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Proibida venda e reprodução. Uso exclusivo como material de


estudos do Ciclo de seminários sobre vida e obra de Laura Perls.

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índice
Como Educar Crianças para a Paz 04

Notas sobre a Psicologia de dar e receber 10

A Abordagem de Um Gestalt Terapeuta 19

Notas sobre Ansiedade e Medo 06

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Como Educar
Crianças para a Paz

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Como Educar Crianças para a Paz

Confrontado com a pergunta: “Como podemos educar as crianças para a paz?”


o psicanalista1 se encontra em uma posição difícil. Os psicanalistas olham para os seres
humanos e seu comportamento não moralmente, mas psicologicamente. Tentamos
ver as coisas como são, não como deveriam ser. E assim, antes que possamos sugerir
algo sobre como treinar crianças para a paz, primeiro temos que declarar as condições e
possibilidades que essa tarefa apresenta. Talvez também tenhamos de destruir alguns
delírios, dos quais muitas pessoas sofrem porque colocam seus próprios desejos antes
dos fatos.

Desejo chamar a sua atenção em particular para o fato de que a exigência por
paz se opõe estritamente a um dos instintos mais vitais de cada ser vivo, a saber, a
agressão.

Por “agressão”, a maioria das pessoas entende o desejo de atacar, destruir e


matar. Portanto, eles a condenam de todo o coração, e a tendência geral em nossa
civilização por muitos séculos, é para a supressão, mais ou menos completa, desse
instinto aparentemente mais perigoso de todos.

Como todos devemos saber, a criança pequena é um pouco selvagem, um animal


indomado, cujo comportamento é dirigido principalmente pelo princípio do prazer e
com pouca atenção às exigências da realidade. As etapas pelas quais a criança aprende
as demandas da realidade variam em diferentes lares. Normalmente, a família média
reage da seguinte maneira: Cada sinal evidente de agressão na criança (choro, chute,
mordida, quebra de coisas, etc.) é recebido com desaprovação pelos adultos. A mesma
desaprovação é dirigida à impaciência e ao mau humor da criança. Suas explosões de
temperamento frequentemente resultam em punições severas. O cuidador responsável
tenta realizar seu ideal de um bom cidadão, que ele geralmente não consegue realizar
por si mesmo - em seus filhos. A criança é instruída a ser bem-humorada, obediente e
respeitosa. Este objetivo é geralmente alcançado apelando-se para o medo da criança
de problemas e punição ou para seu desejo de ser amado.

Pode-se esperar que as pessoas que foram treinadas desde o início de suas vidas
para ter consideração por seus vizinhos, respeitar a propriedade, obedecer à autoridade,
tenham o melhor treinamento possível para a paz. Mas se olharmos hoje para os países
onde por centenas de gerações as pessoas foram educadas dessa forma, devemos
admitir que os resultados são bastante decepcionantes. Para onde quer que olhemos,
1
Quando o artigo foi escrito, ela ainda se considerava psicanalista e o livro ego, fome e agressão ainda não
havia sido publicado. Importante perceber como fundamentos apresentados no livro que foi publicado
somente em 1942, estavam presentes aqui. 5
vemos pessoas se engajando ou se preparando para a guerra, jovens entusiasmados
em ir para a guerra e filósofos procurando encontrar justificativas para provar a
necessidade das guerras - tudo isso apesar dos ideais religiosos e humanitários. Como
podemos entender isso?

Primeiro, para descobrir, temos que examinar a concepção comum de


“agressão”. Esta concepção deriva principalmente dos efeitos que a agressão tem nas
pessoas a ela expostas. A agressão da criança pequena causa muitos transtornos e
aborrecimentos aos adultos. Portanto, a maioria das pessoas considera isso indesejável
e tenta interromper a vontade da criança. Mas eles correm o risco não só de suprimir
a sua chamada “travessura”, seu choro e gritar, morder, chutar e arranhar, rasgar e
quebrar coisas, mas também suprimir seus questionamentos e sua curiosidade.
Claro, a curiosidade da criança e sua agressividade física são muito desgastantes
para os adultos. A satisfação delas exige muito tempo e paciência, e podem ser
muito constrangedoras. Elas exigem até o reconhecimento da própria ignorância, o
que muitos pais consideram um sério dano à sua autoridade. Mas, por outro lado, os
questionamentos e a curiosidade são condições indispensáveis para o desenvolvimento
intelectual da criança, sua capacidade de aprender e estudar, de compreender
as pessoas e as circunstâncias. E a supressão completa da agressividade causa - se
não estupidez, então certamente inibição intelectual séria - e leva à impossibilidade
de pensamento crítico. Dentro da família, isso pode aparecer como um benefício. A
exigência de respeito dos pais implica que a criança não questione os adultos, que se
faça como mandam, que se acredite no que se ensina, em geral que se deve aceitar e
não criticar. A psicóloga conclui metaforicamente que muita coisa é forçada garganta
abaixo da criança, sem permissão para morder, mastigar ou digerir. Na verdade, essa
não é apenas uma metáfora conveniente, mas a possibilidade de morder, mastigar,
digerir e assimilar alimentos físicos (e, por outro lado, o poder de pensar, de criticar, de
compreender, o que representa o meio de assimilar o alimento intelectual) são apenas
diferenciações do mesmo instinto agressivo. Nossa experiência psicanalítica mostra
que a supressão de um lado afeta muito seriamente o outro lado e vice-versa.

Prefiro não entrar em uma longa discussão técnica do problema. Se você


compreender o papel importante que o instinto agressivo desempenha no
desenvolvimento de uma criança, certamente reconhecerá que as consequências de
nossa educação2 tradicional costumam ser desastrosas.

Pessoas que foram criadas para a obediência cega, que não conseguem pensar e

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Ela não se refere aqui somente a educação escolar. O termo utilizado é upbringing – que está relacionado a
educação em termos mais abrangentes, como criação e cuidado familiar também.
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agir independentemente, usando seu próprio discernimento e vontade - essas pessoas
só podem fazer o que lhes é mandado, e tornam-se presas fáceis para qualquer um
que assuma a liderança. Essas pessoas acreditarão e aceitarão qualquer coisa que
lhes for impressa com pressão suficiente, seja com promessas ou pela força. Como
não treinaram sua capacidade crítica, têm poucas possibilidades de compreender
as circunstâncias sociais e políticas ou de agir de acordo com seu discernimento e
julgamento. Eles são facilmente dominados por uma demonstração de força aparente
e sucumbem à propaganda. Desta forma, podemos explicar o fato de que o fascismo
poderia ganhar um número tão grande de seguidores em tão pouco tempo, não só nos
países onde se originou, mas em todo o mundo, em países que diferem muito em seu
desenvolvimento histórico, seu sistema político, seu caráter nacional ou sua formação
social e cultural.

