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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

PÓS GRADUAÇÃO LATO SENSO


PSICANÁLISE E LINGUAGEM: UMA OUTRA PSICOPATOLOGIA

O DESEJO
O PERCURSO FILOSÓFICO E DE FREUD ACERCA DA TEORIA DO DESEJO

SANDRA GARCIA PEREZ ARIDA

Orientadora: Sandra Dias

Monografia apresentada como


parte dos requisitos para o
certificado de Especialização

São Paulo
2008
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AGRADECIMENTOS

Inicialmente, à orientadora, Profª. Drª. Sandra Dias pelo inestimável apoio,


orientação e dedicação neste percurso de formação. Por sua querida amizade, além de
sua paciência, bom humor e acolhimento de minhas “faltas”.
Ao Prof. Dr. Oscar Cesarotto que me acompanha na aventura de me tornar
sujeito de meu próprio desejo, com o seu bom humor e competência.
Aos professores e aos colegas que me acompanham neste nosso caminho por sua
dedicação, sua amizade, seu apoio e sua palavra “justa”.
Aos pacientes que em sua busca me ensinam e me convocam...
Aos meus pais (in memoriam) que permitiram que tudo isso fosse possível, pelo
seu desejo.
Ao Rogério, pelo seu amor, companheirismo, cumplicidade, e sua paciência nos
muitos momentos em que estive ausente, meu amor e minha gratidão.
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SANDRA GARCIA PEREZ ARIDA: O desejo: O percurso filosófico e de Freud acerca


da teoria do desejo. 2008
Orientadora: Sandra Dias

Palavras-chave: desejo, Freud, psicanálise, filosofia, Lacan.

RESUMO
O presente estudo se inscreve numa dupla vertente discursiva. Num primeiro
momento, privilegia o discurso filosófico acerca do tema do desejo, apontando uma
argumentação que se desloca do desejo do Ser ao desejo no humano correspondente a
um percurso cronológico que contempla a crescente ascensão da razão e o advento do
sujeito do conhecimento. Num segundo momento, é o desejo em Freud que está em
causa. No Projeto para uma Psicologia Científica (1950[1895]) e, posteriormente, no
texto prínceps da obra freudiana, A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud lança as
teses fundamentais que lhe permitirão teorizar acerca do desejo, quais sejam: o aparelho
psíquico é um aparelho de memória, portanto, de linguagem; e, os sonhos, a exemplo
das demais formações do inconsciente, são realizações de desejo. Desejo que é
inconsciente, infantil, sexual e cujo sentido é buscado na forma de decifração do “texto
psíquico” onde se coloca, fundamentalmente, a verdade do sujeito enquanto a sua falta.

ABSTRACT
The current study inscribes itself in a double discursive way. In a first moment it
privileges the philosophical discourse regarding the theme of desire, aiming an
argumentation that moves from the being desire to the human desire, correspondent to a
chronological route that contemplates the ascent growing of reason and the advent of
the knowledge subject. In a second moment, it is the desire in Freud that is in question.
On the Project for Scientific Psychology (1950[1895]), and subsequently on the most
important Freudian work, The Interpretation of Dreams (1900), Freud introduces the
fundamental propositions which will allow him to theorize about the desire, which are:
the psychological system is a memory system, therefore, the language one; and, the
dreams, as example of the other unconscious formations, they are the desire realizations.
Desire that is unconscious, childish, sexual, and which meaning is searched in a
deciphering way of the “psychological text” where it is stated, basically, the truth of
subject while his lack.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………………………. 5

CAP. I – O percurso na tradição filosófica do desejo ........................................ 8

CAP.II – O desejo em Freud .............................................................................. 47

CONCLUSÃO – Ou da impossibilidade de se concluir sobre o desejo ............ 77

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 82


5

INTRODUÇÃO

O presente estudo surge de uma dupla via, enquanto uma monografia de


conclusão do curso de especialização, mas, sobretudo, de uma inquietação diante da
questão do desejo.
O desejo é um tema caro à filosofia e fundamental à psicanálise, ainda que dele
Freud não tenha elaborado propriamente uma teoria, mas, se aproximado por um voto,
um Wunsch, mais além, por uma ética, por um desejo de analista.
Inicialmente, ao abordar a questão do desejo propriamente dita, deve-se atentar
ao fato de que, na via de uma epistemologia do desejo, uma investigação sobre tal
conceito há que se deparar com algumas questões fundamentais, quais sejam: de que
sujeito se trata? O sujeito da filosofia é o sujeito da psicanálise? O sujeito do
conhecimento é o mesmo sujeito do desejo? Qual a marca do desejo tomado como
objeto? Objeto de conhecimento e objeto de um saber? Conhecimento? Saber?
Verdade?
Se o sujeito da filosofia é o sujeito fictício da presença de si caro aos filósofos
da consciência, por sua vez, este se distingue do

sujeito falante, do sujeito ativo da “reivindicação”, aquele que diz “eu” (“je”), “eu”
(“moi”), nos interstícios de suas questões balbuciantes, essa “subjetividade sem
interioridade” que se manifesta apenas pela insistência ainda enigmática de suas
exigências, sensatas ou, loucas, de seus comportamentos, repetitivos ou desviantes (...).
(Ogilvie, 1991, p.17)

Nesse sentido se coloca uma primeira especificidade da psicanálise, o conceito


de inconsciente. Na tradição filosófica, tal conceito será definido em termos de uma
“negatividade”, com valor de adjetivo, qualificando um estado ou uma pessoa, sendo
entendido como “não-consciente”, ou, “o que não é consciente”.
Descartes identificando consciência e pensamento, não reconhecia a existência
do inconsciente; Leibniz, por sua vez, admitia a existência de pequenas percepções
inconscientes, a saber, mudanças na alma de que não se aperceberia.

Somente Nietzsche, mediante sua crítica do cogito, irá justamente afirmar a


existência de um pensamento inconsciente e impessoal, colocando, assim, em questão a
pretensão do sujeito de dominar, graças à consciência, seus pensamentos e sentimentos.
(...) Mas, enquanto que, para Nietzsche, o problema é de ordem metafísica, Freud o
coloca no terreno da ciência e da psicologia.1 (Clément & col, 1994, p.171)

1
Nossa tradução.
6

Será apenas com Freud que a assimilação entre pensamento e consciência será
radicalmente colocada em questão. Isso, a partir da via analítica, na clínica, e ao se
debruçar para entender justamente aquilo que falha, que marca sua presença por uma
ausência e que carrega a impressão de uma familiar estranheza. A saber, o inconsciente,
ou, mais especificamente, as chamadas formações do inconsciente.
Assim, no caso de Freud, o inconsciente remete a um sentido, que urge ser
decifrado na qualidade de um “texto psíquico”, portanto, de uma linguagem, enquanto
portador de uma verdade sobre o sujeito, sobre a sua falta. Esse é o caso dos sonhos,
entendidos como realizações de desejo. Além disso, o inconsciente freudiano remete a
uma pulsão.
No percurso da apreensão do conceito do desejo, no campo de uma reflexão
propriamente filosófica pode-se indagar sobre o sujeito do conhecimento e o objeto
deste conhecimento no cerne do questionamento filosófico.

(...) esse questionamento tem um objeto, assim como em toda pergunta, e esse
objeto é o saber. (...) a indagação enquanto filosófica pressupõe uma contestação da
resposta enquanto saber. (...) a contestação aqui é a priori, é um pressuposto do
questionamento filosófico. (...) A conseqüência então é que a indagação filosófica
enquanto tal não poderia ser formulada àquele que sabe, ao mestre. A filosofia é, antes
de mais nada, contestação da mestria. Isso é o que efetivamente mostra o diálogo
platônico, onde vemos Sócrates questionar justamente aqueles que se apresentam e que
nós apresentamos como mestres – e fazer surgir a ausência efetiva do saber. Essa
ausência do saber é radical (...). (...) No instante da indagação filosófica, o saber é
radicalmente contestado.
(...) é próprio da radicalidade do questionamento filosófico que, no instante da
indagação, qualquer outro bem desapareça e que o saber seja o bem. É só assim que a
confrontação com a falta do saber assume todo o seu sentido. Mas convém acrescentar
que a indagação filosófica não se concebe isoladamente e que, para além do instante da
pergunta, nenhum refúgio subsiste. O questionamento filosófico se caracteriza,
portanto, pela exigência contraditória de um desejo do saber, de certa maneira
“dramático”, e de uma contestação a priori do eventual saber. Como se houvesse um
saber que fosse preciso saber que não temos. Conhecemos a sorte do dito de Sócrates:
“Sei que não sei”. (Juranville, 1987, p. 55-56)

Nesse sentido, o presente percurso da indagação filosófica sobre o desejo


permitirá apreender que a argumentação se desloca do desejo do Ser remetido à idéia
absoluta do Bem ao desejo no humano que contempla a emergência e a problemática
das paixões. E isso numa cronologia que contempla a crescente ascensão da razão e o
advento do sujeito do conhecimento.
Finalmente, propõe-se iniciar o presente estudo mediante o percurso filosófico
para, em seguida, contemplar a causa do desejo em Freud. Neste segundo caso,
7

apoiando-se em dois textos fundamentais, quais sejam, o Projeto para uma psicologia
científica (1950[1895]) e A Interpretação dos Sonhos (1900).
8

CAPÍTULO I

O PERCURSO NA TRADIÇÃO FILOSÓFICA DO DESEJO

É extremamente rico e profícuo o percurso da conceituação do desejo


considerando-se as correntes do pensamento filosófico, sua cronologia histórica, seus
vários e fundamentais autores e os sistemas filosóficos por eles elaborados.
Ao entrar em contato com esse referencial pode-se perceber o quanto o
pensamento psicanalítico é tributário dessas idéias, embora remeta, para além, a um
sistema original e fundamentado, por sua vez e, primordialmente, no inconsciente,
segundo Lacan, o inconsciente estruturado como uma linguagem.
Nesse sentido, neste primeiro momento, propõe-se retomar algumas das
principais conceituações filosóficas sobre o desejo, visando introduzir esse tema a partir
das diversas formas de argumentação como aparece em diversos momentos e autores,
sem a pretensão de esgotar o tema, senão de instigar e fomentar no leitor às suas
próprias considerações sobre a questão do desejo, buscando-se, além disso, assinalar os
pontos de proximidade de tais conceituações com os pensamentos de Freud e Lacan
sobre o tema.
Assim, objetivando assinalar a etimologia do conceito remete-se ao texto de
Marilena Chauí sobre o desejo:

A palavra desejo tem bela origem. Deriva-se do verbo desidero que, por sua
vez, deriva-se do substantivo sidus (mais usado no plural, sidera), significando a figura
formada por um conjunto de estrelas, isto é, as constelações. Porque se diz dos astros,
sidera é empregado como palavra de louvor – o alto – e, na teologia astral ou astrologia,
é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus,
siderado: atingido ou fulminado por um astro. De sidera, vem considerare – examinar
com cuidado, respeito e veneração – e desiderare – cessar de olhar (os astros), deixar de
ver (os astros).
Pertencente ao campo das significações da teologia astral ou astrologia,
desiderium insere-se na trama dos intermediários entre Deus e o mundo dos entes
materiais (corpos e almas habitantes de corpos). Os intermediários siderais, eternos e
etéreos, exalam diáfanos envoltórios com que protegem nossa alma, dando-lhe um
corpo astral que a preserva da destruição quando penetra na brutalidade da matéria, no
momento da geração e do nascimento. Pelo corpo astral, nosso destino está inscrito e
escrito nas estrelas e considerare é consultar o alto para nele encontrar o sentido e guia
seguro de nossas vidas. Desiderare, ao contrário, é estar despojado dessa referência,
abandonar o alto ou ser por ele abandonado. Cessando de olhar para os astros,
desiderium é a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos, e o desejo
chama-se, então, vontade consciente nascida da deliberação, aquilo que os gregos
chamavam bóulesis. Deixando de ver os astros, porém, desiderium significa uma perda,
privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta. O desejo chama-se,
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então, carência, vazio que tende para fora de si em busca de preenchimento, aquilo que
os gregos chamavam hormê. Essa ambigüidade do desejo, que pode ser decisão ou
carência, transparece quando consultamos os dicionários vernáculos, onde se sucedem
os sentidos de desejar: querer, ter vontade, ambicionar, apetecer, ansiar, anelar, aspirar,
cobiçar, atração sexual. A oscilação dos significados aparece na diferença sutil de duas
palavras, em português: desejante e desejoso/desejosa. (Chauí, 1990, p.22-23)

Esse pequeno trecho condensa por associação várias asserções psicanalíticas


fundamentais que dão conta do desejo como essência do humano. “Perda”, “queda na
roda da fortuna incerta”, “privação do saber sobre o nosso destino decidindo tomá-lo
em nossas próprias mãos”... No humano, o movimento que aponta para o desejo implica
uma ação do sujeito comprometido com a sua verdade, apontando simultaneamente para
uma falta, uma falta-a-ser. Falta motriz do desejo. Entretanto, ainda que antecipando
uma interpretação, propriamente, psicanalítica sobre a questão, propõe-se voltar ao
discurso filosófico de que ora se trata.
Nesse sentido, ao considerar a tradição filosófica na abordagem do desejo, pode-
se perceber uma dupla vertente de representações, quais sejam:
• O desejo enquanto potência positiva, unindo os planos humano e
metafísico, afirmando o desejo do Ser.
• O desejo humano como propensão ao excesso, às extravagâncias. A
visão negativa do desejo, ligada à carência, à falta, e mesmo ao
demoníaco.
Tais significantes podem ser percebidos subjacentes às várias concepções de
desejo abordadas na seqüência.
Assim, propõe-se iniciar o presente percurso filosófico com Platão, pois, “toda
filosofia está contida, em potência, em Platão. Tanto aquela que pertence à grande
história da metafísica ocidental como aquela que procurou inverter ou desconstruir o
platonismo.” (Dumoulié, 2005, p.15)
Em Platão, o texto inaugural sobre a questão do desejo é O banquete. O
banquete paira sobre toda a história do pensamento do desejo. Ele encerra todas as suas
grandes implicações, os impasses, as linhas de fuga, os paradoxos e, sobretudo, sua
malícia.
Em tom de “brincadeira amorosa” entre Alcibíades e Sócrates – cujo recurso ao
cômico talvez implique uma forma de esquivar-se ao real que desponta, segundo
Dumoulié, negando a tragédia –, cinco discursos dão o ritmo dos diálogos no Elogio de
Eros, marcando a problemática do amor e a questão do desejo.
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O primeiro discurso, o discurso de Fedro ou do amor mítico – em que somente


os amantes podem morrer um pelo outro – aponta um sentido psicanalítico, em primeiro
lugar, do investimento, no outro, da libido inicialmente concentrada no eu. Dessa forma,
o outro é tornado o ideal do eu.
Um segundo nível de sentido, no entanto, poder-se-ia designar
“metapsicológico”.

Amar até a morte significaria substituir seu próprio ser tal como se assenta
sobre um Ego, sobre um objeto, pelo ser absolutamente desejante do Outro. Isto supõe a
morte do outro como objeto, e sua própria morte. Por que o desejo do sujeito conduz,
para lá do amor, a uma espécie de deserto onde se acha mais perto do seu ser? Eis uma
questão que o mito levanta e para a qual a filosofia anda sempre à procura de resposta.”
(Dumoulié, 2005, p.19)

O segundo discurso, de Pausânias, o discurso do amor platônico ou o desejo do


rico, assinala que, “não somente, como diz Lacan, “o desejo não é um bem em nenhum
sentido do termo”, mas ainda a melhor prova de amor é “dar aquilo que não se tem”.
(...) A grande desejante (...) é a Pobreza, Penia.” (Dumoulié, 2005, p.21). Esta, no
entanto, também não é a concepção platônica do amor.
O terceiro momento do banquete apresenta o discurso de Aristófanes
concernente ao mito dos Andróginos. Marca o princípio segundo o qual, “o semelhante
deseja o semelhante” e nisso remete ao valor ontológico da esfera, segundo Dumoulié –
representando a perfeição de uma espécie de gozo auto-suficiente. Novamente, o
cúmulo do desejo é morrer de amor e o tom crescentemente cômico, segundo a autora,
do “carnaval desbragado”, sinaliza a vitória da vida enquanto um misto de morte e
sexualidade.

O desejo não teria como alvo um objeto ou um outro, mas buscaria a si mesmo
no outro. Seria portanto de natureza narcísica, inclusive na heterossexualidade. Ora,
vendo bem as coisas e ouvindo atentamente a história extravagante de Aristófanes, a
ênfase é posta sobretudo na ruptura, na divisão, ou até na castração, como origem do
desejo. (Dumoulié, 2005, p.24)

O discurso de Agatão, quarto discurso, é um discurso “oco”, vazio de conteúdo,


o discurso do sofista. Agatão constitui o objeto desejado uma vez que o próprio Sócrates
se esquiva de ser tomado como objeto do desejo de Alcibíades, talvez porque Sócrates
sabe sobre o desejo.
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Finalmente, o discurso de Sócrates. O discurso daquele que sistematicamente se


esquiva, para com isso fazer nascer a verdade no, pelo e para o outro. Grande ‘parteiro’
da verdade com a sua maiêutica. Seu discurso, enfim, é tomado da boca de uma mulher
– Diotima –, quinto e último discurso sobre o amor. Ao substituir o elogio do amor pela
questão do desejo, aponta Dumoulié, Sócrates efetua um giro, “o que anima o amor, o
que faz Eros viver é o desejo, e o desejo é carência, é falta:

Tanto esse, pois, como todo aquele que nutre o desejo, deseja o que não está ao
alcance, o que não está presente. Aquilo que ela não tem, o que ela mesma não é e de
que carece, tais são as coisas de que uma pessoa tem desejo e amor. (Platão, 1995, p.71)

Eros é carente e, portanto, deseja, não sendo um deus, mas um daimon (gênio),
ser intermediário entre os homens e os deuses. Filho de Poros (Abundância) e Penia (a
Pobreza, a Penúria, a Carência), Eros é carente, à semelhança da mãe, e cheio de
recursos como o pai, passando a vida a filosofar. “Para filosofar é preciso desejar”
(Dumoulié, 2005, p.26)
Além disso, o amor não é Belo, tratando-se de algo que carece e se põe a desejar.
Não é o objeto amado, mas, aquele que ama. De modo que os homens não procuram a
sua metade, mas, se empenham na busca da felicidade e do bem. Aqui se produz uma
inversão, onde o que Eros deseja não é o Belo, mas, através deste, visa à felicidade em
sua expressão máxima, a imortalidade.
Segundo Dumoulié, empenhados na geração e na imortalidade pela
descendência, os homens morrem por isso. Substituindo o belo pela imortalidade, a
dialética de Diotima aponta o caminho para a imortalidade, paradoxalmente, a morte.

No lugar desta derrisória ilusão de eternidade representada pela geração,


Diotima coloca, portanto, outra forma de imortalidade – simbólica, e a cujo propósito se
poderia perguntar se não é derrisória. A menos que seja trágica. Não seria uma maneira
nova (depois da Antígona de Sófocles ou da Fedra de Eurípides) de introduzir, sem
chamá-la pelo nome, a pulsão de morte como fim do desejo? E designar sua origem na
função simbólica: esse desejo de reconhecimento que imortaliza, mas supõe que se
prove a morte? Assim, Lacan evoca esta região do entre-duas-mortes (entre a morte
física e a morte simbólica), para onde leva o desejo vivido com todo rigor.
(...) E a dialética aplicada por Diotima permitiu que se realizasse a passagem do ter ao
ser: o Belo não é o objeto de uma posse, mas o sujeito de uma identificação.
(Dumoulié, 2005, p.28-29)

Quanto ao sentido dessa identificação, Dumoulié sugere duas leituras possíveis.


A Primeira, com base no idealismo platônico, entende que o fim de Eros seria
fundamentalmente egoísta ou até narcísico, dado que o desejante busca a própria
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perfeição, a própria beleza no reflexo do ideal do qual se nutre. Porém, numa segunda
leitura, pode-se pensar também num outro tipo de identificação, uma vez que o Belo
enquanto pureza não seria propriamente nada, definindo-se apenas por fórmulas
negativas.

Mas o que será então o rosto desta beleza sem rosto? Se o Belo tem como
função guiar o desejo para uma imortalidade que é o nome glorioso da própria morte, e
se, portanto, lhe cabe o papel de tecer um véu de ilusão entre o desejo e a pulsão de
morte, o Belo em si corresponde a este momento de prazer derradeiro onde se vai rasgar
o véu das belas aparências. Esse gênero de mística do Belo anuncia já tanto a estética de
Schopenhauer e a sua teoria da contemplação como também a metafísica negativa de
Plotino, para o qual o Belo em si é o último clarão do Ser antes da identificação última
com o Não-Ser do Uno. (Dumoulié, 2005, p.30)

O epílogo do texto platônico revela-se na intervenção do discurso de Alcibíades.


Este ao revelar seu amor por Sócrates provoca um deslocamento, uma esquiva deste do
lugar de objeto do desejo (agalma), para o lugar do vazio, do nada. Tal ação implica
numa verdadeira transferência. A mensagem implícita dá conta do desejo que visa a
algo inalcançável, “o objeto fetiche do desejo que cada um procura no outro. O desejo,
com efeito, sob seu aspecto menos metafísico e mais material, não visa nem um outro
nem algo além, mas, no outro, um objeto perdido (ou que se acredita perdido), que cada
um procura encontrar” (Dumoulié, 2005, p.31).
Nesse sentido, segundo Dumoulié, a valorização do objeto evoca uma
conseqüência, qual seja – aquele que possui o objeto, ou melhor, que imagina possuí-lo,
ocupa a posição do senhor na dialética do senhor e do escravo, aspecto essencial da
lógica do desejo.
Sócrates, para além, ao se esquivar de ocupar o lugar de objeto do desejo do
outro, abre para o impossível do desejo – de sua incompletude, sempre remetido a um
objeto outro, a um objeto para sempre perdido, ou melhor, um objeto que nunca existiu,
signo de uma falta primordial –, revelando-se, portanto, um puro desejante, amante das
belas idéias.

Se este objeto os apaixona é porque ali dentro, escondido nele, há um objeto do


desejo, agalma. É isso que dá o peso, a coisa pela qual é interessante saber onde está
ele, este famoso objeto, qual é sua função, onde ele opera tanto na inter como na intra-
subjetividade. Este objeto privilegiado do desejo culmina, para cada um, nessa fronteira,
nesse ponto limite que lhes ensinei a considerar como a metonímia do discurso
inconsciente.
(....) Este objeto, seja qual for a maneira como você tenha de abordá-lo na
experiência analítica, quer lhe dê o nome de seio, de falo ou de merda – é sempre
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um objeto parcial. É disso que se trata por ser a análise um método, uma técnica,
que penetrou no campo abandonado, esse terreno baldio, esse campo excluído
pela filosofia, por não ser manipulável, não acessível à sua dialética, e que se
chama o desejo (Lacan, 1992, S VIII, p.150).

Assim, com O banquete, Platão traz a questão do objeto do desejo que coloca o
paradoxo de buscar o inalcançável, moto contínuo do movimento em direção a algo para
sempre perdido, concebendo-se, portanto, em linguagem psicanalítica, os objetos
parciais do desejo, aproximações imaginárias que, no bojo da insatisfação perene das
demandas, apontam sempre em direção ao real, ao impossível. E o desejo ao mirar o
impossível, a imortalidade, aponta justamente para a morte.
Questões caras à filosofia, é verdade, mas, fundamentalmente, essenciais à
psicanálise. Sobretudo, após a teorização de Lacan sobre o desejo, o que fala da
essência do humano.
Entretanto, ao remeter à filosofia platônica não é possível pensar numa única
concepção concernente ao desejo. A cada obra, em cada momento, se coloca uma tese,
um pensamento em questão.

Se O banquete é o grande diálogo platônico consagrado ao amor, não é o único


que aborda a questão do desejo. Desde o Górgias, Platão faz dele uma problemática
central, mas em A república e no Fedro, sobretudo revisita esse tema em novas
perspectivas. Não somente não existe doutrina que revele a verdade última sobre o
desejo mas, ainda por cima, a tese varia conforme o diálogo, em função do objetivo a
alcançar, da idéias a demonstrar. (Dumoulié, 2005, p.42)

Em A república, o problema em questão é político: quem deve dirigir a cidade?

(...) é preciso escolher, e efetuar uma desvalorização ontológica e política do


desejo. O meio para alcançar esta meta é lhe retirar a unidade que lhe permitiria erigir-
se em princípio de ação. Toda a demonstração do Livro IV consiste em negar a sua
unidade enquanto modo: a epithymia se define, então, pela sua multiplicidade anárquica
e por uma mistura de todos os tipos de apetites (prazeres dos sentidos, desejo sexual,
necessidades alimentares etc.). Paralelamente, o desejo se vê privado de verdadeira
finalidade e consiste em uma força cega, uma pulsão quase animal. (...) Numa palavra,
pode-se identificar a epithymia, nesta passagem pelo menos, com o Es (Id) freudiano. O
desejo deve, portanto, aceitar a razão como guia e permanecer sob a vigilância deste
representante do superego (Über-Ich) que é o thumos.
Fragmentou-se, portanto, a unidade do desejo. Nisto Platão que, mais que
qualquer outro filósofo havia afirmado a unidade de Eros através de todas as suas
manifestações, abre o caminho para a condenação filosófica do desejo, ou melhor, dos
desejos. (Dumoulié, 2005, p.43)

Nessa obra, Platão aponta o regime da tirania como o pior dos governos possíveis e o
tirano, por excelência, enquanto o homem de desejo, ou melhor, dos desejos, ele mesmo
tiranizado por esta parte selvagem, bestial, da alma. Nessa via argumentativa, “a
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depravação sexual do tirano é a conseqüência – mais do que a causa – da sua


monstruosidade política” (Dumoulié, 2005, p.44)
No Fedro, por sua vez, Platão devolve a Eros e, portanto, ao desejo, uma função
diretora.
O desejo é o motor do mundo dos seres animados, onde todos os homens ou
animais, movidos por deuses ou almas, serão movidos pelo desejo de contemplar as
essências eternas.

Todos se acham em situação de carência e devem alimenta-se dessas visões. (...)


E o desejo nasce, portanto, da carência, da falta, mas também de um sentimento de
pesar diante de algo que se perdeu. (Dumoulié, 2005, p.45)

Finalmente, no Crátilo, etimologicamente, o desejo enquanto um fluxo, himeros,


se designa por dois outros termos, a saber: eros e pothos.

... himeros é um fluxo que se lança e se precipita impetuosamente para o belo e,


deste modo, atrai a alma para fora. Pothos é o nome que esse mesmo sentimento assume
quando o objeto desapareceu e se vive a lamentá-lo. Quanto a eros, designa o fluxo que,
de fora, corre na alma e que, vindo da beleza, penetra pelos olhos.
Por todas as suas características, esse fluxo do desejo parece que pode ser identificado
com a libido. É como um reservatório cheio até as bordas, uma potência de
transbordamento que se escoa através do corpo, investe-lhe as zonas erógenas, penetra-
lhe os orifícios, e não cessa de circular entre os corpos, esvaziando uns e enchendo os
outros. (Dumoulié, 2005, p.47)

O legado da filosofia platônica à posteridade, longe de ser simples, encerra todas


as contradições que alimentarão a filosofia do desejo: entre a carência e o excesso, entre
o devorar dos objetos e a superabundância dos fluxos, entre o caos dos desejos e a
retidão do desejo do Belo. (Dumoulié, 2005, p.49)
Entretanto, para além do pensamento platônico, tomando-se dos pré-socráticos a
Santo Agostinho, pode-se perceber, segundo Dumoulié, que o tema do desejo continua
no âmago do questionamento filosófico na medida em que evoca a relação do homem
com o Ser, questão esta, por sua vez, que também remete ao cerne da tradição filosófica.

A visão cósmica de Empédocles abre a cena primitiva de um drama grandioso


que domina toda a história filosófica do desejo. Mas a época moderna, sobretudo,
voltou-se para aquele do qual Hölderlin e Nietzsche fizeram um herói do pensamento, e
no qual Freud e mais tarde Lacan viram o pai espiritual da psicanálise. (Dumoulié,
2005, p.35)

A época de Empédocles, pensador grego do V século a.C., remete ao


estilhaçamento do pitagorismo e à divisão dos dois aspectos do conhecimento – o
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aspecto quantitativo e sua dimensão qualitativa ou ética – sintoma da brecha aberta


entre o Uno e o Múltiplo.

