O Projeto 1895, enquanto primeiras linhas, começou a ser rascunhado por
Freud durante viagem que realizou para Viena objetivando visitar o amigo Wilheln Fliess - o manuscrito do Projeto, posteriormente enviado a Fliess, permaneceu esquecido por mais de 40 anos. Freud somente voltou a vê-lo nas mãos de Marie Bonaparte - princesa da Grécia e Dinamarca, uma sua ex-cliente -, a qual lhe disse o haver adquirido da viúva de Fliess, declarando-lhe que pelo mesmo tinha grande apresso, ao que, mesmo frente aos insistentes pedidos de Freud, recusou-se a devolvê-lo ao autor. No percurso da linha de tempo decorrido entre 1895 e 1950 (data da primeira publicação do Projeto 1895), ninguém teve acesso ao conteúdo dessa obra - exceto Freud e seu amigo Fliess. Publicada após mais de 10 anos do falecimento de Freud, nela encontramos esboçada ideias que, ao longo das muitas publicações do autor, viram-se por ele aprofundadas, como a de Tela protetora, Noções de ligação e Teoria do sonho, por exemplo. Desde as primeiras linhas do texto, o propósito de Freud se evidencia no sentido de definir, para psicologia, um assentamento no caminho da chamada Ciência Natural. E essa percepção se manifesta, enquanto dialética, através de uma espécie de contraponto produtivo que, a uma primeira vista, pode ser entendido como oposição às linhas de pensamento então manifesta por Hegel, Dilthey e outros importantes pensadores da época. Entretanto, quando nos detemos a analisar os caminhos percorridos nas manifestações dos muitos pensadores da época e as manifestações de Freud, exceto por terminologias personalíssimas utilizadas, encontramos nelas convergências importantes, o que evidencia não ser a obra deixada por Freud estranha à sua época - no texto base em estudo encontramos suporte nessa direção, quando vemos afirmado que “... quando Freud se decide por escrever (ou rascunhar) o Projeto, ele o faz tendo por solo um saber que abriga, por um lado, a filosofia do espírito, a qual nos remete à série que constitui o chamado idealismo alemão com Hegel, Schelling, Fichte, Kant, até Leibniz, e por outro lado, à série constituída pelas ciências da natureza, ligada à mentalidade cientificista e positivista, que vai de Herbart a Exner, para citar apenas autores de língua alemã”. Adentrando ao texto, duas proposições feitas por Freud, pelo seu conteúdo mais pragmático, chamam a atenção, merecendo algumas considerações: • Conceber o que diferencia a atividade do repouso como uma Q submetida à lei geral do movimento; • Supor como partículas materiais os neurônios. Em tese, tais proposições não oferecem a Freud qualquer mérito de inovação, pois esses conceitos já haviam sido propostos por outros pensadores: W. Waldeyer, quase 05 anos antes, já havia apontado o neurônio como o suporte material e a unidade fundamental do sistema nervoso; enquanto que a idéia de uma energia circulando pelo sistema nervoso, também já fora apresentada, em 1824, por Breuer. Entretanto, o que de novo trouxe Freud foi a ideia de articulação dessas proposições, ao afirmar que “... cada neurônio é uma unidade separada, o que significa dizer que é independente anatomicamente, embora articulado com os demais neurônios por contiguidade, formando uma intrincada rede de conexões [...] Os neurônios são condutores de energia, sendo que dependendo do sistema por eles formado, são também capazes de armazenar energia [...] O aparelho neuronal concebido por Freud no Projeto é um aparelho capaz de transmitir e de transformar uma energia determinada”. Portanto, de modo inovador, Freud avança para adiante da pragmática visão anatômico-neurológica do funcionamento do aparelho psíquico dos indivíduos então prevalecente, esboçando percepções que, num momento afrente, se consubstanciaram na chamada Metapsicologia. Com base nessa inicial trilha de entendimento, em 1894, Freud propõe em “As neuropsicoses de defesa” que “... nas funções psíquicas cabe distinguir algo (cota de afeto, soma de excitação) que tem todas as propriedades de uma quantidade - embora não tenhamos meios de medi-la; algo que é passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e se difunde pelas marcas mnêmicas das representações como o faria uma carga elétrica pela superfície dos corpos”. Ao longo desse específico tema, ao levantar discussão entre quantidade e intensidade, mais do que propor parâmetros técnicos acerca de uma possível medida para “soma de excitação” e “cota de afeto”, ele propõe que ambas, em