Americano Humanístico-Existencial:
Logoterapia”, promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), em Porto Alegre. É fundada a Sociedade Brasileira de Logoterapia (SOBRAL).
[30] 1992: Funda-se o Instituto Viktor Frankl, na capital austríaca.
[31] 2 de setembro de 1997: Vítima de um ataque cardíaco, morre em Viena. Deixa a sua
esposa, Elli, a sua filha, Gabriele, o seu genro, Franz Vesely, e os seus netos, Alexander e
Katharina.
[32] 2010: É fundada, em Curitiba, a Associação Brasileira de Logoterapia e Análise
Existencial (ABLAE).
[33] Ao longo de sua vida, Frankl recebeu inúmeras homenagens: 29 títulos de doutor
honoris causa, prêmios diversos e até uma indicação ao Nobel da Paz.
[34] Além de ter lecionado na Universidade de Viena, Frankl foi também professor
visitante em Harvard, Boston, Stanford, Dallas e Pittsburgh. E, em San Diego, na
Califórnia, a Universidade Internacional dos Estados Unidos instituiu especialmente para
ele a cátedra de logoterapia.

Cronologia das obras

[35] Frankl publicou algumas dezenas de livros ao longo da sua vida.


[36] 1946: Publica “Ärztliche Seelsorge: Grundlagen der Logotherapie und
Existenzanalyse” [“Direção de almas médica: Fundamentos da logoterapia e análise
existencial”], traduzido para o português sob o título “Psicoterapia e sentido da vida:
Fundamentos da logoterapia e análise existencial”.
[37] 1946: Publica “...trotzdem Ja zum Leben sagen: Ein Psychologe erlebt das
Konzentrationslager” [“...apesar de tudo, dizer sim à vida: Um psicólogo no campo de
concentração”], lançado em português sob o título “Em busca de sentido: Um psicólogo no
campo de concentração”.
[38] 1947: Publica “Die Psychotherapie in der Praxis” [“A psicoterapia na prática”].
[39] 1948: Publica “Der Unbewusste Gott” [“A presença ignorada de Deus”].
26
[40] 1956: Publica “Theorie und Therapie der Neurosen” [“Teoria e terapia das neuroses”].
[41] 1967: Publica em inglês, no original, “Psychotherapy and existentialism”
[“Psicoterapia e existencialismo”], obra que recolhe, sobretudo, conferências proferidas no
final da década de 1950 e início dos anos 1960. Também espera uma versão em português.
[42] 1969: Publica, originalmente em inglês, “The will to meaning” [“A vontade de
sentido”].
[43] 1971: Reunindo, sobretudo, conferências radiofônicas proferidas entre 1951 e 1955,
publica o livro “Psychotherapie für den Laien” [“Psicoterapia para leigos”], lançado em
português sob o título “Psicoterapia para todos”.
[44] 1974: Publica a conferência “Neurotisierung der Menschheit – oder Rehumanisierung
der Psychotherapie?” [“Neurotização da humanidade – ou reumanização da psicoterapia?],
traduzida para o português sob o título “Sede de sentido”.
[45] 1975: Recolhendo, principalmente, conferências pronunciadas em 1949 e 1950,
publica “Anthropologische Grundlagen der Psychoterapie” [“Fundamentos antropológicos
da psicoterapia”].
[46] 1977: Publica “Das Leiden am sinnlosen Leben” [“Ante o vazio existencial”], obra
vertida para a língua portuguesa sob o título “O sofrimento de uma vida sem sentido”.
[47] 1978: Publica – em inglês, no original – “The unheard cry for meaning” [“O grito não
escutado por sentido”], traduzido para o português sob o título “Um sentido para a vida”.
[48] 1981: Recolhendo conferências proferidas em 1946 e 1977, publica “Die Sinnfrage der
psychotherapie” [“A questão do sentido em psicoterapia”].
[49] 1995: Publica “Was nicht in meinen Büchern steht: Lebenserinnerungen” [“O que não
está escrito nos meus livros: Memórias”].
[50] 1998: Logo após a morte de Frankl, é publicado o livro “Logotherapie und
Existenzanalyse” [“Logoterapia e análise existencial”], obra que reúne textos que se
estendem de 1938 a 1988.
[51] 2005: Postumamente, publica-se uma conversa havida entre Viktor Frankl e Pinchas
Lapide, em 1984, sob o título “Gottsuche und Sinnfrage: Ein Gespräch” [“A busca de Deus
e questionamentos sobre o sentido”].

O experimentum crucis

[52] De 1942 a 1945, ao longo de três anos, Frankl


foi prisioneiro dos nazistas. Além de ter sido uma
experiência de vida sem paralelo, a passagem por
quatro campos de concentração valeu como um
laboratório vivo, um verdadeiro campo de provas, o
qual confirmou muitas das intuições prévias de
Frankl. Além disso, a experiência também lhe
ensinou muitas lições novas sobre a psicologia
humana.
[53] Frankl foi não apenas um prisioneiro dos
nazistas, ele foi “um psicólogo no campo de
concentração”. Observando as reações psicológicas
típicas dos seus companheiros de infortúnio, Frankl
identificou três fases comumente atravessadas pelos
prisioneiros: o choque da entrada no campo, a
apatia da estadia e a incredulidade da libertação.
[54] Mais importantes, porém, do que o
estabelecimento dessas etapas, são algumas
conclusões que Frankl tirou da experiência – lições
que ali aprendeu ou convicções anteriormente
firmadas e que foram, então, consolidadas. Quatro
27
dessas conclusões podem ser enunciadas desde já.
[55] (1ª) É sempre possível encontrar um sentido para viver, mesmo nas piores condições
imagináveis – por exemplo, aquelas dos campos nazistas.
[56] (2ª) Ter um sentido para viver é um poderoso fator de sobrevivência. Nos campos de
concentração, tinha mais chance de permanecer vivo quem estava orientado para o futuro,
quem tinha um sentido para viver, quem possuía uma tarefa a concluir ou uma pessoa a
reencontrar depois que fosse libertado.
[57] (3ª) O ser humano é capaz de tudo: do melhor e do pior que se possa imaginar. Nos
campos de concentração, Frankl viu alguns se portarem como porcos, mas viu também
outros agirem como santos.
[58] (4ª) O ser humano é livre para render-se ou não à influência do meio. Nos campos
nazistas, muitos sucumbiram à sintomatologia típica dos prisioneiros, mas nem todos.

O movimento existencial-humanista

[59] As teorias de Frankl foram não apenas testadas no campo de provas em que se
constituiu a sua experiência como prisioneiro. Elas têm também profundas raízes
filosóficas.
[60] De fato, o pensamento de Frankl pode ser localizado no campo da psiquiatria
existencial, ao lado de Ludwig Binswanger (1881-1966) e Medard Boss (1903-1990), entre
outros.
[61] A psiquiatria existencial, por sua vez, pertence ao movimento filosófico existencialista,
representado por nomes como Søren Kierkegaard (1813-1855), Max Scheler (1874-1928),
Karl Jaspers (1883-1969), Martin Heidegger (1889-1976), Gabriel Marcel (1889-1973),
Jean-Paul Sartre (1905-1980), Albert Camus (1913-1960) etc.
[62] Além disso, as ideias de Frankl têm afinidade com a psicologia humanista de Carl
Rogers (1902-1987), Abraham Maslow (1908-1970) e Rollo May (1909-1994), entre outros.
[63] Em suma, é possível localizar o pensamento de Frankl no quadro da assim chamada
“psicologia existencial-humanista”.