Este é o drama, ao mesmo tempo cósmico e espiritual, que Empédocles de


Agrigento vai pôr em cena, no momento em que, na cidade de Atenas, a tragédia
conhece o seu ponto culminante de desenvolvimento. (Dumoulié,2005, p.35)

Sendo o último dos grandes pré-socráticos, seu pensamento busca conciliar as


duas vias do conhecimento, por sua vez, influenciado por dois grandes antecessores,
quais sejam: Parmênides e Heráclito – o pensamento do Ser e o pensamento do Devir.
Para Empédocles, o mundo é regido por um “pacto” entre os dois grandes
princípios eternos: o Amor (Philia, Harmonia ou Afrodite) e o Ódio (Neikos, Eris).
Assim, cada ciclo do mundo de Empédocles se orienta por um fim diferente na medida
em que é regido por um dos dois princípios, um unificador que busca a indiferenciação
no Uno, enquanto realiza o objetivo do Amor, e outro separador, divisor, o Ódio, que
empreende a divisão dos elementos de modo a provocar uma heterogeneidade múltipla.
Nesse panorama, deve-se entender o desejo como “... a Necessidade que preside
o eterno retorno dos ciclos do mundo. Um só desejo do Ser que não cessa de se querer e
se produzir no Devir em prol daquilo que Nietzsche designa como um da capo divino,
mas dois modos diferentes de manifestação”. (Dumoulié, 2005, p.39)
Finalmente, pode-se entender a cosmogonia do desejo proposta por Empédocles
como uma errância de um entre-duas-mortes.

Deve-se, pois, concluir, como faz Schopenhauer, que cita Empédocles, que é
justamente o Ódio que move a vida. Mas isto conduz a este novo paradoxo que um
mundo de puro Amor seria um mundo sem vida e, portanto, que o Ódio é uma força de
vida. De fato, sejam quais forem as distinções entre os princípios, tendem ambos ao
mesmo fim: a morte. E o desejo de morte parece precisamente a lei única do universo.
(...) Entre a diferença absoluta da pulsão de morte, produzida pelo trabalho separador do
Ódio e a união absoluta do Amor, guiado por uma espécie de princípio de Nirvana, é
sempre a morte que cada ciclo promete ao ser vivo. Uma errância entre duas mortes, eis
o destino do mundo! E o que deseja Empédocles? Conseguir, à força de purificações,
escapar ao ciclo das reencarnações. (Dumoulié, 2005, p.41)

O termo entre-duas-mortes, por sua vez, remete à leitura psicanalítica que põe
em causa a precipitação do desejo – ser-para-a-morte – num sujeito imerso, por sua vez,
em uma lógica mortífera do automatismo da repetição.
Em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, ao
apontar o momento inaugural em que o desejo se humaniza, momento em que o sujeito
16

nasce para a linguagem e, as implicações aí recorrentes e decorrentes, Lacan se remete à


imagem de Empédocles precipitando-se na cratera do Etna e destaca o que segue:

A liberdade do homem inscreve-se inteira no triângulo constitutivo da renúncia


que ele impõe ao desejo do outro, pela ameaça da morte para o gozo dos frutos de sua
servidão – sacrifício consentido de sua vida pelas razões que dão à vida humana sua
dimensão – e pela renúncia suicida do vencido, que frustra da vitória o mestre/senhor
que ele deixa entregue à sua desumana solidão.
Dessas imagens da morte, a terceira é o supremo desvio pelo qual a
particularidade imediata do desejo, reconquistando sua forma inefável, encontra na
denegação um derradeiro triunfo. E é preciso reconhecermos seu sentido, pois com ela
nos confrontamos. Ela não é, com efeito, uma perversão do instinto, mas aquela
afirmação desesperada da vida que é a forma mais pura em que reconhecemos o instinto
de morte.
O sujeito diz “Não!” a esse brincar-de-passar-anel da intersubjetividade, onde o
desejo só se faz reconhecer por um instante para se perder num querer que é querer do
outro. Pacientemente, ele subtrai sua vida precária das agregações docilizantes do Eros
do símbolo, para afirmá-la enfim numa maldição sem palavras.
Por isso, quando queremos atingir no sujeito o que havia antes dos jogos seriais
da fala, e aquilo que é primordial no nascimento dos símbolos, vamos encontrá-lo na
morte, de onde sua existência retira tudo o que tem de sentido. É como desejo de morte,
de fato, que ele se afirma para os outros; se ele se identifica com o outro, é
cristalizando-o na metamorfose de sua imagem essencial, e nenhum ser jamais é por ele
evocado senão entre as sombras da morte. (Lacan, 1998, E, p.321)

O que Lacan parece evidenciar é que o ser-para-a-morte do sujeito aponta uma


dupla afirmação absoluta, qual seja, da vida e da morte, numa exterioridade e
interioridade constituintes do sujeito que o encontram eticamente implicado com o seu
desejo. É nessa dialética que o sujeito se constitui, afirmando-se como um ser de
linguagem emergente do berço real da pulsão de morte.
Essa lógica simbólica, por sua vez, aponta para a estrutura do sujeito
topologicamente representada pela figura do anel, dos três registros interligados em que
se inscreve o humano (imaginário, simbólico e real) e que, tridimensionalmente falando,
remete à figura de um toro,

(...) que conviria recorrer, na medida em que sua exterioridade periférica e sua
exterioridade central constituem apenas uma única região.
Esse esquema satisfaz a circularidade sem fim do processo dialético que se
produz quando o sujeito se apercebe de sua solidão, quer na ambigüidade vital do
desejo imediato, quer na plena assunção de seu ser-para-a-morte. (Lacan, 1998, E,
p.322)

Voltando-se à ontologia do desejo encontramos outro representante na figura de


Demócrito, ilustre predecessor de Aristóteles. Pensador de cunho materialista, ele
atribui objetivos concretos à existência humana, de modo que o prazer e o gozo são
17

verdadeiros bens. A busca do prazer constitui o objetivo do orexis, desejo legítimo


através do qual se exprime uma aspiração natural do corpo, comum aos homens e aos
animais. (Cf. Dumoulié, 2005, p.50)

(...) o modelo do desejo é a necessidade, regida pelo critério infalível do


instinto. Segundo ponto de vista, os animais são superiores aos homens, porque “o
animal que experimenta uma necessidade sabe exatamente do que é que necessita”,
enquanto o homem não o sabe (fragmento 198). (Dumoulié, 2005, p.50)

O homem, animal inferior em relação aos outros animais, ao experimentar uma


necessidade não sabe do que necessita.

O desvio, e até a perversão do desejo, encontra, portanto, sua origem, não no


corpo, e sim na alma. Contrariamente aos animais, cujo desejo está reduzido à
necessidade, e que se contentam com aquilo que lhes é útil para a vida, o homem cai na
intemperança. Ultrapassando os limites da satisfação natural, é então jogado na carência
e no excesso, na ambição e no ciúme.
(....) o desejo humano propende “naturalmente” todo tipo de excesso, causa de
rivalidade e infelicidade. Como é que o homem poderá encontrar um guia tão infalível
como o instinto? Em primeiro lugar, conformando os seus atos à própria sabedoria
natural: a sabedoria do corpo. (Dumoulié, 2005, p.50-51)

Para Demócrito, o bem, o prazer e o útil se identificam de forma natural, de


modo que ter prazer em algo fornece o critério do útil, bem como o desprazer, fornece o
critério do prejudicial.
Já em Aristóteles, há uma unificação do princípio ontológico do desejo. Em seu
tratado Sobre a alma, define o desejo (orexis) compreendendo simultaneamente o
apetite (epithymia), o arrebatamento (thymos) e a vontade (boulesis). (Dumoulié, 2005,
p.49)

Indo contra a tendência metafísica que, desde Platão até Descartes, tenta separar
as faculdades ou as partes da alma, Aristóteles afirma a unidade do apetite (hormè),
através do ser vivo como através das faculdades sensitivas e cognitivas do homem. Essa
unidade da pulsão desejante é ontologicamente confirmada pela direção do seu olhar,
que sempre visa um bem, e talvez, para o homem, o Bem. Aristóteles abre assim, na
metafísica ocidental, o caminho para uma nova concepção do desejo, não fundada sobre
a falta, a carência ou a necessidade, mas sobre a afirmação de uma potência em
movimento. Esta concepção, positiva, encontrou a sua expressão culminante com
Espinoza. (Dumoulié, 2005, p.50)

A metafísica aristotélica sistematiza algo que se formalizará, muito mais adiante,


em Freud, enquanto o princípio do prazer. Este pode ser entendido como o “princípio
18

da constância” na medida em que designa o esforço do aparelho psíquico em manter


uma quantidade de excitação tão baixa quanto possível, ou, no mínimo, constante.

O sentimento de prazer é, portanto, um critério que permite regular o


desejo e que, mais uma vez, estabelece a coincidência entre o bem, o bom e o
útil. No sentido estrito, o princípio de prazer é um princípio de realidade
(...) Aristóteles reconhece, no entanto, que o desejo tem verdadeiramente um
caráter positivo, e ele é sempre o efeito de uma vontade e de uma atualização da
potência, positividade que tem seu endosso no sentimento de prazer. (Dumoulié, 2005,
p.52-53)

Entretanto, além disso, a metafísica de Aristóteles também prenuncia a invenção


de outro princípio freudiano, qual seja: a pulsão de morte.

(...) o desejo do homem, quando não tem o caráter divino do sábio, obedece ao
princípio de desprazer, quer aquilo que é ácido, amargo e doloroso. Aí ainda, essas
observações de Aristóteles anunciam a invenção deste princípio freudiano que ele se viu
forçado a colocar diante do princípio de prazer: a pulsão de morte (ou, pelo menos, o
reconhecimento do excesso como dimensão do desejo).
(...) Quais são então esses prazeres conformes à natureza do homem? (....) A
estes verdadeiros prazeres, que nos fazem enveredar pelo caminho do verdadeiro
desejo, consagra Aristóteles os últimos capítulos de sua Ética. Um deles é a philia, ou
amizade. Forma a mais sublime do desejo humano, virtude social, familiar e política,
ela constitui o fim da moral individual e o grau supremo da ética. Além nada existe
senão a contemplação da divindade, modelo verdadeiro do prazer, ao qual é consagrado
o último capítulo. (Dumoulié, 2005, p.55)

Finalmente,

A procura do prazer é o sinal da presença do divino no homem, como também


do caráter divino da vida.
(...) Participar do gozo sumamente divino, perfeito, contínuo e auto-suficiente,
mesmo que seja com a imperfeição da natureza humana, é tornar-se em si também
divino e imortal. Este é o sumo bem, para um ser, o homem, que se define pela vida
segundo o espírito. Gozar eternamente de si mesmo, eis o fim do desejo.
Por um lado, a filosofia de Aristóteles abriu o caminho para um modo de pensar
o desejo como a essência e a potência do homem, assim, em Espinoza, que concluiu por
isso pelo amor intelectual de Deus. Mas, por outro lado, a sua condenação ética dos
desejos que ultrapassam a medida do prazer, ou mesmo de todo prazer que não fosse
sublimado e desprovido de sua sensualidade, o inscreve na eterna condenação
metafísica dos desejos humanos. (Dumoulié, 2005, p.56-57)

No rastro desse dualismo no âmago do desejo, duas escolas filosóficas – o


estoicismo e o epicurismo – concorrem. A “apatia estóica”, afirmando a positividade e
o primado do apetite, promove a suspensão do desejo. Nesta via, a existência de todo
ser vivo repousa sobre a hormè (apetitus), tendência fundamental à autoconservação.
(Dumoulié, 2005, p.57)
19

O desejo é particularmente condenável por causa do sentimento de carência e de


cobiça que provoca, pela rivalidade e pelo ciúme que suscita, e pelo amor ou pela cólera
que podem acompanhá-lo. Tal é a contradição, impossível de superar, do estoicismo,
fazer da paixão uma ação positiva, um movimento da tendência, e logo depois condená-
la.
(...) afirmam que “a vontade é o contrário do desejo, pelo fato de ser um querer
racional”. O desejo nasce de uma inadequação entre nós mesmos e aquilo que é, em
virtude de uma má representação. (....) O único desejo verdadeiro (mas, em sentido
estrito, esta fórmula é impossível para os estóicos) é querer o que acontece, dizer “sim”
ao mundo. (....) É de fato um paradoxo, que esta moral da supressão do desejo, segundo
uma lógica que lhe é no entanto própria, tenha dado a fórmula de uma das grandes
filosofias do desejo da modernidade, a de Nietzsche....Mais ainda, a noção de apatia vai
encontrar um eco na moral kantiana, mas também na prática de Sade, e servirá de base,
na interpretação de Lacan, para uma ética trágica do desejo. (Dumoulié, 2005, p.58-59)

A “ataraxia2 epicurista”, por sua vez, propõe um paradoxo na medida em que


funda a ética e o dinamismo do ser vivo sobre o prazer, acabando por denunciar o erro
da busca do prazer e, portanto, do desejo. Aqui, o princípio do prazer é o critério
fundamental, de modo que a sua utilidade permite identificá-lo com o bem,
apresentando um limite ao desejo. Tal qual o estoicismo, o epicurismo constitui uma
moral rigorosa. Tem em mira reduzir os prazeres ao útil, evitando qualquer procura do
prazer por si mesmo. Afinal, não é a satisfação do desejo e a multiplicação dos prazeres
que fazem a vida feliz, mas o fato de não estar em uma situação de penúria e
sofrimento. Sendo assim, o desejo é novamente marcado com a negatividade.
(Dumoulié, 2005, p.59)
A filosofia de Plotino é um dos últimos ápices do pensamento grego num
mundo que vai sendo submergido pelo cristianismo e pelo sincretismo. Resgata a
grande questão dos pensadores gregos: por que o Uno se dividiu de si mesmo?
O mundo não é resultado de uma criação, como sustenta a tradição judaico-
cristã, nem o domínio do mal como imaginam os gnósticos, sendo, enfim, eterno.

Plotino apresenta este acontecimento como um kairós, momento de graça, que


reúne o instante presente e a eternidade. Como tudo é emanação dele, o Uno está
presente em cada coisa; mas como ele permanece em si mesmo, fora do mundo e do
Ser, é infinitamente transcendente. Daí procede a dupla natureza do desejo: do ponto de
vista das criaturas, é a expressão de uma falta, de uma carência; do ponto de vista
cósmico, no entanto, ou metafísico, é como uma afirmação duplicada, o regresso ao
Uno da sua própria superabundância.

2
Ataraxia (Do grego ataraxia: ausência de perturbações). Designando o ideal do sábio para a maioria dos
filósofos da Antiguidade, a ataraxia é identificada pelos estóicos à apatia, ou seja, ao estado da alma que
se tornou alheia às desordens da paixão e insensível à dor. (Durozoi, 1993, p.44)
20

(...) Que o fim supremo do desejo é a imortalidade, isto já fora afirmado por
Platão e Aristóteles, mas a valorização do Belo como guia infalível para o Uno é a
marca do neoplatonismo de Plotino.
(...) Embora esteja além de toda percepção e quase de todo pensamento, o Belo,
em Platão, o Primeiro Motor, em Aristóteles, são sempre objetos de desejo. (Dumoulié,
2005, p.61-62)

Para Plotino e sua metafísica do desejo, o mundo é o encontro de dois não-seres:


O Uno, superior ao Ser e entendido como o Não-Ser Supremo, e a matéria, a quem
tudo falta. Desta forma, tudo que deseja, de certa maneira, é matéria. Aqui, o desejo da
matéria é o desejo pervertido, o desejo do “Outro” visando o Não-ser. Seduzidas pela
matéria, as almas se tomam como um fim em si, num verdadeiro desejo narcísico,
capituladas pelo Não-Ser.
“O Ser que deseja o Bem é matéria em relação ao Ser que deseja receber”, de
modo que isto mais o afirma enquanto Não-Ser, identificado à carência, à pobreza,
Penia. O Uno, por sua vez, é o amor, ao mesmo tempo, identificado com o que é
amável e com o amor, Eros. O mito platônico de Eros é revisitado em Plotino,
entretanto, assumindo o caráter de uma alegoria, o que lhe destrói o valor e lhe reduz o
alcance. Penia é matéria por ser absolutamente pobre e ao desejar o Bem se revela,
enquanto tal, sem forma ou razão.

Isto sugere o que se deve entender como desejo do Outro: uma indigência, uma
submissão física e sexual, uma alteridade e uma alteração, uma situação e uma posição
femininas, tudo isto associado certamente a uma desvalorização da matéria. Se, para
repetir uma célebre fórmula de Lacan, o desejo do homem é o desejo do Outro,
compreende-se que a glorificação metafísica do desejo do Uno é acompanhada de uma
desqualificação, ou até de um desconhecimento do desejo do homem, condenado a ser
posto, sem demora, entre as mãos do diabo. (Dumoulié, 2005, p.65)

Finalmente,

A originalidade de Plotino está em ter feito de Eros um princípio regulador


superior à razão e à idéia. Deste modo, prenuncia tanto o motivo agostiniano do amor a
Deus como a filosofia transcendental de Kant. A unidade da síntese transcendental,
como princípio de toda informação categorial, é a causa de o pensamento pensar que
exista o impensável e se voltar em direção àquilo que a transcende considerando-o
como sua origem. Daí ainda decorre a teoria kantiana do sublime. Mas também se pode
ver aí a origem da ontologia do desvelamento do Ser, desenvolvida por Heidegger.
Enfim, este Não-Ser que determina o desejo como origem e como fim, cuja cifra é o
zero do Uno, prefigura a função do significante puro ou primeiro na teoria de J. Lacan.
O que torna fascinante o pensamento plotiniano do desejo é seu caráter
paradoxal, que une os termos mais antagônicos. Como já se viu, o desejo é carência ou
falta, matéria informe. Mas tem igualmente por origem uma plenitude transbordante,
um excesso de potência do Uno. De certo modo se pode dizer que o desejo do Uno vem
a ser uma sublimação do desejo de morte. E Plotino faz assim a ligação entre o
21

pensamento hinduísta e Schopenhauer. Mas, ao contrário, ou melhor, ao mesmo tempo,


não deixa nunca de ser grego ao afirmar a eternidade do mundo regido por um imenso
Desejo cósmico. (Dumoulié, 2005, p.69)

Santo Agostinho – via filosófica de uma teologia do desejo – parte do


pressuposto que todo desejo é Desejo de Deus. Seu pensamento encarna a expressão da
dualidade, influenciado tanto pela filosofia grega como pela religião cristã, concebendo
uma visão maniqueísta do desejo em que os maus desejos remeteriam a uma alma
enferma, expressão da perversão, do desvio do verdadeiro objeto, a saber: Deus.
No entanto, e isto é muito interessante, Agostinho também se distingue
radicalmente da filosofia grega ao abordar a questão do desejo e a questão da verdade –
por sua vez, ambas caras à psicanálise – partindo da própria experiência pessoal, “do
sujeito como fundamento do conhecimento e da existência. Precursor do cogito
cartesiano, Agostinho inaugura a maneira moderna de filosofar e inventa, com suas
Confissões, o gênero literário da autobiografia.” (Dumoulié, 2005, p.70)

Partindo do princípio conforme o qual é impossível desejar aquilo a que alguém


não se assemelha em nada, conclui Agostinho que a imagem de Deus no homem é a
forma de nosso desejo cujo fim último é, ainda na mesma linha de Plotino, uma
contemplação mística de Deus que revela a nossa identidade ou leva a termo a nossa
identificação.
Mas, e neste ponto o pensamento de Agostinho difere de toda a filosofia grega,
Deus, por sua vez, também nos ama. Ou, melhor ainda e acima de tudo: nosso desejo de
Deus é somente um efeito reflexo do amor que Deus nos dedica. (Dumoulié, 2005,
p.72-73)

Correndo o risco de propor algo de um reducionismo da tradição filosófica a


uma interpretação psicanalítica, é interessante pensar que o exercício filosófico possa
metaforicamente traduzir, de certa forma e, por associação, a apropriação do desejo pelo
próprio sujeito. Desse modo, pode-se pensar, com Lacan, num estado primeiro e
fundamental de alienação do sujeito e seu desejo ao desejo do Outro, numa via de
identificação aos significantes do desejo do Outro, o que, por sua vez, aponta para todo
um trabalho do sujeito na construção da via do seu próprio desejo.
Nesse sentido, pode-se pensar que em Santo Agostinho, a remissão à imagem de
Deus no homem, possa remeter, à sua vez, ao Outro, ao sujeito e à imagem do sujeito no
e para o Outro, com todas as implicações daí decorrentes, em termos da alienação e
constituição do sujeito (como sujeito de desejo), de suas identificações, de seus limites e
disposições.
22

A diabolização do desejo permite a Agostinho dizer a verdade que os gregos


desviavam ou negavam como erro ou perversão. Em primeiro lugar, o desejo não tem
objeto, ele quer a si mesmo, ama amar. Em segundo lugar, é de natureza essencialmente
erótica e sexual. Enfim, por seu caráter, indefinido, e pelo infinito de sua vontade, ele
não seria capaz de satisfazer-se com o prazer. Queimar-se, mesmo que fosse com as
labaredas do Inferno, eis o desejo do desejo.
(...) O desejo não é a necessidade, nem mesmo a sua negação. A esta altura, no
momento em que aparece o desejo, é o Eu que se afirma. O desejo é transgressão. O
desfrute prazeroso não tem nada a ver com a satisfação, bem como o desejo zomba do
objeto. E também se pode prazerosamente desfrutar do mal; e, se desfrutar de Deus
significa perder-se nele, desfrutar do mal é, novamente, afirmar o próprio Eu. Enfim, o
desejo faz amar a sua morte, é vontade de morte, e essa queda é a maior afirmação do
Eu. (Dumoulié, 2005, p.71)

O pensamento de Agostinho, em muitos aspectos, pode remeter à teoria


lacaniana do desejo.
O desejo no sujeito, em Lacan, à semelhança do desejo no homem, em
Agostinho, é desejo de desejo. Marca que o Outro imprime no sujeito e que o torna
propriamente humano. Simultaneamente, via de constituição do sujeito como objeto da
demanda do Outro – o sujeito identificado a essa demanda e aí alienado, segundo Lacan
–, em Agostinho como a imagem de Deus no homem e, via de humanização do desejo e,
portanto, do sujeito, na medida em que o desejo do Outro que incide no sujeito é
atravessado pelo “real” (categoria lacaniana), pelo sexual, do sujeito. O desejo é,
portanto, “sem objeto”: [S ◊ a]. Infinito em sua potência e cuja substância reside na
própria ação de desejar, daí a idéia do ser-para-a-morte, remetendo o sujeito à sua
verdade (a Letra), e à sua origem no “real”.
Para Agostinho, um primeiro efeito do amor divino consiste em que o homem só
pode escolher e amar se antes for escolhido e amado por Deus. Além disso, o segundo
efeito deste amor divino é o dom que faz do próprio Filho uma nova forma, uma nova
imagem para o nosso desejo. Imitar a Cristo em seu desejo supõe que o homem se faça
pessoalmente filho de Deus e, portanto, desejar segundo o Pai. (Dumoulié, 2005, p.73)
O pensamento agostiniano, no entanto, também aponta para impasses em termos
das noções de liberdade e justiça, na medida em que coloca a dificuldade de sustentar a
idéia de uma absoluta liberdade do homem cujo agir é determinado pela vontade de
Deus. Da mesma forma, também é possível questionar a natureza do amor divino, a sua
gratuidade, na medida em que dispensa seus favores a uns e os nega a outros.
Assim, delineia-se o panorama em que o homem demanda responder à promessa
de felicidade e de imortalidade representada pela imagem de Deus que ecoa dentro dele.
23

Mas, ao pretender ser livre, torna-se escravo das concupiscências. Porque a


liberdade não é o livre-arbítrio, mas o movimento natural do desejo em direção ao bem.
Amando-se desregradamente a si mesmo, o homem nega a verdade do seu ser e,
portanto, se ignora.
Enfim, o infinito do desejo é a marca do seu caráter divino e, até no âmago de
sua perversão, a possibilidade de salvar-se. Com efeito, a alma não pode satisfazer-se
plenamente nem consigo mesma nem com o mundo. Todos os objetos a decepcionam e
só lhe proporcionam a sensação da perda ou do luto, ou até da desilusão da posse. Para
ela os desejos são apenas “sementes estéreis de onde só nascem dores” (Confissões, II,
2). O desejo, no entanto, nunca está saciado. Sinal de que seu objetivo está mais além.
(Dumoulié, 2005, p.75)

Impossível não pensar, novamente com Lacan, na asserção do infinito do desejo


como a marca do Outro no sujeito, e, além disso, um desejo que se afirma precisamente
sem objeto. Desejo, por isso e, ao mesmo tempo, errante ao se direcionar
indefinidamente aos chamados objetos parciais por que continuamente se orienta, mas,
também, por que continuamente se perde, no horizonte da verdade do sujeito.
Para Santo Agostinho,

Na medida em que todo desejo pervertido é uma degradação do amor de Deus,


pode-se falar de um desejo alienado.
(...) A alienação, aqui, consiste em uma dupla degradação: a de Deus e a da
alma em nível de um objeto. Noutras palavras, usando a terminologia lacaniana: ao
buscar um superávit de prazer, o sujeito degrada o Outro, que é origem e fim do desejo,
em nível de um objeto onde perde a dimensão do seu desejo e do seu ser. (...) uma teoria
do desejo que decorre do modo de alienação acima apontado e que prefigura a lógica do
fantasma tal como a psicanálise a elucidou.
Seguindo os passos de Plotino, vê Agostinho no narcisismo da alma a origem da
perversão do desejo que a faz amar a própria sombra projetada na matéria. Acreditando
encontrar-se a si mesma, a alma se identifica com a matéria, com um objeto que lhe
parece mais desejável, isto é, mais parecido com ela que Deus. Esta é a alienação do
fantasma, sobre a qual repousa todo desejo, que o sujeito, identificando-se com o
objeto, perde nele o seu ser e a própria identidade.
Deve-se apesar de tudo precisar que aquilo que é, conforme Agostinho, a
perversão do desejo, vem a ser, de acordo com a psicanálise, a própria lógica do desejo.
E mais ainda...a perversão, de acordo com Lacan, “acentua mal e mal a função do
desejo no homem”. Aqui haveria, ao preço de um pequeno exagero, como que um efeito
de verdade. (Dumoulié, 2005, p.76-77)

O passo dado por Agostinho e a moral cristã, ao prenunciar o desejo no humano


vai apontando o caminho filosófico que se delineará a partir daqui, bem como, o dos
desafios que disso decorrerão.

Uma atividade isenta de todo desejo, de todo interesse, mesmo que fosse a mais
elevada espiritualmente, é impensável para um grego. Mas isto se deve, sobretudo, a
uma concepção filosófica e moral do homem cujo reflexo se vê no vocabulário: não
existe nenhum termo, no grego antigo, que corresponda à noção moderna de vontade
nem, sobretudo, de livre-arbítrio. Eis-nos aqui, de novo, às voltas com a oposição entre
24

grego e cristão, estabelecida por Nietzsche. A moral cristã, baseada sobre o livre-
arbítrio, supõe a existência de uma vontade autônoma, regida pelo princípio exclusivo
da razão, absolutamente distinta do desejo. Assim, todo o discurso de Descartes, em As
paixões da alma, tem por objeto efetuar entre a vontade e os desejos uma divisão tão
categórica como entre a alma e o corpo. O objetivo é preservar o caráter infinito da
liberdade como também a absoluta autonomia da vontade. O ponto culminante dessa
divisão vai ser atingido com Kant. Para este filósofo, a vontade longe de ser um ato de
deliberação ou mesmo uma faculdade capaz de optar, identifica-se com o exercício da
razão pura. Esta redução do homem ao racional e do desejo aos desejos animais, a uma
espécie de enormes feras que rugem dentro de nós e que a vontade pode reduzir ao
silêncio, leva a termo, segundo a palavra de Nietzsche, “uma castração” do homem. Ela
tem um primeiro efeito filosófico: a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de
compreender daqui para a frente os mecanismos do desejo. (Dumoulié, 2005, p.78-79)

Finalmente,

Essa vontade de excluir o desejo do campo do humano se inscreve na história da


sua demonização, que terá levado, ironicamente, a reconhecer o desejo do homem na
sua potência e especificidade. Mas este desejo, os gregos não o ignoraram. Pelo
contrário. O fato de tê-lo posto sob a égide do desejo do Ser foi a melhor maneira de
justificá-lo e, quase malgrado eles mesmos, santificá-lo. (Dumoulié, 2005, p.79)

Santo Agostinho prenuncia, assim, o que o cristianismo proclama, qual seja, a


catástrofe do desejo. “Tudo começa pela Queda. E a causa do pecado original foi o
desejo, que fez entrar na história, com o diabo, um elemento até então ausente da visão
filosófica do desejo: a mulher. (...) O desejo é com certeza de-siderium: afastamento de
Deus, queda do céu e dos astros (sidera), desastre.” (Dumoulié, 2005, p.83)
Estamos no campo do desejo no e do humano, especificamente onde se pautam:
a queda, o erotismo, a sexualidade e o diabólico. Não por acaso, lógica que evidencia o
humano ao mesmo tempo em que o problematiza e, onde surge outro elemento –
conforme destacado, até então ausente da discussão filosófica sobre o desejo – a saber:
a mulher.
A imagem de Abelardo e Heloísa – ele representante da filosofia escolástica e do
conflito entre a razão e o dogma e ela encarnando a mulher e o desejo –, personifica o
novo conflito a ser travado entre a razão e a libido, entre a carência e a potência, ou seja,
entre a falta e o desejo de desejo, o desejo de falta. Toda uma argumentação será travada
evidenciando no humano, ainda que disso não trate, sua verdade – o inconsciente.

