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DAWSEY, John; MÜLLER, Regina; MONTEIRO,


Marianna; HIKIJI, Rose. Antropologia e
performance: ensaios Napedra. São Paulo:
Terceiro Nome, 2013, 504p.

RAQUEL SANT’ANA
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p349-353 Schechner para definir os cruzamentos e dis-


persões entre ritual e teatro na “performance”.
Meio século após as primeiras investidas Os artigos estão distribuídos em quatro partes,
de Victor Turner no diálogo entre antropo- às quais foram acrescentados mais quatro tex-
logia e teatro e após haver sido decretado um tos que constroem saltos mais abrangentes em
performative turn nas últimas décadas, o livro relação à teoria da performance e amarram os
Antropologia e performance consolida em língua diálogos do livro, dando a ele um caráter que
portuguesa um panorama de diferentes cami- ultrapassa a mera justaposição de textos e o
nhos trilhados por dezenas de pesquisadores transforma em uma “montagem” no sentido
que têm entre suas preocupações centrais o di- utilizado por Walter Benjamin e Eisenstein,
álogo com a teoria da performance. recuperado sobretudo a partir de John Dawsey
Embora, por essa razão, se trate de um livro no livro, como caminho metodológico.
que já nasce como um marco, uma referência A primeira parte do livro, Corpo, drama e
para os estudos no país, ele vai, ao mesmo tem- memória, inicia precisamente com o artigo
po, na contramão dos paradigmas que têm se “Imagens de mães: drama e montagem”, de
imposto ao fazer Ciências Sociais no Brasil. Se John Dawsey, em que, na periferia de uma ci-
a tendência do campo tem sido uma especiali- dade do interior de São Paulo aparecem sobre-
zação cada vez maior em áreas que pouco dia- postas as imagens de “mãe sofrida” e “mulher
logam, Antropologia e performance pode ser lido doida” construindo o que ele chamou de uma
como uma espécie de manifesto pelo cruzamen- “história noturna de Nossa Senhora”. A opção
to, uma defesa das potencialidades das “monta- pela análise baseada no princípio de “monta-
gens” tensas entre imagens contraditórias. gem” revela que as tensões entre as imagens e
Quem lê transita entre índios bororo, seu caráter de “risco” é justamente o terreno
imagens de mães e “mulheres doidas”, con- que reconstrói “em meio a inervações corpo-
gadas, escritos de um Dalai Lama até bichos- rais, os laços amorosos que lhes dão sentidos de
-do-pé sentados em rodas para comer coca. viver” (p. 82). Por isso, nesses dramas, “o ins-
Tamanha abrangência traz consigo um caráter tante da ruptura coincide com a cura.” (p. 82).
de reflexão sobre o que significa o próprio fazer Por outro viés, o corpo é pensado no ar-
antropológico/performático. tigo seguinte, de Danilo Ramos, a partir da
O livro está organizado, de fato, como roda de coca dos Hupd’äh. Ali, posturas cons-
uma “trança”, metáfora utilizada por Richard troem corpos que podem assumir diferentes

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perspectivas (até mesmo a de bicho-do-pé) e composto por técnicas do corpo subjetivantes”


