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doi: 10.5212/Uniletras.v.34i1.

0009

Tempo e espaço em Lavoura Arcaica

Time and space in Lavoura Arcaica


Deise Ellen Piati*

Resumo: O objetivo deste estudo é analisar no romance Lavoura Arcaica (1975), de


Raduan Nassar, a configuração do espaço e do tempo, bem como a relação estética
que tais elementos têm com a psicologia do narrador-personagem. Para tanto, nos
fundamentaremos, sobretudo, em autores como Gaston Bachelard, Poética do espaço
(2000), e Jean Pouillon, O tempo no romance (1974).
Palavras-chave: Espaço. Tempo. Lavoura Arcaica.

Abstract: The main purpose of this paper is to analyze space and time configuration
in the romance Lavoura Arcaica, (1975), by Raduan Nassar, as well as the aesthetic
relation these elements have with the psychology of the narrator-character. To this
end, the article is supported by authors as Gaston Bachelard, - Poética do Espaço
(2000), and Jean Pouillon, O tempo no romance (1974).
Keywords: Space. Time. Lavoura Arcaica.

[...] e se acaso distraído eu perguntasse implícito, o universo do narrador-perso-


“para onde estamos indo?” [...] “estamos nagem do romance. Nesta obra, que é a de
indo sempre para casa”. maior importância do escritor brasileiro
(NASSAR, R. Lavoura Arcaica)
Raduan Nassar, tais valores são representa-
dos por aqueles que provêm da tradição reli-
giosa cristã ortodoxa (FILHO, 2002, p. 102).
1. O universo arcaico: espaço da fazen-
da, espaço da casa Enquanto valores autênticos, vemos que
eles regem as ações e delimitam claramente
O romance Lavoura Arcaica (1975) narra o espaço de cada um dos atores da família –
a história de uma investigação degradada pai, mãe, irmãos – de tal forma que de modo
(também chamada de demoníaca) de valo- algum é permitido romper com os preceitos
res autênticos num mundo igualmente de- que foram há muito tempo autenticados por
gradado. Por valores autênticos compreen- grupos pertencentes a esta mesma tradição
dem-se os valores que organizam, de modo religiosa e social.

* Mestrado em letras (Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa “Linguagem Literária e interfaces sociais: Estudos
Comparados”) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: <deellenpiatti@gmail.com>.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


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O universo de atuação do romance diversas manifestações religiosas que re-


Lavoura Arcaica encontra-se em degrada- gem a espiritualidade e a vida dos homens.
ção, assim como o herói-problemático da Transmitido socialmente, não resguarda,
obra se encontra em estado igualmente ao contrário, do que se perpetua nas co-
degradante. Isto porque há no romance munidades cristãs, caráter inerente ao
uma ruptura insuperável entre as persona- homem. Segundo Freud (1970) é peculiar
gens Ana, a Mãe, Lula e, sobretudo, André ao sistema totêmico que “los miembros de
(o narrador-personagem), e o universo do un único y mismo tótem no deben entrar
qual fazem parte. Esta ruptura é, conforme en relaciones sexuales y, por lo tanto,
aponta Lukács em A teoria do romance (2000), no deben casarse entre sí. Es esta la ley
característica do gênero romance. O que há de la exogamia, inseparable del sistema
em comum entre ambos, herói e mundo, totémico” (FREUD, 1970, p. 10). A isogamia,
é o fato de estarem ambos degradados em princípio por meio do qual ficam interdita-
relação aos valores autênticos. Enquanto das as relações sexuais com a mãe, as irmãs
romance psicológico, a análise sobre a qual ou ainda com qualquer mulher com quem
incide a narrativa de Lavoura Arcaica é acerca haja consanguinidade, é um princípio in-
da vida interior de André, personagem cuja serido nas comunidades aborígines no mo-
consciência é demasiadamente vasta para mento em que houve a necessidade de se
contentar-se com aquilo que o mundo da ditar restrições matrimoniais. Ainda que a
convenção lhe oferece. A busca de André é isogamia totêmica aparente ser uma ins-
uma busca degradada e, por isso, inautênti- tituição sagrada, de origem e desenvolvi-
ca de valores autênticos, situada num mun- mento desconhecido, para Freud ela é uma
do de conformismos e convenções: é, pois, legislação consciente e intencional por
esta busca degradada que constitui o conflito meio da qual se reforça a proibição do in-
deste romance. cesto. A Igreja Católica estendeu a proibi-
Antes, porém, de falarmos propria- ção que recaía sobre os matrimônios entre
mente acerca do modo como interpretamos irmãos e irmãs aos matrimônios entre pri-
os elementos Tempo e Espaço no romance mos “inventando” (este é o termo utilizado
Lavoura Arcaica, parece-nos importante que por Freud em Tóten y Tabú), para justificar
o termo “degradação” seja um pouco mais sua medida, a existência de graus espiri-
explicitado, e que se especifique a natureza tuais de parentesco.
desta degradação em Lavoura Arcaica. Para A psicanálise nos mostra que o primei-
tanto temos de considerar um elemento de ro objeto sobre o qual recai a eleição sexual
grande importância nesta obra, a saber, a do jovem é a mãe ou a irmã. Ou seja, à medi-
questão do incesto. Assim, há que se enten- da que este sujeito se desenvolve é influen-
der como este elemento se hierarquizou em ciado pelo princípio da isogamia social-
nossa sociedade. Vejamos. mente estabelecida. Entretanto, o sujeito
O totemismo surgiu nas sociedades passará a traçar um caminho para evadir-se
aborígines australianas como uma das da atração do incesto, de modo que o que já

