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Zen – Caminho contemplativo

MONGE GENSHÔ

É de costume no Zen fazer palestras somente depois de meditar. Então vou propor que
façamos dez minutos de meditação Zen - não é muito diferente da que vocês estão
acostumados, a Vipassana. Algumas das diferenças consistem no fato de que
mantemos os olhos abertos e voltados para o chão, ficamos imóveis, prestamos
atenção na respiração - inspiração e expiração – para que seja controlada e lenta. Os
pensamentos acontecerão, mas em vez de prestarmos atenção neles e de acompanhá-
los, deixamos que passem e trazemos nossa mente de volta para o momento presente,
para onde estamos. Não fazemos considerações do tipo “isso é bom ou ruim”, “certo
ou errado”; não julgamos nem classificamos nossos pensamentos. Ficamos
simplesmente sentados, além do pensar e do não pensar.

Bom, então gostaria primeiro agradecer a oportunidade que o Professor Sasaki nos
deu de estarmos aqui e de poder falar sobre o Dharma. O budismo Zen surge,
tradicionalmente, de um sermão de Buda em que ele levanta uma flor e a mostra para
a platéia sem nada dizer. Ao fazer isso, um dos assistentes, Mahakasyapa, que viria a
ser o sucessor de Buda após sua morte, sorri. Buda diz – Mahakasyapa foi o único que
entendeu. Essa tradição de origem do Zen fala sobre o fato de que o Zen verdadeiro, o
Dharma verdadeiro, é transmitido alem das palavras. As palavras não fazem jus ao
Dharma, não fazem jus à verdade dharmica. O conhecimento e a experiência são tão
profundos, tão distintos, que não podem ser descritos com palavras. Por isso, sempre
que possível, uma palestra sobre o Zen deve ser iniciada com a experiência da
meditação, sem a qual não podemos saber sobre o que falamos. É necessário calar
nossa mente, nossa boca, imobilizar nosso corpo, para que haja espaço para sentirmos
algo mais profundo que permeia tudo. As pobres palavras não fazem sentido porque
não permeiam tudo. Também não há nenhum “algo” aqui. Isso lembra a teologia
apofática, presente no cristianismo, em que se declara que não se pode falar sobre a
divindade porque quando se fala sobre Deus estamos lhe dando atributos, e ao dar
atributos estamos diminuindo algo que não poderia ser diminuído. O budismo em si
nem fala sobre uma entidade divina ou sobre um Deus criador. O mesmo conceito
frequentemente abordado em todo o Mahayana, o vazio, é um conceito muito difícil
de ser agarrado. Essa palavra é muito raramente encontrada no canon e atribui-se a
Nagarjuna, no primeiro século depois de Cristo, a primeira explanação sobre o tema da
vacuidade. Esse vazio também não pode ser descrito e a ele também não podem ser
dados atributos, mas dele surgem todos os fenômenos e manifestações dos seres, de
todos nós. Tais fenômenos ocorrem na superfície da vacuidade, e eles são a própria
vacuidade. Nós somos o vazio, a vacuidade se manifestando. A única maneira possível
para que a vacuidade surja é através das manifestações fenomênicas dos seres, do
universo, de todas as coisas. Mas essas manifestações em si, do ponto de vista do
budismo Zen, não passam de manifestações cármicas e, nesse sentido, ilusórias, pois
são interdependentes, impermanentes e não existem por si mesmas. Só existem
porque elas precisam se manifestar por força dos impulsos cármicos que as geram.
Como as ondas são geradas na superfície do mar pelos ventos, assim também nós
somos gerados na superfície da vacuidade ( a analogia falha no ponto de que a
vacuidade não é um ente por si mesma) pelos ventos de nossos próprios impulsos. É
por isso que estamos todos sentados nessa sala, e nada mais somos do que seres de
apegos e desejos.