verdade são intensivas e não propriamente quantitativas - portanto passíveis de aumentar ou diminuir, sem que se possa, entretanto, medir esses referenciais. Como consta referenciado no texto base em análise, Carlos Paes de Barros confirma as proposições formuladas por Freud através de um artigo intitulado “Contribuição à controvérsia sobre o ponto de vista econômico”, quando afirma que “... não cabe a menor dúvida quanto à natureza do Princípio de constância da soma de excitação: trata-se de uma proposição sobre a tendência do sistema nervoso (e do aparelho psíquico) a manter constante não a quantidade de energia neurônica (Erregungsgrösse), mas seu nível de intensidade (Erregungssumme)”. Portanto, o que é dado se concluir é que a teórica hipótese quantitativa proposta por Freud, em verdade, trata da regulação da intensidade, não sendo, portanto, uma hipótese sobre a conservação da quantidade. Essa concepção é retomada por Freud em “A propósito das críticas à neurose de angústia”, de 1895, ao afirmar que “... existem motivos que, embora possuidores de eficiência etiológica, têm que atuar com certa intensidade (ou quantidade) e durante um certo período de tempo para exercerem seu efeito, vale dizer, têm que somar-se”; bem como quando “... levanta a hipótese de uma proporcionalidade entre a intensidade dos traumas e a intensidade dos sintomas por eles produzidos”. Outro tema bastante interessante - esse especificamente levantado no Projeto 1895 por Freud -, refere-se ao Princípio da Inércia Neurônica. Nele, Freud toma como referência o chamado arco reflexo, - “... segundo o qual a quantidade de excitação recebida pelo neurônio sensitivo deve ser inteiramente descarregada na extremidade motora” -, acrescentando a essa proposição a ideia de que o sistema neurônico não apenas busca descarregar a energia recebida da excitação, mas também conserva essa via de escoamento como forma de manter-se afastado da fonte de estímulo. Tem, portanto, o sistema neurônico não somente a função de descarga, como também a de fuga do estímulo. Avança Freud em relação a esse inicial entendimento, argumentando que o sistema nervoso recebe estímulos exógenos e endógenos, e estes, por serem originados do próprio corpo, não oferecem possibilidades de fuga por estarem diretamente relacionados à vida, consubstanciando-se nas grandes necessidades dos indivíduos, como a fome, sede, respiração e a sexualidade enquanto que aqueles, os externos, de modo contrário, podem ser evitados, possibilitando, ai sim, a fuga - o conceito de estímulos endógenos, mais adiante, vai possibilitar a Freud articular o conceito de pulsão. Concluiu Freud, a partir dessa premissa, que se o sistema de inércia atuasse de forma isolada, sem que houvesse mecanismos que permitissem o livre (e total) escoamento da energia, ele não disporia de energia de reserva para realizar essas ações específicas destinadas a satisfazer as exigências decorrentes dos estímulos endógenos - essa é a chamada lei da constância, que afrente, em 1920, ganha contornos mais sedimentados na publicação “Além do princípio do prazer”, quando é então articulado o chamado Princípio de Constância. Os princípios da inércia e do prazer, de alguma forma, se veem relacionados no Projeto 1895, quando é levantada a ideia de que a vida psíquica tende a evitar o desprazer, condição que nos leva, de alguma forma, a identificar tal tendência com o princípio de inércia - desprazer como um aumento de estímulo e o prazer como uma diminuição deste. Como relatado no texto, essa indecisão “quanto à identificação ou não dos dois princípios permanece ainda em “A interpretação de sonhos” e só começa a ser esclarecida em “Além do princípio de prazer”, quando Freud admite que um estado de tensão pode também ser prazeroso. Mas é em “O problema econômico do masoquismo” que ele afirma claramente a impossibilidade de identificarmos o princípio de inércia com o princípio de prazer. Como fecho dessa imprecisão, é dado se depreender que Freud percebe como necessário substituir o princípio de inércia pelo princípio de constância como princípio regulador dos processos psíquicos. O conceito de investimento também adquire grande relevância no Projeto 1895, apesar de sua apreciação haver sido inicialmente referenciada no texto “Estudos sobre a histeria”, quando Freud o introduz para designar uma representação cujo afeto não fora descarregado - buscando explicar os mecanismos presentes nesse processo, Freud