determinam assim a “desconstrução e reconfi- (p. 159). A busca de si teria ecos da busca do
guração da pessoa para a ação através de outra “outro” experimentada na ausência primordial,
corporalidade” (p. 93). a que se segue ao nascimento e nos constituiria
Em “Performances narrativas nos quilom- a todos (p. 26).
bos do Alto Vale da Ribeira”, Rubens da Silva A parte II, Festa e ritual, trata de pontos
traz à tona discursos construídos na disputa de contato privilegiados entre antropologia e
pelo reconhecimento do estatuto de remanes- performance, mas ainda assim é capaz de in-
centes de quilombos e demonstra o quanto cluir novos fios ao trançado da performance.
identidade e memória podem ser olhadas sob É o caso do artigo de Ana Cristina Lopes, que
a dimensão de performances. Assim, se as per- encontra uma dimensão performativa nos tex-
formances constroem identidades, no artigo tos produzidos pelo V Dalai Lama, no século
seguinte, Denise Pimenta remonta a Mauss e XVII, demonstrando que, em grande medida,
Le Breton para mostrar como é possível que a performance ritual desses textos é a própria
se construa um “corpo de fé” distinto de ou- performance do Estado tibetano em cujo pro-
tros corpos a partir da experiência de romaria cesso de formação o Dalai Lama estava engaja-
a Aparecida. do. Outros quatro artigos compõem essa parte
A experiência corporal também aparece dando relevo às relações entre ritual, devoção e
na análise de Marcos Vinícius Malheiros de performance.
Moraes acerca do cotidiano em uma escola pú- Carolina de Camargo Abreu propõe uma
blica infantil. A discussão da “mímeses” é recu- “escuta corporal e também psicossocial”, reto-
perada de Walter Benjamin e Michael Taussig mando a ideia de Constance Cassen de que “os
para a compreensão dos modos de fazer-se ou- sentidos do mundo se formam pelos sentidos
tro e fazer-se a si mesmo, pois por meio dessa do corpo” (p. 164). Nas festas rave apresenta-
faculdade as pessoas produziriam “uma “sutura das por ela, corpos expandem seus sentidos e
entre a natureza e o artifício”, constituindo nas suas fronteiras e constroem uma coletividade
experiências uma relação ao mesmo tempo ín- transnacional que mobiliza sonhos e desper-
tima e reflexiva com o mundo” (p. 133). A mí- tares de uma “humanidade tecnologicamente
meses revela estranhamentos das crianças em potencializada, encantada por seu conto de
relação ao mundo dos adultos que aparecem, fadas: do progresso científico justaposto ao de-
sobretudo, nas tensões entre o espaço da brin- senvolvimento humano” (p. 185).
cadeira e o tempo de assumir o lugar de aluno, Já Adriana Oliveira da Silva mostra a
“corpo sem órgãos”. experiência do giro do divino como o momento
A primeira parte se encerra com o arti- de liminaridade mais contundente da festa,
go de Romain Bragard que coloca problemas quando o divino pede esmola e se faz seme-
epistemológicos à antropologia a partir das lhante aos devotos mais humildes, que, por sua
contribuições da psicanálise. Categorias como vez, oferecem dádivas, em semelhança ao divi-
“desejo” e “falta” iluminam o “sentimento de no. Este performa o humilde.
natureza” que operaria nos adeptos do turis- Giovanni Cirino demonstra as potenciali-
mo ecológico e estaria “entre a mitologia ur- dades do arcabouço teórico dos estudos da per-
bana, que molda um desejo de natureza, e o formance para pensar a história como dada em
prazer esperado” conquistado por “um ritual um tempo que está longe de ser “homogêneo