É claro que a imaturidade intelectual não é causada apenas pela supressão da


agressão infantil precoce. De igual importância para o desenvolvimento do fascismo
é o fato de que a repressão da agressão individual geralmente acarreta um aumento
da agressão universal. Em todos os países altamente civilizados, podemos ver onde o
indivíduo médio não desenvolveu suas capacidades agressivas em qualquer extensão
considerável, mas é, pelo contrário, bastante contido, bem-comportado, até mesmo
com medo de complicações, que a comunidade desenvolveu seus meios de agressão
em extremos absolutamente aterrorizantes. O aperfeiçoamento da máquina de guerra
(canhões, tanques, aeronaves, bombas, gás venenoso, treinamento militar e eficiência
estratégica) parece estar em proporção direta com a supressão da agressividade
individual, como se a agressão reprimida de todos os indivíduos tivesse se acumulado
em algo além do indivíduo e simplesmente teve que forçar sua saída.

Aqui estamos bem próximos da verdade. Na verdade, um instinto não pode ser
reprimido, apenas suas expressões. As energias agressivas permanecem as mesmas e
precisam encontrar uma saída. Em alguns casos, elas podem ser investidas na resistência
contra a agressão e construir uma consciência forte, como meio de direcionar essas
energias.

Frequentemente, as energias agressivas reprimidas manifestam-se em dois


fenômenos muito indesejáveis: neurose e delinquência. E, de certo modo, esses dois
são os pilares do militarismo e do fascismo. O fato de um governo, um general ou
um “Führer” assumir a responsabilidade dos ombros do indivíduo tem o efeito como
o de tirar a tampa de uma chaleira com água fervente. Como o vapor comprimido,

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a agressão há muito reprimida e acumulada simplesmente dispara. Mas por ter
sido totalmente reprimida, não pode ser transformada de forma alguma, ainda é a
agressividade original da criança pequena: pouco inteligente, cruel, bestial - agora
apenas executada com a força física e os meios técnicos de um adulto. A permissão na
guerra ou em circunstâncias semelhantes para cometer atos que, em circunstâncias
normais, trariam a condenação social e jurídica do indivíduo, na verdade significa
uma ruína, uma aniquilação das inibições infantis iniciais da agressão. E a pessoa ou
o sistema que dá essa permissão, toma o lugar das primeiras autoridades infantis: pai,
mãe, professores, etc. Mas se essas autoridades impuseram inibições e, portanto, talvez
encontraram um certo ressentimento e medo, a autoridade que desfaz essas inibições
é aceita sem reservas; ele é recebido como um libertador e um salvador; ele é o bom
pai, e a fixação que é criada pode ser igualmente forte ou até mais forte do que as
primeiras fixações infantis.

Pintei um quadro bastante sombrio. Receio que não tenha sido exatamente o
que você esperava e que eu possa até ter criado a impressão de que “saí do trilho” e
divaguei. Para voltar ao nosso tema: Como podemos treinar nossos filhos para a paz?
Apesar ou talvez com os fatos que apresentei. Nosso primeiro passo deve ser revisar
nossa concepção de “agressão”. A agressão não é apenas uma energia destrutiva, mas
a força que está por trás de todas as nossas atividades, sem a qual nada poderíamos
fazer. A agressão não só nos faz atacar, mas também nos faz enfrentar as coisas: não só
destrói, mas também edifica: não só nos faz roubar e furtar, mas também está por trás
de nossos esforços para agarrar e dominar o que temos por direito.

É uma falsa questão reprimir ou não a agressão. Visto que a agressão é um


ingrediente indispensável do fazer humano, temos que usá-la para transformá-la em
um instrumento valioso para a gestão de nossas vidas. Isso implica que, em particular,
não se deve impedir os primeiros sinais de agressão na criança pequena, mas sim
encorajá-la e dar-lhe o apoio adequado. No início, isso significa principalmente comida
suficiente, pois a falta geralmente cria avidez. Assim que os dentes da criança começam
a crescer, ela quer morder. Agora ele precisa de comida sólida e brinquedos. Do
contrário, ele morderá tudo o que puder, até mesmo o dedo ou o peito da mãe: mas se
ele fizer isso, não deveria ser considerado um crime. Mais tarde, os brinquedos devem
ser algo com que a criança possa trabalhar: blocos, areia, argila, papel, giz de cera, etc.
Devem estimular as habilidades criativas e construtivas da criança. Brinquedos que só
podem ser estragados ou destruídos, sem fornecer material para novas atividades, são
de uso limitado.

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Quando os pais têm uma atitude pacifista, provavelmente não darão aos filhos
brinquedos militares: armas, soldados, etc. Mas mesmo que o façam, não acho que a
criança sofrerá por toda a vida por causa de suas influências, se em geral ele aprendeu
a pensar e agir de forma independente. E assim, volto ao ponto que quero enfatizar
mais fortemente: as mães - e os pais - devem encorajar as atividades mentais da criança
desde o início. As crianças deveriam ter permissão para descobrir coisas, mesmo que
isso ocasionalmente significasse quebrar uma boneca e descobrir o que está dentro.
As perguntas das crianças devem ser respondidas com a maior honestidade possível.
Embora a criança saiba pouco, sua curiosidade e curiosidade são os principais meios
pelos quais ela pode adquirir conhecimento e experiência. Se lhe disserem: “Não seja
bobo!”, se ela é levada a sentir que é muito pequena e muito jovem para entender
as coisas e que só atrapalha os grandes quando eles trabalham ou se divertem, não
será capaz de se livrar desse sentimento de inferioridade quando ela própria for adulto.
A criança está preocupada com o presente e mantém suas primeiras reações ao
ambiente como um padrão para sua vida futura. Ela então considerará suas próprias
opiniões e realizações como pequenas e sem importância em comparação com as de
outras pessoas, talvez nem tente fazer nada por conta própria ou pensar seus próprios
pensamentos, mas apenas fará e acreditará no que lhe é contado. E isso significa que,
como ser social e político, ele terá uma qualidade muito duvidosa, será pouco inteligente
e pouco confiável. Mas a criança que não reprimiu sua agressão, que aprendeu a usá-
la, a administrá-la, mais tarde poderá ter um papel inteligente na vida social e política.

