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O DESEJO
O PERCURSO FILOSÓFICO E DE FREUD ACERCA DA TEORIA DO DESEJO
São Paulo
2008
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
O presente estudo se inscreve numa dupla vertente discursiva. Num primeiro
momento, privilegia o discurso filosófico acerca do tema do desejo, apontando uma
argumentação que se desloca do desejo do Ser ao desejo no humano correspondente a
um percurso cronológico que contempla a crescente ascensão da razão e o advento do
sujeito do conhecimento. Num segundo momento, é o desejo em Freud que está em
causa. No Projeto para uma Psicologia Científica (1950[1895]) e, posteriormente, no
texto prínceps da obra freudiana, A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud lança as
teses fundamentais que lhe permitirão teorizar acerca do desejo, quais sejam: o aparelho
psíquico é um aparelho de memória, portanto, de linguagem; e, os sonhos, a exemplo
das demais formações do inconsciente, são realizações de desejo. Desejo que é
inconsciente, infantil, sexual e cujo sentido é buscado na forma de decifração do “texto
psíquico” onde se coloca, fundamentalmente, a verdade do sujeito enquanto a sua falta.
ABSTRACT
The current study inscribes itself in a double discursive way. In a first moment it
privileges the philosophical discourse regarding the theme of desire, aiming an
argumentation that moves from the being desire to the human desire, correspondent to a
chronological route that contemplates the ascent growing of reason and the advent of
the knowledge subject. In a second moment, it is the desire in Freud that is in question.
On the Project for Scientific Psychology (1950[1895]), and subsequently on the most
important Freudian work, The Interpretation of Dreams (1900), Freud introduces the
fundamental propositions which will allow him to theorize about the desire, which are:
the psychological system is a memory system, therefore, the language one; and, the
dreams, as example of the other unconscious formations, they are the desire realizations.
Desire that is unconscious, childish, sexual, and which meaning is searched in a
deciphering way of the “psychological text” where it is stated, basically, the truth of
subject while his lack.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ………………………………………………………………. 5
INTRODUÇÃO
sujeito falante, do sujeito ativo da “reivindicação”, aquele que diz “eu” (“je”), “eu”
(“moi”), nos interstícios de suas questões balbuciantes, essa “subjetividade sem
interioridade” que se manifesta apenas pela insistência ainda enigmática de suas
exigências, sensatas ou, loucas, de seus comportamentos, repetitivos ou desviantes (...).
(Ogilvie, 1991, p.17)
1
Nossa tradução.
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Será apenas com Freud que a assimilação entre pensamento e consciência será
radicalmente colocada em questão. Isso, a partir da via analítica, na clínica, e ao se
debruçar para entender justamente aquilo que falha, que marca sua presença por uma
ausência e que carrega a impressão de uma familiar estranheza. A saber, o inconsciente,
ou, mais especificamente, as chamadas formações do inconsciente.
Assim, no caso de Freud, o inconsciente remete a um sentido, que urge ser
decifrado na qualidade de um “texto psíquico”, portanto, de uma linguagem, enquanto
portador de uma verdade sobre o sujeito, sobre a sua falta. Esse é o caso dos sonhos,
entendidos como realizações de desejo. Além disso, o inconsciente freudiano remete a
uma pulsão.
No percurso da apreensão do conceito do desejo, no campo de uma reflexão
propriamente filosófica pode-se indagar sobre o sujeito do conhecimento e o objeto
deste conhecimento no cerne do questionamento filosófico.
(...) esse questionamento tem um objeto, assim como em toda pergunta, e esse
objeto é o saber. (...) a indagação enquanto filosófica pressupõe uma contestação da
resposta enquanto saber. (...) a contestação aqui é a priori, é um pressuposto do
questionamento filosófico. (...) A conseqüência então é que a indagação filosófica
enquanto tal não poderia ser formulada àquele que sabe, ao mestre. A filosofia é, antes
de mais nada, contestação da mestria. Isso é o que efetivamente mostra o diálogo
platônico, onde vemos Sócrates questionar justamente aqueles que se apresentam e que
nós apresentamos como mestres – e fazer surgir a ausência efetiva do saber. Essa
ausência do saber é radical (...). (...) No instante da indagação filosófica, o saber é
radicalmente contestado.
(...) é próprio da radicalidade do questionamento filosófico que, no instante da
indagação, qualquer outro bem desapareça e que o saber seja o bem. É só assim que a
confrontação com a falta do saber assume todo o seu sentido. Mas convém acrescentar
que a indagação filosófica não se concebe isoladamente e que, para além do instante da
pergunta, nenhum refúgio subsiste. O questionamento filosófico se caracteriza,
portanto, pela exigência contraditória de um desejo do saber, de certa maneira
“dramático”, e de uma contestação a priori do eventual saber. Como se houvesse um
saber que fosse preciso saber que não temos. Conhecemos a sorte do dito de Sócrates:
“Sei que não sei”. (Juranville, 1987, p. 55-56)
apoiando-se em dois textos fundamentais, quais sejam, o Projeto para uma psicologia
científica (1950[1895]) e A Interpretação dos Sonhos (1900).
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CAPÍTULO I
A palavra desejo tem bela origem. Deriva-se do verbo desidero que, por sua
vez, deriva-se do substantivo sidus (mais usado no plural, sidera), significando a figura
formada por um conjunto de estrelas, isto é, as constelações. Porque se diz dos astros,
sidera é empregado como palavra de louvor – o alto – e, na teologia astral ou astrologia,
é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus,
siderado: atingido ou fulminado por um astro. De sidera, vem considerare – examinar
com cuidado, respeito e veneração – e desiderare – cessar de olhar (os astros), deixar de
ver (os astros).
Pertencente ao campo das significações da teologia astral ou astrologia,
desiderium insere-se na trama dos intermediários entre Deus e o mundo dos entes
materiais (corpos e almas habitantes de corpos). Os intermediários siderais, eternos e
etéreos, exalam diáfanos envoltórios com que protegem nossa alma, dando-lhe um
corpo astral que a preserva da destruição quando penetra na brutalidade da matéria, no
momento da geração e do nascimento. Pelo corpo astral, nosso destino está inscrito e
escrito nas estrelas e considerare é consultar o alto para nele encontrar o sentido e guia
seguro de nossas vidas. Desiderare, ao contrário, é estar despojado dessa referência,
abandonar o alto ou ser por ele abandonado. Cessando de olhar para os astros,
desiderium é a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos, e o desejo
chama-se, então, vontade consciente nascida da deliberação, aquilo que os gregos
chamavam bóulesis. Deixando de ver os astros, porém, desiderium significa uma perda,
privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta. O desejo chama-se,
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então, carência, vazio que tende para fora de si em busca de preenchimento, aquilo que
os gregos chamavam hormê. Essa ambigüidade do desejo, que pode ser decisão ou
carência, transparece quando consultamos os dicionários vernáculos, onde se sucedem
os sentidos de desejar: querer, ter vontade, ambicionar, apetecer, ansiar, anelar, aspirar,
cobiçar, atração sexual. A oscilação dos significados aparece na diferença sutil de duas
palavras, em português: desejante e desejoso/desejosa. (Chauí, 1990, p.22-23)
Amar até a morte significaria substituir seu próprio ser tal como se assenta
sobre um Ego, sobre um objeto, pelo ser absolutamente desejante do Outro. Isto supõe a
morte do outro como objeto, e sua própria morte. Por que o desejo do sujeito conduz,
para lá do amor, a uma espécie de deserto onde se acha mais perto do seu ser? Eis uma
questão que o mito levanta e para a qual a filosofia anda sempre à procura de resposta.”
(Dumoulié, 2005, p.19)
O desejo não teria como alvo um objeto ou um outro, mas buscaria a si mesmo
no outro. Seria portanto de natureza narcísica, inclusive na heterossexualidade. Ora,
vendo bem as coisas e ouvindo atentamente a história extravagante de Aristófanes, a
ênfase é posta sobretudo na ruptura, na divisão, ou até na castração, como origem do
desejo. (Dumoulié, 2005, p.24)
Tanto esse, pois, como todo aquele que nutre o desejo, deseja o que não está ao
alcance, o que não está presente. Aquilo que ela não tem, o que ela mesma não é e de
que carece, tais são as coisas de que uma pessoa tem desejo e amor. (Platão, 1995, p.71)
Eros é carente e, portanto, deseja, não sendo um deus, mas um daimon (gênio),
ser intermediário entre os homens e os deuses. Filho de Poros (Abundância) e Penia (a
Pobreza, a Penúria, a Carência), Eros é carente, à semelhança da mãe, e cheio de
recursos como o pai, passando a vida a filosofar. “Para filosofar é preciso desejar”
(Dumoulié, 2005, p.26)
Além disso, o amor não é Belo, tratando-se de algo que carece e se põe a desejar.
