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Auto-Representação e Histórias Contadas: A Vida e

Vicissitudes de Khandro Choechen


Nicola Schneider

(Centro de Pesquisa sobre as Civilizações da Ásia Oriental)1

No Budismo tibetano, a figura feminina da khandroma (mkha 'gro ma) é uma


figura imprecisa, especialmente em sua forma divina2, mas também quando aplicada
a uma mulher em particular. Na maioria das vezes, khandroma refere-se à esposa de
um lama (ou sua consorte) – que geralmente é abordada por esse título –, mas
também existem outras especializadas figuras religiosas conhecidas como tais.
Algumas são monjas, como a famosa Mumtsho (Mu mtsho, abreviação de Mu med
ye shes mtsho mo, n. 1966) de Serthar3, e outras não são nem monjas nem consortes.
Todas podem ser consideradas, em graus variados, como mulheres santas ou um ser
sagrado do sexo feminino. No entanto, os tibetanos as distinguem também de acordo
com suas respectivas realizações religiosas, dizendo que apenas algumas são
khandromas completas, enquanto outras não4. Mesmo que freqüentemente
reverenciadas por seus seguidores, essas mulheres geralmente são conhecidas apenas
localmente, ou seja, em uma determinada comunidade religiosa5. Apenas algumas
poucas alcançaram fama na região tibetana mais ampla e ainda mais raras ainda são
aquelas que foram objeto de textos escritos, sejam biografias, autobiografias ou que
foram apenas mencionadas umas poucas vezes em outros textos6.

1 Este artigo não poderia ter sido escrito sem a ajuda financeira do Centro de Pesquisa sobre
Civilizações da Ásia Oriental e a Fundação Chiang Ching-kuo, aos quais devo um agradecimento
especial.
2 Veja, por exemplo, Gyatso 2001: 249.
3 Veja Schneider 2015a: 466-467
4 Comunicação pessoal com Garje Kamtrül Rinpoche, março de 2011. É interessante notar que,

durante minhas viagens de campo, fui frequentemente avisado das numerosas khandromas
“falsas” (rdzun ma), um termo de qualificação que parece se referir especialmente a algumas
consortes de lamas.
5 Ra se dKon mchog rgya mtsho 2003: 139.
6 Nos últimos anos, várias autobiografias de mulheres foram descobertas, traduzidas e

analisadas; veja por exemplo, Havnevik 1999; Schaeffer 2004; Diemberger 2007; Bessenger 2010;
e Jacoby 2014.
O objetivo deste artigo é documentar a vida e as vicissitudes de uma
khandroma contemporânea, Khandro Choechen. Nascida em c. 1961 em Kham, ela
fugiu do Tibete apenas recentemente, em 2004. Desde então, ela primeiro se
estabeleceu na Índia, Dharamsala, e depois migrou para Seattle, Estados Unidos.
Acredita-se que Khandro Choechen tenha várias qualidades espirituais
extraordinárias: ela é uma “reveladora de tesouros”, tertön (gter ston), é conhecida
por suas capacidades de cura e experimenta regularmente “visões puras” (dag
snang), permitindo-lhe pronunciar profecias (lung bstan), entre outras coisas. Além
disso, ela foi reconhecida como uma tulku (sprul sku) de uma longa linha feminina.
Primeiro, darei uma visão geral da história de vida de Khandro Choechen,
extraída de sua curta autobiografia e complementada por nossas conversas e
informações fornecidas por seus familiares que vivem no Tibete7. Analisarei então
seu status social e religioso propondo que ela pode ser considerada uma especialista
religiosa feminina autônoma. De fato, Khandro Choechen é uma das poucas mestras
religiosas que não é casada, nem consorte de um lama ou uma monja, desafiando
assim os papéis femininos tradicionais e as relações de gênero tanto em parentesco
quanto ambiente religioso.

1. Narrativa de vida de Khandro Choechen

Khandro Choechen nasceu em Kham-Minyag (Khams Mi nyag), em uma


pequena vila chamada Basey (Bal bsed), situada entre Ranaka (Ra rnga kha) e
Lhagang (Lha sgang) na estrada norte, que liga Dartsedo (Dar rtse mdo); Chin.
Kangding) com Lhasa. Seus pais eram agricultores e já tinham três crianças, todas
meninas. Isto era um desastre para o pai que queria ter pelo menos um filho, mas
Khandro Choechen apenas sorri com essa ideia dizendo que após o nascimento de
sua irmã mais nova, elas eram como as deusas “Cinco Irmãs de Vida-Longa” (Tshe
ring mched lnga).