Logoterapia e análise existencial

[64] “Logoterapia” é o nome da abordagem de Frankl em psicologia. Na composição da


palavra “logoterapia” – utilizada pela primeira vez em 1926 –, Frankl entende “logos”
enquanto sentido.
[65] “Análise existencial” é uma expressão alternativa para “logoterapia”.
[66] Tendo cunhado a expressão “análise existencial” no começo dos anos 1930, Frankl
decidiu, mais tarde, abster-se do seu uso a fim de evitar que a sua teoria (Existenzanalyse)
fosse confundida com a de Binswanger (Daseinsanalyse).
[67] Além dessas duas denominações principais, a abordagem de Frankl em psicologia tem
ainda outros títulos: por exemplo, “terceira escola vienense de psicoterapia”, “psicologia
das alturas” e “psicoterapia a partir do espírito”.

O ser humano

[68] A logoterapia é um tipo de psicoterapia. Uma psicoterapia, por sua vez, tem sempre
implicações metaclínicas. Entre elas, está, fundamentalmente, uma determinada visão do
ser humano (imago hominis), ou seja, uma antropologia.
[69] Sobre essa matéria, Frankl se insurgiu contra as visões de homem dominantes em
psicologia quando do surgimento da logoterapia. Em sua opinião, a psicanálise e o
behaviorismo, nomeadamente, ofereciam um retrato desfigurado do ser humano. Era
preciso resgatar a humanidade do homem. A logoterapia se propôs, justamente, a

28
reumanizar o campo da psicologia. Ao lado de outros autores, Frankl promoveu, assim, o
chamado “retorno do homem”.
[70] Mas, então, o que é o ser humano?
[71] O homem é um ser orientado para o logos, “em busca de sentido”.
[72] O homem é um ser autotranscendente. É um ser aberto ao mundo, voltado para fora
de si, ordenado para algo ou alguém que não é ele próprio – para um sentido a realizar,
uma causa a servir, uma pessoa a amar. O homem, em suma, é um ser-para-os-outros.
[73] O homem é um ser capaz de autodistanciamento.
[74] O homem é um ser livre, ainda que a liberdade de que disponha seja limitada. Com
efeito, o ser humano não é isento de fatores condicionantes; ele sofre determinações de
diversos tipos – biológicas, psicológicas, sociológicas etc. Não obstante, ele é livre para
tomar uma posição frente a esses fatores; ele tem a possibilidade de distanciar-se dos
condicionamentos que padece e assumir diante deles esta ou aquela atitude, podendo,
inclusive, contrariá-los. Noutras palavras, o homem não é indeterminado, mas também
não é pandeterminado. O que ele é, então? Determinado e livre.
[75] O homem é um ser responsável. A vida tem o caráter de tarefa. Cada pessoa está
encarregada de uma missão. E, por ela, é responsável. O homem responde, pois, pela
realização de um sentido. Qual sentido? Perante o quê? Ou quem? Só ele poderá dizer.
[76] O homem é tridimensional, um ser bio-psico-espiritual, provido de corpo, alma e
espírito, dotado, portanto, de três dimensões: somática, psíquica e noética; biológica,
anímica e espiritual; física, mental e noológica; corporal, psicológica e espiritual.
[77] O homem é, portanto, também um ser espiritual. Às dimensões corporal e psíquica –
tradicionalmente reconhecidas pelas teorias da personalidade –, a logoterapia acrescentou
uma terceira: a dimensão noética. “Noético” vem de “nous”, palavra grega que significa
“espírito”. “Espiritual”, contudo, não quer dizer “religioso”: o espiritual não exclui o
religioso, mas é mais abrangente do que ele. A dimensão noética pode ser dita uma
dimensão “superior”. A dimensão noética é uma dimensão especificamente humana. A
dimensão noética é o centro da pessoa humana, o seu núcleo, o seu cerne.

A vontade de sentido

[78] Além da questão sobre o ser do homem, outra


pergunta fundamental é aquela que indaga sobre o
que move o ser humano: afinal, o que quer o
homem?
[79] O homem busca o sentido da vida. A vontade
de sentido é o motor básico da vida humana, o
centro gravitacional da sua existência, a principal
força motivadora da psicologia humana. O
problema do sentido da vida é um problema
caracteristicamente humano. Os jovens, em
particular, são especialmente sensíveis a essa
questão. O homem não é um ser empurrado, mas
como que tracionado. Ou seja, ele não é
impulsionado por instintos, mas atraído pelo logos.
O sentido é o guia do ser.
[80] Para Freud, o homem tem uma vontade prazer;
para Adler, uma vontade de poder; para Frankl, o
que o homem tem, fundamentalmente, é uma vontade de sentido.
[81] A teoria da motivação de Frankl difere também da de Maslow. Para este, o que o ser
humano persegue é a autorrealização. Para Frankl, a autorrealização não deve ser buscada
como meta. Primeiramente, porque isso contradiz o caráter autotranscendente da
existência humana. E, em segundo lugar, porque a autorrealização não é objetivo, mas
29
consequência. A autorrealização é um efeito colateral, secundário, não intencionado, da
realização do sentido da existência. A autorrealização é, nomeadamente, o fruto da
autotranscendência, isto é, de uma vida que transcende a si mesma, de uma existência
dedicada a algo ou a alguém. O homem só retorna a si mesmo, centrando-se na própria
autorrealização, quando falha na realização do sentido da sua vida.

O sentido da vida

[82] O homem tem, pois, “sede de sentido”. Mas... a vida tem sentido? Sim, se o ser
humano busca o sentido da vida, é porque há um sentido para ser encontrado.
[83] O sentido é uma realidade objetiva. A vida tem já um sentido. Cabe ao homem
descobri-lo, não inventá-lo; encontrá-lo, não criá-lo; achá-lo, não fabricá-lo. Não se trata,
pois, de atribuir um sentido à vida, mas de cair na conta do sentido que a vida tem. Não se
trata de injetar sentido nas coisas, mas de extrair o sentido que elas já possuem. Em vez de
ser algo dado por nós, o sentido é, para nós, um dado.
[84] Em sua busca do sentido, o homem é orientado pela sua consciência. A consciência
pessoal é o órgão do sentido.
[85] Em sua busca do sentido, o homem pode ser ajudado por valores compartilhados e
transmitidos pela tradição, assim como pode ter que encontrá-lo por si mesmo. Há, pois,
sentidos universais, próprios de situações típicas, e sentidos únicos, próprios de situações
que têm um caráter pessoal.
[86] Há três maneiras de encontrar o sentido da vida: trabalhando, amando e... sofrendo!
Pode-se encontrar o sentido da vida por meio da realização de uma ação, da criação de
uma obra, da execução de um projeto. Pode-se encontrar o sentido da vida por meio da
experiência de algo, fazendo uma vivência, desfrutando de alguma coisa – e, aqui, se
destaca a experiência do encontro amoroso com outra pessoa. Esses são os dois modos
costumeiros de encontrar o sentido da vida. No primeiro, dá-se alguma coisa ao mundo; no
segundo, recebe-se dele alguma coisa.
[87] Mas é também possível encontrar sentido para a vida no confronto com uma situação
penosa da qual não há escapatória, ou seja, no sofrimento.
[88] A esses três modos de encontrar o sentido da vida, correspondem três tipos de
valores: de criação, de experiência e de atitude. Uma pessoa pode, pois, viver uma vida
repleta de sentido realizando valores criativos, vivenciais ou atitudinais.

