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François Rabelais

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PANTAGRUEL
Rei dos D ípsodos

restituído à verdade com seus


factos e proezas espantosos
escritos pelo falecido mestre Alcofribas
abstractor de quinta-essência

tradução revista, apresentação e notas de


Aníbal Fernandes
• r * *V• ;
2.* edição

Lisboa MCMXCVII
Mi Digamos que o vento soprava da Itália e a Idade Média
francesa já tinha estremecido; que os feudos estavam abala­
dos atrás das suas pedras, e a nobreza e o clero eram sub­
missos ao rei e aos seus favores; que aquelas damas se tinham
soltado para chegar ao sol de uma vida nova onde havia caça,
festa e jogo.
Muito longe, a América andava a ser pilhada para derra­
mar na Europa metais preciosos. E ali mesmo, em Paris, em
Lião - uma novidade - as máquinas impressoras espalhavam
letras de forma, multiplicavam uma cultura que tinha sido
privilégio de nobres e frades.
A esta guerra contra a ignorância, a esta civilização fes­
tiva - triunfo da luz sobre as trevas - não se dava nenhum
nome. Vinha com um vento de audácias e prazeres soprado
da Itália mas integrava o homem no mundo regido por uma
ordem de leis matemáticas, fazia triunfar o naturalismo na
arte e formava humanistas. Na literatura era um querer saber
de todos os livros, o repúdio das tradições medievais com o
olhar posto no exemplo dos Gregos e dos Latinos. Sem ter
nome enfeitou Roma, Florença, Veneza e chegou à literatura
da França para dar Marot, Calvino, Marguerite de Navarre,
Montaigne, Ronsard e a Plêiade. E também Rabelais.
Em 1538 - ia no auge este movimento renovador - Nicolas
Bourbon chamou-lhe renascentes literae; em 1553 Pierre Belon

5 PANTAGRUEL
falou na tant désirée renaissance; em 1559 Jacques Amyot lem­
brava que Francisco I começara a «fazer renascer e a florir o
nobre reino das letras». Mas só o século XVII deixou de hesi­
tar: o Dicionário da Academia abriu na letra R a entrada
Renaissance para esta nova acepção. Chamou-lhe movimento
literário, filosófico e artístico. Voltaire, esse, encolheu os
ombros: «Admiramos Marot, Amyot, Rabelais como se lou­
vássemos crianças que dissessem, por acaso, alguma coisa de
bom. Aprovamo-los porque desprezamos o seu século e, de
crianças, da sua idade, nada se espera.»
Houve, pois, reserva e foi preciso aguardar. No século XVIII,
Michelet e Burckhardt falaram com entusiasmo desta mudança
e até a ligaram a «um descobrimento do mundo e do homem»;
Rivarol citou-a no discurso De l'universalité de la langue française.
No século X IX Balzac referiu-se-lhe em Le Bal des Sceaux e
Victor Hugo em Notre-Dame de Paris.
E timidamente, passo atrás de passo, este renascimento
passou a ser, enfim, o Renascimento.

Mi Não vá porém pensar-se que o Renascimento chegou a


todo o homem com a sua luminosa bênção. Houve progresso
mas as guerras exigiram despesas colossais; o comércio flo­
rescia mas a corte deslocava-se o ano inteiro e os cofres
abriam-se a gastos sumptuários. Perto de si o povo não sen­
tia nenhum vento novo e continuava a ter a Idade Média em
sua casa: contava tostões, rodeava-se de imundície, coçava
as suas sarnas, tinha lepra e não levantava barreiras ao fla­
gelo dos vírus inimagináveis que as pestes faziam penetrar
nos corpos até ao enterro em desmedidas valas-comuns.

RABELAIS 6
Houve, sim, euforia entre artistas, escritores e intelectuais,
que não sabiam - desde a Grécia, desde Roma - de uma tão
grande protecção do rei, dos nobres e da burguesia abas­
tada. O livro impresso chegava, multiplicado, a muitas mãos.
Ter Homero em casa era uma sensação nova, um entusiasmo
difícil de reprimir. Por isso mesmo o primeiro livro impresso
em Paris não resistiu a dizê-lo calcando a negro na folha de
rosto: «Tal como o sol espalha em todo o lado a sua luz,
também tu, Paris capital do reino, ama das Musas, espalhas
no mundo a ciência. Recebe, pois, por recompensa esta arte
de escrever e esta arte quase divina que a Alemanha inven­
tou.» Era em 1480 e Paris louvava Gutenberg, o alemão que
trinta anos antes inaugurara a imprensa com a famosa «Bíblia
das 42 linhas».
Este Renascimento inovador estabeleceu de país a país
diferenças, ensaiou medidas e limites para as suas vénias pe­
rante a arte. Na Itália, o grande artista chegou a ser intocável;
Benvenuto Cellini não foi perseguido por assassínio quando
Lourenzo de Médicis declarou que um tal génio estava acima
da lei. Na Inglaterra, Holbein não foi punido por ter posto
fora do estúdio um grande senhor. Mas a França quase não
afrouxou a sua anterior severidade: aproveitando uma ausên­
cia do rei queimou na fogueira Dolet por ter traduzido fala­
ciosamente uma passagem do divino Platão; levou ao suplício
Berquin por ser luterano e adversário da Sorbonne... Sorbonne?
Por causa dela Rabelais virá a ter apreendidos os seus livros
e - do mal o menos - expurgados os textos de Gargântua e
Pantagruel, desde então libertos de toda a ironia contra os
teólogos do «saber sorbonnícola».
Mas sobreviveu. E - como todos os grandes talentos -

7 PANTAGRUEL
dividiu. Sofreu duzentos anos de juízos duros e demolidores,
de uma incompreensão que parecia esbarrar naquela moder­
nidade incompatível, dir-se-ia, com as austeridades do século
clássico e do século das luzes. São Francisco de Sales, quase
contemporâneo seu, soltou uma exclamação irada: «infame
Rabelais!» E La Bruyère, apesar do sarcasmo que sempre cul­
tivou, de viver irreconciliado com a sua época, de argumen­
tar a superioridade do riso sobre a felicidade, escreveu: «Marot
e Rabelais são indesculpáveis por terem semeado a imun­
dície nos seus escritos. Ambos tinham génio e carácter bas­
tantes para o evitarem, mesmo junto daqueles que procuram
admirar menos um autor do que rir com ele. Rabelais, sobre­
tudo, é incompreensível. O seu livro é, diga-se o que se disser,
um enigma, inexplicável. É uma quimera, é o rosto de uma
mulher bela com pés [s/c] e rabo de serpente, ou de qual­
quer outro bicho mais disforme. É reunião monstruosa de
uma moral fina e engenhosa com uma suja corrupção. Onde
ele é mau, passa muito para além do pior, é o feitiço e a
canalha. Onde ele é bom, vai até ao requinte e ao excelente,
pode constituir uma iguaria das mais delicadas.» Voltaire, que
o achou espírito grosseiro, inferior a Swift, num momento
mais radical desabafou: «é um filósofo ébrio, que só escreveu
enquanto estava bêbado».
Depois, os homens do Romantismo mudaram o tom. Se
cultivavam a melancolia e o desespero dos corações doentes,
nem por isso deixavam de encontrar um lugar para o sol de
Rabelais, tiravam-no enfim do pelourinho para fazer dele um
gigante que lançava geniais relâmpagos sobre o mundo. São
desta época os juízos supremos sobre este autor. Chateau-
briand chamou-lhe «um dos génios-mães da humanidade»;

RABELAIS 8
Balzac «o grande espírito da humanidade moderna, que resume
Pitágoras, Hipócrates, Aristófanes e Dante»; Théophile Gautier
«o Homero trocista». Michelet achou-o «tão grande como
Shakespeare», «maior Senhor do que Aristófanes», e disse
que Gargantua e Pantagruel eram «a esfinge e a quimera, um
monstro de cem cabeças, cem línguas, um caos harmónico,
uma força de infinito alcance, uma embriaguez maravilhosa­
mente lúcida, uma loucura profundamente sensata». Registemos
ainda a soberba imagem que Barbey d’Aurevilly lhe encon­
trou: «Mastodonte que emergiu radiosamente do caos para
o azul de um mundo que nascia.»
Esta caução romântica estabilizou-lhe o prestígio. As raras
faltas de entusiasmo passaram a disfarçar-se atrás de poli­
mentos e precauções. «Frequentei-o pouco», desculpar-se-á
um dia Mauriac para não ser mais explícito. «Reencontro-o
às vezes com prazer mas não posso dizer que tenha tido um
papel importante na minha formação», afirmará Albert Camus.
E Julien Gracq, depois de uma declaração quase idêntica acres­
centa: «Não é preciso provarem-me que fiz mal.»
Do lado dos rendidos - tantos - , o depoimento de Jean
Cocteau continua a ser dos mais belos: «Rabelais é as entra­
nhas da França, os grandes órgãos de uma catedral cheia de
esgares do diabo e do sorriso dos anjos. Só o respeito me
impediu de escrever sobre a sua obra. Sonhamos com um
Rabelais ilustrado por Hieronymus Bosch. Talvez esse livro
maravilhoso exista num céu qualquer.»

9 PANTAGRUEL
... com um pé no fogo e
a cabeça no centro.
Pantagruel, cap. XI

Mi Se a França - e quem diz a França diz o mundo sensível


à sua cultura - nunca pôde ignorar este homem, soube afogar-
-Ihe o tumulto em friezas escolares, sufocar-lhe o desbra-
gamento sob as notas e as fichas da chateza académica.
Os investigadores fizeram-no nascer em 1483, 1490, 1495...
(que importa?), quarto filho numa família de camponeses abas­
tados. E garantem que passou pelos beneditinos de Seuilly,
pelos franciscanos de Fontenay-le-Comte; que, sob a asa de
um futuro bispo de Maillezais, conheceu os maiores huma­
nistas do seu tempo.
Padre efémero, sabemos quão pouco demorou a soltar-
-se das ordens regulares, da sotaina, e como nunca desiludiu
a fama de uma conduta escandalosa. Que viajou mas seria
difícil segui-lo num desenho complexo de peregrinações pela
França e pelas suas universidades. Que fez dois filhos a uma
viúva e se inscreveu na faculdade de Medicina de Montpellier;
e em Lião, já médico no hospital do Pont-du-Rhône, se exerci­
tou com trabalhos menores nas letras até ao Pantagruel de
1532, logo condenado pelas faculdades de Teologia. Era um
livro escrito sob pseudónimo - transparente pseudónimo já
que Alcofribas Nasier é evidente anagrama de François Rabelais.
Rabelais viu o seu livro brincar com o fogo. Talvez fosse
prudente insinuar-se junto de um protector, neste caso Jean
du Bellay, um cardeal vermelho no trajo e no copo. Fê-lo com
êxito e foi com ele a Roma. E quando voltou a Lião escon-

RABELAIS IO
deu-se até poder regressar a Itália na mesma companhia. Diz-
-se que roubou sementes desconhecidas ao papa e desven­
dou à França o melão, a alcachofra e o cravo. Mas outros
proveitos tirou do Vaticano: foi o mesmo papa quem lhe pôs
a irreverência a recato num mosteiro beneditino francês e
conseguiu que o autorizassem a prosseguir a carreira de
médico, ainda que excluída a veleidade de efectuar inter­
venções cirúrgicas. (No ano anterior, Rabelais chocara cien­
tistas ao fazer, da dissecação de um homem, um espectáculo
público.)
Rabelais não mais deixaria de ser médico-escritor. Praticava
a medicina e publicava. Em 1534 publicou Gargântua e em 1546
Le Tiers Livre. Ficou particularmente vulnerável quando mor­
reu Francisco I, protector dos letrados, com as audácias da
sua pena irreverente a descoberto perante a lei. Por isso foi
médico obscuro em Metz até Du Bellay lhe oferecer mais dois
anos de ausência romana. Longe dele, a França gritava: teó­
logos católicos e protestantes uniam-se enfim para o mesmo
clamor; e Calvino pedia uma fogueira bem acesa para «o cão
danado que vomitava sujidades contra a majestade divina».
Dir-se-á que estas celeumas e o trabalho a que ele próprio
se deu para expurgar as segundas edições de Gargântua e
Pantagruel fazendo-as mais brandas para os poderes da época,
levaram-no a parar seis anos. O Quart Livre é de 1552, ano
anterior ao da sua morte. E o Cinquième Livre é um póstumo
de 1564, ao que parece não totalmente seu. De facto, se em
muitas das suas passagens é reconhecível o génio de Rabelais,
parece sensato desconfiarmos que alguns pesados capítulos
constituam uma inegável interpolação. Esta polémica ainda
não terminou.

1 1 PANTAGRUEL
Morto com cerca de setenta anos (idade provecta no
século XVI), Rabelais deixava uma obra de cinco livros extrema­
mente singular. Tinha ousado escrevê-la com a desenvoltura
da oralidade coloquial, num estilo que a época apenas conhe­
cia de mistérios e histórias de praça pública. E também fazia
uma inegável transição entre os últimos poetas épicos e os
primeiros grandes romancistas. Experimentava tudo, abalando
as tradições literárias daquele século de fermentação confusa
e comprazido no caos sangrento das guerras da religião. Para
o leitor do tempo, abrir um livro seu era correr o risco de
ver o estilo bíblico parodiado com um sentido burlesco; ver
explorada uma dimensão desconhecida e fundamental da
palavra, e levada àquilo, por exemplo, que viria a ser a «escrita
automática» do Surrealismo; ver a dignidade dos poderes bem
estremecida sob o riso de uma sátira implacável. E o pior era
que a língua, ao serviço de tão desagradáveis propósitos, sur­
gia com inaudita grandeza, apoiada em dialectos e línguas
estrangeiras para forjar um belo francês não-literário, expur­
gado de toda a carga retórica. Para a época, o espectáculo
era estranho e insolente. Era uma ousadia - inqualificável ape­
sar do século que se exercitava na mudança. Era irritante -
porque a «outra» literatura, embora desagradada, lhe pressen­
tia a nova força atrás do arrasamento das convenções que
ainda sustentavam o «grande estilo». Duplamente agastados,
os poderes reagiam acusando-o de heresia e obscenidade.
Dos seus quatro livros publicados em vida, nenhum escapou
à censura: em 1533, a Sorbonne condenou Pantagruel como
livro obsceno; em 1541, Rabelais viu-se obrigado a suavizar
as edições de Gargântua e Pantagruel; em 1543, Gargântua e
Pantagruel foram alvo de censura no Parlamento, a pedido

RABELAIS 12
dos teólogos; em 1546, os mesmos teólogos lhe condenaram
o Tiers Livre, e em 1552 o Quart Livre.
Filtradas, porém, de audácias consideradas obscenas e
heresias, os cinco livros só contavam uma história de gigantes
saídos da imaginação popular, que viviam entre homens nor­
mais, crianças grandes empenhadas em destruir a maldade e
os maus. Grandes corpos exigentes que representavam os
bons reis, a França renascida, o futuro do homem no mundo,
a alegria de viver. Gargântua, o pai, comia; e Pantagruel sobre­
tudo bebia.
Rabelais tinha-se lembrado de uma sotia do século ante­
rior - a Sot/e du Roy des Sotz, onde avoir le panthagruel sig­
nificava «ter sede» - para baptizar o sequioso herói, grande
senhor de faustos e generosidades, grande leitor de escritos
antigos. Fazia dele a encarnação do sábio, do homem com­
pleto e submisso às leis da natureza. Já houve, por isso, quem
quisesse vê-lo como imagem transposta do Francisco I dos
últimos anos, e do seu sucessor Henrique II.
Panurgo, leal companheiro de Pantagruel, esse também
surgia da tradição popular ao apresentar-se assim, biltre e
larápio, tão letrado como um rufia das tabernas de François
Villon, conhecedor de sessenta e três maneiras de «encon­
trar» dinheiro, feliz por se afirmar manhoso e senhor de uma
maldade gratuita. Era o grande «negador» num fim de Idade
Média disposto a fazer explodir os valores intelectuais e reli­
giosos da velha sociedade. Cometia desacatos a pedir sim­
patia sob a sorridente loucura da juventude. Projectou, com
esta imagem, uma sombra enorme; atravessou séculos e tocou
muitos heróis da literatura francesa como, por exmplo, o
sobrinho de Rameau, de Diderot, e o Figaro de Beaumarchais.

13 PANTAGRUEL
O livro, esse, parece perseguir estratégias para dois objec-
tivos distintos.
Há aquela odisseia - odisseia de gigantes tão ligada à ima-
gerie medieval - esforçada em punir os maus vencidos pelos
bons sobre fundo de aventura, facécia e inultrapassáveis feitos.
Mas acrescente-se-lhe a originalidade que era servir uma
história ao gosto popular com violenta restrição de destina­
tários: discurso pensado apenas para espíritos cultos e requin­
tados, constantemente provocados com a citação perversa
do que então se tinha por muito respeitáveis fontes culturais.
Rabelais punha os seus gigantes em trabalhos de Hércules,
inseria-os num mundo de maravilhas mas transtornando as his­
tórias dos autores gregos e da Mitologia, substituindo a sua
dignidade clássica por uma roupagem, farsista quando não
mesmo trocista. E - mais outra novidade, na época - fazia-o
com absoluta indiferença para com os sentimentos, atento
apenas aos grandes prazeres do corpo e do espírito. Era, enfim,
a subversão plena de valores morais cultivados pela literatura
do seu tempo, à qual surgiam somadas liberdades de forma até
então inimagináveis: era a grande libertação da prosa francesa.
Neste mundo de aventura e prazer, Pantagruel é um gigante
imenso, com dimensões sugeridas sem temer a desmesura.
Rabelais atreve-se a atribuir-lhe um berço descomunal; ou
refeições de infância que incluem o leite de quatro mil e seis­
centas vacas; ou a possibilidade de levantar com o mindinho
o enorme sino enterrado em Saint-Aignan e de o levar, como
um guizo, até ao campanário; ou cobrir todo um exército
pondo de fora metade da língua; ou albergar na boca mais
de vinte e cinco reinos habitados, extensões desertas e um
braço de mar.

RABELAIS 14
Este incomensurável gigante reduz-se porém de estatura
quando convive com os homens ao nível da comunicação.
O Pantagruel destes momentos diminui e consegue instalar-
-se na residência São Dinis, frequentar a biblioteca de São
V ítor, a vulgar sala de um tribunal, ou manter uma relação
amorosa com uma dama de Paris. Diminui dissimuladamente
de dimensões para evoluir ao nível dos homens normais e
comunicar com eles ou dissertar sobre os complexos pro­
blemas dessa mesma comunicação.
Lembremo-nos de que a Idade Média tinha reduzido o
francês literário a um papel sem importância perante o latim,
o abandonara às obras de pura diversão ou de edificação po­
pular; que o mundo culto se exprimia em latim, desprezava
o grego estigmatizando-o com a frase graecum est, non legi-
tur e menorizava o conhecimento das outras línguas do mundo.
Não só Rabelais hostilizou quanto pôde esta tendência, mas
pretendeu reconhecer a palavra como um mundo secreto de
dimensão inexplorada, e até mesmo a ausência da palavra
como forma de levar o gesto à mais pura expressão do sen­
tido. Este programa estendeu-se por vários capítulos do livro
sem perder de vista a sátira ou a profunda irrisão.
De facto, logo no capítulo VI vemos Pantagruel irritar-se
com o francês violentamente alatinado de um estudante. Todo
este episódio é uma sátira à tendência que os estudantes uni­
versitários da sua época mostravam - obrigados que eram a
exprimir-se em latim durante as aulas - de forjar no dia-a-
-dia uma língua de palavras latinas sujeitas à estrutura própria
do francês. Porém, no capítulo seguinte como que faz um
jogo inverso do anterior. Desta vez Rabelais parodia o abas­
tardamento do latim entre os eruditos, introduzindo um

15 PANTAGRUEL
francês sorrateiro e declinado como aquela outra língua no
título de muitos notabilíssimos livros da biblioteca de São
Vítor. Depois, no capítulo IX, o primeiro encontro de Panta-
gruel e Panurgo serve de pretexto para uma ostentação de
línguas estrangeiras, desde as mais prestigiadas a outras, que
a época considerava bárbaras, forma de definir Panurgo como
cidadão do mundo aberto à nova época de cultura e de expan­
são, capaz de exprimir-se em todos os idiomas do homem
civilizado. Os capítulos XI, XII e XIII avançam na exploração
destes problemas entregando-se a um exercício de palavras
fora do seu sentido usual, como se brotassem do espírito e
fossem enunciadas antes de sofrer a vigilância imposta pela
razão. Quatro séculos mais tarde, André Breton viria a ligar
um tal exercício ao «automatismo psíquico» e ao «funciona­
mento real do pensamento». Mas para Rabelais é tentativa
de esvaziar a linguagem de todos os elementos significativos
transformando radicalmente a relação do homem com o
verbo, destruindo a ligação lógica que, na linguagem vulgar,
há entre as palavras e o lugar que elas ocupam no discurso.
Com as palavras restituídas à sua liberdade, Rabelais destrói-
-Ihes a máscara sob a qual os homens, diferentes entre si,
tentam parecer iguais; só há que procurar o outro elo pos­
sível, o do gesto. E disto trata o capítulo XIX, onde Panurgo
e o inglês Thaumasto contraditam por sinais. Privado da pala­
vra, o homem fica nu e solitário mas senhor da mais pura
expressão do sentido. Para o homem, que tão pouco domina
a globalidade do saber, gritos e gestos bastam como forma
de se exprimir.
Teria sido interessante ver Rabelais prosseguir com este
jogo e explorar até mais longe as suas variações. Cansado ou

RABELAIS 16
assustado, desistiu dele para recuperar a veia popular das
Grandes Crónicas. Permanece, assim mesmo, mais vivo do
que nunca. E tão singular a sua marca se fez, que deu origem
ao adjectivo «rabelaisiano» para qualificar algo onde exista
uma crua e truculenta jovialidade. Continua a ser imitado, a
maior parte das vezes com mau ouvido e substituído, no seu
impudor cínico, por uma obscenidade pesada.
Persiste; ainda hoje o vemos incendiar página a página os
pontos luminosos que tornam tão lograda a sua sátira - sátira
que é contrapartida da sua ânsia maior, direito do homem
às plenitudes do seu ser físico. Vingou-se a fazer sofrer os
monges e a escolástica, inimigos desse propósito tão árduo
e perigoso no seu tempo; mais valeria disfarçá-lo na paródia
e fazê-lo correr por expedições longínquas e loucuras cava-
leirescas tão do agrado dos seus primeiros leitores. Pôs nessa
paródia o travo amargo de um filho de lavrador que viu cam­
pos devastados e camponeses na ruína; que queria a impos­
sível vitória desse amor à vida, que pertence aos vivos, concreto
e sensível em todos os seus actos, sejam eles nobres ou vul­
gares, em tudo autêntico, mesmo perante as suas funções
mais grosseiras.
Pela sua mão o homem foi seguido com amor e sob a
tempestade do riso - pouco discreto, talvez, mas sereno.
Fê-lo centro de um espectáculo onde explodiam energias
naturais, pronto a dilatar as suas forças mais íntimas. E assim:
fisicamente inteiro.
A. F., 1997

17 PANTAGRUEL
D é c im a de M estr e H u g u es Sa l e l *
AO AUTOR DESTE LIVRO

Se oo juntar o proveito e a doçura


Faz o autor que lhe ofereçam grande fama,
Será amado, de forma bem segura;
£ mui forte neste livro a tua chama
E, do bom entendimento, o que proclama
Bem dita vai daqui a utilidade;
A rir, Demócrito faz tua amizade
Percorrendo a seu sabor a vida humana.
Insiste pois, cá em baixo, sem vaidade,
Que altos castelos vão cantar hossana.
PRÓLOGO DO A U T O R

Mui ilustres e mui valorosos heróis, fidalgos e outros,


de bom grado rendidos a quanto houver de gentilezas
e honestidades, não há muito vistes, lestes e conhecestes
as Grandes e Inestimáveis Crónicas do Enorme Gigante
Gargântua1 e, verd a d eiro s fiéis que so is, co rtê sm e n te
lhes destes crédito e muita vez passastes o vosso tempo
com honoráveis damas e meninas a contar form osas e
compridas histórias quando já não tínheis mais que dizer,
por isso merecendo do melhor louvor e memória sempi­
terna.
Minha vontade será que abandone cada qual sua tarefa,
não tenha em cuidado a sua a rte e bem esquecidos
ponha os seus negócios para vaguear ao sabor delas sem
nenhum entrave e sem te r o espírito distraído algures
nem impedido, até sabê-las de co r e em tempo futuro
ser possível ensiná-las, cada qual e sem hesitação nenhu­
ma a seus filhos se porventura a arte tipográfica acabar
ou acaso todo o livro perecer, e de mão em mão fazê-
-las passar a descendentes e sobreviventes com o se fora
uma religiosa Cabala; porque há nisto mais fruto do que
por ventura pensa uma porção de grandes bazofeiros
bastante encardidos, que destas pequenas pilhérias muito

21 PANTAGRUEL
menos entende do que Raclet entendeu dos Institutos2.
Bom núm ero de altos e poderosos senhores conheci
eu que, saindo a caçar animais de grande porte ou adens
a falcão, se não lhes sucedia en co ntrar o animal de en­
contro às paliçadas, ou se viam o falcão em voo planado3
bem co n trafeito s ficavam , com o haveis de entendê-lo
muito bem, por ver a presa deitada a fugir com o se fora
um raio; e com o único recurso de consolo, e para não
sucum birem , só lhes restava relem brar os inestimáveis
feitos do referido Gargântua.
O u tro s andam neste mundo (e de patranhas se não
trata), que ao serem fortem ente atenazados pela dor de
dentes, e depois de gastarem no médico todos os haveres
sem nenhum proveito, mais expedito remédio não acha­
ram do que m eter entre dois panos bem quentes as ditas
Crónicas e aplicá-las no lugar da dor depois de salpi­
cadas com algum de pó de O rib u s.
E o que dizerm os dos pobres sifilíticos e dos goto­
sos? Oh! Quanta vez os vimos em momento de andarem
bem untados e besuntados a preceito, com a face tão
luzente com o a fechadura de um aparador, com dentes
a chocalharem como teclas de órgão ou espineta quando
alguém toca música com elas, com a goela a espumar
tanto com o a do varrão que o trem de caça encurralou
no meio das redes! Sim, estes o que faziam? Por todo
o consolo só lhes restava ouvir ler uma página qualquer
do referido livro, e alguns vim os que a cem pipas de

RABELAIS 22
velhos diabos se ofertariam caso não sentissem mani­
festo alívio a tal leitura, quando se encontravam metidos
no lim bo4, tal qual as mulheres em dor de parto quando
se lhes lê a vida de Santa M argarida5.
Não terá isto valor? Encontrai-me em qualquer língua
um livro com tais virtudes, propriedades e prerrogati­
vas, sejam quais forem a sua faculdade e a sua ciência,
e meia litrad a de trip a s pagarei. N ão, se n h o re s, não!
Porque este é sem par, incomparável e sem mais padrão.
Por ele ponho, exclusivé, as mãos no fogo. E a quem
no co n trá rio in sistir chamai aldrabão, predestinador,
im postor e enganador.
É bem verdade que encontram os algumas virtudes
ocultas em vários livros de velha fama, entre eles 0 Vira-
-Garrafas, Orlando Furioso, Roberto o Diabo, Ferrabrás,
Guilherme Sem Medo, Huõo de Bordéus, Mandeville e
Matabruna6; mas não podem com parar-se a este de que
falamos. E por infalível experiência bem ficaram a saber
as gentes do grande proveito e da grande utilidade que
se e x tra i da Gargantuína Crónica, pois aqueles que a
im prim iram venderam mais em dois meses do que em
nove anos se com prarão Bíblias.
Por isso, desejando este vosso humilde escravo aumen­
tar-vos mais ainda o passatempo, outro livro de igual jaez
oferece agora, salvo que um pouco mais justo e digno
de fé que o anterior. Sim, pois não deveis acreditar (não
sendo a desejo de e rra r em consciência) que falo como

23 PANTAGRUEL
os judeus da L e i7. Em tal planeta não nasci, nem alguma
vez me aconteceu m entir ou garantir algo que não fosse
verdadeiro. Falo disto com o folgazão ono crotário, digo,
coconotário dos amantes m ártires e escroquenotário
de a m o res8: quod vidimus testam ur9. Estão em causa os
horríveis feitos e as proezas do Pantagruel que assala­
riado até hoje se rvi desde o dia em que fui lib erto , e
por consentim ento de quem estou de visita ao meu país
de vacas, para saber de algum parente meu que ainda
esteja vivo.
E, para dar um fim a este prólogo, cem mil cabazes
de senhores diabos me levem de corpo e alma, de t r i­
pas e de intestinos, se acaso numa só palavra minto em
toda a história; de igual form a o fogo de Santo A n tó n io 10
vos queime, a epilepsia vos tram bulhe, o raio e o mau-
lubeco vos tru sq u e11, o caga-sangue esvazie,
O mal da coceira arrepele,
Chatinho como só ele,
E apanhado em pleno bosque
Vos entre p’lo rabiosque;
e ficai, com o em Sodoma e G o m o rra, todos feitos de
enxofre, fogo e abismo se acaso feram ente não acredi­
tardes em quanto vou contar-vos nesta Crónica!

RABELAIS 24
CAPÍTULO I

DA ORIGEM E DA ANTIGUIDADE
DO GRANDE PANTAGRUEL

JÁ q u e tempo nos sobeja, não será coisa vã nem ociosa lem-


brar-vos a primeira fonte e origem que teve o bom Pantagruel,
pois vejo que os melhores historiógrafos trataram assim as
suas Crónicas, não só Árabes, Bárbaros e Latinos, como os
Gregos, pagãos que foram bebedores eternos.
Por isso vos convirá notar que no princípio do mundo
(falo do longínquo, há mais de quarenta quarentenas de noites,
para contar à moda dos antigos Druidas1), num certo ano,
pouco depois de Caim occidiar o seu irmão Abel, aquela terra
empapada com o sangue do justo foi tão fértil em todo o
fruto que os seus flancos dão, principalmente em nêsperas,
que a mais velha memória lhe chamou o «ano das grandes
nêsperas», e bastavam três para fazer um alqueire.
E nele se acharam as Calendas pelos breviários gregos.
O mês de Março não calhou na Quaresma, e os meados de
Agosto foram em Maio. Julgo que no mês de Outubro ou
talvez de Setembro (para não errar, pois é coisa de que pre­
tendo guardar-me com o maior cuidado) calhou a semana
que os anais tanto lembram, a que chamamos «semana dos
nove dias»; sim, porque de nove ela foi, à custa de irregu­
lares bissextos, já que o sol embicou um pouco para a
esquerda, como se fosse debitoribus 2, a lua variou no curso

25 PANTAGRUEL
mais de cinco toesas e viu-se, realmente visto, o firmamento
que dizem aplano trepidar ao ponto de a mediana Plêiade
abandonar as companheiras, declinar para o Equinócio, e a
chamada estrela Espiga largar a Virgem e fugir para a Balança,
o que são casos de muito pasmo e matéria tão dura e difícil,
que nem os astrólogos sabem meter-lhes o dente; a verdade
é que só dentes muito compridos saberiam lá chegar.
Levai em conta que o mundo ia comendo de bom grado
as ditas nêsperas porque à vista eram belas, e deliciosas ao
gosto; mas tal como Noé, o santo homem (a quem tanto
devemos e reconhecidos estamos por ter plantado a vinha
de onde nos chega o licor nectárico, delicioso, precioso,
celeste, alegre e deífico, chamado briol), se enganou ao bebê-
-lo porque lhe ignorava a grande virtude e a potência, tam­
bém os homens e as mulheres desse tempo comiam, e ao
que parece com muito prazer, deste grande e formoso fruto.
Todavia, bem diversos acidentes tiveram porque lhes surgiu
no corpo um inchaço muito horrível, mas nem a todos no
mesmo lugar. Já que uns inchavam de ventre, e o ventre cor­
covado lhes ficava como uma grande pipa, tendo sido chamado
ventrem omnipotentem 3; e todos se transformaram em gente
folgazona ao máximo, nascendo de tal raça São Ventrudo e
a Terça-Feira Gorda.
Outros inchavam de ombros e tão corcundas ficavam que
lhes chamavam montíferos, quer dizer, portamontanhas, e por
este mundo ainda podereis encontrá-los de sexos e graus
vários, tendo de tal raça saído o Esopo de quem sabemos,
por escrito, formosos feitos e ditos4.
Outros incharam ao comprido, pelo membro a que chama­
mos lavrador da natureza, e dessa forma o tiveram maravi-

RABELAIS 26
Ihosamente longo, grande, gordo, grosso, viçoso e emperti­
gado à moda antiga, ao ponto de servir para cinto de cinco
ou seis voltas em redor do corpo; e se lhe acontecia estar
em bom momento, e de brisa pela popa, diríeis ao vê-lo que
era gente de lança em riste para entrar de justa na quintana5.
Ao que afirmam as mulheres perdeu-se-lhes, porém, a raça,
pois ouvimo-las constantemente lamentar que
já não haja daqueles grandes, etc.;
o resto da cantiga já o sabeis.
Outros cresciam em matéria de colhões, com enormidade
tal que três bastavam para encher bem um almude. Descendem
deles os colhões da Lorena que não moram nunca na braguilha
e caem no fundilho das calças.
Outros cresciam de pernas, e ao vê-los dir-se-ia que eram
grous, ou flamingos, ou então gente a caminhar sobre andas,
e os escribas de meia-tigela chamam-lhes, na gramática,
jambos 6.
A outros crescia tanto o nariz, que parecia uma torcida
de alambique toda às cores, toda constelada a borbulhetas,
fervilhante, purpúrea e emborrachada, toda esmaltada, toda
espinhosa e de um escarlate de brasão como já a vistes no
cónego de Panzoult e em Pé-de-Pau, médico de Antuérpia;
raça onde poucos havia que gostassem de tisana de cevada,
mas onde aderiam todos ao setembrino chorume7. Nasão e
Ovídio foram buscar aí a sua origem8, e todos aqueles de
quem se escreveu: Ne reminiscaris 9.
Outros cresciam de orelhas que muito grandes ficavam,
ao ponto de uma bastar para lhes fazer gibão, calças e saiote,
e a outra para os deixar cobertos com capa à espanhola,

27 PANTAGRUEL
tendo dito alguns deles que o bourbonês ainda lhes conserva
a raça, a das chamadas «orelhas à bourbonês».
Outros cresciam em todo o corpo. E deles descendem
os Gigantes, e deles Pantagruel.
E o primeiro foi Chalbrotes10,
que gerou Sarabrotes,
que gerou Faribrotes,
que gerou Hurtális, bom comilão de sopas que reinou no
tempo do dilúvio,
que gerou Nembrotes,
que gerou Atlas, cujos ombros impediram o céu de cair,
que gerou Golias,
que gerou Érix, inventor do jogo dos embustes11,
que gerou Titio,
que gerou Érião,
que gerou Polifemo,
que gerou Caco,
que gerou Etião, o primeiro a ter sífilis por não beber do
fresco no Verão, como testemunha Bartachim,
que gerou Enceládio,
que gerou Ceu,
que gerou Tifeu,
que gerou Aloé,
que gerou Oto,
que gerou Egeão,
que gerou Briareu, com uma centena de mãos,
que gerou Porfírião,
que gerou Adamastor12,
que gerou Anteu,
que gerou Agatão,

RABELAIS 28
que gerou Póro, contra o qual Alexandre o Grande com­
bateu,
que gerou Arantas,
que gerou Gabbara, o primeiro a lembrar-se do beber de
viravira,
que gerou Golias de Secundilha,
que gerou Offot, o de nariz terrivelmente belo, à força
de beber da pipa,
que gerou Artacheus,
que gerou Oromédão,
que gerou Gemmagog, inventor dos sapatos de ponta revi­
rada,
que gerou Sísifo,
que gerou os Titãs, de quem Hércules nasceu,
que gerou Enai, muito perito na matéria de tirar sarcop-
tos das mãos,
que gerou Ferrabrás, o qual foi vencido por Olivier, par
de França e companheiro de Rolando,
que gerou Morgan, o primeiro deste mundo a jogar os
óculos aos dados,
que gerou Fracasso, sobre quem Merlim Coccaio escreveu,
do qual nasceu Ferrago,
que gerou Papamoscas, o primeiro a lembrar-se de fumar
a língua de vaca na chaminé, pois até ali salgavam-na como
ao presunto,
que gerou Bolivórax,
que gerou Lambino,
que gerou Gayoffe, o qual tinha colhões de choupo e piça
de pau-ferro,
que gerou Mascafeno,

29 PANTAGRUEL
que gerou Queimaferro,
que gerou Engolevento,
que gerou Galehault13, o qual foi inventor da garrafa,
que gerou Miralangalto,
que gerou Galafro,
que gerou Pesaralho,
que gerou Roboastro,
que gerou Sortibrante de Coimbra,
que gerou Brushant de Mommière,
que gerou Bruyer, o qual foi vencido por Ogier o dina­
marquês, par de França,
que gerou Mabruno,
que gerou Fod’asno,
que gerou Haquelebaque,
que gerou Depicempopa,
que gerou Grandebocarra,
que gerou Gargântua,
que gerou o nobre Pantagruel, meu senhor.
Ao lerdes esta passagem estou em crer que ireis alimen­
tar uma dúvida bastante razoável e perguntareis como é pos­
sível que seja isto assim, se todos pereceram no tempo do
dilúvio, excepção feita a Noé e a sete pessoas que estavam
com ele na Arca, nenhuma delas o dito Hurtális.
Bem feita é a pergunta, sem dúvida, e muito plausível; mas
a resposta irá contentar-vos, ou de senso bastante embotado
estarei eu. E como não fui desse tempo, para poder contar
o caso a meu bel-prazer, vou alegar-vos a autoridade dos
Massoretas14, bravos palonços e belos trovadores hebraicos,
quando afirmam que o dito Hurtális não estava na Arca de
Noé; e que nem tinha podido lá entrar por ser grande de

RABELAIS 30
mais; mas que se pôs nela a cavalo, perna aqui, perna acolá,
como as criancinhas nos cavalos de pau e tal como o grande
touro de Berna, morto em Marignan, cavalgava tendo por
montada um grande canhão-morteiro (era um animal de belo
e garboso passo, sem ter nada que se lhe apontasse)15. E assim
foi que Hurtális salvou a referida Arca do naufrágio, depois
de Deus o ter feito, pois soube travar-lhe o balanço com as
pernas, e a dar ao pé pô-la às voltas onde queria, como se
estivesse ao leme de um navio. Os que estavam dentro man­
davam-lhe os víveres necessários por uma chaminé, como
gente reconhecida pelo bem que lhe faziam, e (relata-o Luciano)
às vezes parlamentavam juntos como Icaroménipo e Júpiter.
Compreendestes tudo a vosso contento? Então bebei um
bom trago sem água. E se não acreditastes nisto eu cá tam­
bém não, lá diz a cantiga.

3 1 PANTAGRUEL
CAPÍTULO II

DA NATIVIDADE DO MUI TEMIDO


PANTAGRUEL

C om A id a d e de quatrocentos e oitenta e quarenta e quatro


anos, Gargântua gerou Pantagruel na sua mulher, chamada
Bocaberta, filha do rei dos Amaurotas da Utopia1, a qual mor­
reu de parto por o seu filho ser maravilhosamente grande e
com um peso tal, que não conseguiu chegar à luz sem sufocar
a mãe.
No entanto, para entendermos totalmente a causa e a
razão do nome que em baptismo lhe deram, notai que todos
os países da África tiveram nesse ano grande seca e passaram
sem chuva X X X V I meses, três semanas, quatro dias, treze
horas e picos, com um tão forte calor de sol que toda a terra
ficou árida; nem mesmo no tempo de Elias mais abrasada
esteve, pois não se via árvore com folha ou flor. As ervas
estavam sem viço, as ribeiras esvaídas, as fontes a seco; desam­
parados dos elementos que lhe são próprios, os pobres peixes
erravam e davam horríveis gritos pela terra; as aves caíam
do ar por falta de orvalho2; lobos, raposas, veados, javalis,
gamos, lebres, coelhos, lontras, fuinhas, texugos e outros
bichos eram encontrados mortos pelos campos, de goela
aberta. Quanto aos homens, davam grande pena. Havíeis de
vê-los com a língua de fora, como lebreiros que tivessem
corrido seis horas; alguns atiravam-se aos poços; outros enfia-

RABELAIS 32
vam-se na barriga de uma vaca para ficarem à som bra, e a
estes cham ou H o m e ro alibantes3. T o d o o cam po era um
barco fun d ead o 4. Era uma d o r de alma v e r o trabalho que
os hom ens tinham para se defenderem desta sede h o rrífica,
foi m esm o um caso sé rio p ô r a salvo a água-benta das igre­
jas e não d e ixa r que a esgotassem ; mas o rdens tinham sido
dadas, a conselho de suas excelências os cardeais e o Santo
Padre, e ninguém se abalançava a fazer mais do que uma ben-
zedela. A lém disto, quem entrasse na igreja veria uma caterva
de pobres sequiosos atrás de quem fazia a distribuição, e com
a goela aberta com o o mau ric o , para co lh erem a m en or
gota, não fosse alguma p erder-se. O h ! Bem -aventurado quem
nesse ano teve adega fresca e m uito guarnecida!
Agitando o problem a de saberm os p o r que razão a água
do m ar é salgada, conta o Filó so fo 5 que no tem po de Febo,
quando ele passou a condução da carro ça lum inosa ao seu
filho Faetonte, o dito Faetonte, pouco seguro da arte e sem
saber seguir a linha eclíptica en tre os dois tró p ico s da esfera
do sol, mudou de cam inho e chegou tão p erto da te rra , que
deixou a seco todas as regiões subjacentes queim ando essa
grande parte do céu a que os filósofos chamam via láctea e
os de meia-tigela estrada de Santiago, apesar de dizerem os
mais hábeis poetas que é sítio onde caiu o leite de Juno
quando amamentava H ércu les; e tão requeim ada a te rra assim
fico u , que lhe deu um su o r im enso e se pôs a tra n s p ira r o
m ar in te iro , salgado p o r s e r salgado to d o o su o r; facto que
d areis p o r ve rd a d e iro se o vo sso p ró p rio su o r q uiserdes
pro var ou m esm o o de um sifilítico qualquer, quando lhe pre­
garem um suadouro; a mim tanto se me dá.
Pois no re fe rid o ano houve um su cesso quase igual; e,

33 PANTAGRUEL
numa sexta-feira, quando toda a gente se entregava às devoções
e fazia uma bela p ro cissão re fo rça d a com m uitas litanias e
fo rm o so s salm os para su p licar a D eu s o m n ip o ten te que em
tal desconforto houvesse por bem protegê-la com o seu olhar
clem ente, foram visivelm ente vistas grandes gotas de água
sair da te rra, com o costum am sair de quem transpira copiosa­
mente. E, com o se fosse coisa que lhe desse proveito, o pobre
povo desatou a congratular-se pois era voz c o rre n te que no
ar não andava uma só gota de humidade de onde pudesse
esperar-se chuva, e a te rra supria esse defeito. O u tro s , gente
sábia, diziam que era chuva dos Antípodas com o no-la descreve
Séneca no quarto livro Questionum Naturalium quando fala da
origem e da nascente do N ilo , em b o ra se enganassem , pois
finda a pro cissão cada qual quis re c o lh e r desse o rvalho e a
bons copázios bebê-lo, mas só lhes deu ideia de salm oura,
p io r e mais salgada do que a água do mar.
C o m o Pantagruel nasceu nesse dia, assim lhe cham ou o
pai: porque panta, em grego, é o m esm o que d izer «tudo»,
e gruel é o m esm o que d izer «sede» na língua agarena6, daqui
se inferindo que à hora dessa natividade estava todo o mundo
sequioso; ou ainda, a term o s esp írito p ro fético , que tem po
v iria em que ele ia d o m in a r os se q u io so s; um fa c to , aliás,
revelad o nessa m esm a h o ra p o r o u tro sinal mais evid ente
porque a sua mãe Bo caberta estava a dá-lo à luz, estavam as
p arte ira s à esp era de o re c e b e r, e co m eçaram p o r sa ir do
ven tre sessenta e oito alm ocreves, cada qual puxando a rédea
à sua mula bem carregada de sal, a seguir nove dro m edário s
carreg ad o s com p re su n to e línguas de vaca fum adas, sete
cam elo s c a rre g a d o s com e iró s , a seg u ir X X V c a rro ç a d a s
de a lh o s -p o rro s, alhos b ravo s, ceb o las e ceb o lin has, o que

RABELAIS 34
apavo ro u m uito as p a rte ira s. A p e s a r d isso , algumas diziam :
- O ra aqui tem os nós uma boa p rovisão. P o r isso, em vez
de beberm os minguado, vam os beber à soldado. Bom sinal
será, pois tudo são preces de in citar ao vinho.
E umas e o utras palravam destas ninharias quando Panta-
gruel desatou a sair tão peludo com o um u rso , levando uma
delas a d izer com ar de profecia:
- Se assim nasceu, todo pêlo, m aravilhosas coisas fará; e
se vive r, boa idade alcançará.