“How to Educate Children for Peace” foi escrito em alemão e publicado em


Joanesburgo, África do Sul, em 1939. Foi editado para publicação por Joe Wysong. A
primeira publição em inglês está no Living at Boundary publicado em 1994.

Como citar:

PERLS, Laura. Como Educar Crianças para paz. In: PERLS, Laura. Living at the
Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press,
1992. 37-44 p. Título original: How to educate children for peace.

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Notas sobre a
Psicologia de
dar e receber

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Notas sobre a psicologia de dar e receber

“É dar e receber1”. Essa mais oportuna frase do inglês (nenhuma outra língua tem
igual) indica a própria essência de relacionamentos. Dar e receber não são meramente
verbos transitivos no sentido estrito da gramática. Eles sugerem como objetos não
apenas o que é dado ou recebido, mas o ato de dar e o ato de receber, os dois tendo
um ao outro como objeto. Entre eles abrangem todo o âmbito do processo social, cujo
objetivo é o equilíbrio do campo social, enquanto o crescimento continua.

A consciência alerta, contínua e sempre mutante do positivo e do negativo na


situação social que chamamos de Justiça. A justiça é cega; pois o olho - de acordo com
a formação da figura-fundo - é o órgão de preferência. O sentido cinestésico é o órgão
do equilíbrio, então a Justiça é retratada segurando uma balança, e para equilibrar o,
“é dar e receber”.

Dar e Receber espontâneo

Um PRESENTE é algo que simplesmente “é”, entregue, oferecido.

A palavra alemã para presente é “ Geschenk”. Schenken significa “derramar”; “der


Schenke” é aquele que derrama2 o vinho à mesa (Músicas de Hafiz, West-Oestl, Divan,
etc); “die Schenke” ou ” der Ausschank” significa “ a pousada”. Geschenk é assim algo
derramado, transbordando, obtido sem esforço. Ele vem de abundância (Cornucópia,
Mãe Terra, Terra de Leite e Mel, etc).

Um presente não é um sacrifício, mas algo que se dá com facilidade e sem


expectativas do lado do doador. Também não é uma surpresa ou recompensa, mas o
que é naturalmente experado e procurado em uma comunidade estabelecida, como
o bebê espera pelo leite da mãe. Pois para o bebê tudo é ( ou deveria ser) Geschenk, a
realização natural e fácil do desejo natural.

O bebê não é (e não precisa ser) grato. Gratidão é a resposta ao presente


inesperado, ao benefício não merecido, resumidamente, a um ato de graça. Alguém
se sente grato pela liberação dos sentimentos de culpa, e pelo reestabelecimento do
sentimento de pertecimento. Alguém não sente ou expressa gratidão especial pelo
que está chegando a ele no curso natural dos eventos, tal como a situação onde é tão
1
Apesar de esse ser o equivalente da expressão em inglês, a tradução ao pé da letra sugere algo como:
Dar e tomar, com algo que se toma de volta. No popular, algo como “toma lá, da cá!” Talvez Laura tenha se
precipitado em dizer que não há expressão igual em outra língua. 11
2
No sentindo de servir o vinho de maneira generosa.
imperioso para mãe dar como é para a criança receber alimento.

O presente restaura a integridade do doador assim com a de quem recebe. A


livre correspondência entre abundância e necessidade garantem o equilibrio do campo
social.

Natal à moda antiga

O significado oral original do presente é muito obviamente expresso nos


costumes europeus do Natal. Papai Noel chega com um grande saco cheio de
nozes, frutas e doces que ele esvazia no meio da sala, e todas as crianças pegam o
quanto podem segurar. Na Alemanha, a piéce de resistance3 de cada pilha individual
de presentes de Natal é um prato de biscoitos tradicionais de Natal, nozes, passas,
frutas, doces, etc. Antes da fabricação industrial de decorações de Natal, as principais
decorações da árvore de Natal, além das velas, eram comestíveis. A árvore, cravejada de
luzes e carregada de comida no meio do inverno, é uma manifestação feliz do senso de
abundância e justiça do Homem, simbolizando o esforço para compensar a escuridão
e a esterilidade da natureza.

Presentes eram dados principalmente a crianças e outros dependentes, aos


pobres, etc.

O grande evento do dia de Natal era a grande refeição, alimentar os servos,


empregados, órfãos, indigentes, etc. Adultos na mesma categoria econômica e
social não davam presentes uns aos outros, pois isso significaria impor e incorrer em
obrigações, o que seria contrário ao verdadeiro espírito do Schenken. E certamente,
não se esperava que nenhum dependente fizesse qualquer despesa por um presente a
alguém em melhor situação que ele mesmo, ou seja, fazer um sacrifício. O necessitado
tinha um direito natural ao presente, sem obrigação, sem “merecimento”, etc.

A mesma atitude é refletida no costume de dar presentes de aniversário.


Pelo seu aniversário você ganha algo não porque você é necessitado, muito menos
“merecedor”, mas simplesmente porque você “é”. Com o reconhecimento de sua
existência como ser humano, sua potencial necessidade é tida como certa. O mundo
é um presente para toda criança humana; as fadas boas e más ou os Três Reis Magos
estão presentes em todo nascimento. Adultos, que por todo ano privam as crianças dos
seus direitos de nascença, expiam a culpa dando presentes de Natal e aniversário.
3
Pièce de résistance é uma expressão francesa, também chamada “plat de résistance” na França, que em
tradução livre para o português significa um “pedaço de resistência”, em referência à parte mais significativa
ou valorizada de algo. FONTE: Wikipédia
12
Novo estilo de Natal

Expiação não é um ato de justiça; não se baseia na awareness aguda e responsável


da necessidade real. Deriva do vago senso de obrigação que, na complicada estrutura
de nossa sociedade, está substituindo cada vez mais a awareness espontânea e
discriminadora do relacionamento. Atualmente os presentes de Natal ou aniversário
compensam não tanto a necessidade de quem recebe, mas a culpa do doador. Assim,
ele não reestabelece o equilíbrio no campo social, mas cria um desequilíbrio adicional
através de frustração do lado quem recebe e ressentimento do lado do doador, quem,
para aliviar seus sentimentos de culpa e criar um semblante de equilíbrio social, precisa
investir o presente de natal com um significado muito maior que seu valor real. Se torna
um agente de propaganda que tem que convencer o recebedor que ele realmente
precisa e quer o que está recebendo. O mínimo possível é gasto em presentes que são
feitos para parecer que valem um milhão. “ Boa vontade aos Homens” torna-se algo
impresso cada vez menor em cartões de natal cada vez mais artísticos e embalados,
em quantidades mesquinhas e de qualidade inferior, em embalagens cada vez mais
engenhosas.

