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O Caminho direto

Thondup Rinpoche
compilação comentada e resumida
por Lama Padma Samten(*)

Há um debate especial na história do budismo no Tibete, entre Kamalasita e Há-Shang Mahayana,


ao fim do qual este foi proibido de ensinar e praticar e teve que deixar o Tibete junto com seus
seguidores. Há-shang foi um sucessor da escola Ch´an (Zen) de Bodhidharma, do budismo chinês.

O texto que se segue é uma compilação comentada e resumida do estudo do Thondup Rinpoche(1)
sobre as diversas versões e interpretações com respeito ao pensamento de Há-Shang Mahayana e
tem por objetivo, ao examinar fragmentos e comentários sobre o ensinamento do mestre chinês,
alertar para as dificuldades de abordagem que podem surgir aos praticantes com respeito à prática
do caminho e à meditação. Após análise do texto-base, examinam-se fragmentos do pensamento de
mestres Zen históricos como Bodhidharma, Dogen, Koun Ejo, e do mestre contemporâneo Kodo
Sawaki; cita-se paralelamente fragmentos de ensinamentos sobre a Natureza da Mente na tradição
tibetana.

Thondup Rinpoche começa seu estudo com as seguintes observações:

"Alguns eruditos tibetanos que refutam o dzogpa chenpo(2), alegam que este ensinamento é muito
próximo ou mesclado com a visão de Ha-shang Mahaiana, porque também propaga o enfoque da
"iluminação instantânea" e repouso no "não-pensamento". O estudo que se segue, sobre a
abordagem de Ha-shang Mahaiana, está baseado em fontes tibetanas. "Ha-shang Mahaiana (chinês:
Ho-shang Mo-ho-yen) foi um mestre da escola ch´an do budismo chinês, fundada por Bodidarma
no sexto século d.C. De acordo com Lobzang Chokyi Nyima (1737-1802), Bodidarma foi o
vigésimo oitavo na linhagem de transmissão da Última Essência(3) desde Kasyapa (Makakasho
Daiosho no zen japonês), o principal discípulo do Buda."

Nub Sangye Yeshey (9°século d.C.) fez um breve relato da história de Bodidarma: "A tradição da
escola instantaneísta (Chig-Char-Ba) veio através da linhagem de Kasyapa e Dharmottara.
Bodidarma foi para a China vindo do leste da Índia, por mar. Quando chegou a Ledkug, na China,
onde encontrou-se com o imperador Seu-yan-ang(4), percebeu que o imperador ainda não havia
compreendido a última verdade.

Assim, foi para Khar Lag-chu, onde despertou inveja de alguns monges que repetidas vezes
tentaram envenená-lo, sem sucesso. Após ter transmitido seus ensinamentos a um verdadeiro
discípulo (Taisso Eka), morreu na China, onde seus funerais foram então realizados. Ocorre que um
mercador de nome "Un" foi a Tong na Índia e em Ramatingilaka encontrou Bodidarma, que tinha
em sua mão um pé de sandália. "Un" teve uma detalhada conversa com o mestre. Em seu retorno,
"Un" relatou o que ocorrera na Índia; as pessoas abriram a tumba de Bodidarma e encontram apenas
uma sandália do par... Todos concordam que ele foi um Buda totalmente iluminado."

De acordo com Nub San e Yeshe, Ha-shan pode ter sido o sétimo na linhagem de transmissão desde
Bodidarma. As informações sobre a vida de Ha-shang são consideradas muito vagas, de qualquer
forma, ele foi tido como um notável professor chinês de budismo no Tibete, durante o reinado de
Thrisong Deu-tsan (790-858 d.C.). Uma vez que Ha-shang era um seguidor da escola Instantaneísta,
defrontou-se com a oposição dos seguidores dos mestres indianos, que ensinavam a iluminação
gradual.

Ao final foi derrotado pelo mestre indiano Kamalasita em um debate público e foi proibido de
ensinar no Tibete. O grande mestre Nyingma Longchen Rabjam diz que Ha-shang Mahaiana
transmitiu de memória, no Tibete, muitos sutras importantes como Avatamsaka, Maha-parinirvana e
Vinayagama, que haviam sido traduzidos ao chinês antes de terem sido queimados pelos
muçulmanos durante a destruição do monastério de Nalanda (em Bodhgaya, Índia, local da
iluminação do Buda).

