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O Rito e o Sagrado

na Poética da Criação
e das Relações

99a Mostra Macunaíma de Teatro


O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações

Como transformar as
ações na sala de aula e na cena,
2 em uma experiência sagrada
O Rito e o

PROBLEMA CERTO
Sagrado na
Poética da Como a pesquisa sobre o rito e o sagrado hoje,
Criação e pode ser a linha de ação dos processos durante
das Relações todo o percurso de criação?
Como estabelecer relações entre a dimensão
prática do que é ritualístico, sagrado e os
princípios do Sistema Stanislávski?

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações

O sagrado não é aquele que necessariamente trabalha


com “temas religiosos”. Mais do que falar sobre o que se
pretende, é propiciar uma experiência do sagrado. O rito,
portanto, não deve ser compreendido como expressão
formal de conteúdo religioso. O que Artaud chama de
ação ritual, e como evocação de “magia" torna-se uma
estratégia de questionamento artístico, cultural e político.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações

A magia não é entendida aqui como uma ciência ingénua


que visa provocar alterações concretas no real. Ela estaria
mais próxima de uma ação poética, que lida basicamente
com a linguagem, abrindo novos modos de percepção
e outras dimensões da realidade. Artaud, por vezes,
chamará esse processo de “metafísica em realidade."
Cassiano Quilici - Antonin Artaud Teatro e Ritual

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O Rito e o

ONDE CHEGAR
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações

Criar caminhos
investigativos onde cada
atriz e ator encontre o que
há de humano em si e na
outra pessoa.

Experienciar coletivamente
as relações artísticas na
criação, com ética.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações Estabelecer o “Sagrado“
como centro organizador e
manifestação da natureza.

Estabelecer o “Sagrado“
como centro organizador e
manifestação da natureza.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações Estimular, através da
experiência cênica,
reflexões humanas que
possam gerar ações mais
afetivas no contato entre
as parceiras e parceiros
de criação, entre o Teatro
Escola e o público.

Despertar sentidos e
motivações para a criação
a partir da pesquisa
proposta.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações

STANISLÁVSKI
espiRITUALidade
Relações entre o
Sistema Stanislávski,
o rito e o sagrado.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações A vivência espiritual, através dos mitos e ritos, contribui
efetivamente para a integração de grupo e étnica, proporciona
mobilização e mudança no indivíduo como um todo desde
a sua cognição, até seu comportamento social, pois o afeta
integralmente e isso reflete no grupo onde o mesmo está
inserido.
(RELEVÂNCIA DO MITO E DO RITO PARA EPIRITUALIDADE INDÍGENA
DO POVO TABAJARA)

Na espiritualidade indígena, o sagrado é situado em


muitas realizações do cotidiano e em celebrações mais
ritualísticas como a roda do Toré. (...) Ao fazer a análise, conclui-
se que dentro da espiritualidade indígena o mito e o rito são
indissociáveis e necessários na prática espiritual.
(O MITO E O RITO NA ESPIRITUALIDADE INDÍGENA: UMA VISÃO A
PARTIR DOS POTIGUARA E TABAJARA DA PARAÍBA)

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da Revisitando as referências literárias do Sistema Stanislávski é possível
Criação e perceber muito claramente como os temas Ritual e Sagrado margeiam
das Relações os ensinamentos e reflexões sobre os princípios e elementos do
processo de criação no trabalho do ator sobre si mesmo. A palavra ritual
não está apenas dentro da palavra espiritualidade, conceitualmente
elas são inseparáveis na compreensão do Sagrado. De acordo com
Boff (2001), a espiritualidade constitui-se um meio pelo qual o sujeito
individualmente ou em grupo comunica-se com aquilo que considera
sagrado (...) De acordo com o autor, desde tempos remotos, ainda que
com comunicação limitada, os seres humanos, em busca de respostas
para questões existenciais, recorriam a entidades sagradas.
O teatro, ou o fazer teatral, assim como a trajetória de Stanislávski na
pesquisa de seu Sistema, se apresenta como uma artesania sagrada,
na qual buscou criar e recriar sentido para a vida através da arte, ou
para a arte através da vida. A busca pela espiritualidade!