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foi algo essencialmente comum e corriquei- 1.1 Os espaços “subterrâneos” do uni-


ro passou a ser concebido enquanto com- verso patriarcal

plexo da neurose. Como tudo em Lavoura Arcaica, tam-


Após institucionalizar-se a proibição bém a caracterização do espaço da fazenda,
da isogamia, ela passa a constituir um valor da casa da família, da casa velha e do quarto
autêntico de toda a sociedade. Sua manu- de pensão supera a convencional descrição
tenção se dá por meio do enquadramento das imagens de tal modo que atinge as vir-
da memória dos sujeitos a uma “memória tudes primárias destes espaços, revelando a
oficial” – sendo, pois, a memória operação função original do habitar.
coletiva dos acontecimentos e das inter- A casa é o nosso canto no mundo, nos-
pretações do passado –, que se opõe à “me- so primeiro universo. E os pontos dos quais
mória subterrânea”, esta sustentada por André parte para construir suas imagens
valores inautênticos. Esta memória oficial, acerca dos espaços da fazenda e da pensão
enquanto interpretação do passado, serve revelam os valores atribuídos por ele sobre
para manter a coesão dos grupos e das ins- os espaços que foram por ele habitado, e
tituições, ou seja, atuam de forma a defi- isso se faz importante na medida em que
nir e reafirmar seu lugar respectivo. Neste o ser abrigado sensibiliza os limites de seu
contexto, o totemismo atua como material abrigo. André, num fluxo de consciência,
histórico de que se alimenta o trabalho de rememora os espaços por ele frequentados
enquadramento da memória a fim de se durante a infância em suas realidades e em
manter as fronteiras sociais. Toda organiza- suas virtualidades, ou seja, por meio do pen-
ção política veicula seu próprio passado e a samento e dos sonhos, sendo por isso ima-
imagem que ele forjou para si mesmo, e que gens rememorativas.
não pode ser mudada, a não ser que seus André narra a partir de um tempo dis-
membros se deixem identificar com estas tante ao dos fatos ocorridos, e sua narração
imagens e passem a construir um material se faz a partir de um processo rememora-
histórico para modificar estas fronteiras tivo deste passado. Enquanto experiência
sociais. Assim, vemos que estão em conflito rememorativa, André tenta lembrar o pas-
na memória sentidos de identidades indi- sado, tenta restaurá-lo para dar sentido ao
viduais e sentidos de identidades do grupo, seu presente. Mas as imagens do passado
cujas imagens por ambos os polos veicula- que lhe surgem à mente não são represen-
das se dão por meio de uma volta reflexiva tações deste passado, pois, ao retomá-las,
ao passado nacional. Em Lavoura Arcaica elas são ressignificadas a partir do momen-
vemos que é contra estas identidades indi- to presente. Isto porque o entendimento de
viduais que se opõem as imagens do grupo, um momento histórico se dá por meio da
estas citadas por Iohána, o pai, a fim de que imaginação da vida e da história das coisas
haja a manutenção das imagens forjadas e dos homens, de modo a percebê-los em
pela “memória oficial”. suas infinitas e concretas aparições neste

