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O PROJETO DE 1895

Por
Antonio Teixeira de
Carvalho Filho

O Projeto 1895, enquanto primeiras linhas, começou a ser rascunhado por


Freud durante viagem que realizou para Viena objetivando visitar o amigo
Wilheln Fliess - o manuscrito do Projeto, posteriormente enviado a Fliess,
permaneceu esquecido por mais de 40 anos. Freud somente voltou a vê-lo nas
mãos de Marie Bonaparte - princesa da Grécia e Dinamarca, uma sua ex-cliente
-, a qual lhe disse o haver adquirido da viúva de Fliess, declarando-lhe que pelo
mesmo tinha grande apresso, ao que, mesmo frente aos insistentes pedidos de
Freud, recusou-se a devolvê-lo ao autor.
No percurso da linha de tempo decorrido entre 1895 e 1950 (data da
primeira publicação do Projeto 1895), ninguém teve acesso ao conteúdo dessa
obra - exceto Freud e seu amigo Fliess. Publicada após mais de 10 anos do
falecimento de Freud, nela encontramos esboçada ideias que, ao longo das
muitas publicações do autor, viram-se por ele aprofundadas, como a de Tela
protetora, Noções de ligação e Teoria do sonho, por exemplo.
Desde as primeiras linhas do texto, o propósito de Freud se evidencia no
sentido de definir, para psicologia, um assentamento no caminho da chamada
Ciência Natural. E essa percepção se manifesta, enquanto dialética, através de
uma espécie de contraponto produtivo que, a uma primeira vista, pode ser
entendido como oposição às linhas de pensamento então manifesta por Hegel,
Dilthey e outros importantes pensadores da época. Entretanto, quando nos
detemos a analisar os caminhos percorridos nas manifestações dos muitos
pensadores da época e as manifestações de Freud, exceto por terminologias
personalíssimas utilizadas, encontramos nelas convergências importantes, o
que evidencia não ser a obra deixada por Freud estranha à sua época - no texto
base em estudo encontramos suporte nessa direção, quando vemos afirmado
que “... quando Freud se decide por escrever (ou rascunhar) o Projeto, ele o faz
tendo por solo um saber que abriga, por um lado, a filosofia do espírito, a qual
nos remete à série que constitui o chamado idealismo alemão com Hegel,
Schelling, Fichte, Kant, até Leibniz, e por outro lado, à série constituída pelas
ciências da natureza, ligada à mentalidade cientificista e positivista, que vai de
Herbart a Exner, para citar apenas autores de língua alemã”.
Adentrando ao texto, duas proposições feitas por Freud, pelo seu
conteúdo mais pragmático, chamam a atenção, merecendo algumas
considerações:
• Conceber o que diferencia a atividade do repouso como uma Q
submetida à lei geral do movimento;
• Supor como partículas materiais os neurônios.
Em tese, tais proposições não oferecem a Freud qualquer mérito de
inovação, pois esses conceitos já haviam sido propostos por outros pensadores:
W. Waldeyer, quase 05 anos antes, já havia apontado o neurônio como o suporte
material e a unidade fundamental do sistema nervoso; enquanto que a idéia de
uma energia circulando pelo sistema nervoso, também já fora apresentada, em
1824, por Breuer. Entretanto, o que de novo trouxe Freud foi a ideia de
articulação dessas proposições, ao afirmar que “... cada neurônio é uma unidade
separada, o que significa dizer que é independente anatomicamente, embora
articulado com os demais neurônios por contiguidade, formando uma intrincada
rede de conexões [...] Os neurônios são condutores de energia, sendo que
dependendo do sistema por eles formado, são também capazes de armazenar
energia [...] O aparelho neuronal concebido por Freud no Projeto é um aparelho
capaz de transmitir e de transformar uma energia determinada”.