O sentido do sofrimento

[89] A vida tem sentido. O sofrimento faz parte da vida. Deve, pois, haver sentido também
no sofrimento.
[90] O homo patiens é o homem padecente, o homem que sabe sofrer, o homem que é
capaz de encontrar um sentido para a sua dor, transformando-a num triunfo pessoal.
[91] O sofrimento passível de ser dotado de sentido é o sofrimento inevitável. Se o
sofrimento for evitável, a coisa significativa a fazer é eliminar a sua causa.
[92] Diante do sofrimento inevitável, não há nada que o homem possa fazer para removê-
lo. Ele pode, contudo, fazer, sim, alguma coisa: pode mudar a sua atitude para com o seu
sofrimento. O sofrimento é, pois, uma oportunidade para a realização de valores de
atitude.
[93] Assumir o próprio sofrimento, aceitá-lo com humildade, suportá-lo com paciência e
dignidade, sem desesperar, enfrentá-lo com coragem, bravura e valentia, tornar-se um
exemplo para os outros, sofrer por amor a alguém, conferir ao sofrimento o valor de oferta
ou sacrifício – são maneiras de encontrar um sentido para o sofrimento; são modos de
realizar valores atitudinais.

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[94] É sempre possível realizar algum tipo de valor. Um homem que não pode mais
realizar valores criativos – e, talvez, nem mesmo vivenciais – tem, pelo menos, a
possibilidade de realizar valores de atitude.
[95] Encontrar sentido no sofrimento é dar um testemunho extremo da capacidade
humana de encontrar um sentido para a vida. Daí que o sentido do sofrimento possa ser
considerado a forma mais elevada da experiência do sentido. Os valores de atitude ocupam
uma posição acima dos valores de criação e de experiência.
[96] Cabe, pois, ao logoterapeuta ajudar os seus pacientes a se capacitarem não apenas
para o trabalho e a fruição da vida, mas também para o sofrimento.
[97] Em alguns casos, o logoterapeuta tem ainda outro papel: não podendo curar ou aliviar
a dor dos seus pacientes, resta a ele o ofício de consolar.
[98] O sofrimento, a culpa e a morte constituem a tríade trágica da existência. Ao lado do
sofrimento, também a culpa e a morte são ocasiões para a realização de valores de atitude.
Diante dessa tríade, o homem tem, então, a chance de suportar com valentia o sofrimento,
assumir responsavelmente a própria culpa e enfrentar a morte com dignidade.
[99] A responsabilidade é uma das características fundamentais do homem. Desculpar
uma pessoa, retirar dela a responsabilidade pelos seus erros, considerando-a vítima das
circunstâncias, é também privá-la da sua dignidade humana. Assumir com
responsabilidade a própria culpa é realizar um valor atitudinal.
[100] Assim como o sofrimento inevitável, também a morte pode se configurar como uma
realidade que o ser humano não é capaz de mudar pelo agir. Se não pode mudá-la, ele
pode, contudo, mudar a sua atitude, escolhendo morrer com dignidade.

O caráter incondicional do sentido

[101] A capacidade humana de encontrar sentido


mesmo para o sofrimento revela que o sentido da vida
é incondicional. Potencialmente, a vida tem sentido
sempre, em quaisquer circunstâncias, aconteça o que
acontecer, mesmo na pior situação imaginável.
[102] A vida tem sentido independentemente da sua
duração – ainda que seja curta. Já que tem sentido,
ela continua a possuí-lo mesmo sendo breve. Se não o
tivesse, não passaria a tê-lo em decorrência do fato de
ser longa.
[103] A transitoriedade da vida não aniquila o seu
sentido. A vida tem sentido, não obstante o fato de ser
passageira.
[104] Antes de uma coisa acontecer, ela é meramente
uma possibilidade. Uma vez concretizada, ela está
feita para sempre.
[105] No passado, as obras realizadas, os amores
amados, as dores sofridas, tudo fica guardado para
sempre. Nada do que aconteceu pode ser apagado. Ninguém pode subtrair o que no
passado foi depositado. Ter sido é a forma mais segura do ser. O passado é um celeiro.
[106] Se isso é verdade, cabe, pois, ao homem escolher bem, com responsabilidade, as
possibilidades que vai transformar em realidade e, desse modo, eternizar no passado.
[107] Se a transitoriedade não priva a vida de sentido, tampouco a morte é capaz de fazê-lo
– aliás, pelo contrário. Se o homem fosse imortal, as suas ações poderiam ser adiadas
indefinidamente; não seria nunca importante realizá-las agora e não mais tarde. Pelo fato
de que é mortal, o homem é obrigado a aproveitar o tempo de vida de que dispõe, sabendo
que cada momento é único e irrepetível. A finitude da vida é, pois, constitutiva do seu
sentido.
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[108] A palavra “fim” tem dois significados: término e sentido. Se a vida não tivesse um
“fim”, enquanto término, ela não teria um “fim”, enquanto sentido.

O sentido último da vida

[109] Certamente, é possível encontrar sentidos parciais para situações específicas da vida.
Mas... seria também possível encontrar um sentido último (suprassentido) para o conjunto
da existência?
[110] Muitas pessoas acreditam que sim, e não poucas reconhecem em Deus o sentido
último de suas vidas. Coloca-se, assim, a questão da relação entre a logoterapia e a religião.
[111] Frankl era um homem religioso; professava a fé judaica. Muitas pessoas religiosas –
cristãos, inclusive – têm se mostrado receptivas à sua abordagem em psicologia, parecendo
reconhecerem-se ali com mais facilidade.
[112] A logoterapia não é, contudo, uma psicoterapia confessional – judaica, católica ou
protestante. A logoterapia é uma abordagem laica de problemas clínicos. A logoterapia tem
uma atitude neutra para com a religião.
[113] Um logoterapeuta pode ou não ser religioso. Um paciente de logoterapia, idem: a
logoterapia deve ser aplicável a uma pessoa independentemente de sua posição religiosa.
[114] Sendo religioso, o logoterapeuta não propõe ao paciente a sua visão de mundo. Se,
contudo, o próprio paciente introduz a sua fé religiosa como uma resposta ao problema do
sentido da vida, convém que o logoterapeuta reconheça como válida essa busca. Em suma,
a logoterapia deixa aberta a porta da religião e é receptiva a essa dimensão quando ela
entra em cena por iniciativa do paciente. A logoterapia é, enfim, uma abordagem em
psicologia aberta à transcendência.

Clínica

[115] A principal aplicação da análise existencial é o âmbito clínico.


[116] O homem é um ser bio-psico-espiritual. Correspondentemente, as neuroses têm uma
etiologia tridimensional. Pode-se, então, falar em três tipos de neurose: somatogênicas,
psicogênicas e noogênicas.
[117] As neuroses somatogênicas têm uma origem somática.
[118] As neuroses psicogênicas possuem uma causação psíquica.
[119] As neuroses noogênicas, por sua vez, têm uma etiologia noética. Identificado por
Frankl, esse novo tipo de neurose é causado pela falta de um sentido para viver,
decorrendo, pois, do vazio existencial. Estima-se que 20% das neuroses em geral
pertençam a essa categoria. Há testes que podem servir para identificar uma neurose
noogênica. Entre eles, o teste PIL (Purpose in Life Test), de James C. Crumbaugh e
Leonard T. Maholick, e o Logoteste, de Elisabeth S. Lukas.
[120] A logoterapia não é uma panaceia. Fundamentalmente, ela é a terapêutica indicada
para os casos de neurose noogênica. É essa a sua especificidade.
[121] Não obstante, a logoterapia também pode ser útil no tratamento de algumas neuroses
psicogênicas. Primeiramente, porque desenvolveu técnicas próprias aplicáveis a esse tipo
de neurose. E, em segundo lugar, porque ajudar um paciente a encontrar o sentido da vida
tem o efeito secundário de capacitá-lo para superar as eventuais neuroses psicogênicas de
que padeça.