Os eruditos tradicionais tibetanos unanimemente acreditam que, em seu enfoque, Ha-shang rejeita
todas as ações virtuosas como método, e ensina que a prática se resume apenas em permanecer na
ausência de pensamentos. Com pequenas diferenças de palavras, os relatos tibetanos sobre o
"Debate de Samye" citam que Ha-shang teria dito o seguinte: "Como tudo é criado pelos conceitos
da mente, através dos carmas das ações virtuosas e não-virtuosas (processos de causalidade), a
pessoa experimenta os frutos dos âmbitos superiores e inferiores, e vagueia sem rumo em samsara.
Aquele que se abstém do pensamento em sua mente, e nada faz, estará totalmente liberado de
samsara. Portanto, interrompa os pensamentos. As dez virtudes (copiar escrituras, fazer oferendas,
ouvir os ensinamentos do Darma, memorizar escrituras, ler escrituras, ensinar o Darma, recitar
escrituras e refletir sobre os significados do Darmna) são ensinados para os de intelecto inferior, de
faculdades embotadas, que não têm um fluxo de carma virtuoso. Para os que previamente refinaram
suas mentes e possuem intelecto aguçado, as ações virtuosas e não-virtuosas são vistas como
obscuridades, uma vez que tanto as nuvens brancas como as escuras obscurecem o sol. Assim, não
pensar, não conceitualizar, não analisar seja o que for, é a liberdade das conceitualizações. Essa é a
iluminação repentina, o décimo estágio dos bodisatvas, o último estágio de iluminação do
caminho".

Jigmed Lingpa distingue assim a visão atribuída a Ha-shang Mahaiana e a visão Dzogpa chenpo:
"De acordo com as suposições populares com respeito ao que teriam sido os ensinamentos e a visão
de Ha-shang Mahaiana, pode-se concluir que ele não teve meios de distinguir entre os conceitos
mentais objetivos (Yul Sems rTog) e a completitude mental sem objeto (Yul-Med Zang-Ka-Ma). Se
for essa a situação, ele cai na cognição de um estado mental que não distingue entre a mente e a
consciência intrínseca. Esse é um estado de extrema ignorância, semelhante ao sono profundo e
inconsciência, no qual todos os pensamentos e memórias cessam. No dzogpa chenpo a sabedoria
primordial sem objeto não analisa conceitos mentais objetivos (Yul Sems rTog). Todos os conceitos
subsistem (Bag-La Zha) no estado de imaculada e cristalina recolecção da autoconsciência.

Em sua essência não há acréscimos, decréscimos ou mudanças. Isto é repousar na visão (dGongs-
Pa) da grande vastidão, livre dos extremos. Assim, não há modo de harmonizar essas duas visões".

No "Samten Migdron", um texto de Nub Sangye Yeshey (9° século d.C.), que foi um dos vinte e
cinco principais discípulos de Padmasambhava, diferentes escolas são apresentadas e comentadas e
a visão sobre os ensinamentos de Ha-shang é diferente:

a) Na escola gradualista (Tsen-Men), abandona-se os quatro conceitos de características, como o


conceito de natureza, de antídotos, de talidade, e de estágios atingidos, gradualmente penetrando a
liberdade frente as conceitualizações...

b) Na escola instantaneísta (sTon-Mun), desde o início, sem outras alternativas, treina-se


imediatamente com respeito à natureza última não-nascida... O abade Ha-shang Mahaiana afirma:
"Contemplem a natureza última inconcebível (Chos-Nyid, Darmata em sânscrito) sem quaisquer
conceitos". Não há aqui qualquer gradual, entra-se na condição de Buda instantaneamente, desde o
início. Isso é chamado de "treinamento sem treino..." Aqui, diferentemente dos praticantes Tsen-
men, nada há a abandonar. A consciência intrínseca da contemplação no vazio completa as
acumulações de mérito e sabedoria. Não há a necessidade de purificação, da mesma forma que não
há apreensões e apegos. Todas as existências fenomenais do "eu" e dos "outros" são não-nascidas
desde os tempos primordiais, e buscar "algo" que seja não-nascido é iludir a mente. Através dessa
busca nunca se chegará ao grande significado. É semelhante ao oceano - que nunca será agitado
pelo poder de um galo. Nessa escola é afirmado que penetra-se na natureza última (Chos-Nyid) ao
deixar-se, enfim, de pensar... O caminho gradual é ensinado para pessoas de intelecto inferior.

