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Fazer da mente uma aliada

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Sakyong Mipham

FAZER DA MENTE
UMA ALIADA
Como descobrir
a força natural da mente
através da meditação
Tradução:
Oddone Marsiaj

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Copyright © 2003 by Mipham J. Mukpo

Indicação editorial e edição Carlos A. Inada


Coordenação editorial e revisão Marcelo Gomes
Capa Pimenta Design
Imagem da capa © Toshiya Kumakura/Photonica
Revisão técnica Comissão de Tradução — Shambhala Brasil

2005
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Planeta do Brasil Ltda.
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 346 — 8o andar
01410-000 — São Paulo-SP
vendas@editoraplaneta.com.br

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A meu pai e minha mãe
CHÖGYAM TRUNGPA RINPOCHE
e
LADY KUNCHOK PALDEN

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Agradecimentos

Agradeço ao Vidyadhara Chögyam Trungpa Rinpoche — meu pai, professor e


melhor amigo; a Sua Santidade Dilgo Khyentse Rinpoche, pela orientação e por ter-me
inspirado em tempos desafiadores; a Sua Santidade Penor Rinpoche, pelo apoio
incondicional e por suas bênçãos; ao Khenpo Namdrol, por seus ensinamentos e por sua
sabedoria; ao lama Pegyal, a Loppön Rechung e a Loppön Gawang, pelo apoio e
entusiasmo. Agradeço ainda a David Schneider, pelo encorajamento inicial; a Samuel
Bercholz e a Jonathan Green, pelos conselhos; a Joe Spieler, pela ajuda ao longo do
processo; a Amy Hertz, pela visão, energia e paciência; e a Pema Chödrön, por sua
apresentação. Pela amizade e pelo apoio, sou grato a Lucas Dayley, Molly McCue, Judith
Outlaw e Rose Taylor. Estendo também meu reconhecimento a todas as pessoas que
durante anos transcreveram e editaram minhas palestras.
Pela generosidade e audácia, agradeço a Mark Butler, Wells Christie, Jeff Cohn e Jane
Carpenter Cohn, Neal Greenberg, James e Sharon Hoagland, e, em especial, a Amy
Bajakian, que me ofereceu sua casa para que eu trabalhasse sempre que quisesse. Sou grato
ao apoio pessoal de Douglas Anderson, Barry Boyce, David Brown, Dinah Brown, David
Cook, Susan Dreier, David Ellerton, Jesse Grimes, Richard Hartman, Kevin Hoagland,
Noel McLellan, Joe Mauricio, John Sennhauser, Ken Sussman e Mark Thorpe.
Mais do que tudo, quero agradecer a Emily Bower e Elizabeth Monson, pelas
incansáveis e intermináveis horas de trabalho; a Mark Matousek, pela boa intenção e pelo
trabalho árduo; a Jules Levinson, pelos conselhos, pela clareza, pelo apoio contínuo e pelo
encorajamento; e a Adam Lobel, pelo encorajamento e entusiasmo.

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SUMÁRIO

Apresentação — Pema Chödrön


Prefácio

Um
POR QUE MEDITAR?

1. A rocha e a flor
2. Aturdimento e sofrimento
3. O repouso na paz

Dois
A ARTE DE REPOUSAR NA PAZ

4. Assumir seu lugar


5. A atenção plena e a consciência
6. Como recolher uma mente dispersa
7. As virtudes do tédio
8. A preguiça
9. Esquecer as instruções
10. Nem muito tenso, nem muito frouxo
11. Nove estágios do treinamento da mente

Três
FAZER DA MENTE UMA ALIADA

12. Transformar a mente


13. A alegria de ser humano
14. A imutável verdade da mudança
15. Primeiro envelhecemos
16. E então morremos
17. Samsara e karma
18. Mergulhar no coração do Buda

Quatro
O GUERREIRO NO MUNDO

19. Aumentar a motivação


20. Sabedoria e vacuidade
21. O guerreiro no mundo

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Apêndices
A. Preparação para a prática
B. A postura da meditação
C. Instruções para a meditação contemplativa

Informações
Agradecimentos da edição brasileira

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Apresentação

Encontrei-me pela primeira vez com o Sakyong Mipham Rinpoche anos atrás, em
Boulder, no Colorado, por intermédio de seu pai, meu professor Chögyam Trungpa
Rinpoche. Ele e a mãe do Sakyong, Lady Kunchok Palden, eram sobreviventes de um
grupo de refugiados que em 1959 havia conseguido escapar do Tibete para a Índia.
Trungpa Rinpoche, que tinha sido abade superior dos mosteiros de Surmang, era
descendente do rei guerreiro Gesar, uma figura histórica que é referência importante dos
ensinamentos de Shambhala. Antes de o Sakyong nascer, seu pai predisse que ele seria uma
criança muito especial, que seus primeiros anos seriam difíceis e que ele se tornaria um
grande professor. Por isso, solicitou que Lady Kunchok abençoasse o filho que ainda não
tinha nascido fazendo uma peregrinação aos lugares sagrados budistas de toda a Índia.
Quando ela chegou a Bodhgaya, lugar onde o Buda se iluminou, o Sakyong aparentemente
decidiu vir à luz. Nasceu nesse lugar, o mais sagrado de todos os lugares budistas, em
dezembro de 1962.
Durante seus primeiros anos de vida, o Sakyong Mipham viveu com a mãe em uma
aldeia de refugiados tibetanos no noroeste da Índia. Quando já tinha oito anos de idade, o
pai mandou buscá-lo para que se juntasse a ele no Ocidente. O Sakyong Mipham era
adolescente quando me tornei sua instrutora de meditação, por solicitação de Trungpa
Rinpoche. Olhando para o passado, dou-me conta de que meu professor intencionalmente
aprofundava meu vínculo com seu filho. Encontrava-me com o Sakyong toda semana para
conversar com ele sobre sua prática de meditação. Contudo, poucos meses depois
compreendi que nossos papéis tinham se invertido. O jovem Sakyong agora me instruía. O
relacionamento que teve início naquele tempo tem se aprofundado ao longo dos anos. Ao
mesmo tempo, observei um jovem um tanto reticente desenvolver-se e tornar-se um
professor corajoso, confiante e sábio, que beneficia enormemente seus muitos estudantes
ao redor do mundo.
Em 1979, em uma cerimônia privada, Trungpa Rinpoche nomeou o Sakyong seu
herdeiro e assumiu pessoalmente sua orientação e instrução. Um dia antes, o Rinpoche me
disse: “Você não vai tornar meu filho um monge, não é? Porque tenho planos muito
diferentes para ele”.

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Depois que Trungpa Rinpoche faleceu, em 1987, esses planos começaram a dar
frutos. O Sakyong Mipham assumiu a liderança da comunidade budista de Shambhala. Mais
tarde ele foi reconhecido por Sua Santidade Penor Rinpoche como o renascimento de
Mipham Jamyang Gyatso, mestre de meditação e erudito do século XIX, um dos mais
renomados professores no budismo tibetano. Ao mesmo tempo, foi empossado como o
Sakyong (“protetor da terra”), chefe da linhagem de Shambhala.
Depois de anos de aprendizado com o pai, tendo recebido uma educação ocidental, o
Sakyong voltou para a Ásia, a fim de aprofundar ainda mais sua meditação e seus estudos
sob a tutela de Sua Santidade Dilgo Khyentse Rinpoche e de Sua Santidade Penor
Rinpoche, dois dos maiores mestres budistas tibetanos. Para mim é notável a naturalidade
com que ele recomeçou a falar tibetano e recuperou a maneira tibetana de pensar. Um dia
lhe perguntei como tivera tanta facilidade em captar os mais profundos ensinamentos
budistas, muitas vezes extremamente difíceis. Ele respondeu: “Bem, eles me parecem tão
familiares, é como se apenas estivesse me lembrando”. O Sakyong ainda viaja todos os
anos para a Índia. Diz que sua maior felicidade é estudar.
Temos aqui um professor com uma notável capacidade para digerir, minuciosa e
completamente, os ensinamentos tradicionais do budismo tibetano e então apresentá-los de
uma maneira que fala diretamente ao coração e às necessidades das pessoas do Ocidente.
Mais que isso, seu entusiasmo é contagiante. Como alguém que agora se sente inteiramente
à vontade em meio aos pensamentos ocidental e tibetano, ele ergue pontes com facilidade e
espontaneidade.
Em 2001, o Sakyong Mipham visitou pela primeira vez o Tibete, onde foi recebido
por milhares de pessoas, não apenas como o Sakyong atual e como o renascimento de
Mipham, mas também como prova viva da vitalidade do budismo, ao regressar ao lugar que
seu pai tinha deixado. Enormes audiências se juntaram para ouvir seus ensinamentos.
Este livro é o passo seguinte ideal na jornada do Sakyong Mipham, pois o apresenta a
um mundo muitíssimo carente das práticas tradicionais de treinamento mental que ele
discute. A beleza de sua abordagem está em unir duas vertentes de ensinamentos: o
budismo e Shambhala, o coração de um guerreiro espiritual baseado na compreensão da
bondade fundamental. Aqui o Sakyong Mipham oferece instruções detalhadas para
construir uma mente corajosa com a prática da meditação, o lugar natural do bodhisattva
guerreiro. Excelente cavaleiro, o Sakyong Mipham compara todo o processo à
domesticação de um cavalo selvagem. Generosamente, descreve os obstáculos que

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podemos encontrar em um trabalho tão árduo como esse, lado a lado com os antídotos
tradicionais prescritos pela linhagem tibetana e pelos meditadores indianos.
Além disso, o Sakyong Mipham instrui o leitor na meditação contemplativa, que
aguça nosso insight e desenvolve nossa sabedoria. A contemplação fornece as condições
para que a alegria se expanda enquanto compreendemos a natureza da realidade. Ele dá
uma ênfase especial à prática de incitar o bodhichitta — o coração desperto —, uma
estratégia iluminada que nos permite experimentar nosso espírito de grandes guerreiros.
É difícil acreditar que o menino que encontrei há tantos anos seja o professor
exuberante e intenso com quem estudo hoje. No entanto, algo permanece idêntico — seu
sorriso radiante, um tanto travesso. Quando aquele jovem sorriu para mim, de imediato
senti por ele amor e uma profunda ligação — um amor e uma conexão que sinto desde
então. É maravilhoso que finalmente seus ensinamentos estejam ao alcance de um público
maior. Não tenho dúvida de que eles serão de benefício a todos que os lerem. Estou muito
contente, pois este livro torna acessível a clara e precisa sabedoria do meu cordial amigo e
precioso professor, o Sakyong Mipham Rinpoche.
— Pema Chödrön

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Prefácio

Muitas pessoas que encontro ao ensinar pelo mundo perguntam o que significa estar
contente e feliz. Muitos sentem que de alguma maneira nos afastamos de nossas raízes, de
algo fundamental a nosso coração e a nossa mente. São muitas as ramificações desse
afastamento, e manifestam-se como dor psicológica, atos agressivos e uma persistente
confusão sobre a natureza da realidade. Para muitos de nós, a vida não está conduzindo ao
despertar. Na tradição budista de Shambhala, chamamos essa situação de “idade das
trevas”.
É nessas ocasiões que nos voltamos para os ensinamentos espirituais. Tentamos
encontrar algo que nos auxilie. Mas seguir um caminho espiritual não é apenas uma
maneira de lidar com tempos difíceis. Seguir um caminho espiritual é despertar para nosso
único e precioso potencial como seres humanos. Pode ser um modo de vida natural, válido
para todas as situações, não somente uma maneira de nos sentirmos melhor. Todos têm
dentro de si sementes que gostariam de nutrir, razão pela qual anseiam por um sentido mais
profundo para a vida.
Quando ensino, as pessoas muitas vezes fazem perguntas na esperança de ouvir
alguma verdade esotérica. Parecem querer que eu lhes conte um segredo. Mas o segredo
mais básico que conheço está enraizado em algo que já possuímos — a bondade
fundamental. Apesar da extrema miséria e da crueldade que presenciamos em todo o
mundo, o fundamento de tudo é completamente puro e bom. Nosso coração e nossa
mente são inerentemente despertos. Essa bondade fundamental é uma qualidade de total
sanidade. Inclui tudo. Mas, antes de começarmos a aventura de nos transformar em pessoas
despertas — ou pelo menos a aventura de viver a vida com alegria e felicidade verdadeiras
—, precisamos descobrir por conta própria esse segredo. Então teremos a real
possibilidade de cultivar a coragem, e com ela poderemos irradiar amor e compaixão pelos
outros.
Meu pai, Chögyam Trungpa — que também foi meu professor —, foi um pioneiro
na introdução do budismo tibetano no Ocidente. Ele também apresentou os ensinamentos
de Shambhala, uma lendária sociedade iluminada. O primeiro rei de Shambhala recebeu
ensinamentos diretamente do Buda. Diz-se que todos no reino de Shambhala começaram
então a praticar meditação e passaram a cuidar-se uns dos outros, gerando amor e

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compaixão. Shambhala tornou-se um lugar pacífico e próspero, onde governantes e súditos
eram igualmente sábios e bondosos.
Ninguém sabe realmente se o reino de Shambhala ainda existe. No entanto, se
pensarmos nele como a raiz da qualidade desperta e da sanidade brilhante que vive dentro
de cada um de nós, ele ainda terá a capacidade de nos elevar, como indivíduos e como uma
sociedade. Para chegarmos a esse reino, temos de descobrir a bondade fundamental.
Poderemos depois cultivar o amor e a compaixão. O primeiro passo é treinar a mente com
a meditação. Para enfrentar os rigores da vida, a mente treinada na meditação é uma
maravilhosa aliada.

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Um.

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POR QUE MEDITAR?

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1.

A rocha e a flor

Muitos de nós somos escravos da mente. Nossa própria mente é nosso pior inimigo.
Embora tentemos nos manter concentrados, a mente devaneia. Tentamos conservar a
tensão sob controle, mas a ansiedade faz com que passemos a noite acordados. Tentamos
ser bons para as pessoas que amamos, mas logo esquecemos essa intenção e nos colocamos
em primeiro lugar. E, quando desejamos mudar nossa vida, mergulhamos em práticas
espirituais na esperança de obter resultados rápidos, mas, assim que termina a lua-de-mel,
perdemos a concentração. Voltamos a nosso estado de aturdimento. O que nos resta é um
sentimento de desamparo e desalento.
Parece que todos concordamos em treinar o corpo com exercícios, dieta e
relaxamento. Mas por que não pensamos em treinar a mente? Trabalhar a mente e os
estados emocionais poderá nos ajudar em qualquer atividade a que nos dediquemos, seja
nos esportes, nos negócios ou nos estudos ⎯ ou em um caminho religioso. Por exemplo:
pratiquei equitação a maior parte da minha vida e gosto de cavalos. Quando montamos um
cavalo, temos de estar despertos e conscientes do que fazemos a cada momento. O cavalo
está vivo e espera por comunicação, e temos de ser sensíveis a seu humor. Esquecer-se
disso pode ser perigoso.
Certa vez, quando estava no Colorado com alguns amigos, fui cavalgar com Rocky,
um de meus cavalos favoritos, por uma trilha que atravessava uma região campestre
afastada. Eu já tinha montado Rocky, quase sempre no picadeiro. Ele era muito inteligente,
mas não sabia andar numa trilha. Essa era uma situação nova. Eu ia à frente do grupo e
isso também o deixou um pouco nervoso. Eu o encorajei a passar por cima de algumas
rochas e me movi, transferindo meu peso para indicar que ele deveria contornar uma delas,
mas ele continuava hesitante.
Chegamos a um trecho estreito da trilha. De um lado havia um paredão íngreme de
xisto e, do outro, um longo declive que levava a um rio. Rocky parou e esperou meu
comando. Ambos sabíamos que um movimento em falso nos faria cair dentro do rio logo
abaixo. Eu o dirigi em direção a uma passagem estreita, desloquei-me sutilmente para
transferir meu peso na direção do paredão de xisto. Pensei que, se ele escorregasse, eu
poderia pular fora e me salvar.

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No momento em que mudei de posição, Rocky parou petrificado e estendeu o
pescoço, virando a cabeça para me olhar. Ele sabia exatamente o que eu estava fazendo. Eu
poderia dizer que ele estava chocado e magoado com o fato de eu planejar abandoná-lo. A
expressão em seu olhar dizia: “Você e eu estamos juntos, certo?”. Vendo como ele estava
aterrorizado, voltei à minha posição inicial. Ele balançou a cabeça para a frente, aliviado, e
percorremos a trilha juntos, sem problemas.
Naquela cavalgada, Rocky e eu criamos um vínculo sinérgico, um relacionamento
harmônico sem palavras. Penso que todos nós podemos ter esse tipo de conexão com
nossa própria mente. Na meditação shamatha ⎯ “repousar na paz” ⎯, treinamos a mente
na estabilidade, na clareza e na força. Com essa forma básica de meditação sentada,
descobrimos que podemos permanecer calmos. Conhecer nossa calma natural é a base de
todo caminho espiritual ⎯ o início e o terreno para que qualquer um suficientemente
corajoso procure a verdadeira felicidade. É o primeiro passo para tornar-se um buda, que
significa, literalmente, “o desperto”. Todos nós temos o potencial para despertarmos do
sono da ignorância da verdade a respeito da realidade.
Ao treinarmos a mente permanecendo calmos, podemos criar a aliança que nos
permitirá, de fato, usar a mente, em vez de sermos usados por ela. Essa é uma prática que
qualquer um pode fazer. Embora tenha sua origem no budismo, ela é um complemento a
qualquer tradição espiritual. Se quisermos desfazer nosso aturdimento e sofrimento e ajudar
os outros e o planeta, temos de ser responsáveis e aprender o que é nossa mente e como
ela funciona, independentemente de nossas crenças. Ao aprendermos como funciona a
mente, também aprenderemos como funciona nossa vida. Isso nos transforma. É essa a
razão para que se fale sobre mente e meditação. Quanto mais compreendermos a nosso
respeito e sobre como a mente funciona, mais esta poderá funcionar. A expressão tibetana
lesu rungwa significa que a mente é funcional. Meu pai às vezes dizia que a mente é
“trabalhável”, o que significa que podemos treinar a mente para trabalhar a fim de usá-la
para algo em particular. Por exemplo, se quisermos gerar compaixão e amor, isso funciona.
Um velho ditado diz que trazer o budismo para uma nova cultura é como juntar uma
flor e uma rocha. A flor representa o potencial para que a compaixão e a sabedoria, a
clareza e a alegria floresçam em nossa vida. A rocha representa a solidez de uma mente
aturdida. Se quisermos que a flor se enraíze e cresça, temos de trabalhar para criar as
condições próprias. A maneira de fazer isso ⎯ como indivíduos e como pessoas inseridas
numa cultura em que alcançar o conforto pessoal às vezes parece ser o padrão mais elevado

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⎯ é preparar, suavizar nosso coração, nossa mente, nossa vida. A verdadeira felicidade está
sempre à nossa disposição, mas primeiro temos de criar o ambiente para que ela floresça.
Podemos ter uma profunda aspiração de desacelerar, de ser mais compassivos,
destemidos, viver com confiança e dignidade, mas muitas vezes não somos capazes de
realizar essas aspirações porque nos mantemos determinados demais em nossos hábitos.
Nossa mente parece inflexível demais. Fomos tocados pela suavidade da flor, mas não
imaginamos como criar um espaço para ela. Podemos perceber que nossa capacidade de
amar e sentir compaixão é limitada, e que é simplesmente assim que as coisas são.
O problema para a maioria de nós é que tentamos cultivar uma flor numa rocha. O
jardim não foi arado apropriadamente. Não treinamos nossa mente. Simplesmente jogar
algumas sementes sobre um solo duro e esperar que cresçam flores não funciona. Temos
de preparar o solo, o que requer esforço. Primeiro temos de remover as pedras e carpir as
ervas daninhas. Então devemos preparar a terra e criar uma boa camada de solo cultivável.
É isso que fazemos quando aprendemos a permanecer calmamente em meditação sentada:
criamos um espaço para que nosso jardim se desenvolva. Então podemos cultivar as
qualidades que nos permitirão viver nossa vida em plena floração.
Uma sociedade de mentes duras e inflexíveis é uma sociedade incapaz de nutrir as
flores do amor e da compaixão. Essa é a origem da idade das trevas. Tendemos a
questionar nossa bondade e sabedoria. Quando as questionamos, começamos a usar meios
aparentemente mais convenientes para lidar com nossos problemas. Ficamos menos
dispostos a usar o amor e a compaixão, e mais propensos a usar a agressão. Por isso
necessitamos lembrar a nós mesmos da bondade fundamental. Se quisermos ajudar a
mitigar o sofrimento no planeta, aqueles dentre nós que podem desenvolver uma mente
flexível devem plantar uma flor sobre a rocha. É assim que poderemos criar uma sociedade
alicerçada na energia que obtemos ao experimentar nossa própria bondade fundamental.
No Tibete chamamos essa energia de lungta, “cavalo-de-vento”.
É importante ver o que realmente funciona, o que incita as pessoas a meditar, estudar
e pôr em prática os ensinamentos. Como alguém que tem sido um estudante de meditação
por toda a vida, tenho um sincero respeito por sua profundidade como caminho espiritual.
Eu me interesso naquilo que as pessoas podem realmente usar em sua vida, em como
prepará-las para verdadeiramente ouvir o vigor e a profundidade daquilo que um ser
iluminado como o Buda tem a dizer. Sou grato aos meus mestres por me transmitirem
esses ensinamentos e grato pela oportunidade de compartilhá-los com vocês.

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Os ensinamentos estão sempre disponíveis, como um sinal de rádio no ar. Mas um
estudante precisa aprender como sintonizar o sinal e como permanecer em sintonia.
Podemos iniciar agora o processo de desenvolvimento pessoal, mediante a inclusão de
períodos curtos de meditação como parte de nossa vida. Lavrar o solo da mente através da
meditação é como o início do cultivo de uma horta comunitária. Ao fazermos isso,
estaremos auxiliando a criação de uma nova cultura, uma cultura que poderá vicejar no
mundo moderno e poderá ao mesmo tempo dar sustento à nossa jornada humana de uma
maneira elevada e prazerosa. Chamamos essa cultura de sociedade iluminada. Na sociedade
iluminada é que a flor e a rocha se encontrarão.

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2.

Aturdimento e sofrimento

Meu pai e minha mãe nasceram no Tibete, mas eu nasci na Índia e não visitei a pátria
de meus pais até o ano de 2001. Quando estava no Tibete, viajei por algumas das terras
mais vastas, espaçosas e belas do mundo. Nossa caravana de jipes viajou através de vales
remotos cercados de intermináveis cadeias de montanhas. Quilômetro a quilômetro não
encontrávamos nenhum sinal de civilização por onde passávamos. É claro que não havia
banheiros, e por isso parávamos para nos aliviar na beira da estrada. Embora pensássemos
estar muito isolados, a cada curva aparecia alguém caminhando. Então, uma outra pessoa
aproximava-se para verificar que grupo estranho de viajantes era aquele. Bastava que
parássemos por um minuto, e o equivalente a uma aldeia inteira já havia se reunido, dando
gargalhadas, sorrindo e olhando para dentro de nossos carros. Eu me perguntava de onde
vinham e para onde iriam. Pensava: “Nasceram da terra?”. Provavelmente estavam apenas
dirigindo-se para outro rebanho de iaques ou rumavam para um mosteiro distante, ou
simplesmente se deslocavam para terras mais quentes. Cada um deles tinha uma destinação.
A simplicidade daquele ambiente deixava muito claro que isto é o que a maioria faz:
desloca-se de um lugar para outro, em busca de uma felicidade duradoura. Há nisso um
elemento de vacuidade que sempre tentamos atenuar. Queremos encontrar algo que nos
faça sentir bem e faça sentido, algo concreto que possamos utilizar como ponto de
referência permanente. É possível que a sabedoria nos diga que estamos à procura de algo
que jamais encontraremos; no entanto, parte da razão de continuarmos procurando é que
nunca chegamos a ficar satisfeitos o bastante. Mesmo quando nos sentimos muito felizes,
há uma qualidade impalpável, como se apertássemos uma semente de melancia. Dia após
dia, ano após ano e, de acordo com o budismo tradicional, vida após vida, pensamos
apenas em satisfazer o desejo imediato de encontrar a peça que falta, aquela que nos trará a
felicidade real.
Por ser budista, o Buda é meu modelo exemplar de um ser iluminado. Ele foi uma
pessoa forte com uma individualidade saudável — uma pessoa compassiva, de mente clara,
em harmonia consigo e com o ambiente. Ele viu quanto sofrimento havia no mundo e
queria ajudar. Depois de ter seguido diferentes caminhos espirituais, ele desenvolveu a
força, a confiança e a motivação de que necessitava para meditar e repousar na sabedoria.

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Foi assim que conseguiu despertar para o significado mais profundo da realidade e foi
capaz de ajudar incansavelmente os outros a fazerem o mesmo. Ele foi um guerreiro
bodhisattva — alguém que cultiva a compaixão e a sabedoria, que tem a coragem de viver
com o coração aberto. Sua trajetória mostra-nos que também podemos incitar nosso
coração aberto a compreender o sentido de sermos completamente humanos.
O Buda nasceu príncipe. Ele parecia ter um pendor para a espiritualidade, e por isso
seu pai cedo decidiu que seria melhor que não tivesse muita curiosidade sobre o mundo
exterior, para além dos muros do palácio. O rei não queria que seu único filho saísse a
procurar seu destino espiritual, o que era algo bastante popular na Índia daquele tempo.
Por isso, mantinha movimentado o mundo intramuros do palácio real com todo tipo de
entretenimento, atividades e delícias sensuais. Dentro dos muros de seu mundo privado, o
Buda cresceu com tudo de que precisava. Quando cresceu, teve jovens dançarinas à
disposição e, mais tarde, teve uma mulher e um filho. Por muito tempo, não chegou a
conhecer o mundo além das muralhas. Mas um dia ele saiu a cavalo com um serviçal e viu
pessoas doentes, velhos, mortos, e um asceta errante. Isso mudou inteiramente seus pontos
de vista. Já não podia simplesmente viver para obter prazer com os entretenimentos do
mundo da realeza, onde seu pai tinha conseguido afastá-lo dos fatos da vida. Os piores
receios de seu pai tornaram-se realidade, e o Buda deixou imediatamente o reino.
Insatisfeito por ter mantido uma ilusão, quis entender sua própria vida — e a vida em si.
Exatamente como o Buda, a maior parte de nós também gostaria de aprender alguma
verdade fundamental sobre a vida e ter uma visão mais ampla sobre o que se passa. O
caminho da meditação oferece-nos essa possibilidade.
O que o Buda compreendeu é que a vida é marcada por quatro qualidades: a
impermanência, o sofrimento, o não-eu e a paz. Ele percebeu que o tempo todo damos
cabeçadas contra a realidade fundamental, e que isso dói. Sofremos porque queremos que a
vida seja diferente do que é. Sofremos porque tentamos tornar aprazível o que é doloroso,
solidificar o que é fluido, tornar permanente o que está sempre em mudança. O Buda viu
que tentamos nos transformar em algo real e imutável quando nosso estado fundamental é
incondicionalmente aberto e não alcançável — sem eu. Descobrimos essa idéia de não ter
um eu na meditação, na qual aprendemos a nos afastar de nossos pensamentos e emoções
e nos familiarizar com esses fatos básicos da vida. Ao aceitar a impermanência e a qualidade
de não-eu da nossa existência, interrompemos o sofrimento e conseguimos a paz. Isso, em
poucas palavras, é o que o Buda nos ensinou. Isso parece simples. No entanto, em vez de

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repousarmos nessa verdade elementar, continuamos a procurar na esquina, nunca
conseguindo realmente o que queremos. Na linguagem budista, isso é conhecido como
samsara. Em tibetano, a palavra é khorva, que significa “circular”.
Samsara é um círculo de sofrimento, como uma roda que gira incessantemente.
Fazemos girar nossa roda. Continuamos a procurar algo que seja diferente. Da próxima vez
seremos felizes. Esse relacionamento não deu certo — mas o próximo dará. Este
restaurante não é tão bom assim — mas o próximo item do cardápio vai me agradar.
Minha última sessão de meditação não foi grande coisa, e tampouco a imediatamente
anterior — mas a próxima será verdadeiramente diferente. Uma coisa conduz a outra e, no
lugar da simplicidade e da felicidade que desejamos, nos sentimos apenas mais
sobrecarregados pela vida. Em vez de relaxarmos na bondade fundamental que nos liga
com todos os outros seres vivos, sofremos a doença da separação, que é apenas um truque
de nossa mente.
O Buda disse: “O verdadeiro sofrimento é a natureza do samsara”. Podemos até nem
mesmo ver o sofrimento em nossa vida, em parte porque nos acostumamos a ele. Mas, se
olhamos abaixo da superfície, percebemos que o sofrimento se infiltra como um rio
subterrâneo. Podemos reconhecer isso ou não, no entanto, sentimos isso e conservamos
uma vigilância mental para nos manter ocupados, numa tentativa de evitá-lo.
Repetidamente inventamos esquemas para enganar o samsara. Embora saibamos que nada
altera o caráter básico do samsara, continuamos tentando fazer com que ele dê certo. Para
manter o prazer que temos, é preciso um grande esforço de manutenção. É assim que
tentamos fazer o samsara funcionar, e é isso que nos conserva na roda. Pensamos: “Sei que
não tem fim. Sei que é doloroso. Sei o que você está dizendo. Acredito. Mas tenho só uma
coisa mais para fazer, só uma pequena coisa”. Podemos ir para a sepultura dizendo isso.
Isso é o samsara. “Só uma mais” — este é o fator que aglutina o ciclo do sofrimento.
O Buda foi um astronauta que viajou para o espaço e viu que o sofrimento é um
círculo. Dizemos “só mais uma vez” porque não vemos isso da maneira como o Buda viu.
Estamos sob a ilusão de que nos deslocamos em linha reta. Todavia, assim como a Terra
parece plana enquanto nela permanecemos, pensamos estar caminhando em linha reta
quando na realidade fomos capturados por um círculo de sofrimento.
E, embora isso certamente nos pareça uma realidade objetiva, esse círculo de
sofrimento é simplesmente um estado mental. Por exemplo, podemos pensar que a região
violenta de uma grande cidade seja “samsárica”. Mas, se o Buda estivesse naquele lugar, não