Patologia e terapia das neuroses noogênicas

[122] O tempo em que vivemos é caracterizado pela propagação em escala massiva de uma
forma de neurose. A neurose coletiva contemporânea é uma neurose noogênica: o vazio
existencial.

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[123] Frankl dizia que era da cidade de Freud, mas não do tempo de Freud. A grande
insatisfação social dos nossos dias não é de natureza sexual, mas existencial.
[124] A sociedade contemporânea tem se mostrado capaz de satisfazer a todas as
necessidades humanas – inclusive, a algumas necessidades por ela mesma criadas –, com
exceção da mais fundamental de todas as vontades do homem: a vontade de sentido.
[125] Em países ricos, muitas pessoas têm como viver, mas não têm um para quê; têm os
meios, mas não o sentido.
[126] Caracterizam a neurose de massa da atualidade: a carência de um sentido para viver,
o vácuo existencial, a ausência de interesse pela vida, a falta de iniciativa para tentar tornar
o mundo melhor, a indiferença, o tédio existencial, o niilismo etc.
[127] Os jovens são especialmente afetados por esse mal.
[128] Uma das principais causas do vazio existencial dos nossos dias é o declínio das
tradições, com o consequente desmoronamento dos valores compartilhados.
[129] Os três sintomas principais da neurose coletiva atual são a depressão, a
criminalidade e a drogadição.
[130] A depressão costuma estar associada a uma hipotrofia do sentido.
[131] O niilismo é o “pai” da violência.
[132] Para não poucas pessoas, as drogas funcionam como um anestésico para o vazio
existencial que as corroem interiormente.

[133] Além do vazio existencial generalizado, é possível identificar alguns tipos mais
específicos de neurose que também têm uma natureza noológica.
[134] A neurose dominical é uma depressão típica dos finais de semana, ocasião em que
algumas pessoas – interrompido o corre-corre do dia-a-dia – caem na conta da falta de
sentido da própria existência.
[135] A neurose do desemprego é outro exemplo de neurose noogênica. O seguro-
desemprego não basta; as pessoas precisam também de sentir que existem para algo – ou
para alguém.
[136] Também a crise da aposentadoria faz pensar no novo tipo de neurose identificado
pela logoterapia.
[137] Diante de uma neurose noogênica, o objetivo da logoterapia não poderia ser outro:
trata-se de ajudar o paciente a encontrar um sentido para a sua vida; trata-se de
conscientizá-lo do logos da sua existência; trata-se, enfim, de auxiliar o paciente a
desbloquear a sua dimensão noética.
[138] O próprio paciente deve, porém, encontrar, por si mesmo, guiado pela própria
consciência, a resposta para a pergunta sobre o sentido da sua vida. Sem sugerir ao
paciente qual possa ser esse sentido, o logoterapeuta pode – isto, sim – encorajá-lo nessa
busca, garantindo que, potencialmente, a vida tem sentido sempre.

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[139] O modo de conduzir o paciente na busca do sentido da sua vida é o chamado “diálogo
socrático”. O diálogo socrático é a própria interlocução logoterapêutica. Por meio da
conversação, procura-se levar o paciente a “dar à luz” o sentido da sua vida. Em sua relação
dialógica com o paciente, o logoterapeuta é, pois, o “parteiro” do sentido, um “obstetra” do
espírito. Os pacientes, por seu turno, são as “parturientes”.

Patologia e terapia das neuroses psicogênicas

[140] Embora tenha sido concebida como terapêutica das neuroses noogênicas, a
logoterapia fez também contribuições importantes à compreensão e ao tratamento das
neuroses psicogênicas.
[141] No campo das neuroses psicogênicas, a logoterapia identificou alguns dinamismos
patológicos e desenvolveu técnicas psicoterapêuticas novas. Entre os fenômenos
patogênicos identificados, estão a hiperintenção, a hiper-reflexão e a ansiedade
antecipatória.
[142] A hiperintenção e a hiper-reflexão são duas atitudes distintas, mas correlativas;
normalmente, acontecem conjuntamente. A hiperintenção consiste em querer alguma
coisa com muita ênfase. A hiper-reflexão consiste em prestar atenção demasiada a alguma
coisa – no mais das vezes, a si mesmo. Ambas as atitudes podem ser nocivas
psicologicamente. A impotência, a frigidez e a insônia, por exemplo, podem resultar da
ação conjunta da hiperintenção e da hiper-reflexão.
[143] A ansiedade antecipatória é uma condição frequentemente encontrada em pessoas
neuróticas. Consiste no seguinte dinamismo. Numa determinada ocasião, uma pessoa
apresenta um determinado sintoma. O sintoma lhe é molesto, penoso. A pessoa passa,
então, a ter medo de que aquele sintoma aconteça novamente. E o medo de que o sintoma
se repita faz com que ele, de fato, sobrevenha. Estabelece-se, assim, um círculo vicioso;
forma-se um mecanismo de feedback. Esse mecanismo é típico da fobia. Exemplos: medo
de enrubescer, medo de transpirar, medo de tremer, medo de gaguejar, medo de não
conseguir dormir etc.
[144] O mecanismo da neurose obsessivo-compulsiva também tem o caráter de um círculo
vicioso. Funciona como se segue. Ao paciente, ocorre, certa vez, um pensamento obsessivo
ou uma compulsão. O impulso é moralmente censurável; provoca ansiedade. O paciente
luta, então, contra as suas obsessões e compulsões. A contrapressão, contudo, tem por
efeito aumentar a pressão. De novo, forma-se um círculo vicioso. O paciente está preso.
[145] Para combater esses mecanismos, Frankl desenvolveu duas técnicas
psicoterapêuticas: a derreflexão e a intenção paradoxal.
[146] A derreflexão é uma técnica logoterapêutica que se contrapõe à hiper-reflexão e,
indiretamente, à hiperintenção. A derreflexão consiste em levar o paciente a não se
concentrar na observação de si próprio, desviando a sua atenção para alguma outra coisa.
A atenção do paciente é, desse modo, “derrefletida”. A impotência, a frigidez e a insônia
podem ser tratadas por meio desse procedimento.
[147] A intenção paradoxal é uma técnica logoterapêutica que combate a hiperintenção e,
especialmente, a ansiedade antecipatória. A intenção paradoxal consiste em orientar o
paciente a fazer – ou, pelo menos, a desejar – exatamente aquilo de que ele tem medo e
tende a evitar. O procedimento desmonta o círculo vicioso da ansiedade antecipatória: o
medo de alguma coisa é substituído pela “intenção paradoxal” de que aquela coisa
aconteça. A técnica está indicada para casos de neurose de angústia, fobia e neurose
obsessivo-compulsiva. A intenção paradoxal é, porém, severamente contraindicada para
casos de depressão com risco de suicídio.
[148] A intenção paradoxal apoia-se na capacidade humana de autodistanciamento.
Convém formulá-la da forma o mais humorística possível. A utilização do humor com
finalidade psicoterapêutica é uma das características da logoterapia.