Não é o objeto amado, mas, aquele que ama. De modo que os homens não procuram a
sua metade, mas, se empenham na busca da felicidade e do bem. Aqui se produz uma
inversão, onde o que Eros deseja não é o Belo, mas, através deste, visa à felicidade em
sua expressão máxima, a imortalidade.
Segundo Dumoulié, empenhados na geração e na imortalidade pela
descendência, os homens morrem por isso. Substituindo o belo pela imortalidade, a
dialética de Diotima aponta o caminho para a imortalidade, paradoxalmente, a morte.
perfeição, a própria beleza no reflexo do ideal do qual se nutre. Porém, numa segunda
leitura, pode-se pensar também num outro tipo de identificação, uma vez que o Belo
enquanto pureza não seria propriamente nada, definindo-se apenas por fórmulas
negativas.
Mas o que será então o rosto desta beleza sem rosto? Se o Belo tem como
função guiar o desejo para uma imortalidade que é o nome glorioso da própria morte, e
se, portanto, lhe cabe o papel de tecer um véu de ilusão entre o desejo e a pulsão de
morte, o Belo em si corresponde a este momento de prazer derradeiro onde se vai rasgar
o véu das belas aparências. Esse gênero de mística do Belo anuncia já tanto a estética de
Schopenhauer e a sua teoria da contemplação como também a metafísica negativa de
Plotino, para o qual o Belo em si é o último clarão do Ser antes da identificação última
com o Não-Ser do Uno. (Dumoulié, 2005, p.30)
um objeto parcial. É disso que se trata por ser a análise um método, uma técnica,
que penetrou no campo abandonado, esse terreno baldio, esse campo excluído
pela filosofia, por não ser manipulável, não acessível à sua dialética, e que se
chama o desejo (Lacan, 1992, S VIII, p.150).
Assim, com O banquete, Platão traz a questão do objeto do desejo que coloca o
paradoxo de buscar o inalcançável, moto contínuo do movimento em direção a algo para
sempre perdido, concebendo-se, portanto, em linguagem psicanalítica, os objetos
parciais do desejo, aproximações imaginárias que, no bojo da insatisfação perene das
demandas, apontam sempre em direção ao real, ao impossível. E o desejo ao mirar o
impossível, a imortalidade, aponta justamente para a morte.
Questões caras à filosofia, é verdade, mas, fundamentalmente, essenciais à
psicanálise. Sobretudo, após a teorização de Lacan sobre o desejo, o que fala da
essência do humano.
Entretanto, ao remeter à filosofia platônica não é possível pensar numa única
concepção concernente ao desejo. A cada obra, em cada momento, se coloca uma tese,
um pensamento em questão.
Nessa obra, Platão aponta o regime da tirania como o pior dos governos possíveis e o
tirano, por excelência, enquanto o homem de desejo, ou melhor, dos desejos, ele mesmo
tiranizado por esta parte selvagem, bestial, da alma. Nessa via argumentativa, “a
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Deve-se, pois, concluir, como faz Schopenhauer, que cita Empédocles, que é
justamente o Ódio que move a vida. Mas isto conduz a este novo paradoxo que um
mundo de puro Amor seria um mundo sem vida e, portanto, que o Ódio é uma força de
vida. De fato, sejam quais forem as distinções entre os princípios, tendem ambos ao
mesmo fim: a morte. E o desejo de morte parece precisamente a lei única do universo.
(...) Entre a diferença absoluta da pulsão de morte, produzida pelo trabalho separador do
Ódio e a união absoluta do Amor, guiado por uma espécie de princípio de Nirvana, é
sempre a morte que cada ciclo promete ao ser vivo. Uma errância entre duas mortes, eis
o destino do mundo! E o que deseja Empédocles? Conseguir, à força de purificações,
escapar ao ciclo das reencarnações. (Dumoulié, 2005, p.41)
O termo entre-duas-mortes, por sua vez, remete à leitura psicanalítica que põe
em causa a precipitação do desejo – ser-para-a-morte – num sujeito imerso, por sua vez,
em uma lógica mortífera do automatismo da repetição.
Em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, ao
apontar o momento inaugural em que o desejo se humaniza, momento em que o sujeito
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(...) que conviria recorrer, na medida em que sua exterioridade periférica e sua
exterioridade central constituem apenas uma única região.
Esse esquema satisfaz a circularidade sem fim do processo dialético que se
produz quando o sujeito se apercebe de sua solidão, quer na ambigüidade vital do
desejo imediato, quer na plena assunção de seu ser-para-a-morte. (Lacan, 1998, E,
p.322)
Indo contra a tendência metafísica que, desde Platão até Descartes, tenta separar
as faculdades ou as partes da alma, Aristóteles afirma a unidade do apetite (hormè),
através do ser vivo como através das faculdades sensitivas e cognitivas do homem. Essa
unidade da pulsão desejante é ontologicamente confirmada pela direção do seu olhar,
que sempre visa um bem, e talvez, para o homem, o Bem. Aristóteles abre assim, na
metafísica ocidental, o caminho para uma nova concepção do desejo, não fundada sobre
a falta, a carência ou a necessidade, mas sobre a afirmação de uma potência em
movimento. Esta concepção, positiva, encontrou a sua expressão culminante com
Espinoza. (Dumoulié, 2005, p.50)
(...) o desejo do homem, quando não tem o caráter divino do sábio, obedece ao
princípio de desprazer, quer aquilo que é ácido, amargo e doloroso. Aí ainda, essas
observações de Aristóteles anunciam a invenção deste princípio freudiano que ele se viu
forçado a colocar diante do princípio de prazer: a pulsão de morte (ou, pelo menos, o
reconhecimento do excesso como dimensão do desejo).
(...) Quais são então esses prazeres conformes à natureza do homem? (....) A
estes verdadeiros prazeres, que nos fazem enveredar pelo caminho do verdadeiro
desejo, consagra Aristóteles os últimos capítulos de sua Ética. Um deles é a philia, ou
amizade. Forma a mais sublime do desejo humano, virtude social, familiar e política,
ela constitui o fim da moral individual e o grau supremo da ética. Além nada existe
senão a contemplação da divindade, modelo verdadeiro do prazer, ao qual é consagrado
o último capítulo. (Dumoulié, 2005, p.55)
Finalmente,
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Ataraxia (Do grego ataraxia: ausência de perturbações). Designando o ideal do sábio para a maioria dos
filósofos da Antiguidade, a ataraxia é identificada pelos estóicos à apatia, ou seja, ao estado da alma que
se tornou alheia às desordens da paixão e insensível à dor. (Durozoi, 1993, p.44)
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(...) Que o fim supremo do desejo é a imortalidade, isto já fora afirmado por
Platão e Aristóteles, mas a valorização do Belo como guia infalível para o Uno é a
marca do neoplatonismo de Plotino.
(...) Embora esteja além de toda percepção e quase de todo pensamento, o Belo,
em Platão, o Primeiro Motor, em Aristóteles, são sempre objetos de desejo. (Dumoulié,
2005, p.61-62)
Isto sugere o que se deve entender como desejo do Outro: uma indigência, uma
submissão física e sexual, uma alteridade e uma alteração, uma situação e uma posição
femininas, tudo isto associado certamente a uma desvalorização da matéria. Se, para
repetir uma célebre fórmula de Lacan, o desejo do homem é o desejo do Outro,
compreende-se que a glorificação metafísica do desejo do Uno é acompanhada de uma
desqualificação, ou até de um desconhecimento do desejo do homem, condenado a ser
posto, sem demora, entre as mãos do diabo. (Dumoulié, 2005, p.65)
Finalmente,
Uma atividade isenta de todo desejo, de todo interesse, mesmo que fosse a mais
elevada espiritualmente, é impensável para um grego. Mas isto se deve, sobretudo, a
uma concepção filosófica e moral do homem cujo reflexo se vê no vocabulário: não
existe nenhum termo, no grego antigo, que corresponda à noção moderna de vontade
nem, sobretudo, de livre-arbítrio. Eis-nos aqui, de novo, às voltas com a oposição entre
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grego e cristão, estabelecida por Nietzsche. A moral cristã, baseada sobre o livre-
arbítrio, supõe a existência de uma vontade autônoma, regida pelo princípio exclusivo
da razão, absolutamente distinta do desejo. Assim, todo o discurso de Descartes, em As
paixões da alma, tem por objeto efetuar entre a vontade e os desejos uma divisão tão
categórica como entre a alma e o corpo. O objetivo é preservar o caráter infinito da
liberdade como também a absoluta autonomia da vontade. O ponto culminante dessa
divisão vai ser atingido com Kant. Para este filósofo, a vontade longe de ser um ato de
deliberação ou mesmo uma faculdade capaz de optar, identifica-se com o exercício da
razão pura. Esta redução do homem ao racional e do desejo aos desejos animais, a uma
espécie de enormes feras que rugem dentro de nós e que a vontade pode reduzir ao
silêncio, leva a termo, segundo a palavra de Nietzsche, “uma castração” do homem. Ela
tem um primeiro efeito filosófico: a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de
compreender daqui para a frente os mecanismos do desejo. (Dumoulié, 2005, p.78-79)
Finalmente,
Não foi sem razão que Freud resgatou o termo “libido” para designar a potência
do desejo. Numerosas noções psicanalíticas, como, por exemplo, pulsão de morte,
compulsão de repetição, inquietante estranheza, possuem conotações diabólicas. O
desejo está em falta, pois está em carência, ele é falta, carência. A definição de O
Banquete terá produzido conseqüências fatais. Mas até da própria carência o homem é
capaz de fazer uma potência. A força do negativo como motor da consciência e da
história em Hegel, o nada como força de ser em Sartre, comprovam que o homem, da
sua carência, pode fazer uma potência. Através da própria negatividade afirma-se o
desejo. (Dumoulié, 2005, p.83-84)
Se o desejo não é amor de Deus, então remete à libido, em suas diversas facetas
de concupiscência, terreno do diabo, “do divisor (dia-bolos)”. Concupiscência, a saber,
da carne e dosa sentidos, dos olhos, da curiosidade, enfim, da soberba.