7 Sua autobiografia (veja em mKha' 'gro Chos spyan 2014) está incluída em um texto com o título
Uma Breve Biografia da Ḍākinī de Sabedoria, Khandro Chöchen de Minyak (o título original no
tibetano é Dznyana ḍakki Mi nyag mkha' 'gro Chos spyan ma'i rnam thar mdor bsdus bzhugs),
que deverá ser publicado em breve, mas distribuído apenas em particular. O texto completo é
composto por 71 páginas, sendo 27 páginas reservadas para fotos. Existem 12 capítulos, oito dos
quais são originais e no idioma tibetano e quatro são traduções para o inglês. O capítulo com a
autobiografia em si tem um pouco mais de cinco páginas. Atualmente, estou preparando uma
monografia, que apresentará a biografia juntamente com minha pesquisa pessoal.
Como é o caso de muitos mestres religiosos, o nascimento de Khandro
Choechen foi anunciado por um milagre: quando sua mãe voltava dos campos um
dia, uma adaga ritual de nove pontas (rdo rje rtse dgu) caiu do céu bem na frente de
seus pés. Outros moradores testemunharam o evento e logo após os boatos se
espalharam por toda parte, anunciando que um tulku logo nasceria para o pai
Tsewang (Tshe dbang). Mas este último ficou muito decepcionado quando descobriu
que sua esposa tinha dado à luz outra filha e posteriormente deixou a família. No
entanto, quando Zenkar Rinpoche Thubten Nyima (gZan dkar rin po Thub bstan nyi
ma, n. 1943), um hierárquico religioso da região e um conhecido tibetologista, soube
disso, convidou a mãe junto com seu bebê para vir encontrá-lo8. Segundo Khandro
Choechen, ele a presenteou com vários chapéus enquanto brincava com ela, mas ela
não estava interessada. Por fim, ele pegou uma coroa de lótus Padmasambhava, que
atraiu sua atenção e a fez sorrir, e a colocou na sua cabeça, dando-lhe o auspicioso
nome Choechen (Chos spyan) ou “Olho do Dharma”9.

Fig.1. Khandro Choechen em seu quarto em Dharamsala.


Foto: Nicola Schneider, 2012.

Durante sua infância, Khandro Choechen não gostava de brincar com seus as
outras crianças. Ela também não participava de atividades na escola, em vez disso
sonhando de voar para terras distantes cercadas por montanhas, acima das quais um

8O próprio Zenkar Rinpoche não se lembra desse evento. A mãe de Khandro Choechen contou a
história do nascimento milagroso e os primeiros encontros com a filha.
9 “Chos” significa dharma e “spyan” é a primeira sílaba de Chenrezi (sPyan ras gzigs; Skt.

Avalokiteśvara), o Bodisativa da Compaixão, cuja emanação na terra é o Dalai Lama.


homem enorme aparecia, dando-lhe um grande sorriso. Naquela época, ela não
entendia o que estava acontecendo com ela; só mais tarde ela se deu conta de que
essas eram suas primeiras visões de Padmasambhava, o santo indiano do século VIII
a quem os tibetanos atribuem a introdução do budismo. Quando ela contou à mãe e
a um Rinpoche que vivia com eles naquele tempo sobre suas experiências, ela só foi
repreendida. Isso foi durante a Revolução Cultural (1966-1976) e sua família já
estava enfrentando problemas, então eles não queriam que ela causasse mais
dificuldades. Assim, eles decidiram tirá-la da escola e a mandaram pastorear o gado
na montanha, ao invés.
Ao longo dos anos seguintes, Khandro Choechen experimentou mais e mais
visões, a maioria delas vendo o mesmo homem retornando de formas diferentes,
tanto como um velho quanto como um jovem. Além disso, ela descobriu várias
estátuas escondidas como “tesouros” (gter ma)10, mas deixou a maioria onde as
encontrava enquanto perdeu muitas outras. Ela só manteve uma, que ela diz estar
com Khenpo Dorje Tashi (mKhan po rje bkra shis, n. 1963), um famoso lama e seu
parente distante, atualmente vivendo em Minyag Dora Karmo (Mi nyag Do ra dkar
mo), onde ele fundou uma escola e um centro de retiro11. Durante uma de suas visões,
ela também recebeu algumas chamadas “letras–ḍākinī” (brda 'yig), letras em forma
de pequenos objetos, que apenas mestres religiosos com capacidades específicas
podem decifrar. Ela deu para o Rinpoche decodificar enquanto ele estava com a
família dela.
Logo após a Revolução Cultural, aos 15 anos, Khandro Choechen desejou
tornar-se monja. Para fazer isso, ela foi até Lama Tsephel (Tshe 'phel, 1917-1998),
que estava em Lhagang na época12. Mas quando o lama estava prestes a cortar o
cabelo dela, houve um som estridente e faíscas queimaram sua mão. Esse episódio
foi interpretado como um sinal auspicioso de que seu destino era ocupar outro papel
religioso. Os rumores se espalharam novamente por toda parte e ninguém mais se
dignaria a ordená-la como monja.
Khandro Choechen nunca quis se casar, como suas irmãs. Em vez disso, fez
o possível para evitar os muitos pretendentes que a queriam como esposa, pensando

10 “Tesouros” podem ser objetos ou textos que foram escondidos por Padmasambhava e sua
consorte Yeshe Tsogyal (Ye shes mtsho rgyal, século VIII) para serem descobertos por uma pessoa
predestinada, tertön, em um momento mais propício à propagação do budismo; veja Tulku
Thondup 1986.
11 Sobre Khenpo Dorje Tashi, consulte Ragaini 2008 e Tan 2010.
12 Sobre Lama Tsephel, que mais tarde fundou um convento, ver Thub bstan chos dar 2003 e