Portanto, eliminando-se todas as manifestações, não há vacuidade para surgir. Por isso
o famoso sutra do Coração e da Sabedoria diz “forma é vazio e vazio é forma”. Toda
vacuidade é forma e toda forma é vacuidade porque a vacuidade só se manifesta
assim. Mas cada objeto surge com seus significados por causa de nosso olhar. É nosso
olhar que produz os significados que a coisa tem. Sem nosso olhar, as coisas podem
existir como manifestações, mas não são nada daquilo que um homem veria. É como a
madeira, que é material de construção para nós, mas para um cupim, é comida. Sendo
comida para o cupim, para ele é apenas um manjar, não é material de construção. Para
o fogo, alimento de chamas. Para um ecologista, a madeira é um seqüestrador de
carbono da atmosfera, e assim por diante, segundo cada olhar. Com o olhar surge o
significado do mundo, por isso, podemos dizer que quando morre um homem, morre
um universo, ou seja, o universo dele, carregado dos significados que ele atribuía às
coisas e seres. Neste sentido, mesmo que eu pegue esse relógio e diga que para mim
ele é diferente do relógio que cada um está vendo, porque ele tem determinadas
marcas e significados para mim, pode ser que alguém aqui tenha, alguma vez, recebido
um relógio na testa, logo, o relógio terá para ele outro significado. Alguém pode ter
recebido um relógio de seu pai falecendo; para essa pessoa, então, o relógio terá um
significado outro. Desta forma, um mesmo objeto é construído por nós em seus vários
significados, e assim construímos um mundo com nossa mente. Por isso, essa mente
construtora do mundo é a mente transformadora do mundo. Essa é a razão de
treinarmos a mente, porque essa mente treinada modifica todo o mundo,
instantaneamente. Uma mente cheia de compaixão vê um mundo compassivo e digno
de compaixão. Uma mente cheia de ódio vê um mundo odioso e raivoso. Não há como
escapar.

A maneira de transformarmos o mundo é transformando a mente de cada um. Não


importa qual o sistema, transformando as mentes, qualquer um funcionaria
maravilhosamente bem - uma monarquia funcionaria maravilhosamente bem, uma
ditadura também, um sistema totalitarista como o comunista funcionaria bem
igualmente, a democracia funcionaria. Somente seriam necessárias pessoas com
mentes compassivas, honestas, maravilhosas, dedicadas ao bem dos outros, abdicando
de si mesmas, e o mundo seria perfeito. A raiz da mudança do mundo está nas mentes.
É por isso que o budismo volta-se para o treinamento e a modificação da mente do
homem, para, dessa forma, produzir o nirvana, um mundo onde a mente que olha
transforma o samsara, que é o mundo da perambulação, do sofrimento, um mundo
onde transitamos de um lugar para outro buscando a felicidade. Assim, mudamos de
um amor para outro, de um emprego para outro, e vivemos sempre cheios de “se”: se
eu ganhasse na loteria, se eu fizesse isso, se eu fosse amado, se eu tivesse um filho.
Esses “se” são colocados como o que nos permitiria ser felizes.

Esse é o mundo da perambulação, o samsara, o mundo da procura e da insatisfação


permanentes. Esse é o significado de dukka, a primeira nobre verdade. “A vida é
dukka”, ou seja, a vida é insatisfatória, porque nela, embora haja momentos
maravilhosos ou tristes, nenhum deles será permanente, sólido ou estável. A mudança
é parte integrante da natureza das coisas. E assim, achando sempre insatisfação ao fim
de qualquer processo de qualquer tempo, sofremos. Sofremos por não podermos
agarrar e ficar com uma felicidade e satisfação permanentes. E o nirvana? O mesmo
mundo, o mesmo lugar, mas onde os ventos dos impulsos não nos empurram e onde,
por causa disso, não existe necessidade de perambular, porque onde estamos
encontramos a completa felicidade e plenitude. Dizemos no Zen que quando estamos
sentados em meditação, isso é nirvana, é iluminação, porque, naquele momento, você
imita Buda e imitando Buda você é nada mais do que Buda. Dizemos isso também para
desarmar, porque em outro sentido você não é Buda, você sabe que não é, sabe que
não está desperto, que não é um iluminado. Mas se você se senta com o desejo de ser
um Buda, de se iluminar, de se libertar, de ser feliz, esse próprio desejo é samsárico,
pois ele produz uma busca, uma insatisfação. A pessoas se perguntam, então: “para
que estou praticando, se não alcanço nada, sou assim sempre, sou mau?” Pensar desta
forma é estar em samsara sentado em meditação. Esse mesmo ser, no instante em
que não é levado por nenhum impulso, por nenhum desejo e que não pretende
alcançar nada, ele vê no próprio samsara o nirvana. Porque não há nenhuma diferença
de lugar nessas duas coisas, a diferença está na mente.