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da Pessoas de todos os cantos
Criação e da Rússia escreviam cartas
Você sabe por que eu deixei de
das Relações a Stanislávski, em busca de
lado todos os meus negócios
conselhos ou apenas para
pessoais e me dediquei ao teatro?
externar o sonho de um dia poder
Porque o teatro é a mais poderosa
assistir a um espetáculo do TAM.
cátedra, ainda mais potente do
Em seu arquivo há milhares de
que o livro ou a imprensa. Essa
envelopes com carimbos postais
cátedra caiu nas mãos dos piores
das cidadezinhas mais afastadas.
representantes da humanidade,
E Stanislávski, na medida do
e eles a transformaram em um
possível, não se furtava a esse
lugar de depravação. Minha tarefa,
diálogo. Um bom exemplo são as
na medida do possível, é livrar a
cartas de Aleksandr Borodúlin,
família dos artistas dos ignorantes,
um jovem de 16 anos, da pequena
mal preparados e exploradores.
cidade provinciana de Rybinsk,
Minha tarefa, na medida do
que sonhava em se tornar ator e
possível, é explicar à geração atual
“filho espiritual” de Stanislávski.
que o ator é um profeta da beleza
O mestre não poupou seu tempo
e da verdade.
e respondeu ao adolescente com
toda a seriedade:
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O Rito e o
Sagrado na Este texto foi publicado pela primeira vez em 1994, nas obras
Poética da
Criação e completas. Até então, existia como manuscrito sob os números
das Relações 21.659 e 21.661, guardado no arquivo pessoal da filha de
Stanislávski, Kira Konstantínovna Alekséieva-Falk (1891- 1977).
Algumas partes foram escritas pelo próprio Stanislávski e
outras ele ditou para sua enfermeira Liubóv Dukhóvskaia. É
o último texto sobre o Sistema. Seu foco é o que ele chama
de “novo método” dos ensaios, ou seja, da abordagem do
papel. Nele, antes de tudo, Stanislávski tenta eliminar toda a
“violência” do diretor sobre o ator. Visa ao desenvolvimento
da personalidade artística do ator-criador à base de sua
independência na elaboração de études e improvisações livres
a partir da descoberta de si mesmo no papel e do papel em si
mesmo. O mestre descreve o processo da criação das ações
físicas e verbais que repre- sentam os caminhos conscientes
e efetivos para entrar no secreto e sagrado campo da criação
inconsciente, ou seja, a inspiração.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações
Um dos principais temas da fase inicial de seu trabalho
parece ter sido o da fuga de um teatro "superficial" para algo
mais "verdadeiro". Isso é contrabalançado pelo entendimento
de que o teatro, de fato, necessita desses dois extremos para
ter alguma vida. Também precisamos de diversão para viver;
porém, a diversão excessiva começa a se parecer com a
histeria. Como muitos outros grandes artistas, Stanislávski
transita entre esses eternos opostos, o profano e o sagrado,
o grotesco e o sublime, o terreno e o etéreo*, o espetáculo
e o culto. Ignorar um desses polos pode ajudar a nos sentir
mais confortáveis a curto prazo, mas acaba conduzindo a um
.suicídio artístico. Para viver plenamente, precisamos saber
gerenciar o têriue limite entre a ordem e o caos.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e O início do século XX, principalmente a década de 1910, foi
das Relações marcado por um enorme interesse em assuntos esotéricos.
Todo o trabalho de Stanislávski tem como principal motivação
a ideia de aperfeiçoamento do ser humano. Suas teorias
e técnicas estão impregnadas por ideias metafísicas ou
simplesmente esotéricas. Súler, próximo de Lev Tolstói, era
um tolstoísta convicto. Vakhtángov praticava ioga e era um
estudioso de religiões e filosofias orientais. Mikhail Tchékhov
viria a se tornar teosofista. Madame Blavátski e Ramacharaca,
autores ligados à tradição esotérica, tinham tanta influência
quanto os filósofos e psicólogos da tradição racionalista
europeia. É preciso compreender o Sistema também sob
esse ângulo. Stanislávski tinha por objetivo chegar a um
ator-sacerdote, que possibilitaria ao es- pectador a vivência
espiritual da arte.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
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O trabalho no Estúdio de Ópera pode ser conhecido em detalhes