35 PANTAGRUEL
CAPÍTULO III

DO LUTO QUE GARGÂNTUA PÔS


PELA MORTE DE SUA MULHER BOCABERTA

Q u a n d o Pantagruel nasceu, quem ficou m uito siderado e su r­


preendido? Gargântua, seu pai. Porque via de um lado a sua
m ulher Bo cab erta falecida, e do o u tro o seu filho Pantagruel
nascido tão belo, tão grande, e não sabia o que d izer nem
fazer; a dúvida que lhe turvava o entendim ento era d ecidir
se devia c h o ra r de luto pela m u lh e r ou r ir de alegria pelo
filho. D e um e o u tro lados havia argum entos sofísticos que
o sufocavam , pois em bora soubesse expô-los m uito bem in
modo et figura>, reso lvê-lo s era o u tra questão, e po r isso se
encontrava em baraçado com o o rato no visco ou o milhano
caído no laço.
- D evo chorar? - dizia. - D e vo . E então porquê? Porque
a tão boa da minha m ulher m o rre u , a que era mais assim e
mais assado deste m undo. N unca vo ltarei a vê-la, nunca vou
a rra n ja r o u tra co m o ela. Para m im , que inestim ável perda!
Ó meu D eus! Q u e mal te fiz para me castigares assim? Po r
que não m andaste a m o rte te r com igo, em vez de ir te r com
ela? V ive r sem ela não mais é do que definhar. Ah! Bocaberta!
Minha m im osa, minha amiga, gentil cona minha (apesar de te r
trê s acres e dois c este iro s bem m edidos), minha tern u rilh a,
minha braguilha, minha alpercata, minha pantufa, nunca mais
vo ltarei a ver-te! A h! D esgraçado Pantagruel, que perdeste a

RABELAIS 36
tua boa mãe, a tua meiga ama, a tua bem-amada senhora! Ah!
Enganadora m o rte, que maligna és, que ultrajante me saíste
ao apartar-m e daquela a quem p ertencia, p o r d ire ito , a im o r­
talidade!
E enquanto ia dizendo isto, chorava com o uma Madalena;
mas de repente lem brou-se de Pantagruel e riu com o uma
perdida.
- O h ! Meu filho querido (dizia ele assim ), meu poltrãozi-
nho, meu peidinho! C o m o és belo e que reconh ecido estou
a D eus po r me te r dado um filho tão bonito, tão jovial, tão
risonho, tão form oso! O h , oh, oh, oh!, que satisfeito me sinto!
Venha daí uma pinga! O h ! Longe daqui, m elancolia! T ra z-m e
do m e lh o r, lim pa-m e esses cop o s, sacode-m e essa toalha,
enxota-m e esses cães, sopra-m e esse fogo, acende-m e a can­
deia, fecha-m e essa porta, corta-m e esse pão, despacha-me
esses pobres dando-lhes o que pedem! D á cá a minha roupa,
para eu me pô r de ponto em branco e fe ste jar m elh or com
as minhas com adres.
Isto dizendo, ouviu a litania, os M em entos dos padres que
levavam a e n te rra r sua m ulher e, pondo o folguedo de parte,
sentindo-se arrebatado para longe, prosseguiu:
- Senh or D eus! T e re i de novo que me entriste ce r? Isso
contraria-m e, pois não sou jo vem , ando a fazer-m e velho, o
tem po vai perigoso e ainda apanho alguma febre! D ou comigo
em doido. Palavra de fidalgo! Mais vale c h o ra r m enos e beber
mais! A minha m ulher m o rre u . Pois bem, ju ro p o r D eus (da
jurandi 2) que a pranto não vou ressuscitá-la: deve e n co ntrar-
-se em bom sítio , pelo m enos no paraíso se em m elh or lado
não estiver; a pedir po r nós a D eus, m uito feliz, já sem q u erer
sa b er de m isé ria s e calam id ad es n o ssas. D o que nos pinga

37 PANTAGRUEL
dos o lh o s, fique D e u s com o tro c o ! T e n h o de p ensar em
arran jar o utra.
«Mas vós, que me andais para aí a fazer? - disse às parteiras.
(O n d e se m eteram elas? Ó boa gente, que vos não consigo
ve r!) Ide ao seu e n te rro , que eu entretanto aqui fico a embalar
o meu filho, pois sinto uma sede enorm e e c o rre ria o risco
de cair doente. Mas antes bebei um bom trago; acreditai, por
minha honra, que ireis sentir-vos bem .»
O b te m p e ra n d o a tais o rd e n s, lá p a rtira m elas para o
e n te rro e para as cerim ó nias fúnebres. O pobre Gargântua
fico u em casa e e n tre ta n to com p ôs um epitáfio para se r
gravado da seguinte form a:

MORREU DE PARTO, A NOBRE BOCABERTA,


É MAU DESFECHO QUE EU NUNCA SONHEI.
BELA DE ROSTO, LEMBRAVA UMA RABECA3,
CORPO À ESPANHOLA E BARRIGA DE LEI.
ROGAI A DEUS QUE LHE SEJA MUI PROPÍCIO,
QUE LHE PERDOE E OFEREÇA O MELHOR CÉU.
AQUI JAZ SEU CORPO QUE VIVEU SEM VÍCIO,
MUI BEM FINADO NO DIA EM QUE MORREU.

RABELAIS 38
CAPÍTULO IV

DA INFÂNCIA DE PANTAGRUEL

Ao perco rrer historiógrafos antigos e poetas, vário s encon­


tro nascidos neste mundo de form as bem estranhas, longas
de mais para serem contadas. Lede o VII livro de Plínio, se
tiverd es ócio para ta n to 1. Jamais ouvistes, porém , que tenha
havido alguma tão m aravilhosa com o a de Pantagruel, pois é
difícil c re r que em tão pouco tem po tenha crescid o tanto de
co rp o e fo rça; apesar de H ércu les te r m o rto no berço duas
cobras, ao pé dele nada vale porque as tais cobras eram bem
pequenas e bem frágeis; Pantagruel, esse, ainda era de b erço
e a m uito espantosas coisas se entregou.
D e ixa re i aqui p o r d izer com o chupava, em cada refeição,
o leite de quatro mil e seiscentas vacas, e com o se ocuparam
todos os funileiro s de Saum ur em A n ju , de V illedieu na N o r-
mandia, de Bram ont na Lorena, para lhe fazerem uma caçarola
de c o ze r as papas, e com o essas papas lhe eram dadas numa
grande tigela que ainda hoje se en contra em Burges, p erto
do palácio; porém , tão duros e fo rtes já os seus dentes eram ,
que à tal tigela furou um senho r pedaço, com o m uito bem
se pode lá v e r 2.
C e rto dia, quando quiseram pô-lo a mamar de manhã numa
das vacas (que o utras amas nunca chegou a te r, com o diz a
história), desfez os atilhos que o deixavam preso por um braço
ao b erço , agarrou a referida vaca acim a do ja rre te , com eu-
-Ihe duas tetas e m etade da barriga, fígado e rins incluídos,

39 PANTAGRUEL
e tê-la-ia devorado p o r in teiro se ela não gritasse h o rriv e l­
m ente, com o se estivessem lobos a agarrá-la pelas pernas; a
este grito acudiu gente que a tiro u das mãos de Pantagruel,
mas sem saber im pedi-lo de p ren d er o ja rre te e o co m er tão
facilm ente com o com em os uma salsicha; e, quando quiseram
tirar-lh e o osso, engoliu-o tão depressa com o um alcatraz
engoliria um peixe pequeno, com eçando depois a dizer: «Bom !
Bom ! Bo m !», porque ainda não sabia falar bem e queria dar
a entender que achara aquilo m uito bom e não pedia mais
do que uma refo rçada dose. A o verem isto, os que estavam
a servi-lo am arraram -no com cordas, tão grossas com o as
que fo ram usadas em T a in p o r altu ras da viagem do sal de
L iã o 3, ou com o as do grande navio Françoise que está em
P o rt-d e -G râce na N o rm a n d ia4.
E, certa vez, quando um grande urso que o seu pai criava
fugiu e veio lam ber-lhe a cara (pois as suas amas não lhe ti­
nham limpado os beiços a p re ce ito ), desfez-se tão facilm ente
das cordas com o Sansão no m eio dos Filisteus, vai daí foi-se
a Sua Excelê n cia o U rs o e pô-lo em pedaços com o a um
frango regalando-se, bem regalado, com tal jantar.
D e p o is d isto , G arg ântua tem eu que ele se m agoasse; e
m andou fa ze r q u atro cadeias de fe rro bem g ro ssas, para o
ligar, e arco b o ta n te s bem ajustado s ao b e rço . U m a destas
co rre n te s podeis vê-la de noite em La Rochelle, erguida entre
os dois grandes to rre õ e s do p o rto ; o utra está em Lião, o utra
em A n g e rs5, e a quarta levaram -na os diabos para am arrar
o D em o, naquele tem po a tre ito a soltar-se p o r causa de uma
cólica que o m olestava im enso desde o dia em que alm oçara
a alma de um sargento, de fricassé. Podeis realm ente a c re ­
d itar no que diz N icolas de Lira a resp eito da passagem do

RABELAIS 4 0
Saltério onde está e s c rito : Et Og regem Basan: que, m uito
pequeno ainda, o referid o O g já se m ostrava m uito fo rte e
ro b u sto , ao ponto de te re m de am arrá-lo ao b e rço com
cadeias de fe rro . Era a form a de o pôr quieto e calm o, pois
não lhe se ria tão fácil q u e b ra r essas c o rre n te s ; so b re tu d o
porque o b erço não lhe dava espaço, sequer, para m e xe r os
braços.
Mas vede o que sucedeu num dia de grande festa, quando
o seu pai Gargântua ofereceu um belo banquete a todos os
príncipes da co rte . Julgo que os funcionários da c o rte estavam
m uito ocupados a se rv ir o festim e ninguém ligava ao pobre
do Pantagruel, dessa form a posto a reculorum6. E ele o que
fez?
O que fez? Minha boa gente! Escutai.
C o m os braços tentou queb rar as c o rre n te s do berço ,
mas não chegou a fazê-lo p o r se re m fo rte s de m ais. V is to
isso , ta n to b atu co u com os pés que lhe p a rtiu a p o n ta,
em bora fosse uma trave grossa com sete palmos de quadrado;
e, mal pôs os pés de fo ra, escorregou o m elh o r que pôde,
de form a a pousá-los no chão; e depois levantou-se, com um
grande e sfo rço , levando o berço am arrado à espinha com o
uma tartaruga que escalasse uma muralha, e ao vê-lo dir-se-ia
que era uma enorm e carraca de quinhentas toneladas posta ao
alto. Entro u depois na sala onde aquela gente se banqueteava,
e fê-lo tão afoitam ente que m uito apavorou a assistência; no
entanto, com o tinha os braços ligados d entro do b erço nada
podia ag arrar para co m er, e com grande esfo rço se inclinava
para apanhar, com a língua toda de fo ra, um qualquer fata-
caz. Q uando tal viu, o seu pai com preendeu que o tinham
abandonado sem nada que o alim entasse e, a conselho dos

41 PANTAGRUEL
príncipes e senho res assistentes, ordenou que o desligassem
das ditas cadeias; quanto aos m édicos de Gargântua, foram
unânimes em d eclarar que trazê-lo assim , p reso ao b erço , fá-
-lo-ia vida fo ra propenso a te r pedras na bexiga.
Q uando o soltaram fizeram -no sentar-se, e uma grande
desforra ele tirou : com um m u rro a meio do berço, desfê-lo
em mais de quinhentos mil pedaços, despeito e p ro testo de
quem nunca mais vo ltaria a lá e n trar.

RABELAIS 42
CAPÍTULO V

DOS FEITOS DO NOBRE PANTAGRUEL


NA SUA TENRA IDADE

E assim , dia a dia Pantagruel ficou mais crescido e robusteceu


à vista desarm ada, o que alegrava seu pai p o r natural afeição.
E, com o era m enino, mandou e xe cu ta r uma balestra para ele
poder folgar atrás dos passarinhos, aquela que agora se chama
«a grande balestra de C h a n te lle » 1, e depois mandou-o à escola
apren der e fazer-se hom em .
Realm ente, foi estudar para Poitiers e bastante aproveitou;
mas ao v e r que em tal lugar os estudantes por vezes andavam
ociosos e sem saber com o passar o tem po, deles se condoeu;
e um dia, do eno rm e ro chedo cham ado Passelourdin tom ou
uma grande pedra com cerca de doze toesas de quadrado e
cato rze passos de espessura, pô-la sobre quatro pilares no
meio de um cam po, onde lhe pareceu m elh or, para os re fe ri­
dos estudantes passarem o seu tem po a subir para cima dela,
se mais não soubessem fazer, e ali se regalarem com grande
fartura de garrafas, presuntos e enchidos, e à faca escreverem
os seus nom es. Cham am -lhe agora «Pedra Levantada»2. E em
m em ória disto hoje não há ninguém registado na m atrícula
daquela U niversidade de P o itiers que não tenha bebido na
fonte cavalina de C ro u te lle , passado em Passelourdin e subido
à Pedra Levantada.
D epois, quando leu as form osas crónicas dos seus antepas-

43 PANTAGRUEL
sados descobriu que G eofredo de Lusignan, chamado G eofredo
o D e n tu ças3, avô do p rim o-direito da irm ã mais velha da tia
do genro do tio da nora da sua m adrasta, fora en terrad o em
M aillezais; e um dia fez o seu campus 4 para ir, com o homem
de bem, visitá-lo. Partindo de Po itie rs com alguns com pa­
nheiros, passou por Ligugé, para visitar o nobre padre A rdillo n5,
po r Lusignan, Sansay, C e lle s e C o lo nges, p o r Fontenay-le-
-Com te, para cum prim entar o douto Tiraqueau6, e de lá chegou
a M aillezais, onde visitou o sepulcro do referid o G e o fre d o o
D entuças, mas sentiu algum medo ao ver-lhe o re tra to , pois
de imagem era um zangado homem com m etade da grande
cim itarra puxada para fora da bainha. Perguntou qual era a
razão do facto, e os cónegos lá do sítio responderam -lhe que
o utra causa não havia além de

Pictoribus atque Poetis, etc.,


querendo isto d izer que os p intores e os poetas livres são
de re tra ta r a bel-prazer o que q uerem 7. N ão se contentando,
porém , com a resposta, declarou:
- Sem h aver m o tivo não se ria pintado assim ; desconfio
que alguma lhe te riam feito quando m o rre u , e pede agora
vingança aos seus parentes. Hei-de investigá-lo com mais p o r­
m en or, e p ro ce d e r em conform idade.
Depois regressou mas não a Poitiers, empenhado que estava
em visitar as o utras universidades da França. E assim , quando
passou por La R ochelle fez-se ao m ar e chegou a Bo rdéus,
sítio onde não viu grande e xe rcício além de uns vaganaus que
jogavam à bisca na areia da praia.
Dali passou a T o lo sa, onde aprendeu a dançar e a esgrim ir
muito bem a mãos ambas, com o é uso entre os estudantes da

RABELAIS 44
sua universidade; mas não se dem orou m uito quando viu que
os p ro fesso res eram queim ados vivos, com o arenques fum a­
d o s8, e disse:
- Q u e ira D eus que eu não m o rra assim , pois sou de natu­
reza bem sequioso sem se r p reciso que me aqueçam mais!
D e p o is foi a M o n tp e llie r, onde e n c o n tro u b elíssim o s v i­
nhos de Mireval e encantadora com panhia, e pensou em estu­
dar medicina parecendo-lhe em bora que isso lhe traria enfado
e m elancolia e xcessivo s, e os m édicos tresandavam a cliste r
com o seiscentos diabos.
Inclinou-se, portanto, para o estudo das leis; mas vendo que
em m atéria de legistas só lá havia trê s tinhosos e um pelado,
partiu e em menos de trê s horas de cam inho atravessou a
ponte do G ard e o anfiteatro de Nîm es, o que nos parece obra
mais divina do que humana; chegando a Avinhão, bastaram-lhe
três dias para se apaixonar porque as m ulheres (sendo aquilo
te rra de Papas) são m uito dadas a b rin c a r ao tira-e -m e te .
Q uando o seu pedagogo, de nome Epistém ão, viu isto,
afastou-o levando-o para Valence, no Delfinado; mas Pantagruel
verificou que não era um lugar de estudos p o r aí além, e os
rufias da cidade malhavam nos estudantes, coisa que o deixou
irritad o . Um belo domingo, quando toda a gente estava no
baile público, houve um estudante que quis fazer o seu pé
de dança mas os tais rufias não o p erm itiram . Q uando tal viu,
Pantagruel obrigou todo s a dar uma grande c o rrid a até à
b eira do R ó d ano , d ecidido a fazê-los afogar-se; mas eles
acoutaram -se na te rra com o toupeiras, uma boa meia légua
por baixo do rio . Um furo que ainda lá se v ê 9.
Depois partiu, e com três passos e um salto chegou a Angers
onde se deu m uito bem ; algum tem po te ria lá ficad o, não

45 PANTAGRUEL
fora a peste enxotá-lo. E assim chegou a Burges, onde ficou
m uito tem po a estudar, e onde bons resultados teve na Facul­
dade de D ire ito . N ão obstante, dizia às vezes que os livros
de leis lhe pareciam uma bela veste de o u ro triunfal e m ara­
vilhosam ente p recio sa, que tivessem bordado com m erda:
- Porque (afirm ava ele) não há no mundo livros tão belos,
tão ornamentados e tão elegantes como os textos dos Pandectas,
mas a sua bordadura (ou seja, a Glosa de Arcúrcio) é tão suja,
tão infame e tão infecta, que não passa de tram pa e vilan ia10.
Partindo de Burges foi a O rleães e lá encontrou uma porção
de estudantes labregos que muita festa fizeram à sua chegada;
em pouco tem po lhe ensinaram a jogar tão bem à péla, que
se fez mestre no assunto; sim, porque os estudantes da referida
te rra não param de trein ar tal jogo. Em várias ocasiões o leva­
ram às ilhas, para ele se d iv e rtir com o jogo do m etifura. Em
vez de dar cabo da cabeça com tanto estudo, não fez nadi­
nha, tam anho era o medo que sentia de enfraquecer a vista;
aliás, era fre q u en te um quidam 11 p ro fe sso r d ize r nas suas
lições que nada existe tão contrário à vista com o ficar cegueta.
E no dia em que um estudante das suas relaçõ es foi licen­
ciado em leis, e de ciên cia só tinha a que lhe ficava a um
palmo do nariz em bora soubesse, p o r com pensação, dançar
m uito bem e jogar à péla, com o brasão e divisa dos licencia­
dos daquela universidade com pôs o seguinte:

Com a bola na braguilha,


Uma raqueta em acção,
Uma lei na cornetilha12,
Uma dança no salão,
Sais de canudo na mão.

RABELAIS 46
CAPITULO V

COMO PANTAGRUEL ENCONTROU


UM HOMEM DE LIMOGES QUE DESFIGURAVA
A LÍNGUA FRANCESA

N um d ia qualquer, sei lá quando, Pantagruel foi passear com


os seus com panheiros depois da ceia, pela saída que vai te r
a Paris. Encon tro u um estudante peralta, que vinha por esse
cam inho, e depois de se terem saudado perguntou:
- D e onde vens tu a uma hora destas, meu amigo?
Respondeu-lhe o estudante assim:
- Da preclara, ínclita e célebre academia que Lutécia vocita.
- O que q u e r isso dizer? - pergunto u Pantagruel a um
dos seus.
- Q u e vem (respondeu este) de Paris.
- Afinal vens de Paris? (disse Pantagruel). - E vós o u tro s,
sen h o res estudantes dessa tal Paris, com o passais o tem po?
Respondeu o estudante:
- Tra n sfre tam o s a Sequana ao dilículo e ao crepú scu lo;
deambulamos pelas compitas e quadrívias da urbe; despumamos
a verbocinação latial e, com o verisím eis am orabundos, capta­
mos a benevolência do om nijuiz, om niform e e omnígeno sexo
fem inino . Em c e rta s diéculas invisam os os lupanares e, em
êxtase ven ereico , inculcam os as nossas vé re tra s nos penitís-
sim os re c e sso s das pudendas dessas m e re tríc u la s am acabi-
líssim as; depo is, nas tab ernas m e ritó ria s da Pom m e de Pin,

47 PANTAGRUEL
do C a ste l, da Madalena e da Mulle, cauponizam os belas espá­
tulas vervecin as, perforam inadas de p etrosil. E se, por grande
s o rte , h o u ve r rarid ad e ou p enúria de p ecúnio nas nossas
m arsúpias, e estiverem exaustas de metal ferruginado, em
quota-parte dim itim os os nossos códices e vestes opignéreas,
p re sto lan d o as tab elárias que hão-de chegar dos penates e
lares p a trió tic o s1.
A o que disse Pantagruel:
- Q u e diabo de linguagem é essa? Raios me partam se
não és um herege.
- N ão, meu sen h o r (disse o estudante), pois libentissi-
mamente, desde que alguma réstea minútula de dia se ilucesça,
dem igro num qualquer desses tão bem arquitectados monas-
te iro s; e aí, irro rand o -m e com a bela água lustral, tasquinho
um transão de qualquer precação m íssica dos nossos sacri-
fículas e, su bm irm iland o as m inhas p récu las h o rá ria s, elejo
e ab ste rjo a ánim a com os seus inquinam entos n o ctu rn o s.
R e ve re n cio os olim pícolas. V en e ro latrialm ente o superno
A s trip o te n te . D ilijo e redam o os m eus p ró x im o s. S irvo os
D ecaló g ico s p re sc rito s e, segundo a facultátula dos meus
viro s, não lhes discedo o lato unguículo. É realm ente verifo r-
me que sou um tanto ra ro e lento a su p e re ro ja r os eleum ó-
sinos destes egénios que hostiatam ente queritam o seu estipo
para Mam mono não supergurgitar gota nenhuma nos meus
ló c u lo s2.
- Mas que merda! Q u e merda! (disse Pantagruel). - O que
quer este louco dizer? Estou em c re r que nos inventa aqui uma
qualquer língua diabólica e enfeitiça com o um en can tad o r!
A o que um dos seus respondeu:
- Senhor, por certo este elegante quer desfigurar a língua

RABELAIS 48
dos parisienses mas só consegue cham ar pelo latinório ju l­
gando assim que p ind arisa3. Está m uito convencido de que é
grande o rad o r em francês porque desdenha das triviais fo r­
mas de falar.
Perguntou então Pantagruel:
- Será isto verdade?
E o estudante respondeu:
- Senh or m issário, ao que afirm a este flagitioso nebulão,
o meu génio não está apto nato para e sc o ria r a cutícula do
nosso vernáculo gálico; mas viceversam en te eu gnavo opero
e, por velas e rem os, enito-m e a locupletá-lo com a redundân­
cia latiníco m a4.
- Raios partam ! (disse Pantagruel). - Hei-de ensinar-te a
falar! Mas antes responde: de onde és?
Disse-lhe o estudante assim:
- A origem prim eva dos meus avos e atavos foi um indí­
gena das regiões lem óvicas onde req uiesce o c ó rp o ro do
agiotata São M a rç a l5.
- Bem percebo - disse Pantagruel és lim ousino dos
q uatro co stad o s e q u eres desfig urar o p arisie n se . O ra vem
cá, para eu te dar um puxão de orelhas!
E agarrou-o pelo pescoço enquanto dizia:
- Cham as pelo latin ó rio , mas São João me parta se te não
faço cham ar pelo gregório. Vou esfolar-te vivo.
O pobre lim ousino com eçou então a dizer:
- Vê dicu, gentillâtre! O h ! São M arsault, adjuda mi! H ô ,
hô, lessás à quô, po r am or de D iú s, e não me tuquas g ru 6 !
D isse então Pantagruel:
- Já vais falando com naturalidade.
V isto isso, Pantagruel largou o pobre lim ousino porque

49 PANTAGRUEL
ele já tinha com pletam ente cagadas as calças que, em vez de
fundilhos, eram de c o rte rabo-de-bacalhau, e disse:
- Santo A licro n so ! Q u e fueta me saíste! Vá para o diabo
este lim ousinento que tanto fede!
E deixou-o. Mas vida fora o rapaz sentiu um m uito grande
co m p le xo , e fico u assustado ao ponto de andar sem p re a
d izer que Pantagruel o filara pelo p escoço; anos mais tarde
m o rreu da m o rte de R o land o 7, p o r vingança divina, demons-
trando-nos que A u lo -G e lo e o Filósofo dizem a verdade: con­
vém falar sem pre de aco rdo com a linguagem c o rre n te e, tal
com o afirm ava O ctavian o A ugusto, há que evitar palavras-
-escolhos com diligência igual à dos capitães de navios quando
evitam as rochas do m ar.

RABELAIS 50
CAPÍTULO VII

COMO PANTAGRUEL FOI A PARIS,


E DOS BELOS LIVROS
DA BIBLIOTECA DE SÃO VÍTOR

D epo is de te r estudado muito em O rleães, Pantagruel deliberou


visitar a grande universidade de Paris. Mas antes de p artir
avisaram -no da existência de um enorm e e m uito grosso sino
que há duzentos e cato rze anos estava en terrad o em Saint-
-Aignan, na referida O rle ã e s; tão grande era, que não havia
máquina capaz, sequer, de pô-lo à m o stra; e apesar de terem
sido utilizados todos os p ro cesso s referid o s p o r V itrú vio em
De architectura, por A lb erti em De re oedificatoria, por Euclides,
Teo n te, Arquim edes e por H e ro em De ingeniis, nenhum tinha
resultado. C ed end o , pois, de bom grado à hum ilde súplica
dos cidadãos e habitantes da dita cidade, deliberou levá-lo
para o cam panário que lhe destinavam .
D e facto, dirigiu-se ao lugar onde ele se encontrava e com
o dedo m indinho levantou-o do solo tão facilm ente com o se
faria a um guizo de gavião1. Po rém , antes de o levar até ao
cam panário teve Pantagruel vontade de fazer uma serenata
na cidade; pela sua pró p ria mão pô-lo a to car em todas as
ruas, o que foi caso de grande gáudio geral mas tam bém de
um bastante fo rte percalço porque, ao carregá-lo assim e ao
fazê-lo badalar nas ruas, todo o bom vinho de O rle ã e s fe r­
mentou e azedou. Facto que as pessoas só notaram na noite

51 PANTAGRUEL
seguinte, pois m uito p ertu rb ad as tinham ficado p o r beber
daqueles vinhos ferm entados e mais não faziam do que e scar­
ra r branco com o os algodões de Malta, dizendo:
- Apanhám os um pantagruel, estam os de goela salgada.
Isto feito, voltou a Paris com a sua gente. E quando lá
chegou todos saíram à rua para o verem , pois bem sabeis
com o o povo de Paris é, de sua natureza, papalvo em sustenido
e bem ol; para o lharem para ele, m uito em basbacados, em ­
bora não isentos do grande receio que seria vê-lo tran sp o rtar
o Palácio para o u tro sítio, para qualquer te rra a remotis, tal
com o o seu pai levara os sinos de N ossa Senhora de Paris
para os am arrar ao pescoço da ju m en ta2.
Depois de ali estar algum tem po e todas as sete artes libe­
rais te r estudado a fundo, dizia que a cidade era boa para viver
mas não para m o rre r, já que os mendigos dos Santos Inocentes
aqueciam o rabo nas ossadas dos m o rto s 3. E d e sco b riu a
magnífica biblioteca de São V íto r, sobretudo po r alguns livros
que lá en co n tro u , cujo re p o rtó rio segue, et primo:
Bigua Salutis 4;
Braguilia juris5;
Crica Decretorum 6;
Malogranatum vitiorum7;
O Pelotão de Teologia;
O V iste m p e n ard o 8 dos Pregadores, com posto po r Bobo
Sem G raça;
O C o lh ã o b a rin o 9 dos Valentes;
O s H anebanas10 dos Bispos;
Marmotretus, De Babuinis et Simiis, cum Commento dVr-
bellis 11;
Decretum universitatis Parisiensis super gorgiasiate mulier-

RABELAIS 52
cularum ad pladtum ,2 ;
A A p arição de Santa G e rtru d e s a uma Fre ira de Poissy
em Trab alh o de Parto ;
Ars honeste peidandi in societate, per M. Ortuinum13;
O M ostardeiro de Penitência;
O s Borzeguins, alias A s Botas da Paciência;
Formicarium Artium14;
De comezainorum usu et honestate emborcandi, per Silvestrem
Prieratem, Jacospinum ,5 ;
Tram ad o pelo T rib u n a l16;
A N ave dos N o tá rio s;
O Chu m aço do C a sa m e n to 17;
O Lam parinário da Contem p lação;
A s Frio le iras do D ire ito ;
O Aguilhão do V in h o 18;
A Espora do Q u e ijo 19;
Desencrostatorium Scholarium 20;
Tartaretus, De modo cagandi21;
A s Fanfarras de Rom a;
Bricot, De differentiis soparum 22;
O s Fundilhos da Disciplina;
O C h in elo da Hum ildade;
O T rip e iro dos Bons Pançam entos;
O C ald eirão da Clem ência;
O s O b icelism os dos C o n fe sso re s;
O Rapazário dos Padres;
Reverendi Patris Fratis Lubini, Provincialis Tagarelia, De Trin-
quendis Toucignis, libri tres 23;
Pasquilli, Doctoris Marmorei, De Capreolis cum cardis
comendis, tempore Papali ab Ecclesia interdicto 24;

53 PANTAGRUEL
A Invenção Santa C ru z , para seis personagens, in te rp re ­
tada pela Fina Flo r dos C lérig o s;
O s Ó cu lo s dos R o m íp etas25;
Majoris, De modo faciendi morcelas26;
A G aita de Foles dos Prelados;
Beda, De optimitate triparum27;
O Lam ento dos Advogados, D evido à Reform a das Luvas;
A Capa com Peles dos P ro cu ra d o re s28;
Ervilhas com To u cin h o , cum commento29;
O A p ro veitan ço das Indulgências;
Praeclarissimi Juris Utriusque Doctoris Mestre Pilloti Rapadenari,
De Remendandis Glosse Accursiane Calinadis Repetitio Enucidili-
culissima 30;
Stratagemata Francatiradores de Bagnolet31;
Franctopinus, De re militari, cum Figuris Tevoti32;
De usu et utilitate esfolandi equos et equas, autor M. Nostro
de Quebecu33;
A G ro ss e ria dos Padrecas;
M. n. Rostocostopernadasna, De mostarda post prandium
servienda lib. quatuordecim, apostilati per M. Vaurillonis34;
A Parvoíce dos Juízes Eclesiásticos;
Quaestio subtilíssima, utrum Chimera in vacuo bombinans pos-
sit comedere secundas intentiones, et fuit debatuta per decem
hebdomadas in concilio Constantiensi3S;
A Voracidade dos Advogados;
Borratamenta Scoti 36;
A M orcega dos C ard eais;
De calcaribus removendis decades undecim, per M. Albericum
de Rosata37;
Ejusdem, De castrametandis crinibus lib. tre s 38;

RABELAIS 54
A Entrada de Antoine de Leive em Terras do Brasil39;
Marforii, Bacalarii cubantis Roma, De escovendis mascarendisque
Cardinalium mulis 40;
Apologia do Mesmo Contra quem Diz que a Mula do Papa
Só Come Quando Para Aí lhe Dá;
Profecia que incipit «Silvi Pisacolhão» bocejata per M. n. Sonho-
fátuo41:
Boudarini episcopi, De emulgentiarum profectibus novenades
novem, cum privilegio Papali ad triennium, et postea non 42;
A Lacrimifarsa das Donzelas;
O Rabo Pelado das Viúvas;
O Abafa-Tolas dos Monges;
Os Rezinganços dos Padres Celestinos;
A Barreira da Manducagem;
O Mastiga-em-Seco dos Vadios;
A Ratoeira dos Teólogos;
A Embocadura dos Doutores em Artes;
Os Borralheiros de Ockam, de Simples Tonsura;
Magistri n. Estragamolhibus, De Minudentiis horarum canoni-
carum lib. quadraginta43;
Pinoteorum confratiarium, incerto authore44:
A Cafurna dos Padres Lambões45;
O Fartum dos Espanhóis, supergalicantochado por Frei Inigo;
A Chafurdina da Panelagem;
Permissivitas rerum Italicarum, authore magistro Brülefer46;
R. Lullius, De galhofando principium47:
Stultiatorium Buforum, actore M. Jacobo Hoctratem herifi-
cometra48:
Escarepião, De Magistro nostrandorum Magistro nostrato-
rumque beberetis, lib. octo gualantissimi49;

55 PANTAGRUEL
O Cagaçal dos Bulistas, C o p istas, Escribas, A b re via d o res,
R eferendários e D atário s, com pilado por Regis;
Alm anaque Perpétuo para G o to so s e Sifilíticos;
Maneries Desenfarruscandi Fornellos, per M. Eccium 50;
O O lh ó m e tro dos C o m e rcian te s;
A s Folganças da Vida M onacal;
A Roupa-Velha que os Beatos C o m em ;
A H istó ria dos D uendes;
A P elin trice dos Endinheirados;
A s Patranhas dos Juízes Eclesiásticos;
A Gatunagem dos T e so u re iro s;
Gozatorium Sophistarum51;
Antipericatametanaparbeugedamphicribationes merdicantum 52;
O Lim acion ário dos R im adores;
O Bufalume dos Alquim istas;
O D izo ucom es dos Inquisidores, posto a pão e água por
Frei Algem atis;
O s Entraves da Religião;
O Frenesi dos T o ca d o re s de Sino;
O Aconchego da V elhice;
O A çaim o da N o b reza;
O Pai-nosso para To d a a O b ra ;
A s Algem as da D evo ção ;
A Panela dos Q u a tro T em p o s;
A Argam assa da Vida Política;
O Enxo tam o scas dos Erem itas;
O Bioco dos Penitentes;
A Boa-Vai-Ela dos Frades de São Lib ertino ;
Papalvus, De vita et honestate peralvilhorum53;
Lyripipii Sorbonici Moralisationes, per M. Lupoldum54;

RABELAIS 56
As Punhetas dos Viajantes;
As Mezinhas dos Bispos in potibus;
Admoestationes Doctorum Coloniensium adversus Reuchlin55;
O Tocapratos das Damas;
O Fundilho de Abrir dos Cagadores;
Viravoltatorium Naquetorum, per Frei Rebolabola56;
As Botifarras da Grande Coragem;
A Momice dos Duendes e dos Diabretes;
Gerson, De Auferibilitate Pape ab Ecclesia 57;
O Trenó dos Titulados e dos Diplomados;
Jo. Ditebrodii, De terribiliditate excommunicationum, libel-
lus acephalos58;
Ingeniositas invocandi Diabolos et Diabolas, per M. Guingolfum59;
O Grande Cozinhado dos Moinhos de O rar;
A Dança do Fogo dos Heréticos;
As Muletas de Gaètan60;
Ranhosapenca Doctoris cherubici, De origine patepelutarum
et torticollorum ritibus, lib. septem61;
Sessenta e Nove Breviários de Alto Sebo;
A Patuscada das Cinco Ordens dos Mendigos;
A Capa dos Hipócritas, extraída da Bota Amarela Incornifis-
tibulada na Súmula Angélica;
O Devaneário dos Casos de Consciência;
O Pançulho dos Presidentes;
O Piçadasno dos Abades;
Sutoris, Adversus quemdam qui vocaverat eum patiforium, et
quod patiforia non sunt damnati ab Ecclesia62;
Cagatorium medicorum63;
O Limpa-Chaminés da Astrologia;
Campi Clisteriorum, per S. C.64;

57 PANTAGRUEL
O Tirapeidos dos Boticários;
O Beijacu da Cirurgia;
Justinianus, De cagotis tollendis65;
Antidotarium anim3e66;
Merlinus Coccaius, De patria diabolorum 67;
alguns dos quais estão já impressos, e os outros no prelo,
nesta nobre cidade de Tübingen.

RABELAIS 58
CAPITULO VIII

COMO PANTAGRUEL, EM PARIS,


RECEBEU CARTA DO SEU PAI GARGÂNTUA,
E A SUA CÓPIA

C omo h a v e is de com p reen d ê-lo bem, Pantagruel estudava


com m uito afinco e p ro veito igual, pois tinha um entendi­
m ento pelo red o b ro e capacidade de m em ória pela medida
de uma dúzia de o dres e b arris de azeite; e um dia, quando
lá estava a vive r, recebeu palavras do seu pai, da form a que
segue:

«M uito querido filho,

« E n tre as dádivas, graças e prerro gativas com que D eus


todo -pod eroso , m odelador soberano, dotou e ornam entou
a humana natureza em seu com eço , singular e excelen te me
parece a que lhe perm ite ad q u irir em estado m ortal qualquer
coisa com o uma im ortalidade, e ao c o rre r de uma vida tra n ­
sitó ria perpetuar-se de nome e sem ente; o qual se faz com
linhagem que de nós sai p o r m atrim ónio legítim o. D e algum
modo devolve assim o que nos foi e xto rq u id o pelo pecado
dos nossos prim eiros pais a quem foi dito, por não terem sido
obedientes ao m andam ento de D eus C ria d o r, que m o rre ­
riam e por m o rte iria reduzir-se a nada este m olde tão mag­
nífico onde foi criado o hom em . To d avia, com este m eio de
propagação seminal se mantém nos filhos o que foi perdido

RABELAIS 60
nos pais, e em netos o que definhou nos filhos; e assim , sem ­
pre, até à hora do juízo final, quando Jesus C ris to d evo lver
a D eus Pai o seu reino de paz livre de todo o perigo e contá­
gio de pecado, pois há-de então acabar-se toda a geração e
co rru p ção , e os elem entos ficarão livres das suas transm u­
tações contínuas já que a tão desejada paz estará concluída
e perfeita, e todas as coisas serão reduzidas ao seu fim e ao
seu período.
«N ão será, p o rtanto, sem justa e equitativa causa que dou
graças a D eus, meu C o n se rv a d o r, p o r me d e ixa r v e r a minha
encanecida antiguidade re flo rir na tua juventude; pois quando
a p razer d’Ele, que tudo rege e ordena, d e ixa r minha alma
esta habitação humana, não me encontrarei totalm ente m orto
mas passado de um lugar a o u tro , já que em ti e por ti perm a­
neço neste mundo com a minha imagem visível a vive r, a v e r
e a privar com o sem pre fiz com gente honrada e amigos meus;
e ainda que este meu falar nem sem pre tenha sido isento de
pecado - com ajuda e graça divinas, quero confessá-lo (porque
todos nós pecamos e continuam ente requerem os a D eus que
nos apague os pecados) - foi, todavia, sem mancha.
« P o r isso, tal com o perm anece em ti a imagem do meu
corpo , se não reluzissem de igual form a as qualidades da alma
não serias tom ado p o r guarda e te so u ro da im ortalidade do
nosso nome; e ao vê-lo, pequeno seria o meu p razer se co n ­
siderarm o s que subsistiria a m enor porção de mim, que o
corp o é, enquanto a alma, que é a m elhor e pela qual o nosso
nome continua abençoado en tre os hom ens, seria degene­
rada e ab astard ad a; não digo isto p o r d e sco n fian ça na tua
v irtu d e , a qual me fico u a n te rio rm e n te p ro vada, mas para
te enco rajar com mais fo rça a e x tra ir dela m elh or p ro veito.