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[149] A logoterapia pode ser combinada com técnicas de outras abordagens clínicas – o
comportamentalismo, por exemplo. Em psicologia, há teorias que ignoram a dimensão
noológica do ser humano, mas que, a respeito da sua dimensão psicológica, fizeram
descobertas valiosas. Por outro lado, as técnicas logoterapêuticas estão à disposição para
serem utilizadas por médicos e psicólogos que seguem outra orientação teórica –
psicanalistas, por exemplo. A logoterapia entende a sua relação com as demais escolas
como uma relação de complementaridade, não de rivalidade ou exclusão.
[150] Seja como for, a logoterapia também entende que o mais importante em psicoterapia
não são as técnicas, mas a relação humana que se estabelece entre o terapeuta e o cliente,
ou seja, o encontro pessoal entre um eu e um tu. Em última análise, a psicoterapia tem
mais a ver com a arte do que com a técnica e baseia-se mais na sabedoria do que na
ciência.

Frankl e a psicanálise de Freud

[151] Frankl sempre se referiu a Freud de uma


maneira extremamente respeitosa. Para ele, Freud
foi um pioneiro, o maior gênio da história da
psicoterapia, uma figura incomparável, devendo a
sua cadeira permanecer para sempre vazia. Basta
dizer que, na sala de estar da casa de Frankl, havia
uma foto de Tilly, outra em que Frankl está ao lado
de Heidegger e... um desenho de Freud.
[152] Não obstante, há várias e importantes
diferenças entre a logoterapia de Frankl e a
psicanálise de Freud. Seguem-se algumas delas.
[153] (1ª) Freud não reconhece a dimensão noética
do homem, que, para Frankl, é, justamente, a sua
dimensão mais característica. A imago hominis da
psicanálise é, portanto, uma representação muito
empobrecida do ser humano. A psicanálise – pode-
se mesmo dizer – é um “homunculismo”, isto é,
uma visão apequenada do homem.
[154] (2ª) A psicanálise é pandeterminista. Para a
logoterapia, o homem sofre, sim, determinações, mas, não obstante, é livre. É habitado por
pulsões, é influenciado pela sua história de vida, mas, apesar disso, é livre: pode dizer
“sim” ou “não” aos impulsos; pode modelar a própria vida.
[155] (3ª) Para Freud, a pergunta pelo sentido da vida é uma questão sem resposta. Ao se
ocupar desse problema, o homem dá sinais de que está doente. Para Frankl, a vida tem
sentido – e um sentido incondicional. Ao se perguntar pelo sentido da vida, o homem não
revela alguma enfermidade; pelo contrário, manifesta a sua humanidade.
[156] (4ª) Segundo Freud, o homem é regido pelo princípio do prazer. Para Frankl, o
princípio do prazer é autoanulativo: quanto mais o prazer é diretamente buscado, menos
se consegue desfrutar dele. Não se deve almejar o prazer. O prazer é consequência, não
meta. A meta é o sentido, cuja realização pode ter como efeito colateral o prazer. Busca o
prazer como meta aquele que viu frustrada a sua vontade de sentido – ou seja, o neurótico.
O prazer funciona, então, como uma compensação ou um anestésico para a dor do vazio
existencial1.

1Algo análogo pode ser dito da vontade de poder de Adler. O poder não é meta, mas meio. A meta é
a realização do sentido. O poder pode se configurar como meio caso a realização do sentido
dependa de certas condições sociais e econômicas. Faz do poder a sua meta o homem que fracassou
na busca do sentido. Ou seja, de novo, o neurótico.
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[157] (5ª) O princípio do prazer de Freud está subordinado a um princípio superior, a
homeostase. De acordo com esse princípio, o objetivo primário de toda atividade humana é
a redução de tensão por meio da satisfação pulsional. Aos olhos de Frankl, pelo contrário, o
homem necessita de tensões, busca tensões, cria, ele mesmo, tensões – não uma tensão
excessiva, mas uma dose de tensão, uma quantidade saudável de tensão. Nomeadamente,
o organismo humano necessita da tensão que se estabelece entre dois polos: o homem e o
sentido; o ser e o dever ser; a essência e a existência; o real e o ideal. Frankl deu a essa
dinâmica existencial o nome de “noodinâmica”, por contraste com a psicodinâmica de
Freud.
[158] (6ª) A psicanálise é um método retrospectivo, voltado para o passado; a logoterapia é
uma técnica prospectiva, orientada para o futuro.
[159] (7ª) Freud é um “mestre da suspeita”. Um dos traços mais característicos da sua
abordagem em psicologia é a atitude de suspeita diante dos fenômenos que examina. Com
os aspectos nobres da experiência humana, não é diferente. Para Freud, tudo o que há de
sublime na vida do homem – o amor, a consciência moral, o senso de justiça, a
solidariedade, a arte, a religião, a ética, o sentido, os valores etc. – pode ser remontado a
alguma coisa primitiva de natureza pulsional. Tudo o que há de elevado é, na verdade, o
produto da incidência de algum mecanismo de defesa – a inibição, a sublimação, a
formação reativa, a racionalização etc. – sobre alguma exigência pulsional. Frankl pensa
diferente. A suspeita freudiana transforma fenômenos autênticos e originários em
epifenômenos. Ela reduz realidades especificamente humanas a realidades sub-humanas.
E presta, ademais, um desserviço ao apreço que se deve ter pelos valores, tendendo a
desacreditá-los. Ora, não é possível suspeitar de tudo, desmascarar tudo, a tudo rebaixar.
Há coisas que devem ser tomadas at face value (pelo que aparentam ser). Insistir em
desmascará-las desmascara apenas o insensato desejo de desqualificar o que, no homem,
há de mais humano.
[160] (8ª) Para Freud, quem ama, idealiza a pessoa amada, colocando-a no lugar do seu
ideal do eu. Consequentemente, fecha os olhos para os defeitos da pessoa amada – “o amor
é cego” –; aumenta as eventuais qualidades que a pessoa amada tenha; atribui à pessoa
amada virtudes que ela não possui. Para Frankl, o amor não é cego; pelo contrário, é
clarividente. Quem ama, é capaz de ver na pessoa amada não apenas o que ela é, mas o que
pode vir a ser: as suas potencialidades. E o amor encoraja e estimula a pessoa amada a se
tornar o que ela pode vir a ser.
[161] (9ª) Para a psicanálise, a repressão incide principalmente sobre a sexualidade. Para a
logoterapia, não apenas a sexualidade é passível de ser reprimida, mas também a
religiosidade. Além do inconsciente pulsional, há também o inconsciente espiritual. A
psicologia “profunda” não foi tão “fundo”.
[162] (10ª) Por fim, para Freud, a religião não apenas provoca neuroses, mas é, ela mesma,
uma neurose: a neurose obsessiva universal da humanidade. Para Frankl, embora o seu
objetivo não seja promover a saúde mental, a religião pode concorrer para a sanidade
psíquica do crente. Há uma correlação positiva entre religiosidade e saúde mental. A
repressão da religiosidade é que tende a ser patogênica, podendo resultar numa neurose.
Caberá, então, à logoterapia trazer à tona essa espiritualidade latente, tornar consciente o
inconsciente espiritual. Assim, longe de ser neurótica ou neurotizante, a religiosidade tem
um valor psicoterapêutico.
[163] Por tudo isso, embora respeitando Freud profundamente, Frankl considera a sua
logoterapia uma abordagem mais abrangente e mais profunda do que a psicanálise. Ele se
comparou a um anão que subiu nos ombros de seus mestres – Freud e Adler –, tornando-
se capaz de enxergar mais longe.