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o consideraria dessa maneira, absolutamente. Ele o perceberia precisamente como é, sem o
filtro do julgamento ou da opinião. Nossa mente é que é samsárica. O sofrimento é o
estado mental que se percebe como real. Podemos passar toda a vida tentando criar um eu
concreto e duradouro. Podemos passar toda a vida olhando para fora de nós mesmos em
busca de algo que reflita essa ilusão de solidez, que nos faça tão reais e duradouros quanto
desejamos ser. Contudo, por mais que procuremos, será impossível encontrar o que não
existe. Além disso, essa procura perpétua só nos causa sofrimento. O Buda viu que
realmente estamos aturdidos e sofremos porque nos levamos demasiadamente a sério. Não
vemos o esplendor da bondade fundamental, nosso estado natural.
O fato é que aquilo que nos parece uma realidade concreta está, na verdade, em
estado de transformação contínua. O mundo está sempre em transformação. A casa em
que crescemos hoje não é mais a mesma casa. A mãe e o pai que conhecíamos quando
crianças são agora fisicamente diferentes. Onde está nossa primeira bicicleta? Numa certa
época, ela parecia tão real. Tudo está sempre se agregando e desmoronando, e isso não
parece constituir problema para ninguém, a não ser para nós. A primavera sabe como ser
verão, e as folhas de outono sabem como cair. Agregar-se e desmoronar-se é o movimento
do tempo, o movimento da vida. Isso é tão óbvio como nosso próprio rosto, e, no entanto,
imaginamo-nos tão concretos e imutáveis. Defendemos e protegemos isso acirradamente.
Ficamos com raiva quando alguém desafia nossas tão caras opiniões. Se alguém não segue
nosso caminho, sentimo-nos insultados. Quando algo interrompe nossa rotina, temos uma
sensação de perda. Tentamos afastar os sinais de velhice.
O Buda disse: “Não vou dizer a vocês que as coisas são de um jeito ou de outro;
mas, se vocês são reais, onde estão? E, se o mundo é real, onde está?”. No budismo
falamos sobre vacuidade porque, quando começamos a investigar esse eu, não podemos
encontrar nada sólido ou substancial. Há uma sensação de eu — uma sombra. Temos
olhos e uma consciência visual — isso é uma sensação de “mim”. Temos tato e sensações
— isso é uma sensação de “mim”. Temos recordações, pensamentos, ações e fala, e todos
eles se unem nessa sensação de “mim”. Temos um corpo, o prazer e a dor que o
acompanham, e essas coisas são também “mim”. Essa sensação de um eu é uma elaboração
mental, determinada por condições externas. Dizemos: “Hoje não me sinto como eu
mesmo”. Mas quando procuramos esse “eu mesmo” que é como gostaríamos de nos sentir
— onde está? Isso também é verdadeiro para o mundo que nos cerca. Consideramos que
tudo é exatamente como nos parece. Mas, se olhamos debaixo da superfície, percebemos

24
que o universo não é tão estável como parece. As coisas “lá fora” mudam tanto quanto
nós.
Com esse tipo de prática e curiosidade, um ser iluminado como o Buda aprende a
observar a paisagem da existência de uma maneira clara e imparcial. Quando começou a
ensinar, o Buda apenas relatava suas observações: “É assim que vejo como as coisas são”.
Não apresentava nenhum ponto de vista especial. Não pregava um dogma; mostrava a
realidade. Dizer que a impermanência é uma crença budista é como dizer que os budistas
acreditam que a água é molhada. O Buda não criou a impermanência ou a
insubstancialidade do eu, o sofrimento ou a paz; o Buda simplesmente viu a realidade,
reparou como ela funciona e assinalou isso para nós. Podemos levar o resto da vida
tentando criar um eu concreto, mas nunca seremos capazes de fazê-lo perdurar. Se
relaxarmos nesta simples verdade, poderemos transcender o aturdimento e o sofrimento.
Recentemente, tive uma experiência divertida com um amigo lama tibetano. Ele
estava no Ocidente pela primeira vez, e eu me divertia em mostrar-lhe diferentes aspectos
da nossa cultura. Ele é um homem instruído, mas, quando chegou a hora de aventurar-se a
descobrir as maneiras ocidentais, era muito ingênuo. Levei-o para assistir ao filme O
Grinch,1 pensando que, embora não pudesse compreender os diálogos, pelo menos ele se
divertiria com as imagens coloridas e os efeitos especiais.
Vimos o filme e ele parecia apreciá-lo. Depois, perguntei-lhe se tinha entendido.
Disse-me: “Só uma pergunta: o que é o Natal?”. Respondi que são as festividades que
celebram o nascimento de Jesus Cristo. “Então”, ele me retrucou em um tom muito
respeitoso, “o macaco verde era Jesus Cristo?”
Dei uma boa risada, especialmente por ele ter sido tão respeitoso. Dei-me conta de
que, por mais estranha que parecesse, sua pergunta tinha sido autêntica. Perguntei-lhe: “Por
que você pensa assim?”.
“Bem, ele vivia numa caverna nas montanhas e no princípio passou por tempos
difíceis, mas as coisas melhoraram e no final tudo parecia estar bem.”
No Tibete, muitas pessoas santas, tanto históricas como míticas, viveram em
cavernas e eram excêntricas. Houve um famoso ioguim santo chamado Milarepa que viveu
em uma caverna nas montanhas. Passou por toda sorte de aventuras e superou obstáculos
inacreditáveis com a meditação. Durante os anos em que morou na caverna, alimentava-se
a maior parte do tempo com uma sopa de urtigas; diz-se que por isso sua pele ficou verde.
A mitologia tibetana, além disso, afirma que os humanos descendem parcialmente dos

25
macacos.
Meu amigo misturava diferentes idéias, baseadas em sua experiência, para chegar a
sua estranha conclusão; estava saltando de sua cultura para a nossa. E, certamente, parece-
nos absurdo que alguém pense que Grinch é Jesus Cristo. É igualmente absurdo pensar que
temos um eu. No entanto, passamos a vida aferrados a essa identidade imaginária —
improvisadamente costurada com remendos de diferentes pensamentos e conceitos —,
tentando mantê-la feliz. É por isso que sofremos. Isso não é um pecado, é um hábito muito
antigo que é perpetuado por nossa mente aturdida.
A mente aturdida é como um cavalo selvagem. Ele escapa quando tentamos
encontrá-lo, assusta-se quando tentamos nos aproximar. Se descobrimos uma maneira de
montá-lo, dispara com o freio entre os dentes e, finalmente, joga-nos direto na lama.
Pensamos que a única maneira de acalmá-lo é dar-lhe o que deseja. Gastamos muito da
nossa energia tentando satisfazer e entreter esse cavalo selvagem que é a mente.
A mente aturdida é fraca porque está continuamente distraída. Está distraída pela
necessidade imperiosa de manter o conforto do eu. Ela medita sobre sua natureza
discursiva e a absorção consigo própria, e isso conduz ao sofrimento, porque a mente
aturdida não pode transcender a si mesma. Quando surge uma dificuldade, ela é incapaz de
superá-la. Quando acontece o inesperado, ela reage a partir de uma perspectiva limitada em
que quer permanecer feliz em seu cantinho. Portanto, se somos ameaçados, nos livramos
disso por intermédio da raiva. Se alguém tem algo que desejamos, automaticamente
sentimos inveja. Ao vermos algo de que gostamos, sentimos desejo. Não duvidamos dessas
respostas — nem mesmo perguntamos: “Vale a pena ficar zangado por causa disso?”. O
que nos deixa felizes e o que nos deixa tristes resumem-se a condições externas,
circunstâncias que estão constantemente mudando. Isso aumenta ainda mais nosso
aturdimento e sofrimento.
Com uma mente destreinada, passaremos a maior parte dos dias de nossa vida à
mercê de humores. Acordar pela manhã é como uma aposta: “Com que mente me levantei
hoje? É a mente irritada, a mente feliz, a mente ansiosa, a mente zangada, a mente
compassiva ou a mente amorosa?”. A maior parte do tempo acreditamos que somos nossa
disposição mental, e vivemos o dia a partir dessa premissa. Meditamos sobre isso. Não
colocamos isso em dúvida. Quer acordemos sentindo-nos apavorados ou excitados ou
simplesmente sentindo-nos sonolentos, a motivação que nos impele é simplesmente querer
que as coisas saiam bem para “mim”.

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Há uma região entre a Terra e Marte que os cientistas chamam de zona de
“Cachinhos Dourados”.2 É um lugar que não é nem quente demais, nem frio demais, mas
exatamente na temperatura certa — uma região em que imaginamos que poderia existir vida.
Muitos de nós vivemos apoiados na motivação de nos mantermos em uma zona desse tipo.
Desperdiçamos a vida na construção da nossa zona pessoal de cachinhos dourados, onde
nosso sólido senso de eu sente-se confortável e protegido. Tudo é exatamente como
gostamos, e trabalhamos para manter isso.
Perpetuar essa zona implica que nos preocupemos. Para sermos felizes, diferentes
aspectos de nossa vida precisam alinhar-se. Se não estiverem em conjunção, sofreremos.
Nossa mente remói-se na esperança e no medo porque ela é incapaz de relaxar. Temos
medo do que acontecerá se afrouxarmos o controle sobre nós mesmos. Assim, tecemos
continuamente uma teia de conceitos, crenças, opiniões e estados de ânimo que
identificamos como sendo “eu”. É como um circuito fechado de TV. Sempre estamos
certos de onde estamos; não há muito mais a saber; nada jamais chegará a realmente nos
tocar. Trabalhamos para atrair o que nos faz felizes, para manter afastada qualquer coisa
que nos cause dor e, em certo grau, ignoramos o resto. Isso é o que a maioria de nós
considera ser o prazer. Criamos uma zona de conforto fundamentada numa motivação que
poderia ser descrita como “só quero quebrar o galho”. Dou a esse enfoque o nome de
estratégia “tenha um dia agradável”.
Como uma motivação para nossa vida, a estratégia “tenha um dia agradável” é muito
limitadora. Ela nos mantém aprisionados na insatisfação, no apego a nós mesmos e no
medo. Sentimo-nos defensivos e confinados. Somos impulsionados pela pressa, pela
necessidade e pela avidez. E nos movimentamos com tal rapidez que nem mesmo notamos
que temos uma motivação. Esse sentimento de opressão é sustentado pela mente aturdida
e destreinada. É onipresente e profundo, como se fosse um sonho. Isso é sofrimento.
É possível dar a nossa vida uma abordagem diferente. Podemos despertar para
nossas qualidades iluminadas: amor e compaixão incondicionais; tranqüilidade e desinibição
total com nós mesmos; uma mente clara e penetrante. Contudo, a fim de abrirmos nosso
valente coração de guerreiro, primeiro temos de entender a natureza do aturdimento. O
que acontece no samsara, nessa existência cíclica, que nos faz cair na armadilha? Sob o
ponto de vista budista, nós é que criamos essa situação. Operamos a partir de um mal-
entendido fundamental e costumeiro. Embora estejamos sonhando, pensamos que somos
reais. Não importa o que façamos para nos manter coesos, a verdade é que estamos sempre

27
desmoronando. Acabamos de lavar o carro, chove. Assim, o que faremos quanto a disso?
O Buda sugere que, em vez de resistirmos ao samsara, nos queixarmos dele, ou tentarmos
ser mais espertos, façamos um bom exame e digamos: “Vamos compreender o que está se
passando aqui”.
Temos de entender o sofrimento da mente aturdida e decidir: basta! Não estamos
escapando do mundo. Muito pelo contrário, estamos reconhecendo a qualidade sonhada da
existência e não nos deixando enganar por ela — ou por nós mesmos —, pensando que ela
seja sólida e verdadeira. Compreendendo o jogo da impermanência e do não-eu,
poderemos levar-nos menos a sério e gozar muito mais a vida. Se, como o Buda, fôssemos
capazes de ver a natureza vazia e luminosa da realidade, despertaríamos de nosso sonho
num estalar de dedos. A verdadeira liberação é a vida sem a ilusão de “eu” — ou de
“você”.
No entanto, assim como o Buda, temos de começar uma viagem antes de podermos
ver a realidade de maneira tão clara. A viagem inicia-se com a compreensão de por que
sofremos. Temos de reconhecer a paisagem básica em que vivemos. Se nossa meta na vida
é proporcionar divertimento ao eu, isso não vai dar certo. Por quê? Porque a disposição
desse terreno é nascimento, velhice, doença e morte. Essas são as regras do jogo do “eu”.
E, nele, temos o prazer que se transmuta continuamente em dor. Aqui não há permanência
ou estabilidade, nem há um eu sólido. Muitas vezes a morte chega sem aviso. Sofremos
quando passamos nossa vida negando a verdade fundamental de nossa existência.
A vida humana é sumamente preciosa porque nos oferece a possibilidade de
descobrir a condição desperta que é inerente a nós. Tal como nos quadros em que vemos o
Buda, “desperto”, cintilante, radiante, fluido e primordialmente puro. É disso que somos
feitos e é isso que nos une a todos. O que se interpõe entre nós e a alegria dessa bondade
fundamental é a brincadeira, a peça que nossa mente aturdida continua a pregar. Com a
prática da meditação, desemaranhamos essa ilusão.
É ótimo ter prazer, apreciar boa comida e ouvir boa música. Tornar-se curioso sobre
como sofremos não significa que não podemos mais desfrutar de um sorvete. Mas, quando
começamos a entender o aturdimento da mente destreinada, não olhamos mais para o
sorvete e dizemos: “Isso é a felicidade”. Compreendemos que a mente pode ser feliz
mesmo sem sorvete. Percebemos que a mente está contente e feliz por sua própria
natureza.

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Três

O repouso na paz

Embora a mente aturdida não seja adestrada, ela já está meditando, saibamos disso
ou não. A meditação é o processo natural em que nos familiarizamos com um objeto,
colocando repetidamente a mente sobre ele. Não importa o que façamos, sempre temos
uma visão a respeito; sempre estamos colocando a mente em um ou outro objeto. Por
exemplo, quando nos levantamos pela manhã e estamos ansiosos por algum motivo, a
ansiedade torna-se nossa visão para o dia: “E eu? Quando conseguirei ter o que desejo?”. O
objeto da meditação é o eu.
Quando repousamos, assentamos a mente no momento presente. Colocamos a
mente na respiração e praticamos mantê-la nela. Notamos quando os pensamentos e as
emoções nos distraem e nos treinamos a voltar a mente à respiração. É assim que passamos
de nossa subordinação à mente aturdida, que causa seu próprio sofrimento, à mente que é
estável, clara e forte. Proclamamos nosso desejo de descobrir essa mente de estabilidade,
clareza e força ao aprendermos a repousar na nossa própria paz.
Para fazer da mente uma aliada, temos de aprender a nos ver exatamente como
somos. Em geral, não sabemos lidar com a alegria natural da mente e por essa razão
terminamos por produzir rapidamente emoções intensas. Essas emoções mantêm-nos
presos ao sofrimento. Ao repousarmos na calma, começamos a perceber como a mente
funciona.
A expressão “repouso na paz” descreve a mente como ela naturalmente é. A palavra
paz diz tudo. A mente humana é por natureza alegre, calma e muito clara. Na meditação
shamatha, não criamos um estado apaziguado ⎯ deixamos que a mente seja como ela é.
Isso não quer dizer que ignoraremos as coisas, tranqüilamente. Significa que a mente é
capaz de permanecer em si própria, sem estar sempre de saída.
Do ponto de vista budista, os seres humanos não são por natureza agressivos; somos
inerentemente pacíficos. Às vezes é difícil acreditar nisso. Quando estamos irados ou
perturbados, a mente não adestrada se torna hostil e nossa reação usual é fustigar os outros.
Imaginamos que, ao reagir com agressividade contra o objeto de nossa emoção, faremos
desaparecer nossa dor. Ao longo da história, essa abordagem foi usada inúmeras vezes.
Golpear quando sentimos dor é claramente uma forma de perpetuar o infortúnio. Com

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uma mente treinada, uma mente estável, uma mente com uma motivação maior do que seu
próprio conforto, encontramos outro modo de lidar com as dificuldades da vida cotidiana.
Quando nos encontramos em uma situação difícil, permanecemos no lugar em que
estamos. Em vez de perpetuar a desgraça reagindo agressivamente, aprendemos a usar os
pontos ásperos para deflagrar a coragem para prosseguir em nossa jornada. Poderemos,
enfim, ser de fato capazes de transformar a mente irada na energia do amor e da
compaixão.
Mas primeiro aprendemos como repousar na paz. Se nos lembrarmos do que
significa a palavra shamatha, sempre poderemos usá-la como ponto de referência. Podemos
dizer: “O que é esta meditação que estou praticando? Ela é permanecer, calma e
pacificamente”. Ao mesmo tempo, começaremos a perceber que nossa mente se encontra
sempre em outro lugar ⎯ não necessariamente em seu estado naturalmente tranqüilo.
Talvez ela esteja na irritação, na cólera, no ciúme. Quando percebemos isso, começamos a
desemaranhar nosso aturdimento.
Estamos habituados a viver correndo atrás de nossa mente selvagem, uma mente que
origina continuamente pensamentos e emoções. Não há nada errado com a natureza dos
pensamentos e das emoções ⎯ de fato, fazer da mente uma aliada é importante porque
assim podemos dirigir pensamentos e emoções para que se tornem benéficos. Por meio do
repouso na paz, começamos a ver nossas emoções em ação. Começamos a ver que
precisamos trabalhar essas emoções intensas porque, se não fizermos isso, elas crescerão.
Depois disso, nós as externaremos. Quando as externarmos, elas criarão o ambiente ao
nosso redor.
A meditação mostra como os pensamentos discursivos levam às emoções ⎯
irritação, ansiedade, paixão, agressividade, ciúme, orgulho e voracidade ⎯ que conduzem
ao sofrimento. Por exemplo, você está no ônibus e a pessoa ao seu lado tem um toca-CD
realmente especial. Primeiro sua curiosidade é aguçada pelo som. Depois, sem mesmo dar-
se conta, você quer um aparelho exatamente igual, embora seu próprio toca-CD fosse bom
o bastante dois minutos antes. Antes você lá estava, sentado calmamente, e agora é um
vulcão de desejo. Além disso, você tem inveja desse total estranho por ele ter algo que você
deseja. A viagem era boa, e agora, poucos pensamentos depois, você se sente um
desgraçado.
Reagir às emoções cria, na seqüência, reações adicionais. Planejamos tirar férias com
um amigo e discordamos quanto ao dia da partida. Nosso amigo está irritado, o que nos

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irrita e o faz ficar ainda mais irritado, e, antes que percebamos, a viagem foi por água
abaixo. A atividade discursiva pode ser agradável — assim como alimentos que nos causam
alergia podem ser saborosos, mas passamos mal depois de comê-los.
A meditação é uma jornada muito pessoal. Quando simplesmente tomamos
consciência do momento presente e nele nos ancoramos, relaxamos nosso senso de eu e
começamos a sintonizar com a realidade tal como ela é. Começamos a dar-nos conta do
que não sabemos e ficamos curiosos: “O que é verdadeiramente válido? Qual é a verdade
da minha experiência?”. Se vivêssemos num lugar deserto, observaríamos os padrões da
natureza ao nosso redor: a atividade dos pássaros e animais, o comportamento do clima, as
mudanças na vida das plantas. Depois de um tempo, estaríamos familiarizados com o meio
ambiente. Seríamos capazes de predizer a chegada do inverno e se ele será longo ou curto.
Da mesma maneira, ao repousar na paz podemos começar a observar e a entender nossos
padrões de pensamento. Podemos prestar atenção na trama tecida pela mente de uma idéia
a outra, de uma emoção a outra. Podemos notar como ela engendra uma zona de conforto.
Podemos perceber como ela age. Começamos a compreender seu comportamento sem
criticá-lo. Apenas reparamos no ambiente interno e nos familiarizamos com ele.
Depois de certo tempo prestando atenção nos pensamentos e nas emoções que vêm
e vão, começamos a percebê-los com clareza. Eles já não têm mais o poder de nos
desestabilizar, porque compreendemos quanto eles são efêmeros. Nesse caso, podemos
verdadeiramente começar a mudar os padrões e, ao fazermos isso, transformar todo nosso
ambiente. Mas, para colher esse benefício, é necessária uma prática perseverante.
Quando desenvolvemos uma prática regular, sentimos como se a vida passasse por
uma revolução. Meditar é uma nova maneira de ver as coisas. Temos de estar dispostos a
mudar. Quando começamos a domar o movimento da mente, tudo é afetado por isso. É
como uma reforma: uma vez começada, é difícil parar. Por exemplo, no Shambhala
Mountain Center, um centro no Colorado onde ensino todos os verões, nosso salão de
meditação estava velho, com má aparência, então decidimos construir um novo. Depois
disso, comparativamente, a cozinha parecia pequena e velha, e assim construímos também
uma cozinha nova.
Ao começarmos a meditar, podemos perceber coisas a nosso respeito que não nos
agradam, por isso é importante nos perguntarmos se estamos dispostos a mudar. Antes de
considerarmos iniciar um caminho espiritual, temos de começar por ver em que pé
estamos. Antes mesmo de sentarmo-nos, devemos nos perguntar o seguinte: queremos

31
realmente nos tornar pessoas melhores? Queremos realmente trabalhar a mente? Não
falamos aqui em nos transformar em pessoas boazinhas. Dizemos que podemos escolher
nos tornar mais fortes, mais bondosos, mais sábios e mais concentrados. Podemos nos
sintonizar melhor com as coisas como elas são. Queremos verdadeiramente fazer isso?
A idéia da meditação é muito simples. Desaceleramos e começamos a examinar o
padrão de nossa vida. Temos de começar com a mente, depois se seguirá o corpo. Não
dizemos com isso que, quando começarmos a meditar, tudo se arranjará e não teremos
mais problemas. Ainda teremos divergências com amigos e com a família. Ainda
continuaremos a ser multados por estacionar em lugar proibido, ainda perderemos vôos,
vez ou outra ainda deixaremos a torrada queimar. A meditação não nos leva para além do
arco-íris ⎯ ela abre possibilidades de incorporarmos completamente nossas qualidades
iluminadas, à medida que fizermos da mente uma aliada. Ao meditar, nós nos treinamos a
perceber nossos pontos fracos e a fortalecer nossos pontos fortes. Alteramos nossa
percepção básica. Começamos a mudar a forma de nos relacionar com o mundo ⎯ mas
não à força.
Quando começamos a examinar verdadeiramente a mente, percebemos alguns
princípios de seu funcionamento. Em primeiro lugar, ela sempre se coloca sobre alguma
coisa. Faz isso para saber o que acontece. Em geral, temos enraizada a tendência de
acompanhar as distrações ⎯ o que é o oposto de uma mente estável. Talvez a mente se
coloque sobre a idéia de nosso jantar. Depois, pensamos no que há dentro da geladeira. A
seguir, pensamos num restaurante. Pensamos então na roupa que vamos usar para ir até o
restaurante. Depois pensamos em comprar roupas novas. A mente se reposiciona o tempo
todo, em geral apenas por poucos segundos. Esse é o caso até mesmo quando pensamos
sistematicamente sobre um tema, como quando planejamos algo.
Por exemplo, se vou de Nova York a Paris, penso em como farei isso. Em que dia e
a que horas tomarei o avião? Receberei pontos de milhagem? Quanto vai durar o vôo?
Depois, aonde irei? E quem encontrarei quando chegar lá? Se examinamos a mente
enquanto ela planeja, vemos que outros pensamentos se misturam aos do planejamento.
Embora possa parecer que temos um fluxo de pensamentos a respeito de nossas férias, se
observamos mais de perto percebemos que a mente pula o tempo todo para a frente e para
trás, entre muitos outros pensamentos. “Está fazendo calor aqui. Devo abrir uma janela?
Quero saber o que vai ter para o almoço. Terei tempo para comprar alguma coisa na

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mercearia antes da reunião de hoje à tarde?” No entanto, já que a maioria dos nossos
pensamentos se refere à viagem, dizemos: “Oh, estou planejando minhas férias”.
Quando começamos a examinar a mente com atenção, vemos algo mais: que não
percebemos várias coisas de uma só vez; a cada instante, podemos perceber apenas uma
coisa. Faça um teste. Temos a impressão de ouvir um pássaro e de ver o sol ao mesmo
tempo, mas a verdadeira experiência da mente é que ela se move de uma percepção para
outra. Se pensamos no que faremos para o jantar, temos pensamentos consecutivos a esse
respeito; entre um e outro, a mente muitas vezes vai de um lado para outro, colocando-se
em outras coisas. De repente, surge a lembrança de uma agradável conversa casual que
tivemos pelo telefone pouco antes; notamos que alguém lavou a louça do café da manhã;
gostamos da faixa do CD que estamos ouvindo e ficamos curiosos para saber quem canta.
Se examinamos a mente de perto, vemos que ela sempre se comporta dessa maneira.
Se temos um número suficiente de pensamentos semelhantes, chamamos a isso um
fluxo de consciência, um fluxo de pensamentos. No entanto, a corrente da mente flutua
sempre. A mente tece uma ilusão de solidez ao juntar as coisas; na verdade, ela vai para a
frente e para trás. No início, ao repousar na paz descobrimos o que é a mente trazendo-a
para junto de nós. Fazemos isso ao nos sentarmos quietos e obrigarmos a mente a
permanecer sobre algo por uns poucos segundos. No começo, trazê-la de volta para a
respiração repetidas vezes poderá parecer antinatural, como se tentássemos agarrar uma
criança para controlar sua agitação. Mas, se continuamos a fazer isso, num certo momento
começamos a perceber que algo mais se passa por trás da distração e do aturdimento.
Começamos a perceber a quietude subjacente da mente. Há inteligência, há certo tipo de
estabilidade, há uma espécie de força. Chegamos a ver como o caráter discursivo dos
pensamentos e das emoções nos impede de experimentar aquelas qualidades naturais da
mente.
Quando repousamos na paz, usamos o momento presente como um ponto de
referência para nos relacionarmos com a mente e superarmos seu aturdimento e sua
qualidade discursiva. Nós nos sentamos para meditar, tanta coisa se passa pela mente que é
fácil nos perdermos. Vagamos por essa selva densa, sem saber o que acontece. O momento
presente e a respiração são como o topo de uma montanha vista a distância. Mantemos o
olhar fixo nele enquanto caminhamos em sua direção. Precisamos chegar ao cume da
montanha, queremos escalar seu topo e olhar ao redor para conseguirmos imaginar onde
estamos.

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Aprendemos a ter atenção plena e consciência ao fazer a mente retornar para a
respiração. É como dar um animal de estimação para uma criança: cuidar de um animal
doméstico nos ensina a responsabilidade e a bondade amorosa. Quando crescemos,
podemos expressar aquilo que aprendemos aos outros. Da mesma forma, usamos a
respiração como o veículo que nos traz ao momento presente.
Quando era jovem, eu treinava falcões. Usava pequenos pedaços de carne como
pontos de referência. Depois de certo tempo, sempre que eu soprasse um apito, o pássaro
vinha pegar a carne na minha mão. Era uma tarefa desafiadora, já que a tendência natural
dos pássaros é não confiar nos homens. Treiná-los durante muitos meses, no cativeiro,
ensinou-me o valor de aceitar pequenas melhoras, dia após dia. Depois que a confiança se
instalou, eu podia soltar o pássaro no meio do campo. Esse era o momento da verdade: o
pássaro voltaria à minha mão quando eu soprasse o apito? Isso é muito parecido com a
maneira como treinamos a mente a voltar para a respiração no repouso na paz. Demanda
paciência.
Quando experimentamos um momento de repouso na paz, parece muito estranho. A
mente já não está à deriva, não pensa mais em um milhão de coisas. O sol nasce ou sopra
uma brisa quente ⎯ e de repente sentimos a brisa e estamos completamente em sintonia.
Pensamos: “Essa é uma experiência muito espiritual. É uma experiência religiosa. Merece
ao menos um poema, ou que eu escreva uma carta para casa”. Mas tudo o que está
acontecendo é que por um momento estamos em sintonia com a mente. Ela está presente e
é harmoniosa. Antes, estávamos tão ocupados e aturdidos que nem notávamos a aragem. A
mente nem mesmo podia conservar-se colocada por tempo suficiente para observar o
nascer do sol, que leva dois minutos e meio. Agora podemos mantê-la no mesmo lugar por
tempo bastante para que note e aprecie o que está à sua volta. Agora estamos
verdadeiramente aqui. De fato, estar no momento presente é normal; é a essência de ser
humano.
Aprender a estar presente no momento presente é o início do caminho espiritual.
Quando sentamos quietos e treinamos a mente a permanecer com a respiração,
começamos a abrandar nossa atividade discursiva. Vemos como a mente cria nosso sólido
senso de eu e iniciamos a descoberta do estado de ser natural da mente. Com essa
experiência, podemos cultivar nosso jardim. As flores do amor, da compaixão e da
sabedoria crescem gradativamente, e as ervas daninhas da raiva, do ciúme e do apego por si
mesmo têm cada vez menos espaço para crescer. Ao permanecermos na paz nós nos

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familiarizamos com o terreno da bondade fundamental. É assim que fazemos da mente
uma aliada.

35
Dois.
37
A ARTE DE REPOUSAR NA PAZ

38
4.