O senso de obrigação é a vaga aceitação do envolvimento social sem a awareness


aguda que faria do cumprimento da obrigação um ato limitado e socialmente válido.
O cumprimento da obrigação não libera o doador e receptor a uma relação mais
balanceada, mas cria um novo vínculo, como o nome indica, de obrigação mútua
ilimitada. Portanto, introduz o circulo vicioso completo de competição e suborno,
sacrifício fútil, frustração, ressentimento e culpa.

A farsa anual de natal deixa todos exaustos física, emocional e financeiramente;


em Janeiro estamos doentes, mesquinhos e falidos. De símbolo do amor e da justiça
do homem, o Natal degenerou-se em uma algazarra, cuja própria característica é
desequilibrar o processo social.

Como em nossa civilização urbanizada e industrializada, tornou-se cada vez mais


difícil e, de fato, impossível estar plenamente ciente da situação social e do lugar de
cada um nela, muitas atitudes sociais anteriormente eficazes (medidas para restaurar
o equilíbrio no campo social) tornaram-se distorcidas e inválidas.

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Sacrifício Criativo e Prejudicial

Fazer um SACRIFÍCIO originalmente implicava abrir mão de algo de menor valor


por algo de maior valor. Ele quebra a inteireza da integridade pessoal para atingir
integridade num nível suprapessoal. Como a palavra “sacrifício” indica, ela tem um
significado principalmente religioso (ou social, o que é originalmente o mesmo).
Significa fazer alguém inteiro através da comunhão com o Divino; abrindo mão dos
prazeres na terra pela vida futura; sacrificar a sexualidade pelo amor a Cristo ou a vida
privada pelo bem da comunidade.

O sacrifício colocaria uma enorme responsabilidade no receptor, se não fosse


no contexto religioso ou social, o sacrificador o faz responsável (através de oração e
meditação e atividades sociais), entao seu sacrificio não será em vão. Ele não precisa
sobrecarregar Deus ou a sociedade com sentimentos de culpa por sua falta de sucesso,
pois por seu próprio sacrifício ele é afastado de seus próprios sentimentos de culpa.
Assim, o sacrifício, por maior que seja, nunca equivale a uma privação real, mas a uma
reestruturação intrapessoal da personalidade, longe de linhas mais pessoais e ao longo
de linhas mais impessoais.

Nas relações interpessoais, por outro lado, o sacrifício equivale praticamente a


um suborno. Um amor forte ou relações familiares podem ser um caso boderline (
o contexto sexual, também, é impessoal), mas qualquer contato interpessoal tende a
colocar toda responsabilidade do sacrificio de algo menor por algo maior no receptor.
O sacrificador espera que o receptor cresça em seu sacrifício, por exemplo, mostre e
aprecie seu ganho ( do receptor), o que por si só faria o sacrifício valea pena. O sacrifício
impessoal tenta extrair do receptor algo (amor, afeto, reconhecimento, gratidão, etc.)
que de outra forma poderia não acontecer. Falta auto estima ao sacrificador e ele tenta
forçar isso do receptor, por exemplo, ele aumenta o que quer que ele esteja dando ou
fazendo, ele “ esfrega na cara”, para que o receptor não esqueça disso em momento
algum. Como ele projetou sua própria necessidade não realizada de totalidade no
receptor, o sacrificador nunca pode fazer o suficiente e nunca pode obter o suficiente.
Ele continuamente tenta escapar de seus próprios sentimentos de culpa, jogando-os
no receptor.

Enquanto o sacrificio supra pessoal genuíno abre mão de algo de valor pessoal
definitivamente apreciado pela união com algo maior, o sacrifício interpessoal compra
apreço pessoal e, assim, compensa a falta de auto-estima. O desapontamento é

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inevitável, pois quanto mais do que é dado, mais é tido como garantido pelo receptor,
de modo que cada vez menos a apreciação vem, enquanto o sacrificador fica
progressivamente mais e mais empobrecido e desintegrado.

Enquanto o sacríficio interpessoal é geralmente feito por pessoas imaturas


e inseguras, o sacrifício genuíno ( supra pessoal) é um ato de maturidade e insight.
O Buda, abre mão de uma vida de prazer e dissipação para o caminho da pobreza e
concentração aos quarenta anos de idade. Cristo vai à Cruz aos trinta e três. Abrãao se
prepara para sacrificar Isaque, quem ele gerou na sua velhice, e somente no momento
final ele é abençado

pela percepção de que seu próprio sacrifício pessoal do seu maior tesouro não
é nada comparado com a promessa de gerações futuras após gerações vivendo aos
olhos do Senhor.

Renunciar ao sacrifício, e com ele a própria integração intrapessoal imediata, é


talvez o maior sacrifício - tão grande, na verdade, que Abraão em sua senilidade (ou
infantilidade) não é totalmente capaz de realizá-lo. O sacrifício do carneiro no lugar do
sacrifício original novamente equivale a um suborno. É um dispositivo fictício infantil,
um substituto que permite exteriorizar o sentimento de culpa (a evidência da falta
de integração) e, assim, prevenir com eficácia qualquer reorganização intrapessoal ou
intergrupal. Afinal, a diferença entre o bode expiatório e o bezerro de ouro não é tão
grande!

Suborno e Chantagem

O SUBORNO é um pagamento a priori por uma traição ainda não cometida. Para
ser bem-sucedido, o suborno deve ser atrativo o suficiente, por exemplo, vantagem
material ou social suficiente para o receptor, para tentá-lo a fazer uma mudança na
lealdade moral. Precisa ser forte para quebrar um compromisso prévio e para superar
os sentimentos de culpa associados a tal ruptura, formando um vínculo de lealdade
mais promissor.