Não se pode negar que o cristianismo, seguindo os passos de Agostinho e


Tomás de Aquino, mantém entre Deus e o homem um laço de amor-desejo, mas o
desejo do mundo se reduz a diabólicas libidos. Feliz catástrofe, todavia, que restitui ao
homem a imanência do seu ser e do seu desejo. Mas, de ora em diante, o desejo não está
mais, como para os gregos, em uma relação evidente com o prazer e o bem. Ele tira sua
grandeza de revelar a intimidade do homem e do mal.
25

Não foi sem razão que Freud resgatou o termo “libido” para designar a potência
do desejo. Numerosas noções psicanalíticas, como, por exemplo, pulsão de morte,
compulsão de repetição, inquietante estranheza, possuem conotações diabólicas. O
desejo está em falta, pois está em carência, ele é falta, carência. A definição de O
Banquete terá produzido conseqüências fatais. Mas até da própria carência o homem é
capaz de fazer uma potência. A força do negativo como motor da consciência e da
história em Hegel, o nada como força de ser em Sartre, comprovam que o homem, da
sua carência, pode fazer uma potência. Através da própria negatividade afirma-se o
desejo. (Dumoulié, 2005, p.83-84)

Neste campo, da filosofia escolástica, o pensamento de São Tomás de Aquino,


procurando unir o cristianismo e o aristotelismo, propõe a distinção entre o desejo
racional, próprio do humano e que mira um fim preciso – o Bem –, e os desejos
irracionais ou naturais.
O desejo sensível é finito e limitado pelo objeto da satisfação, embora
potencialmente infinito (dada a repetição das necessidades). O desejo racional, por sua
vez, é infinito sendo que,

O desejo do infinito marca a infinita distância entre o homem e Deus, mas


introduz no seio da finitude o vestígio do divino. Deste modo, a idéia do infinito
constituiu, para Descartes, a alavanca que lhe permitiu fundar em Deus a subsistência
do cogito. (Dumoulié, 2005, p.85)

Se o desejo não é amor de Deus, então remete à libido, em suas diversas facetas
de concupiscência, terreno do diabo, “do divisor (dia-bolos)”. Concupiscência, a saber,
da carne e dosa sentidos, dos olhos, da curiosidade, enfim, da soberba.

Bossuet, no Tratado da concupiscência, (...) esclarece que, na ordem da


história, a tentação foi em primeiro lugar a do espírito e que, segundo essa ordem, o
pensamento e o conhecimento são mais pecaminosos que os extravios do corpo ou da
sensualidade. O diabo terá sido então, no palco do mundo, aquele que introduziu um
desejo propriamente humano. (Dumoulié, 2005, p.86)

Pelo fim da Idade Média, o período barroco remete a um contexto de plena crise
de valores em que se encontram abalados, tanto a ordem antiga como o sistema do
mundo.
Para isso concorrem, Galileu Galilei ao propor uma nova cosmogonia
destacando o fim do sistema geocêntrico que afirmava a terra como o centro do
universo; a filosofia política de Maquiavel, em que os fins justificam os meios; o
ceticismo de Montaigne, no campo intelectual, em sua crítica da razão como fonte da
verdade; e, finalmente, a Reforma, no campo religioso.
26

Especificamente no caso de Galileu, tomada metaforicamente a sua descoberta, é


interessante pensar que o polêmico “descentramento” do mundo, pode ser pensado,
mais além, no próprio homem, mediante a consideração da razão e o descentramento do
homem aí, remetendo ao inconsciente. Terreno da libido e da pulsão de morte, causa do
sujeito, bem como, do seu desejo.
Uma revolução no pensamento ao mesmo tempo em que se fertiliza o campo
para a auto-afirmação da razão e dos impasses que daí advém. Toda a efervescência do
pensamento dessa época implica a emergência de uma nova ordem aonde a razão – e,
porque não dizer, aquilo que lhe escapa –, vai se destacando como a medida de todas as
coisas, consequentemente atribuindo ao humano e àquilo que lhe concerne outra
importância e relevância nesse contexto. Assim, do desejo do Ser a ênfase agora recai
sobre o desejo do homem.
Nesse sentido, o propósito absoluto, a instância divina ou a idéia do Bem
Supremo, não mais dão suporte ao desejo, remetido agora à instância do humano e de
suas vicissitudes.
Tal mudança de paradigma permite pensar, então, que se a filosofia propõe um
saber sobre o desejo, a psicanálise propõe uma ética do mesmo, pois, não está dado na
história ou pré-história do sujeito a sua ascese ao desejo e, mesmo, o seu objeto;
havendo o sujeito de se implicar na própria causa, na própria história, ou seja, na
conquista do seu desejo.
Mais, ainda, se a filosofia busca as respostas a fim de aplacar a angústia, esta
última constitui o campo do sujeito, por excelência, como entende a psicanálise, na
medida em que move o sujeito na direção do enigma sobre o seu desejo, a saber, na
direção da falta.
O humano de que se trata, portanto, é um sujeito “descentrado”, em que a falta, a
sexualidade e o inconsciente darão o tom da sua ação e do seu arrebatamento.
Neste contexto, os mitos de Fausto, Don Juan e do Conquistador se colocam
como os três grandes mitos modernos do desejo.
Fausto ilustra os perigos a que se expõe aquele que envereda pelo caminho louco
do puro desejo. Trata-se da cena onde ele desce ao reino das Mães, guardiãs dos
esquemas da criação, e realiza a façanha de regressar à terra, embora sendo salvo pelo
diabo.
27

Esse tipo de loucura, que o diabo não compreende, é a loucura do desejo do


homem vivido com a determinação heróica de quem se vê forçado a infringir os limites
do humano para ser homem e realizar um ato contra a natureza para responder à
natureza do seu desejo. Deste modo, a tragédia do desejo fáustico vem convergir com
aquela do desejo edípico, e este último, segundo afirma a psicanálise, é o fundamento
do desejo do homem. Uma página de Nietzsche, em O nascimento da tragédia, associa,
em torno da figura do Édipo, os três aspectos do desejo transgressor: o desejo de poder
(Édipo é um tirano que matou o próprio pai); de saber (ele resolveu o enigma da
Esfinge); de gozo (cometeu a transgressão sexual por excelência, o incesto). Tudo
consiste em “monstruosa transgressão da natureza” por aquele que deseja penetrar-lhe
os segredos e dominá-la. “A sabedoria é um crime contra a natureza”, eis a lição da
tragédia de Édipo, mas também o coração da tragédia do desejo fáustico. (Dumoulié,
2005, p.92)

Mas, é graças à análise do mito de Don Juan, que Kierkegaard foi um dos
primeiros a introduzir o desejo do homem na história da filosofia. (Dumoulié, 2005,
p.93)
Don Juan representa o desejo que “encontrou o seu objeto absoluto e o deseja de
maneira absoluta”, este desejo “verdadeiro, triunfante, irresistível e demoníaco”, é, para
Kierkegaard, o “desejo desejante”. Na medida em que “o seu objeto é a sensualidade e
somente ela”, não poderia nascer a não ser do cristianismo que havia erigido esta última
em princípio. Como esse desejo é absoluto, deseja, em cada mulher particular, toda a
feminilidade. A Grécia não conhecia senão o amor intelectual das belas
individualidades e não foi capaz de inventar o tipo do sedutor cujo desejo,
exclusivamente sensual, é, por natureza, enganador, mentiroso, pérfido, “demoníaco”.
(Dumoulié, 2005, p.94)

Finalmente,

Don Juan é também um conquistador. Na peça de Molière ele não hesita em se


comparar a Alexandre Magno. Ele é, portanto, à imagem dos heróis prometeicos da
época barroca, homem do desafio. No entanto, mais do que todos os outros, este mito
mostra até que ponto a lógica do desafio é essencial à dinâmica do desejo. Este é o
preço do gozo: por um lado, o próprio excesso do desejo é alimentado pelo desafio à lei
e ao Pai; pelo outro, somente o interdito e a transgressão sempre de novo relançada
confirmam a possibilidade de um gozo infinito que Deus ou a lei se reservam. O gozo
de Deus, espelho do gozo da mulher, não seria o verdadeiro desafio lançado ao mítico
sedutor? (Dumoulié, 2005, p.96-97)

Seguindo o percurso do desejo na tradição filosófica, se, como se diz,


“Freud era kantiano”, o expediente lacaniano do retorno a Freud – buscando o
rigor da teoria freudiana, e se opondo, portanto, aos desvios por ela sofridos
dentro da própria psicanálise –, também pode ser entendido como uma volta do
próprio Lacan a Kant.

Em Lacan, a referência hegeliana, por mais ampla, não podia explicar senão
parcialmente a dialética do desejo. (....) A volta a Kant permitiu elaborar uma dialética
transcendental, fundada sobre uma lógica subordinada à categoria da Coisa. Esta última
28

noção, enfim, permite romper com o lastro do pensamento freudiano em uma metafísica
da representação. O desejo (...) tinha, para Freud, sua origem em uma satisfação
primeira que se inscrevia no psiquismo sob a forma de traço mnêmico. Todo objeto do
desejo não é, portanto, mais que um substituto do prazer primeiro um dia vivido e
proporcionado por esse objeto perdido que é o corpo da mãe. Uma concepção como esta
(...) constitui aquilo que Lacan denominou “o mito de Freud”. O termo Coisa serve para
denunciar o caráter mítico desse primeiro momento e para dizer que no horizonte de
todos os objetos do desejo não se acha um objeto perdido, mas a perda como tal, a
própria perda, a carência elevada ao grau de categoria ou idéia reguladora do desejo.
A Coisa, enquanto incondicionado absoluto do desejo, tem a mesma função de
Deus na Crítica da razão pura: incognoscíveis, fora do alcance da razão, porque fora do
simbólico, são todavia exigidos como princípios reguladores de onde procedem tanto a
possibilidade do conhecimento como a do desejo.
O objeto a, é, portanto, assimilável a um objeto transcendental “causa do
desejo”, segundo a fórmula de Lacan, que permite articular um objeto empírico
desejado com o sujeito do desejo ou a categoria da Coisa. Esta é a tradução mais
“transcendental” do algoritmo lacaniano do fantasma: S ◊ a. (Dumoulié, 2005, p. 139-
140)

O sujeito “barrado” implica um sujeito dividido em si mesmo portador de algo


incognoscível, que remete ao inconsciente e à Coisa, Das ding, ao mesmo tempo
fundante desse sujeito tomado como falta e, por isso mesmo, desejante. Tal é a fórmula
do fantasma. Trata-se de um movimento incessante do desejo, de investimento em
objetos parciais que, por sua vez remetem indefinidamente e, de forma impossível, ao
mítico objeto “perdido”.

Esses objetos do fantasma têm, todos eles, relação com os objetos da pulsão, os
quais possuem por essência, (...) a carência. Tiram seu privilégio do seu caráter
destacável: são o seio, o excremento, a voz e o olhar. Cabe, com efeito, a Lacan o
mérito de haver mostrado que voz e olhar funcionam no fantasma como verdadeiros
objetos tomados no campo do desejo do Outro. Esses objetos, com efeito, a criança
supõe que o Outro os deseja. (...) O valor desse objeto é com toda a certeza determinado
pela satisfação libidinal, de excitação da zona erógena, que sua emissão provoca.
(Dumoulié, 2005, p.140)

Finalmente,

Kant exclui o desejo de toda determinação a priori. Em sua Crítica da razão


prática (§ 10), ele define a faculdade de desejar em função do prazer que é
proporcionado pela adequação das representações do sujeito e a realidade dos objetos
representados de que pode ter sido a causa. Submetido a um critério empírico e a uma
determinação “patológica”, (...) o desejo não pode ser um guia ou um princípio
regulador da ação. Somente a lei moral, determinada pelo conceito do bem, pode
produzir o imperativo categórico que vai determinar a ação a priori.
Esse transcendentalismo há de ter suas conseqüências éticas e também
implicações estéticas, mediante as relações que unem o desejo à lei. Mas convém
sublinhar, por enquanto, que ele inscreve a questão do desejo na problemática da
verdade. (Dumoulié, 2005, p.141)
29

Mais do que isso,

(...) a astúcia de Lacan, mobilizada para aproximar sua construção


metapsicológica da estratégia kantiana de determinação de uma vontade moral,
consistia em mostrar como há um desejo que sempre procura alcançar das Ding. Trata-
se de um desejo que quer a transgressão de um gozo para além do princípio do prazer,
já que alcançar das Ding significa necessariamente aniquilar o sistema de determinação
fixa de identidades e de diferenças que funda o eu. E a aniquilação da ilusão de
identidade própria ao eu só pode produzir a angústia de dissolução. Esse desejo é nosso
bem conhecido desejo puro, que tem agora um objeto próprio a seu estatuto
transcendental. Sublinhemos, contudo, que o preço pago pela aproximação entre a
psicanálise e a problemática kantiana é certo distanciamento do encaminhamento
freudiano inicial. No Projeto, das Ding está mais próximo da irredutibilidade do
sensível ao pensamento fantasmático do que esta irredutibilidade do transcendental à
inscrição fenomenal que Lacan parece tentar sustentar, ao aproximar das Ding e das
Gute. (Safatle, 2006, p.157-158)

A teoria de Lacan também é devedora à filosofia de Heidegger. Em primeiro


lugar, no que se refere à categoria da Coisa, a que o filósofo consagrou um ensaio.
Lembrando que a palavra “coisa” vem do latim causa, enquanto objeto causa do desejo,
Das ding falta e fala sobre a verdade do desejo. Aqui, entendendo-se a verdade como a
ação de desvelamento e não como a revelação de uma presença, uma vez que o que se
tem é pura ausência primordial, fundante do sujeito do desejo.

Graças à retirada da Coisa, existem objetos para o desejo, mas nenhum deles é o
objeto último do desejo, porque não há outro fim a não ser a carência onde vai haurir
seu recurso.
A verdade do desejo, enfim, tal como é implicada pela dimensão da Coisa, está
contida na definição heideggeriana do homem como “ser-para-a-morte”. Por esse
prisma, Lacan dá uma significação existencial à pulsão de morte, que está justamente no
coração do homem como ser falante e sexuado, na medida em que, para o homem, “a
pulsão presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, na sua essência, a morte”
(Lacan, Seminário XI). (Dumoulié, 2005, p.142)

Por sua vez, o contexto da filosofia de Schopenhauer é o contexto do criticismo


kantiano cujo princípio fundamental é a divisão manifesta entre o númeno ou Coisa em
si – inapreensível e incognoscível ao entendimento limitado pelas categorias da razão da
mesma forma que pelos quadros a priori da sensibilidade – e o fenômeno. Isto implica
uma ruptura radical na história da filosofia, uma vez que não mais deixa aberto à razão
filosófica o caminho metafísico. (Dumoulié, 2005, p.100)
Para Schopenhauer,

Sem dúvida, o nosso conhecimento se acha encerrado no mundo dos


fenômenos, portanto da representação, mas nós temos a intuição imediata, através do
nosso corpo, da essência íntima dos seres e do mundo. A coisa em si, que não podemos
conhecer do lado de fora, nós a alcançamos diretamente por dentro, pois ela está em
30

nós. Esta Vontade, da qual a vontade humana é apenas uma manifestação, é um


princípio metafísico, sustentáculo de tudo aquilo que é, desde o mineral ao humano. A
expressão “coisa em si” deve ser entendida da maneira mais concreta, como uma Coisa
todo-poderosa que habita em cada um de nós, que nos faz viver e nos vai devorando ao
mesmo tempo. Por essência é um desejo bruto, cego e insaciável.
“Todo desejo nasce de uma carência”: a sua origem é, portanto, um sofrimento.
Se encontra um objeto que o satisfaça, logo soçobra na saciedade, no tédio, no
aborrecimento. Se não encontra obstáculo algum, esfalfa-se em uma busca absurda e
interminável. Tanto na sua origem como no seu fim,o desejo é por conseguinte sempre
um sofrimento, e como ele é a própria essência da existência, pode Schopenhauer
concluir que “o sofrimento é o fundo de toda a vida”.
Os indivíduos, e do mesmo jeito as espécies, se acham ao serviço desta Vontade
cega enquanto acreditam estar realizando o próprio desejo. (...) Eis por que, na espécie
que acabou por dominar todas as outras e na qual, pelo fato da consciência, a dor de
viver é mais intensa, a Vontade aspira a negar-se. A meta da sabedoria é compreender
que “a coisa mais desejável é a eutanásia da vontade” (...) e, portanto, o fim do desejo.
(Dumoulié, 2005, p.100-101)

O caminho para o homem é o da renúncia ao desejo, uma vez que está


submetido à Vontade, ou seja, ao gozo do gênio da espécie.

Da mesma forma que é o gênio da espécie que deseja em nós, é ele que goza. O
gozo, para o homem, é sempre o da Coisa ... em si. Aqui se acha um ponto em que
Schopenhauer coincide com as análises do Banquete: o desejo que impele o homem a
procriar é o desejo da imortalidade, mas aqui ainda se trata de novo de um engodo, dado
que apenas a espécie sobrevive.
No desejo, o homem é quem sai logrado. (Dumoulié, 2005, p.104)

É interessante notar que o Outro deseja em nós e, portanto, segundo


Schopenhauer, goza em nós. Um gozo remetido ao real da Coisa em si, em termos
lacanianos. Essa visão schopenhaueriana, fatalista e, ainda que, um tanto negativista, dá
expressão à senda do sujeito na assunção do seu desejo, mas, além disso, aponta para a
fundamental inevitabilidade do mal-estar do sujeito na cultura.

Enquanto a ruptura efetuada por Nietzsche consistiu em uma superação da


metafísica, a de Schopenhauer consistiu exatamente em uma inversão desta última. O
Ser então se tornou malvado, amargo e culpado. Sendo assim, o sentido do desejo
metafísico também se inverte: o homem é uma vítima que vai cegamente caminhando
para sua ruína e a confunde com o seu maior bem.
(...) Nestas condições, o resultado último do amor só pode ser a infelicidade. O
único salário do desejo é a frustração: enquanto o amante acreditava estar buscando o
seu prazer pessoal, estava realizando o do Outro, o do gênio da espécie. (Dumoulié,
2005, p.107)
31

Podem-se observar pontos de similaridade entre o pensamento schopenhaueriano


e as teorias de Freud e Lacan, em especial, no que se refere à teoria do desejo proposta
por Lacan.
Em relação a Freud, pode-se identificar a libido a Vontade schopenhaueriana. A
libido repousando sobre a pulsão configura-se como a expressão bruta da Vontade.
Ambas apresentando um caráter material, algo misterioso, remetidas sempre ao tempo
presente de modo a vivê-lo eternamente, o que faz com que a temporalidade de sua
manifestação seja à da repetição.

O segundo ponto de contato é aquele da diferença estabelecida entre a


representação e o afeto, verdadeira reviravolta no que tange à tradição filosófica.
Doravante as funções intelectuais passam a subordinar-se às funções afetivas, ligadas à
Vontade. Mas como esta última é a Coisa em si, ela é tão incognoscível quanto o
inconsciente. O sujeito, enquanto pensa e fala, jamais tem acesso ao afeto imediato, mas
unicamente a representações do afeto.
O terceiro ponto de contato entre Schopenhauer e Freud (...) é a concepção da
loucura. (...) No terceiro livro do Mundo... encontra-se a origem da teoria do
recalcamento, causa das neuroses, mas sobretudo da idéia de forclusão, causa das
loucuras. Os termos não são os mesmos, mas os processos são exatamente descritos. A
causa da loucura, segundo Schopenhauer, é um conflito entre uma representação, ou um
afeto, e o intelecto que não quer acolhê-lo. Se este é, todavia, aceito, “uma vez forçada a
entrada do intelecto, a impressão penosa começa a se enfraquecer”. Essa integração
difícil e dolorosa é a marca da sanidade. A doença provém de uma impossibilidade de
aceitar que cria o recalcamento. Este último pode tomar a forma de “violenta exclusão
de uma coisa fora do espírito”. Esse ato de exclusão cria um buraco na ordem
simbólica, ou “o encadeamento uniforme das lembranças”, que o delírio tem por função
preencher. Este é um dos traços maiores da teoria da forclusão particularmente
desenvolvida por Lacan, como origem das psicoses. (Dumoulié, 2005, p.109-110)

Em relação à teoria lacaniana, por sua vez, podem ser apontados pontos de
convergência com o pensamento de Schopenhauer. O primeiro ponto diz respeito à
negação da dualidade das pulsões de vida (Eros) e das pulsões de morte (Thanatos),
dualidade correspondente à última teoria freudiana.

A pulsão, aquela que move a vida, o desejo e a sexualidade é,


fundamentalmente, pulsão de morte. Esta é precisamente a natureza da Vontade: ela
encarna a potência cega e eterna de vida à qual os indivíduos nunca obedecem tão bem
como quando se encaminham inconscientemente para a própria morte.
A segunda observação vai referir-se aos famosos objetos do desejo, já
encontrados em O Banquete sob o nome de agalmata, e que são considerados na
psicanálise como os objetos do fantasma, causas do desejo. (...) Para se tornar causa do
desejo, é necessário que tenha sido objeto do desejo do Outro, visto que, segundo a
fórmula de Lacan, o desejo do homem é o desejo do Outro. Com efeito, esses objetos
não são desejáveis a não ser na medida em que o sujeito os representa a si mesmo como
sendo desejados pelo Outro. Que este último seja, em Schopenhauer, o gênio da espécie
32

ou a criança nascitura, são imagens que dizem o principal e fazem entrar em cena este
terceiro essencial à constituição do desejo.
Enfim, pode-se encontrar no finalismo metafísico de Schopenhauer uma
imagem, por assim dizer invertida, desta espécie de transcendentalismo lacaniano que
situa no significante a origem a priori da constituição do sujeito e da realização da sua
história.
(...) Ao inverter o finalismo schopenhaueriano, e colocando-se do ponto de vista
da gênese do sujeito, essas fórmulas dizem até que ponto o seu nascimento está
submetido a determinações simbólicas e imaginárias, muito anteriores ao seu
nascimento biológico. É, na sua expressão mais pura, aquilo que o significante quer
dizer. Seria necessário acrescentar que a noção de Coisa, tão essencial à teoria de
Lacan, cujas nobres origens kantianas e heideggerianas são abertamente reconhecidas,
tem ocultas e profundas ligações com a Coisa em si schopenhaueriana, a Vontade de
gozo cega e mortal. (Dumoulié, 2005, p.110-111)

Espinosa (séc. XVII), segundo Hegel, o principal filósofo dos tempos


modernos, é para muitos o iniciador das ciências humanas, na medida em que entende o
homem procedendo do determinismo, sempre determinado por causas exteriores num
sistema de encadeamento universal das causas e dos efeitos. Neste sistema, estão
descartadas tanto a idéia de uma intenção a que o mundo obedeceria quanto a crença no
livre arbítrio da consciência humana.

Desde Aristóteles, o desejo definido essencialmente como movimento,


determinou as formulações sobre a relação entre a Natureza e a Arte, a primeira
tornando-se cada vez mais artesã e a segunda, cada vez mais natural. (Chauí, 1990,
p.44)
(...) O conatus (esforço) é a essência atual de um ente. O desejo, apetite de que
temos consciência, é a essência atual do homem. O desejo é, pois, conatus, movimento
infinitesimal de autoconservação na existência. O desejo é o poder para existir e
persistir na existência. É a pulsação de nosso ser entre os seres que nos afetam e são por
nós afetados.
O desejo, sempre o soubemos, esteve enlaçado ao movimento. Entretanto,
antigamente, o movimento era desejo; agora, o desejo é movimento. E o movimento já
não é a kínesis, não é um processo, mas um estado do corpo, (...) uma propriedade
mensurável dos corpos, (...) uma quantidade que determina qualidades na matéria, tais
como a forma, a figura e a grandeza. O movimento, agora, é aquele cujas leis foram
trazidas por Galileu e Descartes, deslocamento no espaço (...). (Chauí, 1990, p.46)

O homem erra ao imaginar valores como o Bem, o Belo, etc., dotados de


existência substancial.

(...) De fato, não é nada disso; o valor é sempre relativo a uma dada situação –
seu estudo participa, portanto, ao mesmo tempo de uma genealogia e de uma ontologia,
ou seja, é preciso encontrar no homem um princípio de existência que dê sentido ao que
ele pode viver: será o Desejo (“essência do homem”) que afeta simultaneamente o
corpo e o espírito e afirma uma tendência a perseverar no ser (conatus).
33

(...) Mas o desejo, no homem, ou seja, no nível da singularidade, é o semelhante


exato da substância no Ser, ou seja, além de qualquer determinação: em Deus ou na
Natureza, pois esses dois conceitos são sinônimos para Espinosa. De um lado e do
outro, encontra-se o poder de existir – e, por intermédio do desejo, de usufruir dessa
existência na Substância, de dela dispor.
Se a ontologia funda desse modo uma antropologia filosófica, a última, por sua
vez, torna uma ética possível (ética que permitirá passar da servidão das paixões à
liberdade) – cuja atualização deve ser facilitada por uma política, na medida em que
instituições corretamente organizadas devem facilitar a libertação humana afastando-se
da violência natural. (Durozoi, DF, p.448)
(...) A análise do Desejo, sem dúvida o momento chave de A Ética, encontra-se
no Livro III (Da origem e da natureza das afeições). Enquanto os filósofos definem
tradicionalmente o desejo como a ausência e a carência de ser, para Espinosa é um
movimento positivo: esforço a perseverar no ser que faz o homem existir como matéria
e espírito, pois remete simultaneamente às idéias do espírito e aos movimentos do
corpo. (...) Como movimento em direção ao ser, o desejo é fundamentalmente desejo da
alegria – ou da apreensão da existência própria como crescimento. Mas pode desviar-se
em direção à tristeza – que sanciona a decepção do desejo. É o quer ocorre quando a
imaginação acarreta a servidão (Livro IV) (...).
(...) a transição da servidão à liberdade pode operar-se sem referência a uma
transcendência clássica: depende do recentramento do próprio desejo e do homem que,
passando das ilusões produzidas pela imaginação à apreensão adequada de si com
relação à totalidade do universo, faz ascender a um conhecimento reflexivo de si que
conduz à sabedoria. (Durozoi, 1993, p.450)

Segundo Chauí, à maneira geométrica e matemática, para Espinosa, trata-se de


compreender o desejo, e conhecendo-o, determinar suas leis. A modernidade, então,
rompe a ligação do desejo com a astrologia, de modo que nossa fortuna não está nos
astros, mas, no poder do homem sobre as circunstâncias que cria ou enfrenta.

(...) Espinosa, que, na abertura do terceiro livro da Ética, escrevera que


ninguém, até o momento, havia demonstrado o que pode a razão para moderar o desejo,
demonstrará que ela, simplesmente enquanto razão, nada pode sobre o desejo porque a
força de uma paixão jamais é vencida pela razão e sim por outra paixão mais forte e
contrária. O hábito moderador não é ação racional voluntária sobre o desejo, como
supusera o estóico e mesmo Descartes, mas aptidão para manter as circunstâncias que
reforcem o desejo de autoconservação e para excluir aquelas, contrárias, que o
enfraqueçam. Essa aptidão possui maiores possibilidades de sucesso quando não for
guiada apenas pela imaginação, mas também pela razão. E aqui encontramos a grande
inovação espinosana: a razão só disporá dessa capacidade moderadora se for vivida por
nós sob a forma de um desejo. Assim, em lugar do desejo tornar-se racional, como toda
tradição filosófica prometera, é a razão que precisa tornar-se desejante para ser racional.
Apenas quando uma idéia racional for vivida como desejo será mais forte do que o
desejo passional e poderá vencê-lo em movimento contrário à paixão mais fraca.
(...) A ética é discurso dedutivo e demonstrativo das causas e formas da
passividade e da atividade anímicas e o desejo é natural, não opinião valorativa (...), o
desejo é efeito, na consciência, de movimentos mecânicos conhecidos pela física e pela
fisiologia (...) o desejo é manifestação consciente, é próprio do homem, que compartilha
com animais a tendência ao movimento para autopreservação, chamada apetite. (Chauí,
1990, p.55-56)
34

(...) Espinosa recusa a imagem do homem que, pela paixão e pelo desejo,
perturbaria a ordem natural. O desejo não é juízo, opinião desnaturada, hábito
artificioso, mas “essência atual de um homem determinado”, seguindo necessariamente
as leis naturais, em toda parte e sempre unas e as mesmas.
(...) O desejo não nos põe contra a Natureza nem fora dela: simplesmente
determina a maneira como nela nos inserimos para sermos passivamente sua parte ou
para, ativamente, nela tomarmos parte. (Chauí, 1990, p.58-59)

Assim, para Espinosa, o homem é causa adequada, ou ativo, quando algo acontece nele
ou fora dele dependendo apenas do seu ser e por ele explicando-se inteiramente. Por sua vez, o
homem é causa inadequada, ou passivo, quando encontra fora de si a razão de seu desejo.

