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"Cosmopolitans and Locais: Toward and Analysis of Latent Soda'

Roles, Administration Science Quarterly, 1957-58, 291-306 444-480 .


Emile Durkheim, Socialism and Saint-Simon (Le Socialisme), ed. A. W.
Gouldner. New York: Collier Books, 1958.
"Organizational Analysis", in R . K. Merton, L . Broom and L . S . Cot
trell (eds) , Sociology Today : Problems and Prospects. New York: Basir
Books, 1959 a, pp . 400-428 .
"Reciprocity and Autonomy in Functional Theory", in Llewellyn Gros~
(ed), Symposium on Sociological Theory. Evanston, Row, Peterson TRABALHO E MALANDRAGEM - SINCRETISMO
Artigo reproduzido em For Sociology, 1959, pp. 190-226 . DE UM HERói CIVILIZADOR (*)
"The Norm of Reciprocity : A Preliminary Statement''. ASR, 25 (April) ,
pp. 161-78 . Artigo reproduzido em For Sociology, 1960, pp . 226-260.
"Anti-Minotaur: the Myth of a Value-Free Sociology". in Social Pro- Ismael A. Pordeus Jr.
blems, Winter. Artigo reproduzido em For Sociology . 1962, pp. 3-26.
Modern Sociology: an Introduction to the Study of Human lnteraction~
A. W. Gouldner and Helen P. Gouldner, New York: Hartcourt, Braxe
and W orld, 1963 . A concepção simbó-lica do Exu no Espiritismo de U•n banda
"Sociologists look at themselves', A. W. Gouldner and ]. T . Sprebe, in : ressalta a importância desse personagem em seu caráter am-
Trans-action, 2, 1965. May-June, pp . 42-44 . bíguo, contraditório e passíve'l de ser utilizado ou reap ro pri <. ·
"The Soeiologist as Partisan: Soeiology and the Welfare State". Ame· do por outra•s manifestações culturais .
rican Sociologist, 3 (May) , 1968, pp. 103-116. Artigo reproduzido em Esse trabalho procura , a partir da• reconstrução dos ele-
For Sociology, pp. 27-68. mentos principais desse personagem, entender dim en sões da
"Soeiology today does not need a Karl Marx or an Isaac Newton; i1 cultura brasileira onde a malandragem expressa de fo :-mé1 din â-
needs a Lenin'', in Psychology Today, 5 (September), 1971, pp. 53-57. mica essa ambigüidade .
"Marxism and Social Theory", in Theory and Society, 1. 1974.
"Prologue to a Theory of Revolutionary Intelectuais" in· T elas, W rrtter,
1975-76, pp. 3-36. O PERSONAGEM E SUAS INTERPRETAÇõES
"Stalinism: a Study of Internai Colonialism", in: T elas, Winter, 1977-78 .
pp. 5-48. Esse personagem, o Exu - mito dinâmico no panteon loru-
ba, Fon, no Candomblé da Bahia - domina a natureza cósmica
e humana . Ele é o elemento de ligação entre o mundo sagrado
e o mundo profano, entre os homens e seus Orixás , entre os
próprios Orixás , intervindo de uma forma ambígua e desempe-
nhando um papel bem definido, como demonstraram Bast ide
(1974), Elbain dos Santos (1977) e Renato Ortiz (1978). Exu é
um personagem presente em todos os elementos da natu reza
e na vida de cada indivíduo no seio da sociedade. Suas inter-
venções apresentam características próprias, queremos dizer,
cada local , cada linguagem , cada entida·de , cada pes soa possu!
seu próprio Exu . Apesar de sua ambigüidade , ele é um el emen-
to único , é o princípio da totalidade da existênci a .
(*) Trabalho apresentado na Reunião da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), Florianópolis, 1990 .