Somente os insatisfeitos e frustrados estão abertos ao suborno; somente os


gananciosos e insaciáveis estão propensos a pagar subornos. É, na verdade, o mesmo
tipo de pessoa que, dependendo das circunstancias reais, paga ou recebe suborno. É
o parasita infantil e inseguro, que não se sente convencido da legitimidade de suas

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próprias necessidades e demandas e que não tem confiança em sua capacidade de
impor consideração e respeito.

Tanto o que suborna quanto aquele que recebe o suborno estão abertos à
CHANTAGEM e são chantageadores em potencial. Eles têm que cuidar bem uns dos
outros; a generosidade do suborno nunca deve diminuir; a subserviência do subornado
deve ser perpetuamente assegurada. Como o subornador e o subornado se sentem
igualmente culpados, eles se sentem igualmente ameaçados pela exposição. E a
chantagem nada mais é do que extorsão (de dinheiro ou outras vantagens) pela
ameaça de exposição.

Claro que suborno não é uma condição indispensável para a chantagem. De


fato, qualquer conhecimento sobre qualquer coisa que poderia pontencialmente
descredibilizar alguém aos olhos de outras pessoas pode ser usado com o propósito de
extorsão. Como em uma sociedade totalitária, a desintegração das relações humanas
individuais se torna objetivo político, o suborno e a chantagem se tornam os principais
dispositivos políticos.

Mas aprendemos, com a experiência de nossa própria época, que nenhuma


sociedade equilibrada pode ser estabelecida por métodos que podem aumentar
os sentimentos de culpa e produzir o desprezo mútuo de seus membros. O grau de
indiferença e atrevimento necessário para se livrar da depressão subsequente põe
em movimento todo o processo paranóico de dessensibilização e projeção, suspeita,
sentir-se atacado e perseguido, procurar bodes expiatórios, ataque e destruição e,
finalmente, autodestruição.

Pagamento e Recompensa

Deve-se esperar que a maneira mais bem-sucedida de equilibrar o processo


social seja uma troca exata de valores. Mas, infelizmente, “olho por olho e dente por
dente” aplica-se apenas no campo da retribuição e punição. Desde que foi refutado pela
primeira vez pela Sabedoria de Salomão, muita tinta já fluiu para provar a invalidade
desse princípio primitivo, que pressupoe um senso de valores não desenvolvido e
indiferenciado, por exemplo, sem awareness das necessidades e possibilidades na
situação atual.

Vamos nos limitar aqui a uma discussão de dois outros aspectos da troca de

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valor, a saber, PAGAMENTO e RECOMPENSA.

O pagamento é feito como um equivalente monetário ou material para


mercadorias ou para trabalho. É dado em reconhecimento de valor, que por sua vez
é definido por circunstâncias econômicas temporárias, dependendo da oferta e da
demanda

Recompensa, por outro lado, é uma expressão de apreciação de mérito.


Qualquer ação meritória permanece por si só, “por seu próprio mérito”. Não há padrões
comparáveis de valor que pudessem ser adequadamente expressos em dinheiro.
Assim, uma recompensa pode consistir em uma quantia em dinheiro (que então é
decidida arbitrariamente), mas também pode consistir em uma medalha, um diploma
ou um título, ou o reconhecimento e a gratidão de um próximo, ou simplesmente na
consciência de uma coisa bem feita.

Promoção no serviço militar ou civil é em parte uma recompensa, uma apreciação


de mérito. Mas quando é esperada com regularidade e conectada com vantagens
materiais contínuas, é pagamento pelo serviço.

O médico americano ou europeu é pago por serviços prestados em uma escala


geralmente aceita, tanto por visita ou operação ou sessão psicoterapêutica. O médico
chinês é pago quando sua cura é bem-sucedida, ou seja, ele é recompensado por um
esforço único.

Em geral pode-se dizer que quanto mais meritório o esforço, ou seja, quanto
mais contribui para um equilíbrio social genuíno, menos ele é recompensável em
dinheiro. Então, a recompensa policial, que é prometida e dada por informação, é
simplesmente pagamento por traição. , que cai mais na categoria de “suborno” que
de “recompensa”. Por outro lado, “a virtude é sua própria recompensa”. Os serviços
e sacrifícios mais incessantes e altruístas permanecem não apenas não pagos e não
recompensados, mas também são tidos como garantidos. Apenas o trabalho ou objeto
limitado pode ser pago com uma quantia limitada de dinheiro; apenas o serviço ou
esforço limitado pode ser recompensado com promoção, título ou citação. A devoção
ilimitada de um familiar ou a dedicação de uma vida inteira a uma causa não pode ser
paga ou recompensada; pode apenas ser aceita e não precisa nem ser reconhecida.
Sua recompensa está no próprio desempenho, no sentimento de restaurar o equilíbrio
social em um processo contínuo de mudança.

17
“Notas sobre a Psicologia de dar e receber “ apareceu originalmente no Volume
IX (1953) da Complex, uma revista edutada pelo amigo do Dr. Perls e profissional
associado, Paul Goodman.

Como citar:

PERLS, Laura. Notas sobrea Psicologia de dar e receber. In: PERLS, Laura. Living
at the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal
Press, 1992. 71-81 p. Título original: Notes on the Psychology of Give and Take.

18
A Abordagem
de Um Gestalt
Terapeuta

19
Notas sobre a psicologia de dar e receber

Confrontada com a lista formidável de perguntas que o Comitê do Programa


criou, sou uma oradora muito relutante. Se este grande inquisidor fosse um paciente
vindo para sua primeira sessão comigo, armado com esse tipo de pergunta “o que
você faz, quando ...?” Eu não tentaria responder a nenhuma delas. Em vez disso, posso
contar uma história a ele.

Dois mendigos, um cego e um tolo, estão viajando juntos. Ao fim de um dia longo
e quente, chegam a uma casa de fazenda e o idiota diz: “Vamos entrar e pedir um copo
de leite.” O cego pergunta: “O que é leite?” “Leite? O leite é branco.” “O que é branco?”
“Branco? Branco é um cisne.” “Mas o que é um cisne?” “Um cisne é um grande pássaro
com pescoço torto.” “E o que é ‘dobrado’?” O tolo pega o braço do cego, estica-o e diz:
“Está vendo? Isso é reto. E isso”, ele dobra o braço do outro no pulso e no cotovelo: “isso
é ‘dobrado’.” “Aaahh”, diz o cego, “agora eu sei o que é leite!”