Pergunta – Mas tem que haver o desejo de sentar, ou não?

Monge Gensho – Muito interessante, pois começamos sempre assim, a partir da


insatisfação com a vida. Essa é a história do próprio Buda. Ele vê o sofrimento, e
porque se sente angustiado com isso, deixa todas as coisas e vai procurar uma solução.
Mas isso não é iluminação.

Observação – Mas é um desejo.

Monge Gensho – Sim. A palavra desejo causa alguns problemas. Porque a usamos em
português para uma série de significados que em sânscrito são palavras diferentes.
Desejo que causa sofrimento é tanha, um desejo apegado, teimoso, adquirente.
Existem outros desejos, por exemplo, ditti, que é o desejo de ter uma opinião, de
defendê-la, de manifestá-la, agarrado a suas próprias opiniões. E existe o impulso de
conseguir se libertar, ele é benéfico, mas quando começamos ele é aquisitivo, é
materialismo espiritual. Todos praticamos assim, começamos sempre assim. Viemos a
um centro do Dharma procurando adquirir algo, como uma palavra que o professor
nos diga e que nos salve, procurando tranqüilidade, serenidade através da meditação.
Alguma coisa sempre queremos adquirir. Isso está bem segundo o caminho do
Dharma, porque a pessoa vai se sentar e começar assim, procurando por algo através
desse materialismo espiritual. Mas à medida que você vai crescendo e amadurecendo
no Dharma, percebe que tem que sair desse estágio e partir para um outro, no qual o
aluno, ao ser perguntado pelo professor “porque você está praticando?”, ele
responda: “não sei mais!”. Nesse momento foi dado um grande passo. Esse passo é
maravilhoso, porque é uma libertação do materialismo espiritual de querer obter algo
para si. A trajetória de Buda também é assim. Ele parte à procura de mestres de yoga,
pratica duramente, faz jejum, medita, martiriza seu corpo, fica magro e sofre durante
anos, sem encontrar a saída. Quando, finalmente, ele senta-se embaixo de uma árvore
e diz “eu desisto” do ascetismo, depois de sete dias, se ilumina. O que faz ele então?
Fica com a iluminação para si? Não, ele se levanta, sai para o mundo e durante
quarenta anos ensina sem parar. Ele faz isso por compaixão. Nesse momento é que ele
é Buda, até o momento anterior ao da iluminação, ele era Sidharta Shakyamuni que
estava tentando se libertar do samsara, como todos nós.

Pergunta – Gostaria que o Senhor falasse um pouco sobre a transformação da mente.


Nesse processo existe sofrimento, porque algumas vezes, teoricamente, a gente sabe e
entende, mas a grande questão - me corrija se estiver errada - é a prática, a
convivência, a atitude da pessoa. Entre a teoria e a prática há um sofrimento de,
talvez, querer e desejar chegar a esse ponto.

Monge Genshô – O simples fato de haver desejo - o desejo de se libertar - implica


nesse sofrimento. Na realidade, todos os professores que eu conheci foram homens
inquietos, com grandes desejos de se libertar que se entregaram a uma profunda e
sofrida busca. Você tem toda a razão. Meu mestre, Moryama Roshi, ficou vinte anos
dentro de um mosteiro e passou alguns anos, completamente sozinho nas montanhas,
sem energia elétrica e tendo que carregar água. Ele costuma dizer que tomar banho
era uma tarefa de três horas, pois tinha que carregar a água e fazer uma fogueira para
aquecê-la. Nós estávamos em uma palestra e alguém perguntou a ele, “Mestre, o que
o senhor aprendeu com tantos anos de retiro solitário?” ao que ele respondeu, “Bem,
na primeira noite em que fiquei sozinho, na hora de dormir, eu não conseguia, porque
sentia medo. Pensava que poderia ser surpreendido por um assaltante ou por um
animal selvagem, visto estar em um local deserto, então, não conseguia dormir por
medo. Depois desses anos sozinho, descobri que essa era a grande lição que tinha que
aprender: eu tenho medo”.
Aluno – Eu queria entender um pouco a diferença entre esse estado de iluminação e o
estado de adormecimento. Porque para vocês esse estado de iluminação,
teoricamente, seria um estágio onde nada ocorre, onde a mente está obliterada, mas...