no livro Conversas de K. S. Stanislávski no Estúdio do Teatro
Bolchói nos anos 1918-1922, 40 de Concórdia Antárova, 41 que
anotava todas as suas aulas e ensaios. Conversando com seus
alunos no Estúdio do Bolchói, Konstantin continuava a buscar
meios que tornassem o processo da criação “mais simples,
mais leve, mais elevado, mais alegre”. Antárova, que também
era teósofa, comentou que os ensinamentos de Stanislávski
não se limitavam a aspectos técnicos e teóricos da arte; eram
também intervenções de um mestre que tinha por principal
preocupação o desenvolvimento espiritual de seus discípulos.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da Muito cedo - ele tinha apenas 23 anos - Stanislávski define aquilo
Criação e que seria o principal objetivo da sua busca artística durante a vida
das Relações inteira. E, certamente, ele teria bastante forças e energia, o que
lhe faltou foi apenas tempo para concluir o grandioso plano de
reunir e escrever tudo o que queria sobre a arte do ator.
Logo no início, já percebia o que seria uma linha transversal
no processo da elaboração do Sistema: a busca pelo elemento
transformador para criar a “atmosfera espiritual” da arte do ator.
No início aparecem questões ligadas à criação da vida do espírito
humano no palco - um conceito-chave de toda a sua busca
artística.
É muito importante seguir exatamente este método e ordem
neste processo psicológico porque a percepção da essência
espiritual escondida em cada trecho separado do papel provoca
o sentimento afetivo, enquanto a definição verbal do sentimento
afetivo determina um objetivo psicológico incerto e mal definido.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações O público de certa maneira cria a acústica espiritual. O que ele
recebe nos devolve, como um sistema de ressonância, na forma
de suas próprias vivas emoções humanas.
Para Stanislávski, há uma diferença clara entre artista e ator.
Ator é um termo mais técnico, seria aquele que apenas realiza
o trabalho no palco. Artista define quem o realiza para além da
simples técnica, em consonância com sua natureza espiritual.
O artista busca material espiritual em sua alma e também nas
experiências de vida que acontecem ao seu redor e na natureza.
Ele está à procura de uma amostra — um modelo vivo para a
futura criação. Para realizá-la, o talento, no trabalho, envolve
algumas habilidades criadoras independentes.
Qualquer força espiritual, assim como os músculos de corpo,
exige um desenvolvimento gradual. […]