Assumir seu lugar

Quando era adolescente, às vezes participava de retiros com meu pai. Num retiro,
minha prática consistia de quatro sessões de meditação sentada por dia. No início da
sessão, meu pai sempre entrava furtivamente na sala de meditação para ver se eu começara
de maneira apropriada. Dizia a mim mesmo: “Por que ele não me observa no meio da
sessão, para ver se me mantenho na prática?”. Depois de um tempo dei-me conta de que
seu interesse estava na maneira como me sentava. Observava-me para ver se tinha uma
atitude apropriada diante do treinamento da minha mente. A mente é rei e rainha.
Aproximamo-nos da almofada de meditação como se ela fosse um trono no centro da
nossa vida.
Muitas estátuas e pinturas mostram o Buda na postura de meditação. Ilustram
admiravelmente como a postura foi concebida para permitir uma força e estabilidade
naturais, com certa abertura e dignidade. Ao assumir uma postura ereta, possibilitamos que
o corpo relaxe e a mente fique desperta. Podemos usar diferentes posturas para meditar,
mas, sob circunstâncias usuais, sentar-se sobre uma almofada ou uma cadeira são as
melhores. Se não pudermos sentar, é possível empregar essa técnica ao andar, de pé ou até
mesmo deitado. Ainda assim, a postura mais eficiente para a prática é a sentada.
Quando nos sentamos, devemos adotar uma postura equilibrada, com uma boa base,
a fim de permitir que a energia no centro do corpo se mova livremente. Se estamos numa
almofada, sentamo-nos com as pernas frouxamente cruzadas. Se estamos numa cadeira,
mantemos as pernas descruzadas e as plantas dos pés bem apoiadas sobre o chão.
Imaginamos que um fio preso ao topo da cabeça a puxa para o alto. Deixamos que nossos
órgãos, músculos e ossos se acomodem ao redor da coluna, como um casaco pendurado
num cabide. As vértebras devem parecer empilhadas como moedas de ouro, permitindo
que a coluna tenha sua curvatura natural.
Quando era jovem, sentava-me sem fazer nada e comparava cicatrizes de batalhas
com um amigo que também era um lama encarnado. Um lama encarnado é um indivíduo
que intencionalmente renasce numa linhagem reconhecida de mestres a fim de continuar
trabalhando em benefício dos outros. Na tradição tibetana, isso envolve treinamento
intenso e altamente disciplinado. Meu tutor costumava beliscar-me ou usar uma vara de

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bambu, mas o tutor de meu amigo era mais rigoroso. Ensinava seu pupilo a manter a
postura de meditação fazendo-o sentar-se sobre uma pedra rodeada por espinheiros. Caso
se movesse, seria espetado pelos espinhos. Embora soe cruel, isso era eficaz para ensinar-
lhe a sentar-se muito quieto e ereto.
A razão para os tutores colocarem tanta ênfase no sentar-se ereto é que uma postura
desleixada prejudica a respiração, o que afeta diretamente a mente. Caso nos curvemos,
lutaremos com o desconforto no corpo ao mesmo tempo que tentamos treinar a mente. O
que desejamos fazer é o oposto: sincronizar o corpo e a mente.
Depois que estamos com a coluna ereta, repousamos as mãos sobre as coxas. Elas
não devem estar muito à frente, a ponto de começar a puxar os ombros para baixo, nem
muito para trás, forçando os ombros a encolher-se, pressionando a coluna. Os dedos estão
frouxamente encostados uns nos outros ⎯ não entreabertos como garras, como se não
pudéssemos largar mão de nós mesmos.
Colocamos o queixo para dentro e relaxamos o maxilar. A língua também deve estar
relaxada, com a ponta apoiada sobre os dentes superiores. A boca permanece até mesmo
um pouco aberta. Os olhos entreabertos voltam-se para baixo. Se olharmos fixamente, será
difícil permanecer sossegado. Por outro lado, se fecharmos completamente os olhos, isso
poderá nos encorajar a dormir ou a afastar a mente da técnica. Se a mente parecer distante,
isolada, intensa e sombria, tente elevar o olhar e permitir que mais espaço seja incluído em
sua prática. A propósito, os olhos não estão olhando; os olhos apenas vêem. Acontece a
mesma coisa com o som ⎯ não estamos escutando, mas ouvimos. Em outras palavras, não
enfocamos com nossos sentidos.
O primeiro passo da técnica da meditação é a colocação: colocar a mente sobre o
objeto da meditação. Uma das palavras tibetanas para meditação é gom, que significa
“tornar-se familiarizado com”. Na meditação, somos apresentados a um objeto e nos
familiarizamos com ele. Poderíamos usar qualquer objeto ⎯ um pedaço de pedra, uma
chama ou o corpo. O objeto sobre o qual usualmente meditamos ⎯ e a mente sempre
medita sobre algo ⎯ é o eu.
No repouso na paz, o objeto é o simples ato de respirar. A respiração representa
estar vivo na vizinhança do momento. Colocar a mente na respiração e voltar a ela
repetidas vezes é a essência do shamatha. Ao repousar a mente na respiração, ficamos
presentes, despertos e atentos. Colocação significa aqui estar com a sensação de respirar. O

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fluxo da respiração acalma a mente e permite a quietude e o relaxamento. Ele também
reduz o pensamento discursivo.
A respiração é natural; nada é exagerado. Simplesmente respiramos. Se tivermos
dificuldade em permanecer com a respiração ⎯ se nos perturbamos ou nos perdemos
entre a expiração e a inspiração ⎯, contar cada ciclo completo inspiração-expiração pode
ser um remédio útil para nos trazer de volta ao foco. Inspiramos e depois expiramos ⎯ 1.
Para dentro e depois para fora ⎯ 2. Ao usar esse método, são contadas 7 ou 21 respirações
e depois se começa de novo. Caso você se distraia e perca a contagem, recomece
novamente a partir de 1. Quando estivermos mais concentrados, poderemos abandonar a
contagem.
Familiarizar-se com os ritmos sutis da respiração é parte do desenvolvimento natural
do ficar tranqüilo. Colocamos a mente na respiração como um todo, e leva tempo para
percebermos o que é isso. Provavelmente descobriremos que a respiração em si não é tão
sólida quanto o conceito que temos dela. Talvez percebamos que a palavra respiração
descreve algo que não é tanto uma entidade, e sim uma série de eventos. O ar penetra pelas
narinas, o abdome se expande e o ar permanece lá por um momento. Então o diafragma se
contrai e a respiração deixa os pulmões, sai suavemente pelas narinas e se dissolve no
espaço.
O uso da respiração como objeto de meditação é muito apropriado, porque o ar que
entra e sai nos permite ter certa quietude em comparação com o pensamento discursivo.
Isso também nos permite relaxar. Essa é a virtude da respiração. Ao colocar a mente nesse
processo, relaxamos todo nosso ser. As tensões começam a dissolver-se. A respiração
acalma a mente e possibilita que ela repouse. À medida que nossos pensamentos se tornam
menos ativos e que nos aquietamos interiormente, cessa a divisão entre mente e corpo.
Começamos a ter consciência do coração pulsando. Sentimos o fluxo sanguíneo. Quase
podemos sentir nossos ossos. Tornamo-nos um ser inteiro, com corpo e mente
sincronizados.
Mas isso não é tudo o que acontece. Enquanto sentamos e colocamos a mente na
respiração, a alegria natural da mente emerge continuamente. O movimento dos
pensamentos e das emoções nos distrai. Tendemos a ficar perdidos na torrente. Pensamos
como é interessante que enfim estejamos meditando e imaginamos o que dirão nossos
amigos a respeito disso. Pensamos sobre o lugar em que estacionamos o carro. Pensamos
em como seria bom um gostoso biscoito agora. Pensamos que estamos sonolentos e seria

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ótimo tomar uma xícara de café. Esses pensamentos são pequenas histórias que contamos a
nós mesmos. A maior parte delas se refere ao passado ou ao futuro, não ao presente.
Podemos deixar-nos arrastar para longe por um tempo, e esquecer que a respiração é
o objeto da meditação, não os pensamentos e as emoções. Nesse momento, a técnica
consiste em reconhecer o fato de que pensávamos. Se quisermos, podemos rotular:
“Pensamentos”. Quer os rotulemos ou não, quando os percebemos, trazemos a mente de
volta para a respiração. Ao reconhecermos os pensamentos, reconhecemos o movimento
da mente, a turbulência da mente desconcertada. Treinamos a consciência de quem somos
como seres humanos. Treinamos não ser distraídos, mas enfocados. Treinamos estar
completamente presentes em nossa vida.
Por exemplo, mantemos uma postura firme e relaxada e colocamos a mente sobre a
respiração. Relaxamos na respiração e estamos em meio ao plácido repouso mental quando
irrompe um pensamento: “Espero que não tenha de cozinhar outra vez hoje à noite. Por
que alguém não faz o jantar? Sou o único nessa casa que trabalha de verdade. O que eles
pensam que eu sou, o Super-Homem?”. Nosso repouso na calma foi inundado por um
fluxo de pensamentos que está a ponto de transformar-se em uma torrente emocional.
Percebemos isso em certo momento. “Oh! Estou pensando.” Ao reconhecermos isso,
permitimos que o pensamento se dissipe, e voltamos à respiração. Damo-nos conta de que
agora estamos meditando; logo, não é hora de pensar nessas coisas, e sim de simplesmente
prestar atenção à respiração. Refocalizamos nossa atenção e dizemos a nós mesmos:
“Agora estou colocando minha mente sobre a respiração”.
Começar a meditar é como aprender a montar a cavalo: temos de aprender a nos
equilibrar. Estamos aprendendo a nos equilibrar trabalhando a respiração, sentando-nos
eretos e reconhecendo os pensamentos, dando-nos conta deles e largando-os. Sentimos
como que poderíamos fazer isso de imediato, mas a meditação é relativamente sutil, e
chegar a coordenar tudo leva algum tempo. Enquanto aprendemos a repousar
tranqüilamente, cairemos, nos levantaremos, cairemos, nos levantaremos. É importante que
sejamos gentis e nos concedamos certo período de carência. Tenderemos a sujeitar nossa
mente com força demais. Estamos lá sentados, surge um pensamento, e pensamos: “Oh!
Pensamentos são maus”. Ficamos irritados tentando lidar com o pensamento, por isso
exageramos nossa reação e o sufocamos. No entanto, pensar um pouco é inevitável nesse
estágio.
Finalmente, começamos a dar-nos conta de que a respiração em si está se acalmando.

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Aproveitamos a respiração. Não se trata de uma espécie de lembrete para que nos
esforcemos mais. Estamos inspirando e expirando, simplesmente. É como se
descobríssemos, pela primeira vez, que somos seres humanos que respiram. Depois, é
possível que durante um período de meditação percebamos: “Céus! Meu coração tem de
bater e meu sangue tem de circular para que eu continue a viver!”. Experimentamos nosso
corpo físico. Desenvolvemos a habilidade de entrar naquela qualidade muito básica de
quem nós somos. Podemos até mesmo experimentar algum tipo de medo, quando
entendemos como tudo é tão tênue.
Necessitamos de precisão para aplicar a técnica e trazer a mente de volta à respiração.
Diz-se que grandes meditadores ficam tão centrados que podem sentir o fluxo de seu
sangue. Eles podem de fato sentir o nível atômico de sua estrutura celular. Precisamos de
suavidade para manter o processo neutro e delicado. Não precisamos analisar ou julgar um
pensamento quando surge — ou nos julgarmos por tê-lo. O conteúdo do pensamento, seja
ele um jogo de futebol ou nosso segredo mais profundo e tenebroso, não é bom nem mau.
Um pensamento é apenas um pensamento. Punir-nos por pensar é também apenas um
pensamento. Assim, a instrução é ver o pensamento como uma distração e voltar à
respiração. Esse tipo de delicadeza é que contribui para uma prática sadia de meditação.
Um dos principais obstáculos que nos impede de usufruir completamente a
meditação são as dores e o desconforto. Os joelhos latejam, as costas doem, os ombros
ficam tensos. De início, a possibilidade de sentir dores é suficientemente dissuasiva para
afastar algumas pessoas da prática. Muitas vezes encontro pessoas que pressupõem que a
postura de meditação deva ser penosa. Isso é lamentável, porque sua meta é fazer-nos
sentir bem. Dores no corpo não são um aspecto obrigatório da meditação. O repouso na
paz não se restringe a nosso estado emocional; a meditação relaxa todo nosso ser, inclusive
o corpo, é claro.
Já que talvez não estejamos acostumados a nos sentar quietos por longos períodos de
tempo, sem nos apoiar no encosto de uma cadeira ou em almofadas, temos de ser delicados
conosco. Acostumarmo-nos à postura é um processo. Os ocidentais acham intimidante a
idéia de sentar-se sobre almofadas, pois não estamos habituados a nos sentar no chão.
Contudo, no Tibete e em outros países asiáticos, as pessoas não se sentem confortáveis em
cadeiras. Uma vez, durante um banquete, notei que Shibata Sensei, meu professor japonês
de arco-e-flecha, tinha desistido de sentar-se à moda ocidental, recolhendo suas pernas para
cruzá-las sobre o assento de sua cadeira. Quer nos sentemos em uma cadeira ou sobre uma

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almofada, o importante é dar-nos conta de que a dor no corpo pode e deveria ser aliviada
ao longo da prática. Na jornada da meditação, devemos incluir nosso corpo na prática e
permitir que ele se solte à medida que a mente relaxa.
Uma vez que tenhamos nos assentado na postura, começamos a prática de uma
maneira clara e precisa. Não é necessário fazer isso com um toque de sino ou gongo, como
fazem tradicionalmente os budistas; você pode simplesmente dizer a si mesmo algo como:
“Agora começarei a trabalhar minha mente e desenvolver o repouso na paz”.
Você pode iniciar sentando-se por dez minutos, uma vez por dia. Se desejar alongar a
sessão, aumente para vinte minutos. Se quiser sentar-se mais de uma vez, tente encaixar o
resto de seu dia entre duas sessões, uma pela manhã e outra à tarde. Se não puder praticar
todos os dias, escolha três ou quatro dias por semana para praticar e continue com esse
programa. Se temporariamente você estiver mais ocupado do que o usual — trabalhando
em um grande projeto ou em período de provas, por exemplo —, faça os ajustes
apropriados ao seu programa de meditação e mantenha-se fiel a ele.
Ao fim da sessão, tente não se levantar de um salto e voltar correndo para as
atividades do dia-a-dia. Usufrua o espaço que foi criado por sua meditação, e depois se
levante. Talvez você se sinta um pouco mais revigorado, lúcido e plácido do que antes,
quando começou. Você não precisa transpor para a vida cotidiana nenhuma técnica
especial. Não coma, beba ou caminhe como se fosse um zumbi. Você pode apenas relaxar,
e talvez continuar permitindo que sua compreensão se aprofunde. Com uma mente menos
atarefada em pensamentos e na tagarelice, você criou um espaço proveitoso dentro de si,
que pode ser transferido para o dia-a-dia. Você descobrirá que é mais fácil estar presente
tanto para perceber o que está acontecendo ao seu redor como para comunicar-se com
maior clareza com os outros. Será mais fácil perceber os pensamentos e as emoções como
distrações, que é o que eles são.
A instrução é verdadeiramente muito simples: quando a mente divagar, faça-a voltar.
Quando você estiver montado sobre a sela e o cavalo escapar, traga-o de volta para a trilha.
Jogue um pouco com isso. Experimente sintonizar com as percepções dos sentidos, por
exemplo, e reassumir o controle do cavalo. Ou tente endireitar a postura quando perceber
que a mente disparou. Pratique olhar direto nos olhos das pessoas com quem você está, e
verdadeiramente escutar o que elas dizem, em vez de pré-fabricar uma resposta à medida
que elas falam. Use a atenção e a consciência que você desenvolveu na almofada para ficar
montado na sela de sua vida. Veja então se você pode apreciar os frutos da prática, sem

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expectativas ou apego.
À medida que a meditação se torne parte de sua vida, você poderá encontrar
obstáculos e perguntas. É útil ter o apoio de praticantes mais experientes que se
defrontaram com questões semelhantes. Um instrutor de meditação pode dar-lhe conselhos
sobre aspectos da prática que você considere difíceis. Conversar sobre sua experiência com
outra pessoa que seja parte de uma comunidade de colegas meditadores pode ser um
grande apoio. No final deste livro há uma lista de informações que poderão ajudá-lo a
encontrar um instrutor de meditação.

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5. A atenção plena e a consciência

Quanto mais consistentes formos na prática de trazer a mente de volta para a


respiração, mais certeza teremos de que a estabilidade básica estará lá quando nos
sentarmos para meditar. Como manter a mente ocupada com a respiração? Pelo simples
ato de sentar já teremos colocado arreios no cavalo selvagem. Nossas ferramentas para
treiná-lo são a atenção plena — trenpa — e a consciência — sheshin, “saber no presente”. O
poder da atenção plena é que podemos simplesmente trazer a mente de volta para a
respiração; o poder da consciência está em sabermos quando devemos fazer isso. A
consciência sabe quando o cavalo disparou e diz à atenção para trazê-lo de volta.
Trazer a mente de volta para a respiração parece simples, mas, quando começamos a
praticar, descobrimos que é o oposto. Estamos tão perfeitamente treinados em deixar-nos
levar pelos pensamentos que nossa atenção é fraca. Nossa consciência tampouco é muito
forte. No início, é difícil perceber onde estamos e o que estamos fazendo.
A boa notícia é que a atenção plena e a consciência são aspectos intrínsecos da mente
⎯ não algo estranho que estamos tentando introduzir. Atenção plena é o que usamos para
manter a mente colocada sobre qualquer objeto ⎯ a respiração, uma pedra ou uma banana
⎯, e a consciência é a inteligência que nos diz o que fazemos. É a consciência que nos diz
que o telefone está tocando. Quando atendemos ao telefone, é a atenção plena que nos
mantém atentos à voz na outra ponta por tempo suficiente para nos darmos conta de que é
nossa mãe quem ligou. Assim, ao meditarmos corretamente, fortalecemos aspectos da
mente que já estão lá. É como fazer musculação. Ao desenvolver a atenção plena e a
consciência, a mente começa a sentir sua força e sua capacidade para simplesmente estar
presente. Começamos a vislumbrar a estabilidade natural da mente.
Quando comecei a fazer musculação, podia levantar somente pouco peso. Mas a
cada repetição eu desenvolvia força. Não fiquei forte por levantar um grande peso de uma
vez, mas por fazer repetições de forma consistente e regular, tornando-me mais forte ao
longo do tempo. É exatamente assim que se fortalecem a atenção plena e a consciência ⎯
mediante a prática consistente e regular.
Quando começamos a meditar, o que mais experimentamos é o movimento da
mente, um cavalo selvagem. Acompanhamos a respiração e ⎯ Ôoo! Pare! ⎯ o cavalo sai
da trilha. Vemo-nos perdidos no meio do mato, prestes a cair num despenhadeiro. Essa

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capacidade de saber onde estamos é a consciência. Como um espião à espreita de um
problema, ela alerta a atenção plena para que venha e faça sua tarefa. Bem sentados na sela,
com as rédeas firmes nas mãos, reconduzimos o cavalo de volta à trilha. Por um momento
sincronizados com o cavalo, sentimos uma enorme energia e clareza. Essa é uma
experiência poderosa. Por um instante a mente pode relaxar e expandir-se.
Então ⎯ Ôoo! ⎯, o garanhão sente o cheiro de uma égua. Ele já tinha galopado
certa distância morro acima, antes que a consciência nos dissesse que já não estamos mais
na trilha. A mente desviou-se da respiração. Pensávamos sobre a melhor maneira de
preparar uma salada ou relembrávamos minuciosamente o último filme a que assistimos. Se
nos deixássemos ficar ali sentados, pensando, estaríamos reforçando o pensamento
discursivo. Como voltar à respiração? É hora de aplicar a atenção plena. A meditação é
proativa.
A atenção plena possui três qualidades: familiaridade, recordação e não-distração.
Mediante o desenvolvimento dessas três qualidades é que aprendemos a montar em nossa
mente-cavalo selvagem. A respiração é um mecanismo que utilizamos para praticar o
centramento da mente no momento presente. Começamos por usá-la para nos
familiarizarmos com a estabilidade natural da mente.
No começo, não estamos muito certos sobre o que é a respiração e, às vezes,
tampouco somos capazes de reconhecer o momento presente. As distrações insistem em
nos arrastar. Depois de alguma prática somos capazes de reconhecer um pensamento, abrir
mão dele, voltar e ficar presentes. Às vezes, sentimos como se não houvesse nada para o
que voltar, de modo que não teríamos razão para ficar por perto por muito tempo.
Dizemos: “Não há nada interessante por aqui, eu bem que poderia voltar para a Tasmânia”,
ou para onde quer que pensasse estar antes. Se não nos familiarizarmos com a estabilidade
inerente da mente, nunca haverá nada interessante para regressar ao momento presente.
Estaremos apenas nos agarrando com unhas e dentes porque pensamos ter de fazer isso.
Sabemos que dar-se conta, reconhecer e deixar ir os pensamentos reduz nossa atividade
discursiva, mas também precisamos de razões positivas para voltar à respiração.
É essa a virtude da familiaridade. Uma vez que relaxamos e nos colocamos no
movimento e no ritmo da respiração, o momento presente e a respiração tornam-se muito
familiares. As distrações e o pensamento discursivo já não são mais tão atraentes. O
adestramento persistente de nosso cavalo permite que tenhamos intimidade com a
sensação de cavalgar tranqüilamente na trilha. Preferimos regressar ao momento presente a

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perseguir um pensamento, porque estamos nos familiarizando com a estabilidade da mente
e gostando disso. É relaxante e confortável repousar ali, como ficar sozinho no quarto
quando a casa está muito cheia de gente.
O segundo aspecto da atenção plena é recordar. Recordar tem uma qualidade
espontânea, é como não nos esquecermos de nossa própria face. Significa que a atenção é
tão estável que sempre sabemos o que estamos fazendo no momento presente; sempre nos
lembramos de manter a mente sobre a respiração. Se nos flagramos pensando, é porque
esquecemos que estamos meditando. Quando revemos em nossa cabeça o jogo de hockey da
noite anterior, é porque perdemos a atenção. Recordar é como estar apaixonado. Não
importa aonde você vá, a pessoa amada sempre está continuamente presente em sua mente.
Sempre temos consciência de quem é a pessoa amada, de onde ela está e do que pode estar
fazendo.
Ao começarmos a meditação, experimentamos o movimento da mente agitada. Ao
desenvolvermos a atenção, nos familiarizamos com a respiração e nos lembramos de
regressar a ela, e finalmente nos acomodamos nesse estado continuado de não esquecer.
Isso exige prática regular. Antes, a mente estava dispersa. À medida que ela se estabiliza,
aos poucos surgem suas características naturais. Passa a ter mais energia para estar onde se
encontra — isso é a atenção — e saber o que está fazendo — isso é a consciência. A
estabilidade fornece um contínuo que se torna um alicerce para a força.
Vemos essa força no terceiro aspecto da atenção plena, que é a não-distração.
Conforme desenvolvemos a não-distração, colocamos a mente sobre a respiração e ela ali
permanece. Embora seja difícil imaginarmos isso quando começamos a praticar meditação,
se persistirmos, a tendência da mente de voar como um cavalo que dispara porteira afora
desaparecerá. A estabilidade natural e a força da mente brilharão através de qualquer
distração potencial ou pensamento discursivo. Ela vê, ouve, cheira, pensa e sente — mas já
não persegue mais essas percepções descontroladamente. Ela já não fica pulando para lá e
para cá. Com a freqüência mental que já não vibra com o movimento, experimentamos a
qualidade naturalmente equilibrada e inamovível da mente.
No início do adestramento de um cavalo, para fazê-lo virar à esquerda temos de
golpeá-lo com o calcanhar. Mais tarde, tudo o que precisamos fazer é um pequeno
movimento com o dedo e o cavalo imediatamente faz o que queremos que faça. Estamos
em sintonia um com o outro e há uma sensação de completa harmonia. Cavalgar não nos
deixa exaustos — assim como meditar não vai nos exaurir. Tendo desenvolvido essa

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conexão de afinidade com o cavalo, podemos soltar as rédeas. O cavalo desviará
naturalmente dos galhos; ele andará mais devagar se houver perigo. Com a meditação
estamos desenvolvendo o mesmo tipo de conexão e entendimento com a mente. Uma vez
que tenhamos domado nossa mente, ela permanecerá no momento presente.
Quando tivermos desenvolvido a familiaridade, a recordação e a não-distração,
poderemos dizer que estamos verdadeiramente atentos. Nossa atenção é madura. Temos
cavalo-de-vento — um sentimento elevado de disciplina e prazer. Já não nos distraímos
tanto a ponto de precisarmos nos aferrar à respiração cada vez que a ela regressamos, como
se nossa vida dependesse disso. Podemos ver claramente o que acontece. Essa clareza é
capaz de perceber os fenômenos de maneira muito direta. O que comumente a oculta é a
atividade discursiva de pensamentos e emoções. Quando a tagarelice começa a se dissipar, a
clareza tem uma oportunidade para aparecer.
Nesse ponto, essa qualidade da mente é direta e cheia de vida. Não há pensamentos
em demasia e percebemos com muita clareza o que ocorre em nosso corpo e no espaço à
sua volta. A mente nos parece leve — e, ao mesmo tempo, não está perturbada, porque ela
está estável. Podemos experimentar essa mesma clareza mental em situações comuns —
quando o sol surge depois de uma tempestade, quando rolamos na neve depois de uma
sauna. No Tibete o povo diz que é como tomar um banho de leite. Recentemente,
mergulhei com um escafandro autônomo, e essa experiência foi muito intensa. Meu corpo
parecia leve e flutuante, e a luz solar tinha uma claridade penetrante, que iluminava os
peixes e os corais, através da água cor de turquesa.
A atenção e a consciência nos trazem para dentro de um espaço semelhante, e,
quanto mais tempo ali ficamos, maior ele se torna. Temos a habilidade de entrar na
intimidade de todo o ambiente — nosso estado mental e a qualidade da nossa meditação.
Nossa consciência é tão afiada que, como um xerife do Oeste bravio, ela pode ver
problemas sendo criados antes mesmo que eles surjam no horizonte. Não apenas somos
capazes de nos manter na sela e conservar o cavalo na trilha, também somos capazes de
nos estender panoramicamente. Antes mesmo de um pensamento surgir, podemos impedi-
lo de desestabilizar a atenção plena. É dessa maneira que prolongamos a continuidade do
repouso na paz. Nesse momento podemos dizer: “Estou atento ao cavalo. Estou atento a
minha meditação. Estou atento ao momento presente”.
Fora da almofada, não estamos mais perdidos em devaneios. Estamos atentos ao
alimento que comemos — e ele tem melhor sabor. Estamos atentos aos sons — a música é

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mais bonita. Estamos atentos às pessoas ao nosso redor — nós as apreciamos mais.
Sentimo-nos mais vivos e entusiasmados em relação à vida, porque há menos
amortecimento entre nós mesmos e o que está acontecendo. Nossa mente é uma aliada
poderosa que nos ajuda a nos concentrar naquilo que precisa ser feito: estudar, praticar
esportes, cozinhar. Tudo o que fazemos parece mais simples, direto e claro.
Atenção plena significa estar completamente sintonizado, algo como o velho jargão
espiritual de “ser um com” algo. (Ainda que, em termos budistas, não exista um “um” para
ser “com”.) Na verdadeira atenção plena, não existe separação entre aqui e ali. Há um
longo caminho a percorrer desde o início da prática, mas certamente podemos aspirar
alcançar um ponto em que possamos dizer: “Eu sou a respiração”, em oposição a “Eu
conheço a respiração”. A sensação de separação entre a mente e a respiração começa a
dissolver-se. Nesse estágio, não há nada a que nos agarrarmos; transcendemos todos os
pontos de referência. A mente dualista está se dissolvendo. Experimentamos a unidade
com a respiração. Quanto menos dualidade experimentamos, menos sofremos. Por fim,
nossa mente dualista esgota-se a si mesma. Não necessitamos mais de um objeto de
meditação. A qualidade natural da meditação relaxa na liberdade e na paz ilimitadas e
desimpedidas. A luta dualista terminou. Isso é a paz.
Antes de atingirmos esse ponto de unidade com o espaço, a mente tem de ser forte,
estável e clara. Por isso é que meditamos. De um modo geral, a mente sempre está fora ou
dentro de si própria — “dentro” no sentido em que ela é obcecada consigo mesma, e
“fora” porque ela está sempre de partida. Todavia, com o desenvolvimento da atenção
plena e da consciência, a mente retrocede sobre si mesma de uma maneira positiva: ao
apaziguar-se, ela se torna uma aliada. Estamos completamente sintonizados e
harmonizados com ela e é uma alegria e um alívio sermos nós mesmos.

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6.

Como recolher uma mente dispersa

A mente aturdida passa a maior parte do tempo correndo de distração em distração,


de um som a algo que vemos ou cujo odor sentimos, de sentimentos a desejos, e em
seguida a desilusões. É um estado de flerte constante. Em um dia qualquer, a consciência
fragmentada se espalha em todas as direções. No entanto, quando um trovão ressoa no
céu, de repente ficamos intensamente concentrados. Por um instante, a mente dispersa se
recolhe como um todo e se coloca inteiramente no som. Por uma fração de segundo
meditamos totalmente sobre o trovão.
Praticamos o repouso na paz a fim de cultivar esse tipo de atenção unipontual. Isso
nos dá o potencial de um acesso mais direto, mais enfocado, ao que quer que façamos.
Preparamo-nos para praticar com a finalidade de atrair a energia dispersa da mente do
cavalo selvagem. Trazemos a mente de volta à atenção. Com a atenção plena e a
consciência, afastamos com gentileza e precisão a mente das fantasias, tagarelices e
murmúrios sutis, e a colocamos inteiramente aqui e agora, sobre a respiração. Fazemos isso
porque a mente dispersa nos seduz o tempo todo para longe da estabilidade, da clareza e da
força. Assim, nós nos centramos na mente e a colocamos sobre a respiração. Nós a
reunimos para nos ancorarmos num sentimento saudável de individualidade ⎯ inteira,
equilibrada, confiante e flexível.
O recolhimento da mente é um processo gradual. Podemos imaginar as atividades da
mente como círculos de luz que irradiam para fora. Repousar na paz é como tomar a luz
dispersa e recolhê-la para dentro de nós mesmos. Quanto mais a recolhermos e
concentrarmos, mais brilhante ficará.