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A diferença fundamente·! desse personagem afro-brasileiro condições de vida das categorias populacionais onde realiza-
e as conclusões teóricas a que recorrem vários autores no que mos nosso estudo; se subentende a recorrência ao Exu no Espiri-
concerne à terminologia utilizada de trickster, são elaboradas tismo de Umbanda como Herói Civilizador.
a partir do estudo dos mitos dos índios da América do Norte, Outro aspecto para o qual queremos chamar atenção é a
o que, de acordo com nosso ponto de vista, é utilizado de uma E.·ssociação feita entre o Exu e o Diabo cristão devido às repre-
maneira errônea no que diz respeito à Africa (Eiis , Frobenius, sentações fálicas do personagem, o que permitiu aos missio-
Herskovitz, Verger) e sobretudo ao Brasil, onde ele desempenha nários que trabalharam na África o estabelecimento de uma re-
para nós, um papel de Herói Civilizador. lação simbólica entre o Exu e o Diabo, tal como era concebido
Herói Civilizador, pois a recorrência a esse personagem no na Idade Média. Nina Rodrigues (1884) já fazia referência a
Espiritismo de Umba-nda, pelos adeptos dessa religião é bas- essa associação no Candomblé baiano. Com razão Câmara Cas-
tante elevada, principalmente nos terreiros onde esses mesmos cudo (1969) dizia que não existe Demônio negro se não a par-
adeptos pertencem às ca•tegorias populacionais dos desclassi- tir da presença católica do braonco. Sem sombra de dúvida en-
ficados das cidades brasileiras. contramos participantes dos cultos do Espiritismo de Umbanda
Os especialistas que se debruçaram sobre esse persona~ designando o nosso personagem como Diabo, Lúcifer, Seu Ca-
gem -etnólogos, mitólogos, folcloristas , psicólogos, historia- peta. No entanto, é considerado como ser benéfico, que prati-
dores da religião - optaram por duas abordagens: a primeira ca o bem, amigo dos necessitados e que resolve a maioria
tenta explicar a coexistência de elementos contraditórios em dos problemas solicitados, sejam de ordem material, sejam de
um único ser, com apoio de considerações psicológicas, sem ordem espiritual, não sendo gratuito que o mais das vezes o
chegar a conclusões aceitáveis. A segunda considera Exu como tratam por compadre. Diríamos que, diferentemente do Diabo
a imbricação de dois seres diferentes, mas de uma maneira ar- cristão que representa essencialmente a• encarnação do mal ab-
bitrária que conduz à destruição do personagem mítico sem soluto, o Exu, é um personagem civilizador e corresponderia,
levar em conta seus componentes contraditéorios. Escolhemos no plano conceitual, à alegoria da irresponsabilidade; suas ações
uma terceira abordagem com apoio na Etnologia , ou seja, no traduziriam sobretudo a incapacida•de de julgar e discernir entre
estudo da realidade da e:.;:leriência social, onde os mitos se- o bem e o mal. E1le seria então a prépria antítese do Demônio
riam o fundamento dessa realidade. Assumindo essa escolha , cristão que representa o mal absoluto, que conduziu o homem
defendemos a tese de que a ambiqüidade do Exu é a· manifes- a comer o fruto da árvore proibida e adquirir a consciência do
tação no plano mitológico, da ambiqüidade brasileira , quer seia bem e do maL Exu, ao contrário, não se apropriou dessa cons-
ao nível institucional da esfera oficial, auer seja no universo ciência; ele na verdade é o homem antes da serpente. Pode-
popular, onde coexistem força·s dominantes, com significados mos então dizer que seu aspecto que pratica o mal, e que de-
antagônicos, eventualmente combinados com elementos aue se seja o mal, decorre muito mais do mal dos homens, de suas
aproximam de antíteses polares, e que, por definição, se projeções míticas ou dos desejos coletivos responsáveis pelas
opõem (Pordeus: 1988) . Dessa maneira recorremos a Shaden transgressões que ele venha a cometer.
para conceituar e denominar o nosso personaqem, pois para
esse antropólogo o "Herói Civiliza·dor é o portador ou inven-
tor de elementos culturais de ordem material ou técnica, sen - O EXU NA CULTURA BRASILEIRA
do-lhe atribuída a invenção de armas e de utensílios, de técni-
cas agrícolas etc . .. Os benefícios que são atribuídos a ele, es- Até agora nos restringimos a falar do Exu e suas represen-
t§o particularmente ligados àquilo que a cultura considerada tações de uma maneira geral, mas convém não esquecer suas
àefine como sendo os interesses vitais da comunidade". . . e mutações no Espiritismo de Umbanda. Basta lembrar que ele
conclui: "de qualquer modo é compreensível que a sociedade nasceu no bojo das transformações porque passou a sociedc.·de
conceba representações sobrenatura•is à sua própria imagem, brasileira na década de 30, como tem sido demonstrado por
enfrentando os mesmos perigos, lutando com as mesma_s difi· Bastide (1974). Brown (1974) e Ortiz (1979). Esses autores cha-
culdades, recorrendo às mesmas soluções" (Shaden: 1959:33). mam atenção para o Rio de Janeiro como centro de formação
Seria aqui enfadonho, portanto, tecermos comentários sobre as e irradiação da nova religião que desabrocha no seio da Ma-