(...) ser causa adequada é encontrar na força interna do corpo e da alma a razão
plena de nosso desejo. Eis porque o desejo é definido por Espinosa como causa
eficiente que pode ser determinada do exterior, na paixão, e do interior, na ação. No
entanto, e isso é essencial, quer causa inadequada quer causa adequada, o desejo é
sempre conatus, esforço de perseveração da existência. (Chauí, 1990, p.60-61)
(...) Alfa e ômega da essência humana, o desejo é o que nos faz agir e abarca a
totalidade da vida afetiva, não se distinguindo do apetite, do impulso ou da volição. (...)
Espinosa marca o desejo com o selo da mais profunda singularidade, não só por defini-
lo como causa eficiente, mas também por fazê-lo depender de “uma afecção
determinada” que o torna extremamente variável sem conteúdo prefixado. Nele e com
ele é tecida a irredutível individualidade de nossas vidas. Somos desejo e nossos desejos
são nós. Dependendo das afecções atuais do corpo e seus afetos na alma, na paixão o
desejo é determinado pelas causas externas, delas depende e com elas varia, faz-se
contrário a si mesmo e nos arrasta ao desamparo. A tradição pediria, então, que
Espinosa completasse sua definição oferecendo o papel imperial e moderador da razão.
Mas Espinosa não é dócil à tradição e percorrerá caminho insólito.
(...) a imaginação pode levar-nos a confundir imagens e idéias, operação
corporal e operação intelectual. (...) A imagem nada nos ensina sobre a natureza de
nosso corpo, dos outros corpos, de nossa alma e das outras almas, pois sua função não é
ensinar e conhecer, mas representar relações. A imagem é como um véu interposto entre
nós e nós mesmos, cenário que leva a alma a exercer sua espontânea aptidão de
encadeamentos sem, contudo, dispor das razões do que encadeia, fabricando cadeias
imaginárias de causas, efeitos e finalidades abstratas com que supre a carência de
pensamentos. Por isso os desejos imaginários nos arrastam em sentidos opostos e nos
deixam desamparados, amando e odiando as mesmas coisas, afirmando-as e negando-as
ao mesmo tempo. Ocultando-nos de nós mesmos, o véu das imagens induz à inversão
do desejante: cremos que o desejado/indesejado é a causa do desejo/aversão que
vivenciamos. Não só estamos possuídos pela exterioridade, mas nela depositamos nosso
ser e nossa vida, arriscados à perda iminente e contínua, ameaçados pela frustração e
pela insaciável carência. Acercamo-nos perigosamente do grau zero de realidade,
enfraquecidos de corpo e alma. (Chauí, 1990, p.62)

É extremamente rico poder pensar que estão aí, em germe, alguns temas
fundamentais da psicanálise e, em especial, da teoria proposta por Lacan.
Primeiramente, a questão da contradição, do conflito, e da dialética, algo a ser
eliminado do sistema espinosano, e que é justamente a essência do humano na forma
como é entendido para a psicanálise (Freud-Lacan). A dialética, mais especificamente,
35

que é tão cara a Hegel em seu idealismo, diferentemente do universo espinosano, como
se verá adiante.
Se, em Espinosa o desejo é a essência do homem – desejo como positividade,
dentro de um sistema de encadeamento de causas e efeitos –, para Lacan, desejo,
contrariamente, será o signo da falta no humano, expressão simultânea de algo marcado
desde sempre pelo corte da insatisfação e, regulador, impulsionador do movimento do
sujeito, e por isto fundamento do humano enquanto sujeito do seu desejo.
Entretanto, também é possível e interessante pensar, mantidas as devidas
proporções, nesse suposto encadeamento de causas e efeitos determinante do homem e
sua eventual ressonância com a cadeia de significantes, como abordada em Lacan, algo
originário do e no Outro e com que o sujeito terá que se ver no decurso de seu trabalho
subjetivo em direção à conquista do próprio desejo.
Por sua vez, a entrega à exterioridade, em Espinosa, remete a um estado de perda
iminente, de inevitável frustração e insaciável carência. Contrariamente a este cenário, o
desejo é apresentado como expressão de uma positividade, sempre remetendo a um
esforço de perseveração da existência. Em Lacan, aparentemente também podemos
pensar no desejo como a perseveração da existência, da afirmação de um sujeito que, no
entanto, se define enquanto tal, justamente, como falta-a-ser, enquanto um sujeito único
e desejante e, portanto, em falta.
Além disso, coloca-se a questão da imaginação, em termos espinosanos,
condição de obnubilação do homem, confundindo-o em relação à razão e ao seu desejo.
Ponto extremamente importante de ser compreendido no sistema espinosano e que terá
todo um desenvolvimento na teoria lacaniana, se pudermos concebê-lo aproximado a
um dos três registros, a saber, o imaginário. Imaginário, por sua vez, constituinte das
estruturas subjetivas e condição de possibilidade da compreensão dos sujeitos, suas
ações e interações, bem como, da dinâmica como um todo, juntamente com os outros
dois registros, quais sejam: o simbólico e o real.
Por último, destaca-se o desejo enquanto expressão da singularidade do humano
e de sua essência.

(...) Se desejar saber for sentido por nós como alegria e amor intelectual e se
ignorar for por nós experimentado como fraqueza e tristeza, a razão iniciará seu
percurso no interior do desejo. Levantar o véu das imagens rumo às idéias é o ato
inaugural com que alma se torna capaz de compreender que o desejo tem nos outros
(humanos e coisas) apenas a ocasião, mas como causa nosso esforço para perseverar na
existência e que, portanto, o desejo se origina em nós e parte de nós rumo aos outros e
36

às coisas. Esse conhecimento é liberação. Não deixamos de desejar: simplesmente,


sabemos porque desejamos. Assim, a passagem da paixão desejosa à ação desejante
começa quando a alma se torna apta a interpretar por si mesma o sentido de nossos
desejos, suas causas e seus efeitos, sabendo, doravante, que somos nós a causa desejante
que institui o desejado. Compreender o desejo e sua origem, eis a ação da alma. (...)
Assim, em lugar de pretender agir sobre o copo, dominá-lo ou coibi-lo, a alma ativa
esforça-se para conhecê-lo e para conhecer-se, referindo o desejo às suas causas
internas. Tornando-se capaz de reflexão, torna-se capaz de interpretar seus afetos e de
conviver com a plenitude imaginante de seu corpo.
A razão não nos corta do mundo nem nos separa de nosso corpo. Como ação
intelectual, é simplesmente uma maneira melhor e mais feliz de estar no mundo, ter um
corpo e ser uma alma. (Chauí, 1990, p.63)

Pensando no projeto espinosano, de uma “razão desejante para ser racional”, no


processo de conhecimento do encadeamento de causas e efeitos proposto à razão, e
sabendo-se que não se trata de submeter as paixões à razão, uma vez que a filosofia de
Espinosa não remete a um intelectualismo, este projeto em muito parece remeter à teoria
do desejo em Freud e Lacan, podendo-se conceber uma aproximação do desígnio
espinosano de “referência do desejo às causas internas” à primazia do inconsciente em
Freud e, no caso lacaniano, do inconsciente estruturado como linguagem, apontando os
encadeamentos significantes.
Neste particular, o sistema de Espinosa, destaca ainda o sentido do desejo, bem
como sua causa. Algo que deve mover o homem para a compreensão do seu desejo,
“ação da alma” e que não o afasta do mundo nem das paixões. Pelo contrário. Não se
coloca como um ideal ascético, conclamando o homem a dar um sentido a aquilo que o
afeta e por meio do qual pode se conhecer. Porém, no limite, o desejo espinosano se
coloca como expressão de uma positividade.
Finalmente,

(...) o desejo supõe a representação de uma causa que determine a ação [IV, 61].
Começam deste modo o extravio e o erro do desejo: Em lugar de se voltar para a
emanação interior do conatus, o espírito vai procurar no exterior pretensos objetos
causas do desejo. Em lugar de querer o que julgamos desejável em função da nossa
essência, cometemos o equívoco de procurar nas coisas a origem do desejo e os
motivos do desejável. A definição do objeto a por Lacan, como objeto
fantasmático causa do desejo, mas não objeto verdadeiro do desejo, encontra
aqui a sua origem filosófica. Assim como a diferença essencial, para a
psicanálise, entre o afeto e a sua representação, e a idéia segundo a qual não
temos nunca acesso direto ao afeto, menos ainda à pulsão, mas sempre a seu
representante (Triebrepraesentant), ou quem sabe ao “representante-
representação” (Vorstellungsrepraesentant), segundo os termos de Freud.
(Dumoulié, 2005, p.149-150)
37

É sabido que a influência do pensamento de Hegel sobre a psicanálise, mais


particularmente sobre Lacan e a teoria do desejo que aqui focalizamos, se deu através
das aulas de Alexandre Kojève – de que Lacan e Bataille eram alunos entre outros
intelectuais e artistas franceses –, entre os anos de 1933 e 1939.
No entanto,

(...) se a transcendência negativa própria ao desejo lacaniano veio


primeiramente de Kojève, temos o direito de perguntar se ela não seria uma
problemática hegeliana. Tal movimento comparativo poderá nos abrir uma alternativa
de compreensão dialética da psicanálise por meio de considerações sobre o lugar lógico
ocupado pelos conceitos mobilizados por Hegel na determinação dos móbiles em ação
na pragmática de sujeitos socializados: desejo, trabalho e linguagem.
(...) O primeiro movimento de autodeterminação da subjetividade consiste pois
em transcender o que a enraíza em contextos e situações determinadas “para ser apenas
o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma”. (Safatle, 2006, p.89-90)

A consciência, ao mesmo tempo que tem o sentimento de si, “corporificada”, em


vínculo com a determinação empírica, “existe à maneira de coisas dispostas diante de uma
potência que lhes é estranha”. (Cf. Safatle, 2006, p.90)

No que diz respeito à consciência, é a Begierde que primeiramente realiza de


maneira imperfeita o papel do elemento operador de tal negação; o que poderia nos
mostrar como o desejo hegeliano já indicaria algo da estrutura de transcendência
negativa procurada por Lacan. Lembremos, por exemplo, como Hegel vinculava-se a
uma longa tradição que remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da
falta.
(...) O que move o desejo é a falta que aparece intuída no objeto. Um objeto
que, por isso, pode se pôr como aquilo que determina a essencialidade do sujeito.
(Safatle, 2006, p.90)

Segundo o Safatle, diferentemente de Kant, o sujeito hegeliano é transcendente


sem ser transcendental. Ou seja, ele não é condição a priori para a constituição do
campo da experiência, mas, contrariamente, a afirmação de que a experiência sempre
ultrapassa a estrutura de apreensão da consciência. (Cf. Safatle, 2006, p.90)
Além disso, o objeto que aponta a falta é o mesmo que sinaliza a satisfação da
consciência remetida à procura de si mesma. Um movimento que, fundamentalmente,
recorta o objeto de que se trata – o objeto desejável –, na medida em que possibilita a
duplicação da consciência-de-si. Assim demarca-se um objeto específico na medida em
que remete a consciência a um duplo, expressão dialética, simultaneamente, da falta e
da autoposição da consciência-de-si.
38

(...) o desejo não é apenas uma função intencional ligada à satisfação da


necessidade animal, como se a falta fosse vinculada à positividade de um objeto natural.
Ele é operação de autoposição da consciência: pelo desejo a consciência procura se
intuir no objeto, tomar a si mesma como objeto, e este é o verdadeiro motor da
satisfação. Por meio do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma. (...) Isto
implica inicialmente tentar destruir o Outro (o objeto) como essência autônoma. No
entanto, satisfazer-se com um Outro aferrado à positividade de uma condição de mero
objeto (no sentido representacional) significa não realizar a autoposição da consciência
como consciência. A consciência só poderá se pôr se ela desejar um objeto que duplica
sua própria estrutura. Ela só poderá se satisfazer ao desejar uma outra consciência, ao
intuir a si mesmo em uma outra consciência. “A consciência-de-si só alcança satisfação
em uma outra consciência-de-si”. (Safatle, 2006, p.91)

Esse movimento da consciência põe em evidência a falta, explicitada no objeto,


porém, concernente ao Outro e à própria consciência-de-si.
A par de um objeto, por assim dizer, específico, quanto à viabilidade da
dinâmica que a consciência se põe em sua remissão a outra consciência-de-si, ao nos
perguntarmos sobre a natureza de tal objeto, sabendo de sua característica remissão à
falta, desvendaremos algo mais sobre a própria consciência-de-si.
Segundo Hegel (2001),

174 – [Das einfache] (...) a consciência-de-si é certa de si mesma, somente


através do suprassumir desse Outro, que se lhe apresenta como vida independente: a
consciência-de-si é o desejo. Certa da nulidade desse Outro, põe para si tal nulidade
como sua verdade; aniquila o objeto independente, e se outorga, com isso, a certeza de
si mesma como verdadeira certeza, como uma certeza que lhe veio-a-ser de maneira
objetiva.
175 – [In dieser Befriedigung] (...) a essência do desejo é um Outro que a
consciência-de-si; e através de tal experiência essa verdade veio-a-ser para a
consciência. Porém, ao mesmo tempo, a consciência-de-si é também absolutamente
para si, e é isso somente através do suprassumir do objeto; suprassumir que, por ser a
verdade, deve tornar-se para a consciência-de-si sua satisfação. Em razão da
independência do objeto, a consciência-de-si só pode alcançar satisfação quando esse
objeto leva a cabo a negação de si mesmo, nela; e deve levar a cabo em si tal negação
de si mesmo, pois é em si o negativo, e deve ser para o Outro o que ele é.
Mas quando o objeto é em si mesmo negação, e nisso é ao mesmo tempo
independente, ele é consciência. (p.130)

(...) 347 – [Das Selbstbewusstsein] (...) o objeto a que a consciência-de-si se


refere positivamente é uma consciência-de-si; um objeto que está na forma da
coisidade, isto é, um objeto independente. No entanto, a consciência-de-si tem a certeza
de que esse objeto independente não lhe é nada de estranho, pois sabe que por ele é
reconhecida em si. Ela então é o espírito, que tem a certeza de ter sua unidade consigo
mesmo na duplicação de sua consciência-de-si e na independência das duas
consciências-de-si [daí resultantes]. Essa certeza agora tem de elevar-se à verdade, para
a consciência-de-si: o que para ela vale como sendo em si, e em sua certeza interior,
deve entrar na sua consciência e vir-a-ser para ela. (p.221)
39

Ainda na via de decifração do objeto de que se trata, qual seja, intuição


(mediação) das duas consciências-de-si e reflexão, Safatle destaca que, contrariamente à
vida, hegelianamente entendida enquanto um fundamento imperfeito, não passível de
reflexão, já que a vida não é para si,

Hegel apresenta então a noção, mais completa, de “reflexão duplicada”


(gedoppelte Reflexion), ou seja, a noção de que a consciência só pode se pôr em um
objeto que não seja exatamente um objeto, mas que seja por sua vez uma reflexão, um
movimento de passar ao outro e de retornar a si desta alienação. Daí porque a
consciência só pode ser consciência-de-si ao se pôr em uma outra consciência de si. O
objeto deve se mostrar como “em si mesmo negação”, no sentido de portar esta falta
que o leva a procurar sua essência no seu ser-Outro.
Assim, o problema do fundamento da consciência-de-si só poder ser resolvido
por um recurso à dinâmica de reconhecimento entre desejos. Dinâmica de
reconhecimento que nos levará a um “Eu que é nós e um nós que é eu”(...).
(...) Dessa forma, por trás deste eu que é nós e deste nós que é eu, há a certeza
de que a consciência só pode ser reconhecida quando seu desejo não for mais desejo por
um objeto do mundo, mas desejo de outro desejo, ou antes, desejo de reconhecimento.
No entanto, para além desta certeza, há ainda a compreensão de que o particularismo do
desejo é uma ilusão já que o que anima a consciência em sua ação e conduta são
exigências universalizantes de reconhecimento de si pelo Outro (...). (...) Para tanto, ela
precisará ser reconhecida por um outro que não seja apenas uma outra particularidade,
mas um Outro que possa suportar aspirações universalizantes de reconhecimento.
(Safatle, 2006, p.92)

A certeza e, mais adiante veremos, a verdade, da consciência, no caminho de


aceder ao desejo de desejo, apontam para um trabalho da consciência, um trabalho de
reflexão sobre si e o seu duplo. Nesse sentido, é interessante destacar o seguinte trecho
das reflexões de Hegel, e que segue:

233 – [Die Vernunft ist] A razão é a certeza da consciência de ser toda a


realidade: assim enuncia o idealismo o conceito da razão. (...) Eu sou Eu, no sentido de
que o Eu para mim é objeto. Não no sentido de objeto da consciência-de-si em geral –
que seria apenas um objeto vazio em geral; nem de objeto da consciência-de-si livre –,
que seria somente um objeto retirado dos outros, que ainda são válidos ao lado dele;
mas sim no sentido de que o Eu é objeto, com a consciência do não–ser de qualquer
outro objeto; é o objeto único, é toda a realidade e presença.
Porém, a consciência-de-si não é toda a realidade somente para si, mas também
em si: porque se torna essa realidade, ou antes, porque se demonstra como tal. Assim se
demonstra através do caminho, no curso do qual o ser-outro, como em si, desvanece
para a consciência: primeiro, no movimento dialético do ‘visar’, do perceber e do
entendimento. Demonstra-se depois, no movimento através da independência da
consciência, na dominação e escravidão; através do pensamento da liberdade [do
estoicismo], da libertação céptica e da luta de libertação absoluta da consciência cindida
em si mesma; [movimento em que] o ser-Outro desvanece para a consciência enquanto
é somente para ela. (Hegel, 2001, p.153-154)
40

Aparentemente, o trabalho da consciência implica mais. Uma vez que, já está


posta, de início, a verdade da consciência, como tal, enquanto meta e demanda de
movimento. No entanto, tal verdade, embora almejada, nem sempre é possível ou
buscada – lembremos-nos da posição do escravo na dialética hegeliana entre o senhor e
escravo –, na medida em que remete ao percurso da alienação ao vir-a-ser, e vir-a-ser,
justamente, uma falta, enquanto desejo.
Segundo Hegel (2001), na Fenomenologia do Espírito,

234 – [Der Idealismus] (...) A razão apela para a consciência-de-si de cada


consciência: Eu sou Eu; o Eu é meu objeto e minha essência, e nenhuma lhe negará essa
verdade.
Porém, ao fundar a verdade sobre esse apelo, sanciona a verdade da outra
certeza, a saber: há para mim [um] Outro; [um] Outro que Eu é para mim objeto e
essência; quando Eu sou para mim objeto e essência, sou isso apenas enquanto Eu me
retiro do Outro, em geral, e tomo lugar ao lado dele como uma efetividade.
Somente quando a razão surge como reflexão a partir dessa certeza oposta é que
surge sua afirmação de si, não mais apenas como certeza e asserção, mas como verdade;
e não ao lado de outras verdades, mas como a única verdade. O imediato surgir [da
verdade] é a abstração de seu ser-presente, cuja essência e ser-em-si é o conceito
absoluto – quer dizer, o movimento de seu ser-que-veio-a-ser. (p.154)
(...) 239 [Dieser Idealismus] (...) Permanece [a razão] um buscar irrequieto, que
no próprio buscar declara pura e simplesmente impossível a satisfação do encontrar.
Mas a razão efetiva não é tão inconseqüente [assim]: ao contrário, sendo, de
início, só a certeza de ser toda a realidade, está consciente nesse conceito de não ser
ainda, enquanto certeza, enquanto Eu, a realidade em verdade; e é impelida a elevar sua
certeza à verdade, e a preencher o Meu vazio. (p.158)

Finalmente, é importante salientar a contribuição trazida por Safatle, além do já


destacado anteriormente, na medida em que o autor aponta o erro de concepção de
Lacan sob a inspiração kojèveana , qual seja, afirmar a dialética hegeliana do desejo
remetida ao registro imaginário.

Eis o resultado de reduzir a filosofia hegeliana ao motivo do conflito presente


na Dialética do Senhor e do Escravo em sua versão kojèveana. Se Lacan levasse
realmente em conta o papel do trabalho, ele perceberia que o reconhecimento das
consciências pressupõe necessariamente uma passagem à dimensão simbólico-social
que nada tem de imaginário no sentido lacaniano. O trabalho pressupõe a mediação do
sujeito por um objeto que não é apenas reconhecido por outra consciência, mas pelo
Outro simbólico como, por exemplo, sistema de necessidades que expõe o vínculo
social. É claro, este Outro hegeliano não é totalmente simétrico ao Outro lacaniano, mas
ele não se confunde com a dimensão da pura relação ao outro. (Safatle, 2006, p.93)

Para além, o que Safatle recupera a partir de uma leitura criteriosa de Hegel e
Lacan é a proximidade entre ambas as teorias em relação ao sujeito ou consciência-de-
41

si, assim denominado em Lacan e Hegel, respectivamente, e a angústia diante da falta e


do desejo.
Aqui, o elemento chave para essa compreensão é a dialética hegeliana do senhor
e do escravo, com o aporte da categoria do trabalho para Hegel, categoria esta marcada
“por ser uma certa defesa contra a angústia, diante do tremor da dissolução de si”.
Assim,
(...) A consciência que trabalha não expressa a positividade de seus afetos em
um objeto que circulará no tecido social. Hegel esvaziou a dimensão da expressividade
como chave para a compreensão do trabalho. Antes, o trabalho é a figura de um ser-
fora-de-si necessário, de uma alienação formadora. Vale à pena insistir aqui nesta
temática fundamental para o Hegel da Fenomenologia: o escravo (primeira
manifestação da consciência trabalhadora) trabalha para calar a angústia da
negatividade absoluta da morte, angústia advinda da “desterritorialização” completa de
si diante do Dasein natural e da fragilização essencial de suas imagens de mundo. É a
angústia que faz que, no formar, o posto seja a própria negatividade (e não a realização
autônoma de um projeto alojado na intencionalidade da consciência). Ao trabalhar, a
consciência prefere aferrar-se a uma essência estranha (daí porque a primeira figura do
trabalho é o serviço) a tentar sustentar-se como pura negatividade absoluta.
(...) Hegel insiste que a internalização da negação de si, própria à configuração
da essência, deve se manifestar inicialmente como negatividade absoluta diante da
permanência de toda determinidade.
É nesse sentido que a angústia deve ser compreendida, como a manifestação
fenomenológica inicial desta essência que só pode se pôr mediante o “fluidificar
absoluto de todo subsistir”, ou seja, do negar a essencialidade de toda determinidade
aferrada em identidades opositivas. Manifestação inicial, daí porque Hegel fala de
“essência simples”, mas manifestação absolutamente necessária. A angústia pode aqui
ter esta função porque não se trata de um tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele
instante, mas se trata aqui de uma fragilização completa dos vínculos da consciência ao
mundo, à imagem de si mesmo e das estruturas essenciais que permitiam a orientação
no pensar. É esta fragilização que traduz de maneira mais perfeita o que está em jogo
neste “medo diante da morte, do senhor absoluto”. O termo “angústia” tem aqui um uso
feliz porque ele indica exatamente esta posição existencial na qual o sujeito parece
perder toda orientação do desejo em relação a princípios de identidade e diferença que
conformam o agir e orientam o pensar, como se estivéssemos diante de um desejo não
mais desprovido de forma (todo leitor do Seminário: A angústia, de Lacan, não terá
dificuldade em encontrar aqui uma semelhança de família instrutiva).
No entanto, se a consciência for capaz de compreender a angústia que ela sentiu
ao ver a fragilização de seu mundo e de sua linguagem como primeira manifestação do
Espírito, deste Espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, então
ela poderá compreender que este “caminho do desespero” é, no fundo, internalização do
negativo como determinação essencial do ser. Daí por que: “o temor do senhor é o
início [mas apenas o início] da sabedoria”. (Safatle, 2006, p.95-97)

Se em Hegel, o que está posto é o conflito entre consciências, em Marx, o que


está em jogo é o conflito da luta de classes. No idealismo hegeliano, o objeto remetia a
consciência-de-si a uma reflexão de sua pura negatividade, movimento de autoposição
da consciência em sua essência.
42

O materialismo dialético proposto por Marx

(...) tenta explicar as transformações sucessivas da natureza pela superação dos


elementos contrários em luta até que apareça uma realidade superior de acordo com o
princípio da mudança qualitativa e do progresso por saltos. (...) No centro da evolução
natural, o aparecimento do pensamento tem uma importância decisiva. (...) Marx admite
uma lei de ação recíproca segundo a qual o homem, se é produto da natureza,
reciprocamente está em condições de agir sobre a matéria (...). (Durozoi, 1993, p.312)

Os objetos, expressão maior da insubstancialidade, têm seu valor determinado


pela quantidade de lucro ou mais-valia que contêm (enquanto valor agregado pelo
trabalho alienado). Nesta perspectiva, a produção visa à satisfação das necessidades
sempre atreladas a outro objeto, gerando mais trabalho alienado e cada vez mais
carência.

(...) quanto mais produz, criando sempre mais possibilidades de satisfação, tanto
mais o capitalismo gera a impossibilidade de satisfazer suas necessidades.
Assim, de acordo com Marx, todo o projeto da economia capitalista consiste em
manter os trabalhadores no máximo estado de indigência e persuadi-los a
renunciar ao desejo. (Dumoulié, 2005, p.128)

Daí entender, por um lado, os processos econômicos como determinantes da


existência das classes sociais antagonistas e, por outro lado, sob a forma das forças
produtivas e das relações de produção constituindo a infra-estrutura da sociedade, causa
ou substrato da superestrutura ideológica (crenças religiosas, morais, estéticas, etc.).
(Durozoi, 1993, p. 312)
É fato que o capitalismo provê condições de auto-sustentação do estado de
alienação dos sujeitos, instaurando um círculo vicioso de produção que visa à satisfação
e daí provoca o consumo, e que diante da insatisfação gera nova produção visando nova
satisfação, consumo, gerando insatisfação, e assim, sucessivamente.
Entretanto, fundamentalmente, o que se coloca ao lado da satisfação “parcial” da
demanda, e até por isso, é que a satisfação visada é de outra ordem, apontando, mais
propriamente, uma remissão ao sujeito. Um sujeito, enquanto tal, por sua vez, remetido
repetidamente à falta, signo do desejo, enquanto falta-a-ser. Aí está posto o desafio ao
sujeito: o processo de constituição deste sujeito enquanto tal, remetido a uma falta
constituinte, porém, condição de seu desejo.
43

Na França dos anos 40, o pensamento de Sartre se coloca na esteira do


idealismo hegeliano, da fenomenologia de Husserl e Heidegger, e do materialismo
dialético de Marx, problematizando o ser, o desejo e a liberdade.