Schneider 2013: 109-114.


que ela seria a consorte tântrica ideal. Notável entre eles estava Khenpo Achug
(mKhan po A khyug, 1927-2011), um famoso “localizador de tesouros” e fundador
do acampamento religioso Yachen Gar (Ya chen sgar), em Peyul (dPal yul), Kham13.
Ele tentou convencê-la várias vezes a se tornar sua esposa, porque de acordo com
um testamento dado há muito tempo a ele por seu próprio mestre, Khandro Choechen
era sua profetizada consorte. Assim, ele fez o possível para identificá-la e encontrá-
la. No entanto, seus esforços foram em vão. Ela não aceitou suas propostas e até
escondeu-se nas pastagens acima de sua aldeia natal para evitá-lo, assim como a
todos os outros pretendentes.
Enquanto isso, ela aproveitava todas as oportunidades para participar de
ensinamentos religiosos e fazer contato com mestres religiosos. Suas irmãs a
descrevem como correndo atrás de cada dignitário religioso visitante de uma
maneira que normalmente é considerada inadequada, especialmente para uma garota
– por causa de tal comportamento provocando “vergonha” (ngo tsha) no caso de
mulheres –, mas ela nunca ouvia seus conselhos. Assim, durante sua vida no Tibete,
Khandro Choechen teve a oportunidade de seguir os ensinamentos de vários mestres
religiosos famosos. O mais importante para o desenvolvimento espiritual dela foi
Tsophu Dorlo Rinpoche (mTsho phu rdo lo, 1933-2006?), chefe de um mosteiro
Nyingmapa (rNying ma pa) em Nyarong (Nyag rong), um tulku casado de origem
chinesa Han. Ele costumava levar Khandro Choechen com ele para diferentes
lugares sagrados em Minyag e Nyarong, mas também em peregrinação na China
continental (Chengdu e Emeishan). Outros mestres renomados dos quais recebeu
ensinamentos foram Khenpo Choekyi Dragpa (mKhan po Chos kyi grags pa, 1916-
2005) de Lhagang e Motsa Rinpoche (rMog rtsa rin po che) do mosteiro de Kathog
(Kaḥ thog).
Para as pessoas de sua aldeia natal, bem como no Mosteiro Sengge adjacente,
Khandro Choechen foi conhecida primeiro como uma lhamo, uma “médium
espiritual” ou “oráculo” feminina (lha pa; lha mo é a forma feminina). Me foi dito
que a maioria desses especialistas religiosos da região é do sexo masculino. Além
disso, as pessoas disseram que os médiuns correm o risco de ficar loucos se não
provar sua capacidade de lidar com as deidades locais. A própria Khandro Choechen
pensou na época que ela deveria ser algum tipo de “médium espiritual”. De fato, ela
só foi identificada como uma khandroma depois de chegar ao exílio. Até Motsa
Rinpoche, com quem passou muito tempo nos últimos dois anos no Tibete, quando

13 Sobre Khenpo Achug e seu papel no renascimento religioso no Tibete, veja Terrone 2009.
ficou no mosteiro de Kathog, ficou agradavelmente surpreendido quando soube que
S.S. Dalai Lama IV a havia reconhecido pessoalmente.
Quando tinha quarenta e poucos anos, Khandro Choechen teve uma visão do
Bodisativa Avalokiteshvara chamando-a para procurá-lo. Então, ela decidiu ir à
Índia para encontrar sua emanação, o Dalai Lama XIV. Segundo Khandro Choechen,
algo especial aconteceu quando ela conheceu Sua Santidade pela primeira vez. Foi
durante uma audiência organizada para os [refugiados] recém-chegados em
Dharamsala. Muitos tibetanos estavam esperando impacientemente, empurrando um
ao outro para ter uma melhor visão de seu líder espiritual. Khandro Choechen
preferiu ficar atrás e foi finalmente chamada pelo próprio Dalai Lama. Ele pegou as
mãos dela e olhou nos olhos dela enquanto ela chorava. Ele então disse a ela para
voltar em breve. Uma semana depois, mais ou menos, um carro de seu escritório
particular foi enviado ao Centro de Recepção Tibetano, onde ela estava hospedada,
para levá-la de volta para sua residência. Ele fez muitas perguntas, entre elas se ela
sabia quem eram suas encarnações anteriores, mas ela não conseguiu responder.
Algum tempo depois, ele perguntou ao famoso visionário Garje Khamtul Rinpoche
(sGar rje Khams sprul rin po che, n. 1928) se ele podia descobrir através de visões
quem foram seus nascimentos anteriores. Foi o que ele fez: uma noite, durante uma
sessão de meditação, ele sonhou com uma monja que era na realidade Yeshe
Tsogyal, a consorte tibetana de Padmasambhava, o santo do século VIII. Ela se
aproximou dele dizendo que havia voltado como Khandro Choechen e então recitou
todos os nomes de sua linhagem de encarnação14. No dia seguinte, Garje Khamtul
Rinpoche escreveu um poema em que repetiu o que lhe foi dito durante o sonho e o
levou ao Dalai Lama. Este último deu sua aprovação na forma de uma carta de
recomendação, reconhecendo oficialmente Khandro Choechen como uma
khandroma15. Além disso, ele lhe deu uma coroa de lótus Padmasambhava, que ela
agora usa durante cerimônias oficiais, como as organizadas no templo principal de
Dharamsala.
Desde seu reconhecimento oficial, Khandro Choechen se beneficiou de vários
privilégios: ela recebeu um apartamento do Gabinete Privado do Dalai Lama, pode
sentar-se perto dele durante os ensinamentos e sessões rituais, e tem audiências
privadas regulares com ele durante o qual ela transmite profecias que recebe durante
suas “visões puras”. Ao mesmo tempo, ela começou a construir uma rede de