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52
O circulo mais externo representa a vida cotidiana. À medida que nos deslocamos
para o centro, lidamos com diferentes níveis de pensamento ⎯ do mais grosseiro ao mais
sutil. A luz fica cada vez mais concentrada. O ponto no meio do círculo representa a
fortaleza e a claridade que são subjacentes ao aturdimento da mente dispersa.
No início da prática do shamatha, nós nos recolhemos para o círculo mais externo ⎯
que diz respeito ao que somos no mundo. Às vezes, quando instruo crianças, digo: “Sente
aí e pense em quem você é. Pense naquilo de que você gosta e naquilo de que não gosta.
Pense o que é ser mesquinho e o que é ser generoso”. Deveríamos fazer esse mesmo tipo
de contemplação, antes de colocarmos a mente na respiração. Talvez nunca tenhamos nos
dado tempo para nos ver tão claramente. Fazer da mente uma aliada exige, em cada nível,
que tenhamos autoconsciência. Então, depois de sentar e antes de iniciar a aplicação da
técnica, devemos diminuir o nível de atividade e refletir sobre nossa presença no mundo.
Precisamos pensar por alguns minutos naquilo de que gostamos e de que não gostamos, no
que nos preocupa e nos lugares em nossa vida em que nos sentimos contentes. É assim que
cultivamos a autoconsciência, até mesmo no círculo mais externo da vida. Termos
paciência e honestidade de ser autoconscientes é o fundamento de um saudável senso do
eu. Incorporamos essa sanidade na postura de meditação: ancorada, equilibrada e relaxada.
É isso que reunimos no círculo exterior do shamatha.
Damos um passo para entrar no círculo seguinte quando iniciamos a aplicação da
técnica, ao acompanhar a respiração e dar-nos conta dos pensamentos à medida que
surgem. Como novatos na meditação, provavelmente nos surpreenderemos com a
quantidade de pensamentos que temos. Quando nos sentamos e repousamos a mente na
respiração, o volume de pensamentos pode ser avassalador. Essa experiência é muito bem
descrita pela linhagem de meditadores como uma queda-d’água. Somos mais afetados pelo
volume da água que se precipita na cachoeira do que pela variedade e complexidade de
nossos pensamentos.
Nesse momento podemos pensar: “Eu não estava tão aturdido antes. A meditação
piorou meu estado de espírito. Era para ela ter me dado paz, libertação e tranqüilidade, mas
agora estou mais raivoso e irritado do que antes”. Ou estamos certos, e a meditação
aumenta a atividade mental ⎯ e todos aqueles praticantes que, ao longo de milhares de
anos, foram algumas das pessoas mais brilhantes que já existiram, estavam errados ⎯, ou
talvez estejamos simplesmente reconhecendo um nível de pensamentos e emoções que
nunca havíamos notado porque nunca nos detivéramos nisso. Ficamos assustados por esse

53
vislumbre de nossa mente selvagem e hiperativa. A meditação nos mostra a natureza da
fera. É por isso que praticar o repouso na paz demanda coragem.
Primeiro, a prática consiste apenas em reconhecer cada pensamento,
individualmente, em meio a toda a pressa da mente. Encontrar a respiração no meio de
uma torrente de pensamentos pode parecer impossível. Sabemos que está lá, em algum
lugar, mas, quando procuramos, nos perdemos, distraídos pela cachoeira. Esse estágio é
verdadeiramente importante e merece ser valorizado. Quando reconhecemos o
aturdimento mental, começamos a desenvolver sinergia com ele. O momento em que
vemos a chuva torrencial de pensamentos é quando começamos a treinar o cavalo.
Podemos encarar isso como uma experiência positiva, mesmo que não sintamos assim.
Não há como meditar sem ter primeiro experimentado o aturdimento da mente.
Então, apenas reconhecemos aqueles pensamentos, e depois novamente os
reconhecemos. Estamos notando o movimento da mente. Tendo-os percebido uma vez,
começamos a reconhecê-los quando passam: “Oh! Um pensamento!”. Devemos ser
rápidos e neutros. Se examinamos o pensamento devagar, deliberadamente ou com a
intenção de julgar, estamos tão-somente acrescentando mais pensamentos ao processo.
Isso não nos ajudará. Aconteceu um pensamento — ele não é bom nem mau. Percebê-lo e
reconhecê-lo traz-nos de volta ao ponto em que nos encontrávamos, sentados em uma
almofada e tentando colocar a mente sobre a respiração. Estamos aprendendo a abrir
caminho através do pensamento discursivo.
Em cada estágio, o shamatha é uma prática de notar como a mente vibra — como ela
cria uma história, cria pressa e solidez — e de aprender como sintonizá-la no momento
presente. Como praticantes iniciantes, temos uma viva consciência dos movimentos da
mente. Perceber um pensamento é ver a mente vibrar. Reconhecer que estávamos
pensando desacelera o movimento. Quando reconhecemos o movimento da mente, nos
damos conta da possibilidade de repousar na paz. Quando a freqüência mental cessa sua
vibração e seu movimento, experimentamos a qualidade serena e estável da mente, ainda
que apenas por um instante.
Ao recolhermos a mente dispersa, começamos a descobrir quem realmente somos
neste preciso momento, apenas por perceber que a rede de pensamentos que solidificamos
como o eu é, na verdade, uma série de vibrações. Contudo, se não aprendemos a ver
através dessa rede, a construção contínua e ilusória de nosso eu se prolongará como objeto
da meditação. Poderíamos ficar enredados nela por toda a vida. Acreditar que os padrões

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de pensamento formam um eu sólido é a fonte de nosso aturdimento e sofrimento. Ver
através desse equívoco simples é o começo do despertar.
A técnica da meditação engendra clareza porque, ao perceber, reconhecer e soltar os
pensamentos, damo-nos conta de que o movimento da mente não é o eu. Não temos de
nos agarrar a ele como se fosse um bote salva-vidas. Ainda estaremos aqui, mesmo se nos
soltarmos. Soltar os pensamentos e voltar à respiração proporciona uma sensação de
espaço e alívio. Nesse momento estamos pisando terra firme, por assim dizer, pois
podemos nos ver separados dos pensamentos e das emoções. Há uma distância entre nós
mesmos e nossos pensamentos.
A meditação permite que relaxemos o controle sobre o eu porque somos capazes de
perceber os pensamentos não como nossa identidade pessoal, e sim como os efeitos da
aceleração da mente. Conseguimos uma perspectiva. Podemos ver os pensamentos que
vêm e vão. Não somos cerceados por eles. De repente, tudo está no lugar certo. Talvez
tenhamos levado a vida inteira — e muitas outras vidas mais, de acordo com os
ensinamentos budistas — identificando-nos com o movimento da mente. Agora a atenção
plena e a consciência nos proporcionam a oportunidade revolucionária de observar aquele
movimento sem sermos arrastados para dentro dele.
Isso me lembra quando escalamos uma rocha. Se a agarramos com muita firmeza, o
antebraço fica preso e não podemos nos mover. Esse momento tem algo de paralisante.
Mas, se mantemos certa distância entre nós e a rocha, relaxando e inclinando-nos para trás,
nossos músculos ficam flexíveis e trabalháveis. Podemos progredir ao longo da rocha ao
mesmo tempo que vemos para onde vamos. Da mesma maneira, ao mantermos um
afastamento entre nós e os pensamentos, a mente torna-se mais flexível e temos maior
clareza sobre nosso rumo na vida.
Uma vez familiarizados com reconhecer os pensamentos e colocar a mente sobre a
respiração, damos um passo a mais em direção ao centro do círculo. Aqui podemos
encontrar a fantasia em sua ampliação máxima. Uma fantasia é um grande pensamento,
com o poder de levar-nos para longe, para muito longe do momento presente. É como
uma história que narramos a nós mesmos, um filme de cinema que passamos, uma novela
que nos arrasta para dentro de si mesma e nos coloca em transe. Ela é tão forte e
absorvente que, às vezes, acreditamos mais na fantasia do que na realidade. Enfeitiçados
por ela, nem mesmo nos lembramos de que estamos meditando.
Tive um estudante que fazia um retiro de três anos em uma cabana. Ao final do

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primeiro ano, fui à sua cabana conversar sobre sua meditação. Ele me contou suas
experiências — várias percepções claras e imagens tinham surgido — e tinha diversas
perguntas para me fazer. Entrou em detalhes pontuais a respeito de algumas de suas idéias.
Parecia querer que eu confirmasse sua experiência. Escutei-o e assegurei-lhe de que tinha
achado interessantes as revelações dele. Sem dizer se estava certo ou errado, encorajei-o a
continuar praticando.
Um ano depois lhe fiz outra visita. Dessa vez estava mais calmo, mais relaxado.
Sobre as experiências que tinha compartilhado comigo antes, ele disse de uma maneira
prosaica: “Oh, deixei tudo aquilo de lado. Percebi que era apenas um enorme pensamento.
Durou cerca de um ano, e nos últimos meses percebi o que realmente era tudo aquilo, e
abri mão. Senti como se uma nuvem tivesse se dissipado”. Ele me pareceu muito mais à
vontade consigo, como se tivesse feito um descoberta corajosa e importante. E tinha: os
pensamentos podem persistir por um longo tempo antes que os reconheçamos, mas, se
continuamos praticando, nós os veremos tais como realmente são.
Se estivermos fantasiando em sair de férias para praticar canoagem no rio Amazonas,
poderemos ver a folhagem e saborear o que vamos comer na próxima refeição, e pode
levar muitíssimo tempo até percebermos o que estamos fazendo com a mente. Quando
começamos a meditar, podemos considerar-nos bem treinados se formos capazes de
simplesmente perceber que estamos fantasiando, mesmo que nos deixemos capturar
durante a maior parte da sessão de meditação. Mais cedo ou mais tarde, vemos como a
fantasia — sobre comida, sexo, vingança, quem disse o que a quem ou o que faremos
quando tivermos concluído a prática — tem o poder de assumir o controle de nossa mente.
Começamos a entender como a fantasia pode nos manter continuamente afastados do
momento presente, como ela nos rouba a capacidade de nos concentrarmos, de progredir
no treinamento. Ao fim da sessão, podemos nos perguntar: “Quanto tempo eu estava
verdadeiramente aqui? Visitei quantos países e quantas pessoas?”. Grande parte da sessão
terá sido ocupada com pensamentos delirantes e muito intrincados. Usamos a técnica de
manter a mente presa à respiração para ajudar a nos aquietar o suficiente para podermos
lidar com esses pensamentos delirantes. É aprendendo a reconhecer a fantasia e a nos
soltar dela que desenvolvemos alguma força.
A instrução para trabalhar uma fantasia é exatamente igual à instrução para lidar com
qualquer outro pensamento. Tão logo notamos esse tipo de distração, nós o reconhecemos
como: “Pensando”, e damos-lhe um beijo de despedida. Temos de despedir-nos daquele

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poderosíssimo pensamento, que pode ter em si tudo o que contivemos, a raiva, a energia
sexual ou nossa insegurança. Ainda assim, nós o reconhecemos e, se pudermos, voltamos à
respiração.
Às vezes, esperar tamanha precisão é simplesmente demais para nós mesmos. Manter
a mente excessivamente tensa pode ser prejudicial. Quando o controle é muito cerrado, a
mente escapa correndo, na primeira oportunidade. A fantasia nos transporta para tão longe
— para o Taiti, em férias românticas, ou para outro estado, para brigar com nossa mãe —
que não temos sequer consciência do corpo, quanto mais da respiração. Abandonar de uma
vez um pensamento enorme, substituindo-o pelo imediato da respiração, pode ser duro
demais. Ao trabalharmos pensamentos maiores, uma abordagem mais delicada é ampliar o
objeto da meditação. Podemos mudar o tamanho da pastagem à disposição do cavalo.
Uma maneira de lidar com grandes pensamentos é simplesmente regressar para a sala
na qual estamos sentados, meditando. Tentar permanecer presente na sala e deixar que o
ambiente nos conecte com a terra até que voltemos a sentir-nos em nosso próprio corpo.
Então nos conectamos outra vez com a respiração. Se surgirem pensamentos pequenos,
podemos avaliá-los: “Antes, pensava em estar no Pólo Norte. Agora, pergunto-me o que
vai ter para o jantar. Isso é um progresso”. Sim, é: pelo menos estamos aqui. Se tivermos
vários pensamentos menores, isso não é problema. Pelo menos estamos, de certa forma, aqui.
Voltar por etapas, colocando-nos gradualmente em contato com a respiração, é um dos
meios mais eficazes de trabalhar as fantasias.
As fantasias desempenham um importante papel coadjuvante em manter a
abordagem “tenha um dia agradável”. Elas se alimentam da esperança e do medo, e estes
criam a preocupação. Não precisamos passar o tempo em que meditamos nos
preocupando. A preocupação e a ansiedade conduzem ao estresse, e o estresse causa
sofrimento. O sofrimento criado pela esperança e pelo medo rotineiramente cobre de
nuvens nossa percepção do que está ocorrendo no momento presente. Estamos ocupados
explorando ao máximo cada detalhe sobre os melhores e os piores cenários, em vez de
repousarmos, relaxando onde estamos. Nossa fantasia raiz é que “eu” sou real e que há
uma maneira para fazer-“me” feliz. A razão pela qual meditamos é deixar que essa fantasia
se desenrede. Depois de certo tempo, notamos que muito do que considerávamos real e
permanente a respeito de nós mesmos não é tão sólido assim — é um encadeado de
pensamentos que mantemos juntos com um esforço tremendo. Construímos uma
identidade a partir de uma fina teia de conceitos. Isso pode ser tão simples quanto pensar

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que seremos felizes se conseguirmos apenas o que desejamos.
Ao nos aventurar para dentro do círculo seguinte do shamatha, encontramos emoções
fortes. Mesmo no estado mais tranqüilo e de mente mais aberta, é difícil trabalhar as
emoções. Por isso, primeiro desaceleramos, respiramos e estabilizamos a mente. Então
podemos ter duas abordagens. A primeira depende de nossa habilidade em aderir à técnica.
Quando desenvolvemos a prática e somos capazes de simplesmente respirar e abrir mão de
uma grande emoção, é isso que deveríamos fazer. Ao confiar na nossa mente estável,
podemos deixar que a força da meditação nos traga de volta à respiração, o que nos dá
espaço. Então a emoção começa a afrouxar sua empunhadura.
A outra abordagem é dissolver a emoção mediante sua contemplação. A dissolução
baseia-se em sabermos que, não importa quão sólida nos pareça ser, a emoção é fabricada.
Tudo no mundo é feito de partes, e não é diferente com a emoção. O aspecto mais penoso
e poderoso das emoções negativas é que elas parecem completas e inteiras. Um
pensamento aumenta em um crescendo que se chama emoção, à qual então damos corpo.
O ódio, o desejo ou o ciúme nos parecem tão sólidos que realmente os sentimos em nosso
corpo, como uma bola apertada na garganta, uma onda crescente de calor, uma dor no
coração. Quando nos deixamos tomar pela negatividade, é difícil imaginar que a possamos
penetrar, romper sua casca. Se somos pegos pelo ódio, por exemplo, ele nos possui
completamente — corpo, fala e mente. Mesmo que não reajamos, gritando com alguém ou
batendo a porta, deixamos que ele queime em nossa mente como um fogo incontrolável,
atiçando-o com pensamentos de agressão e com a vontade de causar dano.
Digamos que estamos em uma viagem de avião. Num certo momento o comissário
de bordo serve comida e bebida; em seguida, o avião passa por uma repentina zona de
turbulência. Em um instante sentíamo-nos seguros; no seguinte, tudo o que existe é o
medo. Mesmo que o piloto logo recupere o controle da aeronave, levamos muito tempo
para readquirir o controle da mente. Mesmo quando já estamos em segurança, no solo, o
medo é tão denso que ficamos nervosos ao pensar em voar de novo.
Especialmente quando desenvolvemos estabilidade e equilíbrio, começamos a
perceber como a mente é formada de várias emoções.
Mesmo emoções que nos pareçam tão grandes quanto uma casa podem ser
desmanchadas tijolo por tijolo. Ao fazer isso, usamos a emoção como o objeto da
meditação. A emoção é uma resposta a algo ou a alguém. Em nenhum sentido ela é
premeditada ou lógica. Para dissolvê-la, nós nos empenhamos no elemento que falta: a

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razão. Começamos por investigar a emoção: “Por que estou com ciúmes/inveja? O que faz
com que me sinta assim?”. Por um momento repousamos a mente nessas perguntas, e não
na respiração. Quanto mais razão temos, mais eficaz será nossa capacidade de realizar o
desmanche. Ao contemplar as razões para que as emoções negativas tenham se aglutinado
— e como elas criaram dor, sofrimento e ansiedade —, podemos começar a desmanchá-
las. Com a razão vemos a fonte da emoção: o que alguém nos disse, o desapontamento
diante de uma expectativa que tínhamos.
Talvez o motivo não seja uma pessoa, e sim um objeto — uma cadeira, um carro,
uma peça de vestuário ou um alimento podem estar por trás do desejo, ódio, ou
ciúme/inveja. Quando contemplamos a emoção, começamos a ver que a pessoa ou objeto
não é o motivo daquilo que sentimos. Nós somos o motivo. A emoção é uma criação de
nossa mente. Transformamos um pensamento em uma entidade aparentemente sólida e
aferramo-nos a ela.
Em todas as situações emocionais existe um sujeito, um objeto e uma ação. Por
exemplo, andar de carro na Índia é uma experiência frustrante. As estradas são largas o
suficiente apenas para um automóvel, e elas são cheias de buracos que causam solavancos.
Quando estamos presos atrás de um caminhão lento que vomita fumaça de diesel —
parece que todos eles fazem isso —, temos todas as razões para querer ultrapassar, mas isso
raramente é possível. Ficamos obcecados com a estrada, o caminhão e nossa vontade, e
depois de um tempo tudo o que podemos pensar é quanto estamos com raiva. Quando
finalmente passamos, vemos que o motorista é apenas um pobre homem tentando lutar
para ganhar a vida. Nossa raiva diminui imediatamente.
Nessa situação, o sujeito é o eu, o objeto é o caminhão e a ação é ter ficado atrás
dele. A dor da situação é também o objeto. Estamos com raiva do caminhão por estar onde
está e de nós mesmos por estarmos onde estamos. Também estamos com raiva por termos
ficado presos no tráfego, e estamos com raiva por estarmos raivosos. Esses são os
componentes dessa emoção.
Enquanto pensamos sobre esses componentes, a raiva se desfaz. O pensamento nos
arrasta para mais perto da raiva, o que é importante, pois nos mantermos afastados da
emoção tem o efeito de solidificá-la. Ao contemplá-la, começamos a diminuir seu poder de
nos manter cativos, o que em si cria um espaço. A frieza da razão — observar a emoção,
perguntar de onde ela veio, procurar a fonte, investigar o objeto — dissipa o calor da
emoção. Começamos a nos indagar por que investimos tanta energia nesse sentimento que

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criamos com nossa própria mente. O resultado final é que tudo começa a fazer sentido e
tudo se desmancha. Lentamente recuperamos a perspectiva, a calma, a compostura e a
dignidade. Vemos que não existe raiva, nem desejo, nem apego. Nossa mente sente-se mais
leve, e podemos uma vez mais colocá-la sobre a respiração.
Às vezes, nem abrir mão nem dissolver funciona. Estamos traumatizados demais
para usar a inteligência e a lógica ou para reconhecer e soltar. Estamos totalmente
possuídos, e contemplar a emoção apenas a inflama mais ainda. Estamos excessivamente
próximos da ação. É muito cedo para investigar a cena do acidente. Nesse caso, precisamos
nos acalmar e relaxar. O melhor a fazer talvez seja nos envolvermos em alguma atividade
que nos tranqüilize: sair para uma caminhada, tomar um banho, ler um livro, falar com um
amigo, ir ao cinema. Quando estivermos mais calmos, poderemos voltar à almofada. Saber
quando podemos meditar é sinal de que uma meditação é honesta.
No próximo círculo de shamatha, encontramos os pensamentos discursivos ou o
desassossego. Esses pensamentos distraem, mas não são tão poderosos e destrutivos como
as fantasias ou as emoções fortes. Os pensamentos discursivos são as tagarelices que
atravancam constantemente a mente, seu rotineiro zunido. Este é formado por
pensamentos casuais, não associados, e não por enredos completamente delineados.
Embora sejam mais permeáveis do que a fantasia e as emoções fortes, esses pensamentos
discursivos comuns são peritos em manter-nos aprisionados no eu. É como um zumbido
de baixo nível que obscurece a clareza natural. Enquanto meditamos, a mente pode saltar
para trás e para a frente, a respeito do que está acontecendo na escola ou no trabalho, de
conversas que tivemos — ou que gostaríamos de ter tido —, de planos para o resto do dia,
e, basicamente, ainda podemos continuar conscientes de que estamos meditando. Vez ou
outra, emergimos dessas excursões ao passado e ao futuro, voltamos à respiração, mas,
então, o movimento da mente nos convida outra vez a divagar.
Com os pensamentos discursivos, é como se passássemos os olhos ao mudar de um
canal de TV para outro: um filme antigo aqui, esportes lá, uma novela mais adiante e agora
o noticiário. Podemos experimentar isso como o desejo inoportuno de coçar o nariz, ou
nos perguntando quantos minutos ainda faltam até terminar a sessão. Os pensamentos
discursivos têm uma qualidade de alta vibração, com um efeito singularmente
entorpecedor. Ao fim de vinte minutos de meditação, isso pode nos fazer pensar: “O que
foi isso?”.

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Enquanto permanecemos concentrados na respiração, podemos deixar que esses
pensamentos surjam e se desmanchem. Pensamentos sutis dissolvem-se naturalmente.
Ceder a esses movimentos dando-lhes alguma atenção, sob qualquer circunstância, tende a
fortalecê-los e a criar verdadeiros distúrbios em nossa mente. É claro que em algum
momento teremos de lidar com eles. Mas, nos estágios iniciais do shamatha, desenvolvemos
outro tipo de força, ao relaxarmos na respiração. Isso permite que se desenvolva uma
quietude natural da mente. Colocar continuamente a mente sobre a respiração diminui o
movimento dos pensamentos, o que acalma a mente ainda mais. Experimentar a
estabilidade e a alegria da mente torna-se muito mais atrativo do que ouvir nossa tagarelice
mental. Vemos que a experiência de repousar na paz é simplesmente uma redução dos
pensamentos. No centro dos círculos, encontramos a mente que repousa na bondade
fundamental.

61
7.

As virtudes do tédio

Na comunidade de Shambhala, temos um programa de um mês em que os


participantes praticam o repouso na paz o dia todo, com intervalos de meditação
caminhando e de ioga de Shambhala. Eles fazem suas refeições no estilo monástico japonês
chamado oryoki. Isso supõe ficar em silêncio e meditar cerca de doze horas por dia. Muitas
coisas engraçadas e interessantes acontecem no decorrer de um mês, tanto dentro da mente
como na comunidade — tudo, desde fantasias a respeito da pessoa sentada do outro lado
da sala até nervosos ataques de riso no salão de meditação. Essas ondas de energia são
reflexos da luta que as pessoas travam com o tédio.
O medo do tédio freqüentemente impede as pessoas de meditar. Ouço isto o tempo
todo: “O senhor quer dizer que eu deveria simplesmente me sentar aqui sem fazer nada?
Ficarei mortalmente entediado!”. Estamos com medo de que não haja nada para nos
entreter, nada para manter nosso interesse. Na meditação, nós nos isolamos. Primeiro
isolamos o corpo em um lugar tranqüilo, com o mínimo possível de estímulos externos.
Nós o colocamos sobre uma almofada em uma postura muito simples. Então, isolamos a
mente. Nós a colocamos sobre a respiração e praticamos mantê-la lá. Por fim, reduzimos a
quantidade de pensamentos. Se formos capazes de desacelerar e de repousar em nosso
espaço interno, começaremos a apreciar a falta de estímulo na meditação, bem diferente do
caos da vida comum. Mas às vezes ficaremos entediados, por não desejarmos estar onde
estamos.
Às vezes, o tédio ajuda-nos a desfrutar da simplicidade da meditação. Em outras
ocasiões, o tédio é uma ameaça à prática, uma terra de ninguém em que somos incapazes
de experimentar com plenitude o repouso na paz. Estar entediado pode até mesmo levar-
nos a nos afastar da almofada.
Há vários tipos de tédio. Um deles é marcado por uma corrente subjacente de
ansiedade. Não estamos inteiramente confortáveis conosco. Quando nos sentamos para
meditar, deixamos de repente de ter diversões externas. Nossos sentidos estão habituados à
velocidade e ao estímulo. Sem sermos estimulados, não encontramos como nos satisfazer.
Sentimos uma agitação enlouquecida, como uma criança que não tem nada para fazer. A
agitação tenta encontrar algo que preencha o espaço. Se estivéssemos na sala de espera do

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aeroporto ou do consultório médico, estenderíamos a mão para pegar uma revista, o
telefone celular ou um jogo de computador. Mas, na meditação, não há nada para pegar.
Tentamos lidar com isso criando nosso próprio entretenimento. Em vez de acompanhar a
respiração, divertimo-nos com um pequeno som ou com o movimento de um inseto.
Observar outras pessoas meditando à nossa frente pode parecer tão interessante quanto um
filme inteiro de longa-metragem.
Outro tipo de tédio origina-se do medo. Temos medo de ficar a sós com nós
mesmos porque não somos capazes de relaxar com nossa mente. É como sentar-se perto
de um conhecido, durante um jantar, depois de ouvir que sua mulher o deixou há pouco e
que ninguém deveria saber disso. Sentimo-nos inadequados e desconfortáveis. Somos
cautelosos ao começar uma conversa, pois temos medo de onde ela pode nos levar. Da
mesma maneira, ficamos amedrontados na meditação porque não estamos acostumados a
ficar sem nenhuma atividade. É quieto demais. Temos dúvida se queremos saber o que vai
acontecer se nos soltarmos totalmente no espaço. Queremos manter nossa zona de
conforto. Não somos capazes de ir mais fundo com nós próprios, e não há nada mais a
fazer. O resultado é o tédio medroso. Esse medo vem de não sermos capazes de imaginar a
mente em paz.
Esses dois tipos de tédio têm uma leve qualidade agressiva que nos impede de
praticar corretamente. Queremos que as coisas sejam diferentes do que são. Ficamos lá,
meditando, esperando que algo aconteça ou não aconteça, e sentimo-nos zangados e
frustrados por causa dessa nossa situação difícil. Podemos adotar outra abordagem,
observando o tédio e soltando-nos para experimentá-lo completamente. Essa é uma boa
maneira de medir nosso progresso. Ver até onde chegamos: no começo, não podíamos nos
sentar quietos, não gostávamos de nossa cachoeira de pensamentos, e mal podíamos lutar
contra a compulsão constante de nos levantar e fazer outra coisa. Pensávamos em lavar a
louça, em fazer listas do que era preciso no trabalho, em retornar ligações telefônicas. A
mente era tão acelerada que o corpo queria sair da almofada para aliviar a pressão. Agora as
coisas se movem um pouco mais devagar, e os impulsos para nos movermos não parecem
tão fortes. Defrontamo-nos com a qualidade enfadonha da meditação e ela faz com que
desejemos desistir. Se não nos rendermos a esse impulso, começaremos a colher os
benefícios do tédio.
Começamos a fazer isso quando assumimos nossso lugar junto ao tédio. Estamos
presos à almofada, onde nada acontecerá, e sabemos disso, então simplesmente

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começamos a nos acomodar. Podemos mergulhar dentro de nós mesmos e ficar com os
olhos um tanto embaçados. O mundo nos parece distante e nebuloso. Talvez não
tenhamos abraçado bem a prática, mas somos capazes de relaxar o suficiente para
experimentar essa falta de vigor sem nos aferrarmos a um divertimento ou repelir o espaço.
Começamos a aceitar o tédio como parte da paisagem do permanecer na paz. Isso é um
progresso.
Com o que estamos entediados quando meditamos? Não é com o repouso na paz.
Embora a meditação possa ser o gatilho para isso, o que na verdade nos aborrece são
nossos padrões repetitivos de pensamento. Mesmo que já tenham se tornado repetitivos e
transparentes para nós, de algum modo eles ainda continuam a surgir. Vemos agora como
somos fisgados ao perseguir fantasias e planos que têm tanta substância quanto os sonhos
da noite passada. Descobrimos que o pensamento: “O que vai ter para o almoço?”, nunca
terá um gosto parecido com o da comida. Percebemos que filosofar acerca da prática não
pode se comparar com estar ancorado no momento presente. Depois de um tempo, o
tédio assume uma qualidade amadurecida. Não é mais carente; é espaçoso, confortável e
tranqüilizador. Meu pai chamava isso de “tédio refrescante”. Isso é um avanço.
Descobrimos que a meditação não preencherá nossa necessidade de entretenimento nem
fortalecerá nossa zona de conforto. Para fazer essa descoberta, precisamos estar
completamente entediados.
Sentir-se inteiramente entediado com sua mente selvagem e continuar a aplicar a
técnica representa o momento em que a pessoa se compromete pessoalmente com a prática
do repouso na paz. Percebemos as peças que pregamos em nós mesmos com pensamentos,
emoções e conceitos. Tudo isso nos entedia — a necessidade de entretenimento, o medo
de nossa própria solidão, qualquer desejo que tenhamos de obter algo com a meditação.
Esse tédio não constitui problema. Ele nos inspira porque já não nos sentimos presos à
almofada; percebemos como a mente funciona e sentimo-nos entusiasmados para
desenvolver um pacto com ela. Podemos relaxar. Ver com clareza o processo mental é o
que fortalece nosso compromisso com a prática. Certa alegria se desenvolve, porque não
resistimos mais a nenhuma parte da paisagem.
Lembro-me de uma vez em que participei de um ritual com Sua Santidade Dilgo
Khyentse Rinpoche, que durou várias semanas. Estávamos sentados em um salão de
meditação muito quente, ouvindo-o ler um texto cerca de onze horas por dia. Era uma
cerimônia importante, chamada de “transmissão oral”. Sentávamos nos colchonetes com as

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pernas cruzadas enquanto tomos e tomos de um texto eram lidos em voz alta, em tibetano,
em uma cadência tão rápida que era quase impossível acompanhar. As pessoas se moviam
irrequietas e alguns monges mais jovens, no fundo da sala, começaram a se engajar em
guerras de arroz, que jogavam uns nos outros. Não sabíamos quanto tempo levaria para
que todos aqueles textos fossem lidos, mas, ao fim de cada dia, esperávamos que o seguinte
fosse o último.
Ao longo de quase duas semanas, vimos a pilha de textos diminuir gradualmente, até
que enfim restava apenas um volume. Estávamos certos de que haveria somente mais um
dia de transmissão oral, e estávamos estáticos. O tempo estava insuportavelmente quente e
úmido, e não tínhamos tido um dia de folga para descansar ou fazer compras ou até
mesmo para lavar nossas roupas. Estávamos todos tão exaustos ao final de cada dia que
apenas nos deixávamos cair na cama.
No último dia, aguardávamos o aviso do encerramento. No entanto, uma surpresa
estava reservada para nós. O Rinpoche nos disse que éramos muito afortunados, pois os
volumes finais, que estavam faltando, tinham sido encontrados. As cerimônias e as leituras
prosseguiram por uma semana, mais ou menos, e nada mais nos restou senão relaxar e
desfrutar do fato de lá estarmos.
Às vezes, simplesmente não podemos nos acomodar. Se o tédio nos atinge a ponto
de querermos evitar a meditação, é preciso fazer algo que se contraponha a esse padrão.
Podemos começar a fazer experiências com a prática. Podemos voltar-nos para diferentes
aspectos da prática em ocasiões diferentes. Um dia podemos destacar a consciência da
postura. Acompanhamos a respiração e reconhecemos os pensamentos, mas prestamos
especial atenção ao corpo. Outro dia podemos nos familiarizar com o processo da
respiração. Na sessão seguinte podemos aguçar a habilidade de detectar pensamentos ou de
interromper uma cadeia de pensamentos discursivos que nos leva de férias para o Himalaia.
Então podemos nos concentrar no processo de reconhecer — localizando o segmento
final de um pensamento, por exemplo. Quando realçamos diferentes componentes da
técnica, fortalecemos a atenção plena e a consciência. É claro que outro aspecto dessa
mobilidade na prática é saber quando regressar às instruções simples e colocar um foco
preciso sobre a respiração.
Para todos existem dias em que praticar é difícil e enfadonho. Pode ajudar estarmos
conscientes de nosso estado mental antes de nos sentarmos. Por exemplo, quando
começamos uma sessão de meditação e percebemos que estamos totalmente distraídos,

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podemos tentar sentar na almofada e deixar-nos levar pelos pensamentos. Podemos pensar
sobre qualquer dificuldade que estejamos enfrentando e permitir que os pensamentos e as
fantasias se desenvolvam até se exaurirem. Mas fazemos isso conscientemente. Então,
passados dez minutos de pensamentos, colocamos a mente na respiração.
Às vezes, raciocínios e antídotos parecem não surtir efeito. Durante esses períodos,
precisamos cavar mais fundo a fim de encontrar a força para continuar, ou examinar nossa
vida para ver se a aflição ou a veemência que sentimos durante a meditação provêm de
dificuldades em outras áreas. Shamatha não é um teste de resistência física, nem resolverá
subitamente todos nossos problemas. Mas ajuda-nos a ver como estes surgem, porque nos
treina a reconhecer pensamentos e emoções. Também nos treina a deixá-los passar sem
agir sobre eles.
Mesmo quando estamos entediados, podemos trabalhar a mente. Isso nos ajuda a
conseguir viver o cotidiano. Já que a prática ampliou nossa perspectiva para além da
identificação com pensamentos e opiniões, é menos provável que nossas iniciativas se
originem em um espaço estreito e protegido. Temos mais paciência e tolerância. Somos
mais capazes de nos colocar na situação de outra pessoa. Dessa maneira, a meditação nos
amadurece.