Monge Gensho – Eu acredito que essa visão não seja bem correta. Não se trata de uma
obliteração da mente, em absoluto. Trata-se de um estado em que você tem clareza,
ou seja, você pensa, raciocina e age, mas com clareza. Você vê claramente o resultado
de suas ações, porque deve agir de determinada forma e toma decisões com clareza. A
diferença da mente iluminada para a mente deludida é a clareza. Quando alguém está
iluminado, sabe o que deve fazer, quando, como e de que maneira, sempre,
limpidamente. Mas não significa que não aja no mundo, que não fale, que não lhe
ocorram pensamentos; o que acontece é que estes não o levam de um lado para
outro. Não é que não lhe surgem pensamentos, é que nenhum pensamento o arrasta.
Se nós nos sentarmos e ficarmos com a mente completamente vazia, sem nenhum
pensamento, Hui Neng, famoso mestre Zen do século sete depois de Cristo, chamaria
isso de quietismo, e ficaria furioso. Vou lhes contar uma pequena historia Zen. Um
monge chegou num mosteiro de um grande mestre Zen e pediu, “O senhor pode me
ensinar, pode me aceitar?” “Pode ser - disse o mestre. “O que você já fez?” “Já treinei
muito meditação, vou lhe mostrar”. Sentou-se rapidamente em posição de lótus com
as pernas cruzadas e entrou, em segundos, em profundo samadhi. O mestre pegou um
bastão e começou a surrá-lo expulsando-o do mosteiro e dizendo:”Budas de pedra já
tenho muitos, nesse mosteiro”. Portanto, não é isso que é desejável, a libertação não é
apagar-se, não é morrer, é outra coisa completamente diversa disso. A libertação tem
dentro de si a ação, mas ação iluminada.

Pergunta – Tem uma história Zen que também não consegui entender. É sobre as
bandeiras. Um monge diz que a bandeira treme, outro diz que é o vento que treme,
então vem o mestre e diz que é a mente que treme. O senhor poderia me ajudar a
entender essa história?

Monge Genshô –. Essa história consta no sutra da Plataforma de Hui Neng. Quando
eles olham para a bandeira, os monges estão discutindo uma perspectiva, uma
opinião. Um diz que é o vento que se move, o outro diz que é a bandeira. Hui Neng diz:
“Não, é a mente que se move”. Ou seja, é a mente de vocês que se move e interpreta
coisas tão simples. Uma mente iluminada não pensaria sobre o assunto, veria apenas a
beleza da bandeira tremulando, mais nada.

Pergunta – Existem hoje muitas práticas que visam misturar ou agregar práticas
budistas com, por exemplo, práticas cristãs. Temos, aí, entre outros, Thomas Merton.
No entanto, são filosofias diferentes, com objetivos diferentes e ideologias diferentes.
Na sua opinião, nessa intersecção de filosofias e teologias diferentes, pode haver inter-
relação? Poderíamos dizer, por exemplo, que o cristianismo melhore com as práticas
Zen ou vice-versa?