190 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N° 1/2, p. 189-198 1989/1990 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N° 1/ 2, p. 189-198 1989/1990 191
A diferença fund amente·! desse personagem af ro-b ras ileiro condições de vida das categorias populacionais onde realiza-
e as conclusões teóricas a que recorrem v ários autores no que mos nosso estudo ; se subentende a recorrência ao Exu no Espiri-
concerne à terminologia utilizada de trickster, são elaborada s tismo de Umbanda como Herói Civilizador.
a partir do estudo dos mitos dos índios da América do Norte , Outro aspecto para o qual queremos chamar atenção é a
o que , de acordo com nosso ponto de vista, é utili zado de uma é:ssociação feita entre o Exu e o Diabo cristão devido às repre-
maneira errônea no que diz respeito à Africa (Eiis, Frobenius, sentações fáticas do personagem, o que permitiu aos missio-
Herskovitz , Verger) e sobretudo ao Brasil , ond e el e desempenha nários que trabalharam na África o estabelecimento de uma re-
para nós , um papel de Herói Civilizador . lação simbólica entre o Exu e o Diabo, tal como era concebido
Herói Civilizador, pois a recorrência a esse personagem no na Idade Média . Nina Rodrigues (1884) já fazia referência a
Espiritismo de Umbanda , pelos adeptos dessa religi ão é bas- essa associação no Candomblé baiano. Com razão Câmara Cas-
tante elevada, principalmente nos terreiros onde esses mesmos cudo (1969) dizia que não existe Demônio negro se não a par-
adeptos pertencem às ca-t egorias populacionais dos desclassi- tir da presença católica do branco. Sem sombra de dúvida en-
ficados das cidades brasileiras. contramos participantes dos cultos do Espiritismo de Umbanda
Os especialistas que se debruçaram sobre esse person a~ designando o nosso personagem como Diabo, Lúcifer, Seu Ca-
gem -etnólogos, mitólogos, folcloristas , psicólog os, histori a- peta. No entanto , é considerado como ser benéfico, que prati-
dores da religião - optaram por duas abordagens : a primeira ca o bem, amig o dos necessitados e que resolve a maiori a
tenta explicar a coexistência de elementos contraditórios em dos problemas solicitados, sejam de ordem material, sejam de
um único ser, com apoic de considerações psicológicas, sem ordem espiritual, não sendo gratuito que o mais das vezes o
chegar a conclusões aceitáveis. A segunda considera Exu como tratam por compadre . Diríamos que, diferentemente do Diabo
a imbricação de dois seres diferentes, mas de uma maneira ar- cristão que representa essencialmente a• encarnação do mal ab-
bitrária que conduz à destruição do personagem míti co sem soluto, o Exu , é um personagem civilizador e corresponderia,
levar em conta seus componentes contraditéorios . Escolhemos no plano conceitual , à alego ria da irresponsabilidade; suas ações
uma terceira abordagem com apoio na Etnologia , ou se ja, no traduziriam sobretudo a incapacidade de julgar e discernir entre
estudo da realidade da e:.,:>eriência social , onde os mitos se- o bem e o mal. E1le seria então a prépria antítese do Demônio
riam o fundamento dessa realidade . Assu mindo essa escolha , cristão que representa o mal absoluto, que conduziu o homem
defendemos a tese de que a ambigüidade do Exu é a· manifes- a comer o fruto da árvore proibida e adquirir a consciência do
tação no plano mitológico, da ambiqüidade brasileira , quer seia bem e do ma•l. Exu, ao contrário , não se apropriou dessa cons-
ao nível institucional da esfera oficial, auer seja no universo ciência; ele na verdade é o homem antes da serpente. Pode-
popular, onde coexistem força•s dominantes , com si gnifi cados mos então dizer que seu aspecto que pratica o mal, e que de-
antagônicos, eventualmente combinados com element os aue se seja o mal, decorre muito mais do mal dos homens, de suas
aproximam de antíteses polares, e que, por defini ção, se projeções míticas ou dos desejos coletivos responsáveis pelas
opõem (Pordeus: 1988) . Dessa maneira re corremos a Shaden transgressões que ele venha a cometer .
para conceituar e denominar o nosso personagem, pois pa•ra
esse antropólogo o " Herói Civilizador é o port ad or ou inve n-
tor de elementos culturais de ordem material ou técnica , sen- O EXU NA CULTURA BRASILEIRA
do-lhe atribuída a invenção de armas e de utensílios , de téc ni-
cas agrícolas etc ... Os benefícios que são atribuíd os a ele , es- Até a•gora nos restringimos a falar do Exu e suas represen-
t§o particularmente ligados àquilo que a cul t ura considerada tações de uma maneira geral , mas convém não esquecer suas
define como sendo os interesses vitai s da comunidade ". . . e mutações no Espiritismo de Umbanda . Basta lembrar que ele
conclui: "de qualquer modo é compreensível que a sociedade nasceu no bojo das transformações porque passou a sociedc.·de
conceba representações sobrenatu re,•i s à su a própria imagem, brasileira na década de 30 , como tem sido demonstrado por
enfrentando os mesmos perigos , lutando com as mesmas difi- Bastide (1974). Brown (1974) e Ort iz (1979) . Esses autores cha-
culdades, recorrendo às mesmas soluções" (Shaden: 1959 :33) . mam atenção para o Rio de Janeiro como centro de fo rmação
Seria aqui enfadonho , portanto , tecermos comentários sobre as e irradiação da nova religião que desabrocha no seio da Ma-