61 PANTAGRUEL
E o que te escrevo agora não será tanto para viveres desse
virtuoso modo mas sentires alegria ao viver e te r vivido assim,
e te reno vares na coragem necessária para o futuro .
«Para este p ro p ó sito ap erfeiço ares e co nsu m ares, bem
poderás lem brar-te de que não me poupei a nada e até mesmo
ajuda te prestei, com o se nenhum o u tro teso uro eu tivesse
neste mundo além de ver-te uma vez na vida absoluto e p er­
feito não só em virtu de, honestidade e probidade mas em
todo o saber liberal e honesto, e depois da minha m orte deixar-
-te com o um espelho que me represente a mim, teu pai, e se
o não fizer de muito excelente form a, com o realm ente eu te
desejo, pelo menos de intenção o faça bem.
« E m b o ra o meu fale cid o pai, G ra n d e b o c a rra de boa
m em ória, tenha consagrado todo o seu esfo rço a fazer-m e
p ro gredir com a m aior perfeição e saber político , e em labor
e estudo eu c o rre sp o n d e sse m uito bem ou m esm o u ltra ­
passasse o seu desejo , com o podes c o m p re e n d e r o tem po
nem sem pre era assim tão propício e cóm odo para as letras
com o agora é, nem tive a fartu ra de p recep to res que tiveste.
«Ainda vivíam os num tem po teneb ro so , ainda cheirava à
infelicidade e à calamidade dos G o d o s que tinham causado a
destruição de toda a boa lite ra tu ra 1. N o entanto, por divina
com placência ainda no meu tem po a luz e a dignidade foram
devolvidas às letras, e vejo nisso um m elhoram ento tal que
eu próprio teria dificuldade em ser hoje acolhido numa primeira
classe de pequenos escrevinh ad o res; eu, na idade viril repu­
tado (e com razão ) com o o mais sábio do re fe rid o sécu lo .
N ão o digo po r vã presunção, fosse em bora louvável fazê-lo
ao escre ve r-te - de aco rdo com autoridade que e nco ntrarás
em M arco T ú lio no seu livro Do Velhice, e na sentença de

RABELAIS 62
P lu tarco no liv ro intitulado Como Podemos Louvar-nos sem
Vaidade - mas para te dar um afecto da mais pura água.
«Já se restabeleceram todas as disciplinas e restauraram
as línguas: a grega, sem a qual é vergonha alguém dizer-se
sábio; a hebraica, a caldeia, a latina; a im prensa, que hoje é
co rren te, tão elegante e co rre cta , que no seu tempo foi inven­
tada por inspiração divina tal com o a artilharia, em contraface,
por sugestão diabólica. T o d o o mundo se encheu de gente
sábia, p recep to res mui doutos, bibliotecas mui amplas, e em
meu juízo nem no tem po de Platão, de C íc e ro ou Papiniano
houve a com odidade de estudo que hoje encontram o s, e de
ora avante já não haverá que o fe re ce r lugar nem com panhia
ao que não fo r bem polido pela oficina de M inerva. Mais
doutos vejo agora os salteadores de estrada, os carrasco s,
os ave n tu re iro s, os palafreneiros, do que os do utores e os
pregadores do meu tem po. O que dizer? M ulheres e rap ari­
gas aspiraram a este lo uvo r e maná celeste de boa doutrina.
De tal form a que eu p ró p rio , na idade em que me en co n tro
vi-me obrigado a ap ren der as letras gregas, não porque as
tivesse desprezado, com o C a tã o 2, mas porque não tive vagar
de as co m p reen d er na minha tenra idade; e de bom grado
me deleito a ler as Morais de Plu tarco , os belos Diálogos de
Platão , os Monumentos de Pausânias e as Antiguidades de
A te n e u , e sp e ran d o a h o ra em que a p ro u v e r a D e u s, meu
C r ia d o r , ch am ar-m e e o rd e n a r-m e que saia desta te r r a .
« P o r isto te incito, meu filho, a em pregar a m ocidade no
bom p ro veito de estudos e virtu d es. Estás em Paris e tens
com o precepto r Epistém ão, podendo aquela doutrinar-te com
vivas e vocais instruçõ es, o o u tro com louváveis exem plos.
«P en so e q uero que aprendas as línguas na p erfeição :

63 PANTAGRUEL
prim eiro a grega, com o diz Q uin tilian o , em segundo lugar a
latina e depois a hebraica p o r causa das Sagradas E scritu ras,
tal com o a caldaica e a árabe; que form es pela grega o estilo
imitando Platão e, quanto à latina, por C íc e ro . N ão haja histó­
ria que não tenhas presente na m em ória, devendo ajudar-te
nisto a cosm ografia daqueles que a escreveram .
«D as artes liberais, geom etria, aritm ética e m úsica, algum
gosto te tinha dado eu quando eras pequeno, en tre os cinco
e os seis anos de idade; prossegue com o resto e fica a saber,
da astronomia, todas as regras; deixa porém de parte a astro lo ­
gia divinatória e a arte de Lulio3, pois abusos e frivolidades
são.
« D o direito civil, quero que saibas de c o r os belos texto s
e os com pares com a filosofia.
«E quanto ao saber dos factos da natureza, quero que te
entregues a ele com afinco; não haja m ar, nem rib eira, nem
fonte de que não conheças os peixes; todos os pássaros do
ar, tudo quanto é á rvo re , arbusto e m oita da flo re sta, todas
as ervas da te rra , todos os metais escondidos no ve n tre dos
abism os, as pedrarias de todo o O rie n te e do Sul, nada te
seja desconhecido.
«D epois volta a passar cuidadosamente em revista os livros
dos médicos gregos, árabes e latinos, sem desprezar os talmu-
distas e os cabalistas, e a dissecar com frequência adquire um
perfeito conhecim ento desse o u tro mundo que o homem é.
E com eça a visitar as Sagradas Escritu ras algumas horas por
dia: prim eiro o Novo Testamento e as Epístolas dos A p ó sto lo s
em grego, depois o Velho Testamento em hebraico.
«Em suma, que eu te veja um abismo de ciência, pois antes
de seres homem e te fazeres grande terás de abandonar a

RABELAIS 64
tranquilidade e o repouso do estudo, ap ren der a cavalaria e
as arm as para me defenderes a casa e s o c o rre re s os nossos
amigos em todo o caso de assalto de m alfeitores.
«E dentro em breve quero ver-te avaliar quanto assim i­
laste, e m e lh o r não po derás fazê-lo que a tir a r co n clu sõ e s
em público so b re todas as m atérias, com to d o s e co n tra
todos, e frequentando a gente letrada que tanto há em Paris
com o no utros lados.
«To d avia, porque o saber não entra em maldosa alma e,
com o diz o sábio Salomão, a ciência não consciente só é ruína
da alma, convém -te se rv ir, am ar e te m e r a D eus, pôr todo
o pensam ento e toda a esperança nele e, com uma fé fo r­
mada de caridade, continuar-lhe fiel ao ponto de nunca seres
posto de lado po r causa do pecado. Te m p o r suspeitos os
excessos do mundo. À vaidade não dês o co ração , pois esta
vida é transitória em bora permaneça eterna a palavra de Deus.
Sê p restável a todo s os teus p ró xim o s e am a-os com o a ti
mesm o. V en era os teus p recep to res. Foge à com panhia de
pessoas com quem não desejes p arecer-te, e as graças que
Deus te deu não vás recebê-las em vão. E quando re co n h e ­
ceres que possuis todo o saber que além -m ontes se adquire,
volta a mim para eu poder ver-te e dar-te a bênção antes de
m o rre r.
«Meu filho, que a paz e a graça de N o sso Senh or sejam
contigo. Amen.
«N a U to p ia , ao décim o sétim o dia do mês de M arço.
O teu pai
Gargântua.»

Recebidas e vistas estas palavras, Pantagruel ganhou nova

65 PANTAGRUEL
coragem e mais do que nunca ardeu no desejo de p ro gredir;
e vendo-o estudar e assim ilar assim , teríeis dito que o seu
espírito tão bem ficaria en tre os livros com o o fogo no meio
das urzes, de tal forma penetrante e infatigável ele se mostrava.

RABELAIS 66
CAPÍTULO IX

COMO PANTAGRUEL ENCONTROU


PANURGO', DE QUEM GOSTOU DURANTE
TODA A VIDA

U m d ia , dava Pantagruel um passeio fora da cidade, em direcção


à Abadia de Santo A ntó nio , cavaqueava e filosofava com a sua
gente e alguns estudantes quando encontro u um homem de
bela e statu ra e elegante em toda a linha do c o rp o mas em
vários sítios ferido de m eter dó, e tão descom posto que pare­
cia fugido aos cães ou, m elh or, com ar de um apanhador de
maçãs do condado de Perche.
Mal o vislum brou de longe, disse Pantagruel aos presentes:
- Estais a v e r aquele homem que ali vem pelo caminho
da ponte C harenton ? Palavra minha, apenas será pobre por
fortuna; pois a julgá-lo pela fisionom ia vos garanto que a N atu­
reza deu-lha de rica e nobre feição, em bora aventuras próprias
de gente curio sa o tenham reduzido a tam anha penúria e
indigência.
E quando lhes surgiu bem à fren te, interpelou-o:
- Peço-vos, meu amigo, que acedais a p arar um pouco e
a responder-m e ao que hei-de perguntar-vos, e disso não ireis
arrepen der-vo s nada, pois sinto eno rm e desejo de o fe re ce r
quanta ajuda eu possa dar na calamidade em que vos encon­
tro , já que muita pena me fazeis. Po r isso dizei, meu amigo:
Q uem sois? D e onde vindes? Para onde ides? O que p ro cu ­
rais? Q u e nome tendes?

67 PANTAGRUEL
Respondeu-lhe o pândego em língua germ ânica:
- Junker, Gott geb euch Glück und Heil. Zuvor, lieber Junker,
ich lass euch wissen, das da ihr mich von fragt, ist ein arm und
erbärmlich Ding, und wer will davon zu sagen, welches euch ver-
drussich zu hören, und mir zu erzählen wer, vievol die Poeten und
Orators vorzeiten haben gesagt in irein Sprüchen und Sentenzen,
das die Gedächtnis des Elends und Armut vorlängst erlitten ist ein
grosser Lust 2.
A o que disse Pantagruel:
- Meu amigo, nada entendo dessa algaraviada; na verdade,
se quereis que vos perceba falai o utra língua.
V isto isso, respondeu-lhe o pândego assim:
- Al barildim gotfano dech min brin alabo dordin falbroth
ringuam albaras. Nin porthzadilkin almucathim milko prin al elmin
enthoth dal heben ensouim; kuthim al dum alkatim nim broth
dechoth porth min michais im endoth, pruch dal maisoulum
hol moth dansrilrim lupaldas im voldemoth. Nin hur diavosth mnar-
botim dal gousch palfrapin duch im scoth pruch galeth dal chi-
non, min foulchrich al conin butathen doth dal prim 3.
- Entendeis disto alguma coisa? - disse Pantagruel aos pre­
sentes.
A o que respondeu Epistém ão:
- C re io que é língua dos Antípodas; nem o diabo lhe m ete­
ria o dente.
D isse então Pantagruel:
- C o m p ad re, não sei se as m uralhas vos entendem , nós
é que nem patavina.
Vai daí, disse-lhe o pândego:
- Signor mio, voi vedete per exemplo ehe la Cornamusa non
suona mai, s’ella non ha il ventre pieno; cosi io parimente non vi

RABELAIS 68
saprei contare le mie fortune, se prima il tribulato ventre non ha
la solita refezione, al quale è adviso che le mani e li denti abbui
perso il loro ordine naturale e dei tuto sono annichillati4.
A o que respondeu Epistém ão:
- Vai tudo dar ao m esm o.
D izendo então Panurgo:
- Lard, gest tholb be sua virtiuss be intelligence ass yi body
schal biss be naturall relvtht, tholb suld of me pety have, for nature
hass ulss egualy maide; bot fortune sum exaltit hess, and oyis
deprevit. Non ye less viois mou virtiuss deprevit, and virtiuss men
discrivis, for, anen ye lad end, iss non gud 5.
- M enos ainda - respondeu Pantagruel.
D isse então Panurgo assim :
-Jona andie, guaussa goussyetan behar da erremedio, beharde,
versela ysser lan da. Anbates, otoyyes nausu, ey nessassu gourray
proposian ordine den. Non yssena bayta fascheria egabe, gen-
herassy badia sadassu nourra assia. Aran hondovan gaualde eydassu
nay dassuna. Estou oussyc eguinan soury hin, er darstura eguy
harm, Genicoa plasar vadu6.
- Estais aí, Genicoa? - perguntou Eudem ónio7.
A o que disse C a rp a lim 8:
- P o r São T re ig n an , se bem co m p reen d i «vó s sê rre d e s»
da Esc ó c ia 9.
Respondeu então Panurgo:
- Prug frest strinst sorgdmand strochdt drhds pag brleland
Gravot Chavygny Pomardière rusth pkallhdracg Devinière près
Nays Bouille kalmuch monach drupp delmeupplistrincq dlrnd
dodelb up drent loch mine stzrinquald de vins ders cordelis hur
jocststzampenards.
A o que disse Epistém ão:

69 PANTAGRUEL
- Falais cristão, meu amigo, ou linguagem pathelinesa? N ão,
é linguagem la n te rn e sa10.
Respondendo então Panurgo:
- Here, ie en sprerke anders gheen taele, dan kersten, taele:
my dunct nochtans, al en seg ie u niet een wordt, mynen noot
verklaart ghenonch wot ie beglere; gheest my unyt bermherticheyt
yet waer un ie ghevoet mach zunch 11.
A o que respondeu Pantagruel:
- C o m essa vai tudo dar ao m esm o.
D isse então Panurgo:
- Sehor, de tanto hablar yo soy cansado. Por que supplico a
Vostra Reverentia que mire a los preceptos evangélicos, para que
ellos movan Vostra Reverentia a lo que es de consciência; y, si
ellos non bastaren para mover Vostra Reverentia a piedad, sup­
plico que mire a la piedad natural, la qual yo creo que le movra
como es de razón, y con esto non digo más.
A o que respondeu Pantagruel:
- Pois sim , meu amigo, não tenho dúvida alguma de que
sabeis falar bem várias línguas, mas dizei-nos o que pretendeis
numa qualquer que possam os entender.
Respondeu-lhe assim o pândego:
- Myn Herre, endog ieg med inghen tunge talede, lygesom
boeen, ocg uskuulig creatner! Myne Kleebon och myne legoms
magerhed uudviser allygue klalig huvad tynd meg meest behoff
girereb, som aer sandeligh mad och drycke: hwarfor forbarme teg
omsyder offvermeg: och bef ael at guffuc meg nogeth; aff huylket
ieg kand styre myne groeendes maghe lygeruss son mand Cerbero
en soppe forsetthr. Soa schal tue loeffue lenge ochlyck salight,2.
- J u lg o (disse E u sté n io 13) que assim falavam os G o d o s; e
nós, quisesse D eus, falaríam os assim pelo cu.

RABELAIS 70
Ao que disse então o pândego:
- Adoni, scolom lecha. Im ischar harob hal habdeca, beme-
herah thithen li kikar lehem, chancathub: «Laah al Adonai cho-
nen ral» l4.
Tendo respondido Epistémão:
- Até que enfim, bem percebi porque é a língua hebraica
e muito retoricamente pronunciada.
Disse o pândego assim:
- Déspota ti nyn panagathe doiti sy mi uc artodotis? Horas
gar limo analiscomenon eme athlios. Ce en to metaxy eme uc
eleis udamos, zetis de par emu ha u chre, ce homos philologi
pantes homologui tote logus te ce rhemata peritta hyrparchin,
opote pragma asto pasi delon esti. Entha gar anancei monon logi
isin, hina pragmata (hon peri amphisbetumen) me phosphoros
epiphenete l5.
- O quê! - exclam ou Carpalim , lacaio de Pantagruel. -
É grego, que bem o entendi. Mas como? Viveste na Grécia?
Dizendo-lhe o pândego assim:
- Agonou dont oussys vou denaguez algarou, nou den farou
zamist vous mariston ulbrou, fosquez vous brol tam bredaguez
moupreton dei goul houst, daguez nou croupys fost bardounnoflist
nou grou. Agou paston tol nalprissys hourtou los ecbatanous, prou
dhouquys brol panygou den bascrou noudous caguons goulfren
goul oust troppassou ,6 .
- Parece-me que entendo (disse Pantagruel), pois é a lín­
gua do meu país da Utopia, ou muito se lhe parece no som.
E como se quisesse iniciar um discurso qualquer, disse-
-Ihe o pândego:
- Jam toties vos, per sacra, perque deos deasque omnis obtes-
tatus sum, ut, si qua vos pietas permovet, egestatem meam

7 1 PANTAGRUEL
solaremini, nec hilum proficio clamans et ejulans. Sinite, quaeso,
sinite, viri impii,
Quo me fata vocant
abire, nec ultra vanis vestris interpellationibus obtundatis, memo­
res veteris illius adagi quo venter famelicus auriculis carere dici-
tur 17.
- Pois sim , meu amigo, mas não sabeis falar francês? -
perguntou Pantagruel.
- C la r o que o faço m u ito bem , se n h o r - re sp o n d e u o
pândego. - P o r D eus, que é minha língua natural e m aterna,
pois nasci e jovem me aleitaram no jardim de França, ou seja,
em T o u rain e .
- Contai-nos então (disse Pantagruel) que nome é o vosso
e de onde vindes. Palavra minha, já vos ganhei tão grande am or,
que não mais ireis afastar-vos da minha companhia se ao meu
q uerer houverdes por bem aceder; vós e eu form arem os um
novo par de amizade com o existiu entre Eneias e A chates.
- Senhor - disse o pândego - o meu verd ad eiro nome
p ró p rio , de baptism o, é Panurgo; e venho agora da Tu rq u ia,
onde me fizeram p risio n eiro quando em má hora fom os a
M itilene. D e bom grado vos co n taria os meus feitos mais
m aravilh o so s que os de U lisse s, mas sendo vo sso q u e re r
reter-m e convosco (o ferta que aceito de boa vontade, desde
já declarando que não mais vos d eixarei, m esm o que fôsseis
a todos os diabos), no utra ocasião mais pro pícia te re m o s
vagar bastante para contá-los, pois de m om ento sinto uma
necessidade bem urgente de me alim entar: dentes afiados,
barriga vazia, garganta seca, estrid ente apetite, tudo se m is­
tura. Q u e re n d o tom ar-m e a vosso se rviço , ser-vos-á um bál­
samo ver-m e dar ao dente. Po r D eus, ordenai-o!

RABELAIS 72
Mandou então Pantagruel que o levassem aos seus aposen­
tos e lhe dessem farto s víveres. O que foi feito , tendo nessa
noite muito bem com ido; foi deitar-se com as galinhas, dorm iu
até à hora do jantar do dia seguinte e p o r isso só precisou
de dar trê s passos e um salto do leito à mesa.

73 PANTAGRUEL
CAPITULO X

COMO PANTAGRUEL JULGOU


DE JUSTA FORMA UMA CONTROVÉRSIA
MARAVILHOSAMENTE OBSCURA E DIFÍCIL,
AO PONTO DE CHAMAREM AO SEU JUÍZO
MUITO ADMIRÁVEL

B em lem br a d o da carta e das recom endações do pai, um dia


Pantagruel quis pôr à prova o seu saber.
D e facto, em todas as encruzilhadas da cidade defendeu
teses sobre tudo quanto era saber, em núm ero de nove mil
setecentas e sessenta e q u atro , aflorando as mais difíceis
questões de todas as ciências.
Para com eçar, na rua Du Fo u arre enfrentou pro fesso res,
estudantes de filosofia e letras, e o rad o res, e a todos fez cair
de cu. Depois, num espaço de seis semanas enfrentou na Sor-
bonne todos os teólogos, desde as quatro da manhã às seis
da tarde, descontadas duas horas de intervalo para descansar
e tom ar uma refeição.
E a isto assistiu a m aior parte dos senho res da Justiça:
referen d ário s, presidentes, co nselheiro s, a gente do Tribun al
de C o n ta s, s e c re tá rio s , advogados e o u tro s, havendo que
acre sce n tar os alm otacés da dita cidade mais os m édicos e
os canonistas1. E notai que a m aior parte tom ou, bem tomado,
o freio nos dentes; e, não obstante as suas e rg o ta çõ e s2 e
falácias, a todos encavacou e visivelm ente m o strou que não
passavam de b ezerro s com saias3.
T o d o s com eçaram , pois, a m u rm u rar e a falar do seu tão

RABELAIS 74
m aravilhoso saber, até m esm o as boas velhotas, as lavadeiras,
as cu rtid e iras, as assadeiras, as facalheiras e o utras que ao
vê-lo passar nas ruas diziam: «E ele!» O que tanto p razer lhe
dava com o a D e m ó ste n e s, p ríncip e dos o ra d o re s gregos,
quando uma velha de có co ras apontou com o dedo e disse:
«É aq uele!»4
O ra , nesta mesma época andava a c o rre r um p rocesso
e n tre dois su je ito s graú d o s, um deles o se n h o r de B eijacu ,
litigante, o o u tro um tal senhor de C hu p arranho , demandado,
sendo a sua co n tro vé rsia tão elevada e difícil em D ire ito , que
ao Tribun al de Justiça parecia feita em alto-alem ão. V isto isso,
por ordem do rei se reuniram os quatro parlam entares mais
gordos e mais sábios de toda a França, ainda o G rand e C o n ­
selho e todos os principais p ro fesso res, não só das un iversi­
dades da França mas tam bém da Inglaterra e da Itália, com o
Jasão, Philippe D èce, Petrus de P etro n ib u s5 e uma boa porção
de o u tro s velhos rab in istas6. A ssim reunidos, no espaço de
quarenta e seis semanas não tinham sabido m eter o dente
no caso nem tirá-lo a limpo de form a a se r possível julgá-lo
de um ou o u tro m odo, e de tão exasperados todos se b o r­
ravam indecentem ente de vergonha.
Porém , um tal chamado Du D o u h e t7 e mais sábio, perito
e prudente do que qualquer o u tro , num dia em que estavam
todos filogrobolizados do juízo, disse:
- S e n h o re s, há m uito tem po nos e n co n tra m o s aqui sem
mais fazer do que gastar dinheiro e sem haver form a de achar­
mos fundo ou margem nesta m atéria, e quanto mais a estuda­
mos menos percebem os, o que é nossa grande vergonha, um
peso na consciência, e na minha opinião só vam os livrar-nos
dela com desonra pois mais não fazem os do que divagar nas

75 PANTAGRUEL
nossas consultas. Vede, porém , o que imaginei: não ouvistes
fa lar m uito da grande p ersonagem que se cham a m e stre
Pantagruel, a qual se reconh eceu se r sábia acim a da capaci­
dade dos tem pos que c o rre m durante as grandes discussões
que alim entou publicam ente c o n tra todos? É meu p arece r
que devem os cham á-lo e com ele m anter conferên cia sobre
este caso, pois nenhum hom em há-de e n co ntrar-lhe fim se
não fo r ele a encontrá-lo.
O que m ereceu de bom grado a concordância da to tali­
dade dos co nselheiro s e d o utores.
R ealm ente, mandaram p ro curá-lo de im ediato e pediram -
-Ihe que deslindasse aquele p ro cesso e o exam inasse a fundo,
fazendo sobre ele o re la tó rio que m uito bem lhe parecesse,
c o n fo rm e à c iê n cia v e ra e legal, e em suas m ãos p useram
saco s8 e actas que chegavam quase à carga de quatro grandes
bu rro s tansos. Perguntou, porém , Pantagruel:
- Senh ores, ainda estão vivos os dois cavalheiros que ali­
mentam o processo?
Tendo-lhe sido afirm ado que sim.
- Então (disse ele), para que diabo serve a confusão tamanha
de papéis e cópias que me entregais? N ão será m elh or o uvir
de viva voz o seu debate do que le r uma pepineira que não
passa de falácias, diabólicas cautelas de C e p o la9 e subversões
do D ire ito ? Sim, tenho a certe za de que vós e todos aque­
les em cujas mãos o p ro cesso andou já magicastes o que há
de pro et contra; e em bora seja evidente e fácil de julgar a
sua c o n tro vé rsia , ob scurecestes-la com tolos e desrazoáveis
m otivos, com ineptas opiniões de A c ú rs io , Baldo, B á rto lo , de
C a s tro , de Im ola, H ip ó lito , Panorm e, Bertachim , A le xan d re ,
C ú rc io e esso u tro s velhos m astins que nunca entenderam

RABELAIS 76
uma lei, que fosse, das Pandectas, e não passavam de b ezer­
ro s de m eia-tigela, ig n o ran tes em tu d o o que in te re ssa ao
entendim ento das leis.
«Sim (mais do que certo será), porque eles não conheciam
língua grega nem latina, apenas o gótico e o bárbaro; e no
entanto foram os G re g o s quem p rim e iro recolh eu as leis,
com o sabeis do testem unho de Ulpiano /. posteriori De orig.
júris10, estando todas cheias de sentenças e palavras gregas;
em segundo lugar, foram redigidas no mais elegante e o rn a ­
mentado latim de toda a língua latina, e de bom grado não
exceptuaria Salústio, nem V a rrã o , nem C íc e ro , nem Séneca,
nem T ito Lívio, nem Q uintiliano. C o m o puderam esses velhos
sonhadores entender o te xto das leis se nunca viram um bom
livro e sc rito em latim , o que bem se depreende de um estilo
que só é de lim pa-cham inés ou co zin h eiro , ou m arm iteiro , e
não de jurisconsulto?
«A lém disso, sendo as leis arrancadas ao âmago da filosofia
m o ral e n a tu ra l, co m o podem este s lo u co s e n ten d ê-las se
menos filosofia estudaram , raios os partam !, do que a minha
mula? Q u an to às letras de Hum anidades e conhecim ento em
Antiguidades e H istó ria , são plumas que eles carregam com o
um sapo, e aliás bem cheios delas estão os D ire ito s, pois de
o u tro modo não haveria quem os entendesse, com o um dia
ainda chegarei a dem o nstrar com m aior clareza e por e scrito .
«P o rtan to , se pretendeis que eu conheça um tal p ro cesso ,
prim eiro mandai-me queim ar todos estes papéis e a seguir
trazei à minha frente os dois cavalheiros em pessoa, pois mal
os oiça dir-vos-ei a minha opinião sem artifício nem qualquer
espécie de evasiva.»
A isto contradisseram alguns en tre eles, pois sabeis com o

77 PANTAGRUEL
em toda a com panhia mais loucos há do que sensatos, e a
m aior parte suplanta sem pre a m elh or, com o diz T ito Lívio
ao falar dos C a rta g in e s e s ". Pelo c o n trá rio , o referid o Du
D o u h et po rtou-se com virilidade afirm ando que Pantagruel
tinha falado bem, que aqueles registos, inqu érito s, réplicas,
recusas, defesas e o utras maquinações que tais não passavam
de subversões do D ire ito e delongas do p ro cesso , e a todos
levasse o diabo se não procedessem de o u tro modo, segundo
a evangélica e filosófica equidade.
Para resu m ir, todos os papéis foram queim ados e pessoal­
m en te c o n v o cad o s os dois c a v a lh e iro s. D is se -lh e s então
Pantagruel:
- So is re a lm e n te vó s quem tem este grande d iferen d o ?
- Sim, senho r (resp o nderam eles).
- E qual dos dois é litigante?
- Eu - disse o senho r de Beijacu.
- Pois bem, meu amigo, contai-m e o vosso caso ponto
por ponto e de acordo com a verdade; macacos me mordam
se, procedendo de o u tro m odo, m entindo vós numa palavra,
não tiro a cabeça de cima dos vossos om bros e não m ostrarei
que em Justiça e julgam ento mais do que a verdade se não
deve dizer. Livrai-vos, por conseguinte, de so m ar ou su b trair
ao relato do vosso caso. C o m eçai.

RABELAIS 78
CAPITULO XI

COMO OS SENHORES DE BEIJACU


E CHUPARRANHO ARGUIRAM À FRENTE DE
PANTAGRUEL SEM ADVOGADOS

C o m e ç o u então Beijacu da form a que segue:


- É verdade, senho r, que uma criada lá da minha casa foi
vender ovos ao m ercado...
- Podeis pô r o chapéu, Beijacu - disse Pantagruel.
- Muitíssimo obrigado - respondeu o senhor de Beijacu. -
Mas, voltando ao assunto, ele passava en tre os dois tró p ico s,
a seis moedas de prata rum o ao zénite e picos, pois naquele
ano havia nos Montes Rifeus uma grande esterilidade de arm a­
dilhas, m ediante uma sublevação de N inharias que rebentara
entre os Algaravianos e os A cu rcia n o s, devido à rebelião dos
Suíços reunidos em núm ero que chegava para ir ao azevinho
nono ano na prim eira cova do ano onde se dá a sopa aos bois
e a chave do carvão às raparigas, para darem aveia aos cães.
« C o m a mão no bacio, toda a noite mais se não fez do
que despachar bulas a pé e bulas a cavalo para re te r as bar­
caças, pois dos retalho s roubados queriam os c o stu re iro s
fazer um mantel para c o b rir o m ar O cean o que, na opinião
dos enfeixado res de feno, nessa altura estava grávido de uma
panelada de couves: diziam porém os m édicos que na urina
dele não se via sinal evidente, com passo de abetarda, de
co m er machados de dois gumes com m ostarda, não sendo

79 PANTAGRUEL
que os senho res jurados encom endassem em bemol à sífilis
que não mais se respigasse depois dos bichos-da-seda, porque
já bom com eço os patifes tinham a dançar o e strin d o r ao
som do diapasão, com um pé no fogo e a cabeça no cen tro ,
com o dizia o bom Rei dos Mendigos.
«A h , senho res, governe D eus tudo com o lhe ap ro u ver, e
co ntra Fortuna a Volúvel um c a rro c e iro partiu o chicote com
piparotes no nariz. Foi no regresso de Bicoque, quando fize­
ram p assar em peso o m e stre A n tito dos A g riõ e s a lic e n ­
ciado, pois Beati papalvus, quoniam ipsi tropeçaverunt *, com o
dizem os juristas.
«Mas, por Santa C a rro ça de Tram p a!, o que faz tão tardia
a quaresm a só é o facto de

O Pentecostes,
Aqui não chegar sem me vergar as costas;
E Maio, tem tento!
Pouca chuva deita abaixo grande vento.

« C la ro está, tão alto o oficial me pôs o alvo na colina,


que o e s c riv ã o não lam beu o rb ic u la rm e n te os seus dedos
em penachados com penas de ganso e m anifestam ente se vê
que todos vão engalfinhar-se, não sendo que se olhe o cu lar­
m ente em perspectiva para a cham iné, no sítio onde está pen­
durada a tabuleta do vinho com quarenta cilhas, necessárias
para vin te ad iam ento s de calo te até cin co anos. D o mal o
m enos! Q u e m não d esejaria largar o pássaro à fre n te de
m acarrões, em vez de o deixar a descoberto, já que a m em ória
muita vez se perde quando nos calçamos ao contrário. Só visto!
D eus livre do mal Th ib au t M itaine!»
D isse então Pantagruel:

RABELAIS 80
- C alm a, meu amigo, m uita calm a. Falai devagar e sem
có lera, que eu estou a seguir o caso. C o ntinuai.
- O ra aco ntece, senho r - prosseguiu Beijacu - que a tal
criada, ao d izer os seus Caudez e Audi nos2 não pôde co b rir-
-se de uma estocada em falso ao subir a virtu osa via dos p rivi­
légios da U n iv e rsid a d e , a não s e r para se e sq u en tar m uito
angelicam ente, cobrindo-a com um sete de o u ro s e atirando-
-Ihe com um estoque vo ad o r, o mais p erto possível do sítio
onde se vendem as velhas bandeiras que os pintores flamengos
usam quando querem fe rra r bem a p re ce ito as cigarras, e
m uito fo rte m e n te me espanto p o r as pessoas não porem
ovos, já que tão am eno é quando se choca.
N e sta altu ra quis o se n h o r de C h u p a rra n h o in te rro m p e r
e d izer qualquer coisa, mas Pantagruel atalhou:
- Ei! Valha-me a pança de Santo A ntónio! T e rá s o direito
de falar sem licença? Eu a suar aqui as estopinhas, para co m ­
preender os trâm ites do vosso diferendo, e ainda po r cima
me apareces a barafustar? C a lm a , com os diabos! C alm a!
Venderás o teu peixe quando este acabar. C ontinuai - disse
a Beijacu - e não vos apresseis.
- Por isso - disse Beijacu - ao ve r que a Pragmática Sanção3
nada m encionava, e o papa dava liberdade a cada qual de se
peidar quanto queria e, se a estam enha não tivesse riscas,
qualquer que fosse a pobreza do m undo, e desde que não
estivéssem os classificados com o canalha, o arco -íris era am o­
lado de fre sco em Milão para as gaivotas saírem do ovo, co n ­
sentiu que a criada servisse as ciáticas numa escudela, com
o pro testo dos peixinhos tansórios, naquela altura necessários
para se o u vir a co nstrução das velhas botas.
« N o entanto o João B e ze rro , seu prim o-gervásio rem ovido

81 PANTAGRUEL
da lesma de um m exilhão, em tal conjuntura aconselhou-a a
não se pô r de form a alguma em situação de secundar a bim-
balhante rabanada sem p rim eiro m ergulhar no alúmen o papel
a tanto pilhe, nade, joque, fo re , pois

Non de ponte vadid, qui cum sapientia cadit 4,


uma vez que os senhores jurados na intimação não conheciam
flautas alem ãs, com as quais se tinha co nstruíd o Os Óculos
dos Príncipes 5, novam ente dado à estam pa em A n tu é rp ia .
«E p ro n to , se n h o re s, aqui ten d es no que dá um mau
re la tó rio , e cre io na parte c o n trá ria in sacer verbo dotis6: pois
querendo o b star ao p ra ze r do re i, eu arm ara-m e até aos
dentes com uma enfartadela de pança para ir ve r com o tinham
os meus vindim adores retalhado os bonés de copa alta para
m e lh o r re p re se n ta re m no te a tro de fan to ch e s; e com o o
tem p o e stava um tan to p e rig o so , p o r causa da fe ira , uns
quantos fran co -atirad o res tinham sidp recusados na revista,
não obstante as cham inés serem m uito altas se atenderm os
à proporção do gavarro e dos mandandres do amigo Galantão.
« P o r isso o ano foi grande em caracó is por toda a região
de A rto is , o que não c o n stitu iu pequena m elh o ria para os
senhores carregadores de cestos de vindima quando se comia
m exilhão à trip a-fo rra e sem lhes tira r a casca. E tam bém era
vontade minha que todos tivessem uma bela voz: com ela iria
jogar-se bastante m elh or à péla, e as pequenas atenções que
tem os para etim ologizar os borzeguins mais facilm ente desce­
riam pelo Sena para continuarem a s e rv ir na Ponte dos M o­
leiro s, com o o u tro ra decreto u o rei da C a n a rra numa ordem
de captura passada por este c a rtó rio .
«P o r isto, senhor, requeiro seja dito e declarado por Vossa

RABELAIS 82
S e n h o ria o que é de ra zã o , com cu sta s, p erd as e d an o s.»
A o que disse Pantagruel:
- Meu amigo, não quereis acre sce n ta r mais nada?
Respondeu Beijacu:
- N ão, senho r, pois já disse o tu autem7 inteiro e, por
minha honra, nada alterei.
- V ó s, então, senho r de C h u p arran h o (disse Pantagruel),
podeis e xp o r o que quiserdes mas abreviai sem nada esque­
c e r do que s e rv ir ao caso.

83 PANTAGRUEL
CAPITULO XI I

COMO O SENHOR DE CHUPARRANHO FAZ


A SUA DEFESA PERANTE PANTAGRUEL

O sen h o r de C h u p a r r a n h o in ic io u , e n tã o , c o m o se g u e :
- Senh or e senho res, se fosse tão fácil avaliar em julga­
m ento categórico a iniquidade humana com o as m oscas re s­
saltam no leite, quatro bois me valham se o mundo seria tão
com ido pelos rato s com o é, e muitas orelhas haveria pelo
chão cobardem ente roídas: sim - porque é de m uito verd a­
d eiro pêlo tudo o que a parte c o n trá ria disse quanto à letra
e à histó ria do factum - em bora aconteça, meus senho res,
que a finura, a trapaça, os pequenos busílis estejam escondi­
dos debaixo da ja rra de rosas.
«D e verei eu adm itir, enquanto vou com endo a minha sopa
pelo trabalho que faço, sem mal pensar nem falar, que venham
atenazar-me e m assacrar-me o juízo, me toquem a jiga e digam:

Quem bebe enquanto come a sua sopa,


Morre e não volta a ver nenhuma gota?
« A Senhora Santa me valha! Q uantos gordos capitães já
se não v ira m , que andavam em pleno cam po de batalha
enquanto eram dadas as bordoadas do pão-bento da c o n ­
fraria para mais honestam ente se m ocar, to c a r alaúde, pô r o
cu aos traques e dar saltos em plataform a!
«Mas agora o mundo tran sto rn o u -se p o r com pleto, devi­
do aos fardos de lã de Le ice ste r: este faz orgias, aquele cinco,

RABELAIS 84
quatro e dois e, não os meta o Trib u n al na o rdem , tão mau
fará andar este ano ao rebusco com o já fez, ou m esm o fará,
aos dados. Q uando uma pobre criatu ra vai aos banhos públi­
cos para lhe enfeitarem o focinho com bosta de vaca ou com ­
p ra r botas de inverno , se os sargentos ou os da sentinela
passarem e apanharem na peida a decoção de um cliste r, ou
a m atéria fecal de uma cadeira furada, será caso para ro e r­
mos os tostões e desbaratar as escudelas e deles, de madeira?
« À s vezes pensamos assim mas D eus faz assado e, quando
o sol se põe, to d o o anim al fica à so m b ra . N ão q u e ro s e r
d u ro , não sendo que o p ro ve viva m e n te com p esso as de
pleno dia.
«N o ano trinta a seis com prei um cavalo alemão sem rabo,
de m uito boa lã e tinto de grená, com o os o urives garantiam ,
mas o notário pôs cetera no c a so 1. D e form a alguma sou um
letrado que prende a lua com os dentes, mas na m anteigueira
onde chum bavam as fe rra m e n ta s vu lcânicas c o rria o boato
de que a vaca em salm oura fazia e n co n tra r o vinho às escuras
e, m esm o que estivesse escondido no fundo de um saco de
c a rv o e iro , com botas e bardado p o r te ste ira e p e rn e ira s
requeridas para bem e strug ir um qualquer prato enfarta-bru-
to s, era cabeça de c a rn e iro . E bem diz o p ro v é rb io que é
bom v e r vacas pretas num bosque queim ado, quando disfru­
tam o s os n o sso s a m o re s . M andei os se n h o re s le tra d o s
consultarem a m atéria, e para decisão concluíram em frise-
somorum 2 que durante o estio bastava ceifar numa cave bem
guarnecida de papel e tinta, canetas e canivete de Lyon-sur-
-le-Rhône, e mais isto e mais aquilo: porque, mal um arre io
ch eira a alho, a ferrugem com e-lhe o fígado, e depois mais
se não faz do que rip o star azedam ente co ntra os to rcico lo s

85 PANTAGRUEL
enquanto se fareja o sono de após o jantar. E aqui está o que
torna o sal tão caro .
«N ão acrediteis, senhores, que na altura em que a referida
criada engoliu a espátula para m e lh o r apanágio c o n fe rir ao
beleguim do m e irin h o , e a fre ssu ra m o rce lo sa te rg ive rso u
pelas bolsas dos usu rário s para nos defenderm os dos cani­
bais, nada m elhor houvesse a fazer do que ag arrar numa m o­
lhada de cebolas am arrada com trezen to s nabos e num pouco
de redanho de vitela, por m elhor aspecto que os alquim istas
tivessem , e bem untar e calcinar as suas pantufas, o fo rn o , o
fornão, com bom molho de reste, e esconder-nos em qualquer
buraquinho de toupeira pondo os toucinhos sem pre a salvo.
«E se o dado mais nada quer tirar-vo s do que duplases,
tern o s de alto lá com eles, cuidado com o ás, deixai a dama
no canto do leito, dai-lhe uma esfrega, trailarai-la e bebei à
farta depescando ranas3 com form osíssim os borzeguins cotúr-
nicos; isto devido aos passarinhões na muda, que se entregam
ao jogo da vela enquanto esp eram para m alh ar o fe r r o e
aquecer a cera aos palradores da gudeile4.
«Bem verdade é que os quatro bois em questão tinham
a m em ória um tanto curta; no entanto, para saberem a escala
não tem iam alcatrazes nem patos de Sabóia, e a gente da
minha te rra punha boa esperança nisto quando dizia: ‘Estas
crianças vão se r fo rtes em núm eros; para nós será rubrica
o brig ató ria.’ N ão podem os p erd er a ocasião de apanhar o
lobo fazendo as nossas sebes mais altas do que o m oinho de
vento já citado pela parte co n trá ria . Mas o grande diacho
sentiu vontade de fazer aquilo e pôs os A lem ães de rabo vo l­
tado, os quais beberam ‘Herr, tringue, tringue!’ com o todos os
dem ónios, um após o u tro , pois ele não tinha ar de quem

RABELAIS 86
d issesse que em P aris, no P e tit P o n t, galinhas de pátio e
m esm o que estivessem de poupa tão alta com o as poupas
dos charcos, a não se r que sacrificássem os realm ente os caia-
dores de tinta fresca das letras m aiusculas ou cursivas, tanto
me faz desde que a lombada não crie bicho.
«E supondo que as pequerruchas, com os cães no auge
da cópula, tocassem tro m p a antes do n o tá rio e n tre g ar o
re la tó rio p o r arte cab alística, daí não segue (salvo m e lh o r
opinião do T rib u n al) que meia dúzia de jeiras de prado m uito
largo façam trê s barris de tinta fina sem cuspir na bacia, uma
vez que se tinha o tosão p o r duas brancas e um ás em pleno
m ercado, no e n te rro do rei C a rlo s, quero eu dizer, por minha
honra, de lã.
«E vejo eu, em todas as boas co rnam u sas, que vu lgar­
m ente só se retesa a anca e sopra ao rabo quando se anda
aos pássaros, dando na chaminé três vassouradas e insinuando
que estam os in scrito s, se acaso faz m uito calo r e, em eixo-
-ribaldeixo,
Mal as cartas ficam lidas,
São as vacas devolvidas.
«E a mesma ordem de prisão foi dada no ano dezassete
à Martingala, durante o m augoverno de Luzefugeruza, o que
será bom o Tribun al te r em m ente.
«N a verdade, não direi que não possa equitativam ente
desapossar-se a justo título quem água-benta tiv e r bebido, tal
com o acontece com uma alabarda de tecelão da qual se fazem
os supo sitórios para quem só queira resignar sem eando ven ­
tos e colhendo tem pestades.
« Tunc, meus senho res, quid juris pro minoribus 5? Porque o
vulgar p ro ce d im e n to da lei sálica é de tal o rd e m , que o

87 PANTAGRUEL
prim eiro bota-fogo que descorna a vaca, que em pleno can­
tochão se assoa sem so lfejar os pontos dos sapateiros, em
tem po de gaude Maria deve disfarçar a penúria do seu m em ­
bro com a espuma recolhida quando nos resfriam os na missa
do galo, para dar trato s de polé a esses vinhos brancos de
A nju que nos trocam as pernas, peito co n tra peito, à moda
da Bretanha.
«C o n c lu í com o acim a disse, com custas, perdas e danos.»
Q uando o senhor de Chuparranho acabou, disse Pantagruel
ao senho r de Beijacu:
- Meu amigo, não desejais rep licar nada?
A o que respondeu Beijacu:
- N ão, senho r, pois só a verdade eu disse, e por D eus
acabem os com o nosso diferendo, uma vez que aqui não esta­
mos sem fo rtes dispêndios.

RABELAIS 88
CAPÍTULO XI I I

COMO PANTAGRUEL PROFERIU SENTENÇA


SOBRE O DIFERENDO DOS DOIS SENHORES

L e v a n t a - se então Pantagruel e reúne todos os presidentes,


co nselheiro s e d o utores que assistem , dizendo-lhes:
- O ra vam lá, senho res, ouvistes vive voeis oráculo 1 o dife-
rendo em causa. Q u e vos parece?
T e n d o eles respondido:
- Lá o u vir realm ente ouvim os, mas do diabo da causa não
en tendem o s nada. P o r isso vos pedim os una voce2 e po r
favo r suplicam os que nos façais o obséquio de p ro fe rir a sen­
tença com o a entendeis e, ex nunc prout ex tunc3, havemos
de tê-la p o r agradável e ratificá-la-em o s de co n se n tim e n to
pleno.
- M uito bem, senho res - disse Pantagruel - se tal vos
agrada, fá-lo-ei; mas não acho o caso tão difícil com o o pin­
tais. A vossa rubrica Catão, a lei Frater, a lei Callus, a lei Quinque
pedum, a lei Vinum, a lei Si Sominus, a lei Mater, a lei Mulier
bona, a lei Si quis, a lei Pomponius, a lei Fundi, a lei Emptor, a
lei Pretor, a lei Venditor e tantas o utras, em meu juízo são bem
mais difíceis.
Depois de dizer isto deu um passeio de uma ou duas voltas
na sala, m uito concentrado nos seus pensamentos com o podia
concluir-se ao ouvi-lo gem er com o um b u rro bem apertado
na cilha, e pensava que era p reciso fazer-se a ambos justiça

89 PANTAGRUEL
sem p rejudicar nem p re fe rir ninguém; depois voltou a sen­
tar-se e com eçou a debitar a sentença com o segue:
- V isto, ouvido e bem avaliado o diferendo entre os senho­
re s de B e ijacu e C h u p a rra n h o , d iz-lh es o T rib u n a l que:
«Considerada a horripilação do m orcego, declinando c o ra­
josam ente do so lstício estival para c o rte ja r as frivolidades
que deram xeque-m ate ao pião pelos maus trato s dos lucífu-
gas que estão no clim a dia Rhomès de um ferrab rás a cavalo
que entesa no ven tre uma balestra, justo m otivo teve o liti­
gante em calafetar o galeão que a criada inchava com um pé
descalço e o u tro calçado, reem bolsando-o na sua co nsciên­
cia fo rte e feio com tantas ninharias com o têm pêlo dezoito
vacas, e com o utras tantas para o bordador.
« D e igual form a é declarado inocente do privilegiado caso
das raspaduras de merdunça em que pensávamos tivesse in co r­
rido e alegrem ente o impedia de cagar p o r decisão de um
par de luvas perfum adas com um ro r de peidos à candeia de
óleo de noz, com o na sua terra Mira-Vassoura se usa, deixando
a bolina com as balas de bronze que os palafreneiros usavam
para condestavelm ente am assar as suas albardadas legumices
do L e u rre com todos os guizos de m ilhafre feitos em ponto-
-da-hungria que o seu cunhado m em orialm ente trazia num
cesto lim ítrofe, brasonado a gárgulas de trê s em penachados
chaveirões de fancaria na tenda quadrada de onde se atira
com o vistem p en ard o 4 ao papagaio verm ifo rm e.
«P o rém , naquilo que ele censura ao demandado, te r sido
b o tarrem en d eiro , queijófago e alcatro ad o r de múmias, coisa
que após chocalhada não foi tida por verd adeira, com o bem
fez no tar no debate o referid o demandado, o Trib u n al co n ­
dena-o a três copázios de leite coalhado com tem pero, prelore-

RABELAIS 90
litantados e gaudem ijados com o é co stu m e na sua te rra ,
pagáveis a meados de A gosto, em Maio.
« O referido demandado te rá, p orém , que fo rn e c e r feno
e estopas para tapar os alçapões guturais, atarantrapalhados
com guiveirão bem passado ao crivo .
«E amigos com o dantes, sem haver lugar a indem nização,
com o é óbvio.»
Pronunciada esta sentença, re tiraram -se ambas as partes
e qualquer delas contente com o acórdão; coisa quase incrível,
pois não acontecia desde as grandes chuvas e não será repetida
antes de treze jubileus: duas partes disputadas em julgamento
co n tra d itó rio m ostrarem -se de igual form a contentes com o
d ecreto definitivo.
Q u an to aos co nselheiro s e o u tro s d o utores ali p resentes,
trê s horas bem contadas ficaram desvanecidos de êxtase e
m aravilhados de espanto com a mais que humana prudência
de Pantagruel claram ente reconhecida na decisão deste julga­
m ento tão difícil e espinhoso; e assim continuariam se não lhes
tivessem chegado com m uito vinagre e água-de-rosas para
recu p erarem o senso e o entendim ento habituais, devendo-
-se, po r isto, em todo o lado louvar a D eus.