14Para uma apresentação detalhada de sua linhagem, consulte Schneider 2015a.


15
Tanto o poema e quanto a carta de recomendação foram integrados na biografia acima
mencionada de Khandro Choechen; eles são datados respectivamente 24 de março de 2007 e 18
de abril de 2009. Tashi Tsering Josay fez uma análise da linhagem, também incluída na biografia.
discípulos, entre eles muitos tibetanos, mas também estrangeiros de Taiwan, Brasil,
Alemanha e Estados Unidos. Seus benfeitores a convidaram várias vezes no exterior.
Em 2013, ela decidiu se estabelecer em Seattle, onde atualmente está residindo.

2. O mundo religioso de Khandro Choechen

Khandro Choechen usa cabelos longos, mas nem no estilo dreadlock tântrico,
nem no estilo bem decorado e arranjado típico das mulheres de Minyag. Em vez
disso, ela arruma o cabelo meticulosamente em uma trança. Juntamente com seu
vestido estilo monástico vermelho escuro, a pessoa imediatamente entende que ela
não pertence nem à comunidade monástica nem é uma simples mulher casada. Isso
significa que ela é independente dos dois status normalmente designados para as
mulheres tibetanas, mantendo um considerável grau de autonomia.
Desde que chegou à Índia, Khandro Choechen mora sozinha, cercada por seu
devotado assistente, o monge Norbu, enviado pelo mestre religioso comum aos dois
Motsa Rinpoche para ajudá-la e a seu filho adotivo, Tenzin. Este último veio junto
com ela do Tibete, mas desde então se juntou a um mosteiro onde foi reconhecido
como a encarnação de um lama de Minyag. Norbu é quem cuida de suas
necessidades diárias e tarefas domésticas, cuidando de cozinhar, lavar roupas16 e
limpar o apartamento, mas também cuidando de assuntos religiosos, como agendar
compromissos e receber discípulos. Desde o início da manhã até tarde da noite, ele
está ocupado com essas necessidades diárias, permitindo o tempo necessário para
ela seguir práticas religiosas17.
Khandro Choechen não é uma praticante religiosa erudita como as que
podemos encontrar algumas vezes no Tibete passando anos com estudos das
escrituras e/ou debates budistas. Pelo contrário, ela tem apenas um conhecimento
rudimentar do tibetano escrito. Como vimos, ela quase não foi à escola quando era
jovem e, naquela época, aprendeu a língua chinesa. Mais tarde, ela foi incentivada
por seus mestres religiosos a estudar tibetano, mas se recusou a fazê-lo, dizendo que
isso era inútil para ela. Somente quando chegou à Índia e o Dalai Lama a exortou
novamente a aprender tibetano, ela começou a fazê-lo. Assim até agora, ela é mais
fluente em chinês escrito.
16 É interessante observar que Khandro Choechen lava apenas suas próprias roupas íntimas, uma
tarefa que, segundo ela, não é adequada para deixar para os outros.
17
17 Ele diz sobre si mesmo que é o zhabs phyi de Khandro Choechen, a forma honorífica de
"assistente".
Khandro Choechen passa a maior parte do tempo meditando, em seu próprio
quarto ou nos lugares que está visitando. Enquanto isso, Norbu garante que
visitantes, ruídos e até impurezas, como maus cheiros ou qualquer tipo de sujeira,
não a perturbem. Ele sabe que é de extrema importância protegê-la nesses
momentos, porque é durante as sessões de meditação que ela costuma ter visões, e o
ambiente em que vive precisa ser mantido puro a todo custo. Segundo Khandro
Choechen, diferentes Budas e Bodisativas aparecem para ela regularmente. Ela não
pode nomeá-los, com exceção dos mais importantes que são Avalokiteshvara e
Padmasambhava18; outros são apenas rostos com os quais ela está familiarizada. Às
vezes, eles a levam para viajar para terras e montanhas distantes e, outras vezes, dão-
lhe instruções e profecias, que ela eventualmente escreve. Em geral, ela esconde suas
visões, mantendo-as secretas de sua família e comitiva. Somente aqueles com
capacidades espirituais especiais têm acesso permitido, principalmente com o
objetivo de decifrar as mensagens e profecias contidas em suas visões. O Dalai Lama
e Garje Khamtul Rinpoche estão entre os escolhidos. No entanto, de acordo com este
último, suas profecias não são tão excepcionais ou extraordinárias. Em vez disso, ele
diz, suas faculdades de cura podem ser consideradas notáveis.
Desde tenra idade, Khandro Choechen começou a desenvolver suas
capacidades de cura. Ela estava então hospedada no Mosteiro Nyingmapa Sengge
(Seng ge), situado perto de onde nasceu. Muitas pessoas locais vieram procurar ajuda
dela. No entanto, ela diz que às vezes se sentia cansada de passar o tempo todo
curando e essa é também uma das principais razões pelas quais partiu para a Índia.
No entanto, uma vez que ela alcançou a comunidade exilada, rapidamente se tornou
conhecida e uma nova rede de pacientes surgiu.
O método de cura usado por Khandro Choechen é muito cansativo para ela.
Funciona aproximadamente da seguinte maneira: ela primeiro ouve a história do
paciente e depois pede algumas informações adicionais, como o signo astrológico
do paciente, o nome e o nome da mãe – o nome do pai parece não ter importância –
tudo isso é essencial para o diagnóstico19. Ela então entra em um estado meditativo
– com os olhos levantados – enquanto gira suas contas de oração. Depois de ficar
assim por um minuto ou dois, ela dá uma bênção e instruções sobre práticas a serem
realizadas ou, às vezes, solicita informações adicionais, se necessário. Norbu assiste
toda a sessão, anotando o que é dito pelo paciente e, especialmente, as
recomendações, que ele então entrega ao último. Quando perguntado sobre o que