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cumba carioca. E, ainda, para a· participação das camadas mé- túcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma en-
dias na formação da religião e parél' o esforço de criar uma nova rascada), manifestando um amor pelo ··jogo em si que o aofasta
religião, nesse caso preciso, uma modificação das fo rm&s re- do pragmatismo dos pícaros, cuja ma11andragem visa quase sem-
iigiosas que já existiam, isto é, a Macumba , o Espíritismo Kar- pre o proveito ou um problema mais concreto, lesando sempre
decista e o catolicismo brasileiro. terceiros na sua solução" ... , como nos diz Antônio Cândido
Um autor anônimo, em 1942, explica que a nova religião (1970: 68) . Esse personagem enca•rna para Mário de Andrade
tem por objetivo corrigir e elimina•r pela linha-branca da Um- (1979), em seu livro Macunaíma, a ambigüidade da ordem e da
banda as práticas da ''massa ignara"; estabelecer uma religião, desordem ao mesmo título que Exu, e por isso mesmo, ele in -
uma filosofia, ética e moral para a prática do bem na sua signi- tegra os dois em um ritual de possessão na Macumba na casa
ficação mais ampla. E, em oposição à Kimbanda, obedecer ao da Tia Ciata, no Rio de Janeiro. O sincretismo é de tal ordem
dualismo da evocação humana•, "pura magia negra dos macum- que não se distingue qual é um e qual o outro, pois eles ter-
beiros profissionais" . Teríamos assim, no Espiritismo de Um- minam por se confundir no jogo, na dança, na festa, na sujei-
banda, a prática do bem; e o mal, a Kimbanda, ou melhor, toda ra e na pureza, no sagrado e no profano. Poderíamos assim
a tradição africa•na representada por Exu, nosso herói sem ne- formar, ad nauseam, esses casais bifocais em uma enumerac5o
nhum caráter. não gratuita mas fundamentada, pois foi a partir de suas p-es-
O Exu sofre essa reinterpretação, é posto na Kimbanda, quisas folclóricas que Mário de Andrade pôde sintetizar em
onde ele é acorrentado e subjugado às forças do bem, ou, em Macunaíma, não somente um etos brasileiro, mas também, a
outras pa•lavras, dominado pela ideologia brasileira e suas hie- própria ambigüidade nacional.
rarquias. O malandro é bastante glorificado durante o período que
Foi durante esse período de construção da Umbanda que os especialistas chamam de "época de ouro" da música popu-
o país viveu uma de suas ditaduras, a do Estado Novo, onde lar brasileira do Rio de Janeiro e São Paulo até a instalação
a questão social deixou de ser um caso de polícia para se tor- do Estado Novo (1937-1945). A partir da•í esse personagem pas-
nar uma questão de Estado Policial. " O carnaval, o samba, a sa a sofrer uma série de restrições e a música, como já nos
temática da música popul2:-, particularmente o samba da ma- referimos, é submetida a uma rigorosa censura por parte da
landragem, a Umbanda são submetidos a um controle simbó- Ditadura através de seu órgão especializado, Departamento de
lico, decodificados e neutralizados em outros circuitos de signi- Imprensa e Propaganda, de triste memória.
flcação" (Dantas 1982: 119).
Gostaríamos aqui de nos debruçarmos sobre outro perso- A música popular revelava fascínio pelo malandro em um
nagem que, no nosso entender, corresponde ao Exu na cultu- momento em que o conflito entre o capital e o trabalho ainda
ra brasileira, ou seja, o Malandro. Esse desvio nos permitirá deixava espaços na sociedade brasileira que eram ocupados
entender melhor como o Exu foi submetido a um controle sim- pela malandragem. Enquanto a população era obrigada a sobre-
bé-lico, decodificado e neutra•lizado em outro circuito de signifi- viver ingressando no mercado de trabalho ma•is ou menos :·e-
cação -de um ser ímpar a um trabalhador na magia da Kim- guiar, submetendo-se assim ao código ideológico positivista da
banda, leia-se Macumba. bandeira nacional, Ordem e Progresso, o malandro, ''parece ter
um destino social mais- brando, dando aqui e aili um jeitinho no
aperto, através da sua irresistível picardia e da sua visagem
sedutora" (Vasconcelos 1977: 107). A malandragem é, portan-
MALANDRAGEM E TRABALHO - CONTRAPONTOS
to, a rejeição ao trabalho. Cabe relembrar aqui o quanto o tra-
DE UMA ÉTICA
balho manual no Brasil tem sido historicamente considerado
uma atividade não-dignificadora associada na memória coletiva
Esse personagem, o Malandro, vive em um espaço social à escravatura. Numa sociedade que marginaliza o trabalhador
intermediário, em que não é possível prescindir da ordem e não lhe assegurando condições de vida além da sobrevivência,
nem tampouco viver dentro dela. " O Malandro como o pícaro, a malandragem se configura então como uma alternativa , o jei-
é umao espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astu- tinho brasileiro tão louvado. Dessa• maneira o descomprometi·
cioso, c;;omum a todos os folclores, pratica a astúcia pela as- menta com a vida do trabalho encontra-se implícito na ética da