91 PANTAGRUEL
CAPITULO XIV

COMO PANURGO CONTA A FORMA


POR QUE FUGIU À MÃO DOS TURCOS

O ju íz o de P a n ta g ru e l fo i sa b id o e e s c u ta d o d e sd e logo
p o r toda a gente, im presso com grande tiragem e redigido
nos arq u ivo s do Palácio , o que levou as pessoas a d ize re m :
- N em Salom ão, devolvendo p o r intuição o filho à mãe,
exibiu uma obra-prim a de prudência com o a deste bom Panta­
g ru e l1. Estam os felizes por tê-lo no nosso país.
Realm ente quiseram nom eá-lo p ro cu ra d o r-m o r e p re si­
dente do T rib u n al, mas ele recusou-o em absoluto e g racio ­
sam ente agradeceu:
- Porque em tais se rv iço s há servidão excessivam en te
fo rte (disse) e quem os e x e rc e só a m uito custo pode sal­
var-se, devido à corru pção dos hom ens; e a não serem preen­
chidas por o u tra espécie de pessoas as cadeiras vagas dos
a n jo s2, julgo eu que nem daqui a trin ta e sete jubileus te re ­
mos o Juízo Final, enganando-se C usa nas suas c o n je c tu ra s3;
a tem po vos dou tal aviso. Mas se tiverd es uma qualquer bar­
rica de bom vinho, de bom grado recebê-la-ei com o presente.
D e boa vontade o fizeram , enviando-lhe do m elh or que
na cidade havia, o qual foi b astante bem bebido . O p o bre
Panurgo m o strou coragem ao bebê-lo, já que era tão magro
com o um arenque fum ado. E lá seguia ele todo ligeiro com o
um gato vadio, quando alguém o adm oestou po r entre o bafo

RABELAIS 92
de um grande tação cheio por metade de vinho tinto, dizendo:
- Devagar, ó compadre! Andais a bebê-lo com o um danado.
- A tiro -m e ao diabo de cabeça! (disse ele) N ão tens à
frente um desses m íseros bebedolas de Paris, que a beber
não passam de tentilhões e não dão bicada sem o rabo lhes
bater à moda dos pardais. Ó cam arada, subisse ele tão bem
com o bebo, e já eu te ria ultrapassado a esfera da lua com o
Em p é d o c le s4! Mas não sei que diabo q u e r isto d ize r: é um
vinho m uito bom e d e lic io so , mas quanto mais bebo mais
sede tenho. Parece-me que a sombra de m onsenhor Pantagruel
sabe g erar sedes com o a lua faz catarro s.
A tais palavras com eçaram os assistentes a rir. E, ao vê-
-lo, Pantagruel perguntou:
- D e que estais vós todos a rir-v o s, Panurgo?
- Senh or (disse ele), estava a contar-lhes com o são bem
desgraçados os diabos dos T u rc o s por não beberem uma gota
de vinho. Se o u tro mal não houvera no C o rã o de Maomé,
chegaria este para eu nada q u e re r com a sua lei.
- Mas dizei-m e então (pediu Pantagruel) com o escapastes
às suas mãos.
- Senhor, ju ro po r D eus que não vou m entir-vos numa
só palavra (disse Panurgo). O s lascivo s tu rc o s tinham -m e
posto num espeto, bem lardeado com o um coelho , pois tão
magro eu andava que a minha carne seria de outra form a muito
má; e nesse estado me puseram a grelhar a sangue-frio. Mas
enquanto me grelhavam recom endei-m e à graça divina, tendo
de m em ória o bom São Lo u ren ço e sem pre à espera que me
liv ra sse D e u s daquele to rm e n to , co isa que fez de m u ito
estranha form a; porque estava eu a recom endar-m e de bom
grado a D eus, a g ritar: ‘Ajudai-m e, Senh or D eus! Salvai-me,

93 PANTAGRUEL
Senhor D eus! Libertai-m e, Senhor D eus, do to rm e n to a que
estes cães tra id o re s me obrigam p o r o b s e rv a r a tua le i!’ ,
quando o assador adorm eceu por graça divina ou de um qual­
quer bom M ercúrio que à cautela pôs a d o rm ir o A rgos dos
cem o lh o s 5.
«Q uando reparei que já não estava a rodar-m e no espeto
eu para grelhar, olhei e vi-o a d o rm ir. C o m os dentes agar­
rei num tição pela ponta não queimada e atirei-o ao regaço
do meu assador; ainda atirei o u tro , o m elhor que podia, para
d ebaixo de um leito de cam panha que estava p e rto da cha­
miné, que era a enxerga do senho r meu assador.
«O fogo pegou im ediatam ente à palha, e da palha passou
à cam a, e da cam a ao te c to fo rra d o com uma m ad eira de
pinho cheia de enfeites lavrados. Mas o bom e o bonito foi
esse fogo, que eu jogara ao regaço do lascivo do meu assador,
te r-lh e queim ado toda a púbis e pegado aos c o lh õ e s, e ele
estar tão ferrad o no galho que só dia claro o sentiu; e levan­
tan d o -se, e n tão , co m o um bode e sp a v o rid o , foi à janela
g rita r o mais alto que podia: V ai baroth! Dal baroth!’, que
é com o quem diz: ‘Fogo! Fogo!’ Resolvido a atirar-m e às cha­
mas, veio direito a mim; já tinha cortado as cordas que me
am arravam as mãos, e já me cortava os laços dos pés.
« O dono da casa, que ouvira gritar ‘fogo!’ e sentia o cheiro
do fum o na rua onde passeava com alguns paxás e m uftis,
co rre u o mais que pôde para p restar so co rro e d eixar a salvo
as suas bagagens.
«Mal chegou lá, puxou o esp eto que me atrave ssava, e
sem mais aquelas matou o meu assador, que se finou à m ín­
gua de cuidados ou porque lhe tinha enfiado um pouco acima
do umbigo o espeto, virando-o para o flanco d ire ito , furando

RABELAIS 94
o te rc e iro lóbulo do fígado e, com um alçado golpe, pene­
trando no diafragma e fazendo-o sair no alto das espáduas pela
cápsula do coração, entre os espôndilos e a omoplata esquerda.
« A verdade é que eu caí no chão, ao pé dos cães da cha­
m iné, quando me re tiro u o e sp e to do c o rp o ; e que essa
queda, aliás não m uito grande, pouco me magoou porque as
tiras de toucinho am o rteceram a pancada.
« D e p o is, vendo que o caso era d e sesp erad o , que a sua
casa ardera sem rem édio e todos os seus bens estavam perdi­
dos, o meu paxá deu por paus e por pedras: nove vezes chamou
G rilg o te s, A sta ro te s, Rafalos e Garatugim .
«Perante isto senti um cagaço medonho e pensei, cheio de
te m o r: O s diabos não tardam aí para levar este doido: serão
gente para me levar também? Estou m eio assado. O s to u c i­
nhos vão ser causa do meu mal, pois sabeis pela autoridade
do filósofo Jâm blico e de M urm ault na apologia De corcundis
et disformis pro Magistros Nostros 6, que estes diabos m o rrem
por toucinho. Mas fiz o sinal-da-cruz, gritando: ‘Agios, athanatos,
ho Theos’ 7! E nenhum apareceu.
« D is to c o n s c ie n te , o vilão do meu paxá quis m atar-se
com o espeto e fu ra r com ele o co ra çã o . D e facto e n c o s­
tou-o ao p eito , mas não conseguiu fazê-lo p e n e tra r p orque
não tinha ponta bastante e, em bora em p urrasse o mais que
podia, de nada valeu.
«Cheguei-m e então a ele, e disse: ‘Senhor Panilas, perdes
o teu tem po, dessa form a nunca irás conseguir m atar-te; ainda
te feres com um golpe que vai fazer-te enfraquecer a vida inteira
nas mãos dos b arbeiros; mas, se quiseres, posso m atar-te já
e com o deve ser, de form a a não sen tires nada; acredita em
m im , pois m atei m u ito s que não tiv e ra m razão de q u e ix a .’

95 PANTAGRUEL
« ‘A h !, meu amigo (disse e le ), faz-m e então esse favo r!
Se o fiz e re s, dou-te a m inha bolsa. O lh a , aqui está ela! T e m
d e n tro se isc e n to s se ra fin s, e alguns d iam antes e ru b is de
grande p erfeição .’»
- E onde estão eles agora? (perguntou Epistém ão)
- São Jo ão me valha! - d isse Panurgo . - A n d a rã o bem
longe se ainda c o rre re m .
Mas onde estão as neves de antanho?,
era o que mais preocupava V illo n , o poeta de P a ris 8.
- Acaba, por favor (disse Pantagruel), para saberm os com o
despachaste o teu paxá.
- À fé de hom em de bem (disse Panurgo), não m into
num a só palavra. En vo lvi-o num as h o rrív e is bragas que lá
e nco ntrei meias queimadas e, vai daí, com as minhas cordas
atei-o à bruta, de pés e mãos, e tão bem o fiz que ele nem
pôde espernear; depois meti-lhe o meu espeto pelo gorgomilo
e pendurei-o, prendendo o espeto em dois grandes ganchos
que sustinham as alabardas; vai daí, p o r baixo aticei um bom
fogo e pus o meu m ilorde a a rd e r com o aos arenques fum a­
dos na cham iné. D ep o is, agarrando na bolsa e numa pequena
azagaia que estava nos ganchos, fugi a todo o galope e D eus
sabe com o o meu o m bro cheirava a carn e iro assado!
« Q u a n d o desci à rua toda a gente lá e stav a, pois tinha
vindo acudir ao incêndio com grandes quantidades de água,
para o apagar; e ao ver-m e sem i-assado teve pena de mim,
com o é natural; atirou-m e com toda aquela água e re fre s­
cou-m e que foi uma delícia, o que me fez m uito bem; depois
deram -m e qualquer coisa para m atar a fom e, mas não com i
lá m uito porque só me foi oferecida água p o r bebida, com o
é moda na te rra deles.

RABELAIS 96
« O u tro mal me não fizeram se eu esquecer o malvado
de um hom enzinho, um tu rco corcunda à frente que à socapa
me ia m ordendo os toucinhos; mas tão fo rtes cachaporradas
de azagaia lhe preguei nos dedos, que me não fez segunda;
uma jovem de C o rin to tro u xe-m e um vaso de m iro b ó la n o s9
secos, cristalizados à maneira turca, e olhava condoída a minha
pobre camisa ratada, que estava com o tinha saído do fogo e
só aos jo e lh o s chegava. P o ré m , n o tai; esta assadela c u ro u
totalm ente uma ciática que há mais de sete anos me atacava
do lado que o meu assador, quando adorm eceu, deixara tostar.
« O ra , enquanto estavam a divertir-se comigo o fogo triu n ­
fava, e não pergunteis com o pôde pegar-se a mais de duas
mil casas; as coisas chegaram a um tal ponto, que alguém deu
por ela e gritou: ‘Pela pança de Mafoma! A rd e a cidade inteira
e nós aqui a d iv e rtir-n o s!’ E assim foi que cada qual c o rre u
para a sua cadaquala.
«Pelo que me toca, tom ei o cam inho da porta. Q uando
me apanhei num pequeno te rre iro ali p erto , voltei-m e para
trás, com o a m ulher de Lo t, vi toda a cidade em chamas e
tão feliz me senti que estive quase a cagar-me de alegria; mas
bom castigo D eus me reservava.»
- Qual? (perguntou Pantagruel)
- O lhava eu com grande júbilo aquele belo fogo (disse
Panurgo), alegrava-me e dizia: ‘A h! Desgraçadas pulgas! A h!
Pobres rato s, que mau inverno ireis te r com este fogo no
vosso p alheiro !’, quando saíram ao m esm o tem po da cidade
mais de seis, na verdade mais de trezen to s e onze cães peque­
nos e grandes, a fugir do fogo. C o m eçaram p o r c o rre r d ire i­
tos a mim, pois sentiam o ch eiro da minha carne indigente
meia assada, e logo ali me teriam devorado se o bom do meu

97 PANTAGRUEL
anjo me não tivesse inspirado e ensinado um bem oportuno
rem édio co ntra a d o r de dentes.
- E a que propósito? (disse Pantagruel) - Receavas te r
d o r de dentes? N ão estás cu rad o dos teus re u m a tism o s10?
- Páscoas me partam! (respondeu Panurgo) - H averá pior
d o r de dentes que a dos cães quando nos ferram as pernas?
Mas de repente lem brei-m e dos toucinhos e atirei-os para o
meio da matilha. Vai daí, os cães foram -se a eles e lutaram à
dentada para ver quem os apanhava. Dessa forma me deixaram ,
e eu tam bém os deixei na sua peleja. A ssim fugi, lam peiro e
alegre, e viva a carne assada!

RABELAIS 98
C A P Í T U L O XV

COMO PANURGO ENSINA


UMA FORMA BEM NOVA DE CONSTRUIR
AS MURALHAS DE PARIS

C e r t o d ia , para se d istra ir do estudo, Pantagruel foi passear


nos arrabaldes de Saint-M arceau, interessado em v e r a Folie
G o b e lin 1. Panurgo acom panhava-o, sem pre com a garrafa e
alguns nacos de presunto debaixo da veste, pois nunca andava
sem eles e cham ava-lhes seus guarda-co stas; o u tra espada
não usava, e quando Pantagruel quis dar-lhe uma respondeu
que não, que iria esquentar-lhe o baço.
- Pois sim (disse Epistém ão), mas se te assaltassem com o
é que te defendias?
- A grandes espadeiradas de co tu rn o - respondeu - se
o pau-ferrado estivesse proibido.
N o regresso, Panurgo pôs-se a o b servar as m uralhas da
cidade de Paris, e em tom de mofa disse a Pantagruel:
- V ed e que b o nitas m u ralh as. O h ! C o m o são fo rte s e
calhadas para dar guarida a passarocos na engorda! Pela minha
barba! Para uma cidade destas são más que se fartam , pois
uma vaca a p e id ar-se d e ita ria ab a ixo m ais de seis b raças.
- Ó meu amigo (respondeu Pantagruel), terás tu presente
o que A g é sila s disse quando lhe p erg u n taram p o r que não
estava a grande cidade de Lacedem ónia cercada de muralhas?
M ostrou os seus habitantes e cidadãos tão p erito s na disci­
plina m ilitar, tão fo rtes e bem arm ados. ‘Aqui tendes (disse

RABELAIS 1O O
ele) as muralhas da cidade’, querendo com isto afirm ar que só
existem m uralhas de o sso, que cidades grandes e pequenas
não têm mais segura e fo rte m uralha do que a valentia dos
seus habitantes e cidadãos. Po r isso, com a m ultidão de povo
belicoso que tem d entro dela, esta cidade é m uito fo rte e
não se preocupa em co n stru ir outras muralhas. Além do mais,
mesmo que o quisessem fazer não seria possível murá-la com o
Estrasburgo, O rle ã e s ou F e rra ra , pelo que isso rep resenta
em custos e despesas excessivo s.
- Pois sim (disse Panurgo), mas se os inimigos nos invadi­
rem é bom que haja um qualquer ro sto de pedra, quanto
mais não seja para perguntar: ‘Q uem vem lá?’ Q uanto aos
eno rm es custos que dizeis necessários se a quiserem m u rar,
basta os que mandam na cidade fazerem o obséquio de me
dar uma qualquer boa vasilha de vinho e logo ensinarei uma
fo rm a bem nova de p o d erem c o n s tru í-la a p re ç o b arato .
- Com o? - perguntou Pantagruel.
- N ão lhes passeis palavra se vo-la ensinar (respondeu
Panurgo). - V ejo m uito bem que os calib ístris das m ulheres
deste país são mais baratos do que as pedras. H averia que
edificar as m uralhas com eles, dispondo-os com boa sim etria
na arq u itectu ra e assentando os m aiores nas p rim eiras fiadas,
dispondo a seguir os m édios e finalm ente os pequenos num
talude moldado em corcova, entrelardeando depois um pouco
com pontas aguçadas, com o na grande to r r e de Bu rges, e
usando para isso o necessário núm ero dos bacam artes em
riste que m oram nas braguilhas claustrais.
« Q u e diabo poderia vio la r tais muralhas? N ão há metal
que resista tanto às pancadas. E exp erim entasse a tomatagem
e sfre g a r-se ali! Im e d iatam e n te (D e u s m eu !) havíeis de v e r

1O 1 PANTAGRUEL
d e stila r esse bendito fru to de escaré p io agudo, gotejante
com o chuva e rápido com todo s os diabos! A lém do m ais,
sem nunca o raio lhes c a ir em cim a. Perguntais porquê?
Po rq ue estão todo s bentos ou são sagrados. Só um in co n ­
ven ien te lhes vejo.»
- O h! O h! A h! A h! A h! (disse Pantagruel) Qual?
- É que as m oscas gostam daquilo, com o sei lá de quê, e
seria fácil juntarem -se ali e fazerem as suas p orcarias; lá tínha­
mos nós a obra estragada. Mas vede com o podia rem ediar-
-se o caso; haveria que abaná-las m uito bem com bonitos
rabos de raposa ou com esses grandes piçalhões de b u rro
da Provença. E a tal respeito quero citar-vos (enquanto vamos
andando para a ceia) um belo exem plo que dá F ra te r Lubinus
no libro De compotationibus mendicantium 2.
« N o tem po em que os animais falavam (ainda não d e c o r­
reram trê s dias), um pobre leão passeava pela flo re sta de
B iè v re 3 a re za r os seus triviais sufrágios, quando passou por
baixo de uma á rvo re onde estava em poleirado um carv o e iro
rude que cortava madeira; quando o viu, atirou com a machada
e fez-lhe na coxa uma eno rm e ferida. O leão manco tanto
c o rre u e e rro u pela flo resta, em busca de au xílio , que encon­
trou um carp in te iro ; de bom grado o carp in teiro lhe exam i­
nou a chaga, lim p o u -a o m e lh o r que pôde e fe z-lh e um
e m p la stro de musgo dizendo que a abanasse bem , não fo s ­
sem as m oscas sujarem -na enquanto ia p ro cu ra r erva-de-m il-
-folhas4.
«Já cu rad o , o leão foi dar um passeio na altu ra em que
uma sem piterna velha garavetava e apanhava lenha na referida
flo re s ta ; ao vê-lo a p ro x im a r-se viro u -se de cangalhas, com
medo, e fê-lo de uma tal form a que o vento levantou vestido,

RABELAIS 102
vasquinha e camisa até aos o m bros. C a rid o so , o leão a c o r­
reu para v e r se estava magoada e, deparando con’aquilo que
se chama assim, perguntou:
«*— Pobre m ulher, quem te feriu desse m odo?’
« E n q u an to falava viu um ra p o so e ch am o u -o , d izen d o :
« ‘- C o m p a d re ra p o s o , co m o p o d es v e r , hô , czá , c z á !’
«E, depois de ele se ap ro xim ar, disse-lhe:
« ‘- C o m padre, meu amigo, esta pobre m ulher foi ferida
com muita maldade entre as pernas, e é evidente que a rasga­
ram. Vê com o a ferida é grande: mede quatro, qual quê!, cinco
palmos e meio desde o cu até ao umbigo. É uma machadada;
e duvido que seja ferim ento antigo. Po r isso, se fazes favor,
abana-a com m uita fo rça d en tro e fo ra, não vão as m oscas
ag arra r-se . T e n s boa e com p rid a rab iça: abana, meu am igo,
abana, faz-me esse obséquio, porque en tretan to vou p ro cu ­
ra r musgo para lhe m eter d en tro , pois é nosso d ever so c o r­
re r e ajudar os o u tro s. Abana com fo rça; assim , meu amigo,
abana bem, pois é ferida que pede muito abano, de outro modo
a pessoa não pode andar satisfeita. O ra abana bem, compa-
drezinho, abana! D eus foi generoso contigo, quanto a rabiça;
tem-na grande e grossa quanto basta; abana com fo rça, não
te canses de o fa ze r. O bom ab an ad o r, que ao abanar sem
descanso vai abanando com o seu m ata-m oscas, jamais será
pelas m oscas abanado. Abana, palonso; abana, meu sacrista!
N ão tarda que eu v o lte .’
«Foi pro curar uma grande quantidade de musgo e, já longe,
ainda gritou ao raposo: ‘C o n tin u a a abanar bem, com padre;
abana, com padrezinho, nunca te canses de abanar bem. C o m o
abanador de D . Pedro de C astela te hei-de co n tra ta r. Abana,
abana, sem p a ra r.’

103 PANTAGRUEL
« O pobre raposo abanava com muita fo rça aqui e além,
po r dentro e por fo ra; mas a malvada velha soltava ventos e
bufas, cheirando com o cem diabos. Bem incom odado estava
o jovem raposo, sem saber para que lado se vo ltar; queria
fugir ao perfum e das bufas da velha, e quando se v iro u viu
que o tra s e iro tinha o u tra a b e rtu ra m e n o r do que o fu ro
abanado, de onde saía o tão in fecto e m a lc h e iro so ve n to .
« O leão*acabou p o r reg ressar com mais musgo do que
dezoito fardos guardariam , e com um pau com eçou a enfiá-
-lo na ferida; já lá estariam bem m etidos dezasseis fardos e
m eio quando se espantou:
«*- O h , diabo! A ferida é funda, cabe lá mais de um par
de carro çad as de m usgo.’
«M as o raposo advertiu-o:
«*- Ó com padre leão, meu amigo, peço-te que não metas
aí o musgo todo; guarda algum porque há o u tro furo pequeno
mais abaixo e cheira tão mal com o quinhentos diabos. É tão
infecto, que até estou envenenado com o fe d o r.’
«Pois de igual form a estas m uralhas teriam de se r p ro te ­
gidas das m oscas com abanadores co n tratad o s.»
D isse-lhe então Pantagruel:
- Por que afirmas tu que as partes vergonhosas das mulhe­
res são tão baratas, se há tanta m ulher honesta, casta e virgem
na cidade?
- Et ubi prenus5? - perguntou Panurgo. - N ão irei dar-
-vos o meu p a re c e r, mas uma ve rd ad e ira e segura c e rte za .
N ão me gabo se d isser que quatrocentas e dezassete já enfiei,
desde que estou na cidade (e só nove dias passaram ), e esta
manhã en contrei um hom enzinho que levava duas meninas,
uma à fre n te e o u tra atrá s, num alfo rje duplo com o o de

RABELAIS 104
Eso p o ; te riam , quando m u ito , dois ou trê s anos de idade.
Pediu-me esm ola mas respondi-lhe que tinha mais colhões
do que to stõ es, e a seguir perguntei: ‘Ó criatu ra , essas duas
meninas são virgens?’ Irm ão, disse ele, transporto-as há dois
anos; esta da frente, que me não sai da vista, na minha opinião
é virgem em bora não gostasse de pôr a mão no fogo po r ela.
Q u a n to à que vai a trá s , não sei se alguma co isa lhe fa lta .’
- És realm ente um com panheiro agradável - disse Panta-
gruel. - Q u e ro ve stir-te com as minhas c o re s 6.
Mandou vesti-lo com elegância e pela moda do tem po se
exceptuarm o s a braguilha dos calções, que Panurgo quis qua­
drada, em vez de redonda, e com trê s pés de com prido, o que
aliás foi exe cu ta d o e ele não se cansava de e x ib ir. E ra fr e ­
quente re p e tir que as pessoas ainda não tinham reparado no
p ro veito e na utilidade de usar grandes braguilhas; mas que
o tempo iria ensiná-las, pois tudo é inventado na altura própria.
- D eus livre do mal o com panheiro a quem uma grande
braguilha salvou a vida! (dizia) - D eus livre do mal quem já
ganhou cento e sessenta mil e nove escudos com a grande
braguilha! Deus livre do mal quem já impediu, com uma grande
braguilha, que uma cidade inteira m o rresse de fome! E, palavra
minha, em tendo mais vagar hei-de e sc re v e r o livro Do Como­
didade das Grandes Braguilhas.
C o m p ô s, de facto, um belo e volum oso livro ilustrado,
em bora eu não saiba se já foi dado à estam pa.

105 PANTAGRUEL
C A P I T U L O XVI

DOS COSTUMES E DAS MANEIRAS


DE PANURGO

Panurgo era de estatura média, nem muito alto nem muito


baixo, tinha o nariz um tanto aquilino, com o feitio de um
cabo de navalha, e nessa altura a sua idade andaria mais ou
menos pelos trinta e cinco anos; era de uma finura digna de
ser dourada como uma adaga de chumbo, muito elegante
homem na sua pessoa, ainda que um tanto valdevinos e por
natureza dado à doença da qual então se dizia:
dinheiro a menos é dor sem igual1,
- soubesse em bora sessenta e três m aneiras de encontrá-lo
quando lhe fazia falta, sendo a mais honrosa e mais vulgar a
gatunagem furtiva - , m alfeitor, falaz, b eb errão , vadiolas, se
estava em Paris ra to n e iro ,

não obstante o melhor rapaz do mundo2,


e sempre a maquinar alguma contra os beleguins e as pa­
trulhas.
Uma vez reuniu trê s ou quatro bons labregos, e à noite
fê-los beber com o te m p lá rio s; depois levou-os abaixo de
Sainte-G eneviève ou p erto do C olégio de N avarra, e à hora
em que a patrulha subia até ali (o que ele adivinhava pondo
a espada no chão e colando-lhe o ouvido; sentindo-a vib rar,
era sinal infalível de que a patrulha andava p e rto ), a essa hora,

RABELAIS 106
dizíam os, ele e os com panheiros agarraram numa carro ça ,
deram-lhe um em purrão, o que a fez c o rre r com muita veloci­
dade pela descida e deitar abaixo toda a pobre patrulha, com o
se fossem p o rco s; isto feito, fugiram para o lado o posto, pois
em m enos de dois dias de Paris já Panurgo conhecia todas
as ru as, ruelas e trave ssas tão bem com o o seu Deus det 3.
D e outra vez, numa qualquer bela praça onde a referida
patru lh a devia passar espalhou um ra sto de p ó lvo ra de ca­
nhão; quando ela ali chegou largou-lhe fogo e entreteve-se a
ve r a grande graça que m ostrava a fugir, por cuidar que uma
carrada de sarna se lhe tinha pegado às pernas.
A o s po bres m e stre s de filoso fia e le tras, perseguia-os
com o a nenhuns o u tro s. Se encontrasse um na rua, nunca
deixava de lhe causar um prejuízo qualquer: ora largava um
cagalhão no seu b a rre te enfolado, o ra lhe am arrava atrás
pequenos rabos de raposa ou orelhas de lebre, ora lhe fazia
qualquer o u tro mal.
N um dia em que tinham sido convocados a co m p arecer
na Rua Du F o u a rre 4, fez uma to rta de Bourbon com grande
quantidade de alho, galbanum, assa foetidà, castoreum5 e caga­
lhões ainda quentes, ensopou-a em pus de tum ores cancerosos
e, manhã m uito ced o , untou e ungiu com ela to d o o pavi­
m en to , de fo rm a a nem o diabo co n se g u ir ali p a ra r. T o d a
aquela boa gente cham ou pelo gregório em público, com o se
vom itasse as entran has; dez ou doze m o rre ra m de peste,
catorze apanharam lepra, dezoito ficaram gotosos e mais vinte
e sete contraíram sífilis, mas não se ralou com isso. Em geral
trazia um chico te debaixo da roupa e zu rzia sem piedade
quantos pajens encontrasse carregados com vinho dos patrões,
para os fazer andar mais depressa.

107 PANTAGRUEL
Tinha no saio mais de vinte e seis pequenos bolsos e sacos
sem pre cheios:
um deles com um pequeno dado de chum bo e uma pe­
quena faca tão afiada com o a agulha dos p eleiro s, com a qual
cortava as bolsas;
o u tro com agraço, que atirava aos olhos de quem encon­
trasse;
o u tro com bardanas empenachadas com penas de passa­
rinho ou capão, que atirava à roupa e aos bonés das pessoas,
não poucas vezes fazendo com elas fo rm o so s c o rn o s que
eram passeados p o r toda a cidade, quando não po r toda a
vida; e no rabo das m ulheres pendurava-as por cima da capa,
com a form a do m em bro m asculino;
n o utro tinha uma porção de cartuch os cheios de pulgas
e piolhos apanhados nos mendigos de Santo Inocente, e com
bonitos caniços ou penas de e scre ve r soprava-os para os c o r­
petes das meninas mais xaroposas que encontrasse, sobretudo
na igreja; sim , porque na m issa, nas vésperas ou no serm ão
nunca ficava em cima, no co ro , mas na nave entre as m ulheres;
noutro uma grande provisão de anzóis e ganchos que volta
e meia lhe serviam para aparelhar hom ens a m ulheres nos
locais de ajuntam ento, so bretudo as vestidas com fino tafetá
de seda que ficaria todo rasgado quando decidissem p artir;
noutro uma arma provida de espoleta, fósforos, pederneira
e todo o aparelho requerid o;
no utro dois ou trê s espelhos brilhantes, que às vezes s e r­
viam para e n raive ce r hom ens e m ulheres, fazendo-os p erd er
a com postura na igreja; pois, dizia ele, uma femme folie à la
messe e uma femme molle à la fesse 6 só d ife re m p o r um
tro c a d ilh o ;

RABELAIS 108
n o utro tinha uma provisão de fio e agulhas, com a qual
fazia mil pequenas diabruras.
Um a vez, na G ran d e Sala pública do Palácio, ia um fran-
ciscano com eçar a d izer missa aos senhores m agistrados, e
ele foi ajudá-lo a vestir-se e a param entar-se; mas ao ataviá-
-lo coseu-lhe a alva à beca e à cam isa, e re tiro u -se mal os
senhores magistrados se sentaram para a cerim ónia. Na altura
do Ite missa est o pobre frade quis despir a alva, mas agarra­
dos a ela vieram o hábito e a camisa bem cosidos um à outra,
e o frade arregaçou-se até aos om b ro s m ostrando a todos
o calibístris que não era, com certeza, pequeno. E quanto mais
o frade puxava, mais à vela ficava, levando um dos senhores
m agistrados a dizer: « Q u e é lá isto! Este bom padre q uererá
dar-nos de oferenda um beija-cu? Sarnas o fodam !» D esde
então foi o rd enad o que os bons padres não vo ltassem a
despir-se à frente de pessoas e o fizessem na sacristia; so b re ­
tudo o não fizessem na presença de m ulheres, pois era ocasião
de pecado de co b iça. E toda a gente p erguntava p o r que
tinham os tais p ad res co lh õ e s ao d e p e n d u ro ; o re fe rid o
Panurgo resolveu bastante bem o problem a, dizendo:
- T al com o diz De Alliaco nas Suposições7, o que faz tão
grandes as orelhas dos bu rro s é as suas mães não lhes enfia­
rem toucas na cabeça. D e igual form a, o que molda o colhão
dos pobres beatos destes padres é não usarem calças de fun­
dilhos e o pobre m em bro poder esticar-se em liberdade, à
rédea solta, e bim balhar assim nos seus joelhos com o os t e r ­
ços das m u lh e re s8. E a razão de terem grossura a condizer,
é esse bam boleio fazer d escer ao dito m em bro os hum ores
do co rp o ; porque lá dizem os legistas: agitação e m ovim ento
contínuo são m otivo de atracção.

109 PANTAGRUEL
Item, tinha o u tro bolso cheio de cristais de alúmen de
pluma9 para atirar às costas das mulheres que via mais em proa­
das, e algumas fazia despir à frente de todos, o utras dançar
co m o galinhas na brasa ou b e rlin d e s num ta m b o r, o u tra s
c o rre r pelas ruas; e atrás c o rria ele para pôr pelas costas das
que se despiam a sua pró p ria capa, com o homem co rtê s e
de boas m aneiras.
Item, n o u tro tinha um pequeno frasco cheio de azeite
velho, e quando encontrava m ulher ou homem vestido com
boa roupa engordurava-lhe e sujava-lhe os m elhores lugares,
fazendo de conta que só queria to c a r neles para dizer: «Mas
que belo tecido, mas que belo cetim , que bom tafetá, senhora;
co n ced a-vo s D eu s o que o vo sso no b re c o ra çã o deseja!
Tendes vestido novo, que um novo amigo é; D eus vo-lo con­
se rv e !» E dizendo isto punha a mão no co rpete e a maldita
nódoa po r lá ficava, perpétua, tão profundam ente gravada na
alma, na fama a na fachada, que nem o diabo a tirava; depois,
para te rm in a r dizia: «C uidai agora de não cair, senhora, pois
à vossa frente tendes uma grande cova bem suja.»
Tinh a o u tro com pletam ente cheio de eufórbio m uito sub­
tilm ente pulverizado, e metia-lhe dentro um belo e bem b o r­
dado lenço que tinha roubado à form osa vendedeira de roupas
do Palácio sob o p re te xto de lhe tira r um piolho do seio,
piolho que ele p ró p rio lá tinha deixado; e ao enco n trar-se
na presen ça de umas quantas sen h o ras de boa educação ,
trazia à baila o tem a da roupa, punha-lhes a mão no seio e
perguntava: «E lavor da Flandres ou de Hainaut?» E depois
rapava do seu p ró p rio lenço, dizendo: «V ed e, vede este, que
é lavo r de Fodignan ou da Fodarábia», e com toda a fo rça o
sacudia à frente dos narizes, fazendo-as e sp irra r quatro horas

RABELAIS 1 1O
a fio. E porque ao m esm o tem po se peidava com o um ro cim ,
as m ulheres desatavam a r ir e a perguntar:
- O quê! Estais a peidar-vos, Panurgo?
- N em por som bras, senhora (dizia ele); dou acordes de
contrapo nto à música que tocais pelo nariz.
N o u tro um boticão, uma pinça, um gancho e utensílios
vários, e com eles não havia porta ou cofre que lhe resistisse.
O u tro com pletam ente cheio de copos de prestidigitador
que ele manejava com muita arte , pois o u tro ra impingira o
conto do vigário e os seus dedos, com o os de M inerva ou
A rac n e , sabiam servir-lh e m uito bem a mão. E quando t r o ­
cava um tostão ou o utra moeda qualquer, o cam bista tinha
de m o strar-se mais fino do que um alho, pois de o u tro modo
Panurgo faria mão-baixa a cinco ou seis grandes moedas de
prata, e isto sem pre à vista, às claras, à descarada, sem causar
ferida nem mossa, sem o cam bista se n tir mais do que um
vento a passar.

1i i PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XVII

COMO PANURGO GANHAVA


AS INDULGÊNCIAS E CASAVA AS VELHAS,
E DOS PROCESSOS QUE TEVE EM PARIS

Um d ia en contrei Panurgo um tanto p erturbado e tacitu rn o ;


desconfiando que estivesse sem cheta fui levado a dizer-lhe:
- Pelo que vejo na vossa fisionomia estais doente, Panurgo,
e percebo de que mal: tendes diarreia de bolsa; mas não vos ;
inquieteis, pois ainda me restam seis soldos e picos que nunca
viram pai nem mãe, e mais falta não fazem à vo ssa penúria
do que a sífilis.
A o que ele me respondeu:
- M erda para o dinheiro! Pois qualquer dia vou tê-lo de
mais. Possuo uma pedra filosofal que atrai o dinheiro das bol­
sas com o um íman atrai o fe rro . Q u e re is v ir ganhar as indul­
gências? (perguntou)
- Eh! (respondi) - Palavra minha que não sou para grandes
indulgências neste m undo; nem sei se vou sê-lo no o u tro .
Bom ! V am os lá, santo D eu s! Só p o r um d e n á rio , nem mais
nem m enos.
- Mas então (disse ele) em prestai-m e um denário a ju ro s.
- Isso não, isso não (resp o nd i). - D e boa vontade vo-lo
dou.
- Grate vobis, Dominus - disse ele.
E lá fom os nós, com eçando p o r São G e rvá sio , em bora a

RABELAIS 1 12
prim eira caixa de esm olas bastasse para eu ganhar as indul­
gências, pois com pouco me contento em tal m atéria; depois
fui dizer os meus sufrágios e as minhas orações a Santa Brígida.
Ele, p o ré m , ganhou em todas as caixas e não houve ve n d e ­
dora de indulgências a quem não desse dinheiro.
D e lá passám os à N ossa Senhora de Paris, a São João, a
Santo A n tó n io e po r aí fo ra, a o utras igrejas onde houvesse
banca de indulgências. Se por aquilo que me toca nada mais
ganhei, em todas as caixas ele beijou as relíquias e em todas
o ferto u. Para re su m ir, quando regressám os deu-me de beber
na taberna do C a ste lo e m o strou -m e dez ou doze bolsos
cheios de d in h e iro . Q u an d o tal v i, fiz o sin al-d a-cru z e p e r­
guntei:
- C o m o vos enchestes de dinheiro em tão pouco tempo?
Respond eu-m e que o tinha tira d o dos p rato s das indul­
gências:
- Porque fui tão hábil a dar-lhes o prim eiro denário (e xp li­
cou), que até parecia uma grande moeda de prata; e com
uma mão logo tom ei doze denários, ou m esm o doze quar­
tos ou dobrados, e com a o utra vinte e sete ou trin ta e seis
réis; isto assim , em quantas igrejas estivem os.
- Pois sim (disse eu) mas além de ficardes danado com o
uma cobra, sois larápio e sacrílego.
- Muito bem, seja com o vos parece (respondeu), em bora
a mim me não pareça porque as vendedoras de indulgências
dizem -m e Centuplum accipies quando dão as relíq u ias a b ei­
ja r, ad m itin d o que a um d e n á rio dado eu re ceb a cem . Isto
porque é dito accipies à m aneira dos H eb reu s, que usam o
futuro em vez do im perativo, tal com o o encontrais na lei:
Diliges Dominum e dilige. A ssim , quando a ve n d e d o ra de

1 13 PANTAGRUEL
indulgências me diz Centuplum accipies quer d izer Centuplum
accipie1, tal com o explicam o rabino K im y e o rabino Aben
Ezra, todos os m assoretas e ibi Bartolus. A lém disso, o papa
Sixto deu-me quinhentas libras de renda sobre o seu dom ínio
e o seu te so u ro eclesiástico por eu lhe te r curado um tu m o r
canceroso que o atorm entava e o fazia imaginar-se co xo para
toda a vida. Po r isso me pago com as minhas próprias mãos,
que mais seguro é, e à conta desse tal te so u ro eclesiástico.
« Ó meu amigo (dizia e le ), se soubesses com o enchi a
burra à custa da cru za d a 2, ficarias espantado. Mais de seis
mil flo rins me rendeu.»
- E para onde diabo os mandaste? (perguntei) - Pois não
tens cheta.
- Para o sítio de onde tinham vindo (disse ele). - Mais
não fizeram que m udar de dono. N o entanto, trê s mil bem
contados em preguei eu a casar; não raparigas, pois essas até
encontram m aridos de mais, mas grandes velhas sem piternas
já sem dentes na fronha, porque pensei: «São m ulherzinhas
que em pregaram m uito bem o tem po da sua juventude, e de
cu alçado brincaram à trancada com quantos apareciam , ten­
do-o feito até ao m om ento de já ninguém as q u erer. D eus
me dane se não vou fazê-las dar mais uma cam balhota antes
de m o rre re m !» E deste modo oferecia a uma cem , a o utra
cento e vinte, a o utra tre ze n to s flo rin s, conform e o grau da
sua infâm ia, da sua re p e lê n cia e da sua abom inação; pois
quanto mais h o rríve is e exe crá ve is, mais havia que se lhes
dar; de o utra form a nem o diabo teria querido m eter-lhes o
dente. Eu pró p rio ia direito a um qualquer pindérico avan­
tajado e gordo, e concertava o casam ento. Mas antes de m os­
tra r as velhas m ostrava os escudos, dizendo: «C o m p ad re, isto

RABELAIS 1 14
será teu se quiseres dar uma boa trancam ocada.» E os pobres-
-diabos logo se aluavam com o velhos m ulos. Po r isso m esm o
um bom banquete eu lhes mandava p rep arar e fazia-os beber
do m elh or, tudo com m uito condim ento para pôr as velhas
quentes e com cio. A o fim e ao cabo davam-se à faina com o
qualquer outra boa alma, e às horrivelm ente feias e escalavradas
apenas se lhes tinha que enfiar um saco na cabeça. N ão bas­
tando, m uito perdi em pro cesso s.
- Mas que p ro cesso s te podiam levantar? - perguntei. -
N ão tens te rra nem casa.
- Meu amigo (disse ele), por instigação do diabo do inferno,
as meninas desta cidade tinham com eçado a usar uma espécie
de co rp etes ou cachecóis subidos que m uito bem escondiam
os seios, ao ponto de não se poder m eter a mão lá dentro
porque tinham a abertura atrás e eram com pletam ente fecha­
dos à frente, o que não agradava aos pobres amantes dolentes
e contem plativos. Num a bela terça-feira apresentei ao Tribunal
uma demanda co ntra as ditas meninas expondo os grandes
p re ju ízo s que daí me ad viriam pois am eacei, pela m esm a
ordem de ideias, m andar co se r a braguilha das calças no tra ­
seiro se o T rib un al não m etesse as coisas na ordem . P o r fim
as meninas fo rm aram um sindicato, m o straram os seus fun­
dam entos e passaram pro curação para defesa da causa; mas
persegui-as sem quartel, ao ponto de o T rib un al dar p o r sen­
tença que os tais subidos cachecóis só voltariam a ser usados
se um pouco rachados à frente. O ra isto muito caro me ficou.
« T iv e o u tro p ro ce sso bem p o rco e bem sujo c o n tra o
m e stre Fify e os seus apaniguados, para nunca mais p re c i­
sarem de ler à noite e às escondidas 0 Cachimbo de Bussart
e o Quarto das Sentenças, e fazerem -no em pleno dia, nas

1 15 PANTAGRUEL
escolas da rua Du Fo uarre e perante os demais sofistas; neste
fui condenado em custo s, devido a uma qualquer form alidade
do re la tó rio do oficial de justiça.
« D e o utra vez apresentei queixa ao Trib u n al co n tra as
mulas dos presidentes, conselheiros e o utros, tendo por objec-
tivo garantir que as conselheiras fizessem fo rm o so s babeiros
e a sua baba deixasse de sujar o pavimento quando as pusessem
a rilh ar feno no pátio in te rio r do Palácio da Justiça, e os pajens
do Palácio pudessem jogar aos dados e ao deus-te-arrenego
à vo n ta d e , sem rasg ar os jo e lh o s das calças. N e sta o b tive
sentença favorável, mas bem cara me ficou.
«Som ai ainda quanto me custam os pequenos banquetes
que d ia ria m e n te dou ao s p aje n s do P a lá c io da J u s t iç a .»
- E com que fim? - perguntei.
- Meu amigo (disse ele), tu não tens nenhum passatem po
neste mundo. Mas eu tenho-os mais do que o rei. Se quiseres
juntar-te a mim, pintarem os a manta.
- P o r Santo A d a u ra s 3 que não, que não! (re sp o n d i) -
Porque ainda iríeis se r enforcado.
- E tu (disse ele) qualquer dia ainda vais se r en terrad o .
O que m ais h o n ro so é, o a r ou a te rra ? Ó grande p é co ra !
N ão foi Jesus C ris to m o rto no ar?
«Enquanto os pajens estão no banquete, fico eu a guardar
as suas mulas e c o rto a uma delas os lo ro s aos estribos do
lado do m ontador, de form a a ficarem presos po r um fio.
Q uando o em proado do co nselheiro ou o u tro qualquer der
o im pulso para m o ntar, cairá com o o mais reles dos p o rco s
à fren te de toda a gente e prestar-se-á ao riso por pouco
mais de cem francos. Mas quem mais ri sou eu porque, em
chegando a casa, mandam aç o ita r sua e xce lên cia o pajem

RABELAIS I 16
com o a centeio verd e. Po r isso não me queixo nada do custo
de tais banquetes.»
Feitas as contas, tinha sessenta e trê s m aneiras de a rra n ­
jar dinheiro (com o eu disse atrás), mas duzentas e cato rze
de gastá-lo; isto para não falarm os do furo abaixo do nariz,
que ele tinha de sustentar.