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presente e a partir deste mesmo presente. afirma que o espaço da casa é dotado de
Por isso, sua história surge como dimensão uma das maiores forças de integração para
do passado que só existe no presente como os pensamentos, as lembranças e os sonhos
possibilidade em processo de realização. Ao do homem. Nessa integração, o princípio de
falar da fazenda, da casa, da luz boa de sua ligação é o devaneio:
infância, do relógio do avô, do pão caseiro,
A casa abriga o devaneio, a casa pro-
das árvores do bosque, da igreja, André refe-
tege o sonhador, a casa permite so-
re-se a um espaço datado que é rastro, ma- nhar em paz. Só os pensamentos e as
terialidade física do passado como futuro a experiências sancionam os valores
ser decifrado no presente, e é a partir de um humanos. Ao devaneio pertencem os
espaço-tempo que ele lança um olhar sobre valores que marcam o homem em sua
outro tempo, este imaginado no presente. profundidade. O devaneio tem mesmo
O processo de rememoração se ca- um privilegio de autovalorização. Ele
racteriza pelo movimento de relembrar o usufrui diretamente de seu ser. Então,
os lugares onde se viveu o devaneio
passado visando à mudança do presente.
reconstituem-se por si mesmos num
Conforme Gagnebin (2006), na rememora-
novo devaneio. É exatamente porque
ção não se repete aquilo de que se lembra, as lembranças das antigas moradas são
mas abrem-se espaços que se estabelecem revividas como devaneios que as mora-
entre uma imagem e outra a fim de se dar das do passado são imperecíveis dentro
visibilidade ao que foi recalcado para dizer, de nós. (BACHELARD, 1993, p.26).
com hesitações, solavancos e incompletude,
Ao narrar sua história passional, An-
aquilo que ainda não teve o direito nem à
dré constrói uma espécie de topoanálise, ou
lembrança nem às palavras. É, pois, a reme-
seja, um estudo psicológico sistemático dos
moração uma atenção precisa ao presente
locais de sua vida íntima, de modo a desven-
uma vez que, por meio do processo reme-
dar a plenitude original da casa. É por meio
morativo, não se trata somente de evitar o
da topoanálise que nos dissociamos das
esquecimento do passado, mas, sobretudo,
nossas grandes lembranças e atingimos o
de não permitir que este mesmo passado e
plano dos devaneios que vivenciávamos nos
suas experiências traumáticas venham a se
espaços de nossa solidão: somente desta
repetir no presente.
forma é-se possível analisar o nosso incons-
André, o sonhador do lar, se abre para
ciente, adormecido em nossas moradas pri-
além das mais antigas memórias. A casa
mitivas. Para responder as indagações do
possibilita-lhe evocar luzes fugidias de de-
inconsciente temos de nos voltar para estes
vaneios que iluminam a síntese do ime-
espaços que são dotados da primitividade,
morial com a lembrança. Neste processo
pois, conforme aponta Bachelard, o tempo
rememorativo, memória e imaginação não
não anima a memória, o inconsciente per-
se deixam dissociar. Ambas constituem, na
manece é nos locais. O espaço retém o tempo
ordem dos valores, uma união da lembran-
comprimido: é essa a função do espaço.
ça com a imagem. Gaston Bachelard (1993)

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O quarto de pensão onde André se exi- devaneios cinzentos, destecendo desde