Portanto, de modo inovador, Freud avança para adiante da pragmática
visão anatômico-neurológica do funcionamento do aparelho psíquico dos
indivíduos então prevalecente, esboçando percepções que, num momento
afrente, se consubstanciaram na chamada Metapsicologia. Com base nessa
inicial trilha de entendimento, em 1894, Freud propõe em “As neuropsicoses de
defesa” que “... nas funções psíquicas cabe distinguir algo (cota de afeto, soma
de excitação) que tem todas as propriedades de uma quantidade - embora não
tenhamos meios de medi-la; algo que é passível de aumento, diminuição,
deslocamento e descarga, e se difunde pelas marcas mnêmicas das
representações como o faria uma carga elétrica pela superfície dos corpos”. Ao
longo desse específico tema, ao levantar discussão entre quantidade e
intensidade, mais do que propor parâmetros técnicos acerca de uma possível
medida para “soma de excitação” e “cota de afeto”, ele propõe que ambas, em
verdade são intensivas e não propriamente quantitativas - portanto passíveis de
aumentar ou diminuir, sem que se possa, entretanto, medir esses referenciais.
Como consta referenciado no texto base em análise, Carlos Paes de
Barros confirma as proposições formuladas por Freud através de um artigo
intitulado “Contribuição à controvérsia sobre o ponto de vista econômico”,
quando afirma que “... não cabe a menor dúvida quanto à natureza do Princípio
de constância da soma de excitação: trata-se de uma proposição sobre a
tendência do sistema nervoso (e do aparelho psíquico) a manter constante não
a quantidade de energia neurônica (Erregungsgrösse), mas seu nível de
intensidade (Erregungssumme)”. Portanto, o que é dado se concluir é que a
teórica hipótese quantitativa proposta por Freud, em verdade, trata da regulação
da intensidade, não sendo, portanto, uma hipótese sobre a conservação da
quantidade. Essa concepção é retomada por Freud em “A propósito das críticas
à neurose de angústia”, de 1895, ao afirmar que “... existem motivos que, embora
possuidores de eficiência etiológica, têm que atuar com certa intensidade (ou
quantidade) e durante um certo período de tempo para exercerem seu efeito,
vale dizer, têm que somar-se”; bem como quando “... levanta a hipótese de uma
proporcionalidade entre a intensidade dos traumas e a intensidade dos sintomas
por eles produzidos”.
Outro tema bastante interessante - esse especificamente levantado no
Projeto 1895 por Freud -, refere-se ao Princípio da Inércia Neurônica. Nele,
Freud toma como referência o chamado arco reflexo, - “... segundo o qual a
quantidade de excitação recebida pelo neurônio sensitivo deve ser inteiramente
descarregada na extremidade motora” -, acrescentando a essa proposição a
ideia de que o sistema neurônico não apenas busca descarregar a energia
recebida da excitação, mas também conserva essa via de escoamento como
forma de manter-se afastado da fonte de estímulo. Tem, portanto, o sistema
neurônico não somente a função de descarga, como também a de fuga do
estímulo. Avança Freud em relação a esse inicial entendimento, argumentando
que o sistema nervoso recebe estímulos exógenos e endógenos, e estes, por
serem originados do próprio corpo, não oferecem possibilidades de fuga por
estarem diretamente relacionados à vida, consubstanciando-se nas grandes
necessidades dos indivíduos, como a fome, sede, respiração e a sexualidade
enquanto que aqueles, os externos, de modo contrário, podem ser evitados,
possibilitando, ai sim, a fuga - o conceito de estímulos endógenos, mais adiante,
vai possibilitar a Freud articular o conceito de pulsão. Concluiu Freud, a partir
dessa premissa, que se o sistema de inércia atuasse de forma isolada, sem que
houvesse mecanismos que permitissem o livre (e total) escoamento da energia,
ele não disporia de energia de reserva para realizar essas ações específicas
destinadas a satisfazer as exigências decorrentes dos estímulos endógenos -
essa é a chamada lei da constância, que afrente, em 1920, ganha contornos
mais sedimentados na publicação “Além do princípio do prazer”, quando é então
articulado o chamado Princípio de Constância.