Monge Genshô – As crenças em si não são muito importantes. O que é importante sob
o ponto de vista budista é se existe liberação. A prática de meditação está renascendo
no ocidente através das mãos de John Main, Laurence Freeman entre outros. A prática
da contemplação não é ignorada no cristianismo. Ela existiu fortemente dentro do
cristianismo em seus primórdios, mas, de certa maneira, foi esquecida. Existe um
renascimento das práticas de meditação, em especial, dentro do Cristianismo católico,
porque ali há uma vertente monástica maravilhosa que começa com São Bento, o
fundador de Monte Cassino, e que se aprofundou muito. Quando você lê os escritos de
grandes místicos cristãos como Santa Tereza D’Ávila, São João da Cruz ou Mestre
Eckhart, você verá, nesses escritos, um cristianismo com Dharma. O importante é
dizermos que Dharma, lei, sabedoria, não é propriedade do budismo. O Dharma existe
e pode ser acessado por diferentes caminhos. Não muito tempo atrás, assisti um filme,
Uma amizade sem fronteiras, com Omar Sharif no papel de um professor Sufi. Nesse
filme, as intervenções dele, as coisas que ele diz, são como frases de um mestre Zen.
Esse assunto não é novidade. Em livros como Filosofia Perene, Aldous Huxley mostrou
as similaridades entre o Budismo, os Sufis, os Hassídicos judeus e o misticismo Cristão.
Thomas Merton escreveu sobre o assunto em livros como Místicos e Mestres Zen. Ele
era um frade trapista, católico, brilhante. O Dharma está presente, é fácil de ver isso. O
budismo tem uma vantagem posicional, pois não se vê como um caminho único, não
se coloca como proprietário de uma verdade particular, ou como o único caminho para
a salvação. Na verdade, nem usa esta palavra no sentido de “salvar os condenados”,
porque não crê que os homens estejam condenados. Assim, para o budismo não há a
necessidade de converter pessoas, como, por exemplo, um mestre sufi a tornar-se Zen
Budista; isso não faz sentido para o Zen. Ele já está vivendo o Dharma, o budismo é
apenas um método, um caminho, e ele inclui uma coisa de que normalmente não se
fala num caminho religioso, pois o budismo aponta uma porta de saída para o budismo
ao contar a história do veículo para atravessar o rio. Nós falamos em atravessar o rio
para atingir a outra margem. Lá, na outra margem, está a sabedoria. No final do sutra
do coração, cantamos, “todos juntos para a outra margem, a iluminação, salve”. Então,
o budismo vê-se como um barco para atravessar um rio, existem muitos barcos e
jangadas, mas o budismo diz, “Você atravessou o rio, mas não vai sair carregando o
barco nas costas, deixe o barco e vá embora”. O budismo é um método para a
libertação e não precisa ser carregado depois. Se for um bom método, podemos
ensiná-lo às pessoas para quem o método seja adequado. Mas existem outras pessoas
para quem, talvez, um outro seja melhor. E é bom que existam muitos remédios,
porque existem muitos doentes com doenças diferentes.
Aluno – No vocábulo Zen, existe a palavra Chan, que significa concentração. Existe
algum foco especial no budismo a respeito da meditação/concentração, ou é apenas
uma coincidência?

Monge Gensho – Não, não é coincidência. O Zen budismo se vê como budismo


contemplativo, ele enfatiza, e a diferença entre os budismos, é essa a ênfase. A escola
Theravada enfatiza o estudo dos sutras, embora meu mestre fale constantemente para
eu ler os sutras do Cannon Pali. O budismo Zen enfatiza a prática da meditação,
sempre digo que essa prática no Zen deve ser feita em quantidades industriais, mas a
mesma coisa acontece na prática do Theravada, pois existe grande similaridade nessa
ênfase. Embora se diga frequentemente no budismo, que as escrituras e os textos são
o dedo que aponta para a lua, mas que não são a lua, são mapas para que se possa
seguir um caminho. Não são o caminho. São indicações, você tem que trilhar o
caminho por seus próprios pés para chegar lá. Não basta ler ou ouvir ensinamentos.
Costuma-se dizer no Zen que enquanto nele se falar, ele não estará presente. Quando
estávamos calados experimentando a prática da meditação, o Zen estava presente.
Agora é só conversa a respeito. A palavra chan vem do sânscrito dhyanna que significa
meditação, então, o budismo Zen significa o budismo que enfatiza a prática da
meditação. Na verdade, no Zen, embora diga-se frequentemente, como acabei de
dizer, que os ensinamentos são apenas o mapa, dificilmente você encontrará tantos
textos quanto existem sobre o Zen, e os professores estão sempre escrevendo. Aqui,
por exemplo, tem um gravador para documentar a palestra, porque Moryama Roshi
aconselhou: “grave as palestras”. Por quê? Porque acabarão virando texto. Na
realidade, existe estudo no Zen e Dogen Zen Ji diz que o estudo dos sutras é a base do
caminho. Não se chega à outra margem sem saber, e mesmo que Hui Neng seja
declarado um patriarca analfabeto, leia seu o texto e você verá quantas citações nele
há; ele parece um erudito. Mesmo que ele guardasse de memória por não saber ler,
ele ouvia, guardava, sabia citar e raciocinar. Sem esse instrumento não vamos longe. A
ênfase do Zen é mais do tipo, “não me diga as palavras de Buda, me diga as suas”. É a
verdade que você está praticando, e essa é a verdade do Zen, e não as indicações ou
os textos. Como você está vivendo, como está sua mente agora, essa é a verdade. Mas
existem três portas de acesso: emoção, estudo e ação. São três portas de acesso para
o caminho. As pessoas são diferentes, existem pessoas que naturalmente estão
preparadas para o caminho intelectual, outras para o caminho da emoção e outras
para o caminho da ação. Cada uma deve praticar com a escola mais adequada para o
seu coração, para o seu sentimento, devendo praticar naquele lugar com o qual ela
sinta que tem conexão. Por isso, é tão importante escolher o seu mestre e sua escola.
Nesse sentido, recomendo a vocês o texto de um famoso escritor, o professor Ricardo
Sasaki, intitulado A que Escola pertenço.