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Assim como um músico fica embriagado pelo som, o artista plástico
O Rito e o
Sagrado na pelas cores, o escultor pela linha e o poeta pelo verso sonoro, o ator
Poética da chega ao êxtase sentindo a beleza da sua criação imaginativa, e
Criação e dessa sensação a partir da representação dessa criação, ele chega às
das Relações sublimes vivências espirituais.
Desta maneira, a ideia é percebida na forma, e a forma leva à transmissão
da vivência espiritual.
É o culto da forma e da beleza.
Entre o sentimento simples e o estético pode-se fazer o mesmo paralelo
que existe entre a planta do campo e aquela de estufa. Uma cresceu
em liberdade; a outra é cuidadosamente cultivada pela imaginação
artística e pelo gosto refinado no ambiente protegido pela beleza.
Essas duas direções criadoras, devido às qualidades congênitas
internas e externas dos artistas, formam inúmeras combinações de
personalidades artísticas que são individuais e não se repetem na vida.
Os limites de suas direções não podem ser desenhados e bem definidos.
Até certo ponto, a mesma pessoa pode ser apta tanto à vivência natural
quanto à encarnação estética ou à representação técnica.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações A arte do ator-criador baseia-se na
vivência, na encarnação das imagens
e no impacto delas sobre o espectador.
Esse trabalho artístico requer talento
especial, técnica espiritual e física,
conhecimento, experiência, trabalho
assíduo e tempo.
Por um lado, a análise esclarece o
plano do papel, ou seja, o objetivo
da aspiração da vontade durante a
criação, e, por outro, aproxima o ator
da vida espiritual do papel, isto é, o
faz tornar seus sentimentos íntimos e,
consequentemente, atraentes para a
alma do próprio artista.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações Ao perceber a vivência e ao se sentir uma testemunha ocasional,
o espectadorpor, modéstia, fica imóvel para não atrapalhar
aquilo que está acontecendo. Sua atenção e concentração
levam, primeiro, à curiosidade e, em seguida, à necessidade
humana de comunicação emocional. Esse tipo de espetáculo
causa empatia e vivência. Ao ter vindo para se divertir, o público
cai em poder do ator, que age com hipnose, contagiando o
espectador com sua vivência espiritual.
O espectador descobre a vida, inquieta-se com ela e a vivência.
Ele está na cadeira de observador, mas, afinal de contas, por
meio da compaixão começa a sentir amor e simpatia em
relação aos atores. Aproximam-se pela sensação partilhada
da comunicação espiritual.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações Ou você segue o caminho da verdade ou, se não encontrou a
verdade para este espetáculo, você segue a segunda verdade,
ou seja, o hábito (que é a segunda natureza). No primeiro caso,
é necessário se preparar espiritualmente para o espetáculo,
ou seja, recordar todas as circunstâncias, o dia todo e, nessa
atmosfera, encontrar sua atitude com relação à realidade (o
grande círculo, toda a sala e os bastidores). No segundo caso,
é se preparar mecanicamente (mais fisicamente). O círculo é
pequeno e mecânico. [...]
Então, depois da análise, o artista entende com a razão o papel e
a peça em todos os seus detalhes e, ao mesmo tempo, percebe
com seus sentimentos os elementos básicos de sua alma
necessários para a vivência. Em outras palavras, a razão criou
um esqueleto ou um plano do papel, enquanto o sentimento
guardou apenas o material espiritual para a criação.

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Já várias vezes se falou sobre os perigos da atuação “em geral”
O Rito e o dos atores que, por causa de sua indefinição, paralisa a vontade
Sagrado na criadora, e a vontade paralisada entrega o ator ao poder dos
Poética da hábitos musculares, das convenções e dos clichês. Portanto, antes
Criação e de tudo, é preciso encontrar em sua alma algumas sensações
das Relações definidas e colocá-las na base da vida espiritual do papel. [...]
A imobilidade daquele que está sentado no palco não implica
sua passividade. Pode-se ficar imóvel e apesar disso agir
verdadeiramente, não no exterior (fisicamente) mas no interior
(psiquicamente). E não só isso. Muitas vezes a imobilidade física
provém da intensiva ação interior, que é especialmente importante
e interessante na criação. O valor da arte é definido por sua
essência espiritual. Por isso, vou mudar um pouco minha fórmula
e direi assim: no palco é preciso agir, exterior e interiormente. Com
isso realiza-se uma das bases principais da nossa arte: a atividade
e a ação da criação e arte cênicas. Não é necessário correria sem
sentido no palco. Lá, não se pode correr por correr, nem sofrer por
sofrer. No tablado não se deve agir “em geral”, pela própria ação,
mas agir com fundamento, com objetivo e de maneira eficiente.
Na escolha da ação, deixem o sentimento em paz. Ele vai aparecer
por si só, como resultado daquilo que antes provocou ciúmes,
amor ou sofrimento. Não se pode representar paixões e imagens,
23 mas deve-se agir sob a influência de paixões em imagem.
O Rito e o

TEMPEROS
Sagrado na “Rituais são cerimônias coletivas onde se realizam
Poética da determinadas ações que provocam na mente dos
Criação e seus participantes uma emoção que lhes confere
das Relações uma espécie de iluminação, uma conscientização
que os transporta para algo além, capacitando-os
a enfrentar melhor as dificuldades do dia a dia.
E, em se transformando, transforma-se todo o
ambiente.”