Os princípios da inércia e do prazer, de alguma forma, se veem
relacionados no Projeto 1895, quando é levantada a ideia de que a vida psíquica
tende a evitar o desprazer, condição que nos leva, de alguma forma, a identificar
tal tendência com o princípio de inércia - desprazer como um aumento de
estímulo e o prazer como uma diminuição deste. Como relatado no texto, essa
indecisão “quanto à identificação ou não dos dois princípios permanece ainda
em “A interpretação de sonhos” e só começa a ser esclarecida em “Além do
princípio de prazer”, quando Freud admite que um estado de tensão pode
também ser prazeroso. Mas é em “O problema econômico do masoquismo” que
ele afirma claramente a impossibilidade de identificarmos o princípio de inércia
com o princípio de prazer. Como fecho dessa imprecisão, é dado se depreender
que Freud percebe como necessário substituir o princípio de inércia pelo
princípio de constância como princípio regulador dos processos psíquicos.
O conceito de investimento também adquire grande relevância no Projeto
1895, apesar de sua apreciação haver sido inicialmente referenciada no texto
“Estudos sobre a histeria”, quando Freud o introduz para designar uma
representação cujo afeto não fora descarregado - buscando explicar os
mecanismos presentes nesse processo, Freud propõe a hipótese das chamadas
barreiras de contato. A ideia até então prevalecente caminhava na lógica
oferecida pela neurologia, que vinculava o conceito de investimento a processos
materiais (neuronais); entretanto, Freud avança no entendimento de que
investimento consistiria no fato de a energia psíquica estar ligada a um neurônio
ou grupo de neurônios (ou a uma representação ou grupo de representações),
ou seja, para que esses neurônios (ou grupo deles) possa estar cheio de energia
psíquica se faria necessário haver um tipo de resistência que impedisse a
descarga total dessa energia (conceito do arco reflexo), ao que Freud atribui
localização a essa resistência nas sinapses dos neurônios, que funcionariam
como barreiras contra essa descarga - hipótese das barreiras de contato.
Depreende-se, portanto, como citado no texto em estudo, “... apenas da
ocupação de um neurônio ou conjunto de neurônios pela energia psíquica, mas
de uma ocupação que leva em conta a posição recíproca dos neurônios, a
direção da corrente (Strömmung) no neurônio, a relação entre o investimento e
a facilitação (Bahnung), a constituição de percursos privilegiados, enfim, uma
estratégia de ocupação capaz de dar conta da complexidade do aparato”.
A hipótese das barreiras de contato, a partir dessa inicial explanação
torna-se fundamental às considerações expostas por Freud ao tratar do aparelho
neural, ou seja, a importância do conceito de memória - até porque, sem a
capacidade de armazenar informações, o aparelho neural ficaria reduzido a um
mero condutor. Para explicar sua percepção de memória, Freud estabelece
distinção entre neurônios permeáveis e impermeáveis, definindo que o fator que
os diferenciaria seria decorrente da resistência das barreiras de contato -
neurônios permeáveis servem à percepção, enquanto os impermeáveis servem
à memória. O adensamento dessa discussão segue, porém mais importante é o
entendimento de que está na distinção entre neurônios permeáveis e neurônios
impermeáveis o suporte de que se valeu Freud para conceber o aparato de
memória é formado por um processo de sucessivo de estratificações, sendo essa
memória constituída por facilitações existentes entre os neurônios - aflora, então,
a necessidade de discussão desse processo de facilitação.