36
As melhores frases de Frankl

[164] Para concluir, algumas das frases mais


representativas do pensamento de Frankl.
[165] Campo de concentração: “...aqueles mais
propensos a sobreviver eram os orientados para o
futuro, para um sentido, cuja realização os
aguardava no porvir” (FRANKL, O que não está
escrito nos meus livros, p. 115).
[166] “Quem tem por que viver pode suportar
quase qualquer como” (NIETZSCHE apud FRANKL,
Em busca de sentido, p. 8).
[167] O homem: “De modo algum, todos se
‘animalizaram’ sob a pressão da fome [...]. Houve
homens que cambaleavam através de barracas de
alojamento e por cima de locais de chamada e
distribuíam aqui uma boa palavra e ali um último
pedaço de pão aos seus companheiros” (FRANKL,
Psicoterapia para todos, p. 144).
[168] “Ficamos conhecendo o ser humano como
talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que
sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele
ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios” (FRANKL, Em busca
de sentido, p. 84).
[169] “...se considerarmos o homem tal como ele é, nos o tornamos pior. Por outro lado, se
nós o considerarmos como ele deveria ser, nós o ajudamos a tornar-se aquilo que ele pode
vir a ser” (GOETHE apud FRANKL, O que não está escrito nos meus livros, p. 171).
[170] Autotranscendência e autorrealização: “Quanto mais a pessoa esquecer de si mesma
– dedicando-se a servir uma causa ou a amar outra pessoa – mais humana será e mais se
realizará” (FRANKL, Em busca de sentido, p. 100).
[171] Liberdade e responsabilidade: “Os americanos [...] deveriam ‘complementar’ a
Estátua da Liberdade, situada na costa leste, com uma estátua da responsabilidade na
costa oeste” (FRANKL, Sede de sentido, p. 31).
[172] A vontade de sentido: “...o homem, no fundo, sempre aspira a encontrar um sentido
para a sua vida e a atingir plenamente êsse sentido, realizando-o” (FRANKL, Psicoterapia e
sentido da vida, p. 322).
[173] O caráter incondicional do sentido: “...a vida tem um sentido potencial sob quaisquer
circunstâncias, mesmo as mais miseráveis” (FRANKL, Em busca de sentido, p. 10).
[174] O sentido da vida e o sofrimento: “Quando já não somos capazes de mudar uma
situação – podemos pensar numa doença incurável, como um câncer que não se pode mais
operar – somos desafiados a mudar a nós próprios” (FRANKL, Em busca de sentido, p. 101).
[175] O sentido da vida e a transitoriedade: “...no passado, nada está perdido. Ao contrário,
tudo está guardado a salvo como se depositado num armazém cheio de provisões. Ser-
passado é a forma mais segura de ser. O que passou está a salvo, protegido contra a
transitoriedade da vida” (FRANKL, A vontade de sentido, p. 150).
[176] O sentido da vida e a morte: “...é a morte que dá sentido à vida” (FRANKL,
Psicoterapia e sentido da vida, p. 119).
[177] O sentido último da vida: Numa anotação de oito de julho de 1916, Wittgenstein
escreveu: “Crer em Deus significa ver que a vida tem sentido” (WITTGENSTEIN, Notebooks
1914–1916, p.74e; cf. FRANKL, A presença ignorada de Deus, p. 89).
[178] Einstein, por sua vez, afirmou: “Ser religioso é ter encontrado uma resposta para a
pergunta ‘qual o sentido da vida?’” (EINSTEIN apud FRANKL, A presença ignorada de Deus,
p. 89).
37
[179] O vazio existencial contemporâneo: “O homem de hoje, ao contrário do que ocorria
ao tempo de Sigmund Freud, já não é sexualmente frustrado, mas existencialmente
frustrado” (FRANKL, Psicoterapia para todos, p. 155).
[180] “Em nossos dias um número cada vez maior de indivíduos dispõe de recursos para
viver, mas não de um sentido pelo qual viver” (FRANKL, Um sentido para a vida, p. 15).
[181] Psicanálise: “Freud viu certo, porém não viu tudo” (FRANKL, Psicoterapia para todos,
p. 32).
[182] “Ao lado de Freud, eu não sou mais que um anão, mas se um anão trepa aos ombros
dum gigante, vê até muito mais longe do que êle” (FRANKL, Psicoterapia e sentido da vida,
p. vii).

Bibliografia de Viktor Frankl em português

1. FRANKL, Viktor E. A presença ignorada de Deus. 4.ed. São Leopoldo: Sinodal;


Petrópolis: Vozes, 1997. 102p. (Logoterapia; 4.)
2. FRANKL, Viktor E. A psicoterapia na prática; uma introdução casuística para
médicos. São Paulo: EPU, 1976. 244p.
3. FRANKL, Viktor E. A questão do sentido em psicoterapia. Campinas: Papirus, 1990.
160p.
4. FRANKL, Viktor E. A vontade de sentido; fundamentos e aplicações da logoterapia.
São Paulo: Paulus, 2011. 240p. (Logoterapia.)
5. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido; um psicólogo no campo de concentração.
7.ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1997. 138p. (Logoterapia; 3.)
6. FRANKL, Viktor E. Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1978. 292p. (Psyche.)
7. FRANKL, Viktor E. Logoterapia e análise existencial; textos de seis décadas. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012. 354p.
8. FRANKL, Viktor E. O sofrimento de uma vida sem sentido; caminhos para encontrar a
razão de viver. São Paulo: É Realizações, 2015. 128p.
9. FRANKL, Viktor E. O que não está escrito nos meus livros; memórias. São Paulo: É
Realizações, 2010. 184p.
10. FRANKL, Viktor E. Psicoterapia e sentido da vida; fundamentos da logoterapia e
análise existencial. São Paulo: Quadrante, 1973. 354p.
11. FRANKL, Viktor E. Psicoterapia para todos; uma psicoterapia coletiva para
contrapor-se à neurose coletiva. Petrópolis: Vozes, 1990. 160p.(Logoterapia; 1.)
12. FRANKL, Viktor E. Teoria e terapia das neuroses; introdução à logoterapia e à análise
existencial. São Paulo: É Realizações, 2016. 256p.
13. FRANKL, Viktor E. Um sentido para a vida; psicoterapia e humanismo. 5.ed.
Aparecida: Santuário, 1996. 160p.
14. FRANKL, Viktor E. Sede de sentido. 3.ed. São Paulo: Quadrante, 2003. 72p.
15. FRANKL, Viktor E.; LAPIDE, Pinchas. A busca de Deus e questionamentos sobre o
sentido; um diálogo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2014. 176p.
38
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

Carl Rogers
Vida e obra

[1] Carl Ransom Rogers (1902-1987) é um dos


fundadores da psicologia humanista.
[2] Antes de desenvolver a própria abordagem
em psicologia, Rogers foi influenciado, ao longo
da sua formação, tanto pelo behaviorismo
quanto pela psicanálise.
[3] Estudou na Universidade de Wisconsin, no
Union Theological Seminary e no Teachers
College da Universidade de Columbia.
[4] Como psicoterapeuta, trabalhou no Instituto
de Orientação Infantil, no Centro de Orientação
Rochester – ambos em Nova Iorque –, no
Centro de Aconselhamento da Universidade de
Chicago e no Centro de Estudos da Pessoa, em
La Jolla, na Califórnia.
[5] Lecionou em diversas universidades: foi
professor da Universidade de Columbia, da
Universidade de Rochester, da Universidade
Estadual de Ohio, da Universidade de Chicago, da Universidade de Wisconsin e da
Universidade Internacional dos Estados Unidos, em San Diego, na Califórnia. Foi também
professor-visitante em renomadas universidades estadunidenses.
[6] Foi presidente da American Psychological Association (APA) de 1946 a 1947. Duas
décadas mais tarde, em 1977, esteve no Brasil, visitando a cidade de São Paulo.
[7] Entre os principais livros de Rogers, estão: “O tratamento clínico da criança-problema”
(1939), “Aconselhamento e psicoterapia” (1942), “Terapia centrada no cliente” (1951),
“Tornar-se pessoa” (1961), “Psicoterapia e relações humanas” (1962) – em colaboração
com G. Marian Kinget –, “O relacionamento terapêutico e o seu impacto: um estudo da
psicoterapia com esquizofrênicos” (1967) – em colaboração com E. T. Gendlin, D. J.
Kiesler e C. B. Truax –, “O homem e a ciência do homem” (1968) – em colaboração com
William R. Coulson –, “Liberdade para aprender” (1969), “Grupos de encontro” (1970),
“Novas formas de amor” (1972), “A pessoa como centro” – em colaboração com Rachel L.
Rosenberg –, “Sobre o poder pessoal” (1977) e “Um modo de ser” (1980).