propõe a hipótese das chamadas barreiras de contato. A ideia até então prevalecente caminhava na lógica oferecida pela neurologia, que vinculava o conceito de investimento a processos materiais (neuronais); entretanto, Freud avança no entendimento de que investimento consistiria no fato de a energia psíquica estar ligada a um neurônio ou grupo de neurônios (ou a uma representação ou grupo de representações), ou seja, para que esses neurônios (ou grupo deles) possa estar cheio de energia psíquica se faria necessário haver um tipo de resistência que impedisse a descarga total dessa energia (conceito do arco reflexo), ao que Freud atribui localização a essa resistência nas sinapses dos neurônios, que funcionariam como barreiras contra essa descarga - hipótese das barreiras de contato. Depreende-se, portanto, como citado no texto em estudo, “... apenas da ocupação de um neurônio ou conjunto de neurônios pela energia psíquica, mas de uma ocupação que leva em conta a posição recíproca dos neurônios, a direção da corrente (Strömmung) no neurônio, a relação entre o investimento e a facilitação (Bahnung), a constituição de percursos privilegiados, enfim, uma estratégia de ocupação capaz de dar conta da complexidade do aparato”. A hipótese das barreiras de contato, a partir dessa inicial explanação torna-se fundamental às considerações expostas por Freud ao tratar do aparelho neural, ou seja, a importância do conceito de memória - até porque, sem a capacidade de armazenar informações, o aparelho neural ficaria reduzido a um mero condutor. Para explicar sua percepção de memória, Freud estabelece distinção entre neurônios permeáveis e impermeáveis, definindo que o fator que os diferenciaria seria decorrente da resistência das barreiras de contato - neurônios permeáveis servem à percepção, enquanto os impermeáveis servem à memória. O adensamento dessa discussão segue, porém mais importante é o entendimento de que está na distinção entre neurônios permeáveis e neurônios impermeáveis o suporte de que se valeu Freud para conceber o aparato de memória é formado por um processo de sucessivo de estratificações, sendo essa memória constituída por facilitações existentes entre os neurônios - aflora, então, a necessidade de discussão desse processo de facilitação. A ideia de facilitação, como entendida por Freud, encontra certo tipo de barreira na sua concepção quando traduzida para a língua portuguesa, dada a amplitude de seu entendimento. No contexto em que se vê enfocada, facilitação constitui-se uma ideia de cadeia onde seus percursos são diferenciados, ou seja, um sequenciamento onde as barreiras de contato oferecem diferentes níveis de resistência ao percurso das excitações, pois se assim não fosse, não haveria memória, pois o que a caracteriza é o fato de haver, como encontrado no texto base, “... certas barreiras de contato “facilitam” o percurso em determinadas direções e não em outras, o que dá lugar à repetição dos percursos facilitados”. Tal acepção é explicitada no texto de Freud, quando exemplifica a questão afirmando que “Se a facilitação fosse igual em todas as partes, não se explicaria a predileção por um caminho”, ou seja, as chamadas facilitações facultam a formação, a partir de uma trama dos neurônios, de trilhas privilegiadas que, de alguma forma, se entrecruzam, favorecendo a repetição exata de um mesmo percurso pelo indivíduo, pois se assim não fosse isso tornar-se-ia impossível. Portanto, é a partir dessa capacidade de armazenamento de informações que o indivíduo consegue ordenar suas memórias, fazer associações, “ter pensamentos” etc. Nesse ponto, Freud depara-se com uma questão de extrema relevância para a teoria psicanalítica, qual seja, a consciência. Apesar de a consciência não aparecer de modo explícito no texto do Projeto 1895, ela é objeto de discussão por buscar Freud, inicialmente, tentar explicar os processos psíquicos em termos quantitativos. Como já apresentado, essa inicial tendência logo se mostra insuficiente para ele próprio, obrigando-o a adentrar no campo qualitativo, quando então aparece a ideia de consciência como problema a ser solucionado. Freud considerava que a quantidade seria um quantum finito e determinado de energia que circulava pelo aparato psíquico, enquanto a qualidade diria respeito a aspectos bem mais elaborados, que se apresentariam como semelhanças ou diferenças, como p. ex. uma cor, um som, texturas, quente ou frio etc. – elementos impossíveis de se