A ideia de facilitação, como entendida por Freud, encontra certo tipo de
barreira na sua concepção quando traduzida para a língua portuguesa, dada a
amplitude de seu entendimento. No contexto em que se vê enfocada, facilitação
constitui-se uma ideia de cadeia onde seus percursos são diferenciados, ou seja,
um sequenciamento onde as barreiras de contato oferecem diferentes níveis de
resistência ao percurso das excitações, pois se assim não fosse, não haveria
memória, pois o que a caracteriza é o fato de haver, como encontrado no texto
base, “... certas barreiras de contato “facilitam” o percurso em determinadas
direções e não em outras, o que dá lugar à repetição dos percursos facilitados”.
Tal acepção é explicitada no texto de Freud, quando exemplifica a questão
afirmando que “Se a facilitação fosse igual em todas as partes, não se explicaria
a predileção por um caminho”, ou seja, as chamadas facilitações facultam a
formação, a partir de uma trama dos neurônios, de trilhas privilegiadas que, de
alguma forma, se entrecruzam, favorecendo a repetição exata de um mesmo
percurso pelo indivíduo, pois se assim não fosse isso tornar-se-ia impossível.
Portanto, é a partir dessa capacidade de armazenamento de informações que o
indivíduo consegue ordenar suas memórias, fazer associações, “ter
pensamentos” etc.
Nesse ponto, Freud depara-se com uma questão de extrema relevância
para a teoria psicanalítica, qual seja, a consciência. Apesar de a consciência não
aparecer de modo explícito no texto do Projeto 1895, ela é objeto de discussão
por buscar Freud, inicialmente, tentar explicar os processos psíquicos em termos
quantitativos. Como já apresentado, essa inicial tendência logo se mostra
insuficiente para ele próprio, obrigando-o a adentrar no campo qualitativo,
quando então aparece a ideia de consciência como problema a ser solucionado.
Freud considerava que a quantidade seria um quantum finito e determinado de
energia que circulava pelo aparato psíquico, enquanto a qualidade diria respeito
a aspectos bem mais elaborados, que se apresentariam como semelhanças ou
diferenças, como p. ex. uma cor, um som, texturas, quente ou frio etc. –
elementos impossíveis de se verem reduzidos a quantidades.
Mesmo diante dos muitos avanços já alcançados por Freud, seus
questionamentos se avolumavam, objetivando criar sustentação para as teorias
psicanalíticas - nesse específico ponto, sua inquietação tinha como foco a
impossibilidade de estabelecimento de um tipo de métrica para qualidade.
Entretanto, sua aquietação intelectual não se afigurava inovadora, pois desde a
antiguidade e, mesmo na filosofia moderna (de Descartes a Kant), esse tipo de
questionamento, há muito, já se fazia reverberar... Porém com Freud, essa
inquietação avançava de certo modo diverso ao do convencional pensamento
científico - até por estar ele adentrando num campo à época totalmente
desconhecido (o consciente e o inconsciente, em seus desdobramentos); para a
ciência natural, primeiro é preciso “ver”, ser capaz de comprovar e replicar essa
“visão”, pesar, medir e quantificar o objeto dessa descoberta... para depois
“acreditar”; porém ele, de modo diferente, desenvolvia suas “crenças” e, a partir
delas, buscava encontrar, para elas, “respostas” lógico-estruturadas – ainda que,
em princípio, não fosse possível a elas serem oferecidas comprovações
cartesianas para dar prova às suas hipóteses; assim, ao longo de sua busca
para entendimento do consciente/inconsciente, pouco a pouco, suas crenças
vão avançando, ganhando uma nova e ampliada perspectiva, manifestando-se
ele, nesse ponto de seu trilhar por novos saberes, que “... reunimos ânimo
suficiente para presumir que haja um terceiro sistema de neurônios que é
excitado junto com a percepção, mas não com a reprodução, e cujos estados de
excitação produzem as diversas qualidades - ou seja, são sensações
conscientes”. Avança ele sua perquirições, refletindo sobre o fato de que, se a
consciência oferece-nos apenas qualidades, a ciência natural propõe que o
mundo externo fornece-nos somente quantidades, é válido se imaginar que na
arquitetura dos neurônios existam alguns dispositivos capazes de transformar a
quantidade externa em qualidade - a qualidade resultaria, assim, da própria
estrutura do aparato neuronal.