c) De acordo com as escrituras do Mahayoga Tantra, toda a existência fenomenal é luminosa em si


mesmo, como a consciência intrínseca. É a indivisibilidade das duas verdades: a luminosidade total
não criada por um criador e a indivisibilidade da sabedoria primordial com a última esfera...

d) Ati-yoga (Dzogpa chenpo), a Yoga extraordinária: Na talidade atingida espontaneamente, toda a


existência fenomenal é primordialmente clara-radiante na vasta extensão da sabedoria primordial
totalmente pura e espontaneamente surgida. Causa e resultado são aperfeiçoados sem buscá-los
separadamente (ou sem esforços grosseiros; Ril Ma-btsal-Bar Lhun-Gyis rDzogs-Pa).

Para comparar com as análises apresentadas, Thondup Rinpoche cita as seguintes passagens do
pensamento do sexto patriarca do ch´an na China, Hui Neng: "No Darma não há caminho repentino
ou gradual, mas entre as pessoas existem os embotados e os de mente aguda. Os confusos
recomendam o caminho gradual, os iluminados, os ensinamentos do caminho repentino... Vejam por
si mesmos a pureza de suas próprias naturezas, pratiquem e atinjam por si mesmos os resultados.

Sua própria natureza é o Darmakaia e sua prática é a prática do Buda; pelo próprio esforço de vocês
mesmos é que podem atingir o Caminho do Buda... Apesar de no ensinamento não haver o que seja
repentino ou gradual, na ilusão do despertar há rapidez e lentidão. Ao estudar o ensinamento da
doutrina repentina, as pessoas ignorantes não podem compreender completamente... A mente-base
afastada do erro é o preceito (sila) da natureza própria; a mente-base não perturbada é a meditação
(dhyana) da natureza própria; a mente-base não-dual é a sabedoria (prajna) da natureza própria".

Ao final, Thondup Rinpoche conclui: "Se Ha-shan Mahaiana ensinou permanecer na mera ausência
de pensamentos (como interpretado por eruditos tibetanos como Ba, Buton e Tsuglag Threngwa),
então não ensinou o que os textos mahaiana e dzogpa chenpo afirmam. Se ele afirmou (como
interpreta Nub Sangye Yeshey)
que, após compreender o significado da natureza última (Chos-Nyid), deve-se sempre permanecer
aí, sem pensamentos duais, uma vez que esses pensamentos seriam apenas obstruções que
impediriam a vivência do estado de realização, então não há conflito com os ensinamentos dzogpa
chenpo, mas essa abordagem é apenas para os que atingiram esse estágio e não para as pessoas de
mentes, vidas, emoções e visões comuns, como muitos de nós. No mahaiana e especialmente nos
tantras e no dzogpa chenpo, há a realização instantânea, mas apenas para aquelas pessoas que já
atingiram uma maturidade em suas mentes, solidificaram seus carmas virtuosos e energias positivas
por meio de treinamentos anteriores nesta vida e em vidas passadas. Se Ha-shang Mahaiana
pensava assim, por que pregou publicamente seus ensinamentos, ensinando de forma indistinta aos
maduros e aos de intelecto inferior?"

O Zen de Bodaidaruma, Eihei Dogen e Koun Ejo

Sendo Ha-shang Mahaiana um mestre ch´an (zen), sucessor de Bodidarma e de Hui Neng, é natural
que surja entre os praticantes do zen o interesse em aprofundar a questão e examinar se sua própria
linhagem não está praticando algo inadequado e incorreto. Seriam os ensinamentos de Bodidarma,
Tendo Nyojo, Eihei Dogen, Koun Ejo incorretos, inadequados, inconvenientes, perigosos?
Inicialmente vamos resumir as críticas a Ha-shang Mahaiana e, após, vamos examinar como os
ensinamentos do zen se colocam frente a estas questões.

Entre os aspectos criticados atribuídos a Ha-shang Mahaiana vamos encontrar dois grupos
principais: a) a insuficiente compreensão do Darma que levaria à confusão entre libertação de
samsara e supressão pura e simples da atividade mental, e b) admitindo que Ha-shang possuía a
compreensão completa do Darma, seu método de prática direta da natureza última seria adequado
apenas a um número muito pequeno de mentes já maduras e não deveria ser pregado
indistintamente como ele teria feito.