lou após sua fuga, os bosques mais distantes cedo a renda trabalhada a vida inteira em
da fazenda, a antiga igrejinha e a casa velha, torno do amor e da união da família” (p.38-9),
são apresentados pelo narrador como os es- também ela reservara a si este espaço de so-
paços de sua solidão: lidão. Muito mais que dotada de espaços de
solidão, a casa natal constitui um grupo de
era num sítio lá do bosque que eu
hábitos orgânicos que particularizaram os
escapava aos olhos apreensivos da
família; amainava a febre dos meus sonhos e devaneios de seus habitantes. A
pés na terra úmida, cobria meu corpo estes somam-se os espaços onde reinam os
de folhas e dormia na postura quie- seres dominantes – é na mesa dos sermões
ta de uma planta enferma vergada onde o Pai faz o seu exercício de domínio:
ao peso de um botão vermelho; não ele, sentado à cabeceira da mesa, “o reló-
eram duendes aqueles troncos todos gio da parede às suas costas, cada palavra
ao meu redor, velando em silêncio e sua ponderada pelo pêndulo” (p. 53). Nes-
cheios de paciência meu sono ado-
ta casa complexa, os valores de intimidade
lescente? [...] (meu sono, quando
aí se dispersam, estabilizam-se mal. O Pai
maduro, seria colhido com a volúpia
religiosa com que se colhe um pomo). tenta fazer da fazenda uma espécie de Cos-
(NASSAR, 1989, p.13-14)1. mo sagrado que se opõe ao “‘outro mundo’,
um espaço estrangeiro, caótico, povoado
Mais do que espaço de solidão e refú- de espectros, demônios [...]” (ELIAD, 1992,
gio, o quarto está de tal forma associado à p.32). Na mesa dos sermões o pai diz, me-
imagem de André que corpo e espaço aca- taforicamente:
bam por se fundir, sendo o primeiro ele-
mento constituinte do segundo: o mundo das paixões é o mundo do
desequilíbrio, é contra ele que deve-
Os olhos no teto, a nudez dentro do mos esticar o arame das nossas cer-
quarto; róseo azul ou violáceo, o quar- cas, e com as farpas de tantas fiadas
to é inviolável; o quarto é individual, tecer um crivo estreito, e sobre este
é um mundo, quarto catedral, onde crivo emaranhar uma sebe viva, cerra-
nos intervalos da angústia, se colhe, da e pujante, que divide e proteja a luz
de um áspero caule, na palma da mão, calma e clara de nossa casa, que cubra
a rosa branca do desespero, pois entre e esconda dos nossos olhos as trevas
os objetos que o quarto consagra es- que ardem do outro lado. (NASSAR,
tão primeiro os objetos do corpo; [...] 1989, p. 56).
(id., p. 7).
Bachelard diz que é na solidão que
Já a Mãe, “sentada na cadeira de balan- se encontram as paixões: é encerrado em
ço, absolutamente só e perdida nos seus sua solidão que o ser de paixão prepara
a sua explosão ou seus feitos. Assim, é
1 Todas as citações do romance referem-se a: NASSAR, o próprio ser que não deseja apagar os
Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1989.

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lugares em que sofreu a solidão, o espaço no nos orienta para seu onirismo, mas não o
qual a desfrutou. A este espaço de solidão conclui. E nós, leitores, para formularmos
o homem sempre retornará. Em Lavoura uma imagem a partir do que lemos, temos
Arcaica André vai ainda mais longe, pois o que nos depreender dos detalhes e permitir
seu espaço de solidão é um repouso ante- que também nossas lembranças divaguem
humano. O ante-humano atinge aqui o por nosso inconsciente. Se o narrador tudo
imemorial, o espaço reconfortante: falar sobre os cheiros da casa, sobre os sons,
a luz, enfim, porque o leitor também não
Onde eu tinha a cabeça? que feno era
buscar em sua imaginação, em seu incons-
esse que fazia a cama, mais macio,
mais cheiroso, mais tranquilo, me ciente, as imagens de sua casa? Este efeito
deitando no dorso profundo dos está- é alcançado pelo narrador por meio de uma
bulos e dos currais? que feno era esse narrativa fragmentada. Daí ser Lavoura Ar-
que me guardava em repouso, entor- caica dividida em trinta capítulos e narrada
pecido pela língua larga de uma vaca pelo fluxo de consciência. Para evocar os
extremosa, me ruminando carícias na valores de intimidade, é necessário induzir
pele adormecida? que feno era esse o leitor ao estado de leitura suspensa. É no
que me esvaía em calmos sonhos, so-
momento em que os olhos do leitor deixam
brevoando a queimadura das urtigas
o livro que a evocação do quarto do narrador
e me embalando como o vento no len-
ço imenso da floração dos pastos? (Id., pode tornar-se porta de entrada de oniris-
p.50-51). mo para outrem.