18 Ambos também são mencionados nominalmente em sua autobiografia.


19 Para um exemplo de uma sessão de cura, consulte Schneider 2015b.
exatamente acontece durante esses momentos, Khandro Choechen me disse que
primeiro transfere a doença do corpo do paciente para o seu, evacuando a doença do
corpo do paciente. Ela então invoca Padmasambhava, Avalokiteshvara ou outras
divindades que a ajudam a expulsar a doença de seu próprio corpo. Este método de
cura só pode ser usado para doenças relacionadas ao karma; segundo ela mesma, ela
é incapaz de curar outras doenças. Além disso, se o karma do paciente é muito ruim,
ela experimenta grande dificuldade em expulsar a doença de seu próprio corpo. Ela
é, portanto, incapaz de se livrar dela e isso pode causar um grande sofrimento ao seu
próprio corpo.

Fig. 2. Khandro Choechen dá bênçãos aos discípulos chineses em Dharamsala;


o assistente dela Norbu assistindo de perto ao fundo.
Foto: Nicola Schneider, 2011.

A maioria dos pacientes de Khandro Choechen já ouviu falar dela de outras


pessoas que a consultaram anteriormente com sucesso. Para muitos deles também,
parece ter sido a única solução para o problema deles. Eles viram médicos diferentes
e também outros curandeiros que não puderam ajudá-los. No entanto, algumas
pessoas também vêm apenas para pedir conselhos sobre questões familiares ou
quando precisam tomar uma decisão importante, como por exemplo: “Como está um
membro da família no Tibete atualmente?”; “Por que uma sobrinha parece ter
enlouquecido e o que pode ser feito?”; ou “Como será a vida de tal e tal pessoa se
ele ou ela for para o Ocidente?” Embora Khandro Choechen não possa intervir
nesses casos diretamente ou “ver” como é um lugar distante em particular, ela diz
que através de suas visões ela pode perceber o que acontece ou acontecerá com uma
pessoa que vive no outro extremo do mundo.
Entre os pacientes com sofrimento físico, vários casos de doenças
relacionadas aos espíritos da água (klu, Skt. Nāga) parecem se destacar. Na cultura
tibetana, acredita-se que esses espíritos-lu habitam o ambiente físico: árvores, o
subterrâneo e fontes de água (lagos, rios, etc.). Eles são retratados como os protetores
das águas vitais do mundo e, portanto, são venerados pelos seres humanos e,
principalmente, pelas mulheres20. Por outro lado, se alguém age desrespeitosamente
com seu habitat, isso também é prejudicial para o lu: eles ficam doentes e as pessoas,
por sua vez, pegam a mesma doença21. Assim, o estado físico dos seres humanos
reflete o do lu e o lu também precisa ser curado22.
As doenças relacionadas ao lu afetam a percepção sensorial, o sistema nervoso
(como no caso da hanseníase), a pele, o senso comum (como a loucura) e o senso de
discernimento23. Embora a medicina tradicional tibetana tenha suas próprias
explicações e tratamentos descritos detalhadamente nos Quatro Tantras (rGyud
bzhi), os médicos contemporâneos no Tibete e na comunidade exilada muitas vezes
não sabem como lidar com essas doenças24. É por isso que eles tendem a enviar seus
pacientes a especialistas religiosos que têm a capacidade de lidar com os espíritos-
lu25. Khandro Choechen é um desses especialistas raros. Ela pode diagnosticar
doenças de lu graças à sua faculdade de clarividência, detectando que tipo de ato