A primeira critica é de grande importância pois os que iniciam na prática do zen ou da meditação
silenciosa em outras tradições podem facilmente confundir o objetivo de interrupção das operações
mentais com a libertação na natureza última. O que teriam os mestres zen a dizer sobre isso? Vamos
examinar dois pontos, a natureza do estado final e o tipo de prática de meditação que seria o zazen
(meditação zen).

Com respeito ao significado da libertação de samsara retomando o Lankavatara Sutra, texto básico
de leitura e estudo recomendado e utilizado por Bodidarma (Bodaidaruma Daiosho), vemos que o
caráter geral do texto não permite a confusão com a mera supressão da atividade mental. Em uma
parte Buda Sakiamuni diz especificamente que "os yogues, ainda que entrando no estado de
tranqüilização, não estão conscientes da operação da sutil energia-de-hábito no interior de si
mesmos, pois pensam que entram nesse estágio pela extinção da mente discriminativa; mas isso não
se dá e tão pronto retomam o contato com o mundo externo, esse readquire o mesmo sentido
equivocado e condicionado de antes. A libertação é a não-operação das energias-de-hábito (carma)
que produzem os sentidos condicionados invasivos de samsara". Como é que ele chega a isso?
"Chega reconhecendo (o vazio) que esse mundo tríplice nada mais é do que a própria Mente,
destituída de um ego e suas características, sem esforços, sem idas-e-vindas; que esse mundo
tríplice é manifestado e imaginado como real sob a influência da energia-de-hábito acumulada
desde tempos-sem-início pelo falso raciocínio e imaginação e com a multiplicidade de objetos e
ações em íntima proximidade, e em conformidade com idéias discriminativas tais como corpo,
qualidades e localizabilidade.

Assim, Maha-mati, o bodisatva-mahasatva adquire um entendimento inteiramente claro com


respeito ao que é visto da própria Mente."

Com respeito ao vazio, ainda no Lankavatara Sutra: "Mahamati, esse é um termo cuja natureza-
própria é a imaginação. Devido ao apego a falsa imaginação, Mahamati, nós temos que falar de
vazio, não-nascimento, não-dualidade, e ausência-de-natureza-própria. Ao atingir a realização
interna por meio da nobre sabedoria, não há traço de energia-de-hábito gerada por todas as
concepções errôneas.

Por essa razão tu deverias te disciplinar na prática de vazio, não-dualidade e não-natureza-própria".

Mestre Dogen(5), no Fukanzazengi, descreve a prática de meditação zen, o zazen; desse texto
retiramos pequenos trechos:

"Sente de forma estável em samadi. Pense sem pensar. Como se pensa sem pensar? Pensando além
de pensar e não-pensar..." O zazen a que me refiro não é aprender meditação passo a passo, é
simplesmente a porta de entrada do Darma em direção à paz e contentamento (nirvana). É a prática
de iluminação do caminho mais elevado. Praticando assim você é como um dragão na água, como
um tigre na montanha. Você deve saber que o verdadeiro Darma manifesta-se por si mesmo em
zazen e que, antes de tudo, o embotamento e a distração são eliminados. Não avalie se você é
inteligente ou estúpido, se é superior ou inferior, quando estiver praticando de todo o coração, esta é
a verdadeira prática do Caminho. A prática-iluminação não se degrada. Fazer o esforço para
praticar, isto mesmo já é a manifestação do caminho em sua vida diária. Os Budas e patriarcas,
tanto neste como em outros mundos, preservaram o selo de Buda dessa mesma maneira e
expressaram livremente o caminho. Ainda que a seu modo, apenas sentaram e foram protegidos
pelo zazen. Se você praticar a talidade(6) continuamente, você se tornará a talidade; a casa do
tesouro se abrirá por si mesma e você será capaz de usá-lo como lhe for conveniente".