De modo resumido, podemos descrever as conclusões alcançadas por
Freud, conforme proposto por Gilberto Gomes em “A teoria freudiana da
consciência”, no sentido de que a consciência “... é atribuída à atividade de um
sistema hipotético de neurônios, o sistema ω (ômega). Este está em conexão
com o sistema ψ (psi), que é responsável pelos processos psíquicos em geral:
percepção, memória, desejos, fantasia etc.”. Em relação à percepção
consciente, Freud supõe que a excitação proveniente do mundo exterior atinge
inicialmente o sistema φ (phi), ligado aos receptores sensoriais, de onde se
transmite a ψ e finalmente a ω. O citado autor também explica o porquê de Freud
escolher letras gregas para nomear esses sistemas, afirmando que “... φ e ψ são
as iniciais de fisiológico e psíquico, respectivamente, e ω assemelha-se
graficamente à letra W, inicial da palavra alemã para percepção, Wahrnehmung”.
Continua sua percepção acerca das conclusões a que chegou Freud, explicando
ser possível identificar “... a íntima conexão que Freud estabelece entre
percepção e consciência. A consciência, no entanto, não é só percepção
consciente, ela compreende também as lembranças conscientes, as fantasias
conscientes, os desejos conscientes, o pensamento consciente etc”. No Projeto,
Freud os concebe todos como processos que ocorrem num sistema (psi) e cuja
consciência é constituída pela atividade de outro (ômega). A consciência que
uma pessoa tem de seus próprios processos psíquicos, ou de seu conteúdo, é
uma forma de percepção, pelo sistema ômega, de parte do que se passa em psi.
Em relação a todos esses processos, o esquema do Projeto, como veremos, não
será fundamentalmente modificado. Avança ele ainda mais, esclarecendo dúvida
inicialmente suscitada por Freud sobre a função do sistema neural ômega e suas
relações com os diversos eventos psíquicos, como a percepção, o pensamento,
as lembranças, as emoções, o desejo e a fantasia, quando afirma que “... o
sistema ômega é concebido como um sistema adaptado à detecção de
qualidades. Por um lado, qualidades sensoriais, respondendo pela consciência
perceptiva. Por outro, qualidades de prazer e de desprazer, ligadas aos estados
de tensão no sistema psi. A vivência de satisfação e a vivência de dor, descritas
por Freud nos capítulos 11 e 12 da parte I do Projeto, provocam sensações de
prazer ou desprazer em ômega, mas não dependem delas. Também os efeitos
dessas vivências, descritos no capítulo 13, que são, respectivamente, o desejo
e a defesa primária, não dependem de ômega, pois se produzem automática e
inconscientemente em psi. Uma primeira função do sistema da consciência
(ômega), descrita no Projeto (parte I, capítulo 15), concerne às indicações de
realidade, ou indicações de qualidade sensorial, que permitem distinguir entre
uma percepção e uma representação derivada da memória. Estas indicações de
realidade, possibilitadas pelo processo secundário, que inibe o investimento
alucinatório ou a defesa primária excessiva, servirão para orientar os processos
do pensamento e a eventual descarga por ocasião da ação específica que
produz a satisfação”.
Outra questão já enfrentada no Projeto 1895, que adiante viu-se mais bem
consolidada em “Além do princípio do prazer” e em “O problema econômico do
masoquismo”, é a do prazer e do desprazer. Como supostos necessários para
compreensão do funcionamento do aparato psíquico, Freud explica ser a
consciência responsável pelas qualidades sensíveis, sendo ela que fornece ao
sistema psi os signos de qualidade; também é ela que fornece as chamadas
sensações de prazer e desprazer. Porém a cada avanço alcançado, novas
questões se apresentam a Freud, na sua incessante busca pelo conhecimento.