Teoria rogeriana da personalidade

[8] O pensamento de Rogers pode ser dividido em duas partes: uma teoria da
personalidade e uma teoria da psicoterapia. Comecemos pela primeira.
39
[9] O organismo, o self, a tendência realizadora – que inclui a tendência para a
autorrealização – e a necessidade de consideração positiva são os elementos fundamentais
da teoria rogeriana da personalidade.
[10] O organismo é o locus de toda experiência subjetiva. A experiência inclui tudo o que
acontece dentro do organismo e que pode se tornar consciente. O campo fenomenal
compreende a totalidade da experiência. O campo fenomenal não é, porém, idêntico ao
campo da consciência. A consciência abarca aquelas experiências que são simbolizadas. O
campo fenomenal compreende, pois, experiências conscientes (simbolizadas) e
inconscientes (não-simbolizadas). O organismo pode discriminar e reagir a uma
experiência inconsciente (não-simbolizada) por meio do mecanismo da subcepção.
[11] O self é uma porção diferenciada do campo fenomenal. O self é a ideia ou a imagem
que o indivíduo faz de si mesmo – o autoconceito ou a autoimagem. O self regula o
comportamento: o indivíduo tende a comportar-se em conformidade com o seu self. Pode-
se distinguir entre o self propriamente dito e o self ideal: o self é aquilo que a pessoa
considera ser; o self ideal, por sua vez, o que ela gostaria de ser.
[12] A tendência realizadora é a motivação fundamental do organismo. É a tendência que o
organismo tem de expandir-se, estender-se, diferenciar-se, enriquecer-se, aperfeiçoar-se. É
a tendência que leva o organismo ao crescimento, à atualização, ao amadurecimento, à
realização, ao desenvolvimento. Trata-se de uma tendência direcional positiva para
avançar, ir para frente. Trata-se de uma tendência para a realização de todas as
capacidades, potencialidades, talentos, habilidades e virtualidades do organismo. Trata-se,
enfim, da tendência que o organismo tem de concretizar a sua natureza: vir a ser o que ele
pode ser.
[13] A tendência realizadora tem uma base biológica; é uma tendência inata, inerente a
todo processo de crescimento orgânico. A tendência realizadora não é, porém, irresistível.
Longe disso, ela depende de condições favoráveis para prevalecer; trata-se de um impulso
que facilmente pode ser abafado.
[14] A tendência para a autorrealização, por sua vez, é uma expressão particular da
tendência realizadora. Trata-se da tendência para realizar aqueles aspectos da experiência
que são simbolizados como parte do self. A tendência para a autorrealização é, assim, a
tendência de realizar o self.
[15] Por fim, a necessidade de consideração positiva é uma necessidade inata, universal. De
fato, todos nós temos necessidade de ser amados pelos outros, sobretudo, por certas
pessoas, especialmente significativas, as pessoas-critério.
[16] Postas as peças no tabuleiro, temos, então, duas possibilidades fundamentais: a
congruência e a incongruência.
[17] Congruência. Quando as condições são favoráveis, isto é, quando a pessoa é
considerada positivamente de forma incondicional por parte das pessoas significativas
para ela, não há condições de valor; o indivíduo é amado como é. Então: o organismo faz
uma experiência  procede a uma autoavaliação dessa experiência  aceita a experiência
feita  simboliza corretamente a experiência  a experiência é conscientizada  a
experiência é incorporada à Gestalt do self da pessoa  estabelece-se uma congruência
entre o organismo e o self, a experiência e o autoconceito  a tendência realizadora e a
tendência para a autorrealização operam em harmonia. Esse é o modelo da saúde psíquica.
A pessoa é ela mesma.
[18] Incongruência. Quando as condições são desfavoráveis, isto é, quando o indivíduo se
depara com a consideração positiva condicional por parte de pessoas significativas para
ele, o indivíduo introjeta no próprio self as condições de valor ditadas pelos outros. Então:
o organismo faz uma experiência  avalia a experiência a partir das condições de valor
introjetadas  experimenta algumas experiências (aquelas que estão em contradição com
o autoconceito) como uma ameaça ao próprio self  sente ansiedade  defende-se 
negando a experiência, isto é, não a simbolizando  ou distorcendo a experiência, isto é,
40
deformando-a  a experiência não é conscientizada  a experiência não é assimilada à
Gestalt do self da pessoa, mas é excluída  estabelece-se uma incongruência entre o
organismo e o self, a experiência e o autoconceito  a tendência realizadora e a tendência
para autorrealização ficam dissociadas. Esse é o quadro do adoecimento psíquico, o
modelo de toda patologia psicológica. A pessoa tenta ser o que as outras pessoas gostariam
que ela fosse.
[19] A incongruência pode estar entre a experiência e a conscientização ou entre a
conscientização e a comunicação. No primeiro caso, a incongruência decorre da repressão;
no segundo, da inautenticidade.
[20] Pode-se também falar em congruência e incongruência entre o self e o self ideal. A
congruência entre o self e o self ideal traduz-se em alta autoestima: “eu sou o que gostaria
de ser”. A incongruência entre o self e o self ideal traduz-se em baixa autoestima: “eu não
sou o que gostaria de ser”.
[21] Relações precoces – frequentemente, com os pais – podem fomentar a incongruência.
Mas relacionamentos posteriores – com um psicoterapeuta, por exemplo – podem
restaurar a congruência. Passemos, pois, ao segundo bloco do pensamento rogeriano: a sua
teoria da psicoterapia.