Sobre a prática e experiência de Koun Ejo Zenji(7), uma breve compilação do "Samadi do Tesouro
da Luz Radiante":

"Tenho um conselho aos que sinceramente aspiram praticar. Não se deixem levar por um particular
estado mental ou por um objeto. Não repousem no intelecto ou na sabedoria. Não levem em suas
mãos aquilo que ouviram na sala de palestras. Coloquem seu corpo e mente firmes no Grande
Komyozo(8) e nunca olhem para trás. Nem busquem a iluminação nem afastem a ilusão. Nem
rejeitem o fluxo mental e nem se apeguem a pensamentos identificando-se com eles. Apenas sentem
de forma calma e estável. Mesmo que oitenta e quatro mil pensamentos equivocados surjam, todos
e cada um podem se tornar a Luz de prajna (pensamento não-discriminativo) se não for colocada
atenção neles e simplesmente deixar que se vão. Não apenas ao sentar, mas cada passo que der é um
movimento da Luz. Passo a passo, sem discriminação.

"Mesmo em meio às mudanças, a Luz não é afetada. Florestas, grama, flores e folhas, seres
humanos ou animais, grande ou pequeno, longo ou curto, quadrado ou redondo, todos se
manifestam simultaneamente, independentemente de pensamentos discriminativos ou mudanças. A
Luz ilumina por si mesma, independe do poder da mente. Desde o início a Luz não repousa. Mesmo
quando os Budas aparecem neste universo, a Luz não aparece, quando os Budas entram em nirvana,
a Luz não entra em nirvana. Quando você nasce a Luz não nasce, quando você morre a Luz não
morre. Ela não aumenta com os Budas e não decresce com os seres sensoriais. Nem é confundida
quando você é, e nem é iluminada se você for. Não tem posição, aparência, nome. É a essência de
todos os fenômenos. Você não pode concebê-la, não pode rejeitá-la. É inatingível. Desde o céu mais
elevado até o inferno mais degradado, todos os lugares são perfeitamente iluminados dessa forma. É
a Luz divina, inconcebível, espiritual. Se você abrir-se e compreender o sentido profundo dessas
palavras, você não precisará perguntar a mais ninguém sobre o que é verdadeiro ou falso. Desde o
início esse samadi é o dojo (local de prática de zazen), que é o oceano da condição de Buda. Isto é
zazen, é o sentar do Buda, a prática do Buda, fielmente transmitida. Nunca sente como os habitantes
dos infernos, ou como demônios famintos, animais, espíritos hostis, seres humanos, seres
celestiais(9), sravakas ou pratyekabuddhas(10). Não desperdice seu tempo. Esse é o komyozo-
zanmay, a liberação inconcebível".

Especificamente sobre a prática de zazen, falou Koun Ejo:

"O zazen permite a pessoa clarificar a base de sua mente e residir confortavelmente na natureza
original. Isso é chamado revelar a natureza e a paisagem original. Zazen é entrar diretamente no
oceano-da-natureza-de-Buda e manifestar o corpo de Buda. A mente inerentemente pura e clara
torna-se presente; a luz original penetra em todas as direções. Isso nada mais é do que o "Samadi da
Natureza de Buda" (Jijuyu-zanmai) de todos os Budas. Se praticar isso, mesmo que por um curto
intervalo, sua base mental será diretamente clarificada. Essa é a verdadeira porta do caminho do
Buda. Zazen é como voltar para casa e sentar em paz. Quando objetos ilusórios desaparecem, a
mente ilusória também desaparece. Quando essa mente desaparece, a realidade imutável manifesta-
se e estamos sempre claramente conscientes. Isso não é extinção, isso tampouco é atividade."

As reflexões e recomendações de Kodo Sawaki Roshi sobre o zen e sobre o zazen(11) são também
muito claras:

"Sente imóvel, além dos padrões de superioridade e inferioridade dos seres humanos". Apesar de
cada um de nós ter um carma diferente, é importante ser conduzido pelo Buda da mesma forma:
"Abandonar corpo e mente (shinjin datsuraku) é abandonar o egocentrismo, é acreditar no Buda, é
ser conduzido pelo Buda".

"Praticar zazen é tornar-se íntimo do seu próprio interior. Quando você discute com sua esposa, não
percebe que foi envolvido pelo engano, mas quando senta em zazen você vê que isso foi apenas
ilusão".

As pessoas hoje tentam criar grupos e tornar-se membros dele; cada uma dessas pessoas está afetada
por uma espécie de estupidez grupal.

A criação de subgrupos e seitas é até mesmo mais representativa dessa estupidez grupal -
interrompa esse tipo de estupidez
grupal e torne-se o que você é solitário em zazen. O que é o verdadeiro "eu"?