O ponto de partida da filosofia existencial de Sartre (...) parece ser a “náusea”


(...). Verdadeiro sentimento ontológico, a náusea revela a contingência do ser das coisas
definido como em-si, e o absurdo de sua existência que não poderia ser justificada, uma
vez que meu ser me aparece como um para-si com a consciência e, sobretudo, a
liberdade que o caracteriza fundamentalmente.
Decerto “só existe liberdade em situação” a qual é constituída pelo conjunto das
condições e fatores anteriores ao ato livre, mas é o projeto que está na raiz da liberdade,
na medida em que dá um significado à situação seja para modificá-la num sentido ou
noutro. Por meus projetos, sou igualmente livre em relação a mim mesmo, pois crio
minha natureza e a recoloco em questão por minhas opções renovadas. Enquanto uma
coisa está, em conformidade com uma dada essência, o homem existe (ek-sistere: sair
de), ou seja, escapa, graças à sua liberdade absoluta, às determinações naturais que não
deixariam de congelá-lo em objeto: tal é o sentido do existencialismo sartreano que
exprime essa primazia, no homem, da existência sobre a essência.
No entanto, minha liberdade é todo o tempo ameaçada pela presença do outro
(...) por seu olhar que me rebaixa ao nível das coisas ou me nadifica. O duelo das
consciências que tentam escravizar umas às outras acarreta o fracasso da comunicação
com o outro. A dependência alienante em relação ao outro encontra igualmente sua
expressão na “infernalidade” – “O inferno são os outros” (...).
(...) A moral sartreana baseia-se na liberdade do homem plenamente
responsável e até responsável por toda a humanidade – pois, escolhendo para si, escolhe
para os outros: escolha voluntariamente solitária (tema do abandono) e escolha
engajada, politicamente. (Durozoi, 1993, p.423-424)

Dado o estado de alienação, condição inicial do sujeito em relação ao outro, por


sua vez, conceito elaborado dentro da teoria de Lacan, contemporâneo de Sartre, o
sujeito como em-si se avista como projeto no para-si e, além, remetido ao processo de
sua liberdade, e por isso responsável.

Sartre procurava articular uma determinação não constitutiva da função


transcendental da consciência e a negatividade do desejo. Basta sublinhar aqui sua
afirmação central: “o homem é fundamentalmente desejo de ser e a existência deste
desejo não deve ser estabelecida por uma indução empírica; ela resulta de uma
descrição a priori do ser do para-si, já que o desejo é falta e que o para-si é o ser que é
para si mesmo sua própria falta de ser” (Sartre, O ser e o nada, p.610).
Consequentemente, a manifestação desse desejo, que se confunde com o para-si, é
necessariamente a nadificação do em-si ou, como dizia Kojève, a revelação de um
vazio. Revelação de um vazio que pressupõe também uma dissolução do eu, já que o
papel essencial do eu é o de mascarar à consciência sua própria espontaneidade: “Tudo
se passa”, dirá Sartre, “como se a consciência constituísse o Ego como uma falsa
representação de si mesma, como se ela se deixasse hipnotizar por este Ego que ela
mesma constituiu, como se ela o transformasse em sua salvaguarda e sua lei” (Sartre, La
transcendance de l’ego, p.82). (Safatle, 2006, p.85)
44

O projeto de existência sartriano do ser “em-si-para-si” aponta para,

uma consciência que seria “o fundamento do seu próprio ser-em-si pela pura
consciência que tomaria de si mesma”. Esta é, na concepção de Sartre, a exata definição
de Deus. E daí ele infere: “O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus”. (...) a
existência significa pôr em situação concreta esse desejo que sempre segue, portanto,
caminhos empíricos e atesta sua liberdade inventando os próprios fins. Por isso deve-se
reconhecer que o “o desejo de ser sempre se realiza como desejo de maneira de ser”.
(...) a verdade do Desejo que é também a verdade da liberdade. (...) No entanto, a
filosofia sartreana do desejo ainda continua tributária de uma teoria da consciência
determinada pela preocupação do reconhecimento. Vai caber a Lacan o mérito de haver
integrado a problemática hegeliana a uma teoria do desejo fundada sobre o
inconsciente. (Dumoulié, 2005, p. 130)

O último filósofo a ser aqui abordado, em relação à teoria do desejo, é


Nietzsche.

A filosofia de Nietzsche, reflexão sobre os valores, pretende-se a princípio uma


desmistificação dos ideais tradicionais. Erguendo-se contra a cultura moderna que
ofereceria sintomas de decadência, Nietzsche protesta contra todos os aspectos do que
denomina “niilismo passivo”, cujas raízes estão no socratismo e na corrente judaico-
cristã. Desse modo, ataca a falta de autenticidade dos sentimentos morais e religiosos e
a hipocrisia da “moral ascética” resultante de uma fuga da vida e produto do
ressentimento. (...) (Nos fracos) Tudo conspira (principalmente a organização social
coercitiva) para maltratar os instintos naturais que vão ter de se interiorizar,
transformar-se em crueldade e em rancor reativo incapaz de esquecimento, enquanto os
fortes, ao contrário, podem se dar ao luxo de esquecer.
A crítica do ideal ascético traduz-se igualmente por uma contestação romântica
dos valores racionais que opõe à aventura da vida a segurança do conhecimento.
Apoiando-se no princípio de identidade, a ciência procede de uma falsificação do real
que é de fato vida e criação. Nossa paixão de conhecimento não passa do resultado de
um instinto desviado, que se tornou máquina de guerra contra os poderes da vida.
Estamos, portanto, em plena ilusão (mesmo se por outro lado esta é útil, pois torna
suportável uma existência que, percebida com lucidez, não o seria). Ora, nossa cultura
construiu-se deixando-se apanhar “pela rede da civilização Alexandrina” cujo ideal é o
indivíduo “que coloca seus dons a serviço da ciência”. Sócrates é precisamente seu
símbolo e ancestral, ele que é responsável pela “valorização extraordinária do saber
consciente” –, enquanto a consciência só esclarece os aspectos mais superficiais da
vida, desconhecendo seu sentido profundo. (Durozoi, 1993, p.340-341)

A posição de Nietzsche aponta um trabalho de desconstrução dos conceitos,


privilegiando o esforço em direção à potência.

(...) Com efeito, somos forçados a usar metáforas quando queremos definir o
Ser e pensar o mundo. Prisioneiros da linguagem e do nosso sistema de interpretações,
ou de representações, vemo-nos obrigados a antropomorfizar o mundo, isto é: projetar
sobre ele noções que são próprias de nossa vida e de nossa experiência. O mesmo
acontece com a vontade. (Dumoulié, 2005, p.155)
45

(...) se viver supõe o acréscimo da potência, isto implica que se questione toda
posição dominante, inclusive se isto redundar em detrimento do próprio bem-estar.
Enquanto os fracos e enfermiços idolatram a potência, o poder, os fortes, os verdadeiros
“potentes”, os de verdade poderosos são seres de desejo cuja vontade afirmativa quer
sempre dar outra vez uma chance a possibilidades novas de vida e de interpretações.
(Dumoulié, 2005, p.156)

Nietzsche se situa entre a influência de Schopenhauer e da filosofia de Espinosa,


invertendo a ética do primeiro e resgatando a positividade do desejo da ética do segundo.
Segundo Dumoulié (2005):

(...) Nietzsche postula a existência de dois princípios metafísicos, que são


igualmente duas expressões do desejo e que se acham representados pelas divindades
antagônicas de Apolo e Dionísio. O primeiro representa o domínio dos afetos pela
inteligência, um desejo submetido ao severo controle do superego, que defende a
medida, o princípio de individuação e uma ordem social rigorosa. Graças ao véu
tranqüilizador das aparências e à sedução das belas formas, ele protege da violência dos
afetos e da terrível verdade sobre a qual se assenta a existência. Dionísio, pelo contrário,
encarna a violenta erupção da pulsão e da potência transgressora do desejo. Quebrando
toda forma e opondo-se, no próprio âmago do indivíduo, à integridade do seu ser,
Dionísio é o deus do êxtase e da embriaguez.
Aparentemente, então, Dionísio representa uma sabedoria pessimista e a
dimensão schopenhaueriana de um desejo que aspira ao aniquilamento de si mesmo. No
entanto, desde O nascimento da tragédia afirma Nietzsche a eternidade dos dois
princípios contrários, o dionisíaco e o apolíneo, e o gozo que o próprio Ser experimenta,
assim como o prazer que lhe proporciona a exaltação artística das aparências. E
Nietzsche acaba afirmando que, malgrado o fascínio do desejo dionisíaco pelo nada, o
que leva a melhor (em particular na arte dionisíaca) é tanto a vontade de potência como
a vontade de viver (...). (p.157-158)
(...) Superando o dualismo da sua metafísica de artista, e afirmando a unicidade
da figura de Dionísio, Nietzsche irá fazer deste último um verdadeiro mitema filosófico
próprio para exprimir sua fé em uma transmutação dos valores e uma superação da
metafísica. (...) Contra uma interpretação depressiva, que pretendesse identificar desejo
dionisíaco e desejo de morte, (...) (a paixão de Dionísio, no sentido do sofrimento deste)
significa que a morte é desejada como condição da vida e de um perpétuo renascimento,
que a crueldade e a dor são as condições da existência. E a morte do deus grego ou a
destruição da individualidade, à qual sua paixão convida, longe de serem a expressão de
uma pulsão de morte, exaltam a necessidade de se morrer diversas vezes a si mesmo,
para renascer em uma vontade que afirma a existência. A idéia do super-homem, de
modo todo particular presente em Assim falava Zaratustra, (...) representa uma espécie
de mito regulador que relembra a necessidade de destruir permanentemente o seu
sistema de valores, suas ilusões de poder, a fim de se esforçar, sempre de novo, para
alcançar a potência, isto é, criar, para si e para os outros, novas interpretações e novas
perspectivas. Nietzsche, deste modo, inverteu a ética schopenhaueriana e resgatou a
positividade do desejo da ética de Espinosa. (p.158-159)

A eleição do dionisíaco em sua possibilidade de transmutação de valores no


sentido da vontade de potência, numa vontade que afirma a existência, também aponta
uma inversão ao privilegiar o corpo, restituindo-lhe sua inocência, livrando o desejo do
pecado. O corpo também haverá de ser reinventado, reencontrando-lhe a saúde,
46

restituindo-lhe o primado, na vida, na sexualidade, no pensamento, na escrita. (Cf.


Dumoulié, 2005, p.159) O mesmo corpo tanto tempo negado e mortificado e que
acabou enfermo.

Esta enfermidade de uma humanidade por tantos séculos submetida aos


“desprezadores do corpo”, cujo diagnóstico e cuja evolução ele estabelece em A
genealogia da moral, é uma doença do desejo. Antes mesmo de Freud, que detectou no
fenômeno do recalcamento a origem das neuroses, Nietzsche mostrou que o
recalcamento dos afetos, e em primeiríssimo lugar da “vontade de potência”, estava na
origem da má consciência e havia produzido essa neurose generalizada que se chama
civilização.
(...) Sem dúvida, graças a essa interiorização o homem começou a se
“espiritualizar” e a tornar-se um animal interessante. Mas a conseqüência dessa
interiorização dos instintos foi o enfraquecimento da humanidade, a generalização do
ressentimento, a vitória dos fracos e dos impotentes, a dominação dos ideais ascéticos.
A moral e a religião se alimentaram dessa interiorização e se tornaram amplos sistemas
de crueldade. Mas também orientaram e levaram ao extremo essa “interiorização”, a
ponto de lançar a suspeita sobre tudo aquilo que faz a força e a alegria da existência: a
sensualidade, a sexualidade, o prazer, a vontade e o egoísmo dos fortes, e finalmente o
próprio desejo. (Dumoulié, 2005, p.160-161)

Em A genealogia da moral, Nietzsche dirá que o “o homem prefere querer o


nada a não querer...”. Entende por isto uma aniquilação do desejo ao mesmo tempo em
que se afirmaria a potência intacta do conatus.

Deste modo, tudo ainda é possível e, em particular, uma transmutação dos


valores, a invenção de um novo grande desejo. O super-homem, a fé no corpo, a criação
de perspectivas novas e afirmadoras da existência podem ser, paradoxalmente, a
conclusão dessa crônica enfermidade do desejo que foi o niilismo. (Dumoulié, 2005,
p.161)
47

CAPÍTULO II

O DESEJO EM FREUD

O verbete Desejo, no Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis, traz o


que segue relativamente ao termo na epistemologia freudiana, a saber:

Desejo – D.: Wunsch (às vezes Begierde ou Lust). – F.: désir ou souhait. – En.:
wish. – Es.: deseo. – I.: desiderio.
Na concepção dinâmica freudiana, um dos pólos do conflito defensivo. O desejo
inconsciente tende a realizar-se restabelecendo, segundo as leis do processo primário, os
sinais ligados às primeiras vivências de satisfação. A psicanálise mostrou, no modelo do
sonho, como o desejo se encontra nos sintomas sob a forma de compromisso.
A definição mais elaborada refere-se à vivência de satisfação (...) após a qual
“(...) a imagem mnésica de uma certa percepção se conserva associada ao traço mnésico
da excitação resultante da necessidade. Logo que esta necessidade aparecer de novo,
produzir-se-á, graças à ligação que foi estabelecida, uma moção psíquica que procurará
reinvestir a imagem mnésica desta percepção e mesmo invocar esta percepção, isto é,
restabelecer a situação da primeira satisfação: a essa moção é que chamaremos desejo; o
reaparecimento da percepção é a ‘realização de desejo” (Freud, A Interpretação de
Sonhos, p.594-595).” (Laplanche, 1997, p.113-114)

Dessa definição depreende-se que o processo do desejo parece apontar um


trabalho de sujeito, pois, algo – a imagem mnésica de uma certa percepção – se fixa
como uma marca, um traço mnésico, de uma primeira vivência de satisfação, no sentido
freudiano do termo, como forma de suprimir a tensão resultante do afluxo das
excitações endógenas. Essa primeira vivência passa a ser, então, desde este primeiro
momento, ligada à imagem do objeto que proporcionou a satisfação. Mas, além disso,
dada a precocidade dessa experiência originária, a percepção de que se trata não
remeteria a uma alucinação primitiva? “(...) O desejo tem efetivamente a sua origem
numa procura da satisfação real, mas constitui-se segundo o modelo da alucinação
primitiva.” (Laplanche, 1997, p.531)
Além disso, pode-se também pensar, a partir do aporte freudiano destacado no
verbete acima, que se algo da qualidade e da quantidade (energética, pulsional) de uma
primeira vivência de satisfação se marca, isso se dá a partir da inscrição de um Outro
primordial, cuidador, no sentido lacaniano do termo, e da própria marca deste, o que
provoca a emergência do “sujeito”, propriamente dito, em termos de sua constituição,
na e a partir dessa inscrição do Outro, arrebatando-o de um estado auto-referente, do
48

auto-erotismo (aliás, a via do desejo, para Lacan, aponta o sujeito remetido a uma
demanda de amor em relação ao Outro).
Desse modo, a satisfação primeva remeteria a algo inalcançável, inapreensível,
tanto em termos de sua representação, dada a precocidade da situação, bem como do
aparelho mnêmico – que se constitui justamente a partir dessa marca de satisfação –,
quanto pelo fato de algo do Outro e impossível de ser apreendido pelo sujeito aqui se
inscrever, fisgando o sujeito ao mesmo tempo numa linhagem significante de filiação,
história familiar, num percurso de demandas e desejos, mas, simultaneamente,
arrebatado por uma falta primordial, significante, agora, concernente ao ser do sujeito,
sua verdade, seu desejo, seu traço. Daí entender-se também, a constituição do desejo
segundo o modelo da alucinação primitiva.

Esta lógica do desejo, que associa inconsciente a repetição, é operante quando


movimenta a estrutura e expressa a linguagem do desejo, linguagem por sua vez
também Unheimliche, porque nos confronta com o princípio de alteridade na
constituição da subjetividade, permitindo que postulemos, como o faz Lacan, que o
“inconsciente é o discurso do Outro”. (França, 1997, p.114)

Assim, no sentido da presente argumentação, de que objeto se trata na vivência


primeva de satisfação, se isso remete a uma percepção e, ainda, ligada a um sistema
pulsional? O objeto do desejo distinto do objeto da necessidade? Finalmente, o próprio
movimento de reinvocação da percepção, ou seja, da experiência do desejo, ressoa ecos
de uma primeira (in)satisfação, por um lado, bem como, de um objeto perdido enquanto
tal, por outro.
Na tentativa de responder a essas questões e no sentido de compreender a
concepção freudiana de desejo, propõe-se, agora, uma remissão ao texto de Freud.
Inicialmente, chama-se a atenção para a natureza da empreitada freudiana, uma
vez que não há propriamente uma formulação da teoria do desejo, enquanto tal, na obra
freudiana, “o termo desejo, ou Wunsch em alemão, não se impôs de imediato à pena de
Freud, impôs-se pouco a pouco na história de seu pensamento referente à sexualidade
(...).”3, embora se possa pensar a obra freudiana como a produção do desejo de um
analista, via da ética na psicanálise. Mais, como a realização de um desejo, de um voto,
de um Wunsch, a exemplo do que a velha camponesa profetizara à mãe de Freud,
quanto ao destino de “grande homem” reservado a Freud.

3
Kaufmann, 1996, p.114-115.
49

Neste sentido, observa Cesarotto, o que segue:

Entretanto, mesmo que o seu desejo possa ter sido causa da psicanálise, a causa
psicanalítica não se confunde com ele. E a causa freudiana, menos ainda:
profundamente perdida, não opera senão em falta constante, suscitando um
movimento contínuo, em detrimento de eventuais identificações imaginárias aos
desígnios de algum ideal de saber suposto.
No limite, cada analista é responsável pela própria autorização, que de
ninguém mais depende, a não ser dele e do seu desejo. Único capitão no barco
além de Deus, na direção da práxis? Pode crer, sempre e quando seja lembrado
que até o Dito Cujo é inconsciente... (Silva, 1994, p.13)

O percurso freudiano de construção da psicanálise é algo que se marca,


notadamente, pela falta, daí as sucessivas formulações e reformulações da teoria,
calcado no “saber” inconsciente, distinto do “saber médico” que remete ao discurso do
mestre. Mas, esse percurso se marca, sobretudo, por se fundamentar na clínica
psicanalítica, tal é a via revolucionária proposta por Freud. E, uma clínica que demarca
o próprio Freud para além do analista que se torna, como o primeiro analisando. (Cf.
Silva, 1994, p.39-46)
Há, portanto, um entrecruzamento de matizes ao abordar a questão do desejo, em
Freud, em sua via ética, que assinalam a importância do inconsciente, sujeito, desejo e
ato. Segundo Lacan (1998),
O estatuto do inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no plano ôntico, é ético.
Freud, em sua sede de verdade diz – O que quer que seja, é preciso chegar lá – porque,
em alguma parte, esse inconsciente se mostra. (p. 37)
(...) Será a Psicanálise, de uma vez por todas, uma ciência?
(...) Face à sua certeza, há o sujeito, de quem lhes disse há pouco que está aí
esperando desde Descartes. Ouso enunciar, como uma verdade, que o campo freudiano
não seria possível senão certo tempo depois da emergência do sujeito cartesiano, por
isso que a ciência moderna só começa depois que Descartes deu seu passo inaugural.
É desse passo que depende que se pudesse chamar o sujeito de volta para casa,
no inconsciente – pois de qualquer modo, importa mesmo saber quem a gente chama.
(...) É o sujeito que é chamado, não há outro, portanto, senão ele, que possa ser
escolhido. Há talvez, como na parábola, muitos chamados e poucos escolhidos, mas não
haverá certamente outros além dos que são chamados.
É preciso, para compreender os conselhos freudianos, a partir desse fundamento
de que é o sujeito que é chamado – o sujeito da origem cartesiana. Este fundamento dá
função verdadeira ao que chamamos, em análise, rememoração. A rememoração não é a
reminiscência platônica, não é o retorno de uma forma, de uma impressão, de um eidos
de beleza e de bem que nos vem do além, dum verdadeiro supremo É algo que nos vem
das necessidades de estrutura, de algo humilde, nascido no nível dos mais baixos
encontros e de toda a turba falante que nos precede, da estrutura do significante, das
línguas faladas de modo balbuciante, tropeçante, mas que não podem escapar a
constrangimentos cujos ecos, cujo modelo, cujo estilo, são curiosamente de serem
encontrados, em nossos dias, nas matemáticas.
Vocês viram como a noção de entrecruzamento, a função do retorno,
Wiederkehr, é essencial. Não é apenas o Wiederkehr no sentido do que foi recalcado – a
50

constituição mesma do campo do inconsciente se garante pelo Wiederkehr. É aí que


Freud garante sua certeza. Mas é bem evidente que não é daí que ela lhe vem. Ela lhe
vem de que ele reconhece a lei do seu desejo, dele Freud. Ele não teria podido ir avante
com essa aposta de certeza se não tivesse sido guiado, como os textos nos atestam, por
sua auto-análise.
E o que é sua auto-análise – senão o mapeamento genial da lei do desejo
suspensa ao Nome-do-Pai? Freud avança sustentado por certa relação a seu desejo e
pelo que é seu ato, isto é, constituição da psicanálise. (S XI, p.49-50)

No decurso do presente trabalho, ao pensar na questão do desejo e como


aparece em Freud, depara-se com uma formulação inicial, proposta no Projeto
para uma psicologia científica (1950[1895]), e que se refere aos “estados de
desejo”.
Em primeiro lugar, deve-se notar que,

(...) os neurônios aos quais ele [Freud] se refere como constituindo a base
material do aparelho psíquico não correspondem às descobertas da histologia e da
neurologia do século XIX4. O Projeto não é, portanto, uma tentativa de explicação do
funcionamento do aparelho psíquico em bases anatômicas, mas, ao contrário, implica
uma recusa da anatomia e da neurologia da época, e a conseqüente elaboração de uma
“metapsicologia”. (Garcia-Roza, 2001, p.81)

Em segundo lugar, no texto do Projeto, os “estados de desejo”, juntamente com


os afetos, são entendidos como resíduos de dois tipos de experiências, quais sejam, de
satisfação e dor, na forma como Freud compreende o funcionamento do sistema
nervoso enquanto um sistema composto de: neurônios permeáveis (φ), condutores, mas,
não retentores de Qη, servindo à percepção; neurônios impermeáveis (ψ), retentores de
Qη, servindo à memória; e neurônios perceptuais (ω). Além disso, o sistema
compreende termos de excitação, estímulos (endógenos, etc.), catexias, descargas
neuronais, etc. “A quantidade (Q) é a energia que circula pelos neurônios, capaz de
deslocamento e descarga” (Cf. Garcia-Roza, 2001, p.81)

Segundo Freud, os mesmos neurônios não podem servir à memória e à


percepção. Isto porque, para que o processo perceptivo possa se dar na fluidez que lhe é
própria, é necessário que ele encontre sempre uma estrutura que permaneça inalterada a
cada nova percepção. (Garcia-Roza, 2001, p.95)

Além disso, os estados de desejo resultam numa atração para o objeto, objeto
este entendido como percepção, lembrança, imagem mnêmica, idéia, representação,
alucinação, objeto real, idéia imaginária, a coisa, etc.

4
Inovadoras na época de sua formulação, só muito recentemente as teses freudianas acerca do
funcionamento neuronal puderam ser “cientificamente” comprovadas.
51

Os resíduos dos dois tipos de experiências [de dor e de satisfação] (...) são os
afetos e os estados de desejo. Estes têm em comum o fato de que ambos envolvem um
aumento de tensão Qη em ψ – produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita e,
no de um desejo, por soma. Ambos os estados são da maior importância para a
passagem [da quantidade] em ψ, pois deixam atrás dele motivações para isso, que se
constituem no tipo compulsivo. O estado do desejo resulta numa atração positiva para o
objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor
leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a
atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária. (Freud, 1996, v.I, p.374)

Tanto a “atração do desejo” primária como a “defesa” primária aí compreendem


modelos de resposta de caráter compulsivo, pensando no sistema fundamentalmente
como um sistema de memória, sofrendo estímulos externos e, excitações endógenas
(pulsão), cuja função é a descarga da excitação tendendo a manter um quantum de
energia o mais baixo possível (de acordo com o princípio da inércia e a lei da constância
inspirado no princípio da estabilidade de Fechner), de forma a se proteger de qualquer
aumento energético identificado com o desprazer.

A idéia de regulação da intensidade e a proposta de mantê-la constante é o que


leva Freud a enunciar o princípio de constância do aparelho psíquico, princípio
implícito em seus escritos desde a época com Breuer, porém só explicitado em 1920, no
trabalho Além do Princípio do Prazer.
Então, no Projeto, a lei da constância seria uma tendência a manter a
intensidade energética acumulada no nível mais baixo possível, para o aparelho
psíquico se proteger contra qualquer aumento, identificado com o desprazer.
Porém, vale ressaltar que a busca do equilíbrio e a regulagem do aparelho
psíquico através do prazer não incluem a possibilidade de distinguir o objeto real do
objeto alucinado. Freud, no Projeto, apresenta um índice corretivo que vai conferir
eficiência ao aparelho, fornecendo uma indicação de realidade. Esse princípio de
realidade, de acordo com Garcia-Roza, “não diz respeito ao mundo exterior enquanto
tal, mas aos signos que o indicam” (Realitätzeichen), ou seja, estes signos estão
submetidos à função estruturante da linguagem. Ocorre, assim, uma inibição que é
função de um grupo de neurônios, constantemente investido, que Freud define como
uma organização chamada “eu” (Ich). Desse modo, o eu inibe a descarga da energia
psíquica quando da ausência do objeto, criando a possibilidade de distinguir entre
imagem-percepção e imagem-lembrança. (França, 1997, p.6)

Além disso,

(...) a idéia do investimento (Besetzung) no Projeto e sua relação com a


facilitação ou trilhamento (Bahnung) implicam uma “estratégia de ocupação” de um
grupo de neurônios por uma quantidade de energia, através das barreiras de contato
(Kontaktschranke), que caracterizam a permeabilidade e impermeabilidade dos
neurônios. A impermeabilidade aponta a retenção da energia psíquica, o que conduz o
aparelho a ter capacidade de se constituir em um aparelho de memória. Por outro lado, a
permeabilidade serve à idéia de que o processo perceptivo tem que ser diferente do
processo de memória. Ou seja, no processo perceptivo as barreiras de contato
permanecem inalteradas, e poderíamos inferir que nada é “barrado” de forma
permanente com a passagem de energia.
52

Para Freud, o fato do sistema psi estar em conexão direta com os estímulos
endógenos faz com que a excitação (Reiz) funcione como orça constante (konstante
Kraft), o que leva a uma exigência de trabalho feita ao sistema psi em função do
aumento do fator intensivo.
A noção de Bahnung, trilhamento, surge em função da concepção freudiana do
sistema psi enquanto um aparelho de memória. Portanto, a memória é constituída por
trilhamentos existentes entre os neurônios. (...) A idéia subjacente é a de que, se
constituirmos trilhamentos preferenciais que facilitam a passagem da intensidade
energética, temos a constituição de circuitos diferenciados e, portanto, a constituição de
uma memória de diferenças a partir dos trilhamentos, o que conduz a uma outra
concepção freudiana: a preferência de caminho, ou ainda, a preferência pela repetição.
(...) Freud afirma, no Projeto, que a memória se faz pela diferença entre os
trilhamentos (Bahnungen). (França, 1997, p.7)

Finalmente,

É na “Carta 52” que Freud apresenta a diferença entre trilhamentos como


responsável pela sua tese da memória e da própria constituição do aparelho psíquico. Os
traços que formam a materialidade da memória estariam sempre sujeitos a novos
arranjos, “a uma tendência o ajustamento quantitativo” (p.319). Isto quer dizer que, para
Freud, a memória é pensada em termos de diferenças nos trilhamentos existentes entre
neurônios psi, e que sobre este campo de diferenças incide um processo excitatório que
exige arranjos. É esta ênfase na memória enquanto diferença e enquanto constitutiva do
psiquismo que Lacan vai, posteriormente, valorizar na noção de Bahnung como uma
trama de trilhamentos, uma rede de significantes.
De acordo com Garcia-Roza, isto faz de Freud um pensador da lógica da
diferença desde sua época do Projeto, pois se toda memória é memória de traços, os
traços são pensados como diferenças nos trilhamentos.
Assim, o sistema de traços é uma memória que se constitui diferencialmente
(diferença entre os trilhamentos) pelo fato de as “trilhas” não serem “trilhadas”
igualmente, o que explica a idéia e preferência pela repetição de caminho, a qual, aliada
ao conceito de Besetzung, torna-se a condição de possibilidade para a memória. Ou seja,
Bahnung e Besetzung são noções freudianas absolutamente implicadas uma com a
outra, assim como o são qualidade e quantidade. Além disso, (...) a idéia de
transformação de quantidade em qualidade está no cerne da própria constituição do
modelo freudiano de aparelho psíquico. (França, 1997, p.8)

A partir disso, no aparelho, os processos psíquicos se dividem em primários (a


exemplo dos sonhos), em que a energia segue seu livre trajeto pelo aparelho, sendo que
“o investimento-desejo conduz à alucinação e ao desprazer resultante”; e secundários,
enquanto processos mediados pela função reguladora do eu, inibindo os primários.
Ambos os processos psíquicos internos ao sistema ψ e, portanto, inconscientes.
(Cf.Garcia-Roza, 2001, p.155-156)
Freud aponta o que segue:

(...) como resultado da experiência da satisfação, há uma facilitação entre duas


imagens mnêmicas e os neurônios nucleares que ficam catexizados em estado de
urgência. Junto com a descarga de satisfação, não resta dúvida de que a Qη se esvai
também das imagens mnêmicas. Ora, com o reaparecimento do estado de urgência ou
53

de desejo, a catexia também passa para as duas lembranças, reativando-as. É provável


que a imagem mnêmica do objeto será a primeira a ser afetada pela ativação do desejo.
Não tenho dúvida de que na primeira instância essa ativação do desejo produz
algo idêntico a uma percepção – a saber, uma alucinação. Quando uma ação reflexa é
introduzida em seguida a esta, a conseqüência inevitável é o desapontamento. (Freud,
1996, v.I, p.371-372)

E, mais adiante, Freud destaca também o que segue:

(...) O objetivo e o sentido dos sonhos (dos normais, pelo menos) podem ser
estabelecidos com certeza. Eles [os sonhos] são realizações de desejos – isto é,
processos primários que acompanham as experiências de satisfação; e só não são
reconhecidos como tal porque a liberação de prazer (a reprodução de traços das
descargas de prazer (...) neles é escassa, pois, em geral, eles seguem seu curso sem afeto
(sem liberação motora). É muito fácil, porém, demonstrar que esta é sua verdadeira
natureza. É justamente por essa razão que me sinto inclinado a deduzir que a catexia de
desejo primária também foi de caráter alucinatório (...). (Freud, 1996, v.I, p.392-393)

Assim, no Projeto já se encontra a formulação freudiana dos sonhos enquanto


realização de desejos. O que remete à natureza desses desejos, enquanto desejos
inconscientes. Além disso, Freud aponta a natureza alucinatória da catexia de desejo
primária, portanto, uma primeira experiência de satisfação de desejo e de caráter
alucinatório, portanto, sem objeto.
Acrescente-se a isso que, “(...) os mecanismos patológicos revelados nas
psiconeuroses pela análise mais cuidadosa guardam uma grande semelhança com os
processos oníricos” (Freud, 1996, v.I, p.388).
De forma que os sonhos remetem ao protótipo de um modelo de ação pulsional
seguido por outras formações do inconsciente. Freud apontará, mais adiante no texto da
Interpretação dos Sonhos, o que segue:
“(...) poderemos dizer sobre os sonhos: eles provaram que o suprimido
[recalcado] continua a existir tanto nas pessoas normais quanto nas anormais e
permanece capaz de funcionamento psíquico. Os próprios sonhos figuram entre as
manifestações desse material suprimido (...). (Freud, 1996, v.V, p.633)
Desse modo, “a interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das
atividades da vida anímica”. (Freud, 1996, v.V, p.634)
Em relação ao sistema percepção-consciência e a memória, França (1997)
destaca o que segue:

(...) a diferença entre o sistema de memória e o de percepção, quanto à


permanência dos traços, é devida ao fato de Freud colocar a memória como capaz de
reter energia através dos “neurônios impermeáveis” e a percepção como permeável sem
capacidade de armazenar energia. Neste sentido, Freud nos permite a leitura sobre a
importância na sua teoria, desde esta época, do caráter de plasticidade ou de mobilidade
da tal energia.
54

Esta plasticidade, aliada à idéia contida na “Carta 52” a Fliess sobre a alteração
na ordem psíquica a partir de perturbações na inscrição, e que levam à possibilidade de
remanejamentos na estrutura, apresenta o esboço de um aparelho onde se opera uma
série de substituições (um significante por outro, como dirá Lacan mais tarde), ou seja,
o processo da metáfora, que será um dos mecanismos dos sonhos a ser apresentado por
Freud em 1900. O que vale aqui ressaltar, no que diz respeito aos sistemas construídos
por Freud no Projeto e na Interpretação dos Sonhos, é que os sistemas que asseguram a
inscrição dos traços de memória sob a forma de trama de trilhamentos estariam
ameaçados pelo excesso de excitação, caso não houvesse um sistema de regulação
através de barreiras, desvios e descargas de excitações. (p.9-10)

A importância do aparelho de memória a partir da inscrição dos traços e, em


particular, de um traço de memória remetendo a Das Ding, em Freud, é apontada a
seguir:
Fica clara também, no pensamento freudiano desta época, a idéia de
impressões que o aparelho não é capaz de assumir plenamente, ou seja, de organizar as
intensidades, o que faz com que o sistema, a partir da função de defesa, se volte contra o
desejo, inibindo as excitações. Vale ainda ressaltar que é justamente a noção de um
traço de memória deixado por uma experiência intensa e primordial que introduz, no
Projeto, o conceito de um “neurônio perdido”, preso a Das Ding no complexo de
Nebenmensch e que será designado como primeiro objeto que assegura a “potência de
satisfazer” (vivência de satisfação). Quer dizer, desde o Projeto lemos em Freud a
fundamental importância da articulação da função simbólica com o “desde sempre
perdido”, que é potência asseguradora de satisfação e “prazer de repetição”. (França,
1997, p.10)

Destaca-se, então, no texto do Projeto uma das duas únicas referências de Freud
ao termo a coisa (a outra aparição remete ao texto da Denegação), e que segue:
Suponhamos que, em termos bastante gerais, a catexia de desejo se relaciona
com o neurônio a + o neurônio b, e a catexia perceptiva, com os neurônios a + c. (...)
Comparando o complexo perceptual com outros complexos congêneres, pode-se
decompô-lo em dois componentes: o primeiro, que geralmente se mantém constante, é o
neurônio a, e o segundo, habitualmente variável, é o neurônio b. A linguagem aplicará
mais tarde o termo juízo a essa análise e descobrirá a semelhança que de fato existe [por
um lado] entre o núcleo do ego e o componente perceptual constante e [por outro] entre
as catexias cambiantes no pallium (...) e a componente inconstante: esta [a linguagem]
chamará o neurônio a de a coisa, e o neurônio b, de sua atividade ou atributo – em
suma, de seu predicado (...). (Freud, 1996, v.I, p.380)

O exemplo a que Freud recorre no texto para ilustrar esse processo é o seguinte:

(...) Suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada [pela
criança] seja a do seio materno com o mamilo, vistos de frente, e que a primeira
percepção obtida seja uma visão lateral do mesmo objeto, sem o mamilo. Na memória
da criança há uma experiência, casualmente adquirida no ato de mamar, segundo a qual
a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento da cabeça. A
imagem lateral agora percebida conduz [à imagem do] movimento da cabeça; um teste
experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para se
obter a percepção da imagem frontal. (Freud, 1996, v.I, p.381)
55

Ainda em relação ao exemplo proposto é interessante destacar o que segue em


nossa articulação com o desejo,

Se, no exemplo do seio que é visto lateralmente mas lembrado frontalmente, a


for o seio, os caminhos percorridos não deixam possibilidade para decompor o
complexo a + b, tampouco a + c. Assim, b e c são os representantes de um a que
sozinho não existe, o seio. Afinal, o que é o seio, se o que se vê é o-seio-de-lado e o que
se lembra é o-seio-de-frente? “O que chamamos de coisas são resíduos que fogem
de serem julgados”.
Lacan nos adverte que a Coisa não é o que está em jogo quando se fala
em “representação de coisas” e “representação de palavras”. Nesse par, o termo
“coisa” é o equivalente ao alemão sache (Sachvorstellung). Freud não fala em
Dingvorstellung, e ele certamente não usava uma ou outra palavra
aleatoriamente.
(...) Na apreensão da realidade, o complexo do objeto se divide em a + b,
frente a um a + c percebido. Ora, quando dissemos que b e c são os
representantes de a, o grifo é um indicativo irônico, porque seria melhor
dizermos que eles tentam representar a, pois as badnungen
(facilitações/trilhamentos) vão de b para c, ou para um d ou e, isto é, elas nunca
tocam a. Por isso Lacan pode afirmar que a Coisa está mesmo fora do aparelho,
pois que não entra no circuito dos trilhamentos, regulado pelo jogo do
prazer/desprazer (diríamos até prazer/realidade). (Brasiliense, 1999, p.43-44)

Nesse sentido, destacamos um trecho de Lacan e que segue tanto na


compreensão do texto freudiano como na decifração do enigma da coisa, enquanto tal,
distinta do objeto da necessidade, e referida ao desejo:

O Ding é o elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua


experiência do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho, Fremde. O
complexo do objeto é dividido em duas partes (...) Tudo aquilo que é qualidade do
objeto, que pode ser formulado como atributo, entra no investimento do sistema ψ e
constitui as Vorstellungen primitivas em torno das quais estará em jogo o destino do
que é regulado segundo as leis do Lust e do Unlust, do prazer e do desprazer, naquilo
que se pode chamar de as entradas primitivas do sujeito. Das Ding é absolutamente
outra coisa.
Esta é uma divisão original da experiência da realidade. Reencontramos isso na
Verneinung. (...) vocês reencontrarão, com a mesma importância, a mesma função
daquilo que, do interior do sujeito, encontra-se originalmente levado para um primeiro
exterior – um exterior, diz-nos Freud, que nada tem a ver com essa realidade na qual o
sujeito terá, em seguida, de discernir as Qualitätszeichen, que lhe indicam que ele está
no rumo certo para a busca de sua satisfação.
Isso é algo que, antes da prova dessa busca, estabelece seu termo, sua meta e
sua visada. É isso que Freud designa para nós quando nos diz que o objetivo primeiro e
imediato da prova da realidade não é a de encontrar na percepção real um objeto que
corresponda ao representado, mas reencontrá-lo, convencer-se de que ele ainda está
presente. (Lacan, 1997, S VII, p.68-69)
56

O que Lacan destaca é que a busca da satisfação remete a um Outro que não o
objeto da necessidade regulador do prazer(Lust)/desprazer(Unlust). Remetido ao objeto,
centro de referência da experiência de satisfação, o sujeito aponta para uma
exterioridade enquanto centro do seu ser. Daí Lacan falar em “extimidade” – uma
exterioridade íntima. Uma exterioridade que, a partir da Coisa, marca uma distinção
entre o real e a realidade, entre o desejo e a necessidade, sinalizando um movimento de
sujeito.
Algo que nunca foi e nunca esteve presente, está para sempre perdido, e ao
mesmo tempo é a referência da busca de satisfação que o sujeito procura, sem encontrar.
Verdadeira experiência de insatisfação, núcleo do seu desejo. Este é o objeto de que se
trata quando se refere à coisa.

O Ding como Fremde, estranho e podendo mesmo ser hostil num dado
momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o
encaminhamento do sujeito. É sem dúvida alguma um encaminhamento de controle, de
referência, em relação a quê? – ao mundo de seus desejos. Ele faz a prova de que
alguma coisa, afinal, (...) pode servir. Servir a quê? – a nada mais do que a referenciar,
em relação a esse mundo de anseios e de espera orientado ao que servirá, quando for o
caso, para atingir das Ding.
(...) é claro que o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É por sua
natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma coisa
está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando.
O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto,
das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas
coordenadas de prazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada,
em nome do princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais nem
percepção nem esforço.
No final das contas, sem algo que o alucine enquanto sistema de referência,
nenhum modo da percepção chega a ordenar-se de maneira válida, a constituir-se de
maneira humana. O mundo da percepção nos é dado por Freud como que dependendo
dessa alucinação fundamental sem a qual não haveria nenhuma atenção disponível.
(Lacan, 1997, S VII, p.69)

A experiência de busca de satisfação remete o sujeito a uma “experiência”


primeva, prototípica, de referência, como diz Lacan, ao mundo dos seus desejos.
Um centro de referência, por sua vez, exterior, vazio, cujo objeto é perdido, e
que organiza todo o esquema perceptivo possível a cada sujeito em torno dessa primeira
alucinação fundamental.
Finalmente, Garcia-Roza (2002) traz algumas considerações sobre o “aparelho
psíquico” proposto por Freud e que dão conta da importância do Outro na constituição
do sujeito e, mais especificamente, do desejo do sujeito, quais sejam:
57

O aparelho psíquico não é psíquico. (...) No começo de sua produção teórica,


Freud concebe o aparato psíquico primeiro como um aparelho de linguagem – 1891
(Sobre as afasias), em seguida, como um aparelho neuronal – 1895 (Projeto para uma
psicologia científica), na Carta 52 (1896) como aparelho de memória e, finalmente, na
Interpretação de Sonhos (1899 [1900]) como aparelho psíquico. O que temos em cada
um desses textos são, a meu ver, diferentes ênfases sobre o aparelho psíquico, sendo
surpreendente que desde o primeiro modelo ele já conceba este aparelho como um
aparelho de linguagem, ou, se se pretender um rigor maior com relação à letra do texto,
poderemos dizer que foi a partir de um modelo de aparelho de linguagem que Freud
elaborou seu modelo de aparelho psíquico.
O essencial a ser destacado é essa determinação pela linguagem. Freud não
concebe o aparelho de linguagem como constituído na relação com o mundo, mas como
construído na relação com um outro aparelho de linguagem.
É portanto na relação ao outro enquanto falante que o aparelho de linguagem se
forma, e não na relação ao outro enquanto objeto do mundo. E Freud é ainda mais
radical quanto a este ponto: mesmo o outro, enquanto objeto do mundo, só se constitui
como objeto a partir da linguagem. (...) Sem essa articulação representação-coisa e
representação-palavra não apenas não há aparelho de linguagem, como não há aparelho
psíquico.
(...) A representação-objeto (Objektvorstellung) não é a representação de um
objeto externo existente no mundo, não é a coisa (Ding) do mundo que fornece à
representação-objeto sua unidade e seu conceito (cadeira, mesa, pessoa, etc.); o que a
coisa externa fornece são “associações de objeto”, isto é, imagens elementares visuais,
acústicas, táteis etc., que, a partir da relação com as representações-palavra, vão formar
o objeto.
A representação-objeto não é, portanto, uma representação icônica da coisa, não
é semelhante à coisa, mas apenas índice da coisa. Seu significado é dado pela
representação-palavra e não pela coisa. Isto quer dizer que as Vorstellungen, as
representações, sejam elas representação-palavra ou representação-objeto, remetem-se
umas às outras de tal maneira que formam entre si uma trama ou uma rede de
articulações, de signos – signos que na sua função significante remetem a signos e não a
coisas. E isto, bem antes de Saussure, e muito antes de Lacan.
É impossível, portanto, imaginarmos o aparelho psíquico como algo que se
esgota em si mesmo. Não se trata de um aparelho já pronto que, em seguida, entra em
relação com o outro e com o mundo. O aparelho psíquico não é em-si, é para-outro, e é
nessa relação ao outro que se constitui a consciência-de-si. (Garcia-Roza, 2002, p.40-
43)

Nesse sentido, o que estaria implícito, já em Freud, é que o sujeito se constitui


enquanto tal, consciência-de-si, sempre em relação ao Outro da linguagem. Portanto, se
constrói, na e pela linguagem, num processo estruturante enquanto consciência-de-si e
ao mesmo tempo, pode-se dizer, numa alienação fundamental ao Outro primordial.
Alienado, primordialmente, aos significantes e ao desejo deste Outro.

Ressonâncias hegelianas? Talvez. (...) A verdade, porém, é que sua (de Freud)
concepção do aparato psíquico encaixa-se perfeitamente com a tese fundamental de
Hegel de que o desejo do homem é o desejo do outro, ou, se preferirmos, que o desejo
humano é desejo de desejo.
Essa dependência fundamental do aparato psíquico para com a linguagem
coloca outra questão: a do próprio estatuto do aparelho psíquico.
(...) O aparelho psíquico não é psíquico, isto é, aquilo que faz com que esse
aparelho seja um aparelho não é da ordem do psicológico, mas da ordem da linguagem.
58

Portanto, o aparelho psíquico é um aparelho simbólico e não um aparelho psicológico.


(Garcia-Roza, 2002, p.43)

O aparelho psíquico é simbólico e não psicológico e isto coloca o sujeito em


relação, desde o início, com o Outro: “tesouro dos significantes” e, portador da
linguagem. Assim, o sujeito só pode se constituir enquanto consciência-de-si porque há
um Outro que lhe é referência, de modo que, remetendo-o a uma exterioridade afirma-
lhe a sua mais íntima essência, inclusive como ser de linguagem.

Desde o texto sobre as afasias, Freud vem elaborando um modelo de aparelho


psíquico concebido como um aparelho de memória e de linguagem. Entenda-se bem:
não se trata de um aparelho cujas faculdades principais sejam a memória e a linguagem,
mas de um aparelho que se constitui enquanto aparelho de memória e de linguagem.
Não há anterioridade do aparelho em relação à memória e à linguagem, isto é, (...) é na
medida em que se constitui uma memória, que se opera uma diferenciação na trama dos
neurônios, distinguindo um sistema ψ de um sistema φ. E aquilo sobre o qual ou com o
qual essa memória opera são sistemas de traços (no caso do Projeto e da Carta 52) ou o
que em A interpretação do sonho é concebido como texto psíquico; portanto, memória
de escritura.
(...) Afirmar que o aparelho psíquico concebido por Freud é um aparelho
simbólico significa afirmar que o simbólico é o que funda esse aparelho e não o que
resulta do funcionamento do aparelho; significa também que não é o estatuto
psicológico das representações o que faz desse aparelho um aparelho, mas sim sua
natureza simbólica. Uma Vorstellung, muito mais do que uma entidade psicológica, é
uma entidade simbólica, ou, se preferirmos, o psicológico em Freud é simbólico.
(Garcia-Roza, 2002, p.155-156)

Ainda a respeito da memória e da importância que Freud lhe confere, destaca


Garcia-Roza (2002) o que segue:

Tenho procurado, até aqui, salientar a importância concedida por Freud à


memória. Desde a afirmação contida na Comunicação preliminar, segundo a qual “o
histérico padece principalmente de reminiscências”, passando pela declaração no início
do Projeto de que toda teoria psicológica que se pretenda digna de consideração tem
que fornecer uma explicação para a memória, até a Carta 52 onde ele afirma que o
reordenamento de traços mnêmicos responde pela própria formação do aparelho
psíquico, Freud nada mais faz do que assinalar o lugar central que a memória ocupa em
sua construção teórica. (p.44)
(...) Freud, mais ainda do que Bergson, faz da memória o ponto em torno do
qual gravitam suas primeiras considerações teóricas e clínicas. (...) No que se refere à
clínica da histeria, a frase “o histérico padece principalmente de reminiscências”
fornece a medida da importância concedida à memória; não é a experiência vivida pela
criança que é considerada traumática, mas a sua lembrança. São as representações
reinvestidas num aprés coup que vão produzir um efeito traumático e não o
acontecimento na sua forma original. (p.50)

Seguindo na proposta de decifrar o tema do desejo na perspectiva freudiana


remete-se, então, para a análise do texto prínceps de Freud, qual seja, A Interpretação
59

dos Sonhos (1900) – Die Traumdeutung, particularmente, em seu cap. VII – A


Psicologia Dos Processos Oníricos – e, fundamentalmente, sob o recorte do desejo.
Inicialmente, destaca Monzani (1989), o inusitado do título relacionando a obra
diretamente à arte milenar de interpretação dos sonhos.

Título que, como notou Anzieu, faz com que a obra se insira num campo
semântico decididamente suspeito (Traumdeutung, Sterndeutung...) aos homens de
ciência da época. Além disso, o próprio conteúdo da obra é de uma originalidade tão
radical, que, de fato, “surpreendeu o mundo quando de sua publicação”. Dizer que o
sonho tem sentido não foi realmente novidade; mas operar uma distinção entre o
conteúdo manifesto e o conteúdo latente e mostrar que o cerne deste último é
inconsciente, necessitando de um método absolutamente específico para encontrá-lo, e
que, quando isso é feito, o sonho sempre se revela como realização de desejo, sendo
este sempre um conteúdo recalcado e infantil de natureza sexual, é seguramente
encavalar um conjunto de teses que para o leitor não-preparado só pode parecer algo
insólito. Quem se espantou quando Krafft-Ebbing declarou que as teorias de Freud
soavam como “um conto de fadas científico”?
Teses polêmicas, para dizer o mínimo, e aparentemente sustentadas num
método dos mais arbitrários: a associação livre (Freier Einfall)...”. (Monzani, 1989,
p.58-59)

Contudo, qualquer impressão suspeita logo se dissipa ao tomar contato com a


densidade do texto freudiano e a relevância com que a questão da interpretação dos
sonhos é analisada,

(...) passando a ser considerada, em diversos meios, a obra-mestra da teoria


psicanalítica. Metodicamente realizada, ela se estrutura através de um plano coerente,
onde o objeto do discurso psicanalítico está claramente delimitado e circunscrito – o
inconsciente –, e onde também, pela primeira vez, Freud expõe ao público as leis que
regem esse domínio e sua relação com as outras instâncias do campo psíquico. A
técnica de interpretação, por seu lado, funda-se nessa teoria extremamente bem
articulada do psíquico, seguindo a trajetória inversa à da formação dos sonhos,
mantendo válida, até hoje, a afirmação de Freud de que os sonhos são “a via régia que
leva ao conhecimento das atividades inconscientes da mente”
Exatamente por esses motivos, considera-se frequentemente que A
Interpretação dos Sonhos é o momento de gênese do discurso psicanalítico, sua certidão
de nascimento. (Monzani, 1989, p.59)

Chamando a atenção para a especificidade do texto da Interpretação em termos


da importância e da originalidade do que propõe, França (1997) destaca o que segue:

Em 1900, com a Interpretação dos Sonhos, Freud apresenta o aparelho psíquico


como aquele capaz de inscrição dos traços de memória e de falta de continuidade entre
os sistemas Inconsciente e Consciente em função do recalcamento. A noção de
percepção fica aí colocada, através da idéia de impressão, como aquela que pressupõe a
constituição dos próprios traços de memória.
Porém quando Freud apresenta a memória, sempre em termos de diferenças, ele
apresenta a impossibilidade da preexistência de um aparelho a partir do qual se funda
60

uma memória. Justo, Freud afirma que, em decorrência de uma ausência radical, há um
aparelho que se constitui a partir de uma memória de traços – concebida como
diferenças entre as Bahnungen no sistema psi de neurônios – traços advindos de
impressões (Eindrücken). A novidade de 1900 é que esta memória será constituída
como um texto.
A noção de texto psíquico surge no estudo sobre os sonhos, a partir da idéia de
que o sonho é um emaranhado de imagens que se opõe à lógica da organização pré-
consciente/consciente. Portanto, ao considerar uma outra lógica, a do inconsciente,
Freud indica a divisão entre os sistemas psíquicos e a natureza do interdito do texto
psíquico. O sonho é um texto, uma produção do inconsciente, cuja lógica própria é
passível de deciframento através do código criado pelo sujeito do sonho, sujeito este
descentrado da consciência. Assim, o sonho é um enigma,um texto cifrado que faz
apelo à palavra, e, portanto, um texto produzido no campo simbólico e dirigido à ordem
simbólica. (p.11-12)

Remete-se, então, ao texto da Interpretação dos Sonhos, segundo Freud,


Em toda análise se poderiam encontrar exemplos para mostrar que precisamente
os elementos mais triviais de um sonho são indispensáveis a sua interpretação e que o
trabalho em andamento é interrompido quando se tarda a prestar atenção a esses
elementos. Ao interpretar sonhos, atribuímos idêntica importância a cada um dos
matizes de expressão lingüística em que eles nos foram apresentados. E mesmo quando
o texto do sonho, tal como o tínhamos, era sem sentido ou insuficiente – como se o
esforço de fornecer um relato correto tivesse fracassado – levamos também essa falha
em consideração. Em suma, tratamos como Sagrada Escritura aquilo que os autores
precedentes haviam encarado como uma improvisação arbitrária, remendada às pressas
no embaraço do momento. (Freud, 1996, v. V, p.545-546)

Freud aí destaca a sua posição diferenciada ao se propor a analisar o texto do


sonho, levando em consideração tudo o que seria desconsiderado até então, em termos
de enganos, falhas de comunicação, elementos aparentemente sem importância, etc.
Assim, o que se marca no texto do sonho, a partir do referencial psicanalítico proposto
por Freud, e a exemplo do discurso do sujeito em análise, é da ordem do engano, do
inaudito, do que falha. Mais do que isso, a exemplo da “Sagrada Escritura”, os sonhos,
tomados como formações inconscientes, têm o estatuto de portadores de verdades a
serem decifradas, verdades concernentes aos sujeitos e aos seus desejos.
Finalmente, um último aspecto a se destacar nesse trecho do texto freudiano
remete à via da interpretação, por sua vez, remetida à linguagem, à qualidade do texto
do sonho tomado como uma escritura.

Se é na Carta 52 que o traço começa a tornar-se escritura, é em A Interpretação


dos sonhos que o texto psíquico revela sua textura. A estrutura do aparelho e a textura
do texto são indissociáveis, não havendo anterioridade de um sobre o outro, isto é, não
podemos falar de uma anterioridade do aparelho em relação ao texto. Não é porque
temos um aparelho psíquico capaz de produzir textos que estes são produzidos, mas, ao
contrário, o aparelho se diferencia em seus vários sistemas atendendo a necessidades
cada vez mais complexas de articulação entre as pulsões e as representações. É o texto
61

psíquico, pela sua natureza de interdito, que impõe a divisão entre os sistemas
psíquicos.
(...) o que me interessa é a própria noção de texto psíquico, um texto que não é
feito com palavras mas com imagens, mas que nem por isso deixa de ser estruturado
como uma linguagem.
O que Freud nos propõe a partir da Traumdeutung é que pensemos o sonho
como uma escritura psíquica. O sonho é uma encenação, mas não de um teto prévio que
ele traduz em imagens; ele é o próprio texto, escritura feita de elementos pictográficos
originais que não obedece a nenhum código anterior a ela própria. Mesmo quando
utiliza elementos já codificados, quando recorre ao léxico da cultura, o sonho os
submete a uma sintaxe própria. “O sonhador inventa sua própria gramática”, escreve
Derrida, o que nos transforma em leitores-decifradores se queremos apreender seu
significado. (Garcia-Roza, 2002, p.62-63)

A partir disso, pode-se entender a expressão “o trabalho do sonho”, ou, mais


propriamente, do “sonhador”, uma vez que algo se estrutura como linguagem, a saber –
o inconsciente –, na medida em que o próprio aparelho psíquico também se estrutura. E
em toda essa “codificação”, que remete a uma “gramática própria ao sonhador”, o que
está em causa é o próprio sujeito, sua pulsão, e seu desejo.
Seguindo no texto A Interpretação dos Sonhos, ao abordar o trabalho do sonho,
no capítulo VI, Freud assinala que o sonho se destaca numa composição enquanto
conteúdo manifesto, tal como se apresenta em nossa memória, e enquanto “conteúdo
latente, ou (como dizemos) os “pensamentos do sonho”, obtidos por meio de nosso
método”. (Freud, 1996, v.IV, p.303) E é justamente desses pensamentos latentes que se
depreende o sentido do sonho.
Além disso, Freud ressalta no mesmo capítulo VI que, tal qual um rébus, o
conteúdo do sonho em seu valor interpretativo demanda a transposição de sua “escrita
pictórica” para uma relação simbólica, ou seja, dos pensamentos do sonho tomados
enquanto linguagem.
Ainda que se pense na referida expressão, “relação simbólica”, como uma
remissão de Freud ao caráter de linguagem do sonho na transmissão de um sentido,
também se pode pensar nessa expressão como uma remissão do sujeito ao Outro da
linguagem por meio do que o próprio sujeito ingressa no simbólico. Além disso, assim
se coloca a possibilidade de que o que está em causa para o sujeito, a saber, seu desejo,
seja mobilizado justamente na transferência com o analista.