Portanto, vamos mendigar juntos e tentar responder à primeira pergunta: O que


fazer com o paciente relutante?

Todos os pacientes relutam em uma coisa ou outra, em algum momento. Quase


todos os pacientes são mal motivados no sentido de que vêm, ou são obrigados a
vir, pelos motivos errados. Desconfio do paciente que demonstra grande perspicácia
e carrega seu sofrimento na ponta da língua. E desconfio do paciente ansioso e
entusiasticamente cooperativo que concorda e confirma, pega o jargão em um instante
e sonha sob encomenda. Ele reluta em experimentar e expressar sua diferença de
opinião, suas dúvidas e objeções.

Mas, de modo geral, não estou particularmente interessada nas questões


de motivação e encaminhamento. Eu recebo o paciente como ele se apresenta no
momento de sua sessão comigo, ele estava motivado o suficiente para vir para aquela
consulta, e partimos daí, fazendo contato um com o outro estritamente com base em
nossa consciência mútua no momento . Focar no que é e não no que não é ou no que
deveria ser, geralmente dá ao paciente apoio suficiente para vir para a próxima sessão
- não necessariamente uma motivação melhor para “fazer terapia”, mas a vontade de
continuar o contato com o terapeuta.

Fiz atendimentos domiciliares apenas em casos de acidentes imobilizantes e em


dois casos de agorafobia. Depois de algumas semanas, os dois pacientes puderam vir

20
ao meu consultório.

O paciente que esquece ou se recusa a pagar seus honorários dará indicações de


sua relutância desde o início da terapia, não apenas em relação ao dinheiro, mas a tudo
o que você possa pedir dele: pontualidade nas consultas, informações, expressão de
opiniões e sentimentos, tentativa de experimento, avaliação de suas próprias atitudes
e ações ou de outras pessoas. Ele pode ser relutante por muitos motivos: medo ou
rancor, um senso confuso de valores, uma necessidade infantil de ser cuidado sem
ter que fazer nada em troca.Esses são os problemas que, em última análise, devem
ser enfrentados. Nesse ínterim, é claro, o paciente pode ser persuadido e estimulado
a pagar com relutância, de uma forma ou de outra (você pode deixar claro que tudo o
que você fizer por ele ou com ele não pode ser avaliado e compensado em dinheiro.
O que o paciente paga é por seu tempo e sua atenção durante esse tempo, Tudo o
que acontece durante a sessão está a serviço das necessidades do paciente, mesmo
aquelas de nossas demandas que no momento o deixam ansioso ou desconfortável.
Por suas próprias necessidades o terapeuta pede apenas pelo pagamento regular).
Essa explicação é geralmente aceita intelectualmente como justa, mas você descobrirá
que a relutância do paciente se transforma em genuína disposição de pagar apenas
quando ele desenvolve uma consciência de seu próprio valor. Só ele pode dar quem
tem e é.

Por outro lado, o paciente que paga de forma fácil e regular não é necessariamente
o mais promissor. Ele pode obter alguma satisfação secreta com os sacrifícios de sua
família por ele. Ele pode estar comprando você.

Ele pode até ser o paciente que olha as vitrines que precisamente não “compra”,
mas paga a taxa de admissão para uma consulta como para um desfile de moda, testa
o tamanho do analista e repete a mesma façanha durante a próxima temporada de
confusão ou depressão com outro terapeuta. Acho que minha consciência do “estilo”
do paciente e o fato de mostrar a ele apenas o que imediatamente “se ajusta” a ele
geralmente o faz “comprar”. Por fim, fico com o vitrinista, sobrecarregadoa não apenas
com sua “relutância”, mas também com os problemas específicos decorrentes de suas
tentativas anteriores de interrupções na terapia. Mas essa é outra história!

A segunda pergunta: Você supõe que deseja inconscientemente que todos os


seus pacientes melhorem?

Eu não posso responder. Não sei o que faço inconscientemente. Pelo que sei,

21
quero que meus pacientes melhorem. Do contrário, tenho que buscar o que deixei de
perceber ou de fazê-los perceber no relacionamento em curso.

Para isso, devo fazer uso não apenas de suas expressões, comunicações e
atitudes, mas também de minha chamada contratransferência. Não gosto de usar esse
termo, que não faz sentido em nossa abordagem, pois se orienta pela consciência do
momento presente real e não pela interpretação do passado.

Nem sempre expresso verbalmente meus sentimentos e atitudes em relação


ao paciente. Mas, no decorrer da terapia, o paciente aprende a tomar consciência de
minhas reações e expressões tanto (e às vezes mais!) quanto eu tenho das dele, mesmo
que não seja verbalizado.

Compartilho verbalmente apenas o que estou ciente de que o capacitará a dar


o próximo passo por conta própria - isso expandirá seu apoio para assumir um risco no
contexto de seu mau funcionamento atual. Se me comunico demais, posso provocar
uma reação terapêutica negativa: ansiedade intolerável, fuga, resistência, paralisia,
dessensibilização, projeção.

Descreverei alguns problemas e experiências de minha própria vida ou de outros


casos, se espero que isso me dê suporte ao paciente para uma compreensão mais
plena de sua própria posição e potencialidades - se isso o ajudar a dar o próximo passo.

A terceira questão: o que fazer com o paciente que está “encenando”?

Isso me parece mais criar um problema do que identificá-lo. Cada paciente,


o tempo todo, está encenando de alguma forma, e chamamos isso de “atuação”
principalmente quando é obviamente indesejável, inadequado, exagerado,
superagressivo, pervertido, por exemplo, quando interrompe o desenvolvimento e os
relacionamentos contínuos do paciente. Mas o paciente está ou pode estar “atuando”
também quando se comporta muito corretamente - mantém uma postura catatônica
- e frequentemente mesmo quando ele verbaliza de forma mais racional e articulada:
e ele continuará a “atuar” enquanto tiver apoio insuficiente para um comportamento
mais apropriado. Portanto, a tarefa da terapia não é interferir ou impedir a “atuação”
do paciente, que para ele é, de toda forma, a única maneira possível de agir, mas
construir um auto-suporte mais adequado para um comportamentomque está mais
continuamente se integrando e integrado.