Em lugar de uma folha branca de papel, um céu azul brilhante; o verdadeiro "eu" é indivisível e uno
com tudo".

"O céu e a terra fazem oferendas. O ar, a água, plantas, animais, seres humanos; todos fazem
oferendas uns aos outros. - Nós só vivemos fazendo oferendas uns aos outros. Não se trata de saber
se você é ou não grato. Ofereça, a todo universo, a atitude de não ser ganancioso".

Nada pode ser maior do que essa oferenda. Se você imitar Ishikawa Goemon(12) você entrará
diretamente no reino dos ladrões; se você imitar Sakiamuni, sentando em zazen, você entrará
diretamente no reino dos Tatagatas. A não ser que você reexamine os seres humanos sob um ponto
de vista que está além da condição humana, você não poderá ver o que os seres humanos realmente
são".

Os Ensinamentos Sobre a Natureza da Mente na Tradição Tibetana

Quando examinamos os textos com os ensinamentos na tradição tibetana sobre a natureza da mente,
como os ensinamentos de dzogpa chenpo oferecidos por Longchen Rabjam (1308-1363)(13) ou os
ensinamentos mahamudra de Lama Yeshe(14), ou os ensinamentos de Uttara Tantra Shastra de
Maitreya(15), vemos grande proximidade aos ensinamentos zen, mesmo com toda sua notória
radicalidade. Do ensinamento mahamudra de Lama Yeshe temos, por exemplo:"... Assim, antes que
toquemos a claridade da consciência fundamental, nós sempre interrompemos os níveis grosseiros,
o pensamento intelectual. Por essa razão, quando meditamos em mahamudra, vamos além do
pensamento intelectual. Isso significa que, nesse estágio, nem há doutrina, nem pensamento
teológico, nem filosófico, nem mesmo Buda ou Deus; apenas estar, totalmente experiência. Assim,
indo além de nomes, indo além da compaixão, além dos parentes e amigos, além da imagem de
natureza própria - porque a claridade da consciência é a natureza da clara luz, sua natureza é energia
infinita além de forma e cor - assim podemos viver a experiência do universal..."(16)

Do texto "A Mente Naturalmente Liberada, a Grande Perfeição" de Longchen Rabjam(17), uma jóia
de grande preciosidade, extraímos esta pequena passagem:

"A visão inteiramente pura não tem extremos nem centro. Não pode ser apontada dizendo-se "lá
está", nem há nela qualquer distinção de altura ou largura. Transcende eternalismo e niilismo e está
livre da contaminação dos extremos. Procurada, não é encontrada; olhada, não é vista. Afastada está
de direções e parcialidades, e transcende todos os objetos de concepção. Não tem pontos de vista,
nem vazio, nem não- vazio. Todos os fenômenos são primordialmente puros e iluminados; assim, é
não-nascida, inconcebível e inexprimível".
"Na última esfera pureza e impureza são naturalmente puras e os fenômenos são a grande e igual
perfeição, livre dos conceitos. Uma vez que não há vínculos ou - liberação, não há ir, vir ou ficar. A
felicidade e sofrimento de samsara e nirvana são semelhantes a sonhos bons e maus..."

"Não conceitualize sejam quais forem as aparências que venham a surgir, esses objetos são apenas
reflexões da mente, são como a face e sua aparência no espelho. A mente e seus sonhos não são
separados..."

No Uttara Tantra Shastra, como explicado por Thrangu Rinpoche, toma-se o refúgio de fruição. O
que significa isso? Significa que se toma refúgio no próprio estado de Buda e não, como no refúgio
de causação, no Buda como um mestre externo. Ou seja, como método, toma-se diretamente a
prática da condição natural da mente, o próprio estado de Buda. No zen, como se pode ver pelos
ensinamentos dos mestres, busca-se também, como método, diretamente, o estado natural como a
prática básica, o zazen. Assim, a compreensão do zen pelos praticantes das tradições tibetanas tem a
mesma dificuldade que a compreensão do método do dzogpa chenpo e mahamudra por esses
mesmos praticantes. Um aluno perguntou a Thrangu Rinpoche: "Poderia Rinpoche explicar como
os cinco caminhos do veículo mahaiana se correlacionam com os cinco caminhos do vajraiana e
com as quatro iogas de mahamudra?" Ao que Rinpoche responde: "Os cinco caminhos, sejam eles
mahaiana ou vajraiana, não possuem grandes diferenças; em ambos os casos é o mesmo princípio
de progresso gradual. Entretanto, como o mahamudra é simplesmente permanecer em repouso na
condição natural, não existem de fato categorias como caminhos e níveis. Comumente, as quatro
yogas começam com as práticas de shamatha e vipashyana, e culminam com não-meditação, a
completa iluminação."