Nesse sentido questiona: “... se a “tensão do estímulo” fosse a responsável pelas
sensações de prazer e desprazer, não haveria como explicar situações nas quais
um aumento de estímulo, com o consequente aumento de tensão, pudesse ser
vivida como prazerosa, e este é o caso, por exemplo, da excitação sexual. Surge
em decorrência disto, a pergunta de se é possível manter uma relação simples
entre a intensidade das sensações e a quantidade de excitação, isto é, se a
intensidade das sensações decorre diretamente da intensidade do estímulo,
numa relação puramente quantitativa”.
Na direção de resolver essa nova barreira no desvendamento do
processo, Freud introduz o Conceito de Período, segundo o qual, “As sensações
de prazer e desprazer na consciência resultam não da Qn recebida por ela, mas
da aptidão desse sistema para receber o período do movimento neuronal. Dessa
forma, as sensações conscientes de prazer e desprazer não podem ser
decorrentes do aumento ou diminuição da quantidade (tensão do estímulo),
embora indiretamente estejam ligadas a ela, mas decorrem de um fator
qualitativo, “talvez seja o ritmo, o ciclo temporal das alterações, elevações e
quedas da quantidade de estímulo; não sabemos”. Assim, didaticamente Freud
sintetiza os processos de estímulo, asseverando que eles advêm de duas fontes:
endógena e exógena. E que “... os estímulos endógenos atuam de maneira
contínua, ao contrário dos estímulos externos, e tornam-se estímulos psíquicos
por somação (summation).... admite que tais estímulos endógenos são de
natureza intercelular, de modo que cada Qn, considerada isoladamente, é de
pequena intensidade, não sendo capaz de, no caminho em direção a psi, romper
as barreiras de contato que lhe oferecem resistência. A facilitação se dá a partir
de uma certa quantidade, resultante da somação das Qn. A característica
peculiar dos neurônios do sistema psi é que após a passagem de Qn eles
recuperam sua impermeabilidade, contrariamente aos neurônios da consciência
que permanecem permeáveis”. Cabe aqui ressaltar que embora a ideia de
período, a uma primeira vista, remeta-nos a pensar em quantidade, assim não o
é. O período não é uma quantidade, e sim modificações no ritmo temporal de
alterações quantitativas, que podem ser grandes ou pequenas – ele (período)
não diz respeito a uma grandeza absoluta, mas à mudança dessas grandezas
num período qualquer de tempo.
Muito embora Freud, em suas teorias psicanalíticas, não tenha dedicado
maior preocupação com a questão da “dor”, no Projeto 1985 ela é referenciada
no texto base em estudo sob uma perspectiva interessante: “... num organismo
vivo, os dispositivos biológicos têm por função proteger a vida dos investimentos
perigosos, no entanto, a ação desses mecanismos tem seus limites de eficácia,
além dos quais eles fracassam e sobrevêm a dor e, no limite, a morte... sendo o
fracasso desses dispositivos, provocando uma invasão excessiva de Qn, que
provoca a dor. A dor consiste, portanto, na irrupção de grandes Q em psi”.
Importante ser ressaltado que, para Freud, a dor não se situa no polo oposto do
prazer, pois o oposto deste (prazer) é o desprazer. Segundo Freud, embora dor
e prazer ou desprazer não transitem numa mesma trilha perceptiva, isso não é
excludente de a dor se constituir como que um ingrediente relevante na
economia prazer-desprazer e/ou mesmo fazer parte de uma vivência prazerosa,
como por ele aventada a hipótese de existir uma relação entre a dor e o prazer
sexual do masoquismo, articulando, assim, a dor e o prazer de uma forma não
mutuamente exclusiva.