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8. A preguiça

Cerca de vinte anos atrás, meu pai e eu visitamos o mestre de linhagem samurai
Shibata Sensei, meu professor da arte japonesa do arco-e-flecha (kyudo). Shibata Sensei é o
artesão imperial de arcos dos imperadores do Japão. Suas responsabilidades incluem a
execução de uma cerimônia ritualizada num santuário em que sua família realiza oferendas
há muitas gerações. No ano em que eu o visitava, o filho do Sensei, herdeiro da linhagem
da família, iria disparar a seta cerimonial diante do santuário. Mas ele tinha feito um corte
profundo no dedo enquanto fazia um arco, justamente às vésperas da cerimônia, e estava
incapacitado de disparar a flecha.
Por volta das cinco horas da manhã, no dia da cerimônia, fui acordado e disseram-me
que deveria tomar parte na cerimônia como representante da linhagem budista de
Shambhala e da família do Sensei. Pensei que estivessem brincando. Embora já praticasse
arco-e-flecha havia muitos anos, não tinha idéia de como desempenhar a elaborada
coreografia de reverências e gestos dessa cerimônia em particular.
Quando me aprontei, o Sensei já tinha se encaminhado para o santuário. Não podia
acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Seria o primeiro não Shibata a fazer um
oferecimento naquele santuário, e não tinha idéia do que fazia. Quando cheguei, as pessoas
começaram a vestir-me com os trajes oficiais. Era como ser vestido para uma peça de
teatro sem conhecer as falas de meu personagem. Havia centenas de dignitários,
espectadores e fotógrafos lá fora, esperando que começássemos. Tentei pedir algumas
instruções, mas todos estavam com pressa e ninguém podia me explicar a coisa toda.
Decidi simplesmente fazer o melhor que pudesse.
A cerimônia ia começar, e o Sensei cuidou para que ele fosse meu assistente. Disse-
me que, se eu fizesse algum movimento equivocado, ele estaria lá para sussurrar as
instruções ⎯ mas ele mal sabia inglês. Assim durante toda a cerimônia ele murmurava:
“Para a esquerda, reverência, para a direita, reverência... mova o leque, reverência” — e
disparei a flecha ritual. Afinal, tudo saiu bem e não pude acreditar que tivesse feito aquilo.
Sensei estava tão feliz que depois me levou para almoçar em seu restaurante de talharim
favorito.
O benefício de ter sido colocado na berlinda dessa forma foi que isso me levou além
dos limites do que supunha poder fazer. Necessitamos da mesma espécie de desafio na

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nossa prática, porque nosso estado natural encontra-se além do alcance daquilo que
sabemos conceitualmente. A razão efetiva de trabalharmos tão arduamente para recolher a
mente é a possibilidade de relaxarmos. Quando soltamos a rede de crenças e conceitos que
mantém sólida nossa sensação de um eu, estamos amainando o terreno da bondade
fundamental a fim de que o amor e a compaixão possam eclodir. Se meditarmos por tempo
bastante, descobriremos que não faltam obstáculos a esse processo.
Os obstáculos são padrões habituais que conservam a mente pequena, fixa e sólida.
Se queremos que a mente seja terna e flexível, precisamos saber como trabalhá-la. Existem
obstáculos externos, como a preguiça — a preguiça comum, o desânimo e a hiperatividade
acelerada. Estes têm poder suficiente para nos impedir de chegar à almofada. Depois, desde
que tenhamos conseguido nos sentar, há os obstáculos internos, tais como esquecer as
instruções, a euforia e a lassidão.
Assim como quando carpimos um jardim, lidar com os obstáculos é um aspecto
continuado na meditação. Trabalhar esses desafios na almofada é uma outra maneira de
aumentar a confiança e a coragem para seguir adiante. Podemos ser gratos por ter
obstáculos, porque eles nos empurram para a frente na nossa prática. Depois de certo
tempo, é possível inclusive sentir uma centelha de prazer quando surge um obstáculo, pois
sabemos que esta é uma oportunidade para continuarmos a aguçar a mente. Quanto mais
obstáculos enfrentamos, mais confiança temos para lidar com eles.
Um dos obstáculos mais desafiadores para um meditador iniciante é a preguiça. A
preguiça pode ser um obstáculo antes mesmo de chegarmos ao lugar de nossa almofada,
porque pode nos impedir de ir até ela. A palavra tibetana para preguiça é lelo, que se
pronuncia como o inglês lay low.1 Em qualquer cultura, preguiça implica “estar deitado, tão
baixo quanto possível”. A preguiça tem uma qualidade de drenar nossas energias, como se
estivéssemos exauridos de nossa força vital. Às vezes é difícil percebê-la, porque é assim
mesmo que nos sentimos. Ela se intromete no mais íntimo de nosso ser. Manifesta-se
como que submissa ao nosso conforto. Talvez tenhamos dormido mais do que o
suficiente, mas nos sentimos completamente sem inspiração. Preferimos ficar estirados no
sofá vendo televisão ou lendo uma revista no chão até adormecer.
Tenho um amigo que é especialmente suscetível aos ataques desse tipo de preguiça.
Por exemplo, um dia em que descansávamos juntos, ele decidiu deitar-se no sofá. Serviu-se
de uma bebida, colocou-a sobre uma mesinha e recostou-se no sofá. Depois de ficar
deitado ali por alguns minutos, deu-se conta de que havia colocado o copo na outra

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extremidade da mesa, fora de seu alcance. Em vez de voltar a sentar-se para pegar o copo,
encontrou um cabide que estava enfiado entre as almofadas e com ele fisgou o pé da mesa
com a intenção de arrastá-la para mais perto. Como era possível prever, o copo caiu da
mesa. Muitas vezes gastamos muito mais energia ao sermos preguiçosos do que seria
necessário se enfrentássemos a vida diretamente. É importante que se entenda que, do
ponto de vista da meditação, a preguiça é uma maneira particular de restringir a mente. A
mente retrai-se em si mesma. Nas suas versões mais extremas — quando estamos
verdadeiramente com preguiça —, o mundo inteiro nos parece algo muito distante. Parece
impossível que se possa fazer algo. Nós nos sentimos como uma serpente arrastando-se no
solo. Tudo o mais se encontra no topo das árvores, muito alto e distante. Se alguém nos
diz: “Por que você não faz alguma coisa?”, isso nos incomoda e irrita. Não podemos lidar
com isso. Parecemos um animal enfurnado em sua toca. Não estamos interessados no
mundo exterior. Nossa mente está encapsulada, fechada sobre si mesma.
Quando sentimos preguiça, mesmo que consigamos, de alguma maneira, chegar à
almofada, passamos toda a sessão evitando a técnica básica. Falta-nos até mesmo a energia
para nos sentarmos eretos. Não conseguimos praticar corretamente. Pensamos:
“Simplesmente não quero fazer isto. Não tenho tempo”. Pior ainda: “Não necessito fazer
isto”. Qualquer que seja o comentário que façamos para nós mesmos, na raiz da preguiça
se encontra o apego. Estamos apegados ao conforto das fantasias familiares e aos
pensamentos discursivos; nós os preferimos à qualidade desperta de seguir as instruções
com precisão.
Essa tendência é um obstáculo à prática da meditação. Se não conseguimos percebê-
la, podemos ficar presos à preguiça por muito tempo — até mesmo por anos. Isso é
particularmente traiçoeiro porque nos tranqüilizamos ao acreditar que está tudo bem se
pensamos só um pouco. Se tivermos um pensamento ou fantasia de grande interesse,
normalmente o percebemos e reconhecemos. Mas um dos sintomas da preguiça é que
deixamos passar uma porção de pensamentos de média importância. Cremos que é demais
meditar durante todos os vinte minutos ou meia hora, de maneira que é melhor dedicarmos
quinze minutos para pensar em como nos divertimos na festa da noite anterior ou fazer
planos para a noite de hoje. Pensamos: “Ninguém sabe o que estou fazendo com minha
mente, logo, empregarei o tempo para fazer planos. Depois meditarei por cinco ou dez
minutos para me sentir melhor”. É como ir a um supermercado só para comprar espigas de
milho e batatas fritas e percorrer os corredores à procura de outros produtos. Quando nos

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permitimos gastar o tempo com a tagarelice discursiva, estamos vagando de um lado para
outro, beliscando mentalmente os salgadinhos do aperitivo. Se nos deixamos ficar assim
por muito tempo, toda nossa meditação consistirá, conseqüentemente, numa série de
pensamentos menos importantes que, em sua aparência, não são tão prejudiciais assim.
Quando minha mãe se mudou da Índia para os Estados Unidos, ficou admirada com
a vastidão dos nossos supermercados e fascinada com todos aqueles produtos disponíveis.
O que mais a surpreendeu foram os corredores de comida para animais de estimação.
Ficou um pouco chocada com a atenção dada às necessidades culinárias de gatos e cães e
com a quantidade de dinheiro despendido para satisfazê-las. Na Índia, se um cão recebe
restos de arroz, dá-se por muito afortunado. A maior parte dos cães da Índia passa a vida
inteira catando alimentos.
Se tivermos uma tendência de ficar “catando” em nossa mente durante a meditação,
deveríamos nos dizer, antes de sentar, que não nos deixaremos seduzir por nossos
pensamentos discursivos. Quando nos flagramos fazendo isso, precisamos reconhecer que
o que fazemos é algo diferente da meditação e que isso não beneficia a prática. Temos de
perceber, reconhecer esses pensamentos de importância mediana e abrir mão deles. A
menos que seja um pensamento como: “Sinto cheiro de fumaça. Será que a casa está
pegando fogo?”, deveríamos fazer a mente retornar à respiração. Os pensamentos, as idéias
brilhantes e as decisões a serem tomadas continuarão em seu lugar quando terminarmos de
meditar.
A preguiça também se manifesta como hiperatividade. Quando usamos a aceleração
como meio de evitar trabalhar a mente, isso é preguiça. Como iniciantes em meditação,
estamos entusiasmados e rearranjamos nossas prioridades em torno de nossa prática diária.
No entanto, não contamos com a força do hábito. Conservar-nos ocupados pode ser uma
maneira de evitar meditar. De repente, bem na hora em que resolvemos meditar,
necessitamos dar atenção a pequenas tarefas — aguar as plantas, escovar os dentes,
verificar se temos algum e-mail. Não é só isso, temos de fazer essas coisas agora mesmo.
Isso é a preguiça acelerada — mais conhecida como procrastinação. Essa força pode
tornar-se particularmente coercitiva quando a prática do shamatha nos permite ter um
relance de quanto a mente é de fato aberta e jubilosa. Essa resistência a nossa própria
abertura, que cria histórias que nos mantêm na zona de conforto do eu, é um padrão
habitual muito antigo e bem estabelecido. A procrastinação é uma maneira de escolher ficar
distraído em vez de repousar na paz de nossa mente.

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Outra maneira de procrastinar é aproveitar-se de atividades igualmente meritórias
para evitar meditar. Talvez estejamos ajudando animais, ou outras pessoas. Embora essas
atividades sejam benéficas aos outros, se queremos meditar e as usamos como desculpa
para não fazer isso, devemos examinar a situação mais detidamente e perguntar: “Meu
estilo de vida serve de apoio a minha prática? As atividades a que me dedico são benéficas
do ponto de vista da meditação?”.
Obviamente, a meditação às vezes pode ser difícil. Podemos querer fugir da prática,
da almofada e até mesmo da palavra meditação. Podemos sair correndo para tão longe
quanto possível, mas o que descobriremos é que não há ambiente melhor do que o da
meditação para desenvolver a estabilidade, a clareza e a força da mente. Ao mesmo tempo,
não desaparecerá a dificuldade de chegarmos até a almofada, de mantermos nossa ligação
com a técnica, de abandonarmos os pensamentos discursivos. A procrastinação leva-nos a
evitar a única coisa que verdadeiramente poderá fazer a diferença em nossa vida. A
meditação nos estabiliza em nosso poder inerente como seres humanos. Apresenta a
possibilidade de viver a vida em um estado mental sempre consciente, confiante e
equilibrado.
Outro tipo de preguiça é o desânimo. Sentimo-nos desencorajados, sem energia, ou
vencidos pelos obstáculos que surgem em nossa prática. Nós os levamos a sério. Nossa
convicção na solidez dos obstáculos cresce na mesma proporção em que desacreditamos na
nossa capacidade de praticar. Pensamos: “Como poderei chegar a desenvolver uma prática
regular de meditação?”. E, se já estamos praticando, dizemos: “Como serei capaz de levar
esta sessão de meditação até o fim?”. Antes mesmo de sabermos, sentimo-nos perdidos em
relação à meditação.
Quando meu pai faleceu, em 1987, Sua Santidade Dilgo Khyentse Rinpoche dirigiu
os ritos fúnebres tradicionais. Depois, recomendou que construíssemos um estupa de
108 pés de altura2 nas Montanhas Rochosas para celebrar os anos de trabalho de meu pai
ao introduzir o budismo na América do Norte e no ensino da meditação a ocidentais. Um
estupa é uma estrutura sagrada, tradicional, que representa a mente iluminada do Buda. Sua
construção implica a obediência a muitas especificações técnicas intricadas e precisas.
Sentimo-nos um pouco abalados pela complexidade do projeto, o primeiro em sua
magnitude a ser executado na América do Norte. Começamos a construí-lo em 1988,
continuando os trabalhos em todos os verões a partir de então.

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A cada ano tivemos de reunir todo tipo de recursos. Centenas de voluntários
trabalharam manualmente na construção. As pessoas mais próximas do projeto tiveram de
gastar dinheiro de seu próprio bolso, e passaram invernos frios e verões quentes nas
Montanhas Rochosas durante um período de treze anos. De certo modo, aprendemos
como construir um estupa à medida que o construímos. Todos os elementos — o projeto
de engenharia, a construção, as finanças e o trabalho artesanal tradicional — apresentaram
desafios assustadores. O que nos incitou a seguir em frente foi a confiança em que esse
símbolo da iluminação seria de grande benefício a todos. À medida que o estupa tomava
forma, aumentavam nossa energia e nossa confiança. Observar como pouco a pouco se
elevava no espaço fez com que superássemos as dúvidas e a hesitação. No verão de 2001 o
estupa tinha sido completado, e realizamos uma linda cerimônia de consagração a que
milhares de pessoas assistiram. Tínhamos nos defrontado com todo tipo de obstáculo, mas
nossa inspiração foi o antídoto para todos eles.
Os ensinamentos sobre os obstáculos e os antídotos vêm de uma linhagem muito
extensa de meditadores da Índia e do Tibete. Somos afortunados por eles terem
documentado tão bem as dificuldades que enfrentaram em sua prática, pois, embora as
condições em que praticamos sejam bem diferentes das deles, os obstáculos que aparecem
no caminho da meditação nunca mudaram. Afortunadamente, os antídotos passaram pelo
teste do tempo e do espaço.
A preguiça é um sintoma de que perdemos a conexão com a coragem que nos trouxe
inicialmente para a almofada. Não mais entendemos por que estamos meditando. Sentimo-
nos levemente ameaçados por abrirmos mão do conforto dos padrões habituais. A
meditação contraria o fluxo normal dos hábitos que acumulamos por um tempo muito
longo. A maior parte desses hábitos diz respeito à criação perpétua do eu. Estamos
habitualmente vinculados à fabricação de projeções, cenários, opiniões e enredos que
usamos para que a criação do eu se mantenha coesa. A meditação pode fazer-nos sentir
como se estivéssemos nos desintegrando. É possível que hábitos antigos comecem a nos
parecer muito confortantes, porque representam quem nós pensamos ser. Retornamos a
padrões arraigados a fim de fortalecer o conceito autocriado do eu. A finalidade da
meditação é ver através da sensação fabricada do eu à medida que os aspectos iluminados
da mente vão se revelando por si mesmos. Temos de deixar que aquela fabricação se
dissipe a fim de podermos avançar, o que faz com que nos sintamos incomodados.

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O que os meditadores de outrora descobriram é que a chave do sucesso na
meditação reside em conectar-se com uma perspectiva maior. Eles nos sugerem quatro
maneiras por meio das quais podemos nos inspirar — flexibilidade, confiança, aspiração e
esforço.

Flexibilidade
Uma mente preguiçosa é uma mente que se tornou estreita e fixada. A prática da
meditação não se encaixa dentro dos nossos padrões habituais, por isso resistimos a ela.
Uma mente flexível desfruta de muito mais possibilidades exatamente por ser flexível. Não
vê o mundo a partir do sistema fechado do eu; assim, ela não é mais cerceada pelas
restrições de manter sua própria zona de conforto. Em tibetano, a palavra para esse tipo de
mente é shinjang, que significa “treinada a fundo”. Duas qualidades da mente shinjang são a
maleabilidade e o interesse. Essa mente é curiosa. Não sucumbe à preguiça e a outros
obstáculos porque sabe como manter-se aberta. Nisso consiste a meditação, não é?
Queremos desenvolver uma mente aberta, interessada e flexível. Quando temos uma mente
flexível, não surgem obstáculos à meditação.
À medida que nos desenvolvemos na almofada de meditação, nossa mente se torna
mais flexível. Cada vez que reconhecemos uma fantasia ou um pensamento, desligamo-nos
de conceitos e emoções, e assim abrandamos a mente. Seguir a técnica aumenta a
curiosidade e não o embotamento, a apreciação e não o desânimo, a imaginação e não a
estreiteza.
A fim de superar a preguiça, precisamos ter uma mente relativamente aberta desde o
início. Necessitamos ser curiosos, ter um sentimento de apreciação e imaginação.
Precisamos inspirar-nos. Por exemplo, pode ser que não tenhamos vontade de fazer uma
excursão a pé, mas, quando um amigo nos mostra uma fotografia de uma montanha
maravilhosa, sua beleza nos inspira; ela rompe nossa preguiça. Antes, nossa mente estava
fechada — agora ela é trabalhável. Quando saímos daquele estado mental de depressão,
estamos incitando o cavalo-de-vento. Da mesma maneira, podemos superar a preguiça
sendo abertos e imaginativos.

Confiança

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Uma vez que tenhamos escutado os ensinamentos e também experimentado seu
verdadeiro significado — que praticar o shamatha é repousar na paz —, desenvolve-se certa
fé. Essa não é uma fé cega. Ela se fundamenta em nossa própria relação com a meditação.
Temos fé em uma prática da qual nós mesmos tivemos uma experiência pessoal.
Adquirimos confiança a partir da clareza e da convicção. Talvez tenha sido um
momento de clareza que inicialmente nos inspirou a praticar. Vimos uma estátua do Buda,
lemos um livro, ou até mesmo vimos um amigo que meditava, e tivemos um imediato
sentimento de clareza de que era isso o que queríamos fazer. Após termos posto à prova o
shamatha mediante a disciplina e a atenção precisa, temos a convicção de que a técnica
funciona. Temos clareza sobre isso porque nós mesmos o fizemos. Vimos quanto nossa
mente é rígida, descontrolada e tosca. Tivemos momentos de repouso na paz. Vimos que a
mente nem sempre precisa ser um estorvo. Sentimos a abertura de nosso coração por baixo
da dureza dos padrões habituais. Temos de reavaliar e aprofundar constantemente nossa
compreensão da meditação, porque esta muito rapidamente se distorce. Esse processo faz
crescer a confiança. Podemos usar essa confiança para lembrarmos por que devemos
praticar mesmo quando não temos vontade.
A inspiração é um anseio imediato, uma súbita centelha que podemos utilizar para
recarregar nossas baterias. É como imaginar um copo de limonada gelada em um dia
quente de verão. O pensamento do gelo, o gosto marcante, o vidro gelado, mesmo a rodela
de limão na borda, nos impulsionam para fora de nossa cadeira suada no jardim até a
cozinha, em busca de refresco.
Da mesma maneira, podemos usar nosso anseio pelo frescor da mente tranqüila para
nos trazer de volta à almofada, para nos trazer de volta à técnica. Recordamos o lugar
tranqüilo e fresco que é subjacente ao calor opressivo de nosso aturdimento e sofrimento.
Desejamos ardentemente estar lá. Confiamos nos aspectos refrescantes e alegres da
meditação porque ouvimos falar a seu respeito, porque nós os estudamos e os
experimentamos. Esse é o apoio de que necessitamos para nos movermos para além do
desânimo e da procrastinação.

Aspiração
O próximo antídoto é a aspiração. A aspiração é a confiança com determinação.
Estamos determinados a descobrir nosso próprio estado desperto. Aspiramos a ser como o
Buda, como alguém que dominou todo seu ser, alguém que compreendeu a verdade

74
profunda das coisas tais como elas são. Vimos a volatilidade das circunstâncias externas.
Ficamos insatisfeitos em ter a esperança e o medo como base de nossa vida. Agora
aspiramos a depender apenas de nossa própria estabilidade, clareza e força.
Essa determinação é suficientemente forte para superar qualquer resistência. Quando
estamos sentados meditando e nos encontramos vagando em direção à preguiça, o que nos
inspira a aplicar a técnica e voltar à respiração é nossa aspiração de amaciar a dureza da
mente. Um desejo súbito de que esta fique à vontade em sua própria força pode ser o
suficiente para dissipar a preguiça.
Ninguém pediu que nos víssemos como reais, e é claro que não estamos a sós nesse
mal-entendido tão fundamental. A preguiça pode ser uma forma de fazer com que, ao
culpar os outros, afundemos mais uma vez no aturdimento e no sofrimento: “Essa cultura
simplesmente faz com que todos permaneçam adormecidos. Ninguém mais está
meditando. Por que eu deveria ser diferente? Penso que vou esperar e me dar um tempo”.
O Buda diz que, se percebermos a situação dessa maneira, ficaremos plantados, esperando
por muito tempo. Talvez nunca cheguemos a praticar. Temos de aceitar a responsabilidade
pelo estado de nossa própria mente; de nada adianta culpar os outros por nossa confusão
ou esperar que eles nos encorajem ou aprovem nossa prática. Temos de olhar para nós
próprios como fonte de nossa própria confusão — e de nossa própria iluminação.
Meditar é tornar-se amigo de alguém que nos dá bons conselhos sobre como viver,
lidar com nossa mente e ver-nos intrinsecamente despertos. A meditação já começou a
desembaraçar nosso aturdimento. Vimos o poder da prática para restaurar nossa sanidade e
nosso bem-estar. A aspiração é um desejo profundo de seguir em frente.
É como se estivéssemos escalando uma montanha e chegássemos a um local,
exaustos e sem alento, pensando que simplesmente não podemos prosseguir. Paramos para
descansar, olhamos para trás e vemos a distância já percorrida. Ficamos surpresos com a
altura em que nos encontramos e com a distância que escalamos. No Tibete, quando
alcançamos um lugar assim, gritamos o brado do guerreiro: “Ki ki so so, lha gyel lo!”. O
que significa, basicamente: “A vista é vitoriosa!”. A força que deriva de termos uma grande
vista nos dá a coragem para continuar avançando. É assim que a aspiração vence a
preguiça.

Esforço

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Se pensamos que pelo simples fato de nos colocarmos na posição correta a
meditação vai acontecer, estamos enganados. A meditação é proativa. Temos de ser parte
do processo. Isso não significa que possamos executá-la de maneira mecânica. É preciso
que a mente se aplique no processo.
A força da mente empenhada está em que ela se movimenta na direção do ato de
meditar. Isso é o esforço. É o oposto da preguiça, que é retrair-se. Se não fizermos um
esforço mental, nos afastaremos, flutuaremos à deriva. Para que nos arranquemos da
preguiça e cheguemos à almofada é preciso esforço. Seguir a técnica corretamente também
exige esforço. Embora o shamatha seja repousar na paz, estabilizar a mente selvagem nessa
paz demanda esforço. Essa energia provém diretamente de nossa confiança e aspiração. A
relação simbiótica entre a inspiração e o esforço faz com que nos sintamos motivados a
nos empenhar na meditação.
Sua Santidade Penor Rinpoche é um dos poucos verdadeiros mestres de meditação
ainda vivos. Ele é uma inspiração constante para mim, em especial por ser alguém que se
esforça continuamente em ajudar os outros e que parece encontrar alegria e energia nesse
esforço. Este é um sinal verdadeiro de um meditador consumado.
Depois que ele e milhares de pessoas fugiram do Tibete para a Índia, havia poucos
lugares onde monges e monjas podiam encontrar alimento e abrigo, quanto mais continuar
sua prática de meditação. Por isso, Penor Rinpoche decidiu restabelecer na Índia o
mosteiro que tinha perdido. Teve de limpar um terreno na selva e levantar fundos pouco a
pouco. Mas enfim ele conseguiu construir o mosteiro com suas próprias mãos. Este
continua a crescer e prosperar, e milhares de pessoas beneficiam-se disso. Penor Rinpoche
ainda trabalha incansavelmente, com muitas responsabilidades administrativas, financeiras e
educacionais.
Apesar de seu esforço constante, ele é inabalável em sua energia. É uma pessoa alegre
— sempre fazendo piadas e contando histórias. Num instante, está inteiramente presente, à
disposição de uma pessoa enferma ou à morte, então, em seguida, põe-se ao dispor de um
jovem monge metido em dificuldades. Não descansa nos fins de semana e tampouco tira
uma folga; pelo contrário, exibe o tempo todo seu esforço alegre, dia após dia, enchendo as
pessoas de confiança. Certa vez contou-me que não se preocupava muito: “A vida fica mais
difícil se nos preocupamos. É melhor que nos ocupemos com as coisas à medida que vão
surgindo”.

76
Ele é verdadeiramente um exemplo de alguém que exerce seu esforço com fluidez.
Decerto, isso não significa que ele viva uma vida quieta, isolada. Está sempre atarefado e
enfrentando obstáculos, mas faz isso com equanimidade, alegria e uma mente forte e
estável. Isso é a meditação na ação. Praticar o esforço dessa maneira ajuda-nos a
transformar a maré da preguiça na prática da meditação e na vida diária, e nos treina a viver
com confiança e força.

77
9.

Esquecer as instruções

O segundo obstáculo é esquecer as instruções. No início, quando começamos a


meditar, disseram-nos como manter nosso corpo sobre a almofada e como colocar a mente
sobre o objeto da meditação. Com a atenção plena e a consciência, reconhecemos os
pensamentos, damo-nos conta deles, e voltamos a enfocar a respiração. Essa é nossa
instrução básica. Tão logo a mente deixa a respiração e vai para qualquer outro lugar,
encontramos o obstáculo de esquecer a instrução. Esse padrão sempre bloqueia a estrada
da meditação.
Quando esquecemos as instruções, é nos pensamentos discursivos que estamos
mantendo a mente. Estamos na almofada tão enredados nos pensamentos que não nos
lembramos do que deveríamos fazer. Comparada com a força das distrações, a instrução de
ficar presente parece sem vigor. Esquecer as instruções pode acontecer de repente, ou pode
ocorrer aos poucos, como se a alça de um objeto pesado estivesse escorregando. Não
importa quanto tentemos, não conseguimos permanecer concentrados na respiração. A
técnica se torna nebulosa. Não vem à mente nada inspirador. Podemos nos lembrar apenas
de umas poucas palavras: “sentar-se”, “respiração”, “pensamento”, “mente”. Afora isso,
não podemos nos lembrar de coisa alguma. Não nos esquecemos somente das instruções
simples, talvez tenhamos também nos esquecido da visão — por que estamos meditando.
Uma razão pela qual esquecemos as instruções é que estamos abordando a meditação
com ingenuidade. Pensamos que não é tão complicada assim ⎯ somente um ou dois
pontos a serem lembrados. É possível que a simplicidade funcione, se formos capazes de
seguir as instruções. De qualquer forma, com uma visão simplória, a meditação torna-se
fraca. Quando apenas esperamos que os pensamentos surjam como pombos de barro para
que possamos abatê-los, estamos nos esquecendo de nossa visão e intenção. Esquecemos
que estamos aqui para cultivar a estabilidade, a clareza e a força naturais da mente. Isso não
é simplicidade, é falta de perspectiva. Tudo o que temos é a técnica; esquecemos as razões
para segui-la. Esquecemos que a visão da meditação é que ela seja unipontual e espaçosa. É
assim que começamos a nos desembaraçar de nossos padrões habituais e a descobrir nossa
verdadeira natureza. Quando empregamos a técnica sem a visão, de um momento para

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outro já não entendemos como a aplicar. Em conseqüência do orgulho e da falta de tempo,
podemos até mesmo começar a inventar nossa pequena técnica de meditação.
Quando verificamos o que verdadeiramente acontece na meditação, notamos que
não é assim tão simples. De fato, a força da prática provém de pequenos detalhes e da
profundidade: a postura, a respiração, a colocação da mente, a intenção e a visão. Caso
percamos um só desses fios, o tecido da prática se desfiará e esqueceremos o que estamos
fazendo.
O antídoto quando esquecemos as instruções é a atenção plena — em especial,
recordar. Temos de nos recordar continuamente dos detalhes. Se nos esquecemos do que
estamos fazendo com a mente, é quase inevitável que também nos esqueçamos do que
estamos fazendo com o corpo. Comece por lembrar-se de sua postura. A coluna está ereta?
Você está descontraído ou está mantendo tensos ombros e braços? Como está seu olhar?
Apenas verifique sua postura e comece de novo a meditação: “Agora estou colocando
minha mente sobre a respiração” — essa pode ser a maneira mais direta de invocar as
instruções quando você as esqueceu no meio de uma sessão.
A razão pela qual praticamos todos os dias é a facilidade com que nos desviamos da
visão; tudo o mais em nossa vida nos puxa para diferentes direções. Podemos encarar o
esquecimento das instruções como parte integrante da prática. Como um antídoto, a
atenção plena significa aprendê-las novamente. Necessitamos lembrar o tempo todo o que
é a meditação, por que e como a praticamos. Precisamos estudar e contemplar. Se não
tivermos uma idéia clara do que estamos fazendo e não a atualizarmos regularmente, a
meditação nunca será bem-sucedida. Por exemplo, quando relemos um livro importante,
nosso entendimento é muitas vezes completamente diferente do que foi da primeira vez. É
claro que as palavras não mudaram, mas, dessa vez, nossa compreensão é mais profunda.
Por mais fácil que a prática da meditação possa parecer, quando experimentamos,
vemos que é um desafio. Cada vez que sentamos para meditar, há um elemento de bravura
envolvido. Exige coragem abandonarmos a preguiça e nos aplicarmos com atenção plena.
Significa que estamos dispostos a deixar os padrões habituais para trás e a entrar em um
novo território. Embora a voz da resistência nos diga: “Esqueça. Vá fazer qualquer outra
coisa”, persistimos, porque sabemos que não existe outra maneira de fazer da mente uma
aliada. Em certo ponto da meditação, sabemos exatamente o que estamos fazendo. Muitas
fantasias, pensamentos e cenários já foram incinerados, e já não acreditamos neles. Nós nos
damos conta de que todos os meios pelos quais nos mantivemos adormecidos nunca nos

79
levaram a lugar algum. Nossa sabedoria está amadurecendo. Meditamos com bastante
prazer, porque percebemos que não há maneira melhor para dissipar o aturdimento e o
sofrimento.

80
10.