Pergunta – (...) O que é a compaixão?


Monge Genshô – A compaixão depende do esquecimento de nosso próprio ego. As
pessoas têm um eu que, normalmente, nas mais primitivas pessoas, termina na sua
pele. Tais pessoas cospem e jogam lixo no chão porque não enxergam que o mundo
vai além de sua pele. Há pessoas cujo “eu” termina na superfície da tinta de seu
automóvel, então jogam latas pelas janelas do carro, porque fora do automóvel já não
é mais seu mundo. Paulatinamente, podemos ver de que tamanho é o mundo de
alguém. Se o mundo vai até a pele, até o carro, aos limites de sua casa. Nunca me
esqueço do dia em que vi uma mulher na Alemanha varrendo a rua na frente de sua
casa, porque há pessoas que varrem um pouco além de sua casa. Neste caso, esse “eu”
estava mais ampliado. Outros pensam que o mundo tem fronteiras, às vezes é sua
raça, seu time de futebol ou a fronteira de seu país e os que estão além dessas
fronteiras podem ser considerados inimigos. Outros, ainda, pensam assim em relação a
sua religião. Tudo depende de como é seu ego. A compaixão surge à medida que você
amplia os limites de si mesmo, se estendendo para chegar a abranger todo o universo.
Se abranger todos os seres humanos, todos os animais, todos seres vegetais, será
difícil quebrar uma pedra, porque não matar, como preceito, inclui não quebrar uma
pedra quando não há necessidade, não destruir nada. Porque o mundo é mais amplo,
a compaixão se expande. O crescimento da compaixão então compreende esquecer-se
de si mesmo, o que significa morrer para si mesmo. Assim fazendo, podemos, então,
abarcar tudo, e ao acontecer isso, existe a libertação, porque quando nós
manifestamos a ignorância de nos acreditarmos separados de tudo - e os venenos da
mente como o apego, a aversão, a raiva, enfim, todos eles dependem de eu acreditar
em mim mesmo como ser separado – não temos compaixão. Esta é a ignorância
fundamental, a de acreditar que somos um “eu” separado. Porque acreditamos que
somos um ser separado de todos os outros, não temos compaixão. Quando morremos
para nós mesmos, nasce um ser muito mais amplo e esse ser é naturalmente
compassivo, porque a dor do outro dói nele. Na realidade, essa ideia – e isso nos
mostra abrangência do Dharma – ela existe nos escritos de Paulo dos evangelhos,
“Não sou mais eu quem vive, mas Cristo que vive em mim”. Isso significa morte do
“eu”. Também encontramos o Dharma nos poemas de São João da Cruz, “Morro
porque não morro”. Ou seja, morro porque não consigo morrer para mim, e por isso
eu não consigo conhecer Deus. Em termos budistas, porque não consigo morrer para
mim mesmo, não me ilumino. É a mesma coisa, em outras palavras.