Outro ponto enfocado no Projeto 1895 é o aparecimento da discussão
sobre o Eu. Resumidamente pode-se dizer, como consta do texto em análise,
que o “... eu do Projeto é, pois, essa organização de neurônios constantemente
investidos, investimento este que consiste na provisão requerida pela função
reguladora que ele desempenha... Essa função de inibição se exerce sobre os
processos psíquicos primários, dando lugar aos processos psíquicos
secundários”. Segundo assinala Freud, nos processos psíquicos primários, o
investimento-desejo conduz à alucinação e ao desprazer dela resultante,
enquanto nos processos psíquicos secundários ocorre o que ele chama de “um
bom investimento do eu”, o qual inibe os primeiros. Importante ver-se aqui
ressaltado que, para Freud, a distinção feita entre processos primários e
processos secundários não corresponde à distinção estabelecida entre
inconsciente e consciente - para ele, tanto os processos primários como os
processos secundários são processos internos ao sistema psi, sendo eles,
portanto, inconscientes.
Nesse caminhar, Freud introduz adiante o conceito de “coisa”, porém é
através de Lacan, conforme descrito no texto em estudo, que mais objetivo
esclarecimento se vê apresentado, quando adverte para “... não nos iludirmos
quanto à natureza da coisa. Não se trata de algo que por permanecer coeso nos
informará sobre a qualidade do objeto, seus atributos; o Ding (coisa) é, ao
contrário, o que nessa experiência é isolado pelo sujeito como sendo estranho.
Ding é o não-representável, mas ao mesmo tempo, aquilo em torno do qual se
organizam as representações”.
Finalizando, Freud discorre no Projeto 1895 sobre o pensamento e a
realidade, analisando no final do Capítulo I e todo Capítulo III o processo de
pensamento - pensar discernidor ou judicativo e o pensar reprodutor. Como
afirmado no texto base, “... o pensar judicativo prepara o caminho para o pensar
reprodutor, fornecendo-lhe facilitadoras da identidade procurada. Se, uma vez
concluído o ato de pensar, o signo de realidade se soma à percepção, obtém-se
o juízo de realidade, a crença, alcançando-se assim a meta de todo o trabalho...
Todo juízo de realidade traz implícita uma crença nessa realidade. A realidade,
ou, para ser mais exato, o real, nunca é dado. Um juízo de existência tem sempre
o estatuto de uma hipótese”. Portanto, Freud tem a clara percepção de que o
pensar discernidor é preparatório ao pensar reprodutor, ou seja, nele se dá a
decomposição do complexo perceptivo no sentido de se distinguir a percepção
da representação, sendo que essa distinção será possibilitada pelos signos de
qualidade que são também signos de realidade. São estes signos que vão indicar
para a psi que se trata de uma percepção – a esse mecanismo Freud denomina
como “atenção psíquica”.
Concluindo, podemos afirmar que o Projeto 1895 é, por assim dizer, uma
tentativa de Freud de trazer para o plano científico o que se apresentava na
clínica pré-psicanalítica em seu início vienense - uma tentativa que somente veio
a público após sua morte. Freud valeu-se para redigir esse Projeto, de conceitos
de diversas áreas do conhecimento prevalecente à época, como medicina,
biologia, filosofia, física etc. Nele, Freud apresenta, muitas vezes como hipóteses
– as quais, adiante, adensa suas percepções através de textos específicos -,
supostos do aparato neuronal que, mesmo agora, demonstram o avanço de sua
visão científica - ideias que ultrapassam a finalidade de promover uma psicologia
como ciência natural... Nesse caminhar, busca apresentar empiricamente o
funcionamento da mente humana de acordo com uma descrição baseada,
principalmente, na física de sua época. Embora suas elaborações transcendam
o modelo neurológico corrente, e nem sempre fique restrito ao modelo científico,
esse ir além da "psicologia como uma ciência natural" faz com que o Projeto
1895 traga uma importante contribuição metapsicológica e contenha gérmens de
conceitos que foram (e certamente ainda vão ser) retomados e desenvolvidos ao
longo dos tempos.

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