:92 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N° 1/ 2, p . 189-198 1989/1990 Rev. de c. Sociais, Fort. v. 20/21 No 1/ 2, p. 189-198 1989/1990 193
cumba carioca. E, ainda, para a· participação das camadas mé- túcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma en-
dias na formação da religião e para• o esforço de criar uma nova rascada), manifestando um amor pelo .. jogo em si que o arfasta
religião, nesse caso preciso, uma modificação das fo rm&s re- do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sem-
iigiosas que já existiam, isto é, a Macumba , o Espíritismo Kar- pre o proveito ou um problema mais concreto, lesando sempre
decista e o catolicismo brasileiro. terceiros na sua solução" ... , como nos diz Antônio Cândido
Um autor anônimo, em 1942, explica que a nova religião (1970: 68) . Esse personagem encarna para Mário de Andrade
tem por objetivo corrigir e elimina•r pela linha-branca da Um- (1979), em seu livro Macunaíma, a ambigüidade da ordem e da
banda as práticas da '' massa ignara"; estabelecer uma religião, desordem ao mesmo título que Exu, e por isso mesmo, ele in -
uma filosofia, ética e moral para a prática do bem na sua signi- tegra os dois em um ritual de possessão na Macumba na casa
ficação mais ampla. E, em oposição à Kimbanda, obedecer ao da Tia Ciata, no Rio de Janeiro. O sincretismo é de tal ordem
dualismo da evocação humana•, "pura magia negra dos macum- que não se distingue qual é um e qual o outro, pois eles ter-
beiros profissionais". Teríamos assim, no Espiritismo de Um- minam por se confundir no jogo, na dança, na festa, na sujei-
banda, a prática do bem; e o mal, a Kimbanda, ou melhor, toda ra e na pureza, no sagrado e no profano. Poderíamos assim
a tradição africa•na representada por Exu, nosso herói sem ne- formar, ad nauseam, esses casais bifocais em uma enumerac8o
nhum caráter . não gratuita mas fundamentada, pois foi a partir de suas p-es-
O Exu sofre essa reinterpretação, é posto na Kimbanda, quisas folclóricas que Mário de Andrade pôde sintetizar em
onde ele é acorrentado e subjugado às forças do bem, ou, em Macunaíma, não somente um etos brasileiro, mas também, a
outras pa•lavras, dominado pela ideologia brasileira e suas hie- própria ambigüidade nacional.
rarquias . O malandro é bastante glorificado durante o período que
Foi durante esse período de construção da Umbanda que os especialistas chamam de "época de ouro" da música popu-
o país viveu uma de suas ditaduras, a do Estado Novo, onde lar brasileira do Rio de Janeiro e São Paulo até a instalação
a questão social deixou de ser um caso de polícia para se tor- do Estado Novo (1937-1945). A partir da•í esse personagem pas-
nar uma questão de Estado Policial. " O carnaval, o samba, a sa a sofrer uma série de restrições e a música, como já nos
temática da música popuf?~, particularmente o samba da ma- referimos, é submetida a uma rigorosa censura por parte da
landragem, a Umbanda são submetidos a um controle simbó- Ditadura através de seu órgão especializado, Departamento de
lico, decodificados e neutralizados em outros circuitos de signi- Imprensa e Propaganda, de triste memória .
ficação" (Dantas 1982: 119).
Gostaríamos aqui de nos debruçarmos sobre outro perso- A música popular revelava fascínio pelo malandro em um
nagem que, no nosso entender, corresponde ao Exu na cultu- momento em que o conflito entre o capital e o trabalho ainda
ra brasileira, ou seja, o Malandro. Esse desvio nos permitirá deixava espaços na socieda·de brasileira que eram ocupados
entender melhor como o Exu foi submetido a um controle sim- pela malandragem. Enquanto a população era obrigada a sobre-
bé'o!ico, decodificado e neutra•lizado em outro circuito de signifi- viver ingressando no mercado de trabalho ma•is ou menos ;·e-
cação - de um ser ímpar a um trabalhador na magia da Kim- guiar, submetendo-se assim ao código ideológico positivista da
banda , leia-se Macumba. bandeira nacional, Ordem e Progresso, o malandro, ''parece ter
um destino social mais brando, da•ndo aqui e ali um jeitinho no
aperto, através da sua irresistível picardia e da sua visagem
sedutora" (Vasconcelos 1977: 107). A malandragem é, portan-
MALANDRAGEM E TRABALHO - CONTRAPONTOS
to. a rejeição ao trabalho. Cabe relembrar aqui o quanto o tra-
DE UMA ÉTICA
balho manual no Brasil tem sido historicamente considerado
uma atividade não-dignificadora associada na memória coletiva
Esse personagem , o Malandro, vive em um espaço social à escravatura. Numa sociedade que marginaliza o trabalhador
intermediário, em que não é possível prescindir da ordem e não lhe assegurando condições de vida além da sobrevivência ,
nem tampouco viver dentro dela. " O Malandro como o pícaro, a malandragem se configura então como uma alternativa , o jei-
é uma espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astu- tinho brasileiro tão louvado. Dessa• maneira o descomprometi-
cioso, c;:omum a todos os folclores , pratica a astúcia pela as- mento com a vida do trabalho encontra-se implícito na ética da

~9 2 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N° 1/ 2, p. 189-198 1989/1990 Rev. de c. Sociais, Fort. v. 20/21 No 1/ 2, p. 189-198 1989/1990 193
malandragem e, por outro lado, o ócio, a vida folgada, os ex- '' Você quer comprar seu sossego
pedientes, fazem parte dos códigos desta ética. O malandro, Me vendo morrer num emprego
portanto, encontra-se em um mundo intersticial, no meio ter- Pra depois então gozar
mo e, provavelmente serve aos dois lados. E é nesse mundo
mtersticial que emerge aquilo que poderíamos designar como Você diz que eu sou moleque
verdadeiramente brasileiro, (Berlink, 1982: 34). Porque não vou trabalhar
No samba "Lenço no Pescoço'', de Wilson Batista, de 1933, Eu não sou livro de cheque
temos não somente a descrição de como se veste o ma•landro, Pra você ir descontar
mas, também, uma ideologia da malandragem, se assim pode-
mos dizer, em oposição ao trabalho, pois o trabalhador vive Meu avô morreu na luta
E meu pai pobre coita•do
na miséria:
Fatigou-se na labuta
"Meu chapéu de la•do Por isso eu nasci cansado".
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso Teríamos, nessa composição, a inutilidade do trabalho, pois
Eu passo gingando seus antepassados, o pa•i e o avô, morreram trabalhando. É in-
Provoco desafio teressante perceber que a mulher aparece por um iado, sim-
Eu tenho orgulho de ser vadio bolizando o mundo da ordem e da estabilidade, como preda-
Sei que eles falam do meu parecer dora. Diríamos até que a• mulher representaria a superestrutu-
Eu vejo quem trabalha anda de miserê ra da sociedade. A ordem e a estabilidade predadora que foi
Eu sou vazio porque tive inclinação montada no país desde o Pacto Colonial e que até hoje perma-
Eu lembro, era criança fazia samba canção" nece, como se ontem fosse hoje e o hoje fosse ontem.