desrespeitoso causou a raiva de um lu e direcionando o paciente nas várias etapas
que ele ou ela deve tomar para se tratar e pacificá-lo. Isso significa que ela não
apenas se comunica com aqueles reinos que estão além do mundo humano, mas
também com aqueles que estão embaixo26.
As aflições de lu não são os únicos casos que Khandro Choechen encontra
durante suas consultas. Entre os pacientes, que são majoritariamente mulheres, notei
20 20 Karmay & Sagant 1998: 205-206.
21
Ibidem: 206.
22 Lalou 1938: 4.
23 23 Vargas 2009: 368.
24 24 Vargas 2009, 2010.
25
Comunicação pessoal com um médico de Men-tsi-khang (Índia) e Dr. Yeshe Donden (Ye shes
don ldan) de Dharamsala.
26
Estou inclinado a dizer, depois de Macdonald (1981: 74) e Karmay & Sagant (1998: 209), que
Khandro Choechen tem o poder de mover-se livremente para cima e para baixo no eixo espacial
cósmico.
também vários casos de “doenças cardíacas” (snying nad) e, de maneira mais geral,
“distúrbios do vento” (rlung nad), ambos relacionados ao sofrimento mental ao qual
as mulheres são particularmente propensas, de acordo com as representações
tibetanas27. Assim, podemos dizer que Khandro Choechen é uma curandeira que se
encarrega de distúrbios típicos “femininos”. Seria interessante estudar e comparar
mais curandeiras desse tipo para entender melhor o papel das mulheres curadoras na
medicina ritual.
Desde que se estabeleceu em Seattle, no entanto, Khandro Choechen não dá
mais consultas, exceto para alguns ex-pacientes que a contatam através do aplicativo
WeChat28. Em vez disso, ela diz, ela se concentra em questões maiores de saúde que
afetam os seres humanos nesses dias, como demência, por exemplo. Embora ela
nunca tenha aprendido nenhuma medicina formal, ela quer elaborar seu próprio
caminho para entender melhor as causas das doenças através de sua faculdade de
clarividência, a fim de intervir na causa raiz da doença e ser capaz de tratar as pessoas
mesmo antes do tempo. Seu assistente Norbu, que não tem acesso a suas visões, diz
que fica impressionado com seus muitos sucessos no tratamento de doenças e com
as explicações que ela pode dar sobre o corpo físico e seus distúrbios, sem nunca ter
estudado sob a orientação de um médico. Para ele, ela é exatamente o que uma
khandroma deve ser.

3. Sobre a necessidade de ser humilde e discreta

Como em muitas religiões, o status das mulheres no budismo tibetano é


marcado pela ambivalência. De um modo geral, as mulheres são consideradas
inferiores de várias maneiras: elas são consideradas de baixo mérito – isso é refletido
por um dos termos usados para o significado de “mulher” (skye dman), literalmente
“baixo nascimento” – e são consideradas ritualmente impuras em vários aspectos.
Isto é especialmente verdade no contexto institucional do monasticismo, onde as
monjas consequentemente não gozam dos mesmos privilégios que os monges. No
entanto, no budismo tibetano também encontramos símbolos femininos exaltados e
mulheres altamente reverenciadas, cujo status contrasta com o quadro geral das

27 Para “doenças cardíacas” e mulheres, veja Bassini 2006; sobre “distúrbios do vento” e a
conexão com as mulheres, veja entre outros, Janes 1999, Jacobson 2007 e Dachille-Hey 2011.
28 28 WeChat é um aplicativo para celular, que possibilita o envio de mensagens escritas e orais,