Esse método é em tudo semelhante ao que ocorre com os praticantes de zazen. A diferença é que no
zen como dizem os mestres todos, não há etapas preparatórias como nas tradições tibetanas. Há um
grande mérito no zen, por ser um caminho direto; é algo muito especial, milagroso mesmo, como
método, repousar, já de início, apenas na vivência pura e simples da natureza de Buda, sem
qualquer etapa preparatória. Quando examinamos o zen, vemos os praticantes, os templos, os dojos,
os mosteiros, sua seriedade e simplicidade, devemos nos dar conta deste extraordinário milagre,
desta grande preciosidade e delicadeza. Isso, no entanto, pode parecer muito estreito e difícil para os
que não conseguem uma experiência proveitosa enquanto tentam praticar o "sentar apenas"
(shikantaza).

Especulativamente, talvez tenha sido essa a origem das dificuldades de Ha-shang Mahaiana tantos
anos atrás. Aliás, essas dificuldades estão historicamente presentes no zen e podem ser vistas no
relato do próprio mestre Dogen quando, no Shobogenzo-Zuimonki, diz que por longo tempo não
pôde encontrar um verdadeiro professor e nem mesmo um verdadeiro companheiro de esforços no
Japão, e mesmo na China, onde poucos lugares efetivamente praticavam o verdadeiro zen(18).
Essas dificuldades também podem ser apontadas na vida do sexto patriarca do zen na China, Hui
Neng (Daikan Eno), que, tendo encontrado seu mestre em Daiman Konin (o quinto patriarca), após
receber a transmissão de forma secreta, não pôde permanecer no mosteiro devido ao risco de vida
que corria, em função da inveja que despertou na comunidade de 1000 monges.

Em um funil, o zen poderia ser visto como o gargalo, juntamente com o mahamudra e dzogpa
chenpo; para os que não conseguem chegar diretamente ao gargalo e precisam ensinamentos prévios
é que existe a amplidão do funil. Devido a existência desses seres, tão numerosos, Avalokitesvara
desenvolveu seus 1000 braços e o Buda Sakiamuni deu a diversidade de seus 84 mil ensinamentos.
Sua Santidade o Dalai Lama amplia essa abordagem e diz que devido à diversidade de mentes dos
seres sensoriais todas as religiões são não apenas importantes e necessárias, como indispensáveis.

(*) Quando publicou este texto pela primeira vez em 1993, Alfredo Aveline era professor, físico,
praticante zen e presidente do Centro de Estudos Budistas de Porto Alegre. Em 1996 foi ordenado
lama por sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, sendo o primeiro lama da linhagem Ningmapa
ordenado no Brasil.

Notas:

1. Dzogpa Chenpo and Ha-shang Mahaiana, in "The Practice of Dzogchen" (Anteriormente


entitulado "Buddha Mind"), Longchen Rabjam, Tulku Thondup Rinpoche, Snow Lion, 1989,
pag. .112-122.

2. A "Grande Perfeição", em tibetano "rDzogs-Pa Chen-Po", em sânscrito mahasandhi, é o mais


profundo treinamento budista esotérico, preservado e praticado até os dias de hoje pelos seguidores
da escola Nyingma (rNying-Ma) do Tibete.

3. sNying-Po Don-Gyi brGyud-Pa

4. Liang U-dhi: Wu-ti (502-550 d.C.) da dinastia Liang.

5. Eihei Dogen Zenji (1200-1253) - Uma das maiores figuras na história do zen. Nascido no Japão
em 1200, viveu 53 anos. Dogen é também conhecido no Japão como Koso Joyo Daishi, título que
recebeu do imperador do Japão. Filho de família aristocrática do período Kamakura, perdeu a mão
quando tinha 7 anos de idade. Dizem alguns historiadores que ao ver a fumaça de incenso
queimando ao lado do corpo da mãe, durante as cerimônias fúnebres, ele claramente se
conscientizou da impermanência de tudo. Aos 13 anos de idade é ordenado monge no templo de
Hieizan, sede da escola budista Tendai, em Kyoto, onde o mestre da escola Rinzai, Eisai Zenji, era o
abade.