verem reduzidos a quantidades. Mesmo diante dos muitos avanços já alcançados por Freud, seus questionamentos se avolumavam, objetivando criar sustentação para as teorias psicanalíticas - nesse específico ponto, sua inquietação tinha como foco a impossibilidade de estabelecimento de um tipo de métrica para qualidade. Entretanto, sua aquietação intelectual não se afigurava inovadora, pois desde a antiguidade e, mesmo na filosofia moderna (de Descartes a Kant), esse tipo de questionamento, há muito, já se fazia reverberar... Porém com Freud, essa inquietação avançava de certo modo diverso ao do convencional pensamento científico - até por estar ele adentrando num campo à época totalmente desconhecido (o consciente e o inconsciente, em seus desdobramentos); para a ciência natural, primeiro é preciso “ver”, ser capaz de comprovar e replicar essa “visão”, pesar, medir e quantificar o objeto dessa descoberta... para depois “acreditar”; porém ele, de modo diferente, desenvolvia suas “crenças” e, a partir delas, buscava encontrar, para elas, “respostas” lógico-estruturadas – ainda que, em princípio, não fosse possível a elas serem oferecidas comprovações cartesianas para dar prova às suas hipóteses; assim, ao longo de sua busca para entendimento do consciente/inconsciente, pouco a pouco, suas crenças vão avançando, ganhando uma nova e ampliada perspectiva, manifestando-se ele, nesse ponto de seu trilhar por novos saberes, que “... reunimos ânimo suficiente para presumir que haja um terceiro sistema de neurônios que é excitado junto com a percepção, mas não com a reprodução, e cujos estados de excitação produzem as diversas qualidades - ou seja, são sensações conscientes”. Avança ele sua perquirições, refletindo sobre o fato de que, se a consciência oferece-nos apenas qualidades, a ciência natural propõe que o mundo externo fornece-nos somente quantidades, é válido se imaginar que na arquitetura dos neurônios existam alguns dispositivos capazes de transformar a quantidade externa em qualidade - a qualidade resultaria, assim, da própria estrutura do aparato neuronal. De modo resumido, podemos descrever as conclusões alcançadas por Freud, conforme proposto por Gilberto Gomes em “A teoria freudiana da consciência”, no sentido de que a consciência “... é atribuída à atividade de um sistema hipotético de neurônios, o sistema ω (ômega). Este está em conexão com o sistema ψ (psi), que é responsável pelos processos psíquicos em geral: percepção, memória, desejos, fantasia etc.”. Em relação à percepção consciente, Freud supõe que a excitação proveniente do mundo exterior atinge inicialmente o sistema φ (phi), ligado aos receptores sensoriais, de onde se transmite a ψ e finalmente a ω. O citado autor também explica o porquê de Freud escolher letras gregas para nomear esses sistemas, afirmando que “... φ e ψ são as iniciais de fisiológico e psíquico, respectivamente, e ω assemelha-se graficamente à letra W, inicial da palavra alemã para percepção, Wahrnehmung”. Continua sua percepção acerca das conclusões a que chegou Freud, explicando ser possível identificar “... a íntima conexão que Freud estabelece entre percepção e consciência. A consciência, no entanto, não é só percepção consciente, ela compreende também as lembranças conscientes, as fantasias conscientes, os desejos conscientes, o pensamento consciente etc”. No Projeto, Freud os concebe todos como processos que ocorrem num sistema (psi) e cuja consciência é constituída pela atividade de outro (ômega). A consciência que uma pessoa tem de seus próprios processos psíquicos, ou de seu conteúdo, é uma forma de percepção, pelo sistema ômega, de parte do que se passa em psi. Em relação a todos esses processos, o esquema do Projeto, como veremos, não será fundamentalmente modificado. Avança ele ainda mais, esclarecendo dúvida inicialmente suscitada por Freud sobre a função do sistema neural ômega e suas relações com os diversos eventos psíquicos, como a percepção, o pensamento, as lembranças, as emoções, o desejo e a fantasia, quando afirma que “... o sistema ômega é concebido como um sistema adaptado à detecção de qualidades. Por um lado, qualidades sensoriais, respondendo pela consciência perceptiva. Por outro, qualidades de prazer e de desprazer, ligadas aos estados de tensão no sistema psi. A vivência de satisfação e a vivência de dor, descritas por Freud nos capítulos 11 e 12 da parte I do Projeto, provocam sensações de prazer ou desprazer em ômega, mas