além de fotos e filmes. Tibetanos do Tibete e do exílio hoje em dia o usa amplamente também
para fins religiosos.
representações assimétricas de gênero. Alguns pesquisadores argumentaram que
essas mulheres “autônomas” servem como algum tipo de modelo, especialmente
para as monjas, mas de maneira mais geral para todas as mulheres tibetanas. Sem
entrar nos detalhes dessas discussões, gostaria de reformular a pergunta,
perguntando o que essas mulheres de renome têm em comum ou não com as leigas
e monjas? E como elas tornam possível obter mais autonomia para si mesmas?
Até agora, ouvimos falar das realizações de Khandro Choechen como são
contadas em sua autobiografia e oralmente em entrevistas, mas também através da
observação de sua vida cotidiana. Percebemos, por exemplo, que ela não ganhou
destaque por causa de suas conexões familiares ou por pertencer a uma comunidade
religiosa específica29. Pelo contrário, provavelmente seu pai estaria lá para ajudar se
ela tivesse sido o filho que ele esperava. Em vez disso, ele decidiu deixar a família,
e mais tarde quando voltou, não se importava com a carreira religiosa de sua filha.
Assim, Khandro Choechen teve que encontrar seu próprio caminho para se engajar
na prática religiosa. Sua primeira opção foi tornar-se monja, um passo típico para as
mulheres que procuram uma alternativa à vida de dona de casa. No entanto, isso foi
"impedido" por uma ordem superior, ao que parece, como o incidente sobre sua
cerimônia de corte de cabelo mostrou. No final, ela não teve outra opção a seguir a
não ser se impor aos mestres religiosos durante os ensinamentos, desconsiderando o
comportamento feminino convencional, que determina que as mulheres são devotas
e submissas e não têm permissão para se aproximarem dos praticantes do sexo
masculino, especialmente quando estes são celibatários.
Um de seus primeiros mestres religiosos foi Khenpo Choekyi Dragpa, um
conhecido monge-lama de Lhagang que foi o principal iniciador do reavivamento
religioso na região após a Revolução Cultural. Dois de seus discípulos, Khenpo
Dorje Tashi e Lama Drugdra Gyatso ('Brug grags rgya mtsho, n. 1968), atuam hoje
como seus herdeiros, sendo o primeiro responsável pelo colégio monástico
construído por seu mestre e o segundo por ter herdado o convento fundado por Lama
Tsephel30. É menos, talvez nem sequer sabido, que Khenpo Choekyi Dragpa também
tinha uma discípula feminina em particular.
No entanto, os dois principais discípulos de Khenpo Choekyi Dragpa não
receberam Khandro Choechen quando ela se juntou a seus ensinamentos. Eles
tentaram diminuí-la por vários meios. Por exemplo, ambos a repreenderam por não
ser alfabetizada e, portanto, a repreenderam como sendo incapaz de entender o

29 Esses dois pontos foram sugeridos por Martin 2005: 80-81.


30 Para Khenpo Dorje Tashi e Lama Tsephel, veja acima.
significado dos ensinamentos esotéricos. Não só isso, de acordo com a própria
Khandro Choechen, ela frequentemente se tornava alvo de suas provocações. Até
hoje, ambos mostram dúvidas sobre ela ser uma khandroma, em contraste com
Motsa Rinpoche, que também era seu mestre religioso, mas um lama casado.
Enquanto estava no mosteiro de Kathog e estudou sob a orientação de Motsa
Rinpoche, Khandro Choechen foi tratado de maneira diferente. Ao participar de
assembléias regulares realizadas por monges, lhe era atribuída um dos assentos altos
(é aqui que Norbu a notou pela primeira vez). Apesar de não poder ficar com os
monges no alojamento deles, ela recebeu um quarto no centro de retiro adjacente,
onde outras mulheres costumavam ficar.
No entanto, isso não implica que aquelas khandroma que são casadas tenham
mais facilidades ou enfrentem menos obstáculos do que os encontrados por Khandro
Choechen. Ao contar suas próprias experiências, Khandro Choechen me falou
também algumas histórias sobre outra khandroma que ela conhecia pessoalmente,
Khachoe Wangmo (mKha 'spyod dbang mo, d. 1987), a consorte espiritual de seu
Lama Tsophu Dorlo, de Nyarong. Nem todo mundo apreciou Khachoe Wangmo
durante sua vida, apesar de ser uma prodigiosa “Reveladora de tesouros” e
trabalhado em um relacionamento próximo com um lama altamente respeitado31.
Um dos motivos era sua origem geográfica: ela era de Gyalrong (rGyal rong), uma
região situada mais a nordeste e considerada por alguns tibetanos como não fazendo
parte do Tibete. Outra era sua afiliação religiosa: ela não era budista como Tsophu
Dorlo e a comunidade ao seu redor, mas uma Bonpo (bon po). No entanto, aos olhos
de Khandro Choechen e Norbu, a principal explicação é que as pessoas de Nyarong
não confiam nas mulheres, mesmo quando são muito bem-sucedidas como ela32.
Após essa conversa, Khandro Choechen explica que nem sempre é fácil ser
uma khandroma e que esse status também atrai muitos ciúmes e mesquinhez. Estes,
por sua vez, a levaram a permanecer discreta, se não escondida do público.
Geralmente ela raramente sai, preferindo que as pessoas a encontrem em sua casa -
e isso mesmo nos Estados Unidos onde atualmente mora. Além disso, ela raramente
se junta a eventos públicos, como rituais coletivos, por exemplo, uma vez que sua
participação implica que ela estará instalada em uma cadeira alta, consistente com
seu status. No entanto, quando uma mulher ocupa uma posição alta geralmente
ocupada por homens, os rumores aumentam quase automaticamente entre os