Pelo fim da Idade Média, o período barroco remete a um contexto de plena crise
de valores em que se encontram abalados, tanto a ordem antiga como o sistema do
mundo.
Para isso concorrem, Galileu Galilei ao propor uma nova cosmogonia
destacando o fim do sistema geocêntrico que afirmava a terra como o centro do
universo; a filosofia política de Maquiavel, em que os fins justificam os meios; o
ceticismo de Montaigne, no campo intelectual, em sua crítica da razão como fonte da
verdade; e, finalmente, a Reforma, no campo religioso.
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Mas, é graças à análise do mito de Don Juan, que Kierkegaard foi um dos
primeiros a introduzir o desejo do homem na história da filosofia. (Dumoulié, 2005,
p.93)
Don Juan representa o desejo que “encontrou o seu objeto absoluto e o deseja de
maneira absoluta”, este desejo “verdadeiro, triunfante, irresistível e demoníaco”, é, para
Kierkegaard, o “desejo desejante”. Na medida em que “o seu objeto é a sensualidade e
somente ela”, não poderia nascer a não ser do cristianismo que havia erigido esta última
em princípio. Como esse desejo é absoluto, deseja, em cada mulher particular, toda a
feminilidade. A Grécia não conhecia senão o amor intelectual das belas
individualidades e não foi capaz de inventar o tipo do sedutor cujo desejo,
exclusivamente sensual, é, por natureza, enganador, mentiroso, pérfido, “demoníaco”.
(Dumoulié, 2005, p.94)
Finalmente,
Em Lacan, a referência hegeliana, por mais ampla, não podia explicar senão
parcialmente a dialética do desejo. (....) A volta a Kant permitiu elaborar uma dialética
transcendental, fundada sobre uma lógica subordinada à categoria da Coisa. Esta última
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noção, enfim, permite romper com o lastro do pensamento freudiano em uma metafísica
da representação. O desejo (...) tinha, para Freud, sua origem em uma satisfação
primeira que se inscrevia no psiquismo sob a forma de traço mnêmico. Todo objeto do
desejo não é, portanto, mais que um substituto do prazer primeiro um dia vivido e
proporcionado por esse objeto perdido que é o corpo da mãe. Uma concepção como esta
(...) constitui aquilo que Lacan denominou “o mito de Freud”. O termo Coisa serve para
denunciar o caráter mítico desse primeiro momento e para dizer que no horizonte de
todos os objetos do desejo não se acha um objeto perdido, mas a perda como tal, a
própria perda, a carência elevada ao grau de categoria ou idéia reguladora do desejo.
A Coisa, enquanto incondicionado absoluto do desejo, tem a mesma função de
Deus na Crítica da razão pura: incognoscíveis, fora do alcance da razão, porque fora do
simbólico, são todavia exigidos como princípios reguladores de onde procedem tanto a
possibilidade do conhecimento como a do desejo.
O objeto a, é, portanto, assimilável a um objeto transcendental “causa do
desejo”, segundo a fórmula de Lacan, que permite articular um objeto empírico
desejado com o sujeito do desejo ou a categoria da Coisa. Esta é a tradução mais
“transcendental” do algoritmo lacaniano do fantasma: S ◊ a. (Dumoulié, 2005, p. 139-
140)
Esses objetos do fantasma têm, todos eles, relação com os objetos da pulsão, os
quais possuem por essência, (...) a carência. Tiram seu privilégio do seu caráter
destacável: são o seio, o excremento, a voz e o olhar. Cabe, com efeito, a Lacan o
mérito de haver mostrado que voz e olhar funcionam no fantasma como verdadeiros
objetos tomados no campo do desejo do Outro. Esses objetos, com efeito, a criança
supõe que o Outro os deseja. (...) O valor desse objeto é com toda a certeza determinado
pela satisfação libidinal, de excitação da zona erógena, que sua emissão provoca.
(Dumoulié, 2005, p.140)
Finalmente,
Graças à retirada da Coisa, existem objetos para o desejo, mas nenhum deles é o
objeto último do desejo, porque não há outro fim a não ser a carência onde vai haurir
seu recurso.
A verdade do desejo, enfim, tal como é implicada pela dimensão da Coisa, está
contida na definição heideggeriana do homem como “ser-para-a-morte”. Por esse
prisma, Lacan dá uma significação existencial à pulsão de morte, que está justamente no
coração do homem como ser falante e sexuado, na medida em que, para o homem, “a
pulsão presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, na sua essência, a morte”
(Lacan, Seminário XI). (Dumoulié, 2005, p.142)
Da mesma forma que é o gênio da espécie que deseja em nós, é ele que goza. O
gozo, para o homem, é sempre o da Coisa ... em si. Aqui se acha um ponto em que
Schopenhauer coincide com as análises do Banquete: o desejo que impele o homem a
procriar é o desejo da imortalidade, mas aqui ainda se trata de novo de um engodo, dado
que apenas a espécie sobrevive.
No desejo, o homem é quem sai logrado. (Dumoulié, 2005, p.104)
Em relação à teoria lacaniana, por sua vez, podem ser apontados pontos de
convergência com o pensamento de Schopenhauer. O primeiro ponto diz respeito à
negação da dualidade das pulsões de vida (Eros) e das pulsões de morte (Thanatos),
dualidade correspondente à última teoria freudiana.
ou a criança nascitura, são imagens que dizem o principal e fazem entrar em cena este
terceiro essencial à constituição do desejo.
Enfim, pode-se encontrar no finalismo metafísico de Schopenhauer uma
imagem, por assim dizer invertida, desta espécie de transcendentalismo lacaniano que
situa no significante a origem a priori da constituição do sujeito e da realização da sua
história.
(...) Ao inverter o finalismo schopenhaueriano, e colocando-se do ponto de vista
da gênese do sujeito, essas fórmulas dizem até que ponto o seu nascimento está
submetido a determinações simbólicas e imaginárias, muito anteriores ao seu
nascimento biológico. É, na sua expressão mais pura, aquilo que o significante quer
dizer. Seria necessário acrescentar que a noção de Coisa, tão essencial à teoria de
Lacan, cujas nobres origens kantianas e heideggerianas são abertamente reconhecidas,
tem ocultas e profundas ligações com a Coisa em si schopenhaueriana, a Vontade de
gozo cega e mortal. (Dumoulié, 2005, p.110-111)
(...) De fato, não é nada disso; o valor é sempre relativo a uma dada situação –
seu estudo participa, portanto, ao mesmo tempo de uma genealogia e de uma ontologia,
ou seja, é preciso encontrar no homem um princípio de existência que dê sentido ao que
ele pode viver: será o Desejo (“essência do homem”) que afeta simultaneamente o
corpo e o espírito e afirma uma tendência a perseverar no ser (conatus).
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(...) Espinosa recusa a imagem do homem que, pela paixão e pelo desejo,
perturbaria a ordem natural. O desejo não é juízo, opinião desnaturada, hábito
artificioso, mas “essência atual de um homem determinado”, seguindo necessariamente
as leis naturais, em toda parte e sempre unas e as mesmas.