Pergunta – Falando um pouco mais sobre compaixão, terminei de ler um livro que se
chama Budismo e Ensinamentos Profundos, em que o autor fala muito sobre a
paciência. Na minha vida, por exemplo, eu percebo, a esse respeito, que posso falar de
uma certa evolução, mas sempre falta mais. Gostaria que o senhor falasse um pouco
sobre a paciência no caminho budista para alcançar, ou para minimizar ou diminuir o
sofrimento.
Monge Genshô – Essa questão passa pelos mesmos caminhos de que já falamos. Quem
é que se irrita? Quem é este que está irritado? Às vezes, a pessoa não entende a
pergunta, mas essa pergunta pretende iluminar a mente. Entenda que é o mero fato
de você não aceitar que irrita. Por que nós nos irritaríamos com foguetes e
bombinhas? Só porque nós imaginamos que existe uma intenção ou um agente por
trás. Porque se fosse um trovão, um acontecimento natural, não tendo um ser
humano por trás, não nos sentimos irritados. Irritamo-nos porque imaginamos, porque
nossa mente pensa: “tem alguém estourando foguetes”. Constate, está na mente. A
mente acredita que existe uma entidade chamada “Atlético” ou “Cruzeiro”. Alguém se
comprometeu com isso, e se você examinar como surgiram essas entidades, trata-se
de um grupo de pessoas que se reúne, cria uma bandeira, uma cor, entre outras
características definidoras de identidade, cria os símbolos, e as mentes olham para
tudo aquilo e transformam em um significado. A cruz suástica sempre foi um símbolo
magnífico, e em muitas tradições é usada até hoje. Hitler se apropriou dela, inverteu-a,
e os acontecimentos da segunda guerra mundial juntamente com o que decorreu das
ações do nazismo, transformaram-na em um símbolo de ódio. Somos nós que olhamos
e vemos um símbolo de ódio, porque ele em si, nunca foi nada mais que alguns traços.
Nossa paciência é alterada pelo que nós acreditamos, apenas por isso. Devemos
exercitar em nossa mente a compreensão da raiz de onde surgem as coisas. Por
exemplo, na meditação, você se senta, surge um pensamento, o pensamento mobiliza
você e você pode se perguntar, “Porque me mobiliza, porque isso me irrita? De onde
veio, de onde surgiu?” Você rapidamente irá descobrir que ele surge de algumas raízes
como vaidade, orgulho, crença no seu ego, ou seja, de algo em que você acreditou. Se
você apagar isso, evitando julgar e considerar, se continuar sentado calmamente, você
adquire serenidade. Quando na vida surgem os acontecimentos, você pode, com
simples treinamento, ver que eles não têm substância real, que é você que atribui a
eles a força de mobilizá-lo. Então, para cultivar a paciência deve-se, em primeiro lugar,
praticar a meditação. Naturalmente surge uma mente pacífica, naturalmente surge
uma mente paciente. Em absoluto, não é o controle, porque mesmo que o controle
tenha a virtude de não provocar carmas, ações e reações, ele não é a solução final,
porque sempre vai falhar. Você está sendo arrastado pelo seu carma e diz: “Vou ser
paciente, de agora em diante não me irrito mais.” Mas acontece um evento acima de
sua capacidade de controle, e você perde a paciência. O correto é que a impaciência
não surja, devendo ocorrer somente a compreensão de como as coisas estão se
manifestando.

Pergunta – De onde vêm os agregados que compõem a nossa existência? E qual a


diferença entre a percepção e a consciência?

Professor Sasaki - Essa é uma pergunta padrão, ela sempre é feita nas palestras.

Aluno - Mas é que não me senti ainda satisfeita, queria algo mais.
Monge Genshô – Ela está merecendo uma resposta Zen. Os agregados surgem da sua
mente. Assim surgem seus agregados, de sua mente. Você ficou com olhos inquietos,
vou explicar um pouquinho mais.

Os agregados só estão se manifestando sob a forma do corpo dela porque sua mente
guarda impulsos de desejos e apegos tais que, obrigatoriamente, se manifestam no
mundo sob a forma dela. Então os agregados surgem do carma, da energia cármica
que faz com que haja uma manifestação. Esta manifestação que surge, em última
análise, da ignorância, tem energia suficiente para juntar e manter juntos os
agregados. Mas não se preocupe, em absoluto, porque tudo que é sujeito, tudo que é
composto, tudo que é agregado, está sujeito à desagregação e decomposição. Você irá
morrer e se decomporá, portanto, não precisa se preocupar.

Pergunta – Mas e quando surge novamente outra existência, quando os agregados se


dissolvem...

Monge Gensho – Se os impulsos continuarem farão, obrigatoriamente, surgir uma


nova manifestação.

Pergunta - E o que faz os impulsos não continuarem?

Monge Genshô - Muito boa pergunta. Como fazer para os impulsos não continuarem?
Se você conseguir fazer com que sua mente esgote seu carma e você se vir livre de
todos os desejos, de todos os apegos, de todas as paixões, se você conseguir extinguir
isso através da iluminação, não haverá energia para uma nova manifestação cármica.
Somente então, você estará realmente livre dos ciclos de nascimento e morte. Estará
liberada.

Boa noite, muito obrigado

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