Essa recusa à condição de vida do trabalhador, no samba A malandragem se traz do berço. Além de não haver fina-
da malandragem, é uma constante, pois o trabalho não enri- lidade moral ou prática no trabalho, nessas músicas encontra·
quece e a vida de malandro é melhor do que a do trab81hFJdor, mos a apologia do ódo, o princípio do prazer. O nosso gesto
como nos diz Ismael Silva em "O que será de mim" (1931): último seria avesso ao trabalho, pois o malandro colocar-se-ia
do lado do princípio do prazer em oposição ao traba·lho. Esse
talvez seja o grande dilema brasileiro: trabalhar para quê? Para
"Se eu precisar algum dia uma ordem social que encontra sua justificação no passado,
De ir pro batente em ordem e progresso a serviço da manutenção da hegemoníc.·
Não sei o que será política da elite dominante e seus clientes, as chamadas clas-
Pois vivo na malandragem ses médias? O malandro responderia assim com a brincadeira
à realidade, da espoliação institucional e à imoralidade dos do-
O trabalho não é bom minadores. Responderia ao autoritarismo amoral com a irres-
Ninguém pode duvidar ponsabilidade, à pressão da dominação política, social e econô-
Oi, trabalhar só obrigado mica, através da falta de engajamento e da frivolidade; mergu-
Por gosto ninguém vai lá"
lha a visão proprietária nas águas do samba, do carnaval e dn
malandragem.
A constante dessas composições nesse período, como cha-
ma atenção Vasconcelos (op. cit ..), é que a vadiagem é a alter-
nativa possível em um marginal econômico e, em conseqüên- Isso é tão verdadeiro que quando pensam em ascender
cia do salário va·i empobrecendo no seu dia-a-dia . É o que can- socialmente, no modelo da moral vigente das classes proprie-
tam Oreste Barbosa e Antônio Nássara (1933): tárias, é através do Jogo do Bicho, ou seja, pela contravenção :

Rev. de c. Sociais, Fort. v. 20 / 21 N° 1/ 2, p . 189-198 1989/1990 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N° 1/ 2, p. 189-198 1989/1990 195
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malandragem e, por outro lado , o ócio , a vida folgada, os ex- '' Você quer comprar seu sossego
pedientes, fazem parte dos códigos desta ética. O malandro , Me vendo morrer num emprego
portanto, encontra-se em um mundo intersticial , no meio ter- Pra depois então gozar
mo e, provavelmente serve aos dois lados. E é nesse mundo
íntersticial que emerge aquilo que poderíamos designar como Você diz que eu sou moleque
verdadeiramente brasileiro, (Berlink, 1982: 34). Porque não vou trabalhar
No samba " Lenço no Pescoço' ', de Wilson Batista, de 1933, Eu não sou livro de cheque
temos não somente a descrição de como se veste o ma•landro, Pra você ir descontar
mas, também, uma ideologia da malandragem, se assim pode-
mos dizer, em oposição ao trabalho, pois o trabalhador vive Meu avô morreu na luta
na miséria: E meu pai pobre coita·do
Fatigou-se na labuta
" Meu chapéu de laodo Por isso eu nasci cansado " .
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso Teríamos, nessa composição, a inutilidade do trabalho, pois
Eu passo gingando seus antepassados, o pa•i e o avô, morreram trabalhando. É in-
Provoco desafio teressante perceber que a mulher aparece por um iado, si m-
Eu tenho orgulho de ser vadio bolizando o mundo da ordem e da estabilidade, como preda-
Sei que eles falam do meu parecer dora. Diríamos até que a• mulher representaria a superestrutu-
Eu vejo quem trabalha anda de miserê ra da sociedade. A ordem e a estabilidade predadora que foi
Eu sou vazio porque tive inclinação montada no país desde o Pacto Colonial e que até hoje perma-
Eu lembro, era criança fazia samba canção" nece, como se ontem fosse hoje e o hoje fosse ontem.

Essa recusa à condicão de vida do trabalhador, no samba A malandragem se traz do berço. Além de não haver fina-
da malandragem, é uma· constante, pois o trabalho não enri - lidade moral ou prática no trabalho, nessas músicas encontra ·
quece e a vida de malandro é melhor do que a do tn3b81hador, mos a apologia do ódo, o princípio do prazer. O nosso gesto
como nos diz Ismael Silva em "O que será de mim" (1931): último seria avesso ao trabalho, pois o malandro colocar-se-ia
do lado do princípio do prazer em oposição ao traba·lho. Esse
" Se eu precisar algum dia talvez seja o grande dilema brasileiro: trabalhar pa•ra quê? Para
De ir pro batente uma ordem social que encontra sua justificação no passado ,
Não sei o que será em ordem e progresso a serviço da manutenção da hegemoni <:·
Pois vivo na malandragem política da elite dominante e seus clientes, as chamadas clas-
ses médias? O malandro responderia assim com a brincadeira
O trabalho não é bom à realidade, da espoliação institucional e à imoralidade dos do-
Ninguém pode duvidar minadores. Responderia ao autoritarismo amoral com a irres-
Oi, trabalhar só obrigado ponsabilidade, à pressão da dominação política, social e econô-
Por gosto ninguém vai lá" mica, através da falta de engajamento e da frivolidade; mergu-
lha a visão proprietária nas águas do samba, do carnaval e dél
A constante dessas composições nesse período , como cha- malandragem.
ma atenção Vasconcelos (op . cit.,). é que a vadiagem é a alter-
nativa possível em um marginal econômico e, em conseqüên- Isso é tão verdadeiro que quando pensam em ascender
cia do salário va•i empobrecendo no seu dia-a-dia . É o que can- socialmente, no modelo da moral vigente das classes proprie-
tam Oreste Barbosa e Antônio Nássara (1933) : tárias, é através do Jogo do Bicho, ou seja, pela contravenção :