(...) O desejo não nos põe contra a Natureza nem fora dela: simplesmente
determina a maneira como nela nos inserimos para sermos passivamente sua parte ou
para, ativamente, nela tomarmos parte. (Chauí, 1990, p.58-59)
Assim, para Espinosa, o homem é causa adequada, ou ativo, quando algo acontece nele
ou fora dele dependendo apenas do seu ser e por ele explicando-se inteiramente. Por sua vez, o
homem é causa inadequada, ou passivo, quando encontra fora de si a razão de seu desejo.
(...) ser causa adequada é encontrar na força interna do corpo e da alma a razão
plena de nosso desejo. Eis porque o desejo é definido por Espinosa como causa
eficiente que pode ser determinada do exterior, na paixão, e do interior, na ação. No
entanto, e isso é essencial, quer causa inadequada quer causa adequada, o desejo é
sempre conatus, esforço de perseveração da existência. (Chauí, 1990, p.60-61)
(...) Alfa e ômega da essência humana, o desejo é o que nos faz agir e abarca a
totalidade da vida afetiva, não se distinguindo do apetite, do impulso ou da volição. (...)
Espinosa marca o desejo com o selo da mais profunda singularidade, não só por defini-
lo como causa eficiente, mas também por fazê-lo depender de “uma afecção
determinada” que o torna extremamente variável sem conteúdo prefixado. Nele e com
ele é tecida a irredutível individualidade de nossas vidas. Somos desejo e nossos desejos
são nós. Dependendo das afecções atuais do corpo e seus afetos na alma, na paixão o
desejo é determinado pelas causas externas, delas depende e com elas varia, faz-se
contrário a si mesmo e nos arrasta ao desamparo. A tradição pediria, então, que
Espinosa completasse sua definição oferecendo o papel imperial e moderador da razão.
Mas Espinosa não é dócil à tradição e percorrerá caminho insólito.
(...) a imaginação pode levar-nos a confundir imagens e idéias, operação
corporal e operação intelectual. (...) A imagem nada nos ensina sobre a natureza de
nosso corpo, dos outros corpos, de nossa alma e das outras almas, pois sua função não é
ensinar e conhecer, mas representar relações. A imagem é como um véu interposto entre
nós e nós mesmos, cenário que leva a alma a exercer sua espontânea aptidão de
encadeamentos sem, contudo, dispor das razões do que encadeia, fabricando cadeias
imaginárias de causas, efeitos e finalidades abstratas com que supre a carência de
pensamentos. Por isso os desejos imaginários nos arrastam em sentidos opostos e nos
deixam desamparados, amando e odiando as mesmas coisas, afirmando-as e negando-as
ao mesmo tempo. Ocultando-nos de nós mesmos, o véu das imagens induz à inversão
do desejante: cremos que o desejado/indesejado é a causa do desejo/aversão que
vivenciamos. Não só estamos possuídos pela exterioridade, mas nela depositamos nosso
ser e nossa vida, arriscados à perda iminente e contínua, ameaçados pela frustração e
pela insaciável carência. Acercamo-nos perigosamente do grau zero de realidade,
enfraquecidos de corpo e alma. (Chauí, 1990, p.62)
É extremamente rico poder pensar que estão aí, em germe, alguns temas
fundamentais da psicanálise e, em especial, da teoria proposta por Lacan.
Primeiramente, a questão da contradição, do conflito, e da dialética, algo a ser
eliminado do sistema espinosano, e que é justamente a essência do humano na forma
como é entendido para a psicanálise (Freud-Lacan). A dialética, mais especificamente,
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que é tão cara a Hegel em seu idealismo, diferentemente do universo espinosano, como
se verá adiante.
Se, em Espinosa o desejo é a essência do homem – desejo como positividade,
dentro de um sistema de encadeamento de causas e efeitos –, para Lacan, desejo,
contrariamente, será o signo da falta no humano, expressão simultânea de algo marcado
desde sempre pelo corte da insatisfação e, regulador, impulsionador do movimento do
sujeito, e por isto fundamento do humano enquanto sujeito do seu desejo.
Entretanto, também é possível e interessante pensar, mantidas as devidas
proporções, nesse suposto encadeamento de causas e efeitos determinante do homem e
sua eventual ressonância com a cadeia de significantes, como abordada em Lacan, algo
originário do e no Outro e com que o sujeito terá que se ver no decurso de seu trabalho
subjetivo em direção à conquista do próprio desejo.
Por sua vez, a entrega à exterioridade, em Espinosa, remete a um estado de perda
iminente, de inevitável frustração e insaciável carência. Contrariamente a este cenário, o
desejo é apresentado como expressão de uma positividade, sempre remetendo a um
esforço de perseveração da existência. Em Lacan, aparentemente também podemos
pensar no desejo como a perseveração da existência, da afirmação de um sujeito que, no
entanto, se define enquanto tal, justamente, como falta-a-ser, enquanto um sujeito único
e desejante e, portanto, em falta.
Além disso, coloca-se a questão da imaginação, em termos espinosanos,
condição de obnubilação do homem, confundindo-o em relação à razão e ao seu desejo.
Ponto extremamente importante de ser compreendido no sistema espinosano e que terá
todo um desenvolvimento na teoria lacaniana, se pudermos concebê-lo aproximado a
um dos três registros, a saber, o imaginário. Imaginário, por sua vez, constituinte das
estruturas subjetivas e condição de possibilidade da compreensão dos sujeitos, suas
ações e interações, bem como, da dinâmica como um todo, juntamente com os outros
dois registros, quais sejam: o simbólico e o real.
Por último, destaca-se o desejo enquanto expressão da singularidade do humano
e de sua essência.
(...) Se desejar saber for sentido por nós como alegria e amor intelectual e se
ignorar for por nós experimentado como fraqueza e tristeza, a razão iniciará seu
percurso no interior do desejo. Levantar o véu das imagens rumo às idéias é o ato
inaugural com que alma se torna capaz de compreender que o desejo tem nos outros
(humanos e coisas) apenas a ocasião, mas como causa nosso esforço para perseverar na
existência e que, portanto, o desejo se origina em nós e parte de nós rumo aos outros e
36
(...) o desejo supõe a representação de uma causa que determine a ação [IV, 61].
Começam deste modo o extravio e o erro do desejo: Em lugar de se voltar para a
emanação interior do conatus, o espírito vai procurar no exterior pretensos objetos
causas do desejo. Em lugar de querer o que julgamos desejável em função da nossa
essência, cometemos o equívoco de procurar nas coisas a origem do desejo e os
motivos do desejável. A definição do objeto a por Lacan, como objeto
fantasmático causa do desejo, mas não objeto verdadeiro do desejo, encontra
aqui a sua origem filosófica. Assim como a diferença essencial, para a
psicanálise, entre o afeto e a sua representação, e a idéia segundo a qual não
temos nunca acesso direto ao afeto, menos ainda à pulsão, mas sempre a seu
representante (Triebrepraesentant), ou quem sabe ao “representante-
representação” (Vorstellungsrepraesentant), segundo os termos de Freud.
(Dumoulié, 2005, p.149-150)
37
Para além, o que Safatle recupera a partir de uma leitura criteriosa de Hegel e
Lacan é a proximidade entre ambas as teorias em relação ao sujeito ou consciência-de-
41
(...) quanto mais produz, criando sempre mais possibilidades de satisfação, tanto
mais o capitalismo gera a impossibilidade de satisfazer suas necessidades.
Assim, de acordo com Marx, todo o projeto da economia capitalista consiste em
manter os trabalhadores no máximo estado de indigência e persuadi-los a
renunciar ao desejo. (Dumoulié, 2005, p.128)
uma consciência que seria “o fundamento do seu próprio ser-em-si pela pura
consciência que tomaria de si mesma”. Esta é, na concepção de Sartre, a exata definição
de Deus. E daí ele infere: “O homem é fundamentalmente desejo de ser Deus”. (...) a
existência significa pôr em situação concreta esse desejo que sempre segue, portanto,
caminhos empíricos e atesta sua liberdade inventando os próprios fins. Por isso deve-se
reconhecer que o “o desejo de ser sempre se realiza como desejo de maneira de ser”.
(...) a verdade do Desejo que é também a verdade da liberdade. (...) No entanto, a
filosofia sartreana do desejo ainda continua tributária de uma teoria da consciência
determinada pela preocupação do reconhecimento. Vai caber a Lacan o mérito de haver
integrado a problemática hegeliana a uma teoria do desejo fundada sobre o
inconsciente. (Dumoulié, 2005, p. 130)
(...) Com efeito, somos forçados a usar metáforas quando queremos definir o
Ser e pensar o mundo. Prisioneiros da linguagem e do nosso sistema de interpretações,
ou de representações, vemo-nos obrigados a antropomorfizar o mundo, isto é: projetar
sobre ele noções que são próprias de nossa vida e de nossa experiência. O mesmo
acontece com a vontade. (Dumoulié, 2005, p.155)
45
(...) se viver supõe o acréscimo da potência, isto implica que se questione toda
posição dominante, inclusive se isto redundar em detrimento do próprio bem-estar.