1 17 PANTAGRUEL
C A P I T U L O XVIII

COMO UM GRANDE LETRADO


DA INGLATERRA QUERIA CONTRADITAR
PANTAGRUEL E FOI VENCIDO
POR PANURGO

Po r e sses m esm os dias, um hom em sábio cham ado Thau-


m a sto 1 ouviu falar da sensação e do renom e ligados ao saber
incom parável de Pantagruel, e veio do país de Inglaterra com
a intenção única de o v e r e co nh ecer, e de ve rificar se tinha
sab er que c o rre sp o n d e sse à fama. D e ste m odo, chegado a
Paris deslocou-se até à m orada do referid o Pantagruel, que
estava instalado na residência São D inis e na altura passeava
com Panurgo no ja rd im , filo so fan d o à m aneira dos peri-
p atético s2. A s p rim eiras im pressões, vendo-o tão grande e
gordo todo se arrep iou com medo, mas depois cum prim en­
tou-o de aco rdo com o uso, dizendo com delicados m odos:
- E bem verdade, afirm a Platão, príncipe dos filósofos,
que a imagem da ciência e do saber incitaria toda a gente a
adm irá-la se fosse co rp ó re a e visível aos olhares hum anos.
Pois basta o seu ruído, espalhado no ar, ser retido pela orelha
de estudiosos e adm iradores seus, cham ados filósofos, para
os não d eixar do rm ir nem descansar à vontade, de tal a form a
os estim ula e ardoro sam ente incita a c o rre r até lá para v e r
a pessoa onde a ciência, ao que se diz, fundou o seu tem plo
e dita os seus oráculo s.
« Isto m esm o fo i-no s cab alm ente d e m o n stra d o com a

RABELAIS 1 18
rainha do Sabá, que veio dos confins do O rie n te e do Mar
Pérsico para v e r a ordem da casa do sábio Salomão e ouvir-
-Ihe o saber;
«com A n a c h a rsis, que foi da C ítia até A te n a s para v e r
Sólon;
«com Pitág oras, que visito u os v a ticin ad o re s de M ênfis;
«com Platão, que visitou os magos do Egipto e A rq uitas
de T a re n to ;
«com A poló nio de Tiana, que foi até ao m onte C áucaso ,
passou pelos C ita s, pelos Massagetas, pelos Indianos, nave­
gou o grande rio F íso n 3 até aos Brâm anes para v e r H iarcas,
e pela Babilónia, Caldeia, Média, A ssíria , Pártia, Síria, Fenícia,
A rábia, Palestina, A le xan d ria até à Etiópia para v e r os gimno-
-so fistas4.
«Igual exem plo tem os em T ito Lívio, quando vário s estu ­
diosos dos te rritó rio s lim ítrofes da França e da Espanha vieram
a Rom a para o v e r e o o uvir.
«N ão ouso incluir-m e no núm ero e na estirpe desta gente
tão perfeita, mas desejo m uito que estudioso e am ador me
cham em , não só de letras mas pessoas letradas.
«E assim , quando ouvi o ru m o r do teu saber tão inesti­
m ável, abandonei país, família e casa para me d eslo car até
aqui sem q u e re r saber da exten são do cam inho, do tédio do
m ar, da novidade das regiões, só para te v e r e c o n fe rir co n ­
tigo algumas passagens da filosofia, da geomância e da cabala
sobre as quais tenho dúvidas e que não conseguem contentar-
-me o espírito; se puderes dar-lhes solução, eu e toda a minha
posteridade nos farem os desde já teus escravos porque outra
dádiva não tenho que me pareça bastante para tua re c o m ­
pensa.

1 19 PANTAGRUEL
«Vou redigi-las p o r e sc rito e amanhã dá-las-ei a co n h ecer
a quantos sábios ho uver na cidade para nos entregarm os, à
frente deles e publicam ente, à discussão.
«Mas aqui tendes a form a com o entendo que vam os dis­
c u tir: não desejo d iscu tir pro et contra, com o fazem os tolos
dos sofistas nesta cidade e no utros lugares; de igual modo
não quero discu tir p o r declam ação, à m aneira dos académ i­
cos, e tam bém não por núm eros, com o fazia Pitágoras e Pic
de la M irandola quis fazer em Rom a; quero , sim , d iscu tir só
com sinais, sem falar, pois tão espinhosas são as m atérias que
palavras hum anas não b astariam para e xp lic á -la s à m inha
vo ntade.
« P o r isso a T u a Magnificência sentirá agrado em lá estar.
E vai s e r na g ra n d e sala de N a v a r r a , às s e te da m a n h ã .»
C o n c lu íd a s e stas p ala v ra s, d isse-lh e re sp e ito s a m e n te
Pantagruel:
- Senhor, das graças que Deus me deu não desejarei negar
a ninguém que as partilho quanto puder, pois dele nos chega
todo o bem e é seu p razer m ultiplicá-lo quando nos encon­
tram os en tre pessoas dignas e com idoneidade para re ceb e r
esse maná celeste que o honesto saber é, e entre as quais
ocupas, com o já bem re co n h eço , o p rim e iro lugar; com u­
nico-te que a qualquer hora irás achar-m e p ro nto a re to rq u ir
so bre cada uma das tuas p etiçõ es, segundo o meu ínfimo
poder e apesar de eu te r mais que ap ren der de ti do que tu
de mim; mas, tal com o pro p useste, irem os c o n fe rir conjun­
tam ente as tuas dúvidas e p ro curar-lhes solução até ao fundo
do inesgotável poço onde está, dizia H e ráclito , escondida a
verdade.
«E louvo fo rtem ente o modo de c o n tra d ita r que pro pu­

RABELAIS 120
seste, a saber: por sinais, sem falar; porque, se tal fizerm os
tu e eu havem os de entender-nos e se r alheios às palmas que
os papalvos dos sofistas dão quando alguém que contradita
está no m elhor do argum ento.
« O ra , não deixarei amanhã de estar no local à hora que
indicaste, em bora te peça que en tre nós não haja debate nem
tum ulto, nem se p ro cu re honra ou aplauso dos hom ens, e
haja apenas a verdade.»
A o que Thaum asto respondeu:
- D eus te co n serve em Sua graça, senho r, e agradeço o
que a T u a A lta Magnificência ho u ver p o r bem co n ce d e r à
insig n ificân cia que eu so u. A d e u s, p o rta n to , e até am anhã.
- Adeus - disse Pantagruel.
V ó s, senho res, que ledes esta narrativa, não penseis que
alguma vez tenha havido pessoas mais elevadas e arrebatadas
em pensam ento do que Thaum asto e Pantagruel p o r toda
essa noite, pois o referid o Thaum asto disse ao p o rte iro do
H o tel de C lu n y, onde estava hospedado, que em toda a sua
vida não houvera noite tão perturbada.
- Tenho a sensação de que Pantagruel me fila pelo pescoço
(d izia). - Fazei-m e o favo r de o rd e n ar que nos sirvam de
beber, e providenciai que nos não falte água fresca para eu
gargarejar o palato.
Pelo seu lado, Pantagruel entrou em altos voos e toda a
noite mais não fez que divagar com :
o livro de Beda, De Numeris et Signis;
o livro de Plotino, De Inenarrabilibus;
o livro de P ro clo , De Magia ;
os livros de A rte m id o ro , Peri Onirocriticôn;
de A naxágoras, Peri Semiôn;

121 PANTAGRUEL
de Inário, Peri Aphatôn;
os livros de Filistião;
o Peri Anecphonetôn, de H ip p ó n ax5
e um a p o rç ã o de o u tr o s , ao p o n to de P anurgo lhe d iz e r:
- S e n h o r, abandonai to d o s esses p en sam en to s. Ide-vos
deitar porque vos pressinto em ocionado de espírito ao ponto
de serdes capaz de apanhar, não tarda, uma qualquer febre
benigna po r excesso de pensam ento. P rim eiro bebei vinte e
cinco ou trin ta vezes bem contadas, mas depois retirai-vo s
e dorm i à vontade porque de manhã darei resposta e argu­
m entarei co ntra o sen h o r inglês; no caso de o não d e ixa r ad
metam non loqui6, dizei mal de mim.
- Pois sim, amigo Panurgo (respondeu Pantagruel), mas ele
é m aravilho sam ente sábio. C o m o poderás tu contentá-lo?
- É m uito fácil - disse Panurgo. - N ão faleis mais, peço-
-vos, e deixai-m e p ro ced er. H averá homem tão sábio com o
os diabos?
- R e alm e n te não (d isse P a n tag ru e l), sem graça divina
especial.
- E no entanto (disse Panurgo) m uita vez os contradisse,
deixei em batucados e caídos de cu. Podeis, p o rtanto, estar
c e rto de que amanhã farei o glorioso inglês cagar vinagre à
frente de todos.
V is to isso , P anurgo p assou a n o ite a e m b o rra c h a r- s e
com os pajens, a jogar ao primus et secondus e à verguinha
com todos os atilhos das ca lç a s7. Mal chegou a hora m ar­
cada, conduziu o seu m estre Pantagruel ao local escolhido e,
acreditai sem pestanejar, não houve grande nem pequeno de
Paris que lá não estivesse, a pensar:
- O diabo do Pantagruel, que convenceu toda a arraia-

RABELAIS 122
-miúda manhosa dos sofistas, vai te r agora m uito que co ntar
porque este inglês tam bém é duro de ro e r. V erem o s quem
ganha.
Já estava reunida toda a gente e Th au m asto à esp era;
quando Pantagruel e Panurgo chegaram à sala, todos aqueles
saloios, estudantes de filosofia e letras e in trantes8 com eçaram
a b ater palm as, tal com o é seu p acóvio co stu m e. P o ré m ,
Pantagruel m uito alto lhes gritou, com o se fora o tro a r de
um canhão de duas bocas, para dizer:
- Calm a, que diabo! Calm a! Raios vos partam , velhacos!
Se lambança aqui fizerdes, a todos co rta re i a cabeça!
Tais palavras fizeram -nos ficar tão espantados com o patas,
e nem a to ssir se atreveriam , m esm o que tivessem com ido
quinze libras de penas; só esta voz tanta sede lhes deu, que
punham meio pé de língua fora da goela, com o se Pantagruel
tivesse m etido as suas gargantas em salm oura.
Panurgo com eçou então a falar, e disse ao inglês:
- Senhor, estás aqui para discu tir e debater as questões
que levantaste, ou apren der e saber a sua verdade?
Tendo -lhe respondido Thaum asto:
- S e n h o r, o u tra co isa aqui me não tra z além do bom
desejo de apren der e saber o que toda a vida pus em dúvida
sem e n co n tra r livro ou homem capaz de me co n ten tar com
a resolução das dúvidas que levantei. E quanto a discu tir por
debate, não quero fazê-lo: com o é coisa excessivam ente vil,
deixo-a aos papalvos dos sofistas que ao discu tir não p ro cu ­
ram a verdade mas contradição e debate.
- V isto isso (disse Panurgo), com o sou pequeno discípulo
do meu m estre senho r Pantagruel, no caso de eu te satis­
fa ze r e c o n te n ta r em tudo e p o r tu d o , co isa indigna se ria

123 PANTAGRUEL
incom odá-lo. Mais valerá, portanto, que ele se m antenha em
cátedra julgando o que disserm os e além do mais te satisfaça
caso pareça que não mitiguei o teu estudioso desejo.
- Realm ente (disse Thaum asto) é m uito bem dito.
- C o m eça então.
D esde já notai que Panurgo pôs na ponta da sua grande
braguilha um belo tufo de seda verm elha, branca, verd e e
azul, e dentro dela guardava uma fo rm o sa laran ja9.
C A P I T U L O XIX

COMO PANURGO EMBATUCOU O INGLÊS


QUE CONTRADITAVA POR SINAIS

Po r c o n s e g u in t e , com todos a assistirem e a escutarem num


grande silêncio, o inglês levantou as mãos m uito alto, uma
de cada vez, juntando a ponta de todos os dedos daquele
modo que se chama, em galhofês, cu-de-galinha, e bateu-as
quatro vezes, unhas co n tra unhas; depois abriu-as e assim ,
esticadas, bateu-as palma co n tra palma com um som e s tri­
dente. Logo depois voltou a juntá-las com o acim a se disse,
bateu-as duas vezes e logo quatro, abrindo-as; a seguir pô-
-las juntas e estendidas uma co n tra a o u tra, com o se o rasse
devotam ente a D eus.
Panurgo levantou de repente a mão direita, a seguir meteu
o polegar dentro da narina desse m esm o lado, m antendo os
quatro dedos esticados e unidos pela ordem norm al numa
linha paralela à cana do nariz, fechando p o r com pleto o olho
esquerdo e visando, mediante um forte abaixamento de sobran­
celha e pálpebra, com o d ireito ; depois levantou a esquerda
bem a lto , ap e rta n d o os q u a tro dedos m u ito esp e tad o s e
erguendo o polegar, mantendo-a na mesm a linha que a palma
direita, as duas afastadas um côvado e m eio. Isto feito, baixou
de igual modo uma e o utra mãos até ao pavim ento e p o r fim
juntou-as ao meio, com o se fizesse pontaria ao nariz do inglês.
- E se M ercú rio ... - disse o inglês.

125 PANTAGRUEL
Mas logo o interro m p eu Panurgo, dizendo:
- Falaste, m áscara!
N essa altura o inglês com pôs este sinal: levantou m uito
a mão esquerda bem aberta, fechou os quatro dedos com o
um punho e assentou na ponta do nariz o polegar espetado.
Logo a seguir ergueu a mão direita toda aberta, e toda aberta
a baixou para levar o polegar ao sítio onde o dedo mindinho
esquerdo dobrava, e lentamente mexeu no ar os quatro dedos;
depois procedeu ao c o n trá rio , fazendo com a direita o que
fizera com a esquerda, e com a esquerda o que fizera com
a direita.
Nada espantado, Panurgo puxou e levantou com a esquerda
a braguilha trim e g ista1, e com a direita e xtraiu do in te rio r
um pedaço de osso de costela de vaca e duas peças de madeira
iguais, uma de ébano p reto , a o utra de pau-brasil encarnado,
e pondo-as a bater sim etricam ente entre os dedos da mão
fazia o som dos leprosos da Bretanha com as suas castanho­
la s2, em bora mais so n o ro e harm onioso, e com a língua con­
traída na boca cantarolou brejeiram ente sem tira r os olhos
do inglês.
C o m este sinal, os teólogos, os m édicos e os cirurgiõ es
concluíram que ele chamava lázaro ao inglês.
O s co n se lh e iro s, os legistas e os d ecretistas pensaram
porém que ao fazer isto ele queria afirm ar que toda a espé­
cie de felicidade humana é um estado lep ro so, com o o u tro ra
foi dito pelo Senhor.
Mas o inglês não se assustou e, erguendo alto as duas
mãos, com pô-las de form a a jun tar os trê s dedos m aiores
em punho fechado, e passou os polegares e n tre os dedos
indicador e médio enquanto os mindinhos se mantinham muito

RABELAIS 126
espetado s; e assim os ap resen to u a Panurgo, juntando-os
depois de form a a que o polegar direito tocasse no esquerdo
e o m indinho esquerdo tocasse no d ireito .
N essa altura Panurgo levantou as mãos, sem dizer palavra,
e fez o seguinte sinal: com a mão esquerda juntou a unha do
in d icad o r à unha do polegar, fazendo com o que uma argola
no espaço que elas form avam , e com a mão direita uniu em
punho fechado todos os dedos menos o indicador, que suces­
sivas vezes meteu e tiro u en tre os dois já referid o s dedos
da mão esquerda. A seguir, espetou os dedos indicador e médio
da mão direita, afastando-os o mais que podia, e voltou-os
para Thaum asto. D epo is, levou o polegar da mão esquerda
ao canto interio r do olho esquerdo, estendendo por com pleto
a mão com o uma asa de pássaro ou espinha de peixe e dando-
-Ihe m uito graciosos m ovim entos para cá e para lá; o m esm o
e xe cu to u com a d ire ita no canto in te rio r do o lho d ire ito .
Thaum asto com eçou a ficar pálido, a tre m e r, e fez-lhe o
seguinte sinal: com o dedo m édio da mão direita bateu no
m úsculo da palma situado na base do polegar, depois meteu
o indicador da direita na argola co rresp o n d en te da esquerda
mas por baixo e não por cima, com o Panurgo fizera.
Panurgo bateu com as mãos uma na o utra e soprou nas
palmas. Feito isto, voltou a enfiar o dedo indicador da direita
na argola da esquerda, m etendo-o e tirando-o diversas vezes.
Depois espetou o queixo e olhou atentamente para Thaumasto.
A p esar de a assistência nada p erceb er destes sinais, com ­
preendeu que ele perguntava sem p alavras a T h a u m a sto :
- Q u e pretendeis dizer com isso?
R ealm ente, Thaum asto com eçava a suar em bica e dava
a im pressão de um homem arrebatado pelo m aior dos êxtases.

127 PANTAGRUEL
D epois caiu em si e encostou todas as unhas da esquerda às
da direita, abrindo os dedos com o se fossem sem icírcu lo s, e
com este sinal levantou as mãos o mais alto possível.
Vendo isto, Panurgo pôs im ediatam ente o polegar da mão
d ire ita p o r b aixo do m a xila r, o dedo m indinho da m esm a
mão na argola da esquerda, e com eçou a bater os dentes de
baixo co n tra os de cima de bem m elodiosa form a.
Thaum asto levantou-se com um grande ahã e ao m esm o
tem po deu um grande peido de padeiro, desses que trazem
m erda atrás de si; e bem fo rte vinagre m ijou, desatando a
c h e irar mal com o todos os diabos. O s assistentes com eçaram
a tapar o nariz porque todo ele se borrava de angústia. Depois
levantou a mão direita, fechando-a de form a a unir a ponta
de todos os dedos, e quanto à mão esquerda assentou-a em
cheio no peito.
N essa altura Panurgo puxou a grande braguilha pela borla
e esticou-a côvado e m eio, conservando-a levantada com a
mão esquerda, com a direita apanhou a laranja e sete vezes
a jogou ao ar ocultando-a à oitava vez na mão direita e co n ­
servando-a imóvel no punho erguido; depois desatou a sacudir
a bela braguilha, m ostrando-a a Thaum asto.
Logo a seguir, Thaum asto com eçou a inchar as duas boche­
chas com o um to cad o r de gaita-de-foles, e a so p rar com o se
estivesse a ench er uma bexiga de p orco.
N essa altura Panurgo pôs um dedo da mão esquerda no
olho do cu e com a boca aspirou o a r com o se com esse
o stras na concha ou so rvesse a sopa; isto feito, abriu ligeira­
mente a boca e bateu-lhe com a palma da mão direita soltando
dezasseis vezes um som fo rte e profundo, igual ao que sobe
da superfície do diafragma pela traqu eia-artéria.

RABELAIS 128
Thaum asto, porém , continuava a so p rar com o um ganso.
Panurgo pôs o dedo indicador da mão direita na boca,
apertando-o muito fo rtem ente com os seus m úsculos. Depois
tiro u -o , e ao fazê-lo soltou nove vezes aquele som alto dos
m e n in o s que a tira m b e lo s rá b a n o s co m um c a n h ã o de
sabugueiro.
N essa altura Thaum asto exclam ou:
- A h , senho res, o grande segredo! Ele levou a mão ao
c o to v e lo 3.
E desem bainhou um punhal que trazia consigo, m anten­
do-o com a ponta voltada para baixo.
Perante isto, Panurgo deitou a mão à grande braguilha e
sacudiu-a o mais que pôde co ntra as co xas; depois levou à
cabeça as duas mãos unidas em form a de pente, pôs de fora
quanta língua podia e revirou os olhos com o uma cabra agoni­
zante.
- A h , já p e rce b o - disse T h a u m a sto - mas de que vale?
E fez o seguinte: encostou o cabo do punhal ao peito e
assentou a sua ponta na palma da mão enquanto rem exia um
pouco a extrem idade dos dedos.
C o m o resposta Panurgo inclinou a cabeça para a esquerda
e pôs o dedo médio na orelha direita, com o polegar espetado
para cim a. D epois cruzou ambos os braços no peito, tossiu
cinco vezes e à quinta bateu com o pé direito no chão. Depois
levantou o braço esquerdo, fechou os dedos em punho, apoiou
o polegar na te sta e bateu seis vezes no peito com a mão
direita.
N o entanto, com o se não tivesse ficado contente, T h a u ­
m asto pôs na ponta do nariz o polegar esquerdo e fechou o
re sto da mão.

129 PANTAGRUEL
Panurgo, esse, levou os dois dedos médios a cada um dos
cantos da boca, abrindo-a o mais que podia e pondo à m ostra
todos os dentes, com os dois polegares baixou ao m áxim o
as pálpebras inferiores e fez, segundo pareceu aos assistentes,
uma careta bastante feia.

RABELAIS 1 3 0
C A P Í T U L O XX

COMO THAUMASTO REFERE AS VIRTUDES


E O SABER DE PANURGO

T haumasto levantou-se e, tirando o b arrete da cabeça, em


voz baixa agradeceu ao referid o Panurgo; mas depois disse
em voz alta a toda a assistência:
- Senhores, neste m om ento bem posso cita r a palavra
evangélica: Et ecce plus quam Salomon hic1. Ten d es na vossa
presença um te so u ro incom parável: é o senho r Pantagruel,
cuja nomeada aqui me atraiu desde os confins da Inglaterra
para conferir com ele problemas insolúveis que no meu espírito
houvesse, tanto de magia, alquimia, cabala, geomância e a s tro ­
logia com o de filo so fia. Mas agasto-m e agora c o n tra essa
nomeada, que me parece m esquinha por não d e ixa r tra n s­
p arecer a m ilésim a parte do que ele realm ente é.
«V istes com o bastou o seu discípulo para me co ntentar,
mais me dizendo do que eu lhe pedia; ainda p o r cima me
levantou, e ao m esm o tem po re so lve u , o u tras dúvidas de
inestim ável im portância. Posso pois garantir que me abriu o
v e rd a d e iro po ço e o abism o da en ciclo p éd ia, m esm o em
matéria onde eu não pensava que existisse um homem sabedor
dos seus triviais elem entos; isto quando discutim os por sinais,
sem palavras nem m eias palavras. Mas agora vou p ô r por
e sc rito o que dissem os e reso lvem o s, não vá pensar-se que
era tudo brincadeira, e fá-lo-ei im p rim ir para cada um de vós

13 1 PANTAGRUEL
poder apren der com o eu aprendi; daí podereis julgar o que
me te ria dito o m e stre , se o d iscíp ulo tal p ro eza fez, pois
Non est discipulus super magistrum1.
«Seja com o fo r louve-se a D eus, e m uito hum ildem ente
agradeço a honra que me destes em tal acto; Deus vo-la re tri­
bua eternam ente.»
Idênticas acções de graças Pantagruel dirigiu a toda a assis­
tência, e ao sair convidou Thaum asto para jantar com ele;
acreditai que beberam até reb entar os botões do ve n tre -
pois nesse tem po abotoavam -se os ven tres com o os coletes
de agora - e não saberem «de que te rra eram ».
Senhora nossa! C o m o davam ao garrafão de co u ro ! E que
f a r t a r de g a rra fa s , e c o m o to c a v a m c o r n e tim co m e la s!
- V ira!
- To m a!
- Mais vinho, ó pajem!
- Bota, com seiscentos diabos, bota!
Ninguém bebeu menos de vinte e cinco ou trinta almudes,
e sabeis com o? Sicut terra sine aqua 3, pois fazia calo r e ainda
mais sede sentiam .
Q uanto à explicação dos problem as levantados por T h a u ­
masto e ao significado dos sinais que usaram na disputa, deve­
ria eu dá-los pela acta do que eles p ró p rio s e xp u se ra m ;
disseram -m e, no entanto, que Thaum asto fez disso um grande
liv ro im p re sso em L o n d re s, onde declara tudo sem nada
esquecer. P o r isso me abstenho, de m om ento.

RABELAIS 132
C A P I T U L O XXI

COMO PANURGO SE ENAMOROU


DE UMA GRANDE SENHORA DE PARIS

Panurgo com eçou a te r fama na cidade de Paris p o r causa


da discussão que m anteve com o inglês, e desde então pôs
a braguilha m uito em evidência mandando-a m osquear com
bordados à rom ana. E as pessoas elogiavam -no em público,
a seu respeito foi feita uma canção que as crianças da rua
cantavam , era bem aparecido na roda de todas as damas e
donzelas, e por isso se torn ou tão presunçoso que decidiu
ganhar a partida com uma grande senhora da cidade.
E um dia, pondo de parte uma porção de longos p ró lo ­
gos e pro testo s que estes dolentes contem plativos, ap aixo ­
nados da Q uaresm a, incapazes de to car em carne, geralm ente
fazem , disse-lhe:
- Minha senhora, m uitíssim o útil seria a toda a república,
a vós agradável, conveniente à vossa linhagem e a mim neces­
sário , que fôsseis cob erta pela minha raça; e acreditai no que
vos digo, pois a exp eriên cia boas provas vos dará.
A tais palavras, para mais de cem léguas a senhora o re ­
peliu, dizendo:
- Lo u co m alvado, que d ire ito o vo sso de me fa ze r tais
propostas? A quem cuidais falar? Ide e nunca mais me apare­
ceis à frente, pois pouco faltou para vos mandar c o rta r braços
e pernas.

133 PANTAGRUEL
- Q u e me im p ortaria a mim te r braços e pernas c o rta ­
dos (disse ele), desde que fizéssem os, vós e eu, uma boa pân­
dega brincando a m o ntar de estrib o curto? Porque (m o stro u
a grande braguilha) aqui tendes o m estre João das Q uintas,
capaz de vos to c a r um trancabailado que ireis sen tir até ao
tutano. E galante, e tão bem vos saberá e n co n tra r os preâm ­
bulos da p o rta e os p intainhos espalhados na ra to e ira , que
uma vez de lá saído só tereis que vos abanar.
Tendo-lhe a senhora respondido:
- Id e -vo s, m alvado , id e-vo s! Se me d isse rd e s m ais uma
p a la v ra , c h a m a re i g en te e m a n d a r-vo s-e i e n c h e r aqui de
pancada.
- O h! (exclam ou ele) Não sois, não senhora, tão má com o
dizeis ou bem me engano com a vossa fisionom ia, pois mais
fácil seria a te rra subir aos céus, e os altos céus descerem
ao abismo, e toda a ordem da natureza se r p ervertida, do
que haver gota de fel ou malícia em beleza e elegância tão
grandes com o a vossa. Bem se afirm a que é difícil
Encontrar senhora bela
E não ser também cadela:
mas diz-se isto de vulgares belezas. A vossa é tão excelen te,
singular e celestial, ao ponto de me p arecer que a N atureza
pô-la em vó s co m o pad rão para nos dar a c o m p re e n d e r
quanto pode e xe cu ta r se quiser em pregar todo o poder e o
saber que tem . N ão passa de mel, não passa de açúcar, não
passa de maná celeste tudo o que em vós existe.
« A vó s e não a V é n u s, qual quê!, nem a Ju n o , nem a
M inerva deveria Páris te r conferido a maçã de o uro porque
em Juno nunca houve tanta magnificência, em M inerva tanta
prudência, em Vénus tanta elegância com o em vós existem .

RABELAIS 13 4
« Ó deuses e deusas celestes! Q u ão feliz será o homem
a quem concederdes a graça de ab raçar esta que aqui está,
beijá-la e esfregar com ela o seu toucinho! Palavra minha que
eu vou se r esse tal, vejo-o m uito bem, porque ela já me ama
até não poder mais; reconheço-o e sou predestinado pelas
fadas para isso. Então, para ganhar tem po vamos apalpim exe-
gam biar!»
Q u e ria beijá-la, mas ela fazia cara de quem chegaria à
janela a pedir so c o rro aos vizinhos.
Panurgo saiu de lá bem depressa, dizendo enquanto fugia:
- Esperai aqui po r mim, senhora; não vos deis cuidado
porque eu pró p rio vou cham á-los.
E assim se afastou, sem se p reo cup ar m uito com a recusa
nem fazer dela grande caso.
N o dia seguinte com pareceu na igreja, à hora em que ela
ia à m issa. À e ntrad a deu-lhe água-benta, fazendo uma ra s­
gada vénia à sua fren te; depois ajoelhou-se confiadam ente ao
seu lado, dizendo:
- Sabei, senhora, estou tão apaixonado por vós que não
consigo m ijar nem cagar. O que achais disto não sei; mas se
algum mal me suceder, o que será de mim?
- Ide-vos (disse ela), ide-vos, que tal me não preocupa!
D eixai-m e aqui em o ração a D eus.
- Mas (re s p o n d e u e le ) fa ze i um tro c a d ilh o co m is to :
o Beaumont le Vicomte.
- Sei lá - disse ela.
- É assim (respondeu ele): a beau con le vit monte1. E agora
pedi a Deus para me dar o que o vosso nobre coração deseja,
fazendo-m e vós a graça de me dar o vosso te rço .
- To m ai (disse ela), e deixai de im portunar-m e.

135 PANTAGRUEL
D ito isto, quis tira r de si o te rço de aloés com grandes
pai-nossos de o u ro , mas Panurgo foi rápido a rapar de uma
das suas facas, a co rtá-lo bem co rtad o , e quando já ia a cam i­
nho da loja de adelo, disse-lhe:
- Q u e re is a minha faca?
- N ão, não! - disse ela.
- Mas olhai (respondeu ele) que às vossas ordens me fica­
riam co rp o s e bens, tripas e m iúdos.
A senho ra, p o rém , nada co ntente p o r causa do te rç o ,
que era uma das suas devoções na igreja, pensava: «Este fala-
-barato é um pouco desm iolado e homem de país estrangeiro;
não vo lta re i a p ô r a vista em cim a do meu te rç o . O meu
m arido o que dirá? Vai agastar-se comigo mas dir-lhe-ei que
um gatuno mo c o rto u na igreja, o que é fácil de a c re d ita r
vendo o resto de fita à minha cin tu ra.»
Depois do jantar, Panurgo foi te r com ela; levava na manga
uma grande bolsa cheia de escudos do Palácio e de tento s,
e com eçou po r dizer-lhe:
- Q ual de nós dois gosta mais do outro? V ós de mim ou
eu de vós?
A o que ela respondeu:
- Pelo que me to c a , nada vos o d eio ; pois am o o p ró ­
xim o com o D eus manda.
- Mas, a pro p ósito (disse ele), não estais apaixonada por
mim?
- Já muitas vezes vos disse (respondeu ela) que me não
fizésseis tais perguntas! Se voltardes a insistir, hei-de m ostrar-
-vos que a o u tra , e não a m im , deveis fa la r em d e so n ra .
Ide-vos daqui e d evo lvei-m e o te rç o , para o caso do meu
m arido perguntar p o r ele.

RABELAIS 136
- O quê, senhora! O vosso terço ? (disse ele) Ju ro pelo
bicudo que o não farei, mas estou em penhado em dar-vos
o u tro . G o staríe is mais de o uro bem esm altado, em form a de
grandes esferas, subtilm ente alusivo ao nosso am o r, ou tão
m aciço com o grandes pepitas? O u , se p referird es, de ébano
ou de grandes jacinto s, de grandes granadas talhadas, com as
contas de fina turquesa, de belos topázios, de finas safiras,
ou de belos rubis balaches com grandes contas de diamante
de vinte e oito facetas?
«N ã o , não, é m uito pouco. D e um fo rm o so te rço eu sei
que tem esm eraldas finas, contas de âm bar cinzento granu­
lado, e no fecho uma pérola persa tão grande com o uma
laranja! Só vos custaria vinte e cinco mil ducados. Q u e ro pre-
se n te ar-vo s com ele, pois de contad o tenho que chegue.»
E ao dizer isto fazia so ar os tento s com o se fossem escu­
dos de s o l2:
- Q u e re is uma peça de veludo ro xo -carm esim tinto de
escarlate, uma peça de cetim -brocado ou então de púrpura?
Q u e re is c o rd õ e s, d o u ra d u ras, templettes3, anéis? Só te re is
que d izer «sim ». A té cinquenta mil ducados nada é para mim.
P o r virtude de tais palavras fazia-a ficar com água na boca,
mas ela respondeu:
- N ão, obrigado; nada quero de vós.
- Raios me partam (exclam ou ele) se eu de vós não quero
bastante; seja em bora coisa uma que não irá custar-vos nada
nem deixar-vo s nada a m enos. O lh ai (m ostrava a grande b ra­
guilha), aqui tendes o m estre João C o ru ja a pedir hospedagem.
E vai daí pretendeu abraçá-la mas ela com eçou a g ritar,
ainda que não m uito alto. Panurgo deixou então cair a más­
cara, e disse-lhe:

137 PANTAGRUEL
- Não quereis, afinal, deixar-m e fazer qualquer coisa? Ide
então à tram pa! N ão vos são devidos tanto bem nem tanta
honra; mas raios me partam se não hei-de pô r cães a m on­
tar-vos.
D ito isto , fugiu a toda a pressa com m edo de apanhar
bordoadas; que essas, naturalm ente, ele temia.
C A P Í T U L O XXI I

COMO PANURGO PREGOU À SENHORA


PARISIENSE UMA PARTIDA QUE NENHUM
PROVEITO LHE FEZ

Sabei, então, que o dia seguinte era da grande festa do C o rp o


de D eus em que toda a m ulher surge triunfalm ente vestida,
e para esse dia a dita senhora vestiu-se com um vestido m uito
belo de cetim e sc a rla te e vasquinha de um veludo branco
bastante precioso .
N a vigília da vésp era, Panurgo tanto p ro cu ro u p o r um
lado e o u tro que e nco ntro u uma lydsque orgoose am arrou-
-a com o seu cinto, levou-a para o quarto e, durante esse
dia e toda a noite, muita comida lhe deu. D e manhã matou-a,
tiro u - lh e aquilo que os gregosos geom ancianos sabem , fê-lo
em pedaços o mais pequenos que é possível, levou-os co n ­
sigo bem escondidos e dirigiu-se ao sítio onde a senhora devia
ir para se ju n ta r à p ro cissã o , com o é co stu m e da re fe rid a
festa. Q uando a senhora entrou Panurgo deu-lhe a água-benta
com uma saudação m uito c o rtê s ; pouco depois de ela te r
rezado as o rações da p raxe, foi pôr-se ao seu lado no banco
e e n tre g o u -lh e um ro n d ó co m p o sto da fo rm a que segue:

Rondó

Por esta vez qu’a vós, dama formosa,


Meu caso expus, senti-vos bem fogosa

RABELAIS 1 4 0
Ao expulsar-me sem nenhum direito,
Embora mal eu vos não tenha feito
Com qualquer dito ou suspeição maldosa.
Se em desagrado me caiu a prosa,
Podeis sozinha e sem mais respeito
Dizer: «Andai, porque vos rejeito
Por esta vez.»

Mal não fará se a minha voz queixosa


Mostrar que ardo na chama raivosa
Dessa beleza que vos toma a peito;
Eu me proponho ser, em vosso leito,
A tampa justa e mui viciosa
Por esta vez.

E mal ela ab riu o papel, para v e r o que tinha e s c rito ,


Panurgo espalhou prontam ente a sua droga por lugares d ive r­
so s, em especial no pregueado das mangas e do ve stid o ,
dizendo a seguir;
- Senhora, os pobres am antes nem sem pre estão à sua
vo ntad e. Q u a n to àquilo que me to ca, e sp e ro que as más
noites, os trabalhos e os contratem p o s a que o am o r por
vós me obriga sejam descontados por o utras tantas penas de
purgatório. A o m enos orai a D eus para me dar paciência no
meu mal.
N ão tinha Panurgo term inado tais palavras, todos os cães
que havia na igreja2 co rre ra m para junto da senhora por causa
do ch eiro das drogas que em cima dela espalhara. Pequenos
e grandes, gordos e franzinos, todos lá apareciam de m em ­
bro espetado, a cheirá-la e a m ijar-lhe o co rp o . Era a m aior
p o rcaria deste mundo.
Panurgo afugentou -os com p o uco e n tu sia sm o , depois

141 PANTAGRUEL
despediu-se e recolheu-se numa das capelas para ve r o espec­
tácu lo , já que os m alvados cães lhe m ijavam a roupa toda;
um grande cão le b re iro chegou m esm o a m ijar-lhe a cabeça,
o u tro s as mangas, o u tro s o rabo; os pequenos mijavam -lhe
os elegantes sapatos, sentindo as m ulheres que ali estavam
perto muita dificuldade em p restar-lhe so co rro .
Panurgo ria a mais não poder, e disse a um dos senhores
da cidade:
- Julgo que aquela dama está com cio ou ainda há pouco
foi cob erta po r um leb reiro .
E quando viu todos os cães rosnarem -lhe à volta, com o é
costum e fazerem com as cadelas aluadas, saiu e foi p ro cu ra r
Pantagruel.
Rua onde e n co n tra sse cães, pregava-lhes um pontapé e
dizia:
- N ão ides ao no ivado com os vo sso s c o m p an h e iro s?
C o r r e i, c o rre i, que diabo, c o rre i!
E, chegando a casa, disse a Pantagruel:
- M estre, por obséquio vinde v e r todos os cães desta
te rra reunidos à volta de uma dama, que é a mais fo rm o sa
da cidade, a quererem berlaitá-la.
E Pantagruel acedeu de bom grado, e foi assistir à peça
que achou m uito bela e cheia de novidade.
Po rém , o bom e o bonito foi a procissão onde mais de
seiscentos mil e cato rze cães foram vistos à sua volta cau­
sando-lhe co n tra te m p o s sem fim ; e cães recém -cheg ado s
seguiam-lhe o rasto por todo o lado onde ela passava, mijando
o cam inho que as suas roupas tocavam .
T o d a a gente parava com este espectáculo e apreciava o
com portam ento dos cães que lhe subiam até ao pescoço e

RABELAIS 142
estragavam por com pleto os belos atavios, não encontrando
ela o u tro rem édio senão m eter-se no seu palácio; mas os
cães iam-lhe no encalço e ela tratava de se esconder, e fa rta­
vam-se as suas cam aradeiras de rir.
Mal entrou em casa e fechou a porta atrás de si, os cães
de meia légua em re d o r para lá c o rre ra m todos, e tanto mija­
ram o portal que fizeram um rib e iro de urinas onde m uito
bem teriam nadado patos. É o rib e iro que hoje passa por São
V íto r, onde G obelin tinge de escarlate usando a específica
virtu d e deste m ijo de cão, tal com o o u tro ra já pregava o
nosso m estre d’O rib u s 3. Deus vos acuda! Sendo em bora mais
pequeno do que os do Bazacle, em T o lo sa, até um moinho
ali poderia m oer.

143 PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XXIII

COMO PANTAGRUEL SAIU DE PARIS,


AO SABER QUE OS DÍPSODOS'
INVADIAM O PAÍS DOS AMAU ROTAS
E POR QUE RAZÃO AS LÉGUAS
SÃO TÃO PEQUENAS EM FRANÇA

Pouco tempo depois, Pantagruel teve notícia de que Morgana3


tran sfe rira o seu pai G argântua para o País das Fadas, com o
o u tro ra sucedera a O gier e Á rtu s, e também que os Dípsodos,
ao difundir-se o ruído dessa transferência, tinham ultrapas­
sado as suas fro n te iras e devastado uma exten sa região da
U topia, m antendo p o r esses dias sitiada a grande cidade dos
A m a u ro ta s. A ssim foi que Pantagruel saiu de Paris sem se
despedir de ninguém, porque era um caso que pedia rapidez,
e se dirigiu a Ruão.
D u ran te o cam inho viu, p orém , que as léguas de França
eram curtas de mais se comparadas com as de outras te rras,
e perguntou a Panurgo qual a causa e a razão do facto, tendo-
-Ihe ele referido uma história que Marotus do Lago, monachus 4,
conta nas Gestos dos Reis de Canarra, e na qual se diz que:
« O u tro ra os países não eram medidos em léguas, m iliários,
estádios ou parasangas até o rei Faramundo os avaliar da form a
que segue: agarrou numa centena de belos jovens e bravos
com panheiros de Paris, m uito decididos, e numa centena de
galdérias da Picardia, mandou-os tra ta r e cuidar bem durante
oito dias, depois cham ou-os, a cada qual entregou sua galdéria
e muito dinheiro para as despesas ordenando-lhes que fossem

RABELAIS 144
por aqui e por ali, a lugares diferentes, e em todo o sítio onde
berlaitassem a galdéria deixassem uma pedra, a qual m arcaria
uma légua.
«A ssim partiram alegrem ente os com panheiros e, porque
estivessem folgados e de boa m aré, em todo o pedaço de
campo futilavam , sendo este o m otivo p o r que ficaram tão
curtas as léguas da França. Mas depois de p e rco rre re m um
cam inho longo e estarem estafados com o pobres-diabos, já
sem azeite na candeia, não pinocavam tanto e contentavam -se
(refiro -m e aos hom ens) com uma qualquer banal e m iserável
vez po r dia. Aqui tendes o que faz tão grandes as léguas da
Bretanha, das Landes, da Alem anha e de o u tro s países mais
afastados. Há quem apresente razões diferentes; esta, porém ,
me parece a m elh or.»
O que foi aceite de bom grado por Pantagruel.
Saídos de R uão chegaram a H o n fle u r, onde Pan tag ru el,
Panurgo, Epistém ão, Eusténio e C arp alim se fizeram ao m ar.
E aí, enquanto aguardavam ve n to p ro p ício e rep aravam o
navio, Pantagruel recebeu carta de uma senhora de Paris (com
quem privara bastante tem po) assim so b rescrita:

A P.N.T.G.R.L.
o mais amado das belas
e o menos leal dos bravos.