Ana Maria Amaral - Teatro de Formas Animadas

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações Explico em relação aos rituais: em todas as sociedades, existem
eventos que são especiais. Na nossa, por exemplo, distinguimos
uma formatura, um casamento, uma campanha eleitoral, a posse
de um presidente da república, e até mesmo um jogo final de Copa
do Mundo como eventos especiais e não cotidianos. Quando assim
vistos, eles são potencialmente “rituais”. […]
Consideramos o ritual um fenômeno especial da sociedade, que
nos aponta e revela representações e valores de uma sociedade,
mas o ritual expande, ilumina e ressalta o que já é comum a um
determinado grupo. Como venho enfatizando, ao invés de nos
fixarmos nos critérios (ocidentais) de racionalidade, procuraremos
seguir critérios de criatividade e eficácia. Rituais são bons para
transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver
conflitos e reproduzir as relações sociais.”
Mariza Peirano - Rituais Ontem e Hoje

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O Rito e o
“Omama disse a nossos antepassados: “Vocês viverão nesta floresta que criei.
Sagrado na
Comam os frutos de suas árvores e cacem seus animais. Abram roças para
Poética da plantar bananeiras, mandioca e cana-de-açúcar. Deem grandes festas reahu!
Criação e Convidem uns aos outros, de diferentes casas, cantem e ofereçam muito alimento
das Relações aos seus convidados!”. Não disse a eles: “Abandonem a floresta e entreguem-na
aos brancos para que a desmatem, escavem seu solo e sujem seus rios!”. Por
isso quero mandar minhas palavras para longe. Elas vêm dos espíritos que me
acompanham, não são imitações de pele de imagens que olhei. Estão bem fundo em
mim. Faz muito tempo que Omama e nossos ancestrais as depositaram em nosso
pensamento e desde então nós as temos guardado. Elas não podem acabar. Se as
escutarem com atenção, talvez os brancos parem de achar que somos estúpidos.
Talvez compreendam que é seu próprio pensamento que é confuso e obscuro,
pois na cidade ouvem apenas o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores
e máquinas. Por isso suas ideias costumam ser obstruídas e enfumaçadas. Eles
dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa. Enquanto
isso, no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi,
que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do
sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de
apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as
coisas de verdade.“
Davi Kopenawa e Bruce Albert - A Queda do céu.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e (ação ritual)
das Relações Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as
forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato
uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, "o sentido de uma ação
essencial e primordial através da referência que se estabelece do profano ao
sagrado". Em resumo: o rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito
rememora, o rito comemora.
(o tempo profano e o tempo sagrado)
Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um modelo
exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. […] O rito,
que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em verbo, sem o que ela
é apenas lenda, "legenda", o que deve ser lido e não mais proferido. […]
(o caráter sagrado)
A manifestação da divindade através de uma pedra, de uma árvore, de um
animal ou de um homem consagrados. Nesse caso, nem a pedra, nem a
árvore, nem o animal, nem o homem são sagrados e sim aquilo que revelam:
[…] “sacramento", sinal sensível de outra coisa; e, por isso mesmo, permitem o
acesso ao sagrado e a comunhão com ele.
Junito de Souza Brandão

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O Rito e o
Sagrado na De acordo com Joseph Campbel, a função do rito, do ritual, é dar forma a vida
Poética da humana, não a maneira de um mero arranjo superficial, mas em profundidade,
Criação e ou seja, quando a gente fala de um rito, quando a gente fala das normas,
das Relações quando a gente comenta sobre a maneira correta de fazer as coisas, a gente
está estruturando a vida. Não como uma questão superficial, como uma
etiqueta vazia ou então um protocolo sem sentido, mas pela necessidade que
o ser humano tem de organizar o mundo, todos nós precisamos organizar as
nossas coisas.

O rito ajuda o indivíduo a entender o seu papel no mundo. É preciso entender


as leis e o funcionamento da sociedade. Como nossa sociedade é inovadora,
ele precisa inovar dentro de uma estrutura. Se não houver estrutura a vida não
flui.

O ser humano relaciona seus ritos a partir da sua relação com o mundo.

O rito despersonaliza o protagonista e o conecta com os princípios e leis da


natureza. O ser humano é um agente, uma canal e não o objetivo final.
A importância dos ritos. Joseph Campbell.

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O Rito e o
Sagrado na
Poética da
Criação e
das Relações A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio
de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do
sagrado. Trata-se do jogo. Sabe-se que as esferas do sagrado e do jogo
estão estreitamente vinculadas.