31 Um relato de Khachoe Wangmo revelando um "tesouro" pode ser encontrado em Hanna 1994.
3232 Segundo Khandro Choechen, Khachoe Wangmo tinha um grande poder espiritual: quando
ela estendia as mãos, a comida baixava lá. De acordo com Tsering Thar (2003: 440), a biografia
de Khachoe Wangmo pode ser encontrada no Mosteiro Dragwen, em Nyarong.
tibetanos. Temendo as conseqüências que isso pode levar, ela prefere evitar essas
situações, dizendo que não há “benefício” (phan thog) para sua prática budista; pelo
contrário, pode até ser errado fazer isso.
Nos últimos anos, e mais precisamente desde que Khandro Choechen chegou
ao exílio, as atitudes em relação a seu gênero mudaram. Sua idade desempenha um
papel significativo, já que ela não é mais considerada uma ameaça ao celibato dos
monges – uma ameaça “sexual”, que parece ser a principal razão para a misoginia
ascética encontrada em muitos textos budistas33. Mais importante, o ambiente dela
mudou. Para começar, o Dalai Lama, conhecido por sua posição favorável em
relação as mulheres e religiosas, deu-lhe muito apoio facilitando sua integração em
uma hierarquia religiosa que geralmente é reservada para homens – fato que também
é destacado em sua biografia ao incluir sua carta de recomendação. Em segundo
lugar, através de suas capacidades de cura, ela construiu uma rede de pessoas com
uma mente mais aberta em relação às questões de gênero, especialmente algumas
mulheres. Algumas delas vêm de Taiwan ou do Ocidente e são até manifestamente
feministas, procurando especificamente uma mestra religiosa. Juntamente com o
Dalai Lama, eles não apenas reconhecem e respeitam suas capacidades espirituais,
mas também a apóiam economicamente, um assunto que não posso entrar em
detalhes aqui.
Em resumo, Khandro Choechen está enfrentando as mesmas regras e
restrições de gênero que outras mulheres tibetanas, incluindo as monjas. Ela pode
ter superado algumas dessas regras e expectativas não escritas, forçando seu
caminho para os círculos masculinos e ingressando em uma comunidade com idéias
mais modernas sobre gênero, ganhando assim alguma forma de autonomia. Mas, em
outros momentos, ela sente que precisa se adaptar e manter seu status de mulher,
permanecendo humilde e discreta, duas virtudes tipicamente femininas na cultura
tibetana.

Conclusão

O status social e religioso de Khandro Choechen me parece melhor descrito


como autônomo. Nem casada nem monja, ela não depende de mais ninguém e,
portanto, é totalmente livre para seguir sua carreira religiosa como deseja. No
entanto, para alcançar essa autonomia, ela teve que superar diferentes obstáculos,
alguns envolvendo decisões difíceis. Primeiro, ela queria se tornar monja mas foi

33 Veja, por exemplo, Sponberg 1992.


impedida de fazê-lo por forças divinas além de sua própria vontade. Ela aceitou e
procurou uma solução alternativa para perseguir seu objetivo religioso. Ela então
teve a oportunidade de se tornar esposa de um famoso lama, prometendo a ela um
futuro brilhante e um papel socialmente aceito. No entanto, ela se recusou a ser
parceira de um homem idoso – o que significaria sua submissão em relação a ambos,
idade e sexo – preferindo uma maneira mais árdua na procura por ensinamentos
religiosos em um ambiente exclusivamente dominado por homens. Ela então teve
que enfrentar rejeição e provocações no Tibete, mas acabou recebendo o apoio e
algum tipo de reconhecimento informal de vários mestres religiosos, que estavam
dispostos a apoiar uma extraordinária mulher visionária como ela.
Em sua autobiografia, bem como em seus relatos orais, Khandro Choechen explica
sua partida do Tibete como seguindo o chamado do Bodisativa Avalokiteshvara. No
entanto, também é possível interpretar seu vôo como uma fuga das pressões de uma
sociedade tradicional, que dificulta a vida das mulheres mesmo quando elas já
provaram ter alguma realização espiritual. O novo ambiente que ela encontrou na
comunidade exilada tornou muito mais fácil para ela perseguir sua procura e
ambições religiosas, não apenas porque os ensinamentos públicos são mais
frequentes e fáceis de obter, mas também porque a hierarquia religiosa, ciente das
modernas idéias ocidentais sobre a igualdade de gênero (embora não
necessariamente as compartilhe), é mais inclinada a aceitar mulheres praticantes. O
primeiro de todos é o Dalai Lama. Ao reconhecê-la como uma khandroma, ele não
apenas reconheceu suas realizações espirituais, mas também abriu uma porta para a
hierarquia religiosa geralmente masculina. Além disso, determinar e aprovar sua
linhagem deu a ela legitimação oficial que ela não poderia obter no Tibete, onde a
dúvida era uma atitude que ela frequentemente experimentava.
A história de vida de Khandro Choechen ilustra algumas das dificuldades
também encontradas por mulheres de alto status quando desejam seguir uma vida
religiosa autônoma. Como mulheres, elas são compelidas a se comportar de acordo
com as idéias e representações de gênero tibetanas. Caso contrário, elas enfrentam
críticas severas, como mostram as experiências de Khandro Choechen em Kham-
Minyag. Isso explica por que ela decidiu cumprir algumas dessas regras cultivando
humildade e discrição. Esta não foi uma decisão fácil e não teria sido possível sem
seu fiel assistente Norbu cuidando de suas necessidades diárias e atividades
religiosas. Ao mesmo tempo, faz com que ela pareça ainda mais notável, não apenas
porque ela representa uma curadora bem-sucedida, mas também porque ela cultiva
virtuosismo e disciplina, dois atributos importantes para um especialista religioso.
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