Na realidade, Freud não desenvolve a análise das modalidades expressivas


como o poderia fazer um lingüista ou um especialista em semiótica; dizer que faz
referência a processos resume, de fato, a relação explícita que estabelece entre o texto
do sonho e a cena da transferência: ele diz que, se adotou o método da decomposição do
sonho, elemento por elemento, sem se importar com sua seqüência manifesta, é porque
62

decompõe o sonho do mesmo modo como escuta os sintomas de seus pacientes na


talking cure. É, portanto, a escuta dos sintomas pelo método da associação livre ligada à
transferência que fornece o método de decomposição do sonho que permite pôr em
evidência o desejo. O móbil pulsional na leitura é essa referência à clínica. Não seria
suficiente prestar atenção ao “estilo” do sonho para considerá-lo como um trabalho, e é
essa referência da leitura do sonho à escuta no tratamento que permite passar da mera
noção de realização-de-desejo para a de desejo em ação. Para dizer as coisas de outra
maneira, o elemento de atualidade (Darstellung), definido a propósito das imagens do
sonho como alucinação, encontra toda sua extensão e toda sua abrangência quando o
desejo em ação é nomeado em seu modo de expressão, e não mais apenas a propósito
das imagens. Retrospectivamente, podemos perguntar, aliás, se a referência clínica às
“representações hiperintensas” da histeria segundo a expressão de Freud no texto
póstumo do “Projeto para uma psicologia científica” (1895), que ele próprio já havia
esquecido, não estaria contudo presente em sua memória quando A interpretação dos
sonhos propunha o termo alucinação. (Kaufmann, 1996, p.117)

O que se traz aqui além da importância da clínica na construção da teoria e da


metapsicologia freudianas, é o “trabalho do sonho”, algo que remete ao sujeito na
apreensão do seu desejo e na forma própria de configuração do sonho e da possibilidade
de seu trabalho – na transferência –, daí falar em “desejo em ação” e da “possibilidade
de nomeação em seu modo de expressão”.
Fala-se em trabalho do sonho, mas quem é o sujeito do sonho? E, a quem se
destina?
O sonho é não apenas um texto, mas o texto de uma mensagem cifrada, um
enigma, que cabe ao destinatário decifrar. Quem é, porém, o destinatário? Mais ainda:
quem é o remetente? Quanto a esta última pergunta, a resposta poderia ser
simplesmente: “O próprio sonhador, é claro.” Essa resposta aponta, contudo, para o
indivíduo, para a pessoa do sonhador, e não necessariamente para o sujeito do sonho. A
pergunta teria então, que ser refeita. Quem é o sujeito do sonho? Não é, certamente, o
eu. Aquilo que no sonho diz respeito ao sujeito está para além do eu, descentrado em
relação ao eu, remete ao inconsciente ou, mais precisamente, ao sujeito do inconsciente.
Se a questão do remetente da mensagem, no sonho, não permite uma resposta
simplista, a questão do destinatário dessa mensagem não é menos complexa. (...) O
sonho faz apelo ao outro, ouvinte intérprete de sua narrativa, ou ele se esgota no ato de
ser sonhado? Se concordamos com Freud que o sonho é a realização disfarçada de
desejos inconscientes, não teria ele cumprido sua finalidade ao ser sonhado? Para que o
apelo à interpretação? Seria uma superabundância do aparato psíquico realizar desejos e
oferecer-se à investigação decifradora?
(...) Freud desde o seu texto sobre as afasias, já considerava o aparelho de
linguagem (e portanto o próprio aparelho psíquico) como um aparelho cuja construção
se faz numa relação com o outro, sendo que esse outro era entendido como um outro
aparelho de linguagem e não como a exterioridade do mundo. Se de fato o aparelho
psíquico é um aparelho que se dirige a outros aparelhos, e que somente nessa relação ele
pode ser considerado como um aparelho psíquico, então justifica-se a tese de que o
sonho não se esgota em si mesmo, mas que se dirige ao outro, destinatário-intérprete,
numa relação da qual resultará o seu sentido.
Aquilo a que o sonho faz apelo é a fala, a fala do próprio sonhador e a fala do
outro; apenas neste sentido ele pode ser considerado um texto ou, mais especificamente,
uma mensagem.
63

Essa mensagem é dirigida ao Outro. Tal como a garrafa lançada ao mar, ela não
tem como destinatário um sujeito singular determinado, não é dirigida a esta ou aquela
pessoa, mas a um lugar: à ordem simbólica. (...) O outro é aquele que recolhe a garrafa e
se dispõe a decifrar a mensagem, e isto só é possível se ele está situado nesse grande
Outro que é a Ordem simbólica. (Garcia-Roza, 2002, p.65-67)

Seguindo no texto A Interpretação dos Sonhos, enquanto uma das formações do


inconsciente, o sonho é regulado pelos processos de condensação e deslocamento.
Segundo Freud, o sonho se apresenta “distorcido” e essa distorção nunca é arbitrária,
tendo em vista o determinismo nos eventos psíquicos. Nessa via, registra também o
esquecimento dos sonhos. Em particular, ainda, aponta a censura onírica e as
resistências com seu caráter de distorção, enquanto deformadoras dos sonhos.
Finalmente, o recalque.
Pensando na interpretação do sonho, enquanto linguagem, o sonho é uma
mensagem cifrada do inconsciente – encadeamentos significantes que nos remetem ao
desejo. Daí a possibilidade de várias interpretações ligadas ao mesmo sonho ou
relacionando vários sonhos, etc., concebendo-se, até, o limite da interpretação.

(...) o sonho é uma estrutura provida de sentido, e, em geral, o bastante para


entrever qual é esse sentido.
(...) Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é freqüente haver um
trecho que tem de ser deixado na obscuridade; e que, durante o trabalho de
interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos
oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso
conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele
mergulha no desconhecido. (...) Os pensamentos oníricos a que somos levados pela
interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a
ramificar-se em todas as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo do
pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o
desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio. (Freud, 196, v.V, p.556-557)

Curiosamente, segundo Freud, o desejo aponta, tal qual a interpretação, para um


ponto nodal de não-sentido, desconhecido, limite da interpretação, mas, aparentemente,
não limítrofe para o desejo, uma vez que o desejo se reinscreve continuamente, são
várias as ramificações dos pensamentos oníricos apontando para várias interpretações e,
sem um fim definido. Um processo que escapa ao consciente, para além, inconsciente.
Entretanto, o fato de a interpretação não apresentar um fim definido não implica numa
arbitrariedade do sonho e, por conseguinte, do desejo.

Ocorre que é demonstravelmente inverídico que estejamos sendo arrastados por


uma corrente de representações sem meta alguma quando, no processo de interpretar
um sonho, abandonamos a reflexão e deixamos que emerjam representações
64

involuntárias. Pode-se demonstrar que a única coisa de que conseguimos libertar-nos


são as representações-meta que nos são conhecidas; mal fazemos isso, as
representações-meta desconhecidas – ou como dizemos sem precisão, “inconscientes” –
assumem o comando e, daí por diante, determinam o curso das representações
involuntárias.
[Nota de rodapé acrescentada em 1914:]5(...) É o inconsciente que faz a escolha
apropriada de uma finalidade para o interesse, e isso ‘é válido tanto para a associação de
idéias no pensamento abstrato quanto para a ideação sensível e a combinação artística’,
e para a produção do chiste. (Freud, 1996, v.V, p.559-560)

Assim o papel desempenhado pelo inconsciente na formação dos sonhos e em


relação ao desejo vai se delineando de forma capital, tanto em sua via pulsional como na
expressão de um sentido. Sentido que está presente tanto nos sonhos, como nas demais
formações do inconsciente, presentes nos processos patologizantes. Assim, numa
interlocução de sua experiência clínica com a teoria, Freud chama a atenção para o fato
que,
(...) não ocorrem cadeias de pensamento desprovidas de representações-meta
nem na histeria e na paranóia, nem na formação ou resolução dos sonhos. (...) Até
mesmo os delírios dos estados confusionais podem ter sentido, se aceitarmos a brilhante
sugestão de Leuret [1834, 131] de que eles só nos são inteligíveis por causa das lacunas
que apresentam. Eu próprio formei a mesma opinião a cada vez que tive oportunidade
de observá-los. Os delírios são obra de uma censura que já não se dá ao trabalho de
ocultar seu funcionamento (...). (Freud, 1996, v.V, p.560)

Além disso, pensando na forma como se dá o registro das marcas mnêmicas


configurando um sistema de impressões perceptivas que se fixa por associações,
conexões de traços, sendo que “todo traço é traço de uma impressão”, segundo França
(1997), um primeiro sistema fixará a associação por simultaneidade.
As associações por similaridade estariam em função de um outro registro e são
desempenhadas pela operação de condensação, onde se obtém a substituição das
representações (Vorstellungen) na medida em que elas apresentam uma relação de
semelhança, assim como a operação do deslocamento implica a substituição de
representações que mantêm relações de contigüidade. Ou seja, os processos
inconscientes são formados e sistematizados por leis e submetidos à ordem simbólica, e
podemos afirmar que A Interpretação dos Sonhos está quase inteiramente voltada para a
descoberta das regras que regem o inconsciente. (França, 1997, p.13)

Também neste texto, da mesma forma que no caso do inconsciente, uma teoria
freudiana sobre o supereu e o seu papel na dinâmica da psique vai se esboçando,
antecipando a sua formulação sobre os lugares psíquicos na direção da constituição da primeira
tópica freudiana, além de enfatizar a dinâmica do conflito subjacente entre o desejo e a censura.

5
Nessa nota de rodapé, Freud destaca a visão de Eduard von Hartmann a respeito do papel desempenhado
pelo inconsciente na produção artística, uma visão que se iguala à sua, sobre o inconsciente. Note-se que
Freud, neste momento, ainda não tem uma teoria sobre o inconsciente, mas, apresenta o início de uma
formulação, de uma reflexão, nesse sentido.
65

Sempre que um elemento psíquico está vinculado a outro por uma associação
objetável ou superficial, há também entre eles um vínculo legítimo e mais profundo que
está submetido à resistência da censura. (Freud, 1996, v.V, p.561)

Assim, a distorção da censura, além dos seus efeitos – de deslocamento de uma


associação normal e séria para uma superficial e aparentemente absurda –,
propriamente falando, aponta, ou sinaliza, para além disso, um sentido. Um sentido
inconsciente que expressa a verdade do sujeito, a verdade do seu desejo.

Na psicanálise das neuroses, faz-se o mais amplo uso desses dois teoremas –
que, quando se abandonam as representações-meta conscientes, as representações-meta
ocultas assumem o controle do fluxo de representações, e que as associações
superficiais são apenas substitutos, por deslocamento, de associações mais profundas e
suprimidas. A rigor, esses teoremas transformaram-se em pilares básicos da técnica
psicanalítica. Quando instruo um paciente a abandonar qualquer tipo de reflexão e me
dizer tudo o que lhe vier à cabeça, estou confiando firmemente na premissa de que ele
não conseguirá abandonar as representações-meta inerentes ao tratamento, e sinto-me
justificado para inferir que o que se afigura como as coisas mais inocentes e arbitrárias
que ele me conta está de fato relacionado com sua enfermidade. Há uma outra
representação-meta de que o paciente não desconfia – uma que se relaciona comigo.
(Freud, 1996, v.V, p.562)

Ao percorrer o texto freudiano dá-se conta da importância do mesmo, ainda mais


pelo momento inicial em que se encontrava Freud em sua teorização sobre a clínica, o
inconsciente, o aparelho psíquico, etc. Este pequeno trecho marca a importância das
associações inconscientes no discurso do sujeito, conferindo-lhes o sentido que
suportam concernente ao sujeito, seu sintoma e seu desejo.
Além disso, é o próprio método da psicanálise e sua técnica que se evidenciam,
quando se pauta por este tipo de associação e não por outra, quando o analista se propõe
a “escutar” o discurso do paciente mediante a associação livre convocando-o igualmente
a “associar livremente”, privilegiando as representações inconscientes ainda que se
mobilizem as resistências.
Finalmente, Freud aponta a situação diferenciada da análise, pois, o que se
produz e o que será trabalhado, o será, na transferência.
Neste ponto de sua argumentação, momento de avançar na teoria, Freud retoma
os principais resultados alcançados por sua investigação a respeito dos sonhos enquanto
realização de desejos, que segue:

(...) Os sonhos são atos psíquicos tão importantes quanto quaisquer outros; sua
força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de
não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e
66

absurdos, devem-se à influência da censura psíquica a que foram submetidos durante o


processo de sua formação; à parte a necessidade de fugir a essa censura, outros fatores
que contribuíram para sua formação foram a exigência de condensação de seu material
psíquico, a consideração a sua representabilidade em imagens sensoriais e – embora não
invariavelmente – a demanda de que a estrutura do sonho possua uma fachada racional
e inteligível. (...) o desejo é a força propulsora do sonho (...). (...) Assim, em primeiro
lugar, foi em nome da realização de um desejo que o processo de pensamento durante o
sono transformou-se num sonho. (Freud, 1996, v.V, p.564)

Neste passo seguinte, Freud destaca que a análise da vida onírica remete à idéia
de uma localização psíquica, afirmando, portanto, que permanecerá no campo
psicológico e não anatômico, no sentido de visualizar o instrumento que executa as
funções anímicas. Deste modo, a localização psíquica corresponderá a um ponto no
interior do aparelho, comparado a um aparelho fotográfico, em que se produz um dos
estágios preliminares da imagem.
É assim que Freud apresenta o que se constitui como aparelho psíquico, um
aparelho reflexo, similarmente ao modelo proposto no Projeto..., onde “toda nossa
atividade psíquica parte de estímulos (internos ou externos) e termina em inervações”,
enquanto “um instrumento composto a cujos componentes daremos o nome de
“instâncias”, ou (em prol de uma clareza maior) “sistemas”. (...) doravante nos
referiremos aos componentes do aparelho como “sistemas-ψ”.” (Freud, 1996, v.V,
p.567)
O aparelho psíquico é concebido como um aparelho de memória, sendo
composto por dois pólos ou extremidades, a saber: o pólo perceptivo ou sensorial
(Pcpt.), que recebe as percepções (provenientes de estímulos internos ou externos); e o
pólo motor (M.).
Assim, segundo Freud, toda a atividade psíquica parte dos estímulos e termina
em inervações ou pontos de descarga. “Os processos psíquicos, em geral, transcorrem
da extremidade perceptual para a extremidade motora. (...) Os processos reflexos
continuam a ser o modelo de todas as funções psíquicas”. (Freud, 1996, v.V, p.568)

(...) Em nosso aparelho psíquico, permanece um traço das percepções que


incidem sobre ele. A este podemos descrever como “traços mnêmicos”, e à função que
com ele se relaciona damos o nome de “memória”. Se levamos a sério nosso projeto de
ligar os processos psíquicos a sistemas, os traços mnêmicos só podem consistir em
modificações permanentes dos elementos dos sistemas.
(...) Suporemos que um sistema (Pcpt.) logo na parte frontal do aparelho recebe
os estímulos perceptivos, mas não preserva nenhum traço deles, e portanto, não tem
memória, enquanto, por trás dele, há um segundo sistema (Mnem.) que transforma as
excitações momentâneas do primeiro em traços permanentes.
67

(...) Nossas percepções acham-se mutuamente ligadas em nossa memória (...)


segundo a simultaneidade de sua ocorrência. Referimo-nos a esse fato como
“associação”. (Freud, 1996, v.V, p.568-569)

Seguindo na via de estruturação do aparelho psíquico, Freud destaca o que


segue:

(...) É o sistema Pcpt., desprovido da capacidade de reter modificações, e,


portanto, sem memória, que supre nossa consciência de toda multiplicidade das
qualidades sensoriais. Por outro lado, nossas lembranças – sem excetuar as que estão
mais profundamente gravadas em nossa psique – são inconscientes em si mesmas.
Podem tornar-se conscientes, mas não há dúvida de que produzem todos os seus efeitos
quando em estado inconsciente. O que descrevemos como nosso “caráter” baseia-se nos
traços mnêmicos de nossas impressões; e, além disso, as impressões que maior efeito
causaram em nós – as de nossa primeira infância – são precisamente as que quase nunca
se tornam conscientes. Mas, quando as lembranças voltam a se tornar conscientes, não
exibem nenhuma qualidade sensorial, ou mostram uma qualidade sensorial ínfima se
comparadas às percepções.
(...) só nos foi possível explicar a formação dos sonhos arriscando a hipótese de
existirem duas instâncias psíquicas, uma das quais submeteria a atividade da outra a
uma crítica que envolveria sua exclusão da consciência. A instância crítica, concluímos,
tem uma relação mais estreita com a consciência do que a instância criticada, situando-
se como uma tela entre esta última e a consciência. Ademais, encontramos razões (...)
para identificar a instância crítica com a instância que dirige nossa vida de vigília e
determina nossas ações voluntárias e conscientes. Se (...) substituirmos essas instâncias
por sistemas, nossa última conclusão deverá levar-nos a situar o sistema crítico na
extremidade motora do aparelho (Fig. 3). (Freud, 1996, v.V, p.570-571)

Pcpt Mnem Mnem’


Ucs Pcs

Fig. 3

A estruturação do aparelho psíquico nos moldes de um aparelho de memória –


memória esta que esta funda o aparelho –, como proposto por Freud, atesta sua
importância fundamental quanto à dinâmica psíquica de um sujeito dividido tal como
apresentado, um sujeito em conflito quanto ao seu desejo, remetido ao impossível da
sua verdade. É esse o movimento de regressão que Freud revelará a seguir, no texto.
68

A explicação de Freud para a regressão nos sonhos e também para os chamados


estados patológicos de vigília, a saber, as alucinações da histeria e da paranóia, bem
como, para as visões nos sujeitos mentalmente normais

É que elas de fato constituem regressões – isto é, pensamentos transformados


em imagens –, mas os únicos pensamentos a sofrerem essa transformação são os que se
ligam intimamente a lembranças que foram suprimidas ou permaneceram inconscientes.
(...) nesses casos (...) não devemos desprezar a influência de lembranças,
principalmente infantis, que tenham sido suprimidas ou permanecido inconscientes.
(Freud, 1996, v.V, p.574-575)

E aqui, ousa-se novamente uma interpretação, em termos lacanianos, pensando-


se na regressão como a busca perene de algo que falta, de uma (in)satisfação primeva,
de caráter alucinatório, é verdade, mas, que remete o sujeito a sua verdade. Verdade esta
que, embora constituinte do sujeito, se apresenta como impossível de ser por ele
alcançada, ainda que se coloque como ponto de mira. Verdade que, simultaneamente, se
desvela como ponto de angústia, e onde o desejo se revela como um sinal desse eterno
retorno, porém, nunca do mesmo.
Aqui se fixa o sujeito do desejo, denominado por Lacan, o sujeito do
inconsciente. Há, portanto, uma dinâmica subjetiva, que aponta para o desejo e,
fundamentalmente, para um sujeito, enquanto sujeito desse desejo. Esse movimento
subjetivo se desvela quando pensamos na força constante da pulsão e na reinscrição
incessante do desejo, o que simultaneamente aponta para uma satisfação sempre parcial,
signo mesmo de uma insatisfação latente, e ao próprio movimento, indicativo de que
desejo se trata, qual seja, um desejo de desejo.
Voltando ao esquema do aparelho psíquico proposto, Freud aponta que o
sistema “pré-consciente” se situa na extremidade motora, uma vez que os processos nele
ocorridos não têm empecilhos para penetrar na consciência. Em seguida, denomina o
sistema anterior a esse (pré-consciente), por trás dele no aparelho, como o
“inconsciente”6.

(...) pois, este não tem acesso à consciência senão através do pré-consciente, ao
passar pelo qual seu processo excitatório é obrigado a submeter-se a modificações.
Em qual desses sistemas, portanto, devemos situar o impulso para a formação
dos sonhos? Para simplificar, no sistema Ics. (...) quando consideramos o desejo onírico,
descobriremos que a força propulsora da formação dos sonhos é fornecida pelo Ics. (...)
Como todas as outras estruturas do pensamento, esse instigador do sonho se esforçará
por avançar para o Pcs. E, a partir daí, ganhar acesso à consciência.

6
A alusão de Freud aos “lugares” seguramente lhe dará subsídios para o que se constituirá como a
primeira tópica.
69

A experiência nos mostra que essa via que passa pelo pré-consciente para
chegar à consciência é barrada aos pensamentos oníricos durante o dia através da
censura imposta pela resistência. Durante a noite, eles conseguem obter acesso à
consciência, mas surge a questão de determinar como o fazem e graças a que
modificação.
(...) A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece nos sonhos
alucinatórios é dizendo que a excitação se move em direção retrocedente. Em vez de se
propagar para a extremidade motora do aparelho, ela se movimenta no sentido da
extremidade sensorial e, por fim, atinge o sistema perceptivo. Se descrevermos como
“progressiva” a direção tomada pelos processos psíquicos que brotam do inconsciente
durante a vida de vigília, poderemos dizer que os sonhos têm um caráter “regressivo”.
(Freud, 1996, v.V, p.571-572)

Segundo Garcia-Roza,

O aparelho psíquico de A interpretação do sonho não faz referência a neurônios


ou a quaisquer outras entidades materiais, seus referentes são idéias, representações,
pensamentos, desejos, sonhos, linguagem.
(...) O que importa (nesse) modelo (...) não é a localização espacial dos
sistemas, mas a estrutura topológica do aparelho, isto é, a posição relativa que os
sistemas ocupam uns em relação aos outros. Mas, acima de tudo, trata-se de uma tópica
temporal. O que Freud propõe é que se pense uma ordem de sucessão temporal para os
processos psíquicos, de tal modo que a excitação faça o percurso que vai da
extremidade perceptiva para a extremidade motora, passando pelos sistemas mnêmicos,
pelo Ics, pelo Pcs até atingir o Cs; se o percurso for regressivo, a mesma ordem terá que
ser obedecida, só que em sentido inverso. (Garcia-Roza, 2002, p. 169-170)

Freud destaca que este movimento regressivo expresso nos processos oníricos
não se restringe aos sonhos, dado que outros processos constitutivos do pensamento
normal envolvem tal movimento retrocedente, retornando de um ato complexo de
representação para a matéria-prima dos traços subjacentes, atingindo-se um nível de
completa vividez sensorial. De modo que, fala-se “em “regressão” quando, num sonho,
uma representação é retransformada na imagem sensorial de que originalmente derivou.
“(...) Na regressão, a trama dos pensamentos oníricos decompõe-se em sua matéria-
prima. (...) em imagens.”(Cf. Freud, 1996, v.V, p.573-574)
Levando-se em conta a tópica temporal do aparelho psíquico, tal qual apontado
acima, coloca-se ainda a questão: o que do sujeito estaria em causa na configuração dos
processos oníricos?

Se agora tivermos presente o enorme papel desempenhado nos pensamentos


oníricos pelas experiências infantis ou pelas fantasias nelas baseadas, a freqüência com
que os fragmentos delas ressurgem no conteúdo do sonho, e quão amiúde os próprios
desejos oníricos derivam delas, não poderemos descartar a probabilidade de que,
também nos sonhos, a transformação dos pensamentos em imagens visuais seja, em
parte, resultante da atração que as lembranças expressas sob forma visual e ávidas de
uma revivescência exercem sobre os pensamentos desligados da consciência e que
70

lutam por encontrar expressão. Desse ponto de vista, o sonho poderia ser descrito como
substituto de uma cena infantil, modificada por transferir-se para uma experiência
recente. A cena infantil é incapaz de promover sua própria revivescência e tem de se
contentar em retornar como sonho.
(...) Formulamos a concepção de que, com toda probabilidade, essa regressão,
onde quer que ocorra, é efeito da resistência que se opõe ao avanço de um pensamento
para a consciência pela via normal, e de uma atração simultânea exercida sobre o
pensamento pela presença de lembranças dotadas de grande força sensorial. (Freud,
1996, v.V, p.576-577)

Em nosso percurso sobre o desejo, a argumentação freudiana, portanto, dá mais


um passo ao identificar a importância das cenas infantis ou das fantasias nelas baseadas
na configuração dos sonhos e, por conseguinte, na questão do desejo. Além disso, Freud
identifica três origens possíveis para os desejos que se realizam nos sonhos, a saber: um
desejo reconhecido pelo sujeito e não satisfeito, localizado no sistema Pcs; um segundo
tipo enquanto um desejo repudiado pelo sujeito e que fica pendente, desejo forçado a
recuar do sistema Pcs para o Ics, único lugar onde continuaria a existir; e, finalmente, as
moções de desejo [Wunschregung], recalcadas, inteiramente incapazes de transpor o
sistema Ics.

Podemos indagar em seguida de onde se originam os desejos que se realizam


nos sonhos?
(...) Do inconsciente, bem entendido. É minha suposição que um desejo
consciente só consegue tornar-se instigador do sonho quando logra despertar um
desejo inconsciente do mesmo teor e dele obter reforço. Segundo indicações
provenientes da psicanálise das neuroses, considero que esses desejos inconscientes
estão sempre em estado de alerta, prontos a qualquer momento para buscar o meio de se
expressarem quando surge a oportunidade de se aliarem a uma moção do consciente e
transferirem sua grande intensidade para a intensidade menor desta última.
[nota 1] Eles partilham esse caráter de indestrutibilidade com todos os outros
atos anímicos verdadeiramente inconscientes, isto é, que pertencem apenas ao sistema
Ics. São vias estabelecidas de uma vez por todas, que jamais caem em desuso e que,
sempre que uma excitação inconsciente volta a catexizá-las, estão prontas a levar o
processo excitatório à descarga.
(...) esses desejos, mantidos sob recalcamento, são eles próprios de origem
infantil, como nos ensina a pesquisa psicológica das neuroses. Assim, eu proporia pôr
de lado a afirmativa feita há pouco (...), de que a procedência dos desejos oníricos é
indiferente, e substituí-la por outra com o seguinte teor: o desejo que é representado
num sonho tem de ser um desejo infantil. (Freud, 1996, v.V, p.581-583)

Trata-se de um ponto capital para a compreensão do desejo na via da concepção


freudiana. Os desejos são oriundos do inconsciente e são desejos infantis.

Esses desejos, em estado de alerta permanente, são os desejos recalcados,


únicos capazes de produzir um sonho (apesar da aliança que fazem com os desejos do
71

Pcs/Cs). São desejos infantis que permanecem em estado de recalcamento e que,


enquanto tais, são indestrutíveis.
(...) A indestrutibilidade do desejo inconsciente não significa a imutabilidade
dos caminhos facilitadores (Bahnungen). O desejo é indestrutível porque jamais poderá
ser plenamente satisfeito, e jamais poderá ser plenamente satisfeito porque não há um
objeto específico que o satisfaça; sua satisfação será sempre parcial, o que implica o seu
infindável retorno.
O importante é não nos esquecermos que esse retorno não é o retorno do
“mesmo”, não é a repetição continuada de algo que se apresenta sempre como idêntico
a si mesmo, mas, se o termo eterno retorno nos agrada, é fundamental termos em mente
que se trata de um eterno retorno da diferença.
(...) não creio que seja demais relembrar que para Freud a memória é sempre
memória das diferenças entre as Bahnungen, portanto, uma memória de diferenças e
não uma memória de identidades. Essas antigas trilhagens (Bahnungen) podem ser
indestrutíveis mas não são imutáveis. O que podemos conceber como imutáveis, além
de indestrutíveis, são os traços. Os sistemas de traços que vão formar o inconsciente
estão sujeitos a transformações.
Se os desejos produtores dos sonhos são, em última análise, desejos
inconscientes (pertencentes ao sistema Ics), isto não quer dizer que os desejos do Pcs/Cs
não participem da formação dos sonhos. Seu papel é secundário, mas nem por isso sem
importância. Os desejos Pcs/Cs não apenas funcionam como incitadores do sonho,
como possibilitam ainda aos desejos Ics uma solução de compromisso, tal como
acontece com as demais formações do Ics. (Garcia-Roza, 2002, p.176-177)

Entretanto, segundo Freud, nada do que teria sido abordado até agora poderia
responder ao enigma de:

(...) por que o inconsciente nada tem a oferecer durante o sono além da força
propulsora para a realização de um desejo? A resposta a esta pergunta deve lançar luz
sobre a natureza psíquica dos desejos e proponho fornecê-la mediante uma referência a
nosso quadro esquemático do aparelho psíquico.
(...) O bebê faminto grita ou dá pontapés, inerme. Mas a situação permanece
inalterada, pois a excitação proveniente de uma necessidade interna não se deve a uma
força que produza um impacto momentâneo, mas a uma força que está continuamente
em ação. Só pode haver mudança quando, de uma maneira ou de outra (no caso do
bebê, através do auxílio externo), chega-se a uma “vivência de satisfação” que põe fim
ao estímulo interno. Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma
percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica
associada, daí por diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade.
Em decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade
for despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a
imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a
situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo;
o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para
essa realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para
uma completa catexia da percepção. Nada nos impede de presumir que tenha havido um
estado primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido,
isto é, em que o desejo terminava em alucinação. Logo, o objetivo dessa primeira
atividade psíquica era produzir uma “identidade perceptiva” (isto é, algo
perceptivamente idêntico à “vivência de satisfação”) – uma repetição da percepção
vinculada à satisfação da necessidade. (Freud, 1996, v.V, p.594-595)
72

O trabalho do sujeito no sonho seria, então, segundo Freud, o de passar do


caráter alucinatório do desejo para a realização do desejo.

O que quer dizer, afinal, “realização de desejo”?