145 PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XXIV

CARTA DE UMA SENHORA DE PARIS, QUE


UM MENSAGEIRO TROUXE A PANTAGRUEL,
E A EXPLICAÇÃO DE UMA PALAVRA ESCRITA
NUM ANEL DE OURO

D e p o is de ler o en d ereço , Pantagruel ficou m uito espantado


e perguntou ao referid o m ensageiro o nome daquela que o
m andara; mas ao a b rir a carta nada en co n tro u e sc rito no
in te rio r, só lá havia um anel de o u ro com um diamante lapi­
dado em m esa plana. C h a m o u então Panurgo e deu-lhe a
c o n h e c e r o caso.
Ele disse-lhe que a folha de papel estava e scrita, mas com
subtileza tal que nenhuma letra se via.
E para te r uma confirm ação levou-a p erto do fogo, pois
queria ve r se a escrita não teria sido feita com sal de amónia
dissolvido em água.
D epois meteu-a na água, para saber se a carta não teria
sido escrita com suco de titím alo.
D epois olhou-a à luz da candeia, para ve r se não teria
sido escrita com sum o de cebola branca.
D epois esfregou um pedaço com óleo de noz, para ve r
se não te ria sido e s c rita com lix ív ia de cin zas de fig u eira.
Depois esfregou um pedaço com leite de uma m ulher que
am am entava a sua prim eira filha, para v e r se não teria sido
escrita com sangue de sapo.
D epois esfregou um canto com cinzas de ninho de ando­

RABELAIS 146
rinha, para v e r se não teria sido escrita com orvalho retido
em fru to s de alicacabuto.
D epois esfregou o u tra ponta com cerúm en de ouvido,
para v e r se não teria sido escrita com fel de co rvo .
D epo is m ergulhou-a em vinagre, para v e r se não teria
sido escrita com leite de catapúcia.
D epois untou-a com axúngia de m orcego, para v e r se não
teria sido escrita com o espermacete de baleia a que chamamos
âm bar cinzento.
D epois m eteu-a com m uito cuidado numa bacia de água
fria e de im ediato a re tiro u , para v e r se não teria sido escrita
com tinta de alúmen.
E concluindo que nada descobria, cham ou o m ensageiro
e perguntou-lhe:
- C o m p a n h e iro , a se n h o ra que te m andou aqui não te
deu nenhum pau? - pensando que se tratasse do estratagem a
assinalado por A u lo -G e lo 1.
E o m ensageiro respondeu:
- N ão, senhor.
Q u is então Panurgo que lhe rapassem os cab elo s, para
v e r se a senhora não teria mandado e scre ve r o que pretendia
com tinta fo rte , na cabeça c a lv a 2; mas rep arando que ele
trazia os cabelos bastante com pridos desistiu, pois uma tal
cabeleira não poderia c re s c e r tanto em tão pouco tem po.
D isse então a Pantagruel:
- M estre, pelas virtudes de D eus que eu não sei o que
fazer nem dizer! Para v e r se alguma coisa aqui está escrita
empreguei uma parte do que diz M essere Francesco di Nianto,
o toscano, sobre a form a de le r letras não visíveis, e o que
diz Z o ro a s tro no Peri Grammatôn Acritôn, e Calp úrnius Bassus

147 PANTAGRUEL
em De Litteris lllegibilibus3; mas nada vejo e parece-m e que
o utra coisa não há além do anel. Exam inem o-lo, po rtanto.
E, então, ao exam iná-lo encontraram

LAMATH HAZABTHANI
e sc rito em hebreu na parte de dentro .
C h am aram Ep istém ão e p erguntaram -lhe o que queria
aquilo dizer, tendo ele respondido que eram palavras hebraicas
e significavam Por que me abandonaste4.
Panurgo prontam ente replicou:
- Esto u a p e rc e b e r. V ed es o diam ante? É um diam ante
falso. Po r isso, o que a senhora pretende d izer é o seguinte:
Di\ amante falso, por que me abandonaste?
Explicação que Pantagruei im ediatam ente com preendeu e
lhe reco rd o u que ao p artir não tinha dito adeus à senhora.
Ficou triste e de bom grado vo ltaria a Paris para fazer as
pazes com ela. Epistém ão avivou-lhe porém a m em ória sobre
a separação de Eneias e D id o 5, e sobre as palavras de H eráclito
de T a re n to 6: quando o navio está ancorado e a pressa obriga,
será p referível co rtar-lh e a corda em vez de p erd er tem po
a desatá-la; deveria deixar-se de todas aquelas reflexõ es para
s o c o r r e r a cid a d e o n d e n a s c e ra , que e sta v a em p e rig o .
D e fa cto , uma h o ra dep o is le van to u -se o ve n to a que
chamam no r-n o ro este; com ele enfunaram as velas, chegaram
ao m ar-alto e, em poucos dias, depois de passarem por Po rto
S a n to e pela M a d e ira fiz e ra m e sc a la nas Ilh a s C a n á r ia s .
D aí partindo, cruzaram o C abo Bran co , o Senegal, Cabo
V e rd e , a G âm bia, S a g re s7, M elli, o C a b o da Boa Esp erança,
e fizeram escala no reino de Melinde.
D aí partindo, desfraldaram velas ao vento da tram ontana

RABELAIS 148
e passaram po r Méden, U ti, U dem , G elasim , pelas Ilhas das
Fadas e p erto do rein o de A c ó r ia 8; p o r fim chegaram ao
p o rto de U topia, distante trê s léguas e picos da cidade dos
A m aurotas.
Um a vez em te rra e de algum modo retem p erado s, disse
Pantagruel:
- Meus filhos, a cidade não é longe daqui. Antes de avançar­
mos mais seria bom delib erar sobre o que há a fazer para
não p arecerm o s os A tenien ses, que só trocavam im pressões
depois do facto consum ado. Estais decididos a viv e r e a m o r­
re r comigo?
- Estam os, se n h o r (disseram to d o s). C o n tai co nn o sco
p e lo c e r t o , c o m o fa z e is co m o s v o s s o s p r ó p r io s d e d o s.
- Pois bem (respondeu ele), só um ponto faz incerto e
duvidoso o meu esp írito : não saber de que o rdem e em que
n úm ero são os inim igos que m antêm a cidade sitiada; se o
soubesse chegaria lá em m aior segurança. Po r isso tom em os
conselho sobre a form a de poder descobri-lo.
T o d o s disseram , então, ao m esm o tem po:
- D eixai-no s lá ir v e r e esperai aqui, porque ainda hoje
vos trare m o s notícias exactas.
- Eu (disse Panurgo) encarrego-me de entrar no seu campo
por entre guardas e patrulhas, banquetear-m e com eles e chi-
faro tar à sua custa sem ninguém me reco nh ecer, visitar a a rti­
lharia, a tenda de todos os capitães e pavonear-m e no meio
das tropas sem nunca me desco b rirem . N em o diabo saberia
enganar-me, pois sou da linhagem de Z ó p iro 9.
- Eu (disse Epistém ão) conheço todos os estratagem as e
todas as proezas dos valentes capitães e cam piões do anti­
gam ente, e todas as manhas e finuras da disciplina m ilitar.

149 PANTAGRUEL
Lá irei, e m esm o que me descubram e denunciem hei-de fugir
fazendo-lhes c re r de vós quanto me ap ro u ver, pois sou da
linhagem de Sin ão 10.
- Eu (d isse E u sté n io ) vou e n tra r pelas suas trin c h e ira s ,
apesar das patrulhas e de todos os guardas, vou calcar-lhes
a barriga e quebrar braços e pernas, m esm o que eles sejam
tão fo rtes com o o diabo, pois sou da linhagem de H ércu les.
- Eu (disse C a rp alim ), desde que os pássaros lá entrem
tam bém e n trare i, pois sou tão ágil de corp o que saltarei as
suas trin ch eiras e atravessarei todo o seu campo antes de
darem po r mim; e não tem o dardo nem flecha, nem cavalo
po r mais célere que seja, fosse ele o Pégaso de Perseu ou
P a co le to 11, e à frente deles escaparei lam peiro e salvo. C o m ­
prom eto-m e a andar sobre espigas de trigo e erva dos pra­
dos sem elas vergarem debaixo de mim, pois sou da linhagem
de Cam ila a A m a zo n a12.

RABELAIS 15 O
C A P Í T U L O XXV

COMO PANURGO, CARPALIM, EUSTÉNIO,


EPISTÉMÃO, COMPANHEIROS DE
PANTAGRUEL, DESBARATARAM COM MUITA
AGILIDADE SEISCENTOS E SESSENTA
CAVALEIROS

Mal tinha acabado de dizer aquilo, avistaram seiscentos e


sessenta cavaleiros que se aproximavam para ver o navio que
há pouco chegara ao porto, ainda por cima montados em
cavalos velozes e a correrem à rédea solta para os capturarem,
se tal fosse possível.
D isse então Pantagruel:
- Meus filhos, recolhei-vos ao navio. C o m o vedes, os nos­
sos inimigos aproxim am -se mas hei-de matá-los com o bichos,
fossem dez vezes mais num erosos. En tretan to recolhei-vos
e matai o tem po com o vos ap rouver.
A o que respondeu Panurgo:
- N ão, meu senhor, não há razão para assim p rocederdes;
pelo co n trá rio , vós e os o u tro s recolhei-vos no navio porque
so zinho vou d e sb aratá-lo s; mas não é possível p e rd e r mais
tem po. E vós, avançai!
T en d o os o u tro s respondido:
- São palavras justas, senho r; recolhei-vo s porque vamos
ficar aqui com Panurgo, havendo vós de reco nh ecer que sabe­
mos agir.
D isse então Pantagruel;

151 PANTAGRUEL
- Pois assim seja; mas se fordes por acaso os mais fra ­
cos, estarei ao vosso lado.
Panurgo agarrou em duas grandes cordas do navio, am ar­
rou-as ao cabrestante que havia no tom badilho, estendeu-as
no chão e fez com elas longos c ircu ito s, um deles mais largo
e o u tro no seu in te rio r, dizendo a Epistém ão:
- Entrai no navio, e quando eu mandar rodai rapidam ente
o cab re stan te no to m b ad ilho , re co lh en d o ju n to de vó s as
duas cordas.
D epois disse a Eusténio e a C arp alim :
- Esp erai aqui, m eus filh o s, e o fe re ce i-v o s fran cam en te
aos inimigos; obedecei-lhes e fazei de conta que vos rendeis.
T e n d e p o rém o cu idado de não e n tra r no c írc u lo destas
cordas; andai sem pre p o r fora.
Logo depois se m eteu no navio, agarrou num m olho de
palha, num b arril de p ó lvo ra para canhão, e espalhou-a no
c írc u lo das co rd as ficando p e rto , com um a rch o te na mão.
O s c ava le iro s surg iram de rep en te e em grande fo rça ,
tendo os prim eiro s carregado até junto do navio; e porque
a b e ira-m ar era e sco rre g a d ia , eles e os cavalos caíram em
núm ero de quarenta e quatro. A o verem isto os o u tro s ap ro ­
xim aram -se pensando que à chegada tivesse havido re sistê n ­
cia, mas disse-lhes Panurgo assim:
- Julgo, senhores, que vos magoastes; perdoai-nos, pois a
culpa não é nossa mas da viscosidade da água do m ar sem pre
oleosa. A vossa m ercê nos rendem os.
O m esm o disseram os seus dois com panheiros e Ep isté­
mão, que estava no tom badilho.
Entretanto Panurgo afastou-se, e quando os viu dentro do
círcu lo das cordas e os seus dois com panheiros suficiente-

RABELAIS 152
m en te afastad o s, deu passagem a to d o s os c a v a le iro s que
vinham em magote o b se rv a r o navio e o que tinha d e n tro ,
gritando de repente ^ Epistém ão:
- Puxa! Puxa!
Epistémão com eçou a puxar o cabrestante, as duas cordas
enrodilharam -se nos cavalos e m uito facilm ente os atiraram
ao chão com os cavaleiros; mas quando eles viram isto raparam
das espadas e dispuseram-se a cortá-las, tendo Panurgo largado
fogo ao rasto de pólvora e queim ado todos com o a almas
danadas. H om ens e cavalos nenhum escapou, excep to o que
montou num cavalo tu rco e carregou para fugir; mas Carpalim
c o rre u atrás dele com velocidade e alacridade tais, que em
menos de cem passos o apanhou; saltando para a garupa do
cavalo, abraçou-o por trás e levou-o até ao navio.
Consum ada a d e rro ta , Pantagruel bem satisfeito ficou e
fez elogios maravilhosos à actuação dos com panheiros levando-
-os a refrescar-se e a retem p erar-se alegrem ente na praia, a
beber até os ventres caírem no chão; e com eles o prisioneiro,
de form a amigável, apesar de o pobre-diabo estar m uito con­
vencido de que Pantagruel ia devorá-lo in teiro , o que aliás
poderia te r feito com a sua goela tão grande, e tão facilm ente
co m o engo lim os uma drageia; na sua boca não te ria tido
mais valo r do que um grão de m ilho na goela de um b u rro .

153 PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XXVI

COMO PANTAGRUEL
E OS SEUS COMPANHEIROS SE FARTARAM
DE COMER CARNE EM SALMOURA,
E COMO CARPALIM FOI À CAÇA PARA
TEREM PROVISÕES FRESCAS

Estavam eles no banquete quando C arp alim lhes disse:


- Ei! Pela pança de São Nunca! Não voltam os com er carne
fresca? Esta salm oura põe-me cheio de sede. Vou buscar-vos
uma coxa daqueles cavalos que o nosso fogo queim ou: bem
assada estará.
E, mal se levantou com esta intenção, na o rla do bosque
vislum brou um belo e grande cabrito que estava fora do mata­
gal para v e r, julgo eu, o fogo de Panurgo.
D e im ediato foi atrás dele e com tanta fo rça que parecia
um tiro de balestra; bastou um instante para o p re n d e r e,
enquanto c o rria com as mãos no ar, apanhou:
quatro abetardas grandes,
sete sisões,
vinte e seis perdizes cinzentas,
trin ta e duas verm elhas,
dezassete faisões,
nove galinholas,
dezanove garças reais,
trinta e duas rolas,
e com os pés matou dez ou doze lebres, ou talvez coelhos,
já com idade de não cair em arm adilhas,

RABELAIS 154
dezoito francolins engatados uns nos o u tro s,
quinze javalis pequenos,
dois texugos,
trê s grandes raposas.
C o m a c im ita rra tre sp a sso u o c a b rito pela cab eça, ma-
to u -o , e ao carreg á-lo reco lh eu le b re s, fra n co lin s e javalis,
gritando do mais longe que era possível se r ouvido:
- Am igo Panurgo, vinagre, vinagre!
Vai daí, o bom Pantagruel pensou que ele estivesse enjoado
e mandou dar-lhe vinagre. Mas Panurgo percebeu que ia haver
lebre trincada; m o strou ao nobre Pantagruel que C arpalim
trazia ao pescoço um senho r cab rito, e à roda da cintura uma
porção de lebres.
N ão tardou que Epistém ão fizesse à moda antiga nove
excelentes espetos de pau em honra das nove Musas; Eusténio
ajudava a esfolar, e Panurgo arm ou de tal form a duas selas
de com bate dos cava le iro s, que ficaram a s e rv ir de apoios.
O prisioneiro foi nomeado grelhador, e no fogo que queim ara
o inimigo assaram a caça.
D epois houve festança regada com m uito vinagre. Para o
diabo quem se contivesse! Era uma alegria vê-los alambazar-se.
D isse então Pantagruel:
- Q uisesse D eus que cada um de vós tivesse no queixo
dois pares de sinetas de m issa, e eu os grandes c a rrilh õ e s
dos relógios de Rennes, P o itiers, T o u rs e C am b rai, para v e r­
mos que serenata o nosso dar de beiços cantaria!
- N o entanto (disse Panurgo), mais vale pensar um pouco
na nossa m issão e no meio que nos fará ve n ce r os inimigos.
- É bem lem brado - respondeu Pantagruel.
V isto isso, pediu ao p risio n eiro :

15 5 PANTAGRUEL
- Meu amigo, diz-nos a verdade e em nada mintas se não
queres se r esfolado vivo, porque eu sou aquele que com e
criancinhas. C o nta-no s tudo sobre a ordem , o núm ero e a
fo rça dos vossos soldados.
T en d o o p risio n eiro respondido assim:
- Senhor, para d izer a verdade sabei que há no e x é rc ito
tre ze n to s gigantes, todos arm ados com pedras de alvenaria
prodigiosam ente grandes, em bora não sejam tão gigantescos
com o vós se excep tuarm o s um, que é o chefe cham ado Lobi-
som en e está bem arm ado com bigornas ciclópicas; cento e
se sse n ta e trê s mil p eõ es, to d o s arm ad o s com peles de
d u e n d e 1, gente fo rte e c o ra jo s a ; o n ze mil e q u a tro c e n to s
homens de armas; três mil e seiscentos canhões de duas bocas
e um sem núm ero de artilharia m ontada; noventa e quatro
mil pio neiro s; cento e cinquenta mil putas form osas com o
deusas...
- O r a aí e stá o que me in te r e s s a - d iss e P a n u rg o ...
- Algumas são amazonas, outras lionesas, outras parisienses,
turanginas, angevinas, p o itevinas, norm andas e alem ãs; de
todas as te rra s e línguas lá existem .
- Pois sim (disse Pantagruel), mas onde está o rei?
- Lá, senho r (disse o p risio n e iro ), está lá em pessoa e
cham am os-lhe A n a rc a 2, rei dos D íp so do s, e o m esm o é dizer
gente com sede, pois nunca te re is visto gente com tanta sede
nem mais p ro n ta a b eb er, e cuja tenda está guardada p o r
gigantes.
- Basta (disse Pantagruel). Avante, meus filhos! Estais deci­
didos a acom panhar-m e?
Tendo -lhe respondido Panurgo:
- Deus confunda quem vos abandonar! Já pensei na form a

RABELAIS 15 6
de vo -lo s e n tre g a r to d o s m o rto s co m o p o rc o s , p o rq u e
apesar de fugirem a sete pés, não deixará o diabo que as suas
pernas escapem . Há, porém , um p o rm en o r que me preocupa
um pouco.
- E qual é? - perguntou Pantagruel.
- A form a (disse Panurgo) de eu poder b e rlaitar à tarde
quantas putas h o u v e r, e sem que nenhum a escap e de s e r
trancam ocada a p receito .
- A h! A h! A h! - riu Pantagruel.
D isse então Carpalim :
- Pelo diabo de V ite rb o ! Eu seja cão se não esp etar uma!
- E eu (disse Eusténio) só visto! D esde que saím os de
Ruão nunca mais m ontei! O p o n teiro m arca, pelo m enos, as
dez, as onze ou mais, pois tenho-o duro e fo rte com o cem
diabos.
- Estou ce rto (disse Panurgo) que hás-de e n co n tra r das
mais gordas e mais cheias.
- O quê! (disse Epistém ão) T u d o a m ontar cavalos, minha
gente, e só eu a c o n d u zir o b u rro pela mão? Leve o diabo
quem nada fize r. U sarem os o direito de guerra: Qui potest
capere capiat3.
- N ão, não (disse Panurgo), am arra o b u rro a uma argola
e monta com o os demais.
D e tu d o isto se riu o bom P a n tag ru e l, e d ep o is d isse :
- O vosso anfitrião faz contas diferentes. M uito medo eu
sinto que antes de cair a noite vos veja num estado que não
dê grande vontade de e sp e ta r a tran ca, e vos cavalguem à
fo rça de pique e lança.
- Basta! (disse Epistém ão) Pela minha mão ire is tê-los
p rontos a assar ou co ze r, a serem feitos de fricassé ou em

157 PANTAGRUEL
pasta. N ão são tantos com o os de X e rx e s , pois esse tinha
trin ta vezes cem mil com batentes, se acreditarm o s em H eró -
d o to e T r o g o P o m p e u , e assim m e sm o T e m ís t o c le s os
d e rro to u com pouca gente. Po r D eus, não vos preocupeis!
- Merda! Merda! (disse Panurgo) Bastará a minha braguilha
para sa cu d ir to d o s os ho m ens, e o São F u ra c ric a s que lá
dorm e dentro para tira r o b o lor a todas as m ulheres.
- V is to isso avan te , m eus filh o s! (d isse Pan tag ru el)
Co m ecem o s a m archar.

RABELAIS 15 8
C A P Í T U L O XXVII

COMO PANTAGRUEL LEVANTOU UM TROFÉU


EM MEMÓRIA DA SUA PROEZA, E PANURGO
OUTRO EM MEMÓRIA DAS LEBRES,
E COMO PANTAGRUEL GEROU OS HOMENS
PEQUENOS COM OS SEUS PEIDOS,
E AS MULHERES PEQUENAS COM OS SEUS
MIJOS, E COMO PANURGO PARTIU UMA
VARA GROSSA EM CIMA DE DOIS COPOS

- A ntes de sairm os daqui - disse Pantagruel - quero erigir


neste lugar um belo troféu em m em ória da proeza que aca­
bastes de fazer.
Po r isso, com grande júbilo e singelas canções cam pestres
todos ergueram uma grande estaca onde foram pendurados:
uma sela de arm as, um freio , o rnam entos de cavalo, lo ro s de
estrib o s, esporas, uma loriga, uma grande arm adura de aço,
um m achado, um e sto q u e, um guante, uma clava, cotas de
malha, joalheiras, um gorjal e as demais peças que um arco
triunfal ou um troféu requer.
Depois, para m em ória eterna Pantagruel escreveu o canto
de vitó ria com a form a que segue:

Aqui foi vista a virtude surgir


Em quatro heróis, briosos campeões
De muito tino; sem elmos vestir
Como Fábio ou dois Cipiões,
Mataram chatos, muitos, aos milhões,

159 PANTAGRUEL
Cáfila vil, queimada como palha.
Sabei ó torre, duque, rei, peões,
Que a manha é tudo quando se batalha,
Pois a vitória,
Lá diz a história,
É um favor.
Mui decisória,
Preside a glória
De Deus Senhor
Não concedida ao que tiver valor
Mas ao amado, sabei de memória,
Que chega à fama e ao seu favor
A Deus orando com fé laudatória.

Enquanto Pantagruel ia escrevendo os verso s acim a, num


grande m astro Panurgo enfiou os co rn o s do cab rito, a pele
e a pata direita da fren te; depois as orelhas de trê s lebres,
o lom bo de um coelho , as mandíbulas de uma lebre, as asas
de duas abetardas, as patas de quatro to rcaze s, uma galheta
de vinagre, um corno que servia para guardar sal, o espeto de
pau, uma agulha de lardear, um caldeirão reles e todo esbura­
cado, uma tina de fazer m olho, uma saladeira de barro e uma
caneca de Beauvais. E para im itar os verso s e o troféu de
Pantagruel, escreveu o seguinte:

Aqui foi visto o traseiro cair


A quatro ébrios, vivos peões
De um banquete que os fez nutrir
E beber tanto como capelões.
Foram-se lombos, coxas e varrões,
Tudo apagado se viesse à rede.
Sal e vinagre, até escorpiões
Valeram muito a quem tinha sede.
Numa vitória,

RABELAIS 1 6 0
A escapatória
De um calor
É decisória:
Beba-se em glória
E do melhor.
Comendo carne, a condição pior
É de vinagre não haver memória:
Pois no vinagre está todo o valor,
Deveis retê-lo, questão peremptória.
D isse então Pantagruel:
- Partam os, meus filhos, que por demais aqui nos d iv e r­
tim os com estas carnes, e muito mal se vê que grandes lamba-
re iro s façam grandes feitos de arm as. Som bra só e xiste a dos
estandartes, cheiro só o dos cavalos, e tilintar o dos arneses.
A ta is p a la v ra s , E p isté m ã o c o m e ç o u a s o r r i r e d is s e :
- S o m b ra só e x is t e a da c o z in h a , c h e ir o só há o das
em padas, e tilin ta r o das taças.
T en d o Panurgo respondido:
- So m bra só e x is te a das alco va s, c h e iro só há o das
mamas, e tilin tar o dos colhões.
D e p o is, pondo-se de pé deu um peido , um salto e um
assobio, gritando jovialm ente com voz fo rte:
- Viva para sem pre Pantagruel!
Q uando tal viu, Pantagruel quis fazer o m esm o mas o seu
peido pôs a te rra a tre m e r nove léguas em re d o r, o ar fétido
gerou mais de cinquenta e três mil hom enzinhos anões e dis­
fo rm e s, e uma m ijadela gerou o u tras tantas m u lherzinhas
enfezadas com o essas que em m uitos lugares se vêem e só
c re sce m para b aixo , com o o rab o das vacas, ou então na
circu nferência, com o os rábanos de Lim oges.
- O quê! - disse Panurgo. - Ten d es os peidos tão férteis?

161 PANTAGRUEL
Palavra minha! Vejam -se estes homens mal feitos e este refugo
de m u lh e re s: tem o s de casá-los uns com os o u tro s para
gerarem m oscas v a re je ira s.
Foi isso que Pantagruel fez e cham ou-lhes pigmeus, man­
dando-os vive r numa ilha ali p erto , onde com eçaram a m ulti­
plicar-se; os grous, porém , movem -lhes uma guerra constante,
da qual corajo sam ente se defendem 1 p o r serem vulgarm ente
iracundas estas am o stras de hom em (cham adas, na Escó cia,
«cab o s de alm o fa ç a » ). A ra zã o física do facto é te re m o
c o ra çã o p e rto da m erda.
N essa mesma altura Panurgo agarrou em dois copos que
lá havia, de tam anho igual, encheu-os com toda a água que
podiam c o n te r e pôs cada um em seu escabelo, afastando-os
cinco pés; depois agarrou numa vara de dardo com cinco pés
e meio de com prido e assentou-a nos dois copos, com as duas
extrem idades a tocarem apenas nas bordas. Isto feito, muniu-
-se de um grande cacete, dizendo a Pantagruel e aos o u tro s:
- Vede, senhores, com o irem os ven cer facilm ente os nos­
sos inim igos; da m esm a fo rm a que eu vou p a rtir esta vara
pousada nos copos, não só sem os rachar nem estilhaçar mas,
o que ainda é mais difícil, sem uma só gota de água se r v e r­
tida, p artirem os nós a cabeça aos D ípsodos sem nos fe r ir ­
mos nem perderm os nada do que temos. E, para não pensardes
que há aqui encantam ento (disse a Eusténio ), pegai nesta vara
e descarregai-a ao m eio com quanta fo rça tiverdes.
Foi o que Eusténio fez, quebrando a vara em dois pedaços
d istin to s e sem uma gota de água tra n s b o rd a r dos co p o s.
Panurgo acrescento u:
- M uitas o u tras coisas eu sei. A va n ce m o s, p o rta n to , à
confiança.

RABELAIS 162
C A P I T U L O XXVII

COMO PANTAGRUEL BEM ESTRANHAMENTE


VENCEU DÍPSODOS E GIGANTES

D epois de todas estas palavras, Pantagruel cham ou o seu p ri­


sio n e iro e liberto u-o, dizendo:
- Regressa ao teu rei, no campo de arm as, e dá-lhe n o tí­
cias do que viste para ele se dispor a festejar-m e amanhã ao
m eio-dia; sim , porque mal cheguem as minhas galeras, o que
vai a c o n te c e r o mais ta rd a r am anhã de m anhã, vou p ro va r-
-Ihe com um milhão e o ito cen to s mil com batentes e sete mil
gigantes, todos m aiores do que me vês a mim, que loucura
e desrazão foram as dele ao invadir assim o meu país.
C o m is to P a n ta g ru e l fin g ia t e r um e x é r c it o no m a r.
Respondeu-lhe, po rém , o p risio n e iro que se entregava
com o escravo e sentia contente por nunca mais vo ltar para
junto dos seus; quisesse D eus consen ti-lo, p re fe riria com ­
bater ao seu lado co ntra os D ípsodos.
N ão quis Pantagruel au to rizar-lho , e ordenando que par­
tisse bem depressa e fizesse com o tinha dito, entregou-lhe
uma caixa cheia de eufórbio e grãos de co cogn ídeo 1 m ace­
rados em aguardente com o se fossem com p ota, d e te rm i­
nando que fo sse entregá-la ao rei e lhe dissesse que ele
lograria resistir-lh e, sem re ceio , se pudesse c o m er um bom
pedaço daquilo sem beber.
D e mãos postas, o p risio n e iro sup lico u-lhe que sen tisse
pena dele na hora da batalha, tendo Pantagruel respondido:

16 3 PANTAGRUEL
- D epois de tudo isto anunciares ao teu rei, tem toda a
fé em D eus e verás que Ele não te abandona; pelo que me
diz respeito, em bora eu seja po deroso , com o podes v e r, e
tenha gente de arm as que nem se pode co ntar, não me fio
na força nem na habilidade e confio ao m áxim o em D eus,
meu p ro te c to r, que nunca abandona quem tive r esperança e
o pensam ento nele.
D epois destas palavras pediu-lhe o p risio n eiro que fizesse
um razoável preço ao seu resgate, respondendo-lhe Pantagruel
que não era seu o b je ctivo p ilh ar nem resg atar hom ens mas
e n riq u e c ê - lo s e r e s t it u ir - lh e s p o r c o m p le to a lib e rd a d e :
- Vai na paz do D eus vivo (disse ele) e nunca andes em
má com panhia para nenhuma desgraça te aco ntecer.
Metido o prisioneiro ao caminho, disse Pantagruel aos seus:
- Meus filhos, dei a entender ao p risio n eiro que tem os
um e x é rc ito no m ar e vam os atacá-los até amanhã ao meio-
-dia, com o fim de os fa zer passar a noite a p re p ara r-se e
a refo rçar-se por desconfiarem que vai chegar lá muita gente;
mas a minha intenção é carregarm o s sobre eles à hora do
p rim eiro sono.
D eixem o s Pantagruel e os seus acó litos, para falar do rei
A narca e do seu e xé rcito .
U m a vez chegado, o p risio n e iro dirigiu-se ao rei e c o n ­
tou-lhe com o tinha aparecido ali um grande gigante, chamado
Pantagruel, que d e rro ta ra e mandara assar cruelm ente todos
os se isce n to s e cinquenta e nove cava le iro s, e com o tinha
sido ele o único a fugir para lhe dar notícias; além disso, o
referid o gigante encarregara-o de dizer-lhe que tratasse de
te r um alm oço p ro nto ao meio-dia do dia seguinte porque
decidira atacá-lo nessa altura.

RABELAIS 16 4
D epois entregou a caixa onde estavam os doces. Mal o
rei engoliu a prim eira colherada, sentiu na garganta um grande
abrasam ento e a úvula ferida, e foi ao ponto de ficar com a
língua pelada; e apesar dos rem édios que lhe deram , só sen­
tiu alívio bebendo sem rem issão; mal tirava a tigela da boca,
sentia a língua queimada. Po r isso mais solução não houve
do que lhe despejarem vinho na goela com um funil.
A o verem o que sucedia, capitães, paxás e sentinelas p ro ­
varam as referidas drogas para ve rificar se faziam assim tanta
sede, tendo-lhes sucedido o m esm o que ao rei. E de tal form a
se enfrascaram , que em todo o campo correu a notícia da che­
gada do p risio n eiro , que deviam se r atacados no dia seguinte,
e o rei e os capitães, bem com o as sentinelas, já estavam a
preparar-se bebendo sem tréguas. Assim foi que os soldados,
também eles, desataram a e n to rn ar, a em b o rcar e a brindar.
Para resu m ir, tanto e tanto beberam que do rm iram campo
fo ra, com o p o rco s e com o calhava.
V o lte m o s agora ao bom Pantagruel, e c o n te m o s com o
procedeu neste caso.
Abandonando o lugar do tro féu , agarrou no m astro do
navio com o se fosse um bordão, pôs no cesto da gávea duzen­
tas e trin ta e sete pipas de vinho b ranco de A n ju , e o que
restava de Ruão, e tão facilm ente am arrou à cintura a barca
cheia de sal com o os can tin eiro s levam os seus pequenos
c e s to s; assim se m eteu ao cam inho com os c o m p a n h e iro s.
Já perto do campo inimigo, disse-lhe Panurgo:
- Q u ereis proceder a preceito, senhor? D o cesto da gávea
baixai o vinho branco de Anju e bebamo-lo aqui, à moda bretã!
D e bom grado Pantagruel condescendeu e beberam todos
tão bem, que não restou uma só gota das duzentas e trinta

165 PANTAGRUEL
e sete barricas, excepção feita a uma garrafa de co uro tanado
de T o u rs , à qual Panurgo chamava seu vade-mecum 2 e que
tinha enchido para uso pessoal, e a uns tantos maus fundos
de pipa destinados a vinagre.
D epois de m am arem m uito bem, Panurgo pediu a Panta-
gruel que com esse umas drogas q uaisquer, que continham
lito n trip ã o , n e fro c a ta rtic ã o , co tin h aq u e c a n ta rid is a d o 3 e
o u tro s ingredientes d iurético s. Isto feito, disse Pantagruel a
Carpalim :
- Ide à cidade subindo pela m uralha com o um rato , coisa
que tão bem sabeis fazer, e dizei-lhes que chegou o m om ento
de saírem e caírem em cim a do inim igo o mais bravam ente
que puderem , e depois descei, agarrai num archo te aceso e
largai fogo a todas as tendas e a todos os pavilhões do campo;
a seguir, com o vosso vo zeirão gritai o mais que puderdes e
saí do campo.
- Muito bem, mas não seria m elhor (perguntou C arp alim )
e ncravar toda a artilharia?
- N ão, não (disse Pantagruel), largai porém fogo às suas
pólvoras.
C u m p rind o im ediatam ente estas o rdens, C arpalim partiu,
com o Pantagruel tinha decretado, e fez sair da cidade quan­
tos com batentes lá havia.
E foi tão ráp ido, quando deitou fogo às tendas e às b a r­
racas, que a gente que lá se e n co n tra va nada sentiu, tanto
mais que ressonava e dorm ia profundam ente. Dirigiu-se então
ao sítio onde estava a artilh aria, largou fogo às m unições mas
foi um perigo: as chamas levantaram -se de repente e, não
fora a m aravilhosa p resteza de C arp alim , pouco faltaria para
o p o bre fic a r em brasa e assado co m o um p o rc o . R ápido

RABELAIS 1 6 6
c o rre u , p o rém ; um tiro de b alestra mais lesto não vo a ria.
Um a vez fo ra das trin ch e iras gritou assustado ram ente,
com o se todo s os diabos andassem à so lta. E com tal som
aco rd aram os inim igos; sabeis p o rém em que estado? T ã o
aturdidos com o ao prim eiro toque das matinas, aquele que
em luçonês se chama «coça-colhão».
En tretan to , Pantagruel com eçou a sem ear o sal que trazia
na barca, e porque estavam todos a do rm ir com a boca franca­
m ente aberta, tão bem lhes encheu as goelas que os pobres-
-diabos tossiam com o raposas e gritavam : «A h ! Pantagruel,
que nos largas fogo ao tição!» Porém , uma repentina vontade
de u rin ar provocada pelas drogas que Panurgo lhe dera fez
Pantagruel m ijar tão bem e copiosam ente no campo de armas,
que afogou todos e causou um singular dilúvio numa roda de
dez léguas. E diz a h istó ria que fo sse a grande jum enta do
seu pai a u rin a r ali, em vez dele, te ria sido mais co lo ssal e
pior ainda que o dilúvio de D eucalião, pois form ava sem pre
um rio m aior do que o Reno e o D a n ú b io 4.
Vendo isto, os que tinham saído da cidade diziam:
- T o d o s tiveram uma m o rte cru el, olhai com o o sangue
c o rre !
Enganavam-se, porém, já que tomavam por sangue do inimigo
a urina de Pantagruel vista ao clarão do fogo das barracas e a
um fraco luar.
Q uando os inimigos acordaram e viram , de um lado o seu
campo a a rd e r e do o u tro a inundação e o dilúvio urin oso ,
não so uberam o que d ize r nem o que p ensar. H avia quem
tom asse aquilo pelo fim do mundo e pelo juízo final que em
fogo deve se r consum ado, e diziam os restantes que estavam
a ser perseguidos por deuses marinhos com o Neptuno, Proteu,

167 PANTAGRUEL
T ritã o e o u tro s, razão p o r que a água era m arinha e salgada.
O h ! Q u e m p o d erá hoje c o n ta r-n o s co m o Pantagruel
enfrentou os trezentos gigantes? Ó minha musa, minha Calíope,
m inha T á lia , dá-me agora inspiração ! R evigora-m e os e sp í­
rito s, pois é este o ponto onde a Lógica to rce o rabo, é este
o alçapão, esta a dificuldade em conseguir d e scre ve r a h o r­
rível batalha que ali se travou.
Pudesse eu te r à mão uma garrafa de vinho , m e lh o r do
que alguma vez foi bebido p o r quem v ie r a le r esta h istó ria
tão verídica!

RABELAIS 16 8
C A P I T U L O X XI X

COMO PANTAGRUEL DERROTOU


OS TREZENTOS GIGANTES ARMADOS COM
PEDRAS DE CANTARIA E LOBISOMEM,
SEU CAPITÃO

V endo o seu cam po todo inundado, os gigantes levaram o


rei A n a rc a para fo ra do fo rte e fizeram -n o o m e lh o r que
podiam, aos om bros com o Eneias ao seu pai A nchises na con­
flagração de T ró ia .
A o aperceber-se disto, Panurgo disse a Pantagruel:
- Se n h o r, vede que os gigantes saíram . D ai-lhes b rava­
m ente com o vosso m astro e pela regra da velha esgrim a
porque está na hora de nos m o strarm o s hom ens de m érito .
Pelo nosso lado, não vos abandonarem os. Eu p ró p rio m uitos
m atarei afoitam ente. C o m o não? Foi fácil David m atar G olias.
O ra eu, que bateria doze com o D avid, pois nesse tem po ele
não passava de um reles badameco, não conseguirei d e rro ta r
uma boa dúzia? Além do mais, o grande pândego do Eusténio,
que é fo rte com o quatro bois, não vai poupar-se. Ganhai c o ra­
gem e carregai à fo rça de estoque e espada.
Respondeu-lhe porém Pantagruel:
- Coragem tenho eu para dar e vender. Mas o quê! Nem
H ércu les ousou alguma vez bater-se contra dois.
- C o m essa (disse Panurgo) me deixais arrum ado. Estais
a com parar-vos com H ércules? D iabos me levem se não ten ­
des mais fo rça nos d entes, e ju ízo no cu, do que H é rcu le s

169 PANTAGRUEL
algum dia teve no co rp o e na alma inteiro s. O homem tem
o valo r que a si p ró p rio dá.
Diziam eles estas palavras quando Lobisom em chegou com
todos os seus gigantes; e ao v e r Pantagruel sozinho encheu-
-se de valentia e presunção, esperançado em liquidar a pobre
criatu ra. D isse então aos gigantescos com panheiros:
- Ó pindéricos da te rra do lá-vai-um! Mafoma vos acuda
se um de vós quiser bater-se com eles, pois m o rte cruel vos
darei! D eixai-m e com b ater sozinho, que é essa a minha vo n ­
tade. En tretan to , matai o tem po a olhar para nós.
E assim se re tira ra m todo s os gigantes e o re i, para um
local perto das garrafas; e Panurgo e os seus com panheiros
fizeram o u tro tanto, desatando Panurgo a im itar um sifilítico,
pois re to rc ia a fro n h a, re vira v a os dedos e dizia com uma
voz enrouquecida:
- C o m p a n h e iro s, eu arreneg ue D eus se vos fize rm o s a
mais pequena guerra. Enquanto os nossos amos se baterem ,
consenti que nos retem p erem o s ao vosso lado.
A o que acederam de bom grado o rei e os gigantes, co n ­
vidando-os a fazer juntos um banquete. En tretan to , Panurgo
ia-lhes contando as fábulas de T u rp in 1, os exem plos de São
N ic o la u 2 e histórias do arco-da-velha.
Lo bisom em dirigiu-se, pois, a Pantagruel com uma clava
que pesava nove mil e setecentos quintais e dois quartinhos,
toda ela de aço, aço de C alib es, e term inada com tre ze pon­
tas de diam ante, a mais pequena tão grande com o o m aio r
sino de N ossa Senhora de Paris; se havia diferença era por
uma unha negra ou quanto m uito, e olhem que não m into,
pelo fio de uma dessas facas cham adas « c o rta - o re lh a s » ,
em bora se trate de uma ninharia que não tira nem põe; além

RABELAIS 17 0
do mais, com o era encantada nunca podia partir-se; pelo co n ­
t r á r io , p artia im ed iatam en te tudo aquilo em que to cava.
D e sta fo rm a, e porque ele estava a a p ro xim a r-se numa
grande fúria, Pantagruel pôs os olhos no céu e, do mais fundo
da alma, encom endou-se a D eus com o seguinte voto:
- Senhor D eus, que sem pre foste meu p ro te c to r e salva­
dor, vê a aflição em que me encontro agora. Só um zelo natu­
ral me traz aqui, já que outorgaste aos hom ens a defesa e a
p ro tecção de si p ró p rio s, das suas m ulheres, dos seus filhos,
da pátria e da família nos m om entos em que o tem a não é
a fé que te diz respeito; porque em tais ocasiões só aceitas
ajudante de confissão católica e ao serviço da tua palavra, e
todas as arm as e defesas nos proíbes por seres o Todop o -
d ero so que, em caso pró p rio e quando está em jogo a sua
causa, é capaz de se defender m uito m elhor do que sabemos
imaginar, e tens mil milhares de centenas de milhões de legiões
de anjos, um só capaz de matar a humanidade inteira e revolver
céu e te rra à sua vontade, com o o u tro ra foi bem evidente
no e x é rc ito de Senaquerib3. Po r isso, se te apraz conceder-
-me agora ajuda, com o só em ti deposito confiança e fé faço
prom essa de pura, sim ples e com pletam ente m andar pregar
o teu santo Evangelho em todas as te rra s, tanto as do país
da U topia com o o utras onde eu tiv e r poder e autoridade, de
form a a que, em meu re d o r, sejam exterm inado s os e x c e s­
sos de uma porção de hipócritas e falsos profetas que, através
de co nstituições humanas e invenções depravadas, envenena­
ram o mundo inteiro .
N esse instante ouviu-se uma voz do céu d ize r: Hoc fac
et v/nces, ou seja: «Faz assim, que a vitó ria será tua.»
D epo is, ao v e r que Lobisom em se aproxim ava de goela

171 PANTAGRUEL
aberta, Pantagruel arrem eteu afoitam ente co ntra ele e e xcla ­
mou o mais alto que podia: « M o rre , patife! M o rre !» , para o
seu h o rríve l grito, de aco rdo com a lição dos Lacedem ónios,
lhe m eter medo. D epois atirou-lhe com mais de dezoito bar­
ris e com m eia fanga de sal da b arca que tra z ia à c in tu ra ,
e com eles lhe encheu garganta, g o rg o m ilo , n a riz e o lh o s.
Irrita d o , Lobisom em desferiu um golpe de clava porque
queria rebentar-lhe a cabeça. Mas Pantagruel foi hábil e man­
teve o olho vivo e o pé ligeiro: por isso deu um passo atrás
com o pé esquerdo, em bora não tivesse conseguido fazê-lo
sem o golpe a c e rta r na barca, parti-la em quatro mil o ito ­
centos e seis pedaços e d e rram ar por te rra o re sto do sal.
Q uando viu isto, Pantagruel abriu vigorosam ente os braços
com o exige a arte do m achado, pôs a extrem idade grossa do
m astro a fazer de estoque, desferiu-lhe uma pancada acima
do m am ilo e, desviando o golpe para o lado esq u e rd o , atin ­
giu-o de ponta e gume entre o colarinho e o cabeção: depois,
avançando o pé direito deu-lhe uma ponteirada nos colhões
com a parte su p e rio r do m astro, partindo o cesto da gávea
e derram ando os três ou quatro barris de vinho que restavam .
C u id o u então Lo b iso m e m que tinha a bexiga rasgada e o
vinho derram ado era a sua urina.
N ão satisfeito, Pantagruel quis red o b rar o golpe mas Lobi­
som em ergueu a clava, deu uns passos na sua d ire c ç ã o e
tento u a c e rta r-lh e com toda a fo rça que tinha; na verd ad e
agrediu-o tão cruelm ente que, não fora D eus acudir, o bom
Pantagruel teria ficado rachado desde a cabeça ao fundo do
baço: mas tão p ro nto e brusco foi o seu m ovim ento, que o
golpe sofreu um desvio para a direita e a clava ficou espetada
mais de setenta e trê s pés no solo, perfurando uma grande

RABELAIS 172
rocha e fazendo saltar uma chama mais alta do que nove mil
e seis barricas.
A o ve r Lobisom em e ntretid o a d escravar a clava presa
ao solo através da rocha, Pantagruel foi-se a ele, com a inten­
ção de lhe c o rta r a cabeça bem cortada, mas p o r má so rte
o m astro aflorou o co rp o da clava de Lobisom em , que era
encantada (com o atrás dissem os), e partiu-se a três dedos do
punho. Mais espantado que um fundidor de sin o s4, gritou:
- Ah! Panurgo, onde estás tu?
O u v in d o o ap e lo , Panurgo d isse ao re i e aos gigantes:
- Deus me valha! Ainda se magoam, não indo nós sepa­
rá-los!
O s gigantes, porém , m ostraram -se tão indiferentes com o
se estivessem numa noite de pândega.
Carpalim decidiu levantar-se para s o c o rre r o m estre, mas
um gigante disse-lhe:
- Po r G olfarim , sobrinho de Maomé! Se saíres daqui enfio-
-te, com o um supositório, no fundilho das minhas calças! Real­
m ente ando com p risã o -d e-v e n tre , e só a m uito ranger de
dentes consigo cagar.
D e stitu íd o , assim , do varapau, Pantagruel vo lto u a agar­
ra r na ponta do m astro e, pimba-pimba, malhou no gigante,
c o n se g u in d o m o le s tá - lo ta n to c o m o um p ip a ro te a uma
bigorna de fe rre iro .
E n tre ta n to , Lo b iso m e m tinha tira d o a clava do so lo e,
com ela já solta, preparava-se para fe rir Pantagruel, que estava
ate n to aos seus g estos e se tinha esquivad o de to d o s os
golpes, mas nesse m om ento - vendo Lobisom em am eaçá-lo
enquanto dizia: «M alvado, agora vou dar-te com o machado
até fic a re s c a rn e picada: não m ais v o lta rá s a fa z e r sede a

17 3 PANTAGRUEL
pobres-diabos!» - resolveu pregar-lhe um tão grande pon­
tapé no v e n tre que o fez c a ir para trá s , com as p ern as a
escoicinhar, e arrastá-lo assim , de esfola-cu, até mais longe
do que um tiro de arco .
E Lobisom em gritava, a vo m itar sangue pela boca:
- Maomé! Maomé! Maomé!
V o z esta que fez levantar todos os gigantes para lhe p re s­
tarem so co rro . D isse-lhes, porém , Panurgo:
- Senhores, se acreditais em mim não avanceis porque o
nosso m e stre é lo u co , bate a to rto e a d ire ito sem o lh ar
a quem. Ainda vos dará um desastrado golpe.
Mas os gigantes nenhuma atenção lhe deram quando v e ri­
ficaram que Pantagruel estava sem m astro.
Logo que os viu a p ro xim ar-se , Pantagruel agarrou em
Lo bisom em pelos dois pés, levantou -lhe o c o rp o re ve stid o
de bigornas com o se fosse uma lança, bateu com ele nos
gigantes arm ados com blocos de cantaria deitando-os ao chão
com o lascas de pedra de um p edreiro, e nem um só parou à
sua frente que não caísse. E quando estes arneses de pedra se
partiram , houve um muito ho rrível estrondo parecido com o
da grande to rre de manteiga, que havia em Saint-Etienne de
Burges, a d e rre te r-se ao s o l5. E n tre ta n to Panurgo ia c o r ­
tando, com Carp alim e Eusténio, a cabeça aos que jaziam no
chão.
Ficai a saber que nem um escapou, e Pantagruel parecia
um ceifeiro a c o rta r com uma foice (que era Lobisom em ) as
ervas de um prado (que eram os gigantes); nesta esgrim a
Lobisom em perdeu a cabeça. A co n teceu quando Pantagruel
deitou abaixo um deles, cham ado R iflando uille6 e com pleta­
m ente arm ado com pedras de grés, e uma lasca projectada

RABELAIS 17 4
co rto u de um lado ao o u tro a garganta de Epistém ão; pelo
c o n trá rio , a m aior parte estava mal armada com pedras de
tufo, e alguns havia que só dispunham de pedras de ardósia.
Verificando, por fim, que todos tinham m orrido, Pantagruel
atiro u o corp o de Lobisom em para dentro da cidade, o mais
longe que podia; fê-lo cair de barriga na praça m aior, com o
uma rã , e com a queda m atar in sta n ta n e a m e n te um gato
escaldado, uma gata encharcada, uma abetarda e um pássaro-
-bisnau.