No âmbito da lembrança, do devaneio,


2. Intuição do passado, intuição do
este espaço de solidão atinge a categoria destino
do reconfortante, onde o inconsciente está
instalado, alojado neste espaço de felicida- A importância que se atribui ao tempo
de. Estes espaços são tonalizados da mesma no romance Lavoura Arcaica se deve ao con-
forma que nosso espaço interior. teúdo por ele expresso, ou seja, ao significa-
Enquanto espaço da lembrança e da do intemporal dos acontecimentos desen-
imaginação, a casa para onde nossos sonhos cadeados na narrativa.
nos conduzem, casas ricas de um fiel oniris- Conforme Jean Pouillon (1974), ao es-
mo, rejeitam qualquer descrição: a casa pri- tudarmos o tempo do romance, o que ques-
mordial deve guardar sua penumbra. Dela tionamos não é, propriamente, a estrutura
há que se dizer somente o necessário para do tempo e sim a psicologia das persona-
nos colocarmos em situação de onirismo, gens, mas não de modo a buscar conhecer
para nos situarmos num limiar de um deva- o herói, e sim o ambiente. A este respeito,
neio em que vamos repousar no nosso pas- não se compreenda, contudo, que há um de-
sado. O que o narrador comunica não passa sejo de ver o herói condenado ao ambiente
de orientações acerca de seus segredos, não em que está inserido. Se para estudarmos o
passíveis de serem ditos objetivamente. André tempo do romance temos que estudar a psi-

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cologia do herói para então compreendermos através da expectativa e o passado


o espaço, o que nos interessa em Lavoura Ar- subsiste, apenas, enquanto memória.
caica não é, portanto, a fazenda em si, mas (FORTES; ZANCHET, 2007, p.293).
a reação que André cultivou com a família e André é determinado por seu passado
com o espaço da fazenda. E, dada a reação porque ele o retoma no momento presente,
que seu irmão Pedro e suas irmãs Zuleika, tornando-o presente: deste modo, é o pre-
Huda e Rosa cultivam com o pai e com toda sente que determina o passado.
a família, torna-se claro que esta reação Em relação à situação do tempo, Pouillon
para com o ambiente é livre e pessoal, con- distingue dois tipos de romances: o “de den-
forme aponta Pouillon. É por esta razão que tro” e o “de fora”. Lavoura Arcaica representa,
não buscaremos em Lavoura Arcaica uma in- pois, o romance “de fora” – também deno-
terpretação filosófica do tempo, mas o sen- minado de romance “com” – visto que nele é
timento que existe e que é manifestado na a fatalidade oriunda do ambiente em que o
consciência de André. herói se encontra que determina o seu desti-
André narra num tempo distante ao no. André é quem experimenta a fatalidade,
dos fatos ocorridos. No entanto, vive o seu é quem se diz por ela determinado. Já o ro-
passado, mas num tempo presente. E este mancista acredita poder explicar o destino
passado lendário, de existência puramen- do herói estando do lado de fora, acreditan-
te subjetiva, surge à sua mente enquanto do poder revelar os sentimentos do homem
memória, enquanto destino, demonstran- a partir de seu exterior. Esta posição “por
do que o passado é obra do presente, e fora” derruba a ordem real dos sentimentos
que, portanto, seu destino é fruto de uma e dos fatos, revelando uma maneira particu-
convicção, e não efeito de alguma lei exte- lar de se ver o mundo.
rior ao indivíduo. Ao analisar o conto “Aí O narrador-personagem de Lavoura
pelas três da tarde”, também do escritor Ra- Arcaica é bem sucedido porque fala acerca
duan Nassar, Rita Félix Fortes (2007) apro- do destino que é por ele experienciado, que
xima-se da concepção de tempo segundo diz respeito a ele próprio, não é uma ideia,
Santo Agostinho. A concepção agostiniana um conceito, uma abstração. Assim como
demonstra-se congênere à concepção de Dostoievski, como Faulkner e tantos ou-
Pouillon no que tange ao aspecto do tempo tros romancistas, Raduan Nassar nos leva
no romance, conforme podemos constatar a sentir tão intensamente a existência de
na citação que segue: André que chega por vezes a permitir que
É possível relacionar a crise nos coloquemos “com” a personagem em
prenunciada no conto em questão dadas situações: é, pois, quase que im-
com a concepção sobre o tempo de possível resistirmos à vontade de gritar-
Santo Agostinho, quando ele postula mos junto à personagem: “a impaciência
que o presente é o momento concreto também tem os seus direitos!” (NASSAR,
da atenção, o futuro se anuncia
1989, p.90).