Nem muito tenso, nem muito frouxo

Norrie, meu instrutor de golfe, diz que somos, na maioria, “oportunistas”: sempre
buscamos tirar vantagem de condições externas que nos propiciem o sucesso, em vez de
criarmos as condições interiores favoráveis para alcançá-lo. Ele considera o golfe um jogo
de causa e efeito no qual somos ambos, a causa e o efeito: ficamos irritados e, não importa
quanto desejemos jogar a culpa no outro, a culpa é nossa. O que ele quer destacar é que,
para dar uma boa tacada, antes de fazermos o swing,1 temos de nos centrar — identificar o
que estamos sentindo e chegar a um equilíbrio interno. Caso contrário, estaremos à mercê
de uma instabilidade interna, assim como do vento que sopra através do campo. Se
estivermos tensos demais ou muito relaxados, nossa habilidade para executar uma tacada
ficará comprometida. Se primeiro tivermos nos estabilizado, seremos capazes de executar
nosso melhor swing, naturalmente. Para isso, necessitamos de consciência. Consciência é a
habilidade de saber o que está se passando em nossa mente no momento presente. Isso é
importante, tanto na meditação como no golfe.
A finalidade da consciência — e, por sinal, também da prática da meditação — é
saber o que está acontecendo. Temos de estar despertos. De outra maneira, cairemos em
letargia, o que nos deixará a apenas um passo de dormir. Sem consciência, a meditação não
nos leva a lugar nenhum. Nos primeiros estágios do repouso na paz, a consciência age
como um espião que nos observa enquanto meditamos, e alerta a atenção plena para que
nos traga de volta à respiração quando devaneamos. Por certo tempo isso poderá ser
grosseiro e intrusivo, pois, como principiantes, temos de ficar sempre vigilantes. Mas, à
medida que praticamos, a consciência continua a desenvolver-se. A mente fica mais estável
e nossa capacidade de saber o que está acontecendo se fortalece. A consciência transforma-
se no xerife que pode antecipar que a mente está a ponto de distrair-se e remediar a
situação antes mesmo que ela ocorra. Não vemos o xerife correndo por toda parte; apenas
sabemos que ele está lá. Porque temos mais confiança, a consciência já não é mais sentida
como intrusiva.
A atenção plena e a consciência têm também um papel como antídotos. Por
exemplo, quando nos defrontamos com o obstáculo de esquecer as instruções, o antídoto é
acionar o aspecto da atenção plena que é o recordar. Da mesma maneira, quando

81
encaramos os obstáculos de göpa e chingwa, euforia e lassidão, convocamos a atenção plena
como antídoto.
À medida que nossa prática se aprofunda, vemos planos intricados de pensamentos
discursivos: os que estão nas fantasias, nas emoções, nos pensamentos, e pensamentos
discursivos dentro dos próprios pensamentos discursivos. Por outro lado, a maneira como
a consciência entra em cena e examina a meditação também se torna sutil. No início, era
muito difícil antever como tal nível de sutileza poderia se desenvolver. Mas, à medida que o
tempo passa, porque a atenção plena exige menos esforço, temos maior consciência para
supervisionar nossa prática.
Encontrar um obstáculo é um sinal de que estamos mantendo a mente sobre alguma
distração. A euforia e a lassidão surgem quando já temos alguma estabilidade em nossa
prática. Elas são bloqueios intermediários da estrada. É possível sentir um breve sabor da
euforia e da lassidão nos primeiros estágios, mas, como a mente necessita estar bem
recolhida a fim de experimentá-las com plenitude, esses obstáculos são sinais de progresso.
Indicam que a atenção é forte, e a mente, estável. O cavalo permanece na trilha o tempo
todo, e agora devemos trabalhar sua andadura. Ocasionalmente ele sai em busca de algo
para comer e às vezes está obstinadamente distraído. Contudo, como já não empina, nem
dispara com o freio nos dentes, talvez tenhamos dificuldade para nos damos conta desses
outros comportamentos. Contudo, é importante trabalhá-los, porque é assim que
começamos a encontrar o caminho do meio da mente equilibrada — nem tensa demais,
nem solta demais.
Em ambas, na euforia e na lassidão, experimentamos o movimento da mente que nos
impede de estar inteiramente presentes. Na euforia, sujeitamos a mente com tal rigor que
ela começa a entrar em pânico, exatamente como um cavalo quando o seguramos com
rédeas muito curtas. Na lassidão, deixamos a mente tão solta que ela fica à deriva.
Na euforia, estamos concentrados na respiração com rigor excessivo. Sem aviso
prévio, a mente protesta. Ela decola subitamente, depois de deixar-se seduzir por algum
pequeno prazer: um pensamento sobre um sorvete, uma pizza, uma xícara de café, um
evento prazeroso do passado, algum romance, a claridade do sol — pode ser qualquer
coisa. De repente, não estamos mais no comando. O cavalo saiu pela porteira. Mas por que
atrás do prazer? Depois de alcançada a estabilidade, é mais comum que seja o desejo, e não
a agressão, o agente perturbador da meditação. Qualquer que seja o estágio da prática, é
sempre mais prazeroso querer algo do que sentir raiva, ciúmes ou orgulho. Chegamos

82
enfim a um ponto no qual raiva, inveja e orgulho surgem com menos freqüência, mas
pequenos desejos agradáveis ainda nos fisgam. E só sabemos que fomos fisgados depois
que a mente se foi.
A lassidão é o oposto da euforia. A palavra tibetana para lassidão é chingwa — usada
quando alguém está se afogando. Significa “afundar”. A mente afunda em si mesma. Nossa
relação com a respiração é frouxa, pouco clara e distante. Faltam-nos frescor e clareza. Ela
provoca uma ausência. Perdemos a capacidade de domar. “Solta demais”, pode dar a
impressão de que não estamos pensando, mas o que verdadeiramente aconteceu é que
amortecemos a mente. Suprimimos seu movimento. Porque pensar é tão neurótico,
predatório, entediante e detestável, decidimos boicotar isso. É assim que sentimos a
lassidão. Vamos ao extremo de tentar não fazer nada, mesmo que isso não seja possível: a
mente está sempre gerando e sendo gerada.
O que está ocorrendo nesse estado em que a mente se anula a si própria? Em um
cenário, os pensamentos e as emoções anulam-se mutuamente. Em outro, estamos nos
esforçando tanto para tentar ficar atentos que a mente afunda. Quando nos sentamos,
simplesmente caímos no sono. Isso está ligado ao tédio. Estamos frustrados porque
estamos habituados ao entretenimento constante, e, agora, a mente não é capaz de produzir
pensamentos que sejam nem mesmo remotamente interessantes. Então, a mente está
entediada — aparentemente com a meditação, mas na verdade consigo própria.
O antídoto para ambas, a euforia e a lassidão, é a consciência. Temos de investigar o
que se passa em nossa mente. Uma vez que a consciência nos tenha dito que estamos
soltos ou tensos demais, temos de aprender como nos ajustar. Se o obstáculo é a euforia,
podemos tentar relaxar a técnica, dando-lhe um pouco mais de espaço. Podemos nos
concentrar mais na expiração do que na inspiração, a fim de dar à mente mais liberdade.
Ou podemos tornar mais leve a concentração em toda a respiração. Com espaço, a agitação
pode se acalmar e poderemos avançar com uma meditação mais forte e clara. Se o
obstáculo é a lassidão, temos de restringir mais nossa prática. Podemos colocar a mente um
pouco mais na respiração como um todo. Podemos nos concentrar na inspiração. Podemos
estabilizar a postura. Podemos tentar nos animar tirando uma peça de roupa, abrindo uma
janela ou elevando o olhar.
Outro obstáculo que se apresenta quando existe grande estabilidade é que a mente
não aplica o antídoto. Por exemplo, podemos nos sentir relaxados, tranqüilos e contentes
com a meditação, não reconhecendo que estamos em um estado de lassidão. Tudo parece

83
bem, estamos com bom humor, e pensamos ter alcançado a perfeição. Já que não nos
damos conta de que estamos enfrentando um obstáculo, é difícil aplicar um antídoto. No
entanto, o antídoto apropriado a ser usado nessa situação é aplicar o antídoto.
Igualmente sutil é o obstáculo de aplicar uma dosagem excessiva do antídoto. Certa
vez, estava acampado na bonita pradaria de uma montanha e alguns dos meus vizinhos
ouviam rádio. Estávamos ali, em um lugar quieto e calmo, e eles achavam que podiam
melhorá-lo acrescentando algo mais. Isso é aplicar uma dosagem excessiva do antídoto. Às
vezes é melhor apenas deixar que a prática seja como é. Se a mexemos demais, estamos
apenas agitando água que já se acalmou. O antídoto para a aplicação de uma dosagem
excessiva de antídoto é conhecido como repousar na equanimidade. Nesse caso, é melhor
repousar como você já está.
Por milhares de anos, professores nos têm fornecido muitas ferramentas, mas
depende de nós aprendermos como usá-las. É necessário experiência e maturidade para
chegarmos a ter intimidade com as complicações de nossa mente. Temos de ser capazes de
ver exatamente o que está se passando. “Ah, não estou apenas distraído, estou preso na
euforia.” Então podemos aplicar alguns conselhos práticos. Lidar com obstáculos como
lassidão e euforia é um processo de tentativa e erro. Até mesmo quando a prática se torna
mais sutil, continuamos a descobrir maneiras de manter a mente colocada sobre a
respiração.
De fato, a maior parte do tempo em que estivermos praticando shamatha, estaremos
aprendendo a reconhecer a lassidão e a euforia para então vencê-las mediante a aplicação
do antídoto apropriado. Quando um músico perguntou ao Buda como deveria meditar, o
Buda lhe perguntou: “Como você afina as cordas de sua guitarra?”. O músico respondeu:
“Nem tensas demais, nem soltas demais, de maneira a produzirem o som correto”. O Buda
disse: “Você deveria manter a mente na meditação de maneira semelhante”. Assim como
tocar um instrumento musical, é preciso prática para manter a mente “nem tensa demais,
nem solta demais”.
Quando nossa consciência se fortalece, podemos lidar com obstáculos à medida que
surgem, enquanto continuamos a manter a mente sobre a respiração. Tão logo detectamos
um obstáculo, a primeira coisa a fazer é relaxar a concentração na técnica. Embora ainda
continuemos a empregá-la, já não o fazemos de maneira tão clara, precisa ou rígida.
Enquanto isso, somos capazes de lidar com qualquer problema que surja. É como atender
ao telefone enquanto cozinhamos.

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Dessa maneira a meditação continua, sem ser interrompida. Não é como se
parássemos, lidássemos com o obstáculo e voltássemos. É assim que a consciência começa
a estender o processo da atenção. A combinação de atenção com consciência é como
atravessar o quarto segurando um copo cheio de água. A atenção mantém o ângulo e o
grau de pressão apropriados; a consciência se assegura de que não derramamos água.
A atenção é uma ferramenta útil; no caos de nossa vida cotidiana, precisamos estar
atentos a muitas coisas. No entanto, a consciência é que é a ponte entre a almofada e nossa
vida de cada dia. Quem presta atenção a como usamos o corpo, a fala e a mente enquanto
nos movemos ao longo do dia? É a consciência. Com a consciência podemos entender
nossa conduta em qualquer situação. É assim que sabemos que estamos sendo grosseiros e
precisamos ser mais bondosos. É assim que sabemos que estamos apavorados ou
temerosos — ou que somos intrépidos. É essa qualidade de saber da consciência que nos
conduzirá finalmente ao desenvolvimento de uma mente iluminada.

85
11.

Nove estágios do treinamento da mente

Enquanto estavam sentados em sua almofada e trabalhavam a mente, os meditadores


da linhagem perceberam que um mesmo processo ocorria, formado pelas nove maneiras
como a mente atua, com base em sua estabilidade, clareza e força inerentes. Em sua
descrição desses nove estágios do treinamento da mente, eles nos deixaram indicações
sobre o desenvolvimento desse processo. Essas diretrizes são úteis pois a mente é tão vasta
que, por conta própria, o mais provável é que apenas nos limitaríamos a devanear. Esses
nove estágios delineiam um mapa do processo meditativo.
Os primeiros quatro estágios ⎯ colocação, colocação continuada, colocação repetida
e colocação cerrada ⎯ têm a ver com o cultivo da estabilidade. O quinto e o sexto estágios
⎯ domar e pacificar ⎯ têm a ver com cultivo da clareza. E os últimos três estágios ⎯
pacificação completa, unipontual e equanimidade ⎯ têm a ver com o fortalecimento.

1. Colocação
Colocar a mente sobre a respiração é a primeira coisa que fazemos na meditação.
Nesse momento, montamos o cavalo: colocamos o pé no estribo e nos alçamos para a sela.
É uma questão de sentar-se corretamente.
O momento da colocação inicia quando retiramos a mente de seu compromisso com
eventos, problemas, pensamentos e emoções. Pegamos essa mente selvagem e atarefada e a
colocamos sobre a respiração. Embora estejamos trabalhando a consciência, que não é
física, a colocação parece muito física. É algo tão deliberado quanto colocar uma pedra em
cima de uma folha.
Para que a colocação seja bem-sucedida, temos de reconhecer formalmente que
estamos abrindo mão de conceitos, pensamentos e emoções: “Agora estou colocando
minha mente sobre a respiração”. O que acontece nesse momento? Nossos apegos são
desenraizados. Se pelo menos somos capazes de tentar, nossa atividade discursiva interna
fica muito reduzida. Ao mesmo tempo, ao colocá-la sobre a respiração, recolhemos essa
mente que estava finamente espalhada por todo lugar.

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Para meditadores iniciantes, é no primeiro estágio que se aprende como equilibrar o
enfoque na respiração, reconhecer os pensamentos e manter a postura. É um período de
carência durante o qual desenvolvemos bons hábitos de meditação. Se continuamos a
praticar, a colocação é sempre o primeiro passo. É o momento no início de cada sessão em
que reconhecemos que começamos a meditar, nos damos conta disso. Porque define nossa
atitude para o resto da sessão, é o estágio mais importante. O momento da colocação dá à
meditação uma partida nítida, livre de obstáculos. Se começarmos de uma maneira vaga ou
ambígua, a meditação será vaga e ambígua. É como com uma peça de dominó: a maneira
cuidadosa como colocamos a mente no primeiro estágio afeta diretamente o que vem em
seguida.
Depois desse primeiro momento, cada vez que decidir reconhecer um pensamento,
dar-se conta dele, e voltar a consciência à respiração, você estará aprendendo a colocação.
Um ato tão pequeno, tão inofensivo, é uma das coisas mais corajosas que você pode fazer.
Quando reconhecer e liberar aquele pensamento, você poderá se orgulhar de si mesmo.
Você terá vencido a preguiça. Você se lembrou das instruções. Poderá se sentir feliz ao
retornar à respiração. Não se preocupe com o fato de que terá de fazer isso novamente ⎯
você fará milhares de vezes. É por isso que o chamamos de prática.
Cada vez que nos lembramos de colocar a mente sobre a respiração, estamos
avançando. Simplesmente por deixar que um pensamento se vá, nos afastamos de
conceitos, das emoções negativas e do aturdimento. Deixamos a necessidade de ser
interminavelmente entretidos e consumidos. Devemos fazer isso repetidas vezes, muitas
vezes. A mudança ocorre, a cada respiração, a cada pensamento, você dá um passo que o
afasta da dependência do pensamento discursivo e do medo, progredindo no caminho da
iluminação, começando com o desenvolvimento da compaixão por si mesmo.
Gosto de golfe. Jogo sempre que posso. Não importa que nível de jogo esteja
jogando, só posso bater uma bola por vez. Cada bola é apenas uma bola; minha mente
deve se renovar a cada vez. Se pensar nas bolas que bati ou nas que baterei, não baterei esta
bola. Tão-somente reforçarei maus hábitos. Acontece o mesmo com a colocação. Se você
não tem nitidez e não se sente renovado ao reconhecer e liberar os pensamentos, não está
verdadeiramente em meditação; está reforçando o desleixo. Os pensamentos ganharão
força e por fim você absolutamente não estará mais meditando. Você estará somente
pensando.

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Reconhecer um pensamento, dar-se conta dele e largá-lo é como chegar ao topo de
uma montanha. Merece o grito do guerreiro: “Ki ki so so”! O que celebramos é ter deixado
para trás as fantasias auto-indulgentes que nos despojam da vida, a menos que lidemos com
elas corretamente. Nisso somos apoiados pela inspiração, pela visão, pelo esforço, pela
confiança, pela atenção plena e pela consciência.
Quanto mais capazes somos de recolher a atenção e a concentração, mais forte se
torna a mente, mais forte se torna a experiência e mais forte se torna o resultado. Sabemos
que somos capazes de colocar a mente corretamente quando somos capazes de manter o
foco na respiração por cerca de 21 ciclos, sem que a mente fique muito distraída.

2. Colocação continuada
Colocar a mente sobre a respiração é agora razoavelmente fácil. Aprendemos a
montar no cavalo, e agora sentimo-nos à vontade sobre a sela. O cavalo está andando na
trilha. Experimentamos como é estar com a respiração, estar continuadamente colocados
sobre ela. Quando o pensamento discursivo e a distração nos arrastam para fora da trilha,
de modo geral somos capazes de executar a colocação e podemos regressar. O que nos
permite fazer isso é o desenvolvimento adicional da atenção plena e da consciência, a
ausência de preguiça e o lembrar-se das instruções.
Outra explicação para sermos capazes de colocar com êxito a mente sobre a
respiração é que temos confiança nas razões pelas quais meditamos. Fazemos isso com
entusiasmo porque sabemos que nos trará paz. Vemos a futilidade das preocupações
externas, das fantasias, dos pensamentos e das emoções. Estamos dispostos a desistir deles,
pelo menos durante o período da meditação, porque vemos os benefícios disso. A
colocação tornou-se algo razoável.
Quando repousar a mente na respiração e relacionar-se com os pensamentos com
facilidade torna-se a norma, chegamos ao final desse estágio. Uma marca de referência é
que somos capazes de repousar a mente por cerca de 108 ciclos de respiração sem sermos
tomados pela distração. Podemos nos manter plenamente atentos à respiração ao longo de
108 ciclos ⎯ para dentro e para fora. Embora possamos experimentar alguns pensamentos
discursivos, estes não são incômodos ou suficientemente grandes a ponto de perdermos a
atenção plena e esquecermos completamente a respiração.

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Nesse estágio, a atenção plena e a estabilidade duram apenas esse tempo; depois a
mente se desgarra. Mas, quando o suporte principal da prática for a capacidade de
permanecer sobre a respiração por 108 ciclos — durante os quais nos permitimos algum
espaço para nos mexermos, sem estarmos completamente parados nem completamente
distraídos —, teremos nos graduado no segundo estágio e passado para o terceiro, que é
conhecido como colocação repetida.

3. Colocação repetida
Pode parecer que o que fizemos desde o início foi a “colocação repetida”. A
paisagem da meditação, no entanto, é vasta, e os estágios, progressivamente sutis, porque
descrevem nossa experiência, que se torna cada vez mais refinada. A palavra tibetana para
este estágio é len, que significa “recuperar”, “recolher”, “trazer de volta”. Apreendemos
como colocar a mente e como continuar a colocar a mente, mas vez ou outra algum
pensamento ainda irrompe, como um cavalo selvagem que galopa pelas planícies. Nos
primeiros dois estágios, isso acontecia o tempo todo. Quando se chega ao terceiro estágio,
isso acontece apenas ocasionalmente.
Durante o segundo estágio, aprendemos a desfrutar da cavalgada. Estamos contentes
pelo fato de podermos permanecer na sela e usufruir do panorama. No terceiro estágio
ficamos mais confiantes. Mas o cavalo ainda tem momentos espontâneos de excitação e
selvageria. Vez ou outra ele recua, ou corcoveia ou sai da trilha. Temos de trazê-lo de volta.
No terceiro estágio, praticamos reconduzi-lo nessas ocasiões, e ao final fazemos isso cada
vez menos. Nossa atenção plena amadurece e chega à estabilidade.
Agora somos capazes de nos concentrar na respiração, em estarmos presentes.
Quando se vai, a mente em geral persegue fantasias de pequenos prazeres, de alguma
comida, uma diversão ou mesmo aventuras românticas. Isso é euforia: tentamos controlar a
mente com muita pressão. Concentramo-nos na respiração com tal empenho que a mente
de repente vai-se embora. À medida que progredimos nesse estágio, aumentam a
velocidade e a eficiência com que recuperamos a mente. Em comparação, a maneira como
retornávamos dos pensamentos nos estágios iniciais parece confusa. Às vezes era como
areia movediça ⎯ quanto mais insistíamos em tentar sair, mais nos prendíamos. Mas agora,
como a atenção plena é forte, somos capazes de nos livrar com precisão. Ao final desse
estágio, alcançamos um dos marcos do shamatha: a estabilidade. A atenção plena é tão

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potente que somos capazes de permanecer na respiração sem nunca ficarmos inteiramente
distraídos. A consciência plena se torna também mais astuta. Começamos a captar os
pensamentos antes mesmo de eles irromperem.
A meditação não é tão clara e vibrante quanto poderia ser, mas nos faz sentir bem e
tranqüilos, porque estabilizamos a mente. No decorrer de uma sessão, a mente sempre
permanece no local da meditação. É um feito admirável. No Tibete, isso é comparado com
um abutre que paira muito alto no céu, acima de um animal morto. Essa ave sempre
mantém a vista sobre sua presa. Pode adejar para a esquerda ou para a direita, mas nunca
perde de vista a comida. De maneira parecida, a mente pode oscilar para cá ou para lá, mas
nunca se afasta da respiração. Antes do final do terceiro estágio, às vezes estamos
presentes, outras não. Mas agora estamos lá todo o tempo. Isso é estabilidade. Ela não
acontece porque batemos a cabeça com uma técnica de meditação excessivamente
simplificada. Alcançamos isso com gentileza e precisão, pela repetição, perseverança, visão,
atitude, intenção, postura correta e por um bom ambiente.

4. Colocação cerrada
A entrada no quarto estágio, conhecido como colocação cerrada, é marcada pela não-
distração. Sempre permanecemos fortemente unidos à respiração. É quando sabemos ter
cruzado a fronteira. Isso é estabilidade. Sabemos que, embora possa se desviar para cá e
para lá, o cavalo não deixará a trilha.
Agora a meditação adquire uma característica diferente. Antes, nosso principal
interesse era não nos distrairmos, não nos afastarmos da respiração. Tínhamos a
preocupação de não deixar que a mente fosse levada pelos problemas do dia-a-dia. O
tempo todo nos perguntávamos se seríamos fortes o bastante para voltar à respiração.
Agora estamos mais descontraídos. Não nos questionamos mais se podemos ficar sobre a
respiração, pois já sabemos que sim. As influências externas que podem nos afastar da
meditação já não nos preocupam, porque sabemos que não farão isso. Nossa confiança
ampliou-se. Agora estamos interessados na qualidade da meditação — sua textura, a
experiência. Antes nossa preocupação era não conseguir uma xícara de café, agora
queremos um cappuccino com café da variedade moca. Como podemos fortalecer a mente?
Como torná-la mais cheia de vida? Essa é nossa nova prioridade.
De modo geral, superamos os obstáculos da preguiça e de esquecer as instruções.
Eram obstáculos que nos impediam de meditar. Ao final do terceiro estágio e no início do

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quarto, lidamos com os obstáculos da euforia e da lassidão. Esses dois extremos geram
resultados que nos distraem. No entanto, já que agora permanecemos o tempo todo no
local da meditação, é um bom sinal se temos esses problemas.
No Tibete, somos alertados de que no quarto estágio podemos ser suficientemente
tolos e pensar que alcançamos a iluminação ou um elevado nível de realização ⎯ pois a
mente sente-se bem, muito forte e estável. Porque a luta que travamos com a mente
diminuiu bastante, há certa alegria e calma. Mas, se exageramos ao desfrutar da estabilidade
da mente, ela se torna excessivamente relaxada ⎯ pode ser que não passemos pelos outros
estágios. É por isso que a lassidão é um obstáculo. A mente é estável, mas não é clara. A
ave não consegue pousar sobre o pedaço de carne, só é capaz de voar ao redor.
Necessitamos da consciência para poder visar o alvo, aguçar a sensibilidade e recolher a
mente com mais firmeza.

5. Amansamento
Embora as realizações do terceiro e do quarto estágios sejam heróicas, o caminho a
ser percorrido continua. No quinto estágio, somos capazes de ser mais rigorosos na
meditação, introduzindo maior clareza. Esse estágio é conhecido como amansamento,
porque começamos a experimentar os verdadeiros frutos de uma mente amansada, algo
cujo cultivo iniciamos há muito tempo, no primeiro estágio. Amansamento é aqui a
experiência de lesu rungwa, ser capaz de fazer com que a mente seja funcional. No quarto
estágio, talvez ainda sejamos tomados por um temor reverencial pelo fato de termos
amansado o cavalo. Mas, por outro lado, ter uma mente forte, estável e clara parece-nos
natural. A mente ainda não está perfeitamente quieta. Continuamos a ter pensamentos
discursivos. Mas sentimos uma verdadeira sinergia com o cavalo. Há uma sensação de
harmonia. Já não estamos mais lutando contra ela.
A harmonia e a sinergia criam alegria. Uma metáfora tradicional para expressar o que
experimentamos nesse estágio é o deleite que sente a abelha ao sorver o néctar de uma flor.
A meditação tem um sabor agradável, alegre. Quem já passou por tempos difíceis e sentiu a
pressão ser aliviada talvez tenha conhecido por um breve instante essa felicidade, essa
sensação de liberação.

6. Pacificar

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O sexto estágio é conhecido como pacificar. Uma grande batalha aconteceu e veio a
vitória. Montados a cavalo, inspecionamos o campo. Sabemos que vencemos. Sentimo-nos
tranqüilos e cheios de vida, como as pastagens de uma montanha depois de uma
tempestade. Tudo está molhado e energizado. Há uma claridade tremenda.
Ainda trabalhamos uma mente que às vezes faz muita pressão, outras está frouxa.
Em nossa prática, ainda temos de fazer muitos ajustes pequenos. Mas, ao fazer esses
ajustes, não somos mais frenéticos, como talvez tenhamos sido durante os primeiros
estágios. Naquela ocasião era discutível se chegaríamos a fazer da mente uma aliada. Agora,
a paz que sentimos nos diz que sim, nós fizemos. A meditação é alegre e clara. Começamos
a experimentar não só a harmonia natural da mente, mas também a força que lhe é
inerente.
Nesse estágio, também sentimos entusiasmo. Começamos a ver as possibilidades do
que podemos realizar com a mente domada. Antes, essa relação era um fardo, mas agora
ela nos abre muitas possibilidades. O cavalo selvagem foi domado.

7. Pacificação completa
A batalha pode ter acabado, mas ainda restam alguns poucos soldados inimigos
correndo pelo campo, na forma de pensamentos sutis, a maioria sobre prazeres. Podemos
ter um leve apego pelo bem que a meditação nos faz. Ouvimos alguns murmúrios dualistas.
Mas são poucos. Embora saibamos que não vão perturbar a meditação, não podemos
apenas nos sentar, nos reclinar e ignorá-los. Na pacificação completa, não dispersamos os
pensamentos, como no quarto estágio. Agora, nós os seduzimos, como flocos de neve que
caem no fogo. A meditação é tão forte que, ao encontrar seu calor, os pensamentos e as
emoções naturalmente se dissolvem.
Você se lembra das cachoeiras de pensamentos que nos distraíam quando sentamos
sobre a almofada pela primeira vez para domar a mente? Elas agora se transformaram em
um lago com algumas poucas ondas pequenas.

8. Unipontual
Quando estamos próximos do oitavo estágio, conhecido como unipontual, os
resíduos dos pensamentos discursivos já se dissiparam. Estamos sentados completamente
despertos, com clareza e consciência. Isso é possível porque já não nos distraímos mais.

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Nossa meditação desenvolveu todos os atributos da perfeição, que é o que alcançamos no
nono estágio. A única diferença está em que, ao começar a meditação, ainda temos de fazer
um pequeno esforço a fim de direcionar a mente para a respiração.

9. Equanimidade
Nossa meditação alcançou a perfeição. Quando nos sentamos, comprometemo-nos
com a respiração de uma maneira completamente fluida e espontânea. A mente é forte,
estável, clara e alegre. Sentimos uma sensação de vitória completa. Poderíamos meditar
para sempre. Mesmo no fundo da mente, não há traços de pensamentos. Estamos em
união com o momento presente. Nossa mente é ao mesmo tempo tranqüila e poderosa,
como uma montanha. Há uma sensação de equanimidade.
Isso é a perfeição. Como um cavalo de corrida muitíssimo bem treinado, a mente
permanece imóvel, mas vivaz, cheia de energia. Ela verdadeiramente cresceu ⎯ tanto em
energia como em tamanho. Nós nos sentimos generosos e vastos. Essa é a fruição do
repouso na paz. Temos agora uma mente que é capaz de concentrar-se em qualquer
empreendimento. Nós nos sentimos centrados e confiantes.

93
Três.
95
FAZER DA MENTE UMA ALIADA

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12. Transformar a mente

A força de repousar na paz está em que começamos a ver como a mente funciona.
Também começamos a ver como funciona a vida. Isso nos modifica. No início, quando
começamos a praticar, talvez sentíssemos como se os pensamentos e as emoções fossem
sólidos. A mente era fraca. Os pensamentos e as emoções pareciam devastadores. Vemos
agora que são como uma névoa que se levanta da água. Percebemos os pensamentos como
poderosos porque acreditamos neles, tanto mais que neles baseamos toda nossa vida.
Como nos vestimos, o que comemos, onde moramos e tudo o mais é produto do que
pensamos. O que estávamos pensando quando compramos isso? O que estávamos
pensando quando fizemos aquilo? Começamos a ver como a crença na solidez dos
pensamentos criou esse conceito chamado “eu”. Vemos que nos fundamentos de nosso ser
está algo mais profundo e mais aberto do que as fantasias, as emoções e os pensamentos
discursivos.
Agora os pensamentos já não têm mais o poder que tinham antes. Não somos
distraídos. Nossa atenção e nossa consciência são penetrantes. Pela prática constante,
desenvolvemos familiaridade com a sensação de uma mente concentrada. Desenvolvemos
também a força necessária para permanecer nela. Esse estado de clareza nos conecta com a
realidade. Quer estejamos escrevendo uma dissertação de mestrado ou preparando uma
refeição, temos clareza sobre quem somos e o que estamos fazendo. Conhecemos nossa
bondade fundamental. A mente é nossa aliada e nos sentimos sadios e completos. É como
se tivéssemos dormido e comido bem, e estivéssemos em um ambiente agradável. Temos
uma sensação saudável de nossa individualidade.
Com isso nos sentimos à vontade. Temos tudo de que precisamos. Estamos
centrados em um estado de satisfação. Não somos severos demais conosco; e, ao mesmo
tempo, conhecemos nossas pequenas artimanhas. Sabemos como nos tornamos
escorregadios. Sabemos quando estamos tentando escapar impunes de algo. Estamos à
vontade, examinando-nos com honestidade. A mente está aberta e flexível. Tornamo-nos
inquisitivos porque agora temos uma visão clara de toda uma gama de realidades que não
tínhamos notado até então. Com essa abertura, flexibilidade e curiosidade, começamos a
perceber certas verdades acerca de como as coisas são.