Esse processo demorado geralmente não é auxiliado pela imposição de todos

22
os tipos de restrições, limitações e ameaças, pelo menos não no que diz respeito ao
comportamento do paciente fora da situação terapêutica. Dentro das situações de
terapia, algumas restrições podem fazer parte de uma exploração experimental dos
padrões e possibilidades comportamentais do paciente: mas é a reação do paciente
que define aos limites de tolerância ao comportamento do terapeuta.

Eu não sou punitiva. Não acho que a atitude: “é melhor você fazer o que estou
te mandando, senão ...!” vai com um respeito genuíno pelo paciente, cujas resistências
são o seu principal suporte. Puni-lo pelo que ele mais confia sempre provoca uma
reação negativa: medo, rancor, ressentimento, vingança, todos os quais interrompem
o processo contínuo de comunicação e compreensão. O terapeuta punitivo está
“atuando” da pior maneira possível: e ele o faz pela mesma razão que o paciente
que “atua”: porque ele não sabe mais o que fazer, porque ele mesmo não tem apoio
suficiente para dar suporte onde é mais necessário.

Quarta questão: Contato físico com o paciente?

Vou responder muito brevemente. Eu uso qualquer tipo de contato físico se


espero que facilite o próximo passo do paciente em sua consciência da situação real
e do que ele está fazendo (ou não) nela e com ela. Não tenho regras especiais com
relação a pacientes do sexo masculino ou feminino. Vou acender um cigarro, alimentar
alguém com uma colher, arrumar o cabelo de uma menina, dar as mãos ou segurar
um paciente no colo, se esse parecer ser o melhor meio de estabelecer a comunicação
inexistente ou interrompida. Eu também toco pacientes ou deixo que eles me toquem
em experimentos para aumentar a consciência corporal: para apontar tensões,
descoordenação, ritmo de respiração,espasmos ou fluidez de movimento, etc.

Parece haver grande divergência de opinião e muito de ansiedade quanto à


admissibilidade do contato físico na terapia, como é indicado pela própria formulação
das questões que estamos considerando aqui. Eles me parecem muito um apelo por
salvo-conduto em território desconhecido, obviamente um absurdo. Se quisermos
ajudar nossos pacientes a se realizarem mais plenamente como seres humanos, nós
mesmos devemos ter a coragem de arriscar os perigos de ser humanos.

Isso me leva diretamente à pergunta: o que você pensa sobre a natureza básica
do homem e como isso afeta o processo terapêutico?

Lamento que esta tenha sido colocada como a última questão, pois considero-a

23
a mais importante, à luz da qual todas as outras fazem sentido ou são irrelevantes.
Acredito que não apenas todas as medidas terapêuticas, mas todos os pensamentos
e atos são informados por nossa convicção básica do que torna o homem “humano”,
mesmo que nunca expressemos manifestamente essa convicção e a consideremos tão
óbvia que dificilmente estamos consciente dela.Falando estritamente por mim - a única
maneira que uma gestalt terapeuta Gestalt pode dizer algo - estou profundamente
convencida de que o problema básico da vida, não apenas da terapia, é: Como tornar a
vida habitável para um ser cuja característica dominante é sua consciência de si mesmo
como um indivíduo único, por um lado, de sua mortalidade, por outro. O primeiro dá-
lhe uma sensação de importância avassaladora como o próprio centro do mundo, o
outro um sentimento de frustração e vaidade, por ser menos que um grão de areia no
Universo. Suspenso entre esses dois pólos, ele vibra num estado de inevitável tensão e
ansiedade que, pelo menos para o homem ocidental moderno, parece inviável e deu
origem a várias soluções neuróticas. Se a consciência e a expressão da singularidade e
da individualidade são reprimidas, temos a uniformidade, o tédio e a falta de sentido
da cultura de massa, na qual a consciência da própria morte se torna tão intolerável
que deve ser alienada a qualquer preço, “divertindo-se “com futilidades acumuladas
ou com excitações artificiais (álcool, drogas, delinquência). Quando a singularidade e a
individualidade são enfatizadas demais, temos um falso “humanismo” com o homem
como a medida de todas as coisas, resultando em expectativas exageradas, frustração e
decepção. Como uma formação reativa, encontramos ou um falso distanciamento, um
laissez-faire sem esperança ou blasé, ou um falso compromisso, uma busca frenética
de uma pseudo-criatividade, que é apenas uma brincadeira obsessiva com “hobbies” e
“atividades culturais” , desde a pintura faça-você-mesmo das prateleiras da cozinha até
“ver meu analista “e ir à igreja.

A verdadeira criatividade, em minha experiência, está inextricavelmente ligada


à consciência da mortalidade. Quanto mais nítida for essa consciência, maior será o
desejo de trazer algo novo, de participar da criatividade infinitamente contínua da
natureza. É isso que produz algo do sexo, amor: do rebanho, sociedade: do milho e da
fruta, do pão e do vinho: e do som, da música. Isso é o que torna a vida habitável e - aliás
- a terapia possível.

Enquanto a orientação judaico-cristã era o esteio estrutural da sociedade e da


personalidade, o homem ocidental poderia aceitar a identidade de viver e morrer sem
questionar. No Oriente, o objetivo do Zen Budismo é precisamente essa compreensão
da identidade de viver e morrer, de compromisso e desapego. Em nosso mundo

24
ocidental, o neurótico é o homem que não pode enfrentar sua própria morte e, portanto,
não pode viver plenamente como um ser humano. Na Gestalt-terapia, com sua ênfase
na consciência e no envolvimento imediatos, temos um método para desenvolver as
funções de suporte necessárias para um ajuste criativo autocontinuado, que é a única
maneira de enfrentar a experiência de morrer e, portanto, de viver.

“A Abordagem de Um Gestalt Terapeuta “ foi apresentado na cidade de Nova


York como um artigo na conferência anual de 1959 da Academia Americana de
Psicoterapeutas. Foi publicado como “The Gestalt Approach”1 no Barron & Harper’s
(Eds.) Annals of Psychotherapy em 1962 e foi revisado para a publicação Fagan &
Sheperd’s (Eds.) Gestalt Therapy Now em 1970.

Como citar:

PERLS, Laura. Abordagem de uma Gestalt Terapeutica. In: PERLS, Laura. Living at
the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press,
1992. 115-123 p. Título original: One Gestalt Therapists approach.