não dependem delas. Também os efeitos dessas vivências, descritos no capítulo 13, que são, respectivamente, o desejo e a defesa primária, não dependem de ômega, pois se produzem automática e inconscientemente em psi. Uma primeira função do sistema da consciência (ômega), descrita no Projeto (parte I, capítulo 15), concerne às indicações de realidade, ou indicações de qualidade sensorial, que permitem distinguir entre uma percepção e uma representação derivada da memória. Estas indicações de realidade, possibilitadas pelo processo secundário, que inibe o investimento alucinatório ou a defesa primária excessiva, servirão para orientar os processos do pensamento e a eventual descarga por ocasião da ação específica que produz a satisfação”. Outra questão já enfrentada no Projeto 1895, que adiante viu-se mais bem consolidada em “Além do princípio do prazer” e em “O problema econômico do masoquismo”, é a do prazer e do desprazer. Como supostos necessários para compreensão do funcionamento do aparato psíquico, Freud explica ser a consciência responsável pelas qualidades sensíveis, sendo ela que fornece ao sistema psi os signos de qualidade; também é ela que fornece as chamadas sensações de prazer e desprazer. Porém a cada avanço alcançado, novas questões se apresentam a Freud, na sua incessante busca pelo conhecimento. Nesse sentido questiona: “... se a “tensão do estímulo” fosse a responsável pelas sensações de prazer e desprazer, não haveria como explicar situações nas quais um aumento de estímulo, com o consequente aumento de tensão, pudesse ser vivida como prazerosa, e este é o caso, por exemplo, da excitação sexual. Surge em decorrência disto, a pergunta de se é possível manter uma relação simples entre a intensidade das sensações e a quantidade de excitação, isto é, se a intensidade das sensações decorre diretamente da intensidade do estímulo, numa relação puramente quantitativa”. Na direção de resolver essa nova barreira no desvendamento do processo, Freud introduz o Conceito de Período, segundo o qual, “As sensações de prazer e desprazer na consciência resultam não da Qn recebida por ela, mas da aptidão desse sistema para receber o período do movimento neuronal. Dessa forma, as sensações conscientes de prazer e desprazer não podem ser decorrentes do aumento ou diminuição da quantidade (tensão do estímulo), embora indiretamente estejam ligadas a ela, mas decorrem de um fator qualitativo, “talvez seja o ritmo, o ciclo temporal das alterações, elevações e quedas da quantidade de estímulo; não sabemos”. Assim, didaticamente Freud sintetiza os processos de estímulo, asseverando que eles advêm de duas fontes: endógena e exógena. E que “... os estímulos endógenos atuam de maneira contínua, ao contrário dos estímulos externos, e tornam-se estímulos psíquicos por somação (summation).... admite que tais estímulos endógenos são de natureza intercelular, de modo que cada Qn, considerada isoladamente, é de pequena intensidade, não sendo capaz de, no caminho em direção a psi, romper as barreiras de contato que lhe oferecem resistência. A facilitação se dá a partir de uma certa quantidade, resultante da somação das Qn. A característica peculiar dos neurônios do sistema psi é que após a passagem de Qn eles recuperam sua impermeabilidade, contrariamente aos neurônios da consciência que permanecem permeáveis”. Cabe aqui ressaltar que embora a ideia de período, a uma primeira vista, remeta-nos a pensar em quantidade, assim não o é. O período não é uma quantidade, e sim modificações no ritmo temporal de alterações quantitativas, que podem ser grandes ou pequenas – ele (período) não diz respeito a uma grandeza absoluta, mas à mudança dessas grandezas num período qualquer de tempo. Muito embora Freud, em suas teorias psicanalíticas, não tenha dedicado maior preocupação com a questão da “dor”, no Projeto 1985 ela é referenciada no texto base em estudo sob uma perspectiva interessante: “... num organismo vivo, os dispositivos biológicos têm por função proteger a vida dos investimentos perigosos, no entanto, a ação desses mecanismos tem seus limites de eficácia, além dos quais eles fracassam e sobrevêm a dor e, no limite, a morte... sendo o fracasso desses dispositivos, provocando uma invasão excessiva de Qn, que provoca a dor. A dor consiste, portanto, na irrupção de grandes Q em psi”. Importante ser ressaltado que, para Freud, a dor não se situa no polo oposto do prazer, pois o oposto deste (prazer) é o