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" Acertei na milhar '' Quem trabalha é que tem razão
Ganhei quinhentos contos Eu digo e não tenho medo de errar
Não vou ma•is trabalhar
Antigamente eu não tinha juízo
Você vai ser madame Mas resolvi garantir meu futuro
Vou morar num grande hotel Vejam vocês
Eu vou comprar um nome não sei onde Sou feliz vivo muito bem
De marquês, Dom Jorge da Veiga, de visconde A boemia não dá comida a ninguém
Um professor de francês, mon amour E digo bem" .
Eu vou trocar seu nome
Pra madame Pompadour" Com o tempo o malandro corrompeu-se. Agora designa r,
indivíduo esperto, que não se deixa iludir, e, também, não se
lamenta, não é mais o homem da desordem, que agride, que
A malandragem, no entanto, não tem mais espaço na socie-
dade que se reorganiza após 1930. Como fica claro nesse sam- mata. O tipo clássico, de calça•s largas inteiriças, de salto ca r·
rapeta, chapéu de lado, desapareceu, civilizou-se. O malandro
ba de Noel Rosa "Rapaz Folgado" (1933):
agora "é profissional, regular, oficial, candidato federal, com
''Deixa de arrasta-r o seu tamanco retrato na coluna social, com contrato, gravata e capital, ap o·
Pois tamanco nunca foi sandália sentou a nav811ha, tem mulher e filhos e trabalha". como diz
Chico Buarque.
Tira do pescoço o lenço branco
Joga fora esta navalha
Que te atrapalha
O EXU - UMA OUTRA REAPROPRIAÇAO
Com o chapéu de lado desta rata
Na polícia quero que te escapes
Fazendo um samba-canção E o Exu, nosso personagem? Ele também vai traba·lhar na
Já te dei papel e lápis magia negra, na Kimbanda, pois religião é o Espiritismo de Um-
Arranja um amor e um violão". banda. Convém relembrar aqui o que chamamos atenção, ~J
Exu perde seu princípio de totalidade da existência, sua pri-
mazia nos rituais e oferendas do Candomblé e, seu dinamismo
Nesta· proposta Noel estava longe de ser puro moralista, cósmico e humano para se transformar em um operário mélqia.
como poeta sentiu os novos tempos que se avizinhavam, pois Para tanto irá ser batizado nas leis da Umbanda, irá evoluir
já em 1928, haviam começado as despedidas das efêmeras gló- como os outros espíritos do Kardecismo ou do cosmo umban-
rias do malandro: dista. E assumirá simbolicamente o estereótipo do malandro
no personagem Zé Pilintra, em sua forma de vestir, linguagem
" A malandragem irreverente e obscena .
Eu vou deixar Embora o Espiritismo de Umbanda tenha desejado apagar
Eu não quero outra vez a• orgia a memória coletiva afro-brasileira pela racionaliza•ção do karde-
Mulher do meu bem-querer cismo, não pode prescindir desse personagem prometéico, 8
Esta vida• não tem mais valia" é por essa razão que tenta acorrentá-lo e reduzir ao modei•J
cultural tradicional do trabalho, à escravidão.
A polarização temática entre a ordem (a mulher) e a de- O Espiritismo de Umbanda, tal como é praticado principal -
sordem (a malandragem) estava chegando a seu ocaso, pois o mente no meio dessas populações de desclassificados a que
malandro passa a ser visto como um personagem negativo. A fizemos referência, fazendo apelo ao Exu, nosso Prometeu-Ma-
nova ordem é a do trabalho; como no samba de Ataulfo Alves . cunaíma, em seus trabalhos, não faz outra coisa senão reinte-.
''O bonde de São Januário" ( 1941): pretar essa memória afro-brasileira e, ao mesmo tempo, criar