Nessa época encontra seu companheiro de viagens, Menzan Zuiho Osho. Quando Dogen tinha 23
anos, segue com Menzan para a China onde desenvolveu a prática de zazen na escola Soto (Tsao
Tung), de mnde voltou após 4 anos para fundar a escola Soto no Japão. É lá que encontra seu mestre
verdadeiro na figura do abade Tendo Nyojo, que passa a chamar de "Antigo Buda". Em 1233
inaugura Koshoji, o primeiro mosteiro Soto no Japão, na cidade de Uji. Mais tarde constrói o
templo de Daibutsuji, em Fukui, que em 1246 passa a se chamar Eiheiji. A escola Soto tornou-se a
maior em seu país, com 15.000 templos e 7 milhões de membros. Dogen escreveu seus
ensinamentos de orientação aos discípulos, sendo sua principal obra, "Shobogenzo", o "Olho da
Verdadeira Lei", considerado um clássico em termos de filosofia, religião e literatura.

6. Compreensão não-condicionada, natural, sem apego ou rejeição, sem dualidade, compreensão


(naturalmente liberta) da forma como a inseparabilidade de manifestação e vazio.

7. Compilação de Komyozo-Zanmai (Samadhi of the Treasury of the Radiant Light), by Koun Ejo
Zenji, in "Shikantaza", ed. Shohaku Okumura, Kyoto Soto Zen Center, 1985, Japão. (Zanmai
significa samadi.)

Koun Ejo Zenji (1 198-1280) - Nasceu em Kyoto. Foi ordenado aos 21 anos de idade como um
monge Tendai. Mais tarde aprendeu o Budismo Terra-Pura com Shoku Shonin e praticou o zen com
Kakuan Shonin.

Quando Eihei Dogen retornou da China, Ejo visitou-o em Kenninji. Após a fundação de Koshoji,
Ejo juntou-se à Sanga. Desde essa época ele praticou como assessor direto de Dogen até a morte do
mestre, quando então passou a ser o segundo abade de Eiheiji. Ejo devotou-se a auxiliar Dogen e
transmitir seus ensinamentos às gerações
futuras. Komyozo-zanmai é o único trabalho escrito assinado por Ejo.

8. O Grande Komyozo, o Tesouro da Luz Radiante é o corpo-Darma do Tatagata. É a mente


verdadeira do "eu", a natureza-de-Buda, assim chamada porque ali reside a Luz da sabedoria que
rompe a escuridão da ignorância e ilumina a realidade.

9. Basicamente os seres dos seis mundos condicionados, os seja, seres que praticam mentes
condicionadas. "Sentar como eles" significa praticar suas formas de condicionamento mental
enquanto buscando praticar zazen.

10. Os "Sravakas" e "Pratyekabuddhas" praticam mantendo a visão separatista de um eu, movidos


por motivação egóica. -

11. Compilação do texto "The Darma-words of Homeless Kodo" in "Shikantaza", ed. Shohaku
Okumura, Kyoto Soto Zen Center, 1985, Japão.

12. Lendário caudilho japonês.

13. Kunkhyen Longchn Rabjam, mestre Nyingma, ver "Buddha Mind - Na Anthology of Longchen
Rabjam Writings on Dzogpa Chenpo" (a Segunda edição, de 1996, é entitulada "The Practice of
Dzogchen"), Tulku Thondup Rinpoche, Snow Lion 1989.

14. Lama contemporâneo, da linhagem Gelug; "Mahamudra", Lama Thubten Yeshe, Wisdom, 1985.

15. Ver o livro "Buddha Nature" de Thrangu Rinpche, da linhagem Karma Kagyu, onde esses
ensinamentos são apresentados e comentados.

16. Op. cit. pag. 69-70.

17. "Naturally Liberated Mind, the Great Perfection", in "Buddha Mind", op. cit., pag.3l6.

18 "Dogen Zen", ed. Shohaku Okumura e Tom Writght, Kyoto Soto Zen Center, Japão, 1988.

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