Enquanto os fracos e enfermiços idolatram a potência, o poder, os fortes, os verdadeiros
“potentes”, os de verdade poderosos são seres de desejo cuja vontade afirmativa quer
sempre dar outra vez uma chance a possibilidades novas de vida e de interpretações.
(Dumoulié, 2005, p.156)
CAPÍTULO II
O DESEJO EM FREUD
Desejo – D.: Wunsch (às vezes Begierde ou Lust). – F.: désir ou souhait. – En.:
wish. – Es.: deseo. – I.: desiderio.
Na concepção dinâmica freudiana, um dos pólos do conflito defensivo. O desejo
inconsciente tende a realizar-se restabelecendo, segundo as leis do processo primário, os
sinais ligados às primeiras vivências de satisfação. A psicanálise mostrou, no modelo do
sonho, como o desejo se encontra nos sintomas sob a forma de compromisso.
A definição mais elaborada refere-se à vivência de satisfação (...) após a qual
“(...) a imagem mnésica de uma certa percepção se conserva associada ao traço mnésico
da excitação resultante da necessidade. Logo que esta necessidade aparecer de novo,
produzir-se-á, graças à ligação que foi estabelecida, uma moção psíquica que procurará
reinvestir a imagem mnésica desta percepção e mesmo invocar esta percepção, isto é,
restabelecer a situação da primeira satisfação: a essa moção é que chamaremos desejo; o
reaparecimento da percepção é a ‘realização de desejo” (Freud, A Interpretação de
Sonhos, p.594-595).” (Laplanche, 1997, p.113-114)
auto-erotismo (aliás, a via do desejo, para Lacan, aponta o sujeito remetido a uma
demanda de amor em relação ao Outro).
Desse modo, a satisfação primeva remeteria a algo inalcançável, inapreensível,
tanto em termos de sua representação, dada a precocidade da situação, bem como do
aparelho mnêmico – que se constitui justamente a partir dessa marca de satisfação –,
quanto pelo fato de algo do Outro e impossível de ser apreendido pelo sujeito aqui se
inscrever, fisgando o sujeito ao mesmo tempo numa linhagem significante de filiação,
história familiar, num percurso de demandas e desejos, mas, simultaneamente,
arrebatado por uma falta primordial, significante, agora, concernente ao ser do sujeito,
sua verdade, seu desejo, seu traço. Daí entender-se também, a constituição do desejo
segundo o modelo da alucinação primitiva.
3
Kaufmann, 1996, p.114-115.
49
Entretanto, mesmo que o seu desejo possa ter sido causa da psicanálise, a causa
psicanalítica não se confunde com ele. E a causa freudiana, menos ainda:
profundamente perdida, não opera senão em falta constante, suscitando um
movimento contínuo, em detrimento de eventuais identificações imaginárias aos
desígnios de algum ideal de saber suposto.
No limite, cada analista é responsável pela própria autorização, que de
ninguém mais depende, a não ser dele e do seu desejo. Único capitão no barco
além de Deus, na direção da práxis? Pode crer, sempre e quando seja lembrado
que até o Dito Cujo é inconsciente... (Silva, 1994, p.13)
(...) os neurônios aos quais ele [Freud] se refere como constituindo a base
material do aparelho psíquico não correspondem às descobertas da histologia e da
neurologia do século XIX4. O Projeto não é, portanto, uma tentativa de explicação do
funcionamento do aparelho psíquico em bases anatômicas, mas, ao contrário, implica
uma recusa da anatomia e da neurologia da época, e a conseqüente elaboração de uma
“metapsicologia”. (Garcia-Roza, 2001, p.81)
Além disso, os estados de desejo resultam numa atração para o objeto, objeto
este entendido como percepção, lembrança, imagem mnêmica, idéia, representação,
alucinação, objeto real, idéia imaginária, a coisa, etc.
4
Inovadoras na época de sua formulação, só muito recentemente as teses freudianas acerca do
funcionamento neuronal puderam ser “cientificamente” comprovadas.
51
Os resíduos dos dois tipos de experiências [de dor e de satisfação] (...) são os
afetos e os estados de desejo. Estes têm em comum o fato de que ambos envolvem um
aumento de tensão Qη em ψ – produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita e,
no de um desejo, por soma. Ambos os estados são da maior importância para a
passagem [da quantidade] em ψ, pois deixam atrás dele motivações para isso, que se
constituem no tipo compulsivo. O estado do desejo resulta numa atração positiva para o
objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor
leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a
atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária. (Freud, 1996, v.I, p.374)
Além disso,
Para Freud, o fato do sistema psi estar em conexão direta com os estímulos
endógenos faz com que a excitação (Reiz) funcione como orça constante (konstante
Kraft), o que leva a uma exigência de trabalho feita ao sistema psi em função do
aumento do fator intensivo.
A noção de Bahnung, trilhamento, surge em função da concepção freudiana do
sistema psi enquanto um aparelho de memória. Portanto, a memória é constituída por
trilhamentos existentes entre os neurônios. (...) A idéia subjacente é a de que, se
constituirmos trilhamentos preferenciais que facilitam a passagem da intensidade
energética, temos a constituição de circuitos diferenciados e, portanto, a constituição de
uma memória de diferenças a partir dos trilhamentos, o que conduz a uma outra
concepção freudiana: a preferência de caminho, ou ainda, a preferência pela repetição.
(...) Freud afirma, no Projeto, que a memória se faz pela diferença entre os
trilhamentos (Bahnungen). (França, 1997, p.7)
Finalmente,
(...) O objetivo e o sentido dos sonhos (dos normais, pelo menos) podem ser
estabelecidos com certeza. Eles [os sonhos] são realizações de desejos – isto é,
processos primários que acompanham as experiências de satisfação; e só não são
reconhecidos como tal porque a liberação de prazer (a reprodução de traços das
descargas de prazer (...) neles é escassa, pois, em geral, eles seguem seu curso sem afeto
(sem liberação motora). É muito fácil, porém, demonstrar que esta é sua verdadeira
natureza. É justamente por essa razão que me sinto inclinado a deduzir que a catexia de
desejo primária também foi de caráter alucinatório (...). (Freud, 1996, v.I, p.392-393)
Esta plasticidade, aliada à idéia contida na “Carta 52” a Fliess sobre a alteração
na ordem psíquica a partir de perturbações na inscrição, e que levam à possibilidade de
remanejamentos na estrutura, apresenta o esboço de um aparelho onde se opera uma
série de substituições (um significante por outro, como dirá Lacan mais tarde), ou seja,
o processo da metáfora, que será um dos mecanismos dos sonhos a ser apresentado por
Freud em 1900. O que vale aqui ressaltar, no que diz respeito aos sistemas construídos
por Freud no Projeto e na Interpretação dos Sonhos, é que os sistemas que asseguram a
inscrição dos traços de memória sob a forma de trama de trilhamentos estariam
ameaçados pelo excesso de excitação, caso não houvesse um sistema de regulação
através de barreiras, desvios e descargas de excitações. (p.9-10)
Destaca-se, então, no texto do Projeto uma das duas únicas referências de Freud
ao termo a coisa (a outra aparição remete ao texto da Denegação), e que segue:
Suponhamos que, em termos bastante gerais, a catexia de desejo se relaciona
com o neurônio a + o neurônio b, e a catexia perceptiva, com os neurônios a + c. (...)
Comparando o complexo perceptual com outros complexos congêneres, pode-se
decompô-lo em dois componentes: o primeiro, que geralmente se mantém constante, é o
neurônio a, e o segundo, habitualmente variável, é o neurônio b. A linguagem aplicará
mais tarde o termo juízo a essa análise e descobrirá a semelhança que de fato existe [por
um lado] entre o núcleo do ego e o componente perceptual constante e [por outro] entre
as catexias cambiantes no pallium (...) e a componente inconstante: esta [a linguagem]
chamará o neurônio a de a coisa, e o neurônio b, de sua atividade ou atributo – em
suma, de seu predicado (...). (Freud, 1996, v.I, p.380)
O exemplo a que Freud recorre no texto para ilustrar esse processo é o seguinte:
(...) Suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada [pela
criança] seja a do seio materno com o mamilo, vistos de frente, e que a primeira
percepção obtida seja uma visão lateral do mesmo objeto, sem o mamilo. Na memória
da criança há uma experiência, casualmente adquirida no ato de mamar, segundo a qual
a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento da cabeça. A
imagem lateral agora percebida conduz [à imagem do] movimento da cabeça; um teste
experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para se
obter a percepção da imagem frontal. (Freud, 1996, v.I, p.381)
55
O que Lacan destaca é que a busca da satisfação remete a um Outro que não o
objeto da necessidade regulador do prazer(Lust)/desprazer(Unlust). Remetido ao objeto,
centro de referência da experiência de satisfação, o sujeito aponta para uma
exterioridade enquanto centro do seu ser. Daí Lacan falar em “extimidade” – uma
exterioridade íntima. Uma exterioridade que, a partir da Coisa, marca uma distinção
entre o real e a realidade, entre o desejo e a necessidade, sinalizando um movimento de
sujeito.