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Em Lavoura Arcaica tudo é revelador. passeia o leitor: de temporal, resta


Estando o romancista “com” as persona- apenas a persistência de uma direção
gens e, portanto, também com o leitor, ele de percurso, o que no entanto só se
se considera livre e disso se aproveita para aplica verdadeiramente na primeira
leitura pois, como as ressonâncias to-
escolher – por motivos particulares – o fato
das só podem ser extraídas da ordem
que irá registrar. Trata-se assim de uma do conjunto, nós só as podemos sentir
organização da contingência, que consiste nas leituras seguintes [...] as quais su-
na escolha de cenas reveladoras. Estas es- põem uma visão instantânea do con-
colhas dos acontecimentos contingentes junto. [...] O romance é feito para ser
dependem do problema psicológico que tomado como um todo, um todo espa-
constitui o núcleo do romance. Mas esta es- cial. (POUILLON, 1974, p.166).
colha pode não ser puramente psicológica.
Raduan Nassar, em sua escrita labirín-
Pode-se pretender que as revelações assim
tica, estrutura o romance Lavoura Arcaica de
distribuídas por todo o romance correspon-
modo a ocultar muitas coisas do leitor. E o
dam umas às outras e conduzam o espírito
destino na obra não constitui um encadea-
do leitor, sendo esta, pois, uma escolha es-
mento geométrico de instantes, de aconte-
tético-psicológica. Conforme Paul Ricoeur
cimentos ou de sentimentos; assemelha-se
em Tempo e narrativa, “o mundo exibido por
mais a uma impressão de peso, inerente a
qualquer obra narrativa é sempre um mun-
tudo o que acontece, a tudo o que existe se-
do temporal. [...] O tempo torna-se humano
gundo o ponto de vista do narrador. Um dos
na medida em que está articulado de modo
objetivos da aparente desordem da narrati-
narrativo; em compensação, a narrativa é
va é mostrar que esse peso não é um artifí-
significativa na medida em que esboça os
cio da narração continuada, mas que é um
traços da experiência temporal”. (FORTES;
modo pelo qual o narrador está sendo fiel às
ZANCHET, 2007, p.293-4).
coisas narradas, ao tema da obra, que dis-
Pouillon diz que esta estética da dispo-
pensa qualquer lógica. E, para que de fato
sição não substitui a psicologia, mas a ela se
houvesse afinidade entre o plano estético e
soma, como vemos em Lavoura Arcaica, na
o plano psicológico é que, em Lavoura, An-
qual a estética surge enquanto expressão
dré narra por meio do “fluxo de consciência”
ordenada e típica da psicologia do narrador,
e do “monólogo interior”.
ou seja, como materialização de seu discur-
O monólogo interior é o “entrecruzar
so. Há na obra de Nassar uma distribuição
de acontecimentos presentes e de remi-
interna estética que coincide com as inten-
niscências de acontecimentos passados”
ções do que se pretende sugerir como sendo
(POUILLON, 1974, p.172). Este entrecruzar
a “psicologia” de André. E, conforme Pouil-
é apresentado de diferentes maneiras. Em
lon:
Lavoura Arcaica ele surge enquanto persis-
[...] o resultado desta estética psico- tência das impressões passadas, sobretudo
lógica é o seguinte: o romance sur- das impressões da infância, e faz com que
ge como um quadro, diante do qual