Realização aponta para a realidade, algo como tornar realidade aquilo que é da
ordem da alucinação, da ilusão, da fantasia. Mas, o que está sendo realizado quando
dizemos que os sonhos são realizações de desejos? (...) Realizar algo não é
precisamente retirar esse algo do registro puramente alucinatório?
(...) Para que a satisfação possa ser real é preciso que o desejo se inscreva no
registro biológico, através de um comportamento que possa ser considerado
minimamente adaptativo. Se, como declara Freud, ele é a mola (Triebfeder) da
alucinação, de uma satisfação que não satisfaz mas que primariamente provoca a
decepção, como conceber essa realização de desejo?
Lacan responde que “o desejo se satisfaz alhures e não numa satisfação efetiva.
Ele é a fonte, a introdução fundamental da fantasia como tal”. O desejo nos remete para
uma outra ordem que a biológica, ordem não adaptativa e que é definida pelo registro
do imaginário. Quando Freud afirma que “o sonho é uma realização (disfarçada)
[verkleidete] de um desejo (reprimido)”, ele na verdade está confirmando a tese de que
a realização de desejos presente no sonho é uma realização ou uma satisfação simbólica.
Na verdade, “o mundo freudiano não é um mundo das coisas, não é um mundo
do ser, é um mundo do desejo como tal” (Lacan, S II, p. 280). Enquanto na perspectiva
filosófica clássica a relação do homem com o mundo é uma relação de ser a ser, na
perspectiva freudiana essa relação é de ser a falta. Este é o caminho indicado por Lacan
para abordarmos a questão do desejo em Freud. (Garcia-Roza, 2002, p.185-186)

Quando Lacan diz que o mundo freudiano não é um mundo das coisas, não é um
mundo do ser, mas um mundo do desejo, o que se coloca é uma anterioridade a toda
experiência do sujeito que lhe aponta a falta como referência do ser, por sua vez, via do
desejo no humano. Completamente diferente de uma perspectiva que centrada no “ser
que é” poderia engendrar tanto o passado como o futuro desse sujeito.

Nada se acha mais afastado da experiência freudiana.


A experiência freudiana parte de uma noção diametralmente contrária à
perspectiva teórica. Ela começa por estabelecer um mundo do desejo. Ela o estabelece
antes de toda e qualquer espécie de experiência, antes de qualquer consideração sobre o
mundo das aparências e o mundo das essências. O desejo é instituído no interior do
mundo freudiano onde nossa experiência se desenrola, ele o constitui, e isto não pode
ser apagado em instante algum do mais mínimo manejo de nossa experiência.
(...) É num registro de relações totalmente diferente que o campo da experiência
freudiana se estabelece. O desejo é uma relação de ser com a falta. Esta falta é falta de
ser, propriamente falando. Não é falta disto ou daquilo, porém falta de ser através do
que o ser existe.
Esta falta acha-se para além de tudo aquilo que possa apresentá-la. Ela nunca é
apresentada senão como um reflexo num véu. A libido – porém, não mais em seu
emprego teórico de quantidade quantitativa – fica sendo o nome daquilo que anima o
conflito fundamental que se acha no âmago da ação humana.
(...) O desejo, função central em toda experiência humana, é o desejo de nada
que possa ser nomeado. É, ao mesmo tempo, este desejo que se acha na origem de
qualquer espécie de animação. Se o ser fosse apenas o que é, não haveria nem sequer
lugar para se falar dele. O ser se põe a existir em função mesmo desta falta. É em
73

função desta falta, na experiência de desejo, que o ser chega a um sentimento de si em


relação ao ser. É do encalço deste para-além, que não é nada, que ele volta ao
sentimento de um ser consciente de si, que é apenas seu próprio reflexo no mundo das
coisas. Pois, ele é o companheiro dos seres que estão aí diante dele, e que, com efeito,
não sabem que são. (Lacan, 1985, S II, p. 280-281)

Como se pode perceber, no campo da concepção freudiana não seria possível


falar em desejo sem teorizar sobre o inconsciente. O trabalho do sonho, a exemplo das
demais formações do inconsciente (lapsos, atos falhos, chistes, sintomas, etc.) implica
na expressão de desejos inconscientes que visam sua realização, mas, mais do que isso,
implicam numa ação de sujeito referido a sua falta. Um sujeito sem substancialidade,
cuja única certeza é o próprio desejo.

(...) Se existe um sistema Ics. (...), os sonhos não podem ser sua única
manifestação; todo sonho pode ser uma realização de desejo, mas, além dos sonhos, tem
de haver outras formas anormais de realização de desejo. E é fato que a teoria que rege
todos os sintomas psiconeuróticos culmina numa única proposição, que assevera que
também eles devem ser encarados como realizações de desejos inconscientes. (Freud,
1996,v.V, p.597)

Segundo Garcia-Roza,

Se o estatuto ontológico do inconsciente é frágil, se ele é “mais ético do que


ôntico”, como nos diz Lacan, o mesmo vai se dar com o sujeito. O sujeito do
inconsciente (sujeito da enunciação, sujeito do desejo) vai dizer respeito precisamente
ao que está ausente no sujeito do enunciado. O eu penso cartesiano não se ditingue dos
próprios pensamentos, ao passo que Freud vai nos dizer que há pensamentos
(Gedanken) que não estão presentes na consciência e que são por ela recusados. Estes
pensamentos não são evocáveis pela consciência e são eles que vão se constituir na
matéria-prima dos sonhos, seu conteúdo latente. Esses pensamentos inconscientes é que
constituem o desejo inconsciente, força produtora do sonho.
Falar do sujeito do inconsciente é pois falar do sujeito do desejo. É este sujeito
desejante que insiste, na e pela cadeia significante. No lugar do penso, logo sou de
Descartes, Freud nos propõe um desejo, logo sou, à condição de não se confundir
aquele que deseja e aquele que enuncia que deseja.
(...) essa lógica do desejo não confere ao sujeito uma identidade, não há um
significante do sujeito. Este permanece marcado pela falta de identidade. O que
podemos assinalar como seu é um lugar: o da verdade. O inconsciente não é nem ser,
nem não-ser, diz Lacan, ele é da ordem do não-realizado. O vazio do inconsciente (e
portanto do desejo), é pré-ontológico.
(...) remete a um real (...) e que diz respeito à pulsão. Não foi por outra razão
que Lacan, ao se referir à noção freudiana de pulsão, afirmou que ela é uma noção
ontológica absolutamente fundamental. (Garcia-Roza, 2002, p.198-201)

Finalmente, em Freud, o desejo que se trata de realizar é o desejo inconsciente, o


desejo infantil, o desejo sexual.
74

A teoria das psiconeuroses afirma como fato indiscutível e invariável que


somente as moções de desejo sexuais procedentes da infância, que sofreram
recalcamento (isto é, uma transformação do afeto) durante o período de
desenvolvimento infantil, são passíveis de ser revividas em períodos posteriores do
desenvolvimento (seja como resultado da constituição sexual do sujeito, que deriva de
uma bissexualidade inicial, seja como resultado de influências desfavoráveis que atuem
no curso de sua vida sexual) e, desse modo, estão aptas a suprir a força impulsora para
a formação de toda sorte de sintomas psiconeuróticos. Apenas mediante a referência a
essas forças sexuais é que podemos cobrir as brechas que ainda se evidenciam na teoria
do recalcamento. Deixarei em aberto a questão de esses fatores sexuais e infantis serem
igualmente exigidos na teoria dos sonhos; deixarei tal teoria incompleta neste ponto,
uma vez que já foi um passo além do que se pode demonstrar ao presumir que os
desejos oníricos provêm invariavelmente do inconsciente. (Freud, 1996, v.V, p.631-
632)

E, sobre o inconsciente, Freud dirá, retomando Lipps, o que segue:


(...) O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do
consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo
que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar
que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a
verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido
quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos
dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos
órgãos sensoriais. (Freud, 1996, v.V, p.637)

Neste momento, cabe apontar um último ponto nesta argumentação que remete à
causa do desejo, em Freud, e que diz respeito ao papel da angústia relativamente ao
desejo, bem como à via da estética do desejo.

Segundo França (1997),

Em 1900, de acordo com Freud, o desejo se realiza no sonho, mas de forma


estranha, pois ele tem que atravessar as censuras para as quais os “disfarces” fazem
função. Posteriormente, Freud vai mostrar que, para além isso, o desejo falta neste
atravessamento e tropeça na Real Angst, apresentando efeitos-surpresa, efeitos do
inconsciente, que se revelam com uma radical estranheza. Os sonhos de angústia trazem
assim o Unheimliche do desejo, destituindo o eu do sonhador de sua aspiração de
satisfação e remetendo-o às fronteiras do impossível e do indizível.
A angústia se apresenta, então, no seu lugar de elemento que emerge daquilo
que de trágico atribuímos à estrutura do desejo, daquilo que entendemos como um
Wunsch imperioso, que desde o Projeto Freud apresentou como a finalidade de
reproduzir a satisfação original. Assim é que os sonhos de angústia implicam a
impossibilidade inconsciente de repetir o reinvestimento da imagem-lembrança da
percepção do objeto e, portanto, trazem a impossibilidade de alucinar a satisfação.
(...) O que se apresenta imediatamente aqui enquanto questão é em que ordem
se coloca satisfação de desejo, já que os sonhos de angústia despertam a ausência de
sentido da tal satisfação? Este vazio angustiante impede, com sua radicalidade ruidosa e
impactante, a paralisação do desejo diante das fixações imaginárias. O
desaprisionamento dos objetos imaginários só é possível nos cortes significativos,
golpes fatais na promessa de completude imaginária.
75

(...) Freud apresenta neste texto [Luto e Melancolia] exemplar que a beleza só
adquire o valor de fruição articulada à dimensão da finitude. Beleza e morte se opõem
inclusivamente. Ou seja, toda antecipação de sentido que busca escapar da finitude
implica uma fixação, uma parada do movimento desejante, enfim, mata a beleza. (p.99-
101)

A par da dimensão estética do desejo, coloca-se, ainda, a dimensão estética da


própria psicanálise,
O poeta Rilke, em conversa com Freud, apresenta uma antecipação de luto pela
morte da beleza, matando o gozo estético, que depende do trânsito desejante, livre do
apego eternizado aos objetos. Quer dizer, ao recuar diante da finitude, o poeta se priva
da fruição da beleza.
(...) a pulsão circunscreve o objeto, mas não o apreende, marcando a dimensão
da incompletude. É assim que o pensamento freudiano, através da idéia de pulsão como
pura atividade, afirmada em 1920 com a disruptora pulsão de morte, vai apresentar a
experiência psicanalítica como criativa por excelência, porque produtora de
significações através do valor expressivo e pleno da palavra, apontando para a dimensão
estética da psicanálise. O que se coloca nesta práxis é o corpo-linguagem de desejo em
movimento, corpo marcado pela ausência de sentido do completo.
A idéia de completude traz o valor do engano e da ilusão que se opõe ao valor
de verdade parcial do desejo enquanto movimento. Ou seja, toda fixação imaginária
implica a parada do desejo, que é movimento. Como exemplar deste movimento
chamado desejo temos o desejo do analista, na sua função de sustentar a angústia da
incompletude, da falha estrutural, permitindo entrar em cena a verdade do movimento
do desejo e seus efeitos de beleza.
Então, para falar de desejo (...) vamos radicalizar a clivagem da representação
entre a ausência do objeto de satisfação e a presença da realidade alucinada. Algo
sustenta o investimento ou, mais precisamente, o reinvestimento de uma imagem
mnêmica e garante a função animadora e movimentadora do desejo. Ou seja, afirmamos
que o desejo é movimento cujo objeto é o desejar; porém algo necessariamente
sustenta, media e reconhece este movimento: a linguagem. Por sua vez, o valor estético
da linguagem do desejo é o encontro forma e movimento, impressão/expressão, que é
instante resultante de uma captura erótica da finitude. (França, 1997, p.101-102)

Finalmente, destaca França (1997), o que segue:

(...) Podemos afirmar que, desde a Interpretação dos Sonhos, Freud apresenta
sua dimensão estética no sentido de que a arte onírica, com seus mecanismos e
condensação e deslocamento de imagens, atesta o privilégio do desejo na sua relação
com as cenas fantásticas carregadas de angústia e prazer. Desde 1900, Freud apresenta,
na nossa leitura, uma estética do desejo que introduz o sujeito enquanto fraturado e
incompleto. (p.137)
Mas,
É em 1926 [em Inibição, Sintoma e Angústia] que Freud elege a angústia
enquanto afeto que anuncia a aproximação de um perigo pulsional de tal ordem que o
estado de desamparo e a ausência de recursos tomam conta do eu. A angústia produz a
experiência de um perigo real, efetivamente ameaçador e que traz à tona a experiência
de horror ligada a uma angústia originária, ao arcaico, que, aliás, sempre preocupou
Freud.
Esse arcaico diz respeito, no pensamento freudiano, ao tempo de encontro do
sujeito do desejo com a linguagem. Ao testemunhar este encontro, a angústia torna-se o
76

representante afetivo da linguagem pulsional, efeito subjetivo da marca que constitui o


suporte do desejo no campo da alteridade.
Em 1926, surge uma dimensão radical no pensamento freudiano, a Real Angst,
conceito que apresenta a falha na estrutura experimentada como efeito-surpresa diante
do que não se apreende em lugar algum: o objeto da pulsão. Surge a experiência do
abismo pela ausência de sentido, a falha de imagem, lapso de imagem, decorrente da
impossibilidade de recobrimento fantasmático. A angústia é linguagem afetiva que
supõe a desordem do eu, porque comporta a estranha linguagem de um “desejo além”.
Mas, além de quê? Vejamos: se a angústia suscita o campo do movimento no
psiquismo ao dar expressão a uma linguagem da origem do desejo, ela mobiliza o
deciframento da marca impressiva e representativa do desejo do Outro. É a angústia a
promotora do passo além dela mesma, passo além do testemunho da origem trágica do
desejo.
Em resumo, a angústia anuncia o sujeito na trilha incessante de procurar o
perdido, metaforizando a perda originária de plenitude da satisfação pulsional em
movimento constitutivo do campo do desejo de desejo, desejo em deslocamento
permanente.
Ao nos referirmos à estética, pensamos o desejo enquanto movimento, em
oposição à fixação imaginária, porque queremos sublinhar o trajeto pulsional da
sublimação como “trajeto-corte” dos aprisionamentos imaginários, ao mesmo tempo
que “trajeto-criação” do objeto causa de desejo, o objeto “digno” da Coisa. (França,
1997, p.125)
77

CONCLUSÃO

OU DA IMPOSSIBILIDADE DE SE CONCLUIR SOBRE O DESEJO

Quando se remete ao conceito de desejo parece paradoxal propor um termo de


conclusão, posto que o desejo não cessa de se inscrever. No entanto, é tempo de
concluir o presente estudo, onde o que se coloca é um “ponto de basta” que se configura
numa hiância, numa abertura, certeza de abertura a inúmeras questões e divagações, no
limite, a inúmeros outros desejos.
Segundo Lacan (1998),

Será que o um é anterior à descontinuidade? Penso que não, e tudo que ensinei
esses últimos anos tendia a revirar essa exigência de um um fechado (...). (...) Vocês
concordarão comigo em que o um que é introduzido pela experiência do inconsciente é
o um da fenda, do traço, da ruptura.
Aqui brota uma forma desconhecida do um, o Un do Unbewusste. Digamos que
o limite do Unbewusste é o Unbegriff – não o não-conceito, mas o conceito da falta.
Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da
abertura faz surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre fundo de silêncio, mas,
ao contrário, o faz surgir como silêncio.
(...) Vocês verão que, mais radicalmente, é na dimensão de uma sincronia que
vocês devem situar o inconsciente – no nível de um ser (...), em suma no nível em que
tudo que se expande no inconsciente se difunde, tal o micelium, como diz Freud a
propósito do sonho, em torno de um ponto central. Trata-se sempre é do sujeito
enquanto que indeterminado.
(...) Assim, o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do
sujeito – donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo – desejo que
situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso em causa, em que o
sujeito se saca em algum ponto inesperado. (S XI, p.31-32)

Propõe-se, então, concluir pelo ponto de partida (“eterno retorno”), que,


providencialmente, não tocamos efetivamente até agora, qual seja, por um sonho. Não
um sonho qualquer, mas, o “sonho-padrão” apresentado por Freud no início do capítulo
VII de A Interpretação dos Sonhos, um sonho dito exemplar de uma realização de
desejo.
O Sonho:
Entre os sonhos que me foram comunicados por outras pessoas há um que
merece especialmente a nossa atenção neste ponto. Foi-me contado por uma paciente
que dele tomou conhecimento numa conferência sobre os sonhos: sua origem real ainda
me é desconhecida. Seu conteúdo impressionou essa dama (...).
(...) As condições preliminares desse sonho-padrão foram as seguintes: um pai
estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites a fio. Após
a morte do menino, ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta
aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento em que jazia o corpo do
filho, com velas altas a seu redor. Um velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao
78

lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu
filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de
censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele acordou, notou um clarão intenso
no quarto, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e que a mortalha e
um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela
acesa que tombara sobre eles. (Freud, 1996, v. V, p.541)

O sentido do sonho, para Freud:

A explicação desse sonho comovente é bem simples e, segundo me disse minha


paciente, foi corretamente fornecida pelo conferencista. O clarão de luz chegou pela
porta aberta aos olhos do homem adormecido e o levou à conclusão a que teria chegado
se tivesse acordado, ou seja, que uma vela caída havia ateado fogo em alguma coisa nas
proximidades do corpo. É possível até que, ao dormir, ele sentisse uma certa
preocupação de que o velho não fosse capaz de cumprir sua tarefa.
(...) o conteúdo do sonho deve ter sido sobredeterminado e as palavras
proferidas pelo menino devem ter sido compostas de expressões que ele realmente
proferira em vida e que estavam ligadas a acontecimentos importantes no espírito do
pai. Por exemplo, “estou queimando” pode ter sido dito em meio à febre da doença fatal
da criança e “Pai não vês?” talvez tenha derivado de alguma outra situação altamente
carregada de afeto que nos é desconhecida.
(...) depois de reconhecermos que o sonho foi um processo dotado de sentido e
passível de ser inserido na cadeia de experiências psíquicas do sonhador, podemos
ainda conjeturar por que teria um sonho ocorrido em tais circunstâncias, quando se fazia
necessário o mais rápido despertar possível. E aqui observaremos que também esse
sonho abrigou a realização de um desejo. O filho morto comportou-se no sonho como
vivo; ele próprio advertiu o pai, veio até sua cama e o segurou pelo braço, tal como
provavelmente fizera na ocasião de cuja lembrança se originou a primeira parte das
palavras da criança no sonho. Em nome da realização desse desejo, o pai prolongou seu
sono por um momento. O sonho foi preferido a uma reflexão desperta, porque podia
mostrar o menino vivo outra vez. Se o pai tivesse primeiro acordado, e depois feito a
inferência que o levou a ir até o quarto contíguo, teria, por assim dizer, abreviado a vida
de seu filho por esse breve lapso de tempo.
(...) Até aqui, estivemos principalmente interessados no sentido secreto dos
sonhos e no método para descobri-lo, bem como nos meios empregados pelo trabalho
do sonho para ocultá-lo. Os problemas da interpretação do sonho ocuparam até aqui o
centro da descrição. E agora esbarramos num sonho que não levanta problemas de
interpretação e cujo sentido é óbvio7, mas que, não obstante, como vimos, preserva as
características essenciais que diferenciam tão notavelmente os sonhos da vida de vigília
e, por conseguinte, requerem explicação. Só depois de havermos resolvido tudo o que
diz respeito ao trabalho de interpretação é que poderemos começar a nos aperceber de
quão incompleta é nossa psicologia dos sonhos. (Freud, 1996, p.541-542)

Segundo Lacan (1998),

Freud sabe de todas as fragilidades dos furtacores do inconsciente no que


concerne a esse registro [ético], quando introduz o último capítulo de A Ciência dos
Sonhos com aquele sonho que, de todos os que são analisados no livro, tem um modo à
parte – sonho suspenso em torno do mistério mais angustiante, o que une um pai ao
cadáver de seu filho mais próximo, de seu filho morto. O pai sucumbido ao sono vê

7
O grifo é nosso.
79

surgir a imagem do filho, que lhe diz – Pai, não vês que estou queimando? Ora, está
para pegar fogo no real, na peça ao lado.
Por que então sustentar a teoria que faz do sonho a imagem de um desejo, com
este exemplo em que, numa espécie de reflexo flamejante, é justamente uma realidade
que, quase decalcada, parece aqui arrancar o sonhante de seu sono? Por que, se não para
nos evocar um mistério que não é outra coisa senão o mundo do além, e não sei que
segredo partilhado entre o pai e esse filho que lhe vem dizer – Pai, não vês que estou
queimando? Do que é que ele queima? – senão do que vemos desenhar-se em outros
pontos designados pela topologia freudiana – do peso dos pecados do pai, que carrega o
fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-
do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei – mas a herança do pai é aquilo que
nos designa Kierkegaard, é seu pecado.
O fantasma de Hamlet surge de onde? – senão do lugar de onde ele nos
denuncia que é na flor de seu pecado que ele foi surpreendido, ceifado – e longe de dar
a Hamlet as proibições da Lei que podem fazer subsistir seu desejo, é de uma profunda
dubitação desse pai ideal demais que se trata a todo instante.
Tudo está à mão, emergindo, nesse exemplo que Freud coloca ali par nos
indicar de algum modo que não o explora, que o aprecia, que o pesa, o degusta. É desse
ponto mais fascinante que ele nos desvia, para entrar numa discussão concernente ao
esquecimento do sonho e ao valor de sua transmissão pelo sujeito. (S. XI, p.37-38)

Ao introduzir a sua análise construindo uma argumentação pautada pela via da


ética do inconsciente por meio do que se encontra o próprio Freud remetido ao seu
desejo, Lacan destaca a via do desejo irremediavelmente ligada à via da interdição da
Lei, da injunção do Nome-do-Pai.

Se podemos e devemos separar o desejo do complexo neurótico é porque aquilo


que torna a mãe desejável no próprio Édipo é a presença, nela, do objeto denominado de
objeto “a”. Um objeto que de modo algum está ligado à figura materna, mas que é
essencialmente deslocável e substituível. É desse objeto que a lei da castração
pressupõe o apagamento, porém ligando-o, mais além da pulsão, ao desejo do Outro.
Aí está, pois, o mistério do pensamento lacaniano: a lei da castração tal como
decorre do significante e da fala. Uma lei positiva, que me intima a desejar. E a desejar
o desejo do Outro. E seu efeito necessário – e ao qual, aliás, não se pode escapar – é a
castração. Uma lei em relação à qual o erro (pois existe o erro) está em “renunciar ao
próprio desejo (= neurose). Da mãe não se trata, salvo para mostrá-la como o mito
impossível do Bem Soberano e do gozo absoluto. Essa lei, imposta àquele que fala,
assujeita, e assim faz surgir o sujeito do desejo (...). (Juranville, 1987, p.98)

Segundo Lacan (1998):


(...) Talvez vejamos melhor do que se trata apreendendo o que é que motiva o
surgimento da realidade representada – a saber, o fenômeno, a distância, a hiância
mesma, que constitui o despertar.
(...) Lembrem-se daquele pai infeliz, que foi, no quarto vizinho ao em que seu
filho morto repousava, repousar um pouco – deixando o filho à guarda, nos diz o texto,
de um velhote, de um outro velho – e que é atingido, despertado por algo que é o quê? –
não apenas a realidade, o choque, o Knocking, de um ruído feito para tornar a chamá-lo
ao real, mas aquilo traduz, precisamente no seu sonho, a quase-identidade do que se
passa, a realidade mesma de uma vela tombada e que vai pegar fogo na cama em que
seu filho repousa.
80

Aí está uma coisa que parece pouco adequada para confirmar a tese de Freud na
Traumdeutung – que o sonho é a realização de um desejo.
Vemos surgir aqui, quase que pela primeira vez na Traumdeutung, uma função
do sonho que é, aparentemente, secundária – o sonho aqui não satisfaz à precisão de
prolongar o sono. O que quer então dizer Freud quando coloca ali, naquele lugar,
precisamente aquele sonho, e acentuando que ele é em si mesmo plena confirmação de
sua tese quanto ao sonho?
(...) A questão que se coloca, e que de resto todas as indicações precedentes de
Freud nos permitem produzir agora, é – O que é que desperta?Não será, no sonho, uma
outra realidade? – aquela realidade que Freud nos descreve assim – (...), que a criança
está perto de sua cama, (...) pega-o pelo braço e lhe murmura em tom de reproche (..)
Pai não vês, (...), que estou queimando?
Há mais realidade, não é, nesta mensagem, do que no ruído pelo qual o pai
também identifica a estranha realidade do que se passa na peça vizinha. Não será que
nessas palavras passa a realidade faltosa que causou a morte da criança? O próprio
Freud não nos diz que, nesta frase, é preciso reconhecer o que perpetua para o pai essas
palavras para nunca mais separadas do filho morto que lhe terão sido ditas, talvez,
supõe Freud, por causa da febre – mas, quem sabe, talvez que essas palavras perpetuem
o remorso do pai, de que aquele que ele colocou perto da cama de seu filho a ser velado,
o velhote, não estaria talvez à altura de bem desempenhar sua tarefa, (...), ele não estará,
talvez, à altura de sua tarefa. Com efeito, ele dormiu. (S XI, p.58-59)

Do encontro com a falta, do encontro com o real do desejo:

Esta frase dita a propósito da febre – não será que ela lhes evoca aquilo que,
num dos meus últimos discursos, chamei a causa da febre? A ação, por mais pressurosa
que El seja, conforme toda verossimilhança, de acodir ao que se passa na peça vizinha –
não é ela talvez, também, sentida como de todo modo, agora,tarde demais – em relação
ao de que se trata, à realidade psíquica que se manifesta na frase pronunciada? O sonho
prosseguido, não é ele, essencialmente, se assim posso dizer, a homenagem à realidade
faltosa – a realidade que não pode mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num
infinitamente jamais atingido despertar? Que encontro pode haver daí por diante com
esse ser inerte para sempre – mesmo a ser devorado pelas chamas – senão aquele que se
passa justamente no momento em que a chama, por acidente como por acaso, vem se
juntar a ele? Onde está ela, a realidade, neste acidente? Senão que algo se repete, mais
fatal em suma, por meio da realidade – de uma realidade em que aquele que estava
encarregado de velar junto ao corpo ainda permanece dormindo, mesmo aliás quando o
pai acode depois de ter acordado.
Assim, o encontro sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre
aquele que dorme ainda e cujo sonho não conheceremos e aquele que só sonhou para
não despertar.
Se Freud, maravilhado, vê aqui confirmada a teoria do desejo, isto é mesmo
sinal de que o sonho não é apenas uma fantasia preenchendo uma aspiração.
Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto
pegando seu pai pelo braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no
sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. É
no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um
ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois que ninguém
pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai – isto é, nenhum
ser consciente.
Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto – mesmo
fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai – a
verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente.
81

(...) Mas o que era então esse acidente? – quando todo mundo dorme, ao mesmo
tempo aquele que quis repousar um pouco, aquele que não pode manter a vigília, e
aquele de quem, sem dúvida, diante de seu leito, alguém bem intencionado poderia
dizer – Parece até que está dormindo, quando dele só sabemos uma coisa, que nesse
mundo inteiramente sonolento, apenas sua voz8 se fez ouvir – pai, não vês que estou
queimando. Esta frase, ela própria é uma tocha – ela sozinha põe fogo onde cai – e não
vemos o que queima, pois a chama nos cega sobre o fato de que o fogo pega no
Unterlegt, no Untertragen no real.
(...) Espero ter conseguido fazê-los apreender o que, do encontro como para
sempre faltoso, aqui é nodal e sustenta realmente, no texto de Freud, o que lhe parece,
neste sonho, absolutamente exemplar.
(...) O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho
revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual lá só
existe um lugar-tenente. Lá está o real que comanda, mais do que qualquer outra coisa,
nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós. (Lacan, 1998, S XI, p. 60-
61)

Finalmente,

Será que a realidade que determina o despertar é mesmo o leve ruído contra o
qual o império do sonho e do desejo se mantém? Não será mais outra coisa? Não será o
que se exprime no fundo da angústia desse sonho? – isto é, o mais íntimo da relação do
pai ao filho, e que vem a surgir, não tanto nessa morte quanto no fato de ela estar mais
além, no seu sentido de destino.
Entre o que acontece como que por acaso, quando todo mundo dorme – a vela
que vira e o fogo nos lençóis, o evento insensato, o acidente, a má sorte – e o que há de
percuciente, ainda que velado, no Pai, não vês que estou queimando – há a mesma
relação com que lidamos numa repetição. É o que, para nós, se figura na apelação de
neurose de destino, ou de neurose de fracasso. O que é falhado não é a adaptação, mas
tique, o encontro. (Lacan, 1998, S XI, p.70)

8
Grifo nosso.
82

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