Algo que nunca foi e nunca esteve presente, está para sempre perdido, e ao
mesmo tempo é a referência da busca de satisfação que o sujeito procura, sem encontrar.
Verdadeira experiência de insatisfação, núcleo do seu desejo. Este é o objeto de que se
trata quando se refere à coisa.
O Ding como Fremde, estranho e podendo mesmo ser hostil num dado
momento, em todo caso como o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o
encaminhamento do sujeito. É sem dúvida alguma um encaminhamento de controle, de
referência, em relação a quê? – ao mundo de seus desejos. Ele faz a prova de que
alguma coisa, afinal, (...) pode servir. Servir a quê? – a nada mais do que a referenciar,
em relação a esse mundo de anseios e de espera orientado ao que servirá, quando for o
caso, para atingir das Ding.
(...) é claro que o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É por sua
natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma coisa
está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando.
O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto,
das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas
coordenadas de prazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada,
em nome do princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais nem
percepção nem esforço.
No final das contas, sem algo que o alucine enquanto sistema de referência,
nenhum modo da percepção chega a ordenar-se de maneira válida, a constituir-se de
maneira humana. O mundo da percepção nos é dado por Freud como que dependendo
dessa alucinação fundamental sem a qual não haveria nenhuma atenção disponível.
(Lacan, 1997, S VII, p.69)
Ressonâncias hegelianas? Talvez. (...) A verdade, porém, é que sua (de Freud)
concepção do aparato psíquico encaixa-se perfeitamente com a tese fundamental de
Hegel de que o desejo do homem é o desejo do outro, ou, se preferirmos, que o desejo
humano é desejo de desejo.
Essa dependência fundamental do aparato psíquico para com a linguagem
coloca outra questão: a do próprio estatuto do aparelho psíquico.
(...) O aparelho psíquico não é psíquico, isto é, aquilo que faz com que esse
aparelho seja um aparelho não é da ordem do psicológico, mas da ordem da linguagem.
58
Título que, como notou Anzieu, faz com que a obra se insira num campo
semântico decididamente suspeito (Traumdeutung, Sterndeutung...) aos homens de
ciência da época. Além disso, o próprio conteúdo da obra é de uma originalidade tão
radical, que, de fato, “surpreendeu o mundo quando de sua publicação”. Dizer que o
sonho tem sentido não foi realmente novidade; mas operar uma distinção entre o
conteúdo manifesto e o conteúdo latente e mostrar que o cerne deste último é
inconsciente, necessitando de um método absolutamente específico para encontrá-lo, e
que, quando isso é feito, o sonho sempre se revela como realização de desejo, sendo
este sempre um conteúdo recalcado e infantil de natureza sexual, é seguramente
encavalar um conjunto de teses que para o leitor não-preparado só pode parecer algo
insólito. Quem se espantou quando Krafft-Ebbing declarou que as teorias de Freud
soavam como “um conto de fadas científico”?
Teses polêmicas, para dizer o mínimo, e aparentemente sustentadas num
método dos mais arbitrários: a associação livre (Freier Einfall)...”. (Monzani, 1989,
p.58-59)
uma memória. Justo, Freud afirma que, em decorrência de uma ausência radical, há um
aparelho que se constitui a partir de uma memória de traços – concebida como
diferenças entre as Bahnungen no sistema psi de neurônios – traços advindos de
impressões (Eindrücken). A novidade de 1900 é que esta memória será constituída
como um texto.
A noção de texto psíquico surge no estudo sobre os sonhos, a partir da idéia de
que o sonho é um emaranhado de imagens que se opõe à lógica da organização pré-
consciente/consciente. Portanto, ao considerar uma outra lógica, a do inconsciente,
Freud indica a divisão entre os sistemas psíquicos e a natureza do interdito do texto
psíquico. O sonho é um texto, uma produção do inconsciente, cuja lógica própria é
passível de deciframento através do código criado pelo sujeito do sonho, sujeito este
descentrado da consciência. Assim, o sonho é um enigma,um texto cifrado que faz
apelo à palavra, e, portanto, um texto produzido no campo simbólico e dirigido à ordem
simbólica. (p.11-12)
psíquico, pela sua natureza de interdito, que impõe a divisão entre os sistemas
psíquicos.
(...) o que me interessa é a própria noção de texto psíquico, um texto que não é
feito com palavras mas com imagens, mas que nem por isso deixa de ser estruturado
como uma linguagem.
O que Freud nos propõe a partir da Traumdeutung é que pensemos o sonho
como uma escritura psíquica. O sonho é uma encenação, mas não de um teto prévio que
ele traduz em imagens; ele é o próprio texto, escritura feita de elementos pictográficos
originais que não obedece a nenhum código anterior a ela própria. Mesmo quando
utiliza elementos já codificados, quando recorre ao léxico da cultura, o sonho os
submete a uma sintaxe própria. “O sonhador inventa sua própria gramática”, escreve
Derrida, o que nos transforma em leitores-decifradores se queremos apreender seu
significado. (Garcia-Roza, 2002, p.62-63)
Essa mensagem é dirigida ao Outro. Tal como a garrafa lançada ao mar, ela não
tem como destinatário um sujeito singular determinado, não é dirigida a esta ou aquela
pessoa, mas a um lugar: à ordem simbólica. (...) O outro é aquele que recolhe a garrafa e
se dispõe a decifrar a mensagem, e isto só é possível se ele está situado nesse grande
Outro que é a Ordem simbólica. (Garcia-Roza, 2002, p.65-67)
Também neste texto, da mesma forma que no caso do inconsciente, uma teoria
freudiana sobre o supereu e o seu papel na dinâmica da psique vai se esboçando,
antecipando a sua formulação sobre os lugares psíquicos na direção da constituição da primeira
tópica freudiana, além de enfatizar a dinâmica do conflito subjacente entre o desejo e a censura.
5
Nessa nota de rodapé, Freud destaca a visão de Eduard von Hartmann a respeito do papel desempenhado
pelo inconsciente na produção artística, uma visão que se iguala à sua, sobre o inconsciente. Note-se que
Freud, neste momento, ainda não tem uma teoria sobre o inconsciente, mas, apresenta o início de uma
formulação, de uma reflexão, nesse sentido.
65
Sempre que um elemento psíquico está vinculado a outro por uma associação
objetável ou superficial, há também entre eles um vínculo legítimo e mais profundo que
está submetido à resistência da censura. (Freud, 1996, v.V, p.561)
Na psicanálise das neuroses, faz-se o mais amplo uso desses dois teoremas –
que, quando se abandonam as representações-meta conscientes, as representações-meta
ocultas assumem o controle do fluxo de representações, e que as associações
superficiais são apenas substitutos, por deslocamento, de associações mais profundas e
suprimidas. A rigor, esses teoremas transformaram-se em pilares básicos da técnica
psicanalítica. Quando instruo um paciente a abandonar qualquer tipo de reflexão e me
dizer tudo o que lhe vier à cabeça, estou confiando firmemente na premissa de que ele
não conseguirá abandonar as representações-meta inerentes ao tratamento, e sinto-me
justificado para inferir que o que se afigura como as coisas mais inocentes e arbitrárias
que ele me conta está de fato relacionado com sua enfermidade. Há uma outra
representação-meta de que o paciente não desconfia – uma que se relaciona comigo.
(Freud, 1996, v.V, p.562)
(...) Os sonhos são atos psíquicos tão importantes quanto quaisquer outros; sua
força propulsora é, na totalidade dos casos, um desejo que busca realizar-se; o fato de
não serem reconhecíveis como desejos, bem como suas múltiplas peculiaridades e
66
Neste passo seguinte, Freud destaca que a análise da vida onírica remete à idéia
de uma localização psíquica, afirmando, portanto, que permanecerá no campo
psicológico e não anatômico, no sentido de visualizar o instrumento que executa as
funções anímicas. Deste modo, a localização psíquica corresponderá a um ponto no
interior do aparelho, comparado a um aparelho fotográfico, em que se produz um dos
estágios preliminares da imagem.