desprazer. Segundo Freud, embora dor e prazer ou desprazer não transitem numa mesma trilha perceptiva, isso não é excludente de a dor se constituir como que um ingrediente relevante na economia prazer-desprazer e/ou mesmo fazer parte de uma vivência prazerosa, como por ele aventada a hipótese de existir uma relação entre a dor e o prazer sexual do masoquismo, articulando, assim, a dor e o prazer de uma forma não mutuamente exclusiva. Outro ponto enfocado no Projeto 1895 é o aparecimento da discussão sobre o Eu. Resumidamente pode-se dizer, como consta do texto em análise, que o “... eu do Projeto é, pois, essa organização de neurônios constantemente investidos, investimento este que consiste na provisão requerida pela função reguladora que ele desempenha... Essa função de inibição se exerce sobre os processos psíquicos primários, dando lugar aos processos psíquicos secundários”. Segundo assinala Freud, nos processos psíquicos primários, o investimento-desejo conduz à alucinação e ao desprazer dela resultante, enquanto nos processos psíquicos secundários ocorre o que ele chama de “um bom investimento do eu”, o qual inibe os primeiros. Importante ver-se aqui ressaltado que, para Freud, a distinção feita entre processos primários e processos secundários não corresponde à distinção estabelecida entre inconsciente e consciente - para ele, tanto os processos primários como os processos secundários são processos internos ao sistema psi, sendo eles, portanto, inconscientes. Nesse caminhar, Freud introduz adiante o conceito de “coisa”, porém é através de Lacan, conforme descrito no texto em estudo, que mais objetivo esclarecimento se vê apresentado, quando adverte para “... não nos iludirmos quanto à natureza da coisa. Não se trata de algo que por permanecer coeso nos informará sobre a qualidade do objeto, seus atributos; o Ding (coisa) é, ao contrário, o que nessa experiência é isolado pelo sujeito como sendo estranho. Ding é o não-representável, mas ao mesmo tempo, aquilo em torno do qual se organizam as representações”. Finalizando, Freud discorre no Projeto 1895 sobre o pensamento e a realidade, analisando no final do Capítulo I e todo Capítulo III o processo de pensamento - pensar discernidor ou judicativo e o pensar reprodutor. Como afirmado no texto base, “... o pensar judicativo prepara o caminho para o pensar reprodutor, fornecendo-lhe facilitadoras da identidade procurada. Se, uma vez concluído o ato de pensar, o signo de realidade se soma à percepção, obtém-se o juízo de realidade, a crença, alcançando-se assim a meta de todo o trabalho... Todo juízo de realidade traz implícita uma crença nessa realidade. A realidade, ou, para ser mais exato, o real, nunca é dado. Um juízo de existência tem sempre o estatuto de uma hipótese”. Portanto, Freud tem a clara percepção de que o pensar discernidor é preparatório ao pensar reprodutor, ou seja, nele se dá a decomposição do complexo perceptivo no sentido de se distinguir a percepção da representação, sendo que essa distinção será possibilitada pelos signos de qualidade que são também signos de realidade. São estes signos que vão indicar para a psi que se trata de uma percepção – a esse mecanismo Freud denomina como “atenção psíquica”. Concluindo, podemos afirmar que o Projeto 1895 é, por assim dizer, uma tentativa de Freud de trazer para o plano científico o que se apresentava na clínica pré-psicanalítica em seu início vienense - uma tentativa que somente veio a público após sua morte. Freud valeu-se para redigir esse Projeto, de conceitos de diversas áreas do conhecimento prevalecente à época, como medicina, biologia, filosofia, física etc. Nele, Freud apresenta, muitas vezes como hipóteses – as quais, adiante, adensa suas percepções através de textos específicos -, supostos do aparato neuronal que, mesmo agora, demonstram o avanço de sua visão científica - ideias que ultrapassam a finalidade de promover uma psicologia como ciência natural... Nesse caminhar, busca apresentar empiricamente o funcionamento da mente humana de acordo com uma descrição baseada, principalmente, na física de sua época. Embora suas elaborações transcendam o modelo neurológico corrente, e nem sempre fique restrito ao modelo científico, esse ir além da "psicologia como uma ciência natural" faz com que o Projeto 1895 traga uma importante contribuição metapsicológica e contenha gérmens de conceitos que foram (e certamente ainda vão ser) retomados e desenvolvidos ao longo dos tempos.