A maioria dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias


sacras, de rituais e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à
esfera religiosa em sentido amplo. Brincar de roda era originalmente
um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela
posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião
e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a
relação entre jogo e rito, Émile Benveniste mostrou que o jogo não
só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo,
representa a sua inversão. A potência do ato sagrado

— escreve ele — reside

Giorgio Agamben

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Home
nagem

ZÉ CELSO
Fundador do Teatro Oficina e
nome central do teatro brasileiro
(1937 - 2023).
30
Home
nagem José Celso Martinez Corrêa entende o teatro como um espaço
sagrado, capaz de ressignificar a relação das pessoas com o entorno,
com o tempo, consigo e com os outros. (...) A dimensão ritualística
do teatro está imbricada na essência do trabalho de Zé Celso. (...) Sua
perspectiva antropofágica da arte e da vida é fruto de uma postura
holística que se manifesta em toda a sua vivência.

"O INCONSCIENTE É O MEU TERRENO, MEU TERRITÓRIO”.


Revista Continente

31
Home
nagem
“No mistério que é a vida, ao plantar uma árvore nesse nosso chão,
ao se enraizar, ela alcança o sagrado. Esta árvore simboliza a nossa
cultura, nesse espaço aqui diante de nós, simboliza o Oficina, esta
árvore, viu Zé, esta arvore é você”

Montenegro sobre Teatro Oficina e Zé Celso Martinez Corrêa


julho de 2023

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Home " O Ego não é nada. O que tem é o outro. Porque o outro é quando
nagem o teu corpo se pinta com o universo, com o corpo sem órgãos, com
tudo, com este vento que está vindo agora, com este frio repentino,
contracena com todos, com vocês que estão aqui na minha frente.
Com Valéria que está aqui atrás, enfim, e o que liga com tudo é o
artista e todos nós temos, cada pessoa, cada ser humano tem isso
dentro, mas é muito difícil você dar ouvidos para este deus, que é o
deus do desconhecido que está em tudo, que está em nós. É o deus
criador, o deus que te põe em estado de criação.”

Zé Celso Martinez Corrêa

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Home “ Eu tive uma influência de Stanislávski muito importante. Essa não
nagem renego jamais […] Ele trabalha o inconsciente. […] Stanislávski foi
uma coisa muito importante porque superou o ego das pessoas. O
ator tem muito ego né? Mas aí tinha o Stanislávski. Era muito fácil
dirigir.”

"O teatro exige muito desejo, exige muita libido, exige muito amor.
Tanto que Stanislávski fala que o ator quando pisa em cena, ele tem
que saber o que o personagem deseja, o que o personagem quer. É o
que define a gente, o querer.”

Zé Celso Martinez Corrêa

34
Home
nagem "Graças ao Vinícius de Moraes e ao Jobim terem feito a ligação entre
a Grécia e o Morro e o candomblé eu consigo entender mais a Grécia
do que os gregos.

São os cordões carnavalescos, a Grécia Carnavalesca do Brasil. A


Grécia está no carnaval. No Brasil, no início do século XX, o grito de
carnaval era “Evoé, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa, pa.”

Zé Celso Martinez Corrêa

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INDICAÇÕES E REFERÊNCIAS
O Rito e o Corpo a Corpo – Estudo das
Sagrado na Performances Brasileiras de Zeca
Poética da Ligiéro
Criação e
das Relações https://sesctv.org.br/programas-e-
series/teatroecircunstancia/?mediaId=
1c5c76f859299812b1cb16cf722cd96b
https://territoriosdefilosofia.wordpress.
com/2014/05/03/elogio-da-profanacao-
giorgio-agamben/
Stanislávski, Vida, Obra e Sistema.
Elena Vassina e Aimar Labaki.
O Trabalho do ator: Diário de um aluno.
Stanislávski. Tradulçao: Jean Benedetti.
O Desaparecimento dos Rituais: uma
Topologia do Presente. Byung-chul Han
https://youtu.be/czgTv2rB1UY - "A
importância dos ritos", Joseph
Campbell.
36
O rito e o sagrado
na poética da criação
e das relações

99a Mostra Macunaíma de Teatro

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