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O Buda ensinou que, para despertar do sonho de aturdimento e sofrimento, primeiro
temos de sentar-nos quietos e respirar fundo. Repousar na paz é aquela inspiração
profunda, uma maneira de despir o caos do aturdimento e encontrar alguma sanidade
fundamental. Mas o repouso na paz é apenas o começo da jornada espiritual. Simplesmente
nos retirar para a estabilidade da mente poderia transformar a prática da meditação em
apenas uma outra maneira de irmos às compras em busca de prazer. Em vez disso, tendo
uma sensação saudável de nosso eu, podemos investigar com mais profundidade o
significado do nosso ser. Podemos avançar e ir mais além com a meditação, e usar a visão
clara — vipashyana, em sânscrito — para refletir com precisão sobre nossa própria
experiência e sobre a natureza da existência. Podemos reorientar a mente — para longe das
ilusões e em direção à realidade. Fazemos isso com a prática da contemplação.
Em poucas palavras, as emoções que experimentamos se reduzem todas a paixão,
agressão e aturdimento. Com o repouso na paz, trabalhamos principalmente para perceber
como nos agarramos àquilo que desejamos — paixão — ou como pomos de lado o que
não queremos — agressão. Isso é como limpar o terreno das trepadeiras e moitas que o
cobriam. Agora temos uma mente estável que percebe com clareza as distrações dessas
duas forças poderosas e que tem a força para não se deixar influenciar por elas. Sobra-nos
ainda o poder da ignorância ⎯ e a ignorância é a origem do sofrimento. A ignorância é
como uma erva daninha profundamente enraizada e com ramificações. Se não nos damos
conta das ciladas da delusão,1 como poderemos lidar com elas? Podemos desmantelar
nossas ilusões contemplando a realidade da vida humana e nosso potencial para despertar a
mente da iluminação. É isso o que fazemos na meditação contemplativa.
Costumo dizer que a mente aturdida é como um cavalo selvagem. Tenho enorme
estima por cavalos. Quando cursava a escola secundária, passei algum tempo trabalhando
numa fazenda no Oeste do Texas. Contemplar a distância um garanhão nos campos do
planalto é um espetáculo vigoroso. Não se amansa essa criatura forte e majestosa tentando
derrotar a pancadas o seu brio. Em vez disso, trabalhamos com sua força pura e damos a
essa energia uma direção determinada. Aonde desejamos levar o cavalo? Por que lugares
pretendemos cavalgar? Queremos fazer uma viagem de verdade? Queremos cavalgar pelas
campinas da compaixão, pelos jardins do coração desperto, pelos campos da sabedoria.
Essa é a essência da prática da contemplação: aprendemos a voltar a energia da mente em
direção à iluminação.

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Quando praticamos o shamatha, atraímos a mente a fim de recolher sua energia.
Desautorizamos o aturdimento ao reconhecer e liberar pensamentos e emoções. No início,
os pensamentos são problemas porque nos distraem muito. São também um problema
quando crescem e se convertem em emoções fortes, porque estas nos desestabilizam.
Apesar disso, nós os usamos na meditação contemplativa. Nosso objeto de meditação não
é mais a respiração. Em vez dela, sujeitamos a mente a um pensamento ou a uma frase e a
mantemos lá, e usamos a visão clara para entender seu significado. Isso faz com que nossos
conceitos fiquem mais em sintonia com a realidade.
O Buda foi considerado um renegado porque pediu às pessoas que examinassem
dessa maneira a realidade do que lhes acontecia. Deixou-nos pistas sobre a natureza da
realidade e de como estimular a mente da iluminação — “precioso nascimento humano”,
“impermanência”, “morte”, “karma”, “samsara” e “coração” ou “mente despertos”. O que
realmente significam essas palavras? Como deixar que penetrem nosso ser e permitir que
nos transformem? Contemplar o significado de um pensamento específico nos afasta do
conceito e nos aproxima da experiência direta da realidade, e isso é a sabedoria.
Podemos dizer “azul”, mas até vermos a cor azul não sabemos verdadeiramente seu
significado. Podemos dizer que algo é quente, mas até que o toquemos não sabemos qual a
significação de “quente”. Podemos falar sobre trazer a mente para a compaixão dizendo:
“Que todos os seres sencientes fiquem livres do sofrimento e das raízes do sofrimento”,
mas, até que sintamos a dor dos outros, “dor” será apenas uma palavra. Temos de romper
sua casca para permitir que seu significado penetre em nós, se infiltre em nossa vida.
Na meditação contemplativa, chegamos à essência mais profunda da realidade.
Depois de certo ponto, as palavras aos poucos desaparecem, mas o significado permanece.
Já não operamos mais a partir da base do conceito. A separação sujeito/objeto se foi.
Fomos penetrados pela realidade do nascimento, da morte, da impermanência, do
nascimento humano livre e bem favorecido. Exatamente como o Buda, depois de ter
deixado o palácio, nós também incorporamos essas realidades. Colhemos a fruta da árvore
e enfim podemos beber seu suco. Esse é o propósito da contemplação — ouvir, escutar e
compreender. Faz com que fiquemos em sintonia com a natureza das coisas.
Discernir em meio à ignorância e compreender o significado da vida é um trabalho
de muita precisão — trabalho para uma mente estável, clara e forte. Fazer essa prática
requer paciência. Como meu pai costumava dizer, é como pentear o cabelo repetidamente.
Estamos nos familiarizando com pensamentos que mudarão o curso do nosso ser, a

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direção de nossa vida — se deixarmos que seu significado nos penetre. Ao nos familiarizar
com o amor e a compaixão, com o karma e o samsara, com a preciosidade de ser humano e
a inevitabilidade da morte, nos treinamos para mergulhar profundamente na verdade e
despertar nossa sabedoria latente.

Instruções para a meditação contemplativa


A base da contemplação é uma mente estável. Portanto, iniciamos a sessão fazendo
alguns poucos minutos de shamatha. Depois, mudamos o foco de nossa concentração da
respiração para um determinado pensamento, uma idéia ou intenção. Por exemplo,
podemos dizer: “Agora estou colocando minha mente na preciosidade do nascimento
humano”. Ou: “Agora estou colocando minha mente na realidade da impermanência”.
Depois, recolhemos nossa mente e a colocamos nessas palavras. Tudo o que aprendemos a
respeito do shamatha se aplica à contemplação, pois essa prática é igualmente repousar na
paz — porém, com um objeto diverso. Quando percebermos que estamos pensando em
outra coisa que não seja o objeto da meditação, reconhecemos que estamos distraídos e
retornamos à contemplação.
Nessa prática, as palavras são o portão de entrada para o significado. Conforme
continuamos a colocar a mente sobre as palavras, enfim elas aos poucos desaparecem, e
surge seu significado, ou a experiência a que elas se referem. Por exemplo, podemos
começar a sentir nosso coração se abrir enquanto desejamos que nossa irmã ou nosso
melhor amigo sejam felizes. Ao contemplar a impermanência ou a morte, podemos sentir
uma sensação de que nada nos sustenta. Quando repousamos a mente nesse significado,
nessa sensação, estamos desenvolvendo familiaridade com uma faceta especial da realidade.
Às vezes podemos sentir que colocamos a mente sobre as palavras e,
verdadeiramente, não sentimos nada. Devemos apenas continuar a repousar a mente nas
palavras. À medida que nossa relação com as palavras se aprofunda, surge enfim uma
experiência de seu significado. Às vezes é preciso pensar com honestidade no que estamos
fazendo. Voltar às palavras como objeto da meditação e, ao mesmo tempo, trazer novos
pensamentos, imagens e recordações que enriqueçam a contemplação. De vez em quando,
penso nos mendigos que vi na Índia, por exemplo, para me ajudar a evocar um sentimento
de compaixão. Quando estamos praticando o cultivo da mente de amor, podemos imaginar
pessoas que conhecemos sentindo-se verdadeiramente felizes. Esse tipo de pensamento
concentrado e controlado pode romper a casca das palavras e deixar o significado aparecer.

100
Ao encerrar a sessão, deixamos que o significado da meditação se torne nossa visão.
Por exemplo, se contemplamos a preciosidade do nascimento humano, ao longo do dia
podemos permitir que a mente repouse em uma sensação de valorização da vida. Podemos
nos deixar impregnar inteiramente pela mensagem da contemplação.
A partir de certo ponto da prática, contemplar os temas dos capítulos seguintes pode
ajudar. Eles nos auxiliarão a nos firmar no terreno das realidades da vida, a apreciar o que
temos e a usar nossa visão clara para irmos além dos limites do eu. Podemos também
lançar mão dessas contemplações como antídoto, caso nos sintamos sem coragem ou
desanimados. Eles nos darão inspiração. Por exemplo, quando sentimos que tudo
desmorona, podemos contemplar a preciosidade da vida humana para lembrar-nos do que
temos. Quando sentimos que estamos solidificando as emoções e os pensamentos,
podemos contemplar a impermanência para nos lembrarmos que tudo está em constante
mudança. Quando estamos mergulhados em uma situação angustiante, podemos
contemplar a natureza do samsara em vez de nos sentirmos completamente culpados.
Quando estamos nas mãos da raiva ou do desejo, pode ser útil contemplar e desmantelar a
emoção, de acordo com as instruções dadas no capítulo 6.
Podemos contemplar esses temas quando quisermos. Primeiro, fazemos um pouco
de meditação sentada e então voltamos a mente por cerca de dez minutos para a
contemplação que tivermos escolhido. Depois de terminar a contemplação, retomamos a
meditação sentada por mais alguns minutos. Dependendo de nosso tempo e de como
sentimos o andamento da prática, fazemos um tema por dia, um por semana ou até mesmo
um por mês. Em uma sessão de prática que dure um dia inteiro, poderíamos tratar de um
tema pela manhã e de outro à tarde.
O apêndice C apresenta um resumo das instruções para fazer a meditação
contemplativa.

101
13.

A alegria de ser humano

Ao fazer da mente nossa aliada, estamos encorajando ativamente a virtude — em


tibetano, gewa. Podemos pensar na virtude como as qualidades de um ser iluminado, nossa
constituição genética. Somos corajosos como guerreiros quando fortalecemos esses
aspectos positivos. Eles incluem uma mente estável, uma percepção saudável da
individualidade, baseada na experiência da bondade fundamental, uma visão clara dos fatos
da vida, um coração incondicionalmente amoroso e a sabedoria de conhecer a coisa certa a
fazer a cada momento. A mente iluminada vê as coisas como elas são. Um ser iluminado vê
uma verdade simples, que é vazia, alegre, e luminosa — a natureza fundamental de tudo. O
que o Buda descobriu em sua jornada é que todos de fato somos capazes de ver essa
verdade e nela enraizar conscientemente nossas atividades. Nosso potencial é o de tornar-
nos totalmente felizes.
Talvez pensemos na iluminação como uma transformação instantânea. Em um
momento, o Buda encontrava-se sentado debaixo de uma árvore, era um fulano qualquer
na Índia e, no seguinte, acordou como o Buda Shakyamuni, o Totalmente Abençoado. No
entanto, isso não aconteceu assim. A iluminação foi o final de um longo processo. O Buda
foi diligente em treinar e desenvolver sua mente. Isso demandou empenho, paciência e
disciplina para transformar-se.
Como bulbos adormecidos sob a terra enregelada, as qualidades da mente iluminada
necessitam de tempo e de condições apropriadas para brotar. Embora momentos de visão
clara surpreendentes e reveladores possam aprofundar nosso entendimento, a mente
iluminada não se abre de repente. Esses momentos de visão clara são como os dias que vão
ficando mais quentes no fim do inverno. Um único dia quente, ensolarado, não fará com
que as flores desabrochem, mas, se mais dias assim ocorrerem, veremos indícios do caule e
das folhas e, finalmente, botões. Da mesma maneira, à medida que se acumulam, os
momentos de visão clara começam a influir em nossa atividade. Somos capazes de abrir
nosso coração. Começamos a usar o que entendemos na contemplação para inspirar nossa
conduta no mundo. O tipo de visão clara que temos e a capacidade de entender seu
significado dependem de quanto tivermos antes consolidado a força da mente.

102
A maioria de nós contempla o que nos falta na vida, e não aquilo que temos.
Contemplar o que temos abre a possibilidade de a mente expandir-se, ser menos fechada.
Ao contemplar a alegria de ser humano, concentramo-nos nas palavras: “Nascimento
humano feliz, difícil de encontrar, livre e muito favorecido”.

Quando era jovem, costumava, antes de dormir, entreter-me da seguinte maneira. Na


minha imaginação via-me deitado na cama. Então, afastava-me como uma câmara para que
meu campo de visão incluísse minha casa, a vizinhança em Boulder, o Colorado, os
Estados Unidos, o continente americano. Depois eu olhava o planeta como se fosse um
globo, incluindo a Índia, onde tinha nascido; o Tibete, onde meu pai e minha mãe
nasceram; e a Escócia, onde aprendi a falar inglês. Em seguida, visualizava a Terra como
uma bonita esfera azul a flutuar na escuridão. Aumentava ainda mais o quadro, incluindo
outros planetas de nosso sistema solar, com o Sol no centro. O mais espantoso era ver a
Terra desaparecer na escuridão como se fosse um ponto. Logo imaginava os planetas
exteriores do sistema solar. O Sol desaparecia enquanto eu imaginava todas as estrelas de
nossa galáxia, que pareciam infinitas. Nossa galáxia fundia-se em uma só estrela, uma luz, e
eu fazia com que aquela luz ficasse minúscula, rodeada por outras luzes na escuridão, que
não eram estrelas, mas galáxias. Finalmente, pensava em como eu era pequeno e em como
era estranho e maravilhoso ter nascido. Todos aqueles que conhecemos nasceram. Todos
os que vemos já foram bebê um dia. Primeiro eles não estavam aqui e depois estavam. Não
contemplamos o nascimento com tanta freqüência — estamos ocupados demais
preocupando-nos com dinheiro, comida, com nossa aparência, com a aparência dos outros
e sobre o que os outros pensam da nossa aparência. Mas o nascimento é uma passagem
profunda. Ver um pinto abrindo a bicadas seu caminho para fora é tocante e muito forte.
Embora soframos no processo de nascer, o nascimento pode ocorrer com muito amor e
abertura. E, assim como a morte, o nascimento nos mostra a fragilidade da vida.
De toda a centena de milhões de estrelas e planetas, dentro de nossa pequena Via
Láctea, este parece ser o único planeta capaz de sustentar vida. As provas científicas de que
dispomos sobre vida em outro lugar estão nos aminoácidos e nas rochas — nem mesmo
em animais, muito menos em seres humanos. Se pensarmos em quantos tipos de seres
nascem na Terra, é surpreendente que tenhamos nascido humanos. Um ensinamento
budista tradicional a respeito da dificuldade de ter um nascimento humano usa a imagem

103
de uma tartaruga cega que nada em um oceano tão vasto quanto a Terra, e uma canga para
bois que flutua à deriva na superfície. Uma vez a cada quinhentos anos, a tartaruga nada até
a superfície. Diz-se que a probabilidade de termos um nascimento humano é tão pequena
quanto a probabilidade de essa tartaruga emergir com a cabeça enfiada na canga.
Podemos pensar em como somos livres no reino dos humanos. O Buda viu esse
lugar como o lugar em que se pode estar, porque nesse reino — se temos sorte — podemos
ouvir e praticar os ensinamentos espirituais. Podemos descobrir nosso estado natural e
ajudar os outros a descobrir o deles. Embora os seres nos outros reinos ainda tenham a
possibilidade de uma mente desperta, em geral é mais difícil cultivá-la. De acordo com os
ensinamentos budistas, em alguns desses reinos, os seres nem mesmo possuem corpos. Em
outros, pensam que têm corpos, mas não têm. Em certos reinos, os seres sofrem demais, a
ponto de nunca poderem superar sua situação. Em outros, são constantemente torturados
pelo calor, pelo frio, pela aspereza, pela umidade, pela secura, pela luz brilhante ou pela
escuridão. Em alguns, os seres são totalmente consumidos pela inveja e pela raiva. Há
reinos em que os seres estão sempre esfomeados. Em outros, os seres não conhecem o
sofrimento que lhes permita investigar a realidade; eles estão se divertindo demais. Esses
são os reinos dos deuses, que vivem por muito tempo — mas não para sempre. Há
também o reino dos animais, onde impera a ignorância. Aqui há menos possibilidade de
alcançar uma mente desperta, porque toda a energia se esvai na tentativa de permanecer
vivo.
Os hábitos dos animais são fascinantes. Quando assisto na televisão aos
documentários sobre a natureza, eu me pergunto: “Será que os animais às vezes pensam em
alguma coisa? Se um castor tem uma árvore maior para roer, os outros ficam
contrariados?”. Ao contemplar o reino dos humanos, podemos pensar em como sofrem os
animais — eles são usados como bestas de carga, são comidos por nós e comem-se uns aos
outros. Parece que a maior parte de sua vida é circunscrita a um território e caótica. É
incrível quanto há de agressão, luta e medo no reino dos animais. Quando acampamos em
um local em que há animais perigosos, sabemos como alguém se sente quando tem de
preocupar-se com a possibilidade de ser devorado.
“Bem favorecido” significa que nascemos em uma época e em um lugar em que
temos o luxo de ouvir, contemplar e pôr em prática ensinamentos que nos despertam para
nossa mente iluminada. Somos relativamente saudáveis, temos um teto sobre nossa cabeça
e comida para levar à boca. Temos uma família e amigos. Encontramos alguém que nos

104
pode ensinar como treinar a mente e abrir o coração. A ameaça da guerra nuclear, do
terrorismo e do aquecimento do planeta é um lembrete de que não podemos considerar
tais condições sem questionamento. Somos apenas esses pequenos seres que viajam em um
ponto azul no espaço. E, no entanto, às vezes agimos como se fôssemos o centro do
universo. A alternativa desperta é apreciar como a vida humana é inacreditavelmente
preciosa e rara. A alternativa desperta é apreciar tudo. Quando valorizamos tudo o que
encontramos, podemos usar isso para impulsionar nossa jornada de guerreiro. Somos bons
assim como somos e isso é bom assim como é. Ao compreender isso, veremos que
vivemos em um mundo sagrado.
Como resultado, podemos ser alegres. Talvez não estejamos felizes o dia todo, todos
os dias, mas não nos lamentaremos. Ao apreciar cada aspecto da vida humana, podemos
beneficiar os outros. Quando gozamos de boa saúde, podemos valorizar isso. Quando
estamos doentes, podemos usar a enfermidade para despertar para a preciosidade de nossa
vida. Podemos apreciar a saúde que temos e sentir compaixão por outros que estão menos
saudáveis. Mesmo quando estamos muito doentes, podemos ser curiosos e corajosos, e
usar isso como uma oportunidade para inspirar aos demais.
Quando sentimos qualquer tipo de dor, podemos usar isso para abrir nosso coração
para o fato real de que as pessoas estão sempre sofrendo. A dor é algo que todos
experimentam. Podemos usar isso para embasar-nos na verdade fundamental de nosso ser.
A experiência de primeira mão que a dor nos propicia permite que sejamos bondosos e
generosos com os demais. Ela nos dá um acesso direto, através da empatia, a que ajudemos
os outros. Podemos usar a dor para ativar a compaixão. Gostaríamos que os outros não
sentissem dor e podemos nos oferecer a eles. Podemos contemplar as palavras: “Que todos
os seres sejam livres de dor”. Nossa experiência direta da dor apenas torna mais forte nosso
voto. Ela pode até mesmo diminuir nossa dor, porque nossa alegria aumenta. Isso é uma
meditação maravilhosa, sentar-se e contemplar o alívio da dor e do sofrimento de todos, de
todo o mundo — não apenas porque nossa atitude para com a própria dor muda, mas
também porque é a abertura da mente à iluminação.
Se temos riquezas materiais, podemos apreciar a possibilidade que isso nos dá de
ajudar os outros. Se não somos ricos, podemos apreciar a simplicidade e liberdade dessa
circunstância. Sempre podemos contemplar e apreciar o que temos. No repouso na paz,
dispomos dos meios para amansar nosso cavalo selvagem. Na contemplação, temos uma
maneira de despertar a coragem para dirigir nossa mente rumo à iluminação. Quando

105
geramos amor desinteressado e compaixão, revelamos um enorme poder para ajudar os
outros a encontrar a libertação da escuridão desconcertante e opressiva do samsara. Somos
efetivamente bem favorecidos.
Esses são apenas alguns pensamentos que podemos contemplar para experimentar
por inteiro o significado de nosso precioso nascimento humano. Ao praticar e voltar a
mente para uma apreciação de nossa situação fundamental, tornamo-nos menos enredados
em nossas próprias complicações. Torna-se mais fácil sintonizar com os prazeres simples e
comuns da existência. Os problemas ficam menores. Porque apreciamos aquilo que temos,
estar vivo nos parece novo e bom.

106
14.

A imutável verdade da mudança

A impermanência mostra a sua face o tempo todo. Por que lutamos para escondê-la?
Por que perpetuamos o mito da permanência se com isso alimentamos o círculo do
sofrimento? Experiências, amigos, relacionamentos, bens, conhecimentos ⎯ trabalhamos
tão arduamente para nos convencermos de que eles vão durar. Quando um copo quebra ou
nos esquecemos de algo, ou quando alguém morre ou as estações mudam, nós nos
surpreendemos. Não podemos acreditar completamente que acabou.
Quase todos os verões dirijo um programa em nosso centro de retiros nas
Montanhas Rochosas. Criamos um mundo de tendas em uma grande planície ⎯ tenda de
jantar, tenda de meditação, tendas para dormir. É uma temporada refrescante, já que a
maioria das pessoas vive em edifícios durante o ano todo. No início do verão, armamos as
tendas e as desarmamos no final. Depois que as tendas vêm abaixo, quando olhamos para o
prado, sempre ficamos surpresos. Nós nos sentimos felizes e tristes. Estamos felizes ao
pensar sobre o que aconteceu durante o verão; ficamos tristes com o fato de as tendas se
terem ido. Pareciam tão reais. Não importa quantas vezes já fizemos isso, no fim de todo
verão temos o mesmo sentimento.
Esse sabor agridoce marca nossa vida. O filme termina, nosso relacionamento chega
ao fim, as crianças crescem. A impermanência sempre bate na nossa porta. É claro que o
reconhecimento da impermanência não traz a permanência. Significa que estamos mais
sintonizados com a realidade; podemos relaxar. Quando abrimos mão do apego à
permanência, nossa dor começa a diminuir, porque já não vivemos mais no engano. Ao
aceitar a impermanência, gastamos menos energia resistindo à realidade. O sofrimento
adquire uma qualidade mais direta. Já não estamos tentando evitá-lo. Entendemos que a
impermanência é um rio que corre ao longo da vida, não uma pedra no meio do caminho.
Vemos que, por causa de nossa resistência à impermanência, a dor e o sofrimento são
constantes. Compreendemos que a dor começa com o desejo de permanência.
A contemplação ajuda-nos a entender verdades profundas que raramente levamos
em conta, apesar de estabelecermos nossa vida sobre elas. Contemplamos essas verdades a
fim de produzir uma mudança em nossa compreensão da realidade, no modo como
percebemos a vida. Quando, durante uma sessão de meditação, mantemos a mente sobre as

107
palavras: “Tudo é impermanente”, seu significado começa a ficar claro. Quando
vislumbramos o que é a impermanência, conservamos a mente nessa compreensão. Assim
nos familiarizamos com uma verdade simples em que em geral nem mesmo reparamos.
Começamos a viver a vida com uma compreensão mais profunda.
Neste mesmo instante, as condições atmosféricas mudam, nosso cabelo cresce,
pessoas morrem e nascem, e a Terra gira ao redor de seu eixo enquanto se translada ao
redor do Sol. Estamos ficando mais velhos. Talvez nosso estado de ânimo tenha mudado
de ontem para hoje. Por mais claro que isso possa ser para nosso intelecto, temos a
tendência de colocar-nos em transe e pensar que as coisas são permanentes. Ficamos
hipnotizados, pensando que o mundo, nós, nossos relacionamentos, nossos sentimentos,
todos são permanentes. Mas tudo isso é impermanente. Essa contemplação leva-nos a um
nível de compreensão básico. Volta a colocar-nos sentados sobre a sela.
Quando tinha oito anos, voei da Índia para a Inglaterra. Nunca tinha estado em um
avião. Quando começamos a aterrissar em Londres, olhei para baixo e vi um mundo de
prédios minúsculos, ruas, carros e caminhões muito pequenos. Isso me fascinou. Mal podia
esperar que o avião aterrissasse, para que eu pudesse dirigir um daqueles carrinhos. No
entanto, ao aterrissarmos, aquele pequeno mundo de repente cresceu e assumiu proporções
adultas. Tinha mudado.
O mundo é composto de infinitas partes em movimento. A mente produz uma
continuidade aparente de eventos e idéias. O que chamamos “guerra” é uma série de
calamidades que surgem de crenças e opiniões, que estão sempre sujeitas a mudanças. O
que chamamos “paz” é a ausência de agressão, um estado delicado e raro. Quando é
inverno, não existe mais verão. Organizamos nossa vida ao redor do conceito de um eu
sólido, de um mundo sólido, ainda que tudo isso seja simplesmente idéias e formas que
existem e deixam de existir, como milhares de estrelas que cintilam na noite. Existe alguma
coisa que não seja impermanente?
Enquanto contemplamos a impermanência, podemos examinar o que a permanência
implicaria. A permanência seria complicada. Seria uma situação imutável, isolada no espaço,
não afetada pelo tempo ou pelos elementos. Não teria princípio nem fim, nem causas e
condições. Tudo duraria para sempre. Não haveria as estações do ano. Nunca nasceríamos,
cresceríamos, nos apaixonaríamos, envelheceríamos ou morreríamos. Nunca comeríamos,
pois jamais teríamos fome. Não poderíamos ter nenhum tipo de relação com nenhuma
outra coisa, porque disso resultaria que mudaríamos. Ao contemplar a impermanência,

108
percebemos que é impossível que a vida seja diferente. Começamos a relaxar e desfrutar do
constante jogo de luz e sombra, do visível e do invisível, de acréscimo e decréscimo.
Contemplar a impermanência pode ser uma experiência libertadora que nos traz
moderação e alegria. Essencialmente, passamos a ser menos apegados. Damo-nos conta de
que não podemos possuir nada. Temos dinheiro e depois ele se vai; estamos tristes e em
seguida já não estamos mais. Não importa quanto nos agarremos aos nossos entes
queridos, por sua própria natureza todos os relacionamentos são um encontro e uma
separação. Isso não quer dizer que temos menos amor. Significa que temos menos fixação,
menos dor. Significa que temos mais liberdade e que valorizamos mais as situações, porque
podemos relaxar nos altos e baixos da vida.
Entender o significado da impermanência nos transforma em pessoas menos
desesperadas. Dá-nos dignidade. Deixamos de agarrar-nos ao prazer, na tentativa de
espremê-lo até a última gota. Já não consideramos a dor como algo a ser temido, negado e
evitado. Sabemos que mudará. Isso nos orienta com firmeza para a abertura da mente da
iluminação. Aprendemos a olhar para o que está à nossa frente. Não precisamos mais fazer
de conta que a felicidade é permanente: “Se eu me esforçar no trabalho, ganharei muito
dinheiro e depois serei feliz”. Percebemos que não é isso que traz felicidade; ela vem do
cultivo das virtudes que nos conduzem à iluminação. No final das contas, ela se origina da
sabedoria, da compreensão da imutável verdade da mudança.

109
15.

Primeiro envelhecemos

Numa sociedade tão fascinada pela juventude como a nossa, é útil contemplar o
processo de envelhecimento. Se pensarmos sobre ele e entendermos seu lugar na vida,
poderemos mudar nossa atitude em relação à velhice. Nessa contemplação, colocamos a
mente no significado das palavras: “Envelhecer é da natureza humana. Eu celebro isso”.
O nascimento é um evento penoso e maravilhoso. Desse momento em diante,
envelhecemos. Quando crianças, experimentamos as dores do crescimento, de não saber
nada, de fazer amigos em um mundo recém-descoberto. Quando adolescentes, passamos
pelas dores da pressão dos nossos pares e da puberdade. Tudo isso passa muito depressa.
Quando somos jovens, queremos ser mais velhos. Quando somos mais velhos, talvez
desejemos ser mais jovens.
Durante as celebrações do novo milênio, assisti a uma série de entrevistas com
pessoas que tinham vivido cem anos ou mais. A cada uma delas perguntaram: “Se você
pudesse reviver qualquer período de sua vida, qual seria ele?”. Sem exceção, as pessoas
disseram que seriam seus sessenta anos. Nessa idade elas estavam em sua maturidade
mental e ainda tinham um corpo capaz de fazer o que quisessem. Um deles havia
começado a participar de maratonas aos sessenta anos, outro tinha tomado lições de vôo.
Em termos culturais, tenho os pés em dois mundos. No Ocidente, afligimo-nos com
o envelhecimento. Nós nos sentimos velhos e começamos a nos comportar como velhos.
No Tibete, as pessoas não parecem se preocupar muito com a velhice. Quando escuto
minha mãe e outros tibetanos de sua geração falar sobre envelhecer, o tom de sua voz é de
orgulho. Eles se orgulham de terem vivido tanto tempo. Estão satisfeitos. Suas mentes são
jovens. Têm uma curiosidade incessante, estão sempre aprendendo. Um de meus
provérbios tibetanos favoritos é: “Mesmo que morra amanhã, ainda há algo que você pode
aprender esta noite”. Com essa atitude não nos sentimos tão velhos.
Uma vez, quando eu voltava para casa tarde da noite, vindo do aeroporto com minha
mãe, passamos por um McDonald’s. Eu lhe disse: “Este é o restaurante mais famoso dos
Estados Unidos”. Ela disse: “Aquele?”. Expliquei-lhe que havia muitas lojas do
McDonald’s, e que muitas pessoas não gostavam da comida lá servida. Ela me disse que
gostaria de experimentar. Como quase sempre ela come comida tradicional tibetana, não

110
pensei que fosse gostar. Dirigimo-nos até a entrada do drive-through do McDonald’s, o que
era uma experiência totalmente nova para ela. Todo o processo a maravilhou. Pedi um
hambúrguer para ela e, enquanto partíamos, ela deu sua primeira mordida. Perguntei se
tinha gostado. Para minha surpresa e horror, ela disse: “Perfeito! A carne está quente e o
pão, macio”. Depois disso, embora não goste de muitos restaurantes americanos, ela adora
o McDonald’s.
Ao contemplar o envelhecimento, deveríamos aceitar uma sugestão de nossos amigos
tibetanos: desfrutar do envelhecimento e valorizá-lo, e não sentir horror por ele. Não
precisamos nos sentir pressionados para extrair toda a vida de nossa existência, numa
tentativa de superar o processo em que ficamos mais velhos. Podemos envelhecer com
dignidade. Enquanto envelhecemos, tornamo-nos mais sábios, mais experientes; temos
mais sabedoria a oferecer aos outros. Podemos manter a saúde e a vitalidade com as
atividades e a alimentação corretas e, mais do que tudo, com curiosidade pela vida.
Podemos aprender a celebrar a verdade de envelhecer sem nos esconder nas sombras da
negação e do pensamento discursivo.

111
16.