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e vazio”, como dizia Walter Benjamin. O autor conhecimento e de conexão entre o “corpo de
mostra “relampejos” do passado escravocrata quem percebe” e o de quem “é percebido”.
ao aproximar as origens da congada de uma A discussão da performance de si mesmo
experiência colonial e suas operações de inde- como personagem aparece também na análise
xação das categorias locais ao universo cristão, feita por Kellen Pessuto da atuação de não-ato-
assim como circulação desses códigos entre as res no cinema a partir do caso do filme Salve o
missões. cinema. O cinema traz questões que ultrapas-
Celso Vianna Bezerra de Menezes fecha essa sam suas fronteiras e nos permitem pensar so-
segunda parte do livro ao trazer o caso dos de- bre jogos de cena e de construção de “verdades”
votos do Padre João Maria, na região onde se para além de seus limites.
deu o movimento do “contestado” no século Também Diana Pala Gómez Mateus traz des-
XIX. O exame da prática da devoção constrói ta arte imagens que questionam nosso próprio
uma reflexão sobre o potencial de “estranha- lugar como pesquisadores. Ao tratar da produ-
mento” produzido pela performance em rela- ção fílmica sobre a violência na Colômbia à luz
ção ao cotidiano (p. 243-244). dos diários de Taussig, a autora propõe refletir
A parte III, Filme e narrativa, ao propor sobre os potenciais de transformação do mundo
uma discussão sobre diferentes formas narra- não apenas do cinema mas também da antropo-
tivas, constrói também uma reflexão sobre o logia: “somos atores porque somos construtores
próprio lugar da pesquisa antropológica. de um espaço, de um vocabulário, de catálogos
Alice Villela demonstra as relações entre de nomes, datas, lugares e opiniões sobre a vio-
performance xamânica e as operações da edição lência. O nosso pecado não é a desordem epis-
fílmica na construção de narrativas que criam temológica que Taussig encontra nos espaços do
mundos antes inacessíveis aos outros. terror, mas talvez a ordem epistemológica que
Edgar Cunha, ao trabalhar os dilemas da construímos no fazer acadêmico” (p. 317).
produção de um filme sobre o ritual funerá- O trabalho de Jean Rouch aparece no tra-
rio bororo acrescenta uma discussão sobre as balho de Ana Lúcia Ferraz sobre trabalhadores
diferentes aproximações possíveis às diferentes circenses a partir do conceito de etnoficção,
plateias de uma reprodução fílmica do ritual, mas também na discussão de Rose Satiko Hikiji
que adquire significados e densidades distintas e Carolina Caffé sobre a “etnografia compar-
para diferentes públicos. tilhada” na produção fílmica. As autoras ana-
O texto de Francirosy Campos Barbosa lisam as diferentes porosidades das etapas de
Ferreira traz uma discussão que ultrapassa o gê- produção, em que ora sobressaem as vozes dos
nero fílmico (embora ela utilize as ferramentas interlocutores locais, ora a sensibilidade dos
audiovisuais para seu trabalho acerca das pes- profissionais da edição, e ainda, o lugar de fala
quisadoras que estudam comunidades islâmi- e as redes articuladas pelas pesquisadoras. É
cas). Discutindo a construção de personagens dessa forma que o material produzido possui
por parte dos antropólogos, a autora proble- uma combinação de diferentes narrativas sobre
matiza o lugar do corpo como instrumento a experiência da cidade.
de pesquisa e da performance como forma de A parte IV do livro, Antropologia e artes da
acesso do corpo do pesquisador às experiências performance, propõe o desafio de pensar a per-
dos grupos estudados, lembrando as discussões formance como instrumento de conhecimento
de Taussig acerca da mímeses como forma de a partir da experiência.