175 PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XXX

COMO EPISTÉMÃO,
QUE TINHA A SEPAROLA CACHADA',
FOI HABILMENTE CURADO POR PANURGO,
E TEVE NOTÍCIAS DE DIABOS E DANADOS

C onsumada esta derro cada gigantal, Pantagruel refugiou-se


no sítio onde estavam as garrafas e cham ou Panurgo e os
o u tro s que fo ram , sãos e salvos, te r com ele; com excepção
de Eu sté n io , que ficara com o ro s to levem ente arran h ad o ,
enquanto degolava um gigante, e Epistém ão, que não com pa­
re ceu . P o r causa deste últim o Pantagruel ficou p e saro so ao
po nto de q u e re r m a tar-se ; mas disse-lh e Panurgo assim :
- Vá lá, senhor! Esperai um pouco porque vamos procurá-
-lo en tre os m o rto s e saber toda a verdade.
E ao procurá-lo encontraram -no de pernil esticado e com
a cabeça ensanguentada nos b ra ço s. E xc la m o u E u sté n io :
- A h! M orte malvada, que nos roubaste o mais perfeito
dos homens!
A tais palavras Pantagruel ergueu-se com o m aior pesar
que algum dia se viu no m undo, e disse a Panurgo:
- Ah! Meu amigo, quão falso me saiu o auspício dos teus
dois copos e do varapau!
Respondeu, porém , Panurgo:
- Meus filhos, nem uma lágrima ch o reis. Ele ainda está
quente, vou pô-lo mais são do que algum dia esteve.

177 PANTAGRUEL
Isto dizendo, agarrou na cabeça e meteu-a no quente da
braguilha para não apanhar vento. Eusténio e Carpalim levaram
o co rp o para o lugar onde tinham feito o banquete, não p o r­
que tivessem esperança de que ele voltasse à vida mas para
Pantagruel o v e r. N ão o b sta n te , Panurgo re c o n fo rta v a -o s :
- Eu perca a cabeça se o não cu rar (o que era uma aposta
de lo uco). Acabai com esse ch o ro e ajudai-me.
Pôs-se então a lim par m uito bem o pescoço e a cabeça
com vinho b ranco do m e lh o r, e p o lvilh ou -os com o pó de
m erdanato que trazia sem pre num dos bolsos; depois besun­
tou-os com qualquer coisa, sei lá o quê, e ajustou-os rig o ro ­
sam ente veia com veia, nervo com nervo , espôndilo co n tra
espôndilo, para ele não ficar com um to rc ic o lo (pois odiava
de m o rte aqueles que o tinham ). Feito isto, deu quinze ou
dezasseis pontos de agulha à ro da da cabeça, para ela não
v o lta r a c a ir, e em toda a e xte n são passou um pouco do
unguento a que cham ava ressuscitativo.
D e repente, Epistém ão com eçou a resp irar, depois a ab rir
os o lh o s, depois a b o ce ja r, depois a e s p irra r, e p o r fim deu
um grande peido de re se rva. D isse então Panurgo:
- C o m toda a certeza já está curado!
D eu-lh e a beb er um copo de vinho b ranco bem b ravo ,
com carne assada e açúcar.
E assim fico u E p isté m ã o h ab ilm en te c u ra d o , ap e sar de
ro uco mais de trê s semanas e com uma tosse seca que só
conseguiu c u ra r à custa de muita bebida.
D esatou a falar e contou que tinha visto os diabos, falara
sem c e rim ó n ia s com L ú c ife r, fo ra m u ito bem tra ta d o no
In fe rn o e nos C a m p o s E lís io s , g aran tin d o a to d o s que os
d ia b o s fazem boa c o m p a n h ia . Q u a n to às alm as d a n ad a s,

RABELAIS 178
e xp lico u que estava m uito a b o rre c id o p o r Panurgo o te r
cham ado tão depressa à vida:
- Porque olhá-las (disse ele) é um singular entretenim ento.
- Então porquê? - quis Pantagruel saber.
- N ão as tratam tão mal com o pensais (disse Epistém ão),
em bora o seu estado se altere de uma estranha form a. Sim,
porque eu vi A le xa n d re o G ran d e rem en dar calças velhas
para ganhar a sua pobre vida,
X e r x e s 2 apregoar m ostarda;
R ó m u lo 3 era vendedor de sal,
N um a4 fazia pregos,
T a rq u ín io 5 era agiota,
Pisão6 cam ponês,
Sila7 barqueiro,
C ir o 8 era vaqueiro,
T e m ísto c le s9 vid raceiro ,
Epam inondas10 espelhista,
B ru to e C á s s io 11 agrim ensores,
D e m ó ste n e s12 vinhateiro ,
C íc e r o 13 atiça-fogo,
Fáb io 14 enfiador de te rço s,
A r ta x e r x e s 15 c o rd o e iro ,
En e ia s16 m o leiro ,
A q u ile s17 tinhoso,
A gam ém no n18 lam be-tachos,
U lis s e s 19 ceifeiro ,
N e s t o r 20 m ineiro,
D a r io 21 lim pa-latrinas,
A n co M á rc io 22 calafate;
C a m ilo 23 fazia galochas,

179 PANTAGRUEL
M a rc e lo 24 descascava favas,
D r u s o 25 era quebra-am êndoas,
Cipião o A fricano 26 apregoava borra de vinho num tamanco,
A sd rú b a l27 era lan tern eiro ,
A n íb al28 c riad o r de galinhas,
P ría m o 29 vendia trap o s velhos,
Lancelo te do Lag o 30 era esfo lad or de cavalos m o rto s,
todos os C avale iro s da Távo la Redonda eram m íseros ganha-
-tostões que davam ao rem o para passar as ribeiras do C o cito ,
do Flegétão, do Styx, do A q u ero n te e do L e te s31 quando os
senho res diabos queriam divertir-se e passear na água com o
os bateleiros de Lião e os gondoleiros de Veneza; mas po r
cada viagem não lhes davam mais que um piparote e, à noite,
um qualquer pedaço de pão b o lo ren to ;
T ra ja n o 32 era pescador de rãs,
A n to n in o 33 lacaio,
C ó m o d o 34 jo alh eiro ,
P e rtin a x 35 partia nozes,
L ú c u lo 36 era assador,
Ju stin ian o 37 fabricante de brinquedos,
H e ito r 38 era aprendiz de co zin h eiro ,
P á ris39 era um pobre andrajoso,
A q u ile s40 enfeixado r de feno,
C am b ise s41 a rrie iro ,
A r ta x e r x e s 42 escum ador de tachos,
N e ro 43 era tocador de sanfona e tinha com o criado F e rra ­
b rá s44, em bora mil dores lhe arranjasse: obrigava-o a co m er
pão trigueiro e a beber vinho ferm entado, enquanto ele comia
e bebia do m elhor;
Jú lio C é s a r e P o m p e u 45 eram a lc a tro a d o re s de n avio s,

RABELAIS 1 8 0
Valentino e O rs o n 46 serven tes nos banhos do Inferno e
raspadores de m áscaras de beleza,
Giglan e G auvain47 eram pobres guardadores de po rco s,
G e o fre d o o D entuças48 ven dedor de fó sfo ro s,
G o d o fred o de Bulhão49 fabricante de dom inós,
Jasão50 era te so u re iro de igreja,
D om Pedro de C a ste la 51 p o rta d o r de relíquias,
M organ52 vendedor de cerveja,
Huão de B o rd é u s53 era re stau rad o r de pipas,
P irro 54 bicho-de-cozinha,
A n tío c o 55 era lim pa-cham inés,
R ó m ulo 56 era rem endão de chancas,
O c tá v io 57 raspador de papéis,
N e rv a 58 palafreneiro,
o papa Jú lio 59 pregoeiro de pastéis, mas já não usava a
sua grande e descarada barba,
João de Paris60 era ensebador de botas,
A r tu r da Bretanha61 desensebador de bonés,
Furam atos62 carregador de cesto s,
Bonifácio oitavo, papa, era lavador de panelas,
N icolau te rc e iro , papa, era papeleiro,
o papa A le xa n d re 63 era apanhador de ratos,
o papa Sisto untador de sífilis.
- O quê? (disse Pantagruel) Há sifilíticos no Além ?
- É verdade (disse Epistém ão), nunca vi tantos; há mais
de cem m ilhões. Podeis acred itar: quem não teve sífilis neste
m undo, apanha-a no o u tro .
- C o m a breca! (disse Panurgo) Então estou safo, porque
já a tive até ao olho de G ib ra lta r e com ela enchi as Colunas
de H é rcu le s, e das mais assanhadas dei cabo!

181 PANTAGRUEL
- O g ie r o D in a m a rq u ê s 64 e ra p o lid o r de a rm a d u ra s ,
o rei T ig ra n o 65 era telhador,
G aliano R estaurado 66 apanha-toupeiras,
os q u a tro filh o s de A im o n 67 a rra n c a d o re s de d e n te s,
o papa C a lix t o 68 e ra b a rb e iro de ve rg o n h o sa s fe n d as,
o papa U rb an o 69 papa-jantares,
M elusina70 era bicho de cozinha,
M atabruna71 lavadeira de b arreia,
C le ó p atra vendedeira de cebolas,
H elena72 c o rre to ra de criadas de quarto,
Sem iram is73 despiolhadora de mendigos,
D id o 74 vendia agáricos,
Pentesileia75 cultivava agriões,
Lu c ré cia 76 era enferm eira,
H o rtê n sia 77 fiadeira,
Lívia78 raspadora de azebre.
« Q u e m tinha sido grande se n h o r neste m undo ganhava
assim a sua pobre, difícil e m iserável vida. Pelo c o n trá rio , che­
gara a vez aos filó so fo s, e aos que tinham sido indigentes
neste mundo, de serem grandes senhores.
«Vi Diógenes mergulhado em magnificência, com um grande
trajo de púrpura e um cep tro na mão direita, fazendo en rai­
ve ce r A lexan d re o G rand e e a pagar-lhe com fo rtes cacetadas
quando ele lhe não rem endava bem as calças.
« V i Ep ic te to 79 elegantem ente vestido à francesa e à som ­
bra de uma bela ra m a ria, a g o zar, a b eb er e a dançar com
muitas donzelas, sem pre numa vida farta e tendo ao pé de si
m uitos escudos de sol. P o r cim a da latada havia estes v e r ­
sos, com postos para a sua divisa:

RABELAIS 182
Saltar, dançar sem descanso,
Branquitinto por briol,
Nada fazer no ripanço,
Só contar escudos de sol.
«Fez-m e, quando me viu, um delicado convite para beber
com ele; aceitei-o de bom grado e teologalm ente em bo rcá­
mos. En tretan to , C ir o veio pedir-lhe um denário por am or
de M ercúrio, pois queria com p rar algumas cebolas para a ceia.
‘Nada, nada’, disse Ep icteto , ‘não te dou denário nenhum.
T o m a lá um escudo, m alandro, e sê homem de bem .’ G rand e
alívio sentiu C ir o po r te r arranjado um tal espólio; mas os
patuscos dos reis que lá andam, com o A le xan d re , D a rio e
o u tro s, durante a noite roubaram -no.
«Vi Patelim 80, te so u reiro de Radam anto81, ap reçar pastéis
que o papa Júlio apregoava, e perguntar-lhe: ‘A dúzia quanto
é? - T rê s brancas’, respondia o papa. ‘- São, mas é, trê s b o r­
doadas! (dizia Patelim ) Passa-os para cá, m alvado, passa-os
para cá e vai buscar o u tro s!’ O pobre papa afastou-se a chorar.
Q uando chegou ao pé do pasteleiro, seu patrão, explicou que
lhe tinham roubado os pastéis e chegado de tal form a a roupa
ao p êlo , que da sua pele nem uma g aita-de-fo les p o d eria
fazer-se.
«Vi o m estre Jean Le m a ire 82 a im itar o papa, obrigar aque­
les pobres reis e papas deste mundo a beijar-lhe os pés, vi-o
bichanar-lhes a sua bênção e dizer: ‘Ganhai os p erdões, ó bil­
tre s, ganhai-os porque são baratos. Eu vos absolvo de pão e
de sopa83, e dispenso-vos de não mais voltardes a valer nada.’
Cham ou C a ile tte e T rib o u le t84, dizendo: ‘Despachai, senho­
res cardeais, as suas bulas; que são apanhar, cada um deles,
uma paulada nas co stas.’ O que logo ali foi cum prido.

18 3 PANTAGRUEL
«V i o m e stre F ra n ço is V illo n 85 perguntar a X e r x e s 86:
‘A porção de m ostarda quanto custa? - Um d enário ’, disse
X e rx e s . A o que respondeu o referid o Villon: ‘A s febres quar­
tas te levem , malvado! O que a moeda branca com pra aqui
não vale um tostão, e encareces os víveres?’ Por isto lhe mijou
na selha, tal com o fazem os m o stard eiro s de Paris.
«Vi o fran co -atirad o r de Bagno let87, que era inquisidor
dos herejes. T inh a encontrado Furam atos a m ijar co n tra uma
m uralha com um fogo de Santo A n tó n io p in tad o 88. D e c la ­
rou-o hereje, e tê-lo-ia mandado queimar vivo não fora Morgan
d a r-lh e nove alm udes de c e rv e ja pelo seu propiciat 89 e
o utras pequenas regalias.»
D isse então Pantagruel:
- G u ard a para o u tra vez essas boas h istó ria s. D iz-n o s
apenas com o tratam lá os usu rário s.
- Vi-os todos a p ro cu ra r alfinetes enferrujados e velhos
pregos nas valetas das ruas - respondeu Epistémão - tal com o
costum ais v e r os to lo s neste mundo fazer, em bora o quintal
dessas velh arias não valha mais do que uma côdea de pão;
ainda po r cima com um inconveniente: os pobres desses infe­
lizes ficam mais de trê s sem anas sem c o m e r pedaço nem
migalha, e trabalham dia e noite enquanto esperam a fe ira
seguinte; mas tão activos e m alditos são, que só lhes fica, de
um tal trabalho e de uma tal infelicidade, um m ísero denário
no fim do ano.
- Pois bem (disse Pantagruel), façam os um pouco de bom
passadio e tende a bondade de beber, meus filhos, porque
este mês deve se r, todo ele, de boa bebida.
D e sro lh a ram , p o rtanto , uma boa porção de garrafas, e
com as m unições do campo fizeram um banquete; o pobre

RABELAIS 184
rei Anarca é que não conseguiu alegrar-se. Disse então Panurgo:
- Q u e profissão havemos de ensinar aqui ao senho r rei,
para se r perito numa arte quando estiver no A lém e entregue
a todos os diabos?
- Realm ente (disse Pantagruel) perguntas bem. O lh a, faz
com o quiseres, é teu.
- M uito obrigado (disse Panurgo), pois não é presente
que se recuse, e agrada-me por me chegar de vós.

185 PANTAGRUEL
C A P I T U L O XXXI

COMO PANTAGRUEL
ENTROU NA CIDADE DOS AMAUROTAS,
E COMO PANURGO CASOU O REI ANARCA
E O FEZ PREGOEIRO DE MOLHO VERDE

D epois desta m aravilhosa vitó ria, Pantagruel mandou Carpalim


à cidade dos A m aurotas d izer e anunciar que o rei A narca
fo ra preso e todos os seus inimigos tinham sido d erro tad o s.
A o ouvirem tal notícia, os habitantes saíram ao seu encon­
tro em boa o rdem , com uma grande e triunfal pom posidade,
com um júbilo divino andaram juntos por toda a cidade, em
todo o lado houve belos fogos-de-artifício e arm aram -se nas
ruas bonitas mesas redondas guarnecidas com m uitos víveres.
T a n to co m eram e b eb eram , que ali re v iv e ra m o tem p o de
S a tu rn o 1.
Reunido o Senado in teiro , disse porém Pantagruel:
- Senhores! Enquanto o fe rro está quente deve se r malha­
do; de igual form a, antes de cairm os em desvarios m aiores
quero to m ar convosco de assalto o reino dos D ípsodos. Por
isso, quem desejar juntar-se a mim esteja amanhã preparado
a seguir ao dejejum , pois nessa altura m eter-m e-ei ao cam i­
nho. N ão que eu precise de mais gente para me ajudar a co n ­
quistá-lo, porque já estou com o se o tivesse em meu poder;
mas vejo que esta cidade está cheia de habitantes, ao ponto
de não poderem virar-se nas ruas; p o r isso vou levá-los a
D ipsódia, com o uma colónia, e o ferecer-lh es esse país que é

RABELAIS 18 6
o mais belo, saudável, fé rtil e agradável do m undo, com o
sabem alguns de vós p o r lá terem estado o u tro ra . Q uem
desejar seguir-me que se apreste, com o eu disse.
T al conselho e tal reso lução foram divulgados na cidade,
e no dia seguinte juntou-se gente na praça fro n te ira ao palá­
cio que chegava ao núm ero de um milhão o ito cen to s e cin­
quenta e seis mil e onze, sem co n tar m ulheres e criancinhas.
E com eçaram a m archar em direcção a D ipsódia, em tão boa
ordem que pareciam os filhos de Israel quando partiram do
Egipto para a travessia do M ar V erm elho .
A n tes de acom panhar este com etim ento , quero porém
n a rra r com o Panurgo trato u o rei A n arca seu p risio n eiro .
Lem brando-se do que Epistém ão tinha contado - com o os
reis e os ricos deste mundo eram tratados nos Cam pos Elísios,
e com o ganhavam a vida em vis e sujos m isteres - um dia
resolveu v e stir o seu rei com um belo gibão de pano cru tão
esfarrapado com o o estandarte de um albanês, e com belas
calças à m arinh eiro , em bora sem sapatos porque iriam (dizia
ele) estrag ar o co n ju n to ; pôs-lhe um pequeno boné garço
com uma grande pena de capão - estou a m en tir, pois talvez
tenham sido duas - e um belo cinto garço e verd e, afirm ando
que tal t r a jo lhe fic a v a b em , p o r e le t e r sid o perverso 2.
Levando-o nessa figura à p resen ça de Pantagruel, disse:
- C o n h eceis este pândego?
- Po r ce rto que não - respondeu Pantagruel.
- Pois é o senho r rei dos quatro costados; quero fazer
dele homem de bem. O diabo destes reis não passam de uns
nabos; não sabem nada nem servem para nada, só para fazer
mal aos pobres súbditos, e para seu iníquo e detestável prazer
p e rtu rb a r toda a gente com as suas g u e rra s. Q u e ro arran-

187 PANTAGRUEL
jar-lhe um ofício fazendo-o pregoeiro de molho verde. Com eça
lá a gritar: Quem quer molho verde?
E o pobre-diabo gritava.
- Isso mais alto - dizia Panurgo; e pegou-o por uma orelha,
acrescentando: - C an ta mais alto, em si, sol, ré , dó. A ssim
m esm o, dem ónio! T e n s boa garganta; e nunca foste tão feliz
com o depois de não seres rei.
Pantagruel achava muita graça a isto porque era, atrevo-
-me a dizê-lo, a m elh o r criatu ra que ali estava. A ssim se fez
A n arca um bom p regoeiro de m olho verd e.
Passados dois dias Panurgo casou-o com uma velha lanter-
n e ir a 3, e n carreg o u -se da boda que não teve falta de boas
cabeças de c arn e iro , bons grelhados de p o rco com m ostarda
e bons assado s com alho - e c in co c a rro ç a s de tu d o isto
enviou a Pantagruel, que as achou m uito apetitosas e com eu
até não so b rar nada - regando-as com boa zurrapa e bom
vinho de so rve ira ; e, para os obrigar a dançar, co ntrato u um
cego que lhes dava sanfona.
D epois do jantar levou-os ao palácio, m ostrou-os a Panta­
gruel e disse, apontando para a noiva:
- N ão c o rre o risco de se peidar.
- Porquê? - perguntou Pantagruel.
- Po rq ue (re sp o n d e u Panurgo) tem uma grande racha.
- O que pretendeis dizer com isso? - quis saber Pantagruel.
- Não sabeis (respondeu Panurgo) que as castanhas assadas
no fo rn o dão traq u es com o o diabo, se e stive re m in tactas,
e para as im pedirm os de dar traques fazem os-lhes um corte?
O ra , a recém -casad a tem os b aixo s bem rachado s e não se
peidará.
Pantagruel ofereceu-lhes uma pequena venda ao pé da rua

RABELAIS 188
Baixa e um alm ofariz de pedra para pilar o m olho. A li co n s­
tru íram o seu pequeno lar, e assim se transform ou ele no
mais sim pático pregoeiro de m olho verd e que alguma vez foi
visto em U topia. Mais tarde me disseram , porém , que a m u­
lher malhava nele com o em cen teio verd e, e o pobre parvo
era tão tanso que nem ousava defender-se.

18 9 PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XXXI

COMO PANTAGRUEL COBRIU COM


A LÍNGUA TODO UM EXÉRCITO, E AQUILO
QUE O AUTOR VIU NA SUA BOCA

H ouve alegria geral quando Pantagruel entrou com todo o


seu bando nas te rra s dos D íp so do s, que logo se lhe dirigi­
ram e de livre vontade deram as chaves de todas as cidades
por onde passava; excepção foram os A lm íro d o s 1, que p re ­
tenderam enfrentá-lo e responderam aos seus em issários que
só se renderiam com boas garantias.
- O quê! (disse Pantagruel) Pedem m elhores do que uma
m ão na bilh a e na o u tr a o c o p o ? V a m o s p ô -lo s a saq u e!
To d o s se organizaram, portanto, com o se estivessem deci­
didos ao ataque. Mas no cam inho, ao passarem numa grande
planura foram surp reend idos por uma fo rte bátega de chuva
que os fez tirita r e apertar-se uns co n tra os o u tro s. A o ap er­
ceber-se disto, Pantagruel mandou os capitães dizer-lhes que
se tratava de uma coisa sem im p o rtân cia e via m uito bem,
por cima das nuvens, que não passava tudo de simples orvalho;
mas d ispu sessem -se, ap esar d isso , em fo rm a tu ra , p o rque a
todos queria c o b rir. Puseram -se, então, numa perfeita e bem
cerrad a form a, e Pantagruel tapou-os com o a galinha aos pin­
tos sem deitar de fo ra mais do que metade da língua.
Eu, que vos conto histórias tão verídicas, estava esco n ­
dido debaixo de uma folha de bardana não menos larga do
que o arco da ponte de M antrible; e, quando os vi tão bem

RABELAIS 1 9 0
co b e rto s, fui te r com eles mas já não consegui abrigar-m e
porque, com o costum a dizer-se, «um final de peça a lençol
não chega». P o r isso me pus em cim a da língua, o m e lh o r
que pude, e duas boas léguas andei nela até e n tra r na boca.
Mas o que vi, ó deuses e deusas? Se m into, fulm ine-m e
Jú p ite r com o seu raio trífid o . P o r lá andava eu, com o em
Santa Sofia de C o n sta n tin o p la , e via ro ch e d o s tão grandes
com o os m ontes dos D en tam arq u e se s (julgo que seriam os
d e n te s)2, e grandes prados, grandes florestas, fo rtes e opulen­
tas cidades não m enores do que Lião ou P o itiers.
Com ecei por encontrar um homenzinho a plantar couves.
Po r isso perguntei, m uito espantado:
- Q u e fazes tu aqui, meu amigo?
- Planto couves (respondeu ele).
- E para quê, e como? - quis eu saber.
- A h ! Se n h o r (d isse e le ), nem todo s podem ro ç a r o cu
nas esquinas, nem todos podem se r rico s. A ssim ganho eu a
vida, levando-as a vender ao m ercado da cidade que fica ali
atrás.
- Jesus! (exclam ei) Há aqui um novo mundo?
- N o vo (disse ele) certam ente não é, e costum a afirm ar-
-se que e xiste lá fora uma te rra nova com sol e lua, e a abar­
ro ta r de belos trabalhos; esta, aqui, é mais antiga.
- Pois sim , meu amigo (resp o n d i), mas com o se chama a
cidade onde vais ven d er as tuas couves?
- C h a m a -se A s fa ra g o 3 (d isse e le ) e tem gente c ris tã ,
honesta, que há-de tratar-vo s a bom passadio.
Resum indo, resolvi lá ir.
O ra sucede que en contrei no cam inho um com panheiro
a arm ar aos pom bos, e perguntei-lhe:

191 PANTAGRUEL
- Meu am ig o , de o n d e vo s a p a re c e m e s te s p o m b o s?
- Senhor (disse ele), vêm do o u tro mundo.
C o n clu í, então, que Pantagruel bocejava e os pombos m e­
tiam -se em grandes revoadas na sua garganta, julgando que
era um pombal.
D e p o is, quando cheguei à cidade achei-a fo rm o sa , bem
fortificada e com bom ar; mas à entrada os p o rte iro s pedi­
ram -m e o certificado de saúde, o que m uito me espantou e
fez perguntar:
- Senhores, haverá por aqui perigo de peste?
- Ó senho r (disseram eles), m o rre-se tanto aqui p erto ,
que anda a carro ça a c o rre r as ruas.
- Valha-m e D eus! (exclam ei) E onde?
A isto me responderam que em Laríngia e Faríngia, duas
cidades tão grandes com o Ruão e N antes, ricas e cheias de
co m ércio , e que uma fedorenta e infecta exalação, saída ainda
há pouco dos abism os, é que causara a peste, e nos últim os
oito dias tinha m o rto mais de dois m ilhões e duzentas e ses­
senta mil e dezasseis pessoas. Pensando m elhor no caso, co n ­
cluí que uma m al-cheirosa baleia tinha chegado ao estôm ago
de Pantagruel quando ele com eu to d o aquele guisado com
alho que atrás referim os.
Dali saindo passei entre rochedos que eram os seus dentes,
e tanto me esforcei que consegui subir para cima de um deles
e en contrei as mais belas regiões que existem , fo rm o so s e
vasto s jogos de péla, fo rm o sas galerias, fo rm o so s p rados,
im ensas vinhas, uma infinidade de m oradias à italiana no m eio
de campos cheios de delícias, e quatro meses bem contados
p o r lá d e m o re i a g o zar a vida co m o nunca tinha gozado.
D e p o is desci pelos dentes de trá s, para ating ir os dois

RABELAIS 192
lábios, mas no caminho fui roubado por bandidos, numa grande
flo resta que há para as bandas das orelhas.
D epo is, quando desci e nco ntrei um pequeno povoado (já
esqueci o seu nom e) onde gozei a vida com o nunca e ganhei
o dinheiro necessário para viver. Sabeis como? A d o rm ir, pois
contratam as pessoas ao dia para d o rm ir, e elas ganham com
isso cinco e seis cêntim os; e, se ressonarem muito alto, chegam
a ganhar sete e m eio. Q uando contei aos senadores que tinha
sido roubado no vale, responderam -m e que a gente da o utra
banda era, para falar verdade, de má vida e bandida p o r natu­
reza, tendo eu ficado a p erceb er que existem lá te rra s de
aquém e além dentes, com o aqui há te rra s de aquém e além
m ontes; mas bastante m elh or se vive aquém, e com ar mais
saudável.
Falam os verdade, com ecei então a pensar, quando dize­
m os que m etade do m undo não sabe com o vive a o u tra
m etade, porque ainda não há quem tenha e sc rito sobre essas
terras com mais de X X V reinos habitados, sem falar nos deser­
tos e num grande braço de m ar; p o r isso escrevi eu um livro
intitulado História dos Górgias, pois chamei assim à gente que
vive na garganta do meu m estre Pantagruel.
Acabei por re so lve r regressar; atravessando a barba saltei
para os o m b ro s e e sc o rre g u e i para o chão , ten d o caído
à sua frente.
Q uando me viu, perguntou:
- D e onde vens tu, Alcofribas?
Respondi:
- D a vossa garganta, senhor.
- E desde quando lá estavas? - disse ele.
- D esde que avançastes co n tra os A lm íro d o s (resp o n d i).

193 PANTAGRUEL
- V isto isso (disse ele), há mais de seis m eses. E de que
vivias? O que bebias?
Respondi:
- O m esm o que vós, senho r, porque aos mais apetitosos
pedaços que passavam na vossa garganta eu obrigava a pagar
portagem .
- Pois sim (disse ele), e onde cagavas?
- Na vossa garganta4, senho r - respondi.
- A h ! A h ! (e x c la m o u ) Q u e folgazão c o m p an h e iro me
saíste! C o m ajuda de D eus, conquistám os p o r in teiro o país
dos D ípsodos. D o u-te a castelania de M ixórdia.
- Muito obrigado, senhor (respondi). M aior bem me fazeis
do que eu vos m ereço.
C A P Í T U L O XXXIII

COMO PANTAGRUEL ADOECEU, E O MODO


POR QUE SE CUROU

Passado pouco tem po o bom Pantagruel caiu doente, e tão


atacado teve o estôm ago que não pôde beber nem com er;
e, com o uma desgraça nunca vem só, apanhou um esquenta-
m ento que o ato rm ento u mais do que p odereis acred itar.
A cudiram -lhe porém os seus m édicos e, à custa de drogas
lenitivas e diuréticas, com muita eficácia lhe fizeram m ijar o
mal.
T ã o quente a sua urina ficou, que desde então nunca mais
arrefeceu e, de aco rdo com o curso que tom ou, tem o-la em
vá rio s locais da França com o nom e de «banhos q uentes»,
com o acontece
em C a u te re ts,
em Lim o u x,
em D a x,
em Ballaruc,
em N é ris,
em Bo urbon-Lancy e no utro s lados;
na Itália
em M onte G ro tto ,
em Abano,
em San Pietro de Padua,
em Santa Elena,

195 PANTAGRUEL
em C asa N ova,
em Sancto Barto lo m eo ;
no C o ndado de Bolonha
em La P o rre tta
e mil o u tro s lugares.
Im ensam ente me espanta que uma porção de filósofos e
m édicos loucos percam tem po a discutir de onde vem o calor
às referidas águas: se é por causa do b ó rax, ou do en xo fre ,
ou do alúm en, ou do sa litre que há na m ina; tudo isso não
passa de um devaneio, e mais valeria esfregarem o cu numa
card a do que p e rd e re m tem p o a d isc u tir uma co isa cuja
origem não conhecem ; porque a solução é fácil e não exige
que pro cu rem o s m uito: os referid o s banhos são quentes po r
resultarem de um esquentam ento do bom Pantagruel.
O ra , para d izer aqui com o ele curou a sua doença p rin ci­
pal, esclarecer-vo s-ei que tom ou p o r laxativo
quatro quintais de escam óneas colofoníacas,
cento e trin ta e o ito carradas de cássia,
onze mil e novecentas libras de ruibarbo,
sem falar de o utras m istelas.
T e re is ainda de saber que a conselho dos m édicos foi de­
cretada a e xtracçã o do que lhe causava dores de estôm ago.
E para isso foram construídas XVII eno rm es maçãs de co b re,
m aio res do que a m açã do o b elisco de V irg ílio , em R om a,
que se podiam ab rir ao m eio e fechar com uma mola.
N um a delas e n tro u um dos seus, que levava lan tern a e
arch o te aceso , e Pantagruel engoliu-a com o uma pequena
pílula;
noutras cinco entraram trê s cam pónios, cada qual com
uma pá ao pescoço;

RABELAIS 196
em sete o utras entraram sete ce ste iro s, cada qual com
um cesto ao pescoço, todos engolidos com o p ílulas1.
Um a vez no estômago abriram as molas e saíram das caba­
nas, seguindo à fren te o que levava a lanterna, e caíram mais
de meia légua num horrível abismo mais m al-cheiroso e infecto
do que Mefítis ou o pântano de C am arina, ou o pestilento
lago de Sorbonne que Estrabão re fe re 2; e se não fosse terem
o coração, o estômago e o pote de vinho (chamado bestunto)
muito bem protegidos, teriam sufocado e atabafado com esses
vapores abomináveis. O h! Q u e perfum e! O h! Q u e bom vapor
para am erd alh ar em jo ven s ram e iras o p o rtal das ventas!
D ep o is, a tacte a r e a fa re jar ap roxim aram -se da m atéria
fecal e dos hum ores alterados, tendo acabado p o r e n co n tra r
um m ontão de estrum e. O s exp lo rad o re s deram -lhe b o rdoa­
das, para o quebrar, e os o u tro s encheram os cestos à pazada;
dep o is de tu d o bem lim p o , cada qual e n tro u na sua m açã.
Isto concluído, Pantagruel fez o esfo rço de cham ar pelo gre-
gório e facilm ente os deitou fo ra; para a sua garganta tinham
apenas o v a lo r de um a r ro to , e lá saíram aleg rem ente das
pílulas - lem brei-m e dos G re g o s, quando saíram do cavalo
de T r ó ia - , e deste m odo Pantagruel se c u ro u e foi re s ti­
tuído à sua saúde inicial.
U m a destas pílulas de b ro n ze p o deis e n c o n trá -la em
O rle ã e s, no cam panário da igreja de Santa C r u z 3.

197 PANTAGRUEL
C A P Í T U L O XXXIV

A CONCLUSÃO DO PRESENTE LIVRO


E AS DESCULPAS DO AUTOR

O uvistes pois, senho res, um com eço da horrenda histó ria do


meu m e stre e se n h o r Pantagruel. A q ui vou dar fim a este
prim eiro livro ; a cabeça dói-me um pouco, e realm ente sinto
os registos de órgão do meu céreb ro um tanto tu rvo s com
este m osto de Setem bro.
Nessas feiras de Francfurt que se aproxim am , tereis o resto
da h is tó ria 1 e vere is com o Panurgo foi casado e logo co rn o
no p rim eiro mês de núpcias; com o Pantagruel e nco ntro u a
pedra filosofal, e com o poderem os nós achá-la e usá-la; com o
transpôs os Montes C ásp io s2; com o navegou no mar Atlântico,
d e rro to u os canibais e conquistou as Ilhas de Perlas; com o
desposou a filha do rei das índias chamado Prestes João; com o
lutou co ntra os diabos, mandou incendiar cinco câm aras do
In fe rn o , saqueou a grande câm ara negra, a tiro u ao fogo
P ro sé rp in a 3, partiu quatro dentes e um dos co rn o s do cu de
Lú cifer; e com o visitou as regiões da Lua para saber se ela
estava realm ente inteira ou tinha trê s quartos na cabeça das
m ulheres; e mil outras graças singelas, totalm ente verdadeiras.
Bonita ocupação, afinal.
Boa n o ite , s e n h o re s. Pardonnante my 4, e não penseis
nos meus e rro s ao ponto de deixardes de pensar m uito nos
vossos.

RABELAIS 19 8
Se me disserd es: « M e stre , ao que parece não tivestes
m uito senso escrevend o tais frio le ira s e piadas graciosas»,
responder-vos-ei que vós próprios não o tereis tido em m aior
dose quando vos e n tretivestes a lê-las.
N o entanto, se as lerdes por agradável passatem po, tal
com o eu as escrevi para passar o tem po, mais dignos de p er­
dão vós e eu serem o s do que a grande cabazada de sarabaí-
ta s5, beatos falso s, santos de pau c aru n ch o so , h ip ó crita s,
jaco b eu s, beguinos, caro las e o u tra s esp écies de gente que
se m ascara para enganar o mundo.
Sim, porque fazendo c re r ao com um m ortal que apenas
se ocupam da contem plação e da devoção, a jejuar e a m ace­
ra r a sensualidade, tudo fazem m enos sustentar e alim entar
a frágil condição da sua humanidade para vive r, pelo co n trá­
rio , à larga e sabe D eus com o,

Et Curiós simulant, sed bacchanalia vivunt6 ,


com o podeis le r em le tras garrafais e ilu m in u ras nos seus
verm elho s focinhos e nas suas barrigas de sapo, a menos que
se perfum em com en xo fre.
Q u a n to ao seu estud o , to d o se co nso m e na le itu ra de
livro s pantagruélicos, não tanto para m atar alegrem ente o
tem po mas estragar a vida a o u tro s com maldade, isto é, a
articu la r, m o n o rticu lar, to rtic u la r, cusar, colh onar, diabicular,
ou seja, a caluniar. E fazendo isto parecem aqueles tolos de
aldeia que, na estação das cerejas e das ginjas, rem exem e
espagalham a merda das criancinhas para p ro curarem caroços
e vendê-los aos droguistas que preparam óleo de M ahaleb7.
Fugi dessa gente, detestai-a, tende-lhe tanto ódio com o
eu, e haveis de ve r, palavra minha, que tudo irá c o rre r-v o s

199 PANTAGRUEL
bem; e se bons pantagruelistas desejardes ser (quero eu dizer,
v iv e r com paz, alegria e saúde, e a c o m e r se m p re à fa rta )
nunca vo s fieis nas c ria tu ra s que e sp re ita m p o r b u ra c o s 8.

FIM DAS CRÓNICAS DE PANTAGRUEL, REI DOS DÍPSODOS,


RESTITUÍDAS À VERDADE COM OS SEUS FACTOS
E PROEZAS ESPANTOSOS, ESCRITAS PELO
FALECIDO MESTRE ALCOFRIBAS,
ABSTRACTOR DE
QUINTA-ESSÊNCIA

RABELAIS 2 0 0
N O T A S

DÉCIMA • Hugues Salel existiu. Foi um poeta na linha de Clément Marot


e tradutor da Ilíada. Morreu em 1554 e teve um epitáfio de Ronsard.
Como era vivo à data da publicação de Pantagruel, é provável que se
trate realmente de uma décima sua.

PRÓLOGO I. Quando Rabelais escreveu La Vie très Horrifique du Grand


Gargantua, Père de Pantagruel inspirou-se num opúsculo com este título,
editado em Lião em 1532. Embora o primeiro, na cronologia da saga
criada por Rabelais, foi escrito depois de Pantagruel. 2. Raclet era pro­
fessor de Direito na universidade de Dole. Dizer que nada entendia dos
Institutos (uma obra de Justiniano obrigatória no programa do curso)
era chamar-lhe incompetente. 3. O falcão plana, quando renuncia a
perseguir a presa. 4. Havia um tratamento da sífilis que incluía um
período de três a quatro semanas numa estufa. Rabelais compara-o à
estada no limbo, local onde se encontram as almas dos não baptizados.
5. Segundo uma crença da época, ler à parturiente a vida de Santa
Margarida facilitava o trabalho de parto. 6. 0 Vira-Garrafas virá a ser
atribuído (no Prólogo do futuro livro sobre Gargantua) a Mestre Alcofri-
bas, ou seja, ao próprio Rabelais; Orlando Furioso é um poema de Ariosto;
Roberto o Diabo é herói de muitos poemas, desde o século XIII; Ferrabrás
é um livro desconhecido, embora esta personagem venha a ser dada
como antepassado de Pantagruel (ver a genealogia do Cap. I); Guilherme
Sem Medo é uma obra desconhecida, que Rabelais volta a referir no Cin-
quième Livre; Huõo de Bordéus (que voltará a ser referido no Cap. XXX)
é o herói de uma canção de gesta, o apaixonado da bela Esclarmunda;
Mandeville é, provavelmente, o volume das viagens ao Oriente de Man-
deville; Matabruna é a madrasta na Chanson du Chevalier du Cygne, de
autor anónimo. Voltará a surgir no Cap. XX X. 7. Ou seja, sem ter a
Luz da Revelação. 8. O autor deforma satiricamente a palavra protono-
tário (notário-mor dos imperadores romanos) e transforma-a em onocro-
tário (pelicanário), logo a seguir agravada em coconotàrio. 9. Parte

201 PANTAGRUEL
do versículo 11 do Cap. 3 do Evangelho segundo São João: «damos tes­
temunho do que vemos». 10. Nome popular da sarna, na época de
Rabelais. 11. No original le maulubec vous trousque, um afrancesamento
do gascão: «o cancro vos ponha a mancar».