1
Pode ser traduzido como: A abordagem Gestaltática

25
A Abordagem
de Um Gestalt
Terapeuta

26
Notas sobre a psicologia de dar e receber

Medo é da alteridade; de um objeto, uma pessoa, um evento reconhecível. Ele


mobiliza maior atenção (orientação) para e manipulação da situação perigosa.

O metabolismo aumenta: excitação, raiva, agressividade.

Medo e coragem não são fenômenos mutuamente exclusivos, mas manifestações


de uma e mesma experiência: contato com o perigo. A consciência intensificada e a
produção excedente temporária de energia facilitam uma manipulação extraordinária
de uma situação. Portanto, o feito “corajoso” não parece algo muito especial para o
herói “modesto”.

Em contraste, ansiedade surge em uma situação confluente, quando e onde


a confluência é ameaçada. A ameaça permanece essencialmente vaga, como uma
tendência em direção a uma ruptura- surgindo no próprio indivíduo ou em seu ambiente
- não pode ser objetivamente reconhecida dentro de um estado de confluência.

O estado de confluência é um sistema de equilíbrio organísmico que deve


funcionar sem orientação específica e manipulação dirigida especificamente. Sempre
que esse equilíbrio é alterado, há a ansiedade.

Ansiedade é a única emoção infantil mais antiga. (Sua alternativa é indiferença,


quando o equilíbrio da confluência está funcionando cem por cento). É um estado
de irritação geral indiferenciada que não fornece orientação suficiente para um
enfretamento bem sucedido da situação.

Ansiedade como uma emoção predominantemente infantil pode ser manejada


de forma adequada e superada na primeira infância apenas com meios puramente
infantis. A irritação indiferenciada é descarregada em reações motoras indiferenciadas
e não direcionadas: chorando, chutando, o que, por sua vez, é normalmente suficiente
para promover algum tipo de atividade no ambiente que restaure o equilíbrio. Não
acho que uma criança possa ficar paralisada pela ansiedade. E nenhum adulto em
plena posse de funções de apoio e contato fica paralisado pelo medo.

Paralisia é a inibição de uma manipulação inadequada em potencial combinada


com uma orientação defeituosa ou inadequada. Nesse estado de semi-orientação, há
uma vaga percepção “autoconsciente” da responsabilidade da atividade motora por
quaisquer mudanças na situação. A primeira consciência é da quebra da confluência,

27
pela qual a própria atividade da pessoa, já reconhecida, deve ser responsável – enquanto
a fronteira entre a sua própria atividade e a de qualquer outra pessoa ainda não foi
estabelecida ou não está funcionando adequadamente (choque, drogas, exaustão,
introjeção, projeção, etc). Então a paralisia aparece como um tipo de gesto mágico,
uma tentativa de evitar ou ignorar o evento desastroso- a quebra da confluência- e os
seus próprios sentimentos de culpa.

O diagrama a seguir pode ilustrar mais claramente a coordenação das diferentes


fases de orientação e manipulação com a reação emocional respectiva a uma ameaça
de perturbação do equilíbrio.

ORIENTAÇÃO MANIPULAÇÃO RESPOSTA EMOCIONAL

Indiferenciado, atividade
Sem orientação Ansiedade, confluência
motora não diferenciada

"Inadequado, atividade
"Vergonha
Inadequada, meio motora meio direcionada:
Sentimento de culpa
orientado, não há bloqueio motor
Constrangimento
confluência, ainda não há Falta de jeito
Pânico
contato. Paralisia
Medo"
Erros"

Completa, adequada, Atividade motora


Coragem
orientação; contato organizada específica

Se olharmos para o valor de sobrevivência dessas diferentes reações, podemos


fazer as seguintes observações: A expressão da ansiedade, por exemplo, a demonstração
de desamparo e atividade motora desorganizada evoca compaixão, simpatia do meio
ambiente e, com isso, uma restauração do equilíbrio. É, portanto, pelo menos para o
bebê, uma reação adequada. Seu valor para o adulto é mínimo, pois o que promove
simpatia e assistência para a criança pequena pode provocar antipatia, ridicularização
e rejeição para o adulto, principalmente se a ansiedade e desorganização se aplicarem
apenas a determinados campos de experiência (fobia), enquanto que em outros

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campos o paciente pode mostrar orientação e manipulação muito adequadas.

O psicótico avançado pode ser um pouco melhor no que diz respeito a obter
simpatia do ambiente, pois sua ansiedade pode ser tão óbvia e onipresente como
a de um bebê. Mas enquanto as necessidades específicas não reconhecidas da
criança pequena são comparativamente primitivas e podem ser mais ou menos
fácil e especificamente presumidas por um ambiente experiente, as necessidades
específicas não realizadas do psicótico adulto são muito mais complicadas não apenas
por sua estrutura adulta mais diferenciada, mas por introjeções e projeções que
dificilmente podem ser completamente aferidas, muito menos satisfeitas, mesmo pelo
ambiente mais experiente e simpático, e assim sua ansiedade nunca é completamente
amenizada.

”Notas sobre ansiedade e medo” foi originalmente preparada para apresentação


no Instituto de Nova York em 1965. Aparece aqui em inglês pela primeira vez1.

Como citar:

PERLS, Laura. Notas sobre ansiedade e medo. In: PERLS, Laura. Living at the
Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press,
1992. 125-128 p. Título original: Notes on Anxiety and Fear.

1
Nota ao final do texto publicado no livro “Living at the boundary”, publicado em 1992

29
Nota da Tradutora
Essa tradução faz parte dos meus estudos sobre a Laura
Perls e meu empenho em retomar e reafirmar a importância
do trabalho dessa mulher na Gestalt Terapia. Seus estudos e
contribuições ficaram em segundo plano e são pouco conhecidos.
Os fundamentos da teoria da qual ela fez parte da fundação, estão
em seus artigos e prática e não podem ser desconsiderados.
Continuarei traduzindo e fazendo chegar a mais pessoas, a voz,
o trabalho e a força dessa mulher que constitui as bases da
Gestalt Terapia, com um pensamento engajado politicamente e
fundamentado psicologicamente. Meu desejo é produzir algo que
traga luz às suas produções aqui no Brasil e assim, fazer reverberar
a voz, trabalho e força de tantas outras que sustentaram trabalhos
de homens sem nenhum reconhecimento justo possível.

Contatos:
e-mail: tassia.pinheiro@gmail.com
instagram: @tassia.pinheiro

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