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Tratando de sua performance “Mira Chica”, partir do olhar de Alfred Gell sobre as intencio-
Regina Müller relaciona a antropologia da arte nalidades que se materializariam em objetos por
de Alfred Gell e a teoria da performance de meio da intencionalidade de um “agente primá-
Richard Schechner para pensar o caráter de rio”, o autor entende que os objetos artísticos que
transformação que sua experiência possui para ele analisa “revelam a ideia de descontinuidade e
o performer e para o público, pois, como as indeterminação, colocando como elementos que
iniciações, “performances geralmente tratam questionam o modus operandi fechado e deter-
daquilo que o performer recobra de seu pró- minístico dos maquinismos técnico-funcionais
prio eu” (p. 370). A performer incorpora um produzidos em larga escala” (p. 439).
eu político que provoca o sentido costumeiro Encerrando a última parte, aparece a força
das coisas a partir da inversão, dos excessos, da do manifesto de Guillermo Gómez-Peña, que
sensualidade e da “paródia da paródia”. performa o performer, e apresenta as linhas ge-
Ao tratar dos intercâmbios entre a perfor- rais da performance enquanto gênero artístico
mance do “nego fugido” de Santo Amaro da liminar.
Purificação, na Bahia, e os movimentos sociais Por fim, além da apresentação de John
da periferia de São Paulo, Mariana Monteiro Dawsey, que recupera o contexto de formação
explora a ideia brechtiana de “experimento” do NAPEDRA e dos diálogos entre antropolo-
contraposta à “experiência” de Dilthey, desdo- gia e performance de modo geral, a amarração
brada por Victor Turner. O intercâmbio desse da trança fica por conta de mais três ensaios.
“experimento” ganhou novas cores, gerando Iniciamos o livro com o prefácio de Diana
“imagens sintéticas e inquietadoras” que “fe- Taylor, que desvenda diferentes sentidos para
cundavam a atuação dos grupos teatrais junto a performance a partir da própria intraduzibili-
aos movimentos sociais.” dade do conceito em todas suas acepções origi-
Já Luciana Lyra apresenta um trajeto de nais e terminamos a leitura com o posfácio de
investigação para performances por ela diri- Maria Lúcia Montes que apresenta os vínculos
gidas que se baseiam na artetnografia, uma da discussão com o teatro e filosofia gregos,
metodologia criada pela autora a partir da mas também com a potencialidade e os limites
confluência entre Victor Turner e Gilbert de uma performance de escola de samba.
Durant. Assim apresenta-se um exercício na Num lugar liminar, entre a apresenta-
busca pelo “cruzamento complexo gerado do ção e a primeira parte, encontramos Richard
contato entre artistas e comunidade, entre Schechner revisitando os pontos de contato
eus e alteridades” (p. 394). entre antropologia e teatro abordados por ele
Ainda pensando metodologias, o Work in no primeiro capítulo do seu clássico “Between
progress de Renato Cohen, apresentado por Ana theater and anthropology”. O autor acrescen-
Goldstein Carvalhaes, traz para o centro do de- ta três pontos aos discutidos no ensaio origi-
bate a questão da alteridade e desafia a ideia nal. Schechner propõe pensar, em primeiro
de obra ou repertório, propondo um desafio lugar, a dimensão “encorporação” (diferen-
para a análise da experiência em sua dimensão te de uma cognição puramente racional) do
efêmera. conhecimento “nativo” e do conhecimento
Em seguida, o efêmero e o tempo aparecem antropológico, retomando a ideia desenvolvida
também como objeto de investigação e criação por Victor e Edith Turner de “performance
na arte sonora discutida por Eduardo Nespoli. A como pesquisa”.

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Em segundo lugar, apresenta uma discussão “as áreas motoras do cérebro não são ativadas
sobre a performatividade das fontes da cultura somente por meio de ações performadas, mas
humana. Em uma digressão a partir das dis- pela observação das ações do outros [...] os
cussões sobre as pinturas rupestres e as práticas espectadores performam em sua imaginação,
que possivelmente estavam relacionadas a elas juntamente com os performers que observam
na pré-história, o autor encontra uma chave de [...] Nosso corpo não acaba na nossa pele. Ele
leitura do desenvolvimento comunicacional vai além, chegando até o cérebro dos outros”
humano a partir da teatralidade de práticas de (p. 59).
iniciação. A leitura de Antropologia e performance ins-
Por fim, vemos problematizada a própria tiga esse corpo pela leitura e também pelos es-
noção de cérebro, entendido por ele como “um tímulos aos sentidos provocados pelo material
lugar de performance” (p. 56). A partir de sua audiovisual que vem anexo ao livro, com os
experiência no treinamento de performers, em registros audiovisuais dos objetos trabalhados
que mobilizou conhecimentos, por exemplo, nos artigos. Acima de tudo, somos a todo tem-
de artes marciais, e em diálogo com as teorias po lembrados de que temos um corpo leitor,
sobre o “sistema nervoso entérico”, Schechner um corpo pesquisador, um corpo que experi-
propõe que, ao assistir a uma performance, menta e performa.

autora Raquel Sant’Ana


Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ)

Recebido em 01/09/2014
Aceito para publicação em 08/12/2014

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