É assim que Freud apresenta o que se constitui como aparelho psíquico, um
aparelho reflexo, similarmente ao modelo proposto no Projeto..., onde “toda nossa
atividade psíquica parte de estímulos (internos ou externos) e termina em inervações”,
enquanto “um instrumento composto a cujos componentes daremos o nome de
“instâncias”, ou (em prol de uma clareza maior) “sistemas”. (...) doravante nos
referiremos aos componentes do aparelho como “sistemas-ψ”.” (Freud, 1996, v.V,
p.567)
O aparelho psíquico é concebido como um aparelho de memória, sendo
composto por dois pólos ou extremidades, a saber: o pólo perceptivo ou sensorial
(Pcpt.), que recebe as percepções (provenientes de estímulos internos ou externos); e o
pólo motor (M.).
Assim, segundo Freud, toda a atividade psíquica parte dos estímulos e termina
em inervações ou pontos de descarga. “Os processos psíquicos, em geral, transcorrem
da extremidade perceptual para a extremidade motora. (...) Os processos reflexos
continuam a ser o modelo de todas as funções psíquicas”. (Freud, 1996, v.V, p.568)
Fig. 3
(...) pois, este não tem acesso à consciência senão através do pré-consciente, ao
passar pelo qual seu processo excitatório é obrigado a submeter-se a modificações.
Em qual desses sistemas, portanto, devemos situar o impulso para a formação
dos sonhos? Para simplificar, no sistema Ics. (...) quando consideramos o desejo onírico,
descobriremos que a força propulsora da formação dos sonhos é fornecida pelo Ics. (...)
Como todas as outras estruturas do pensamento, esse instigador do sonho se esforçará
por avançar para o Pcs. E, a partir daí, ganhar acesso à consciência.
6
A alusão de Freud aos “lugares” seguramente lhe dará subsídios para o que se constituirá como a
primeira tópica.
69
A experiência nos mostra que essa via que passa pelo pré-consciente para
chegar à consciência é barrada aos pensamentos oníricos durante o dia através da
censura imposta pela resistência. Durante a noite, eles conseguem obter acesso à
consciência, mas surge a questão de determinar como o fazem e graças a que
modificação.
(...) A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece nos sonhos
alucinatórios é dizendo que a excitação se move em direção retrocedente. Em vez de se
propagar para a extremidade motora do aparelho, ela se movimenta no sentido da
extremidade sensorial e, por fim, atinge o sistema perceptivo. Se descrevermos como
“progressiva” a direção tomada pelos processos psíquicos que brotam do inconsciente
durante a vida de vigília, poderemos dizer que os sonhos têm um caráter “regressivo”.
(Freud, 1996, v.V, p.571-572)
Segundo Garcia-Roza,
Freud destaca que este movimento regressivo expresso nos processos oníricos
não se restringe aos sonhos, dado que outros processos constitutivos do pensamento
normal envolvem tal movimento retrocedente, retornando de um ato complexo de
representação para a matéria-prima dos traços subjacentes, atingindo-se um nível de
completa vividez sensorial. De modo que, fala-se “em “regressão” quando, num sonho,
uma representação é retransformada na imagem sensorial de que originalmente derivou.
“(...) Na regressão, a trama dos pensamentos oníricos decompõe-se em sua matéria-
prima. (...) em imagens.”(Cf. Freud, 1996, v.V, p.573-574)
Levando-se em conta a tópica temporal do aparelho psíquico, tal qual apontado
acima, coloca-se ainda a questão: o que do sujeito estaria em causa na configuração dos
processos oníricos?
lutam por encontrar expressão. Desse ponto de vista, o sonho poderia ser descrito como
substituto de uma cena infantil, modificada por transferir-se para uma experiência
recente. A cena infantil é incapaz de promover sua própria revivescência e tem de se
contentar em retornar como sonho.
(...) Formulamos a concepção de que, com toda probabilidade, essa regressão,
onde quer que ocorra, é efeito da resistência que se opõe ao avanço de um pensamento
para a consciência pela via normal, e de uma atração simultânea exercida sobre o
pensamento pela presença de lembranças dotadas de grande força sensorial. (Freud,
1996, v.V, p.576-577)
Entretanto, segundo Freud, nada do que teria sido abordado até agora poderia
responder ao enigma de:
(...) por que o inconsciente nada tem a oferecer durante o sono além da força
propulsora para a realização de um desejo? A resposta a esta pergunta deve lançar luz
sobre a natureza psíquica dos desejos e proponho fornecê-la mediante uma referência a
nosso quadro esquemático do aparelho psíquico.
(...) O bebê faminto grita ou dá pontapés, inerme. Mas a situação permanece
inalterada, pois a excitação proveniente de uma necessidade interna não se deve a uma
força que produza um impacto momentâneo, mas a uma força que está continuamente
em ação. Só pode haver mudança quando, de uma maneira ou de outra (no caso do
bebê, através do auxílio externo), chega-se a uma “vivência de satisfação” que põe fim
ao estímulo interno. Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma
percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica
associada, daí por diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade.
Em decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade
for despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a
imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a
situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo;
o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para
essa realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para
uma completa catexia da percepção. Nada nos impede de presumir que tenha havido um
estado primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido,
isto é, em que o desejo terminava em alucinação. Logo, o objetivo dessa primeira
atividade psíquica era produzir uma “identidade perceptiva” (isto é, algo
perceptivamente idêntico à “vivência de satisfação”) – uma repetição da percepção
vinculada à satisfação da necessidade. (Freud, 1996, v.V, p.594-595)
72
Quando Lacan diz que o mundo freudiano não é um mundo das coisas, não é um
mundo do ser, mas um mundo do desejo, o que se coloca é uma anterioridade a toda
experiência do sujeito que lhe aponta a falta como referência do ser, por sua vez, via do
desejo no humano. Completamente diferente de uma perspectiva que centrada no “ser
que é” poderia engendrar tanto o passado como o futuro desse sujeito.
(...) Se existe um sistema Ics. (...), os sonhos não podem ser sua única
manifestação; todo sonho pode ser uma realização de desejo, mas, além dos sonhos, tem
de haver outras formas anormais de realização de desejo. E é fato que a teoria que rege
todos os sintomas psiconeuróticos culmina numa única proposição, que assevera que
também eles devem ser encarados como realizações de desejos inconscientes. (Freud,
1996,v.V, p.597)
Segundo Garcia-Roza,
Neste momento, cabe apontar um último ponto nesta argumentação que remete à
causa do desejo, em Freud, e que diz respeito ao papel da angústia relativamente ao
desejo, bem como à via da estética do desejo.
(...) Freud apresenta neste texto [Luto e Melancolia] exemplar que a beleza só
adquire o valor de fruição articulada à dimensão da finitude. Beleza e morte se opõem
inclusivamente. Ou seja, toda antecipação de sentido que busca escapar da finitude
implica uma fixação, uma parada do movimento desejante, enfim, mata a beleza. (p.99-
101)
(...) Podemos afirmar que, desde a Interpretação dos Sonhos, Freud apresenta
sua dimensão estética no sentido de que a arte onírica, com seus mecanismos e
condensação e deslocamento de imagens, atesta o privilégio do desejo na sua relação
com as cenas fantásticas carregadas de angústia e prazer. Desde 1900, Freud apresenta,
na nossa leitura, uma estética do desejo que introduz o sujeito enquanto fraturado e
incompleto. (p.137)
Mas,
É em 1926 [em Inibição, Sintoma e Angústia] que Freud elege a angústia
enquanto afeto que anuncia a aproximação de um perigo pulsional de tal ordem que o
estado de desamparo e a ausência de recursos tomam conta do eu. A angústia produz a
experiência de um perigo real, efetivamente ameaçador e que traz à tona a experiência
de horror ligada a uma angústia originária, ao arcaico, que, aliás, sempre preocupou
Freud.
Esse arcaico diz respeito, no pensamento freudiano, ao tempo de encontro do
sujeito do desejo com a linguagem. Ao testemunhar este encontro, a angústia torna-se o
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CONCLUSÃO
Será que o um é anterior à descontinuidade? Penso que não, e tudo que ensinei
esses últimos anos tendia a revirar essa exigência de um um fechado (...). (...) Vocês
concordarão comigo em que o um que é introduzido pela experiência do inconsciente é
o um da fenda, do traço, da ruptura.
Aqui brota uma forma desconhecida do um, o Un do Unbewusste. Digamos que
o limite do Unbewusste é o Unbegriff – não o não-conceito, mas o conceito da falta.
Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da
abertura faz surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre fundo de silêncio, mas,
ao contrário, o faz surgir como silêncio.
(...) Vocês verão que, mais radicalmente, é na dimensão de uma sincronia que
vocês devem situar o inconsciente – no nível de um ser (...), em suma no nível em que
tudo que se expande no inconsciente se difunde, tal o micelium, como diz Freud a
propósito do sonho, em torno de um ponto central. Trata-se sempre é do sujeito
enquanto que indeterminado.
(...) Assim, o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte do
sujeito – donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo – desejo que
situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso em causa, em que o
sujeito se saca em algum ponto inesperado. (S XI, p.31-32)
lado do corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai sonhou que seu
filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de
censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele acordou, notou um clarão intenso
no quarto, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e que a mortalha e
um dos braços do cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma vela
acesa que tombara sobre eles. (Freud, 1996, v. V, p.541)
7
O grifo é nosso.
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surgir a imagem do filho, que lhe diz – Pai, não vês que estou queimando? Ora, está
para pegar fogo no real, na peça ao lado.
Por que então sustentar a teoria que faz do sonho a imagem de um desejo, com
este exemplo em que, numa espécie de reflexo flamejante, é justamente uma realidade
que, quase decalcada, parece aqui arrancar o sonhante de seu sono? Por que, se não para
nos evocar um mistério que não é outra coisa senão o mundo do além, e não sei que
segredo partilhado entre o pai e esse filho que lhe vem dizer – Pai, não vês que estou
queimando? Do que é que ele queima? – senão do que vemos desenhar-se em outros
pontos designados pela topologia freudiana – do peso dos pecados do pai, que carrega o
fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-
do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a da lei – mas a herança do pai é aquilo que
nos designa Kierkegaard, é seu pecado.
O fantasma de Hamlet surge de onde? – senão do lugar de onde ele nos
denuncia que é na flor de seu pecado que ele foi surpreendido, ceifado – e longe de dar
a Hamlet as proibições da Lei que podem fazer subsistir seu desejo, é de uma profunda
dubitação desse pai ideal demais que se trata a todo instante.
Tudo está à mão, emergindo, nesse exemplo que Freud coloca ali par nos
indicar de algum modo que não o explora, que o aprecia, que o pesa, o degusta. É desse
ponto mais fascinante que ele nos desvia, para entrar numa discussão concernente ao
esquecimento do sonho e ao valor de sua transmissão pelo sujeito. (S. XI, p.37-38)
Aí está uma coisa que parece pouco adequada para confirmar a tese de Freud na
Traumdeutung – que o sonho é a realização de um desejo.
Vemos surgir aqui, quase que pela primeira vez na Traumdeutung, uma função
do sonho que é, aparentemente, secundária – o sonho aqui não satisfaz à precisão de
prolongar o sono. O que quer então dizer Freud quando coloca ali, naquele lugar,
precisamente aquele sonho, e acentuando que ele é em si mesmo plena confirmação de
sua tese quanto ao sonho?
(...) A questão que se coloca, e que de resto todas as indicações precedentes de
Freud nos permitem produzir agora, é – O que é que desperta?Não será, no sonho, uma
outra realidade? – aquela realidade que Freud nos descreve assim – (...), que a criança
está perto de sua cama, (...) pega-o pelo braço e lhe murmura em tom de reproche (..)
Pai não vês, (...), que estou queimando?
Há mais realidade, não é, nesta mensagem, do que no ruído pelo qual o pai
também identifica a estranha realidade do que se passa na peça vizinha. Não será que
nessas palavras passa a realidade faltosa que causou a morte da criança? O próprio
Freud não nos diz que, nesta frase, é preciso reconhecer o que perpetua para o pai essas
palavras para nunca mais separadas do filho morto que lhe terão sido ditas, talvez,
supõe Freud, por causa da febre – mas, quem sabe, talvez que essas palavras perpetuem
o remorso do pai, de que aquele que ele colocou perto da cama de seu filho a ser velado,
o velhote, não estaria talvez à altura de bem desempenhar sua tarefa, (...), ele não estará,
talvez, à altura de sua tarefa. Com efeito, ele dormiu. (S XI, p.58-59)
Esta frase dita a propósito da febre – não será que ela lhes evoca aquilo que,
num dos meus últimos discursos, chamei a causa da febre? A ação, por mais pressurosa
que El seja, conforme toda verossimilhança, de acodir ao que se passa na peça vizinha –
não é ela talvez, também, sentida como de todo modo, agora,tarde demais – em relação
ao de que se trata, à realidade psíquica que se manifesta na frase pronunciada? O sonho
prosseguido, não é ele, essencialmente, se assim posso dizer, a homenagem à realidade
faltosa – a realidade que não pode mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num
infinitamente jamais atingido despertar? Que encontro pode haver daí por diante com
esse ser inerte para sempre – mesmo a ser devorado pelas chamas – senão aquele que se
passa justamente no momento em que a chama, por acidente como por acaso, vem se
juntar a ele? Onde está ela, a realidade, neste acidente? Senão que algo se repete, mais
fatal em suma, por meio da realidade – de uma realidade em que aquele que estava
encarregado de velar junto ao corpo ainda permanece dormindo, mesmo aliás quando o
pai acode depois de ter acordado.
Assim, o encontro sempre faltoso, se deu entre o sonho e o despertar, entre
aquele que dorme ainda e cujo sonho não conheceremos e aquele que só sonhou para
não despertar.
Se Freud, maravilhado, vê aqui confirmada a teoria do desejo, isto é mesmo
sinal de que o sonho não é apenas uma fantasia preenchendo uma aspiração.
Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto
pegando seu pai pelo braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no
sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. É
no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um
ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois que ninguém
pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai – isto é, nenhum
ser consciente.
Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto – mesmo
fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai – a
verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente.
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(...) Mas o que era então esse acidente? – quando todo mundo dorme, ao mesmo
tempo aquele que quis repousar um pouco, aquele que não pode manter a vigília, e
aquele de quem, sem dúvida, diante de seu leito, alguém bem intencionado poderia
dizer – Parece até que está dormindo, quando dele só sabemos uma coisa, que nesse
mundo inteiramente sonolento, apenas sua voz8 se fez ouvir – pai, não vês que estou
queimando. Esta frase, ela própria é uma tocha – ela sozinha põe fogo onde cai – e não
vemos o que queima, pois a chama nos cega sobre o fato de que o fogo pega no
Unterlegt, no Untertragen no real.
(...) Espero ter conseguido fazê-los apreender o que, do encontro como para
sempre faltoso, aqui é nodal e sustenta realmente, no texto de Freud, o que lhe parece,
neste sonho, absolutamente exemplar.
(...) O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho
revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual lá só
existe um lugar-tenente. Lá está o real que comanda, mais do que qualquer outra coisa,
nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós. (Lacan, 1998, S XI, p. 60-
61)
Finalmente,
Será que a realidade que determina o despertar é mesmo o leve ruído contra o
qual o império do sonho e do desejo se mantém? Não será mais outra coisa? Não será o
que se exprime no fundo da angústia desse sonho? – isto é, o mais íntimo da relação do
pai ao filho, e que vem a surgir, não tanto nessa morte quanto no fato de ela estar mais
além, no seu sentido de destino.
Entre o que acontece como que por acaso, quando todo mundo dorme – a vela
que vira e o fogo nos lençóis, o evento insensato, o acidente, a má sorte – e o que há de
percuciente, ainda que velado, no Pai, não vês que estou queimando – há a mesma
relação com que lidamos numa repetição. É o que, para nós, se figura na apelação de
neurose de destino, ou de neurose de fracasso. O que é falhado não é a adaptação, mas
tique, o encontro. (Lacan, 1998, S XI, p.70)
8
Grifo nosso.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Sulina
2. Chauí, Marilena (1990) Laços do Desejo In Novaes, Adauto O Desejo – São Paulo:
Paris:Hatier
9. França, Maria Inês (1997) Psicanálise, Estética e Ética do Desejo – São Paulo:
Perspectiva
Vozes
13. Juranville, Alain (1987) Lacan e a Filosofia – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
19. Lacan, Jacques (1998) Escritos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
20. Laplanche, Jean (1992) Vocabulário da Psicanálise – São Paulo: Martins Fontes
Editora da UNICAMP
22. Ogilvie, Bertrand (1991) Lacan: A formação do conceito de sujeito (1932-1949) – Rio
24. Safatle, Vladimir (2006) A Paixão Do Negativo: Lacan E A Dialética – São Paulo:
Editora UNESP
25. Silva, Antonio Franco R. da (1994) O Desejo de Freud – São Paulo: Iluminuras