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tudo o que vivemos no presente fique sub- gens: o tempo nada representa independen-
merso naquilo que vivemos no passado. As- temente da consciência do tempo. Sendo as
sim, a consciência é antes de tudo memória, ações do passado intocáveis, irremediáveis,
mas não se reconhece como memória e sim elas são a única realidade, são o Destino.
como o real, e como a memória só pode ser A subversão cronológica permanece
o sentido do passado, este real é o próprio sempre como um recurso do autor, indepen-
passado (POUILLON, 1974, p.173). E, por es- dente da consciência real que as persona-
tar sempre presente, este real (novamente, gens têm de sua própria vida. Raduan, sem
o próprio passado) é o presente. Neste caso, prevenir o leitor, como o faz Faulkner, faz
o homem é determinado pelo passado, tal surgir um momento no outro, desorganiza
como o narrador-personagem de Lavoura a ordem habitual, porque também a vida de
Arcaica. Mas há que se ter cuidado com esta André foi vivida fora da cronologia e é isto
afirmação. Para que uma coisa determi- que os monólogos interiores se propõem
ne outra, diz Pouillon (1974), é preciso que a nos fazer compreender. Ao contrário do
ambas existam plenamente, e voltamos à que pareça, a não linearidade da narrativa
necessidade de ligar instantes igualmente representa de igual maneira uma ordem, e
reais. Deste modo, o que de fato existe é a que é bastante real e dotada de sentido para
coexistência do passado e do presente: o quem viveu os fatos narrados.
passado forma um bloco, entretanto não o André não é determinado pelo seu pas-
devemos imaginar como uma ordem cro- sado, ele é esse passado, sendo em sua psi-
nológica. Ele é, de certa forma, intemporal. cologia que se faz necessário buscar o mo-
O fato de que um acontecimento deslize tivo que o leva a sentir-se sob o império de
para o passado não o leva a alinhar-se uma fatalidade. O esmagamento de André
entre as “lembranças puras”, bem classi- vem de seu interior, e não do exterior. As-
ficadas por datas, mas apenas o retira da sim sendo, para que esta afirmação não seja
temporalidade na medida em que esta é gratuita, é preciso que essa fatalidade seja
transformação, dispersão. Este passado, constantemente sentida pelo herói. Como
estando inserido no tempo, se foi, sen- esse herói tem uma consciência obscura,
do, por conseguinte, passado na acepção porém viva, da fatalidade que pesa sobre ele,
usual da palavra, mas sendo, porém, pre- é normal que o romancista nos desvele esta
sente, na medida em que subsiste, sen- última valendo-se do monólogo interior.
do por isso intemporal (POUILLON, 1974, O romance não poderia ter maior rea-
p.174). Este intemporal não se situa num lidade a não ser como impressão subjetiva.
plano superior: fica por detrás de um pre- Por meio do romance e do monólogo inte-
sente cronológico para fazer com que este rior Nassar pretende transmitir ao leitor a
presente signifique e para o retomar ime- mesma impressão que oprime a persona-
diatamente. E tudo o que ficou dito, ficou gem e, para tanto, é preciso não lhe pro-
sobre a maneira com que vivem as persona- porcionar uma compreensão privilegiada

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan./jun. 2012


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Deise Ellen Piati

dessa impressão, uma compreensão mais GAGNEBIN, Jeanne M. Lembrar, escrever,


clara que a que tem o próprio herói. Desta esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
forma é que vemos o autor se situar “com” LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São
a personagem, e, consequentemente, coloca Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.
seu leitor também com a personagem. Co- NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São
nhecer o que é o destino equivale a dissolvê- Paulo: Companhia das Letras, 1989.
-lo. Assim, o destino só é real quando não POUILLON, Jean. O tempo no romance. Trad.
conhecido e sim confusamente sentido. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix /
Por fim, o que leva André a se sentir Editora da Universidade de São Paulo, 1974.
“esmagado”, a nosso ver, é sua psicologia
da vertigem e das paixões com ela relacio-
Recebido para publicação em 10 abr. 2012.
nadas; é o que revela o monólogo interior
Aceito para publicação em 20 maio 2012.
de André, e também é a explicação de sua
conduta. O passado surge a ele como um
abismo no qual não pode deixar de precipi-
tar-se. Mas também parece-nos que André
é igualmente levado por uma psicologia do
corpo, considerando-se que é também seu
corpo que conserva parte de seus hábitos,
representando de certa forma o seu passado
e seu presente.

Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço.
Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.
Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
FILHO, Plínio M. (Ed.). Luiz Fernando
Carvalho sobre o filme Lavoura Arcaica. Cotia,
SP: Ateliê Editorial, 2002.
FORTES, Rita Félix; ZANCHET, Maria B.
Sabor e saberes: o lugar do conto na escola.
Foz do Iguaçu, PR: Editora Parque, 2007.
FREUD, Sigmund. Tótem y tabú. Madrid:
Alianza Editorial, 1970.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 34, n. 1, p. 113-122, jan/jun. 2012


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