A terapia centrada no cliente

[22] A terapia rogeriana é chamada de terapia


“não-diretiva”, “centrada no cliente” ou “de
pessoa para pessoa”.
[23] Ela é não-diretiva porque o terapeuta não
dirige o cliente; é o próprio cliente quem dirige o
tratamento.
[24] Ela é centrada no cliente – e não no
terapeuta –, na medida em que se acredita que o
cliente é o principal responsável pela própria
recuperação. Por isso mesmo, ele é chamado de
“cliente”, não de “paciente”.
[25] Ela é de pessoa para pessoa porque se trata
de um relacionamento pessoal. A psicoterapia,
segundo Rogers, é apenas um caso de relação
interpessoal construtiva.
[26] O objetivo da terapia é proporcionar ao
cliente um estado de congruência entre o seu self
e as suas experiências organísmicas.
[27] A função do terapeuta, por sua vez, é criar uma atmosfera propícia ao pleno
desenvolvimento das potencialidades do cliente.
[28] Para tanto, Rogers não preconiza técnicas, mas atitudes terapêuticas. A saber: a
congruência, a consideração positiva incondicional e a compreensão empática.
[29] O terapeuta deve ser congruente: isto é, aquilo que o terapeuta experimenta em seu
organismo deve estar claramente presente em sua consciência e disponível para ser
comunicado ao cliente quando for conveniente. O terapeuta não deve se esconder por trás
da máscara de psicólogo profissional, mas ser autêntico, genuíno, transparente, natural,
verdadeiro. Nessa medida, o terapeuta funciona como um modelo de pessoa saudável para
o cliente.
[30] O terapeuta deve tratar o cliente com consideração positiva incondicional: ou seja,
deve acolhê-lo sem nenhuma condição de valor; deve aceitá-lo como é. Tratado dessa
maneira, o cliente sente-se encorajado a revelar-se por inteiro e a explorar porções ainda
não assimiladas de si mesmo.
41
[31] O terapeuta deve compreender o cliente empaticamente: isto é, deve colocar-se no
lugar do cliente e ver o mundo com os olhos dele; deve entrar no campo experiencial do
cliente e sentir em si mesmo o que ele sente. Mais do que isso, o terapeuta deve tentar
captar mesmo aquilo de que o cliente não está de todo consciente, mas que está no limiar
da sua consciência. E, tendo compreendido o cliente dessa maneira, deve comunicar a ele
essa compreensão.
[32] Essas três atitudes terapêuticas concorrem para que o cliente alcance um estado de
congruência, saúde mental e crescimento psicológico.
[33] A pessoa madura, em estado de funcionamento ótimo, pode ser assim caracterizada:
total abertura à experiência, autoavaliação das próprias experiências, atitude não-
defensiva, congruência entre o self e o organismo, self em estado contínuo de mudança,
autoaceitação e, consequentemente, aceitação dos outros, capacidade de estabelecer
relações profundas, compromisso com o presente e criatividade.
[34] Rogers atuou como terapeuta durante toda a sua carreira profissional. As teorias
rogerianas da personalidade e da psicoterapia baseiam-se em milhares de horas de
observações clínicas. Embora não tenha sido um psicólogo experimental, Rogers
empenhou-se em demonstrar cientificamente a eficácia da sua abordagem terapêutica.
Procedeu a gravações sistemáticas de terapias completas por meio do registro sonoro das
mesmas, de transcrições integrais das sessões e mesmo da documentação cinematográfica.
Comparou os clientes que estavam em tratamento com um grupo de controle constituído
por pessoas que estavam em listas de espera. E conseguiu demonstrar que a terapia
centrada no cliente promovia mudanças positivas mensuráveis nas vidas das pessoas. Em
suma, como toda a psicologia humanista, a psicologia de Rogers não é uma psicologia de
laboratório, mas se pretende empiricamente fundada.

Bibliografia
1. ROGERS, Carl R. Terapia centrada no paciente. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
528p. (Psicologia e pedagogia.)
2. ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981. 364p.
(Psicologia e pedagogia.)
3. ROGERS, Carl R.; KINGET, G. Marian. Psicoterapia e relações humanas; teoria e
prática da terapia não-diretiva. V. I: Exposição geral. 2.ed. Belo Horizonte: Interlivros,
1977. 290p. (Estante de psicologia.)
4. ROGERS, Carl R.; KINGET, G. Marian. Psicoterapia e relações humanas; teoria e
prática da terapia não-diretiva. V. II: Prática por G. Marian Kinget. 2.ed. Belo
Horizonte: Interlivros, 1977. 220p. (Estante de psicologia.)
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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH)
Departamento de Psicologia

PSI 1101: Teorias da Personalidade


Prof. Ricardo Torri de Araújo

Abraham Maslow
Vida e obra

[1] Abraham Harold Maslow (1908-1970) é um dos “pais” da


psicologia humanista.
[2] Ao longo da sua formação em psicologia, ele teve contato
com o estruturalismo, o behaviorismo, a psicanálise e a
psicologia da Gestalt.
[3] Lecionou psicologia no Brooklin College, em Nova Iorque, na
Universidade de Brandeis, em Massachusetts, e na Fundação
Laughlin, na Califórnia. De 1967 a 1968, foi presidente da
American Psychological Association (APA).
[4] As suas principais obras são: “Motivação e personalidade”
(1954/1970), “Religiões, valores e experiências-pico” (1964),
“Introdução à psicologia do ser” (1968) e “Os grandes feitos da
natureza humana” (1971).

A hierarquia das necessidades

[5] Segundo Maslow, o ser humano é movido por necessidades. Estas, por sua vez, estão
hierarquicamente organizadas. Nesta ordem: [a] necessidades fisiológicas, [b]
necessidades de segurança, [c] necessidades de amor e pertença, [d] necessidades de
estima e, por fim, [e] necessidades de autorrealização.

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[6] A hierarquia das necessidades de Maslow está ordenada em grau decrescente de
controle instintóide e de prepotência.
[7] As quatro primeiras necessidades são deficitárias: são acionadas por uma carência. A
necessidade de autorrealização é de outra ordem: ela não pretende suprir um déficit, mas
almeja o crescimento.
[8] A gratificação das necessidades tende a acontecer de uma maneira progressiva, uma
após a outra, na ordem acima estabelecida.
[9] Quanto mais degraus na hierarquia das necessidades uma pessoa subir, maior o seu
grau de saúde psicológica e humanização.
[10] No topo da pirâmide de Maslow, está a tendência para a autorrealização. Trata-se de
uma propensão inata, de tipo instintóide. Trata-se do motivo soberano da psicologia
humana. Trata-se, enfim, da tendência que o indivíduo tem de crescer, desenvolver-se e
realizar plenamente o seu potencial.

A personalidade das pessoas autorrealizadoras

[11] Maslow interessou-se pelo estudo da personalidade das pessoas maduras, chamadas
“autorrealizadoras”. Segundo ele, até o surgimento do humanismo, a psicologia –
nomeadamente, a psicanálise – havia focalizado mais a enfermidade do que a saúde
mental. Freud havia, por assim dizer, fornecido a metade negativa da psicologia; tratava-
se, agora, de voltar-se para o outro lado. Foi o que Maslow se propôs a fazer: uma
psicologia da saúde.
[12] Maslow traçou o perfil psicológico das pessoas autorrealizadoras: percebem a
realidade de modo objetivo; têm um profundo conhecimento de si mesmas e se acolhem
como são; dedicam-se a algum trabalho particular; são produtivas; no trato com os outros,
são simples, naturais e espontâneas; cultivam relacionamentos profundos; são afetuosas;
são autônomas e independentes; apreciam a privacidade; amam a espécie humana; não
são conformistas; são democráticas; têm grande interesse social; são altamente éticas; são
criativas; e têm experiências-pico intensas.

As experiências-pico

[13] Desfrutar frequente e profundamente de experiências-pico é uma das características


das pessoas autorrealizadoras. Maslow interessou-se por esse fenômeno de uma forma
particular. Uma experiência culminante é a experiência suprema que um ser humano pode
fazer. Via de regra, é fugaz. Costuma ser acompanhada da sensação de êxtase e plena
realização. Por um momento, a pessoa transcende o seu self e sente-se em perfeita
harmonia consigo mesma, com os outros e com o todo circundante. A localização da pessoa
no tempo e no espaço se perde. A experiência pode ser desencadeada pela contemplação de
alguma beleza natural, pela exposição a uma obra de arte, pela audição de uma música ou
por uma experiência amorosa. Pode ou não ter um caráter religioso.

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