CAPÍTULO I I. Diz Júlio César que os Druidas contavam o tempo em


noites, e não dias. 2. Ou seja, num latim grotesco, manco. 3. «Ventre
todo-poderoso», paródia ao Credo recitado na missa, onde se diz «Deus
todo-poderoso» (Deo omnipotentem). 4. O fabulista Esopo era alei­
jado, segundo se crê. 5. A quintana era um jogo em que o cavaleiro
devia espetar com a lança um manequim, nos sítios correspondentes às
partes vitais humanas. 6. Jambo é um pé de verso formado por uma
sílaba longa e outra breve. Em francês, iambe tem uma sonoridade pró­
xima de jambe (perna). 7. Ou seja, a uva esmagada para fazer vinho.
8. A Ovídio chamavam Naso (narigudo). As duas personagens Nasão e
Ovídio são, aliás, apenas uma. 9. «Não levar em conta», em latim.
Note-se que, em francês, há uma sugestão que se não mantém em por­
tuguês: a sílaba ne sugere nez (nariz), ou seja, «nariz de levar em conta».
10. Vai seguir-se uma paródia à genealogia de Cristo. Quer São Mateus
(I, I a 17), quer São Lucas (III, 23 a 38) fizeram o esforço de estabele­
cer uma improvável genealogia de Cristo para o incluírem na linhagem
de David, e assim se cumprirem as Escrituras quanto à ascendência do
Messias. Rabelais mistura personagens lendárias com outras, históricas,
e provavelmente com outras saídas da sua imaginação. 11. No origi­
nal jeu de gobeletz. Em francês, chama-se joueur de gobelets aos embus­
teiros, daí a solução encontrada para o texto português. Mas ainda há
outra sugestão no texto original: é que o gigante Érix, morto por
Hércules, atirou ao inimigo as suas enormes luvas de ferro (gantelets)
que têm um som próximo de gobelets. 12. Como se sabe, o gigante
referido por Camões nos Lusíadas, na passagem sobre o Cabo da Boa
Esperança. Como Pantagruel foi publicado em 1532, não parece provável
o que José Hermano Saraiva escreve no Cap. 14 da sua Vida Ignorada
de Camões (edição de 1978): «O prof. Costa Ramalho identificou defini­
tivamente o livro onde Camões devia ter lido a palavra [Adamastor]:
um dicionário latino-espanhol, em algumas das suas edições de 1545 ou
1553 [...]» Ora, Camões poderia ter lido o nome do gigante Adamastor

RABELAIS 2 0 2
em Rabelais. 13. Amigo de Lancelote do Lago, um dos cavaleiros da
Távola Redonda. 14. Judeus, intérpretes da Bíblia. 15. Alusão ao
suíço tocador de corno que, em 1515, conseguiu (com ajuda de alguns
companheiros) pôr fora de uso várias peças da artilharia francesa. Pagou
essa proeza com a vida.

CAPITULO II I. Amaurota é uma das cidades de Utopia, no livro de


Thomas Morus. À letra, seu nome significa «contornos difusos». 2. No
tempo de Rabelais acreditava-se que a humidade do ar era imprescindível
ao voo das aves. 3. «Ressequidos», em grego. 4. Guy Demerson
propõe, para esta frase, o seguinte sentido: «todo o campo estava imó­
vel». 5. Empédocles. 6. A língua da escrava egípcia Agar, citada na
Bíblia; ou seja, o mouro, já que os Mouros descendem de Agar.

CAPÍTULO III I. De acordo com as regras escolásticas. 2. «Permiti


que eu jure», em latim. 3. Era costume os braços das rabecas terem
figuras esculpidas.

CAPITULO IV I. Livro consagrado aos nascimentos monstruosos. 2. Perto


do palácio de Jean de Berry, em Burges, há uma enorme taça de pedra
partida, vulgarmente chamada «a escudela do gigante». 3. Este trecho
pressupõe um episódio hoje desconhecido. Tain foi, realmente, um local
ligado a cordoarias e a entrepostos de sal. 4. Construída em 1527, La
Grande Françoise tinha dimensões tais, que não foi possível retirá-la do
estaleiro, acabando por ficar no Havre-de-Grâce. 5. Todas estas enor­
mes correntes de ferro serviam para impedir a circulação de barcos
durante a noite. 6. «À parte», no latim macarrónico dos estudantes.

CAPÍTULO V I. Depois da traição do condestável de Bourbon, o castelo


de Chantelle foi arrasado. Nada resta da arma que Rabelais refere.
2. Trata-se de um dólmen, actualmente quebrado. 3. O cavaleiro que
destruiu a abadia de Maillezais, no século XIII. 4. «Tirou uma folga»,
na linguagem dos estudantes. 5. O próprio Rabelais foi hóspede do
padre Antoine Ardillon, no mosteiro de Fontaine-le-Comte (1524).
6. Um jurisconsulto que Rabelais conheceu. 7. Da A rte Poética de

2 0 3 PANTAGRUEL
Horácio: «Tal como os pintores, os poetas sempre tiveram o justo
poder de se entregar a todas as audácias.» 8. Em 1532 Jean de Cahors,
professor da faculdade de Direito de Tolosa, foi acusado de heresia e
condenado à fogueira. 9. Em Valence, nas margens do Ródano exis­
tiu um subterrâneo. Diz-se que o resto de uma obra inacabada, ligada
a um projecto de atravessamento inferior do rio. 10. Acúrcio anotou
os Pandectas (recolha metódica de Direito romano) provocando uma
forte reacção negativa dos juristas humanistas da época de Rabelais.
11. «Certo», em latim. 12. Cornette no texto francês: um longo lenço
negro que era distintivo dos professores de Direito de Orleães.

CAPÍTULO VI I. Todo este capítulo é uma paródia à linguagem franco-


-latina dos estudantes universitários da época que, obrigados a falar
latim durante as aulas, tinham forjado no seu dia-a-dia um francês irreco­
nhecível. (Como se calcula, na tradução portuguesa esta paródia passa
a ser luso-latina.) O sentido desta fala é o seguinte: os estudantes
vagueiam na cidade, tentam captar os favores do sexo feminino, con­
sumam coitos em lupanares, frequentam tabernas e, se houver pouco
dinheiro nas suas bolsas, gastam antecipadamente, a fiado, a mesada
.
ainda não recebida. 2 O mesmo jogo verbal. O estudante afirma que
a prova de não ser herege está no hábito de ir, logo de manhã, a um
mosteiro aspergir-se com água benta, ouvir missa, fazer preces a horas
certas, confessar-se, venerar os santos, adorar o Deus senhor dos astros
e em nada se afastar dos dez mandamentos: de momento, porém, sen­
te-se muito pouco bafejado pela sorte e não tentará, por isso, pedir
esmola. 3. Ou seja: com um palavreado tão pomposo como o do filó­
sofo Píndaro. 4. Mesmo jogo verbal: diz o estudante que a sua lingua­
gem natural não é o francês vulgar e faz grandes esforços para enobrecer,
à custa do latim, um idioma excessivamente pobre. 5. Idem: o estu­
dante diz que é de Limoges, cidade onde repousam os restos de São
.
Miguel. 6 Frase mesclada com o dialecto de Limoges: «Eh digo eu,
fidalgote! Oh! São Marçal acode-me! ôh, ôh, deixai-me, por amor de
Deus, não me bateis!» 7. A tradição pretende que Rolando, um dos
doze pares de Carlos Magno, morreu de sede.

RABELAIS 2 0 4
CAPÍTULO VII I. Era costume prender um guizo na pata das aves de
volataria. 2. Rabelais virá a contar esta história em Gargântua, o seu
segundo livro (mas primeiro na ordem cronológica desta Crónica).
3. Na época de Rabelais, os ossos dos corpos exumados nos cemitérios
eram postos a secar nos Santos Inocentes (onde hoje existe a fonte
com esse nome, junto do Forum dos Halles) e os mendigos apanhavam
sol sentados em cima deles. 4. A biblioteca de São Vítor era a me­
lhor de Paris. A extensa lista de títulos estabelecida neste capítulo é
inventada com sentido satírico, ora recorrendo a sonoridades próximas
das de títulos realmente existentes (na maior parte desconhecidos do
leitor actual), ora deformando-os de forma a sugerirem factos familiares
ao homem dessa época, ora parodiando o latim, nem sempre de primeira
água entre os eruditos, que introduziam nele palavras francesas decli­
nando-as à maneira latina. Em português há um livro, o Palito Métrico
ligado à praxe académica de Coimbra, que se entrega a este mesmo
jogo verbal. Nesta tradução procurou fazer-se, com palavras portugue­
sas, o exercício existente no original francês. De qualquer forma, é evi­
dente que o sabor deste capítulo perdeu muito com o tempo, tal é a
impossibilidade de decifrar a maior parte das alusões que teriam sido
transparentes, sem dúvida, na época de Rabelais. Do Tábua de Salvação.
5. Da Braguilha do Direito. 6. Dos Decretos da Vagina. 7. Dos Vícios da
Romã. 8. Piça emplumada. 9. Colhão elefantino. 10. Anti-afrodi-
síaco. I I . Rabelais modifica o nome de Mamotret, célebre comenta­
dor da Bíblia, para Marmotret. Ora marmot é, em francês, uma espécie
de macaco, e daí o título: Marmotret, Sobre os Babuínos e os Símios, com
um Comentário de Des Orbeaux. 12. Decreto da Universidade de Paris
sobre o Decote das Mulheres da Vida, a continuar. 13. Sobre a Arte de
Peidar Educadamente em Sociedade, por mestre Hardouin. Hardouin era
um inimigo de Erasmo. 14. Do Formigueiro das Artes. 15. Como Lidar
com as Comezainas e Emborcar com Correcção, por Sylvestre de Piero,
Jacobino. 16. Há um livro desta época, atribuído a René d’Anjou, cujo
título é L’Abusé en Cour. 17. Rabelais virá a explicar, no Cap. VIII do
Tiers Livre, que a mulher deve cuidar bem do «chumaço e do pau comum»
que são atributos do casamento. 18. Paródia ao título 0 Aguilhão do
Amor Divino de São Boaventura. 19. Paródia ao título A Espora da

2 0 5 PANTAGRUEL
Disciplina de Antoine de Saix, um amigo de Rabelais. 20. O Desencrostatório
dos Professores. Era muito comentada, a falta de higiene da classe
docente. 21. Tartaret, Como Cagar. Tateret foi um glosador de
Aristóteles. De notar que Rabelais escreve Tartaretus (ou seja, Tartaret)
para sugerir o verbo torter, no francês da época «defecar». 22. Diferentes
Formas de Sopas de Pão: Bricot era teólogo, adversário da Reforma.
23. Reverendo Frade Lubin, Padre Provincial de Tagarélia, Como Trincar
os Toucinhos, em três volumes. 24. Pasquin, Doutor Marmóreo, Como
Comer Cabrito com Cardos em Tempo Papal Sujeito a Proibição Eclesiástica.
Os doutores escolásticos eram chamados «doutores subtis». Por
oposição a esta imagem, Rabelais escreve «doutor marmóreo» e inventa
o nome Pasquin, o mesmo que tinha uma estátua de mármore mutilada
onde os Romanos afixavam versos satíricos. Há ainda o jogo de palavras
entre «pascal» e «papal». 25. Era dado o nome de «romípetas» aos
peregrinos chegados de Roma. 26. Mayr, Como Fazer Morcelas. Mayr
era professor no colégio de Montaigu. 27. Beda, Da Supremacia das
Tripas. Beda era reitor do colégio de Montaigu, homem notavelmente
barrigudo. 28. Um calembour no original. A «capa com peles dos
procuradores» é, em francês, le chat fourré des procureurs, com sonori­
dade próxima de Téchaffourée des procureurs, ou seja, a «escaramuça dos
procuradores». 29. Com um comentário. 30. Mestre Pillot
Rapadenários, Ilustríssimo Doutor em Todos os Direitos, Da Remendagem
das Calinadas da Glosa de Acúrcio, Repetição Luminoclarotransparente. Ver
também a nota 10 do Cap. V. 31. Sobre a Estratégia do Francatirador
de Baignolet. 32. Franc Taulpin, Da Arte Militar ilustrada por Poltrão.
Os francs taulpins eram uma milícia militar pouco combativa, que veio
a ser dissolvida por Luís XII. 33. Do Uso e da Utilidade em Esfolar
Cavalos e Éguas, do autor mestre de Québecu. 34. Nosso Mestre
Perna d’Asno de Rostock, Da Mostarda Servida à Sobremesa, catorze
volumes apostilados pelo Mestre Vaurillon. Vaurillon foi teólogo, con­
temporâneo de Rabelais. 35. Problema Delicadíssimo: Acaso uma Quimera
a Zumbir no Vazio Pode Alimentar Segundas Intenções?, o qual foi dis­
cutido durante catorze semanas no Concílio de Constance. 36. As
Borradelas de Scot. 37. Sobre a Remoção do Calcáreo de Onze Décadas,
pelo Mestre Aubry de Rosata. Rosata era um célebre jurisconsulto da
época, provavelmente despenteado, como se depreende da nota seguinte.

RABELAIS 2 0 6
38. Do mesmo, Para uma Ordenação Militar dos Cabelos, três volumes.
39. Antoine de Leive, general de Carlos V, fez uma infeliz incursão na
Provença. 40. Marforio, Bacharel Deitado em Roma, Como Escovar e
Enfarruscar as Mulas dos Cardeais. De notar que mule, no francês da
época, também significava «chinelo». 41. Profecia que Começa por «Silvio
Pisacolhão», bocejada pelo Nosso Mestre Sonhofátuo. 42. Bispo Boudarin,
Do Lucro das Indulgências em Nove Novenas, com Privilégio Papal por
Três Anos e Nada Mais. 43. Nosso Mestre Estragamolho, Do
Minudência Sobre as Horas Canónicas, quarenta volumes. 44. As Confrarias
Pinoteantes, autor desconhecido. 45. No original, La Cabourne des
Briffaulx. Os briffauts eram padres laicos alimentados por conventos de
madres. A palavra fez-se sinónimo de «lambões». 46. A Permissividade
dos Negócios da Itália, autor Mestre Brûlefer. Brûlefer era um teólogo
escolástico. 47. Raimundo Lulio, Sobre o Princípio da Galhofa. 48. O Es-
tulticiatório dos Bufos, pelo actor Mestre Jakob Hochstraten, hereticóme-
tra. Hochstraten, de triste memória, foi grande inquisidor em Colónia.
49. Escarepião, Dos Beberetes dos Candidatos a Doutor e dos Doutores
em Teologia, em oito volumes muito eróticos. 50. Maneiras de
Desenfarruscar Fornos, por Mestre Eck. Jean Eck foi o primeiro teólogo
a contradizer Lutero. 51. Gozatório para Sofistas. 52. As Antipericata-
metanaparbeugedanfigurices dos Maçadores. 53. Papalvo, Do Vida e
Reputação dos Peralvilhos. 54. Sobre o Simbolismo Moral do Boné dos
Sorbónnicos, pelo Mestre Luitpold. 55. As Admoestações dos Doutores
de Colónia Contra Reuchlin. Reuchlin foi um humanista adversário dos
teólogos de Colónia. 56. As Viravoltas dos Apanha-Bolas, por Frei
Rebolabola. 57. Por que Pode a Igreja Depor os Papas. Realmente, o
teólogo galês Jean Gerson escreveu o tratado Sobre o Direito da Igreja
de Demitir os Papas para incitar o Concílio de Constance a acabar com
os dois papas, de Roma e de Avinhão, e eleger apenas um. 58. J. Caldo
de Substância, Da Terribilidade das Excomunhões, libelo acéfalo. 59. Da
Habilidade para Invocar Diabos e Diabas, por Mestre Guingolfo.
60. Gaëtan, um adversário de Lutero. 61. Doutor Querubim Ranhosa-
penca, Da Origem dos Farisaicos e dos Rituais de Contorsão, sete volumes.
62. Sutor, Contra Alguém que lhe Chamou Patife, e Como os Patifes Não
São Condenados pela Igreja. 63. Cagatórios para Médicos. 64. Os Campos
de Acção dos Clisteres, por S. C. 65. Justiniano, Sobre a Supressão dos

2 0 7 PANTAGRUEL
Beatos Falsos. 66. Antidotário da Alma. 67. Merlim Coccaio, Da Pátria
dos Diabos.

CAPITULO VIII I. Os humanistas viam nos Godos a barbárie e conside­


ravam-nos exemplo de uma decadente escolástica. 2. Erasmo: «Catão
o Velho estudou muito tarde a literatura latina, e só com a idade de
setenta anos se entregou às letras gregas.» 3. Raimundo Lulio, fran-
ciscano beatificado pela Igreja, é autor de muitas obras, que vão da ciên­
cia à poesia. A arte a que o texto se refere é a alquimia.

CAPÍTULO IX I. Panurge (no texto original) é um afrancesamento de


panourgos que, em grego, quer dizer «o que sabe tudo», «o que é bom
para tudo», ou mesmo «o astuto». Atendendo a que a normal passagem
da terminação ourgos, para português, é «urgo» (ex.: dramatourgos / dra­
maturgo, demiourgos / demiurgo, etc.), o seu correspondente português
deverá ser Panurgo. 2. Tirada em alemão pomposo e arcaizante.
Panurgo diz que as perguntas de Pantagruel têm respostas difíceis de
dar e de ouvir, embora antigos ditados afirmem que a miséria traz ale­
gria. 3. Mistura de línguas orientais, decifrada por Émile Pons em Les
jargons de Panurge dans Rabelais («Rev. de litt. comparée», 1931). Panurgo
reclama folhados e guisados, pois de outro modo sodomizará Pantagruel
«à escocesa». 4. Em italiano, Panurgo compara-se a uma gaita de
foies, que só toca de barriga cheia. Dessa forma, não pode falar da sua
sorte sem comer, já que tem anuladas as funções naturais. 5. Em
escocês, Panurgo espera que o espirito do gigante corresponda, em
altura, à sua dimensão: teme, porém, que isso não seja valorizado, já
.
que a virtude é tida, em geral, por desprezível. 6 Em basco (digam
embora os especialistas que incorrecto), Panurgo afirma que o remé­
dio é Pantagruel matar-lhe a fome, pois só assim a conversa decorrerá
sem contratempos. 7. Genicoa, que Eudemónio retoma da última frase
de Panurgo em basco, quer dizer «se Deus quiser». 8. «O rápido»,
em grego. 9. St. Treignan é um santo nacional da Escócia. 10. Pathelinês
vem de Pathelin, herói da Farce de Maître Pathelin (um anónimo francês
do século XV). O advogado Pathelin finge a loucura através de frases
em diversos idiomas. Lanternês seria a língua do país dos lanterneses,
que Rabelais fará visitar pela sua personagem Diva Garrafa no Tiers Livre.

RABELAIS 2 0 8
11. Em holandês, Panurgo garante que a sua linguagem é cristã mas que
não precisa de falar, pois os seus andrajos exprimem tudo quanto pode­
ria dizer. 12. Panurgo compara-se, em dinamarquês, às crianças e aos
animais, que não precisam de falar para sabermos o que desejam; tal
como Cerbero, o seu estômago ladra mas pode ser apaziguado com
uma torrada. 13. «O forte», em grego. 14. Em hebreu, Panurgo
pede um pão, apoiado pelo ditado «quem dá ao pobre empresta a Deus».
15. Contrariando o conselho de Erasmo, Panurgo pronuncia o grego
clássico à moderna e diz-se espantado com a indiferença de Pantagruel.
De facto, os letrados sabem que as palavras são inúteis perante a
evidência dos factos. 16. Língua inventada, pretensamente a de Utopia,
país imaginado por Thomas Morus e que Rabelais dá como terra natal
de Pantagruel. 17. Em latim, Panurgo lamenta ter-se queixado em vão.
Que o deixem então partir, sem ser importunado, tanto mais que uma
barriga com fome não tem ouvidos.

CAPITULO X I. Professores da Escola de Medicina e da Faculdade de


Direito Canónico. 2. De ergo («portanto», em latim), ou seja, argu­
mentações iniciadas com a palavra «portanto». 3. Alusão aos saiotes
que, na época, os professores e os magistrados usavam. 4. Anedota
célebre, contada por Erasmo. 5. São conhecidos Jasão, autor dos
Conselhos Jurídicos, e Dèce, professor de Direito em Itália e conselheiro
.
do parlamento de Burges; mas não Petrus Petronibus. 6 Nome por
que eram conhecidos os sábios duvidosos. 7. Briand Vallée, senhor
de Du Douhet, conselheiro parlamentar de Bordéus e amigo dos
humanistas. 8. Na época de Rabelais, os documentos dos processos
judiciais guardavam-se em sacos. 9. Jurista italiano do século XV, autor
de Cautelae Utilíssimas, um livro de receitas para iludir a lei. 10. Do
Origem do Direito, livro segundo. 11. Em Histórias, XXI, 4.

CAPÍTULO XI I. «Bem-aventurados os papalvos, pois tropeçam por si


próprios», em latim macarrónico. 2. Assim começavam algumas pre­
ces, quando era hábito dizê-las em latim. 3. Decreto de Carlos VII,
que determinava a superioridade do Concílio sobre o papa. 4. Provérbio
deformado: «Fora da ponte não anda quem com prudência cai.»
5. Lunettes des Princes, poemas de Jean Meschinot (1459), de uma graça

2 0 9 PANTAGRUEL
absurda. 6. Trocadilho em latim, feito a partir de «sob palavra de cura».
7. Fórmula consagrada para terminar a leitura litúrgica da Sagrada
Escritura.

CAPÍTULO XII I. À letra, «aliás» ou «quanto ao resto». Poderá enten­


der-se que pôs no discurso «um grão de sal». 2. Expressão latina que,
em linguagem corrente, pode entender-se como «por a+b». 3. «A des-
pescar rãs», em latim macarrónico. 4. Cudeile, de good ale (boa
cerveja). 5. «Nesse caso, que direito para os menores?», em latim.

CAPÍTULO XIII I. «Pela boca do oráculo», em latim. 2. «Por isso pedi­


mos em uníssono». 3. «Tanto agora como desde então», em latim.
4. Ver a nota 8 do Cap. VII.
CAPÍTULO XIV I. Referência ao episódio da entrega do filho reclamado
por duas mães, atribuído pela Bíblia a Salomão ( I Reis, 16 a 28). 2. Certos
teólogos ligaram a criação do homem às cadeiras vagas que os anjos
rebeldes, seguidores de Lúcifer, deixaram no Paraíso. 3. Nicolas de
Cusa (ou Cues), um teólogo do século XV que profetizou o fim do
mundo fazendo-o coincidir com o 34.° jubileu (ou seja, 1700 anos) depois
de Cristo. 4. O filósofo grego Empédocles suicidou-se atirando-se
para o Etna, mas o vulcão devolveu uma das suas sandálias projectan-
do-a para o exterior da cratera. Luciano de Samósata escreveu um texto
satírico sobre este episódio, imaginando o filósofo atirado para a Lua
pelos gases do vulcão. 5. Segundo Ovídio (Metamorfoses, I, 601 a 726),
Mercúrio matou Argos depois de o adormecer com a sua flauta. Argos
tinha cem olhos que nunca dormiam ao mesmo tempo, e a mandado
de Juno vigiava ló, que Júpiter transformara em vaca para iludir os ciúmes
de Juno. 6. Dos Corcundas e dos Disformes, a favor dos nossos Mestres,
em latim macarrónico. 7. «Santo e imortal é Deus», em grego. 8. Verso
célebre de Ballade des Dames du Temps Jadis de François Villon.
9. Frutos afrodisíacos. 10. Na época de Rabelais, as dores de dentes
(tal como a ciática acima referida) eram consideradas uma forma de
reumatismo.

CAPÍTULO XV I. Casa de prazer, mas situada no faubourg Saint-Jacques


e não no faubourg Saint-Marceau, como pretende Rabelais. 2. Irmão

RABELAIS 2 1 0
Lubin, livro As Bebedeiras dos Mendigos. 3. Fontainebleau. 4. Vulnerária,
erva empregada na cura de feridas e úlceras. 5. «E onde ireis buscá-
-las?», em latim. 6. Je te veulx habiller de ma livrée, no original. Deve
com isto entender-se que, vestindo Panurgo com as cores da sua casa,
Pantagruel fazia dele um dos seus.

CAPITULO XVI I. Um ditado popular, na época de Rabelais. 2. Verso


de Marot (Epistre au Roy pour avoir esté dérobbé). 3. Fórmula de
agradecimento a Deus, depois das refeições. 4. Ou seja, a Sorbonne.
5. Substâncias fétidas, de origem animal e vegetal. 6. Intransponível
para português: «mulher louca na missa» e «mulher mole na nádega»,
ou seja, perita no amor. 7. Pierre d’Ailly, teólogo, proclamador da
superioridade do Concílio sobre o papa. As Suposições são o primeiro
capítulo dos Parva Logicalia (Elementos de Lógica) escolásticos. 8. Era
costume as mulheres usarem o terço pendurado à cintura, exibido como
uma jóia. 9. Sulfato duplo de alumínio e ferro, que cristaliza sob a
forma de filamentos de pena de ave. É altamente irritante para a pele.

CAPITULO XVII I. Ao dizerem centuplum accipies, as vendedoras de


indulgências utilizavam o verbo no futuro: «cem vezes mais recebereis».
Panurgo afirma, no entanto, que elas queriam dizer centuplum accipe,
com o verbo no imperativo, ou seja, «cem vezes mais recebe», o que
transferia o pagamento para o momento da dádiva. 2. Chamavam-se
«cruzadas» às indulgências instituídas pelo papa Sixto IV. 3. À letra,
São Rumo ao Vento, de facto um bom padroeiro para os enforcados.

CAPÍTULO XVIII I. «O Admirável», em grego. 2. «Peripatético» quer


dizer «que deambula». Aristóteles dava lições no «deambulatório» do
Liceu de Atenas. 3. Rio do Paraíso terrestre, que banhava uma região
com ouro e pedras preciosas. 4. Filósofos nus, monges adeptos do
bramanismo. 5. Sobre os Números e os Sinais de Beda, monge anglo-
-saxão chamado O Venerando: Do Inenarrável de Plotino, filósofo grego
do século III; Da Magia de Proclo, filósofo grego do século V; Sobre o
Significado dos Sonhos de Artemidoro (de Daldia), filósofo grego do
século II; Sobre os Sinais de Anaxágoras, filósofo grego do século V (que

211 PANTAGRUEL
nunca escreveu nenhum livro com este título); Sobre o Indizível de
Inário, autor desconhecido; Filistião, um mimo célebre no século I, não
escreveu nenhum livro que tivesse chegado aos nossos dias; Hipponax,
poeta satírico do século VI (a. C ), que não escreveu nenhum livro inti­
tulado Sobre o que Deve Ser Calado. 6. «Ao ponto de não falar», em
latim. 7. Estes dois jogos, também referidos por Rabelais em Gargântua
(Cap. XX), eram jogados com paus chamados aiguilettes como os ati­
lhos; daí o absurdo que o autor não hesita em construir. 8. Aportu­
guesamento de intrants, os delegados da universidade encarregados de
eleger o reitor. 9. Não se trata de um gesto tão insólito como parece,
pois os elegantes da época tinham por hábito utilizar a braguilha como
bolso.

CAPITULO XIX I. Ou seja, três vezes grande. 2. A Bretanha, região


da França com um significativo número de leprosos, obrigava-os a bater
uma espécie de castanholas para avisar da sua presença os não conta­
minados. 3 Segundo uma convenção da época, este gesto significava
«meter-se numa discussão interminável».

CAPÍTULO XX I. «Ora o que aqui está é maior do que Salomão.» Tra-


ta-se de uma frase do Evangelho segundo São Mateus (Cap. II, 41), mas
com o nome de Salomão a substituir o de Jonas. 2. «Não há discípulo
que ultrapasse o mestre» (Lucas, Cap. VI, 40). 3. «Tal como a terra
sem água», em latim.

CAPITULO XXI I. Ou seja: «à boa cona o caralho sobe». 2. Escudos


mandados cunhar por Luís XI, com um sol numa das faces. 3. Faixas
ornamentadas para capuz.

CAPITULO XXII I. Em grego «cadela com cio», di-lo o próprio Rabelais


na primeira edição desta obra. 2. Na época de Rabelais, as igrejas
eram consideradas «praças públicas cobertas» e admitiam, portanto,
uma frequência que hoje lhes está vedada. 3. O Bièvre era um ribeiro
que atravessava São Vítor e cuja água era utilizada pela família Gobelin
na sua tinturaria. Quanto a Oribus tratar-se-á, provavelmente, de Mathieu

RABELAIS 212
Ory, o grande inquisidor da época de Rabelais, embora se não conheça
nenhum sermão seu que cante as virtudes da urina na tinturaria.

CAPITULO XXIII I. «Os sequiosos», em grego. 2. Ver Cap. II, nota I.


3. Fada benfazeja dos romances de cavalaria. 4. «Monge», em latim.

CAPITULO XXIV I. Aulo-Gelo conta que, em Esparta, o segredo das


mensagens militares era preservado com o estratagema de dois bastões
idênticos, na posse do emissor e do receptor. Enrolando uma tira de
pergaminho em espiral no bastão, e escrevendo nela uma mensagem,
só um receptor que a enrolasse de forma idêntica noutro bastão igual
obteria a continuidade de sinais necessária à sua decifração. 2. Ardil
mencionado nos Adágios de Erasmo. 3. Francesco di Nanto e Calpurnius
Bassus são desconhecidos; Zoroastro foi o fundador do mazdeismo,
mas não escreveu, que se saiba, nenhum livro intitulado Das Letras
Difíceis de Ler. 4. São estas as palavras de Cristo no momento da
morte: Eli, Eli, lemà sabactâni? (de acordo com uma transcrição mais
moderna). «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mateus,
Cap. XXVII, 46) 5. Episódio da Eneida de Virgílio. Repudiada por Eneias,
a rainha Dido apunhala o seu próprio peito e atira-se para uma fogueira
mandada acender com o pretexto de cumprir um ritual. 6. Nada se
sabe acerca destas palavras de Heráclito, médico de Tarento. 7. A não
ter existido outra Sagres, terá de perdoar-se a Rabelais esta localiza­
ção entre a Gâmbia (antigo território encravado no Senegal) e Melli
(na Libéria). 8. Nomes inventados por Rabelais. Em grego, Méden, Uti
e Udem significam «nada»; Gelasim significa «ridículo»; quanto a Acória,
significa «sem território». De notar ainda que os habitantes da Utopia
são os Açorianos, no livro de Morus. 9. Segundo os Adágios de Erasmo,
o persa Zópiro feriu-se gravemente, e fê-lo apenas com o objectivo de
passar por trânsfuga e poder entrar em Babilónia, que o seu rei Dario
sitiava. 10. Segundo a Eneida de Virgílio, este grego é o responsável
pela introdução do cavalo de Tróia na cidade. I I . Não se trata de
um cavalo, como o .referido Pégaso, mas de um anão que fabricou um
cavalo de madeira muito veloz. 12. Guerreira cuja agilidade é cantada
na Eneida por Virgílio.

2 1 3 PANTAGRUEL
CAPÍTULO XXVI I. Peles que conferem a invulnerabilidade. 2. Em
grego, «sem comando». 3. «Agarre quem agarrar puder», em latim.

CAPITULO XXVII I. A luta dos Pigmeus contra os grous é referida na


Ilíada de Homero (início do Canto III).

CAPITULO XXVIII I. Ou seja, «bagas de urtiga», em grego. 2. «Vem


comigo», em latim; aplicado aos objectos que acompanham o homem.
3. Diuréticos violentos; o litontripão era empregado para desfazer cál­
culos renais. 4. No Cap. XXXVI de Gargântua, a jumenta do pai de
Pantagruel urinou «para aliviar o ventre, mas tão copiosamente que
provocou sete léguas de dilúvio». Deucalião foi um rei da Tessália
(o Noé da mitologia grega) que se refugiou numa barca durante um
dilúvio, atingindo assim o Parnaso.

CAPÍTULO XXIX I. Extraídas da Crónica e história feita & composta pelo


reverendo padre em Deus Turpin, arcebispo de Reims, um dos pares de
França, contendo as proezas & factos de armas... do muito magnânimo rei...
Carlos Magno & do seu sobrinho Rolando, impressa em Paris em 1527.
2. Os Milagres de Sâo Nicolau eram divulgados em livros muito popu­
lares na época. 3. Do Segundo Livro dos Reis, Cap. 19, 35: «Naquela
mesma noite, um anjo do Senhor foi ao acampamento do rei da Assíria
[Senaquerib] e fez morrer cento e oitenta e cinco mil homens.» 4. Um
provérbio da época atribuía aos fundidores de sinos um ar de perma­
nente espanto. 5. Em Burges, no local onde uma torre do século XVI
tinha ruído, fora construída a chamada «torre da manteiga» com o
dinheiro dos fiéis que compravam bulas para poder comer manteiga
durante a Quaresma. Devido ao nome que lhe deram, Rabelais imag-
.
ina-a derretida pelo sol. 6 Nome do carrasco em muitos mistérios
dramáticos medievais.

CAPÍTULO XXX I. No original coupe têtée (taça mamada), jogo de pala­


vras a partir de tête coupée (cabeça cortada). Em português, «separola
cachada» é obtido a partir de «cachola cortada», embora se perca a
pretensão de qualquer segundo sentido, por absurdo que ele seja, como
parece existir em francês. 2. Rei da Pérsia. 3. Rómulo e Remo foram

RABELAIS 214
aleitados por uma loba e fundadores de Roma. 4. Numa Pompílio,
lendário rei de Roma, sucessor de Rómulo. 5. Tarquínio o Antigo, ou
o Soberbo, ou ainda Tarquínio VI, todos eles reis de Roma. 6. Há
vários Pisão célebres. Provavelmente trata-se de Lúcio Calpúrnio Pisão,
um dos Trinta Tiranos, o romano que urdiu a conspiração contra Nero.
7. Célebre ditador romano (século I a. C ). 8. Rei da Pérsia. 9. Político
ateniense. 10. General grego, um dos que derrotou os Espartanos.
11. Assassinos de Júlio César. 12. Orador grego, defensor da liber­
dade dos Macedónios; ou então o general ateniense que sitiou Siracusa.
13. Orador romano, cônsul, proscrito e morto pelos sicários de Marco
António. 14. Houve em Roma muitos cônsules chamados Fábio.
Provavelmente trata-se de Fábio Búteo, ditador (século III a. C.).
15. Nome de vários reis da Pérsia. 16. Herói da Eneida de Virgílio,
filho de Anquises e Afrodite, fundador da cidade de Lavínio. 17. Rei
dos Mirmidões, o de calcanhar vulnerável, o mais famoso dos heróis do
cerco de Tróia. 18. Rei de Micenas, chefe do exército grego contra
Tróia. 19. Diz-se que o fundador de Lisboa: rei lendário de ítaca, um
dos heróis do cerco de Tróia. 20. Velho rei lendário de Pilos. 21. Nome
de vários reis da Pérsia. 22. O quarto rei lendário de Roma.
23. Provavelmente Marco Fúrio Camilo, patrício romano cinco vezes
ditador. 24. General romano que tomou Siracusa em 212 a. C.
25. Irmão do imperador Tibério, que se celebrizou nas campanhas da
Germânia. 26. General romano que derrotou Aníbal o Cartaginês em
Zama. 27. General cartaginês, irmão de Aníbal, vencido em Metauro
pelos Romanos. 28. O mesmo general cartaginês referido na nota
anterior. 29. Último rei de Tróia na epopeia homérica. 30. Herói
de um célebre romance bretão, cavaleiro da Távola Redonda. 31. Quatro
rios do Inferno. 32. Imperador romano. 33. Na chamada «época
dos Antoninos» houve três imperadores romanos com este apelido.
34. Inepto imperador romano, filho e sucessor de Marco Aurélio.
35. Imperador romano que sucedeu a Cómodo. 36. Romano ilustre,
amigo de Cícero, célebre pela excelência da sua mesa. 37. Houve dois
imperadores do Império Romano do Oriente com este nome. 38. Chefe
do exército troiano, esposo de Andrómaca da Ilíada de Homero.
39. Herói troiano, o que raptou Helena, esposa de Menelau, e deu
origem à guerra de Tróia. 40. Repetição deste nome (ver nota 17).

2 1 5 PANTAGRUEL
Talvez uma distracção do autor, já que se não conhece outro Aquiles
com possibilidade de figurar nesta lista. 41. Rei da Pérsia. 42. Nome
de vários reis da Pérsia. Outro ou o já referido atrás (ver nota 15).
43. Um dos mais célebres imperadores romanos, o que mandou matar
a mãe e é dado como responsável pelo grande incêndio de Roma no
ano de 64. 44. Nome de um gigante sarraceno que figura na genea­
logia de Pantagruel (ver Cap. I). 45. Júlio César, general romano, e
Pompeu, general e aristocrata. Ambos formaram, com Crasso, o céle­
bre Triunvirato. 46. Sobrinhos de Pepino o Breve, heróis de um
romance de cavalaria muito popular. 47. Heróis de um romance de
cavalaria. 48. Ver a nota 3 do Cap. II. 49. Um dos primeiros cruza­
dos, duque da Baixa Lorena. 50. Herói mitológico que conquistou o
Tosão de Ouro. 51. Pedro I, o Cruel ou o Justiceiro, filho e suces­
sor de Afonso XI. 52. Não parece haver nenhum Morgan conhecido
que justifique a citação. De notar que o mais célebre Morgan, pirata,
morreu em 1688, 56 anos depois de publicado Pantagruel. No Capí­
tulo I, Morgan é referido como um dos antepassados de Pantagruel.
53. Herói de um romance popular já referido no Prólogo (ver nota 6
desse capítulo). 54. Rei de Épiro, inimigo dos Romanos. 55. Antíoco
de Ascalona, filósofo, mestre de Cícero. 56. Outra repetição: ver
a nota 3. 57. Octávio César Augusto, primeiro imperador romano.
58. Imperador romano. 59. Júlio II, o primeiro papa a usar barba.
60. Herói de um romance de cavalaria. 61. Ou seja, o rei Artur, fun­
dador de ordem dos Cavaleiros da Távola Redonda. 62. Herói de um
romance de cavalaria. 63. Ou seja, Alexandre Bórgia. 64. Herói de
uma canção de gesta. 65. Rei da Arménia. 66. Cavaleiro cujas vitórias
em Espanha restauraram a cavalaria de Carlos Magno, derrotada na bata­
lha de Roncevalles. 67. Os Quatro Filhos de Aimon, romance de cava­
laria do século XII. Renaud, Guiscard, Allard e Richard, montados no
fantástico cavalo Bayard, derrotam Carlos Magno. .
68 Calisto III.
69. Provavelmente Urbano IV. 70. Ver a nota 6 do Prólogo. 71. Outra
fada dos romances de cavalaria. 72. Helena, a causadora da guerra de
Tróia. 73. Rainha da Babilónia. 74. Lendária rainha de Tiro. Perseguida
pelo irmão, Pigmalião, fugiu para África e fundou Cartago. 75. Rainha
das Amazonas, filha de Marte, morta por Aquiles no cerco de Tróia.
76. Matrona romana, mulher do cônsul Colatino. Suicidou-se depois de

RABELAIS 216
ser violada por Sexto, filho de Tarquínio o Soberbo. 77. Filha de um
orador romano. Com o mesmo talento que o pai, defendeu a causa das
mulheres. 78. Mulher do imperador Augusto. 79. Diógenes e Epicteto
são filósofos gregos que viveram na maior pobreza. 80. Personagem da
Farsa de Mestre Patelin, de autor desconhecido, que ilustra o tema do
eterno enganador enganado. 81. Juiz dos mortos na mitologia grega.
82. O poeta Lean Lemaire de Belges, autor de libelos contra a autoridade
do papa. 83. Trocadilho sem correspondência em português. A fórmula
utilizada era de peine et de coulpe (de pena e de culpa) com um som pró­
ximo de de pain et de soupe (de pão e de sopa). 84. Nomes de dois
loucos célebres da corte francesa. 85. O mais célebre poeta francês do
século XV. 86. O rei da Pérsia, Khshayarsha. 87. Já referido no Capí­
tulo VII e actualmente desconhecido. 88. Era costume pintar chamas nos
muros dos hospitais que tinham secções para o tratamento da sarna, na
época de Rabelais chamada popularmente «fogo de Santo António» (ver
a nota 10 do Prólogo). 89. Dádiva concedida aos novos bispos.

CAPÍTULO XXXI I. Saturno «tanto bem fez aos Italianos [...], que os
poetas ganharam desde então o hábito de dizer que o seu tempo foi
uma idade de ouro.» (Conti, Mitologia, II, 2) 2. Trocadilho sem sen­
tido em português: o cinto «garço e verde», em francês pers et vert,
tem uma sonoridade próxima de pervers (perverso). 3. De notar que,
no francês da época, lanternière tanto significava «lanterneira» como
«prostituta».

CAPÍTULO XXXII I. «Os salgados», em grego. 2. No original Dannoys


(Dinamarqueses). Na época de Rabelais pronunciava-se a primeira sílaba
de Dannoys com um som idêntico ao de dents (dentes): daí a solução
utilizada em português. 3. «Fundo de garganta», em grego. 4. No
tempo de Rabelais, ao insulto «Merda!» era costume responder: «Na
vossa garganta».

CAPÍTULO XXXIII I. De reparar que a aritmética de Rabelais não é, neste


ponto, das melhores. 2. Mefítis, deusa romana das exalações pesti­
lenciais; Camarina. um pântano da Sicília que, ao ser aterrado, provo-

217 PANTAGRUEL
cou uma peste; Estrabão fala, de facto, num lago Serbonis, que Rabelais
altera para Sorbonne, com um intuito satírico. 3. Talvez por distracção,
Rabelais transforma em bronze as pílulas que no início do capítulo eram
de cobre. A igreja de Santa Cruz, de Orleães, teve uma esfera com dez
pés de perímetro a ornamentar a flecha do transepto, mas foi destruída
em 1568 pelos Protestantes.

CAPITULO XXXIV I . Já na época de Rabelais os editores davam a conhe­


cer as suas novidades em Francfurt. 2. Na altura simbolizavam a fron­
teira do mundo fabuloso do Prestes João. 3. Rainha dos infernos,
mulher de Plutão, mãe das Fúrias. 4. «Desculpai-me», numa linguagem
próxima do italiano e do espanhol. 5. Monges egípcios debochados.
6. Verso da IO.1 Sátira de Juvenal: «Simulam ser Curius [tipo do velho
romano austero] mas a sua vida é uma bacanal.» 7. Óleo usado para
perfumar. Um ditado da época dizia que o perfume era feito de merda.
8. Noel du Fail, contista do século XVI, via aqui uma referência aos
monges, que olhavam o mundo pelo buraco do capuz. Uma interpre­
tação mais ampla poderá associar esta imagem a todo aquele que «vê
o mundo com antolhos».
D O C A T Á L O G O

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atribuído a Esquilo
trad., prefácio e notas de Eduardo Scarlatti

A Espuma dos D ias


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trad, revista, apres. e notas de Aníbal Fernandes

«Em Duas Palavras o que Eu Sou»


[algumas cartas da prisão]
Donatien Alphonse François de Sade
trad, e notas de Helder Moura Pereira

Reflexões Sobre a M entira


Alexandre Koyré
trad, de Vera Pinto

Viagem ao Fim da Noite


Louis-Ferdinand Céline
trad, revista, apres. e notas de Aníbal Fernandes

O Eterno Contorno
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foi traduzido, apresentado e anotado por Aníbal Fernandes (© para o texto
em português) ^ composto e paginado por vpcd.sign ^ capa e desenhos
de Carlos Ferreiro <4 fotomecânica Textype M 750 exemplares impressos
durante o mês de Dezembro 1997 na IAG, Artes Gráficas, Ld.*
Depósito legal n.° 118 568/97
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S E M E IA AO S Q U A T R O V E N T O S
participa na transmissão das ideias

f STI I I V I O TODE S E I LI VI EMENTE FOTOCOPIADO

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