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" Acertei na milhar '' Quem trabalha é que tem razão
Ganhei quinhentos contos Eu digo e não tenho medo de errar
Não vou ma•is trabalhar
Antigamente eu não tinha juízo
Você vai ser madame Mas resolvi garantir meu futuro
Vou morar num grande hotel Vejam vocês
Eu vou comprar um nome não sei onde Sou feliz vivo muito bem
De marquês, Dom Jorge da Veiga, de visconde A boemia não dá comida a ninguém
Um professor de francês, mon amour E digo bem".
Eu vou trocar seu nome
Pra madame Pompadour" Com o tempo o malandro corrompeu-se. Agora designa r,
indivíduo esperto, que não se deixa iludir, e, também, não se
lamenta, não é mais o homem da desordem, que agride, que
A malandragem, no entanto, não tem ma•is espaço na socie-
mata. O tipo clássico, de calças largas inteiriças, de salto ca r·
dade que se reorganiza após 1930. Como fica claro nesse sam-
rapeta, chapéu de lado, desapareceu, civilizou-se. O malandro
ba de Noel Rosa "Rapaz Folgado" (1933):
agora "é profissional, regular, oficial, candidato federal, com
'' Deixa de arrasta•r o seu tamanco retrato na coluna social, com contrato, gravata e capital, apo·
Pois tamanco nunca foi sandália sentou a navalha, tem mulher e filhos e trabalha", como diz
Chico Buarque.
Tira do pescoço o lenço branco
Joga fora esta navalha
Que te atrapalha
O EXU - UMA OUTRA REAPROPRIAÇAO
Com o chapéu de lado desta rata
Na polícia quero que te escapes
Fazendo um samua-canção E o Exu, nosso personagem? Ele também vai traba·lhar na
Já te dei papel e lápis magia negra, na Kimbanda, pois religião é o Espiritismo de Um-
Arranja um amor e um violão". banda. Convém relembrar aqui o que chamamos atenção, ~;
Exu perde seu princípio de totalidade da existência, sua pri-
mazia nos rituais e oferendas do Candomblé e, seu dinamismo
Nesta proposta Noel estava longe de ser puro moralista, cósmico e humano para se transformar em um operário meqia.
como poeta sentiu os novos tempos que se avizinhavam, pois Para tanto irá ser batizado nas leis da Umbanda, irá evoluir
já em 1928, haviam começado as despedidas das efêmeras gló- como os outros espíritos do Kardecismo ou do cosmo umban-
rias do malandro: dista. E assumirá simbolicamente o estereótipo do malandro
no personagem Zé Pilintra, em sua forma de vestir, linguagem
" A malandragem irreverente e obscena.
Eu vou deixar Embora o Espiritismo de Umbanda tenha desejado apagar
Eu não quero outra vez a• orgia a memória coletiva afro-brasileira pela racionaliza•ção do karde-
Mulher do meu bem-querer cismo, não pode prescindir desse personagem prometéico , e
Esta vida• não tem mais valia" é por essa razão que tenta acorrentá-lo e reduzir ao modei'J
cultural tradicional do trabalho, à escravidão.
A polarização temática entre a ordem (a mulher) e a de- O Espiritismo de Umbanda, tal como é praticado principal -
sordem (a malandragem) estava chegando a seu ocaso , pois o mente no meio dessas populações de desclassificados a que
malandro passa a ser visto como um personagem negativo. A fizemos referência, fazendo apelo ao Exu , nosso Prometeu-M a-
nova ordem é a do trabalho ; como no samba de Ataul-fo Alves. cunaíma, em seus trabalhos, não faz outra coisa senão reinte-.
" O bonde de São Januário" ( 1941): pretar essa memória afro-brasileira e, ao mesmo tempo, criar

196 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N° 1/ 2, p . 189-198 1989/1990 Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/ 21 N° 1/ 2, p. 189-198 1989/ 1990 197
uma linguagem contemporânea de base comum, que respeita• a&
diferenças essenciais entre os grupos, suas identidades e seus
valores particulares. Nessa linguagem o domínio do sobrenatu
ral aparece como fundamental, artravés de Exu, para compreen·
são do sistema ambíguo das representações sociais da sacie
dade brasileira, ou do sistema cultural propriamente dito.
O HOMEM LIVRE/POBRE E A ORGANIZAÇÃO DAS
RELAÇõES DE TRABALHO NO CEARA (1850- 1880)
BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, MARIO de. Macunaíma, o herói sem nellhum caráter. São Paulo.
Francisco José Pinheiro
Martins, 1979.
HASTIDE, Roger. "Ultima Scripta''. Archives de Sciences Sociales de Reli·
gions. Paris, n.o 38, p . 3-47, juil.-dec. 1974.
BROWN, Diana. Umbanda, politics oj an urban religious movement. Colum-
bia, 1974. (Tese Ph . D . Columbia University, mimeografado). 1. INTRODUÇÃO
CANDIDO, Antônio. "A dialética da malandragem''. Revista do fll stituto de
Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 8 p. 67-89, 1970.
0
Na segunda metade do século XIX estava em curso uma
CASCUDO, Câmara. Made in A/rica. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira série de transforma•ções no âmbito da Província do Ceará. Esse
1969 . processo pode ser constatado pelo exame da sua economia,
DANTAS, Beatriz Góes. Vovó Nagô Papai Branco, Campinas, 1982 (Disserta- onde a agricultura comercial entrava numa nova fase, subor·
ção de Mestrado, Mimeografado). dinando a de subsistência. Esta·s modificações não ficaram res-
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis, Vozes, 1978. tritas aos aspectos materiais; houve repercussões na própria
PORDEUS, Ismael de Andrade )r. Prométhé mal Enchainé, ou Exu le Rol organização do Estado.
des Carrejours. Lyon, 19~ll. (Tese de Doctorat de Université - Uni
versité Lumiere - Lyon 11 mimeografada) .
No entanto, a principal problemática estava relacionada com
RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de a organização das relações de trabalho. Com isso, o principal
Janeiro, Civilização Brasileira, Typ . Lyth, Moreira e Maximiano, 1894. objetivo deste trabalho será recuperar as propostas dos grupos
SANTOS, Juana Elbain dos. Os Nagôs e a Morte. Petrópolis, Vozes, 1977. dominantes locais para organizar a-s relações de trabalho na
SHADEN, Egon. A mitologia heróica das tribos indígenas do Brasil. Rio de Província, na segunda metade do século XIX.
Janeiro, MEC, Serviço de Documentação, 1959. A medida em que a agricultura comercial se tOrnou a base
VASCONCELOS, Gilberto. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, da economia provincia·l exigiu uma incorporação crescente de
Edições Graal, 1977. força de trabalho. Exigiu sobretudo, a criação de mecanismos
para garantir a submissão, não apenas da força de trabalho, ma-s
dos trabalhadores aos grandes proprietários.

2. A AGRICULTURA COMERCIAL E AS NECESSIDADES


INFRA-ESTRUTURAIS (1850-1880)

As transformações não ficaram restritas às relações de


trabalho. Neste tópico, procuraremos retomar a discussão sobre
a necessida·de de melhoria dos aspectos infra-estruturais na se-

Rev. de C. Sociais, Fort. v. 20/21 N. 0 1/2, p. 199-230 1989/1990 199


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