E então morremos

Passamos a maior parte do tempo evitando a morte, não pensamos a seu respeito.
Quando pensamos, temos calafrios. Podemos nos sentir levemente surpresos, abalados em
nosso equilíbrio. Tememos a morte, em parte porque não sabemos o que acontecerá, em
parte porque temos medo da dor que talvez sintamos quando ela chegar. Quando espiamos
através da porta da morte, ao contemplá-la, seu significado começa a penetrar em nós.
Contemplar a morte dá-nos força porque nos liberta do medo. Por isso contemplamos o
significado destas palavras: “A morte é minha amiga, o mais verdadeiro dos amigos, porque
está sempre esperando por mim”.
Ao nosso redor, a vida e a morte executam uma dança que dá textura à existência. A
morte é nossa amiga porque nos dá a vida. A morte define a vida. Se não houvesse a morte,
não poderíamos apreciar a vida. A cada momento da vida, a morte está esperando por nós.
Vamos morrer. Não sabemos quando, não sabemos como morreremos. Todas as pessoas
que conhecemos morrerão ⎯ nossos pais, amigos, filhos, animais de estimação, gente de
quem gostamos e de quem não gostamos, reis e rainhas, chefes de Estado, astros e estrelas
do cinema, do rock, pessoas ricas e pobres. Todos terão a mesma sorte. Este corpo será um
cadáver.
Sem sermos mórbidos, sempre que a morte se apresenta, podemos contemplá-la.
Podemos discuti-la com nossos amigos. Se quase somos atropelados por um ônibus, se nos
ferimos em um acidente de carro, se ficamos doentes, podemos refletir sobre a membrana
permeável que separa a vida da morte. Quando alguém próximo de nós morre, podemos
examinar minuciosamente a morte, questioná-la e deixar que ela nos transforme. “O que é
a morte? Por que isso está acontecendo?”. Tradições diferentes explicam a morte de
maneiras diferentes. Mas, quando experimentamos a realidade da morte, ela afeta nossa
vida. Ela nos apresenta um profundo mistério. A maior parte do tempo preferimos não
investigar isso. Mas, quando estamos diretamente submetidos à sua influência, podemos
nos abrir a ela, tentar entendê-la.
Quando escutei que meu pai estava gravemente doente, simplesmente não conseguia
conceber que ele provavelmente morreria. Ele era um grande mestre de meditação e
professor budista. Depois que os chineses invadiram o Tibete, ele fugiu a pé, conduzindo

112
trezentas pessoas por sobre as montanhas, rumo à Índia. Passou muitos anos de sua vida
plantando a flor do dharma na rocha da América do Norte. Foi um mestre-guerreiro. Se
alguém pudesse se esquivar da morte, parece que seria ele. Sua morte deixaria um imenso
buraco em minha vida assim como na vida de muitos outros.
Eu estava de pé ao seu lado, no instante em que ele finalmente faleceu. O espaço foi
tomado por energia e força, tornou-se quase luminoso. Não ocorreram pensamentos. Foi
assim por muitos dias, como se a realidade tivesse mudado. Toda minha vida eu havia
escutado falarem sobre a morte, vira pessoas que morriam ou que já tinham morrido. Mas a
morte de meu pai afetou-me de um modo diferente. Sua mortalidade fez com que me desse
conta de minha própria mortalidade. Fez com que constatasse a mortalidade de todos.
Puxou-me para fora de minhas concepções errôneas. Mudou profundamente minha
atitude. Por muitos meses pensei em como viveria o resto de minha vida. Compreendi que
a morte era real. Não devia perder tempo. Passei a dedicar-me muito mais à prática e aos
estudos. Essa experiência íntima da morte ajudou-me a apreciar a vida.
Muitas vezes tocamos a vida como se ela fosse durar para sempre. Com essa atitude,
queremos tudo. O fato da morte coloca um limite no que podemos ter, no que podemos
fazer. Não precisamos pensar na morte o tempo todo, mas refletir sobre ela, contemplá-la,
dá-nos perspectiva e inspiração sobre como viver a vida. Também faz com que nos
tornemos menos mimados. Faz-nos olhar para o equilíbrio de nossa vida e determinar o
que tem prioridade. O que é importante para mim? Como devo usar minha vida? Depois
de termos nos relacionado com a morte, seremos capazes de viver mais abertamente as
situações. Isso fortalece ainda mais o nosso amor.

113
17.

Samsara e karma

Tudo o que experimentamos, todos os altos e baixos da vida, está basicamente


contido na palavra samsara. Samsara é uma roda que gira sem parar. Pensamos que a vida
progride numa linha reta que aponta na direção do aprimoramento, mas de fato estamos
em um círculo de ilusão que nos faz sempre regressar ao ponto de partida. Karma, a ação
de causa e efeito, é o que nos mantém aqui. Não importa quem sejamos, somos
prisioneiros desse processo.
O samsara sempre tem de ter a última palavra. Necessitamos somente de algo mais
para sermos felizes. Uma coisa leva a outra, perpetuada pelo nosso desejo de obter a
satisfação definitiva.
Mas a próxima experiência também nos deixa incomodados e ainda precisamos de
mais alguma coisa. Precisamos comer, então precisamos ouvir música, depois precisamos
ver um filme e aí precisamos de um banho para relaxar. O desejo de sentir-se satisfeito é
um processo contínuo que impulsiona nossa vida, e o resultado final é o sofrimento. O
samsara não é um pecado, é apenas o que ocorre quando somos impelidos por emoções
negativas. Chamamos o que termina por acontecer de sofrimento. Do ponto de vista do
Buda, nós nos mantemos nessa roda vida após vida.
O sofrimento do samsara apresenta-se de três maneiras especiais: o sofrimento do
sofrimento, o sofrimento da mudança e o sofrimento onipresente. O sofrimento do
sofrimento é muito básico. O nascimento nesta vida é doloroso: choramos porque
precisamos deixar o corpo de nossa mãe. Entramos então em um mundo de calor e frio.
Até certo ponto, passamos a vida nos fortificando contra essas formas fundamentais de
sofrimento. Vestimo-nos com roupas pesadas para resistir ao frio, construímos abrigos
para nos proteger do sol. Simplesmente não temos como vencer o sofrimento do
sofrimento. Estamos atrasados para uma reunião, deixamos as chaves de casa dentro ao
fechar a porta, cortamos o dedo ao tentar entrar na casa novamente, depois ficamos presos
no trânsito e enfim, quando chegamos, a reunião foi cancelada. Isso é o sofrimento do
sofrimento.
Há também o sofrimento da mudança. Seja qual for o objeto de nosso prazer, ele se
transformará em dor. Experimentamos esse tipo de sofrimento quando nos apaixonamos e
depois brigamos. Experimentamos isso quando comemos um prato delicioso em um novo
restaurante e, após algumas horas, nos vemos no banheiro com os intestinos sensíveis e o
estômago revirado. Experimentamos isso quando as roupas que compramos saem de
moda. Ou quando nosso corpo, que tem sido nossa constante fonte de prazer, fica doente,
desmorona e nos importuna com suas necessidades. Esse é o sofrimento da mudança.
A terceira espécie de sofrimento é o sofrimento onipresente. Resulta da realidade de
que nada é consistente, de que tudo é condicionado e se esvai. No nível atômico, tudo está
indo e vindo o tempo todo. A própria consciência passa a existir e deixa de existir centenas
de vezes, em um estalar de dedos. O mundo que percebemos e como o percebemos estão
mudando continuamente. O sofrimento onipresente é em muito a qualidade inerente desse
processo. Não importa o que temos, não podemos lutar contra a flutuação constante e a
instabilidade da existência. Esse nível de instabilidade traz consigo a agitação mental.
O propósito de contemplarmos o samsara não é nos sentirmos esmagados ou
deprimidos, mas despertar-nos para o que é o samsara, a fim de que paremos de ser
ludibriados por ele. Então podemos desistir de tentar levar vantagem sobre ele. Podemos
abandonar a expectativa de que algum estratagema nosso resultará em prazer permanente.
Podemos reconhecer o samsara, superá-lo e sair dele. Ao acordar pela manhã, podemos
nos dizer que, embora seja possível que experimentemos o sofrimento no decorrer do dia,
não precisamos correr atrás de nosso próprio rabo, seduzidos pela tentativa de sobrepujar
o samsara.
Samsara não é um lugar, é uma atitude: “Sou real e tudo é para mim”. Quando nos
tornamos conscientes dessa atitude e daquilo que a cria, podemos começar a modificá-la. O
que cria o samsara é que continuamos a tentar obter prazer por meio de atividades não
virtuosas que resultam do aturdimento, da fixação, do desejo, da agressão, do ciúme e do
orgulho. Isso não conduz ao prazer, e sim ao sofrimento.
O sofrimento é o karma da atividade não virtuosa. Karma significa “ação”. Em
tibetano, dizemos le. Simplificamos a dinâmica do karma dizendo que uma coisa causa
outra. Contudo, o karma é mais complexo do que isso. Há muitas causas para cada efeito.
Pense em todas as precondições que precisam ocorrer juntas apenas para que possamos ir
para o trabalho dirigindo nosso carro: precisamos de boa saúde, de roupas para vestir, de
um automóvel que funcione, que nenhum acidente ocorra ao longo do percurso, saber
onde fica o escritório. Tudo o que acontece é o resultado de muitas precondições. Quem

115
cultivou a maçã que estamos comendo? Quem a colheu? Quem a entregou na mercearia? O
karma faz o mundo girar.
Todos nós queremos ser felizes. Ninguém quer sofrer. Por isso, a finalidade de
contemplar o karma é verificar quais as causas e precondições que se juntam para produzir
felicidade e quais produzem sofrimento. Então podemos nos voltar em direção à felicidade.
Se, com o intento de tornar nossa vida melhor, estivermos empenhados em agressão
e avidez, o resultado final será doloroso. Não devemos nos surpreender se essa dor gerar
mais raiva e inveja; é apenas o karma em ação. Inversamente, ações baseadas em virtudes
como a compaixão, a bondade, o amor, a paciência e o desapego conduzem à felicidade.
Essas são consideradas virtudes porque elevam a mente acima das emoções negativas. Por
exemplo, se praticamos a não-agressão quando nos sentimos irritados com nosso cônjuge e
deixamos de agravar a situação com a raiva, podemos resolver nossas diferenças
pacificamente e manter a harmonia. Mesmo que essa paciência não esteja inteiramente livre
de interesse próprio, apesar disso, agir com virtude nos conduz em direção à mente da
iluminação. Através do exercício da virtude, descobrimos finalmente a insubstancialidade, a
vacuidade e a luminosidade. Agir a partir da virtude conduz à virtude que leva à felicidade.
Se plantamos pessegueiros, sempre colhemos pêssegos; se plantamos pereiras,
sempre obtemos peras. O karma funciona exatamente assim. Se plantamos não-virtude —
migewa —, temos sofrimento. Se plantamos virtude — gewa —, temos felicidade. Se usamos
fortes emoções negativas para obter o que queremos, e se o que queremos é a felicidade,
isso nunca vai funcionar. Portanto, temos de contemplar nossas intenções e ações.
Contemplar o samsara e o karma fortalece a intenção de desviarmos o curso de nossa vida
para longe do sofrimento e rumo à verdadeira felicidade.

116
18.

Mergulhar no coração do Buda

Quando contemplamos a impermanência, a doença, a velhice e a morte ⎯ e todos os


outros aspectos de nosso precioso nascimento humano —, percebemos como temos uma
fixação, como temos sido determinados e obstinados em nossa versão da realidade. É claro
que essa fixação nos causa sofrimento e dor: quanto mais envolvidos estamos com nós
mesmos, mais temos raiva, inveja e outras emoções traumáticas. Quanto mais procuramos
a satisfação própria, com mais sofrimento terminamos, do menor ao mais extremo. Em
todos os casos, o sofrimento resulta de algum tipo de intenção egoísta. Damo-nos conta de
que temos agido dessa forma porque considerávamos que nossas emoções, nossos
conceitos e nossos pensamentos eram reais. A meditação mostra que essas emoções são
fundamentalmente ilusórias e vazias. Sentados, passamos horas contrariados, ansiosos, e ao
final é como se tudo fosse um sonho. Fica claro para nós que esse simples mal-entendido
trabalha contra nossa felicidade e nosso bem-estar.
É apenas disto que precisamos para abrir a mente da iluminação: ter uma
compreensão clara da dinâmica da confusão e do sofrimento. Temos de entender a
natureza do sofrimento e sua origem. Com isso, teremos alcançado a perspectiva de um ser
iluminado, o que nos abre uma janela para o mundo. Vemos que todos querem ser felizes,
assim como nós, e que outros seres também criam uma enorme quantidade de dor e
sofrimento a partir de experiências ilusórias que supõem ser reais. Começamos a sentir uma
empatia genuína com o sofrimento que eles experimentam. Desejamos que seu sofrimento
cesse.
Esse é o nascimento da compaixão. A compaixão faz crescer o coração. A palavra
tibetana para compaixão é nyingje. Nying significa “essência”, ou “coração”. Je significa
“senhor”, “nobre”. Compaixão é ter a mente do coração nobre. Os membros da família de
coração nobre são bodhisattvas guerreiros, que têm visão e intenção superiores porque seu
coração é grande e corajoso. Eles querem fazer algo a respeito do sofrimento dos outros.
A compaixão dá origem ao amor. Amor é o desejo de que os outros sejam felizes,
realizem tudo que sua mente desejar ⎯ seja algo material ou mental ⎯, que tudo o que
desejam seja satisfeito. Esse amor e essa compaixão denominam-se bodhichitta, “coração
desperto”, porque a mente natural e incondicionalmente iluminada se interessa pelo bem-

117
estar dos outros. No Tibete, o bodhichitta é chamado changchup sem. Podemos considerar que
isso significa: “Até que todos os seres sencientes tenham alcançado o nível de um buda,
serei corajoso ao trabalhar pela felicidade dos outros”. Isso expressa a motivação de um
guerreiro bodhisattva, alguém que prometeu desenvolver sua mente iluminada para ajudar
aos outros.
O que o Buda descobriu é que todos têm bodhichitta, pronto para ser nutrido. Dentro
do redemoinho desconcertante de pensamentos e emoções que mantém nosso sentimento
de um ego concreto, cada um de nós já tem as sementes do amor e da compaixão.
Bodhichitta é o coração radiante que, constante e naturalmente, sem consciência de si, gera
amor e compaixão para benefício dos outros. É uma torrente de amor e compaixão que
nos conecta a todos, sem fixação ou apego. Há uma tristeza terna associada a ele, como um
ferimento eternamente exposto. É nossa verdadeira natureza. Cultivar essa qualidade
suaviza nosso futuro porque, dadas as condições apropriadas, a mente iluminada
desabrochará como uma flor. Quando isso ocorrer, estaremos sincronizados com as coisas
como elas realmente são.
A mente iluminada emerge sempre que desejamos a felicidade do outro, sem querer
nada em troca. O bodhichitta é grande, como no momento de altruísmo em que um pai ou
uma mãe fariam qualquer coisa para livrar o filho do sofrimento. Contudo, ele também se
expressa em pequenas ocasiões, como quando desejamos que alguém tenha comida para se
alimentar ou se saia bem em uma prova ou no trabalho. Esse momento de prazer e cuidado
é bodhichitta. É nossa condição desperta, que está à espreita, como uma jóia que surge
espontaneamente de nosso coração aberto. É nossa verdadeira riqueza, uma bênção que
está sempre disponível. Pode surgir em qualquer lugar ⎯ no meio de uma discussão,
enquanto lemos um livro, durante uma caminhada ⎯, sempre que sentimos que
gostaríamos de ajudar uma criança, um animal, uma pessoa idosa, um amigo ⎯
incondicionalmente, sem expectativas. Também aparece no sentimento de compaixão,
quando queremos que cesse a dor de alguém que cortou o dedo, ou que sofre com seu
câncer.
Ao longo da vida, experimentamos o bodhichitta, mas de maneira fugidia. Algumas
vezes sentimos uma vasta compaixão ou um grande amor ⎯ mas então ele se dissipa como
um sol que surge e depois desaparece, ou como uma estrela cadente. É muito vibrante, mas
logo se dispersa. Parece uma anomalia, porque não estamos acostumados. Pode ser que ele
tenha posto a cabeça para fora inesperadamente, mas nós a esmagamos de volta. Não

118
tínhamos lugar para deixar crescer esse coração guerreiro, terno, aberto e corajoso, porque
só havia lugar para “mim” ⎯ minhas preocupações, meus desejos. Agora que nossa mente
se suavizou, está mais flexível, a alegria natural de sermos quem somos pode se expandir.
Quando contemplamos o bodhichitta, tentamos moldar a mente até que estender amor
incondicional e compaixão aos outros seja a coluna mestra de nossa motivação básica.
Desenvolver o bodhichitta envolve uma mudança fundamental de atitude. O ponto
principal está em, aos poucos, mudar o objeto da meditação, de nós para os outros. A
mente acostumou-se tanto a olhar para dentro de si que é preciso uma transformação
completa a fim de fazê-la virar-se para fora. De fato, toda nossa existência esteve voltada
para dentro, de modo que é necessária alguma massagem para virá-la para o outro lado.
Essa mudança é causada pela percepção de que o costume de sempre pensarmos em nós
apenas nos mantém infelizes. A estrada para a verdadeira felicidade começa em doar-nos
aos outros.
A essência dessa prática está em sentir o amor e a compaixão que temos em nós, para
poder aumentá-los e cultivar a aspiração de que, assim como o Buda, possamos então
oferecer nosso coração aberto a todos que encontremos. Para fazer isso, temos de incitar
regularmente o bodhichitta.
Tal como acontece com todas as contemplações, incitar o bodhichitta depende de uma
mente forte e estável. Tendo como base o repouso na paz, podemos trazer um sentimento
para nosso coração e lá conservá-lo, sem nos distrairmos. Por outro lado, enquanto
contemplamos a compaixão e o amor, fortalecemos a atenção plena. Primeiro, sentimos o
amor ou a compaixão que temos agora, por alguém próximo de nós. Saturamo-nos com
esse sentimento e então, gradativamente, expandimos o círculo para incluir conhecidos,
pessoas “neutras”, pessoas irritantes e, enfim, todos os seres sencientes. Com o cultivo,
essa mente de bodhichitta surgirá espontaneamente diante de qualquer pessoa que
encontremos.
Começamos a contemplação repousando no campo aberto da equanimidade. Com
essa atitude, abrimos mão das idéias fixas de inimigo e amigo, que é como costumeiramente
dividimos o mundo. Tendemos a ter opiniões muito fortes sobre quem amamos e quem
não amamos, baseadas, em geral, no fato de alguém fazer com que nos sintamos bem ou
mal. Esses conceitos mudam o tempo todo: um amante se transforma em inimigo e um
inimigo, em amigo. Bons sujeitos se transformam nos maus, e vice-versa. Mantemos essa
visão de maneira sutil: mesmo entre os animais, por exemplo, pensamos que os tubarões

119
são maus e os coelhinhos, bons; achamos as borboletas bonitas e os mosquitos, detestáveis.
Agora abrimos mão de nossas opiniões e fazemos tábula rasa de tudo. Queremos
desenvolver amor e compaixão incondicionais por tudo e todos. Se nos concentramos
apenas em quem amamos, incitar o bodhichitta se tornará um exercício de apego.
Quando os chineses invadiram o Tibete, em 1959, todos que conseguiram escapar se
tornaram refugiados. Entre eles, o Dalai Lama, outros líderes governamentais e religiosos,
ricos proprietários de terra e a população nômade e os fazendeiros mais pobres. Quando os
refugiados chegaram à Índia, independentemente de seu status social no Tibete, nenhum
deles tinha uma casa para morar. Todos eram iguais. Governante e súdito, lama e monge,
rico e pobre, todos tinham de fazer o melhor que podiam como refugiados políticos em
um país estrangeiro. O terreno havia sido nivelado.
Para encorajar a equanimidade, podemos assumir a atitude de que todos os que
encontramos, direta ou indiretamente, foram bondosos conosco. O motorista do ônibus
leva-nos aonde precisamos ir. Pessoas trabalham à noite para que possamos ler as notícias
no café da manhã. Um total desconhecido cultivou a batata que comemos no almoço.
Mesmo alguém que nos irrita pode nos dizer as horas se lhe pedimos essa informação. Se
acreditamos em reencarnação, uma maneira tradicional de fazer surgir uma atitude de
equanimidade é imaginar que, em algum momento ao longo de muitas vidas, qualquer ser
senciente foi nossa mãe. Cada ser que encontramos nos ofereceu o amor incondicional e a
proteção de uma mãe, assim como já os oferecemos a cada um deles. A pessoa sentada ao
nosso lado no avião, em uma ou outra de suas vidas, foi nossa mãe, nosso pai, nosso filho,
nosso irmão ou nossa irmã. Quando invocamos a equanimidade, a finalidade é libertar-nos
de opiniões, abrir mão das idéias relativas do que gostamos e desgostamos.
Com essa atitude, começamos onde estamos. Trazemos à mente alguém por quem
sentimos, neste exato momento, ternura, amor e dedicação. Poderia ser nossa mãe, nosso
marido, nossa esposa, nosso filho, nosso gato ou nosso cão. O importante é que, quando
pensamos nessa pessoa ou animal, nosso coração se abra automaticamente. Uma razão para
sentirmos amor ou compaixão por essa pessoa é que ela mesma se importa conosco.
Pensamos nessa pessoa e nosso coração automaticamente se expande. De alguma maneira,
ela trouxe alegria, amizade e conforto a nossa vida. Quando pensamos em sua bondade,
gostaríamos de retribuir. Nosso coração já está aberto e conectado. Sem vínculos de apego,
queremos que seja feliz. Então, começamos a aspiração com aquilo que desejamos a essa
pessoa: “Espero que meu irmão viaje em segurança”, “Que a cirurgia de Diana seja um

120
sucesso”, ou simplesmente: “Que David desfrute de felicidade”. Nós nos conectamos com
o amor e a compaixão que sentimos facilmente.
Acessar esse sentimento imediato produz uma pequena fissura no terreno ao redor
do coração. Podemos ver um feixe de luz, como o tenro broto de um bulbo de açafrão que
irrompe do solo no começo da primavera. Isso é o bodhichitta. Habituamo-nos a essa luz, a
essa brotação, nela repousamos. Nós nos abrandamos ao seu redor, temos grande prazer
com ela, como uma flor sob a luz do sol. Nós a sentimos como refrescante e maravilhosa, e
só queremos que cresça mais ainda. O coração se torna mais luminoso, mais amoroso e
mais desvelado. Nós nos absorvemos completamente na alegria natural do bodhichitta. Há
um sentimento de alívio. É como descobrir que tudo o que sempre queríamos para os
outros e para nós já está dentro de nosso coração. É como despertar de um sonho. Quanto
mais tempo relaxamos nessa energia, maior ela fica.
Contemplar o bodhichitta requer muito desprendimento. Quando fazemos essa prática,
poderão surgir esperanças e temores a respeito de entes queridos, pensamentos negativos
sobre pessoas de quem não gostamos ou acerca de eventos dolorosos. Não lidamos com
essas distrações passando por cima delas com um pretenso amor. Enquanto voltamos às
palavras: “Que essa pessoa conheça a felicidade”, ou: “Que essa pessoa se livre do
sofrimento”, há algo mais profundo por baixo da perturbação emocional e que nos diz:
tudo bem, podemos deixar a cólera se dissipar. Aquele algo é o bodhichitta em expansão. Tal
como a paz que sentimos no shamatha, esse bodhichitta é intrínseco, um lugar natural de
descanso. No entanto, devemos praticar para familiarizar-nos com ele e treinar para fazê-lo
crescer.
À medida que nos estabilizamos na calidez e na abertura do sentimento por nosso
ente querido, tornamo-nos capazes de irradiá-lo numa esfera mais ampla. Agora nós o
tornamos grande o suficiente para que inclua alguém de quem não somos tão próximos
assim. Podemos começar desejando que um vizinho ou conhecido seja feliz. “Que o amigo
de Jared consiga o emprego que deseja.” Começamos a dar-nos conta de que, assim como
nossos entes queridos, essa pessoa também merece nosso cuidado e nossa bondade. Se nos
sentimos mais audaciosos, podemos desejar às pessoas que alcancem a raiz da felicidade,
que consiste em descobrirem sua bondade fundamental. Podemos desejar que encontrem o
caminho de saída do aturdimento e do sofrimento. Todos merecem ser felizes; ninguém
merece sofrer. Assim, oferecemos esse sentimento a eles. Começamos a perceber que
temos amor e compaixão em abundância para compartilhar. À medida que geramos esses

121
sentimentos, eles nos trazem uma verdadeira sensação de alívio. É como o sol que derrete
um bloco de gelo em nosso coração e o transforma na água quente e acolhedora de uma
piscina, na qual podemos descansar. Quanto mais exercitamos a prática, maior se torna a
piscina e mais gente podemos convidar para compartilhá-la. Essa riqueza é auto-
sustentável: quanto mais geramos, mais temos.
Agora podemos oferecer nosso coração a pessoas que mal conhecemos ⎯ que
vemos na rua, no escritório. Podemos olhar em seus olhos e ver que elas são como nós,
como meu filho, minha mãe, meu irmão, minha mulher, meu marido. Podemos até mesmo
dar amor e compaixão a pessoas que vemos na televisão, pessoas a respeito de quem lemos
no jornal. Podem não ser minha mulher ou meu amigo, mas todos nós necessitamos de
amor, precisamos de atenção. É como se convidássemos alguém para jantar. Preparamos a
comida e ficamos totalmente absorvidos, atentos para que gostem e se divirtam. Se ficam
felizes, isso nos faz felizes.
Agora o broto jovem e tenro cresceu e tornou-se um talo enorme. Quando geramos
amor e compaixão, entramos no coração do Buda, onde há amor e compaixão ilimitados
para todos. É uma energia que flui em liberdade e, mesmo não sendo particularmente
nossa, nos conecta com todos os demais, além dos limites de personalidade e conceitos.
Podemos enfim trazer à mente pessoas de quem nem sequer gostamos, e irradiar para elas
o calor do nosso amor e da nossa compaixão.
Em seguida, podemos oferecer o bodhichitta a todos os seres sencientes. Podemos
usar a aspiração: “Que todos os seres sencientes fiquem livres do sofrimento”, e
permanecer no meio de um enorme círculo de fogo que queima com tanto brilho que já
não nos sentimos separados de nenhum deles. Esse é o poder do bodhichitta, a grande mente
da iluminação. É a mente do guerreiro bodhisattva, que pode ter infinito cuidado por todos
os seres.
Quando nos levantamos da sessão de meditação, podemos manter esse fogo aceso
no coração. Podemos carregar conosco, a cada momento da vida, essa calidez, essa
intenção de cuidar do bem-estar dos outros. Ao fazer isso, imediatamente nos tornamos
mais despertos, mais atentos a nossas qualidades iluminadas. Cavalgamos o cavalo-de-vento
⎯ a energia da bondade fundamental, que é nossa desde tempos imemoriais. Se somos
diligentes em gerar amor e compaixão, em certo momento ela surgirá espontaneamente,
qualquer que seja a situação. É como saltar para dentro do coração da iluminação, que é

122
nosso próprio coração. Quando despertamos o coração da iluminação, isso não é
simplesmente o que temos, é o que somos.
Se passamos parte da manhã e parte da tarde gerando o bodhichitta, podemos
relembrar como foi nosso dia e sentir-nos genuinamente bem por termos feito algo que
valeu a pena. Fomos corajosos o suficiente para ocupar o “nosso” pensando nos outros.
Para que a mente faça isso, ela precisa sair de dentro de si mesma. Ela precisa estar menos
preocupada com seus próprios interesses. Ela precisa simplesmente se esforçar um pouco.
Ao fazer isso, estamos dando amor e compaixão também para nós mesmos.
Não necessitamos pensar o tempo todo em cada uma das pessoas que existem no
planeta. Incitar o bodhichitta significa que estamos ativamente engajados, pensando a
respeito de ambos, de mim e do outro, sujeito e objeto. Apenas por pensar além de “mim”,
estamos reciclando; devolvemos algo à Terra e ao mundo. Simplesmente ao pensar: “Que
ela seja feliz”, em vez de: “Que eu seja feliz”, começamos a mudar a estrutura de nossa vida
e, em certo grau, a estrutura de todo o mundo. Há tantas pessoas na Terra ⎯ quantos de
nós estamos sentados sobre uma almofada com a mente calma, gerando amor e compaixão
em nosso ser? Quantos de nós sabemos que podemos fazer isso? Mesmo que saibamos,
quantos de nós nos reservamos um tempo para fazer isso?
Quando geramos essa mente da iluminação, descobrimos que ela produz em nós
felicidade e paz. Contemplar o bodhichitta, pensar a respeito dele e gerá-lo é uma maneira
segura de ser feliz, de ficar em paz. Ter bondade e compaixão diante do sofrimento conduz
ao desejo genuíno de alcançar a iluminação. É por isso que, na tradição budista de
Shambhala, a felicidade é conhecida como uma virtude, porque o produto da virtude é mais
virtude. E a felicidade é a maneira como experimentamos a virtude.

123
Quatro.

124
125
O GUERREIRO NO MUNDO

126
19.

Aumentar a motivação

A palavra tibetana para motivação é künlong. Significa “subir acima de, avançar”.
Ativando a motivação, tornando-a maior, é assim que avançamos além do samsara. É
preciso coragem para aumentar a motivação. O primeiro passo na expansão da motivação é
parar e perceber o que estamos fazendo. Podemos começar por perguntar: “Qual é a
finalidade de minha vida, seu verdadeiro significado? Qual minha motivação ao viver esta
vida?”. Quanto mais contemplamos a motivação, mais ela se torna uma força potente e
poderosa.
Tradicionalmente, há poucos níveis diferentes de motivação pelos quais podemos
viver. Essas motivações são um desenvolvimento natural do potencial humano. A primeira
motivação é cuidar de nossas necessidades materiais. Essa é uma motivação de senso
comum. Temos de comer, vestir-nos e manter-nos aquecidos. É bom cuidar da família e de
nós mesmos. Contudo, se essa é a única motivação, não estamos realizando o potencial
humano.
A segunda motivação é um pouco mais ampla: combinamos as metas mundanas com
a prática espiritual. Em nossa cultura, muitos praticantes são motivados por preocupações
mundanas e usam a espiritualidade para serem bem-sucedidos em realizar seus desejos. Não
há nada errado em usar a prática espiritual para obter o que desejamos. As pessoas sempre
fizeram oferendas aos deuses a fim de ter a garantia de colheitas abundantes. Entretanto,
deveria ficar claro que no âmago dessa motivação se assenta o desejo de nossa própria
satisfação. O perigo dessa motivação está em pensarmos que estamos nos transformando
em pessoas menos mundanas, quando o que acontece é que distorcemos a prática para
fortalecer nossa zona de conforto. Isso é uma cilada comum, não um crime.
Meu pai freqüentemente ensinava sobre “cortar além do materialismo espiritual”.
Isso significa cortar através das tentativas de usar a espiritualidade para alimentar o eu
sólido. O Buda também ensinou que a estabilidade, a paz que chega até nós com a
meditação, pode se tornar uma armadilha tanto quanto qualquer velho desejo. Podemos
criar uma zona de “cachinhos dourados” a partir da prática e nela nos esconder. Podemos
tornar-nos “viciados espirituais”, motivados somente por aquilo que nos faz sentir bem.
Muito do que hoje em dia passa por espiritualidade, em realidade, não é mais do que

127
procura de prazer, do “barato”. Essa auto-absorção disfarçada de espiritualidade apenas
nos traz mais sofrimento. A espiritualidade verdadeira diz respeito a conseguirmos nos ligar
à terra. Se compreendemos quem somos, podemos dar-nos conta das necessidades dos
outros e fazer algo para ajudá-los. Estar aterrado em quem somos chama-se bondade
fundamental.
A motivação amplia-se ainda mais quando começamos a pensar em como nossos
atos presentes podem nos afetar depois da morte. Essa motivação maior provém da
percepção da vasta interligação de causa e efeito, e do fato de nossas atividades atuais
afetarem diretamente o que acontecerá conosco no futuro. Com essa motivação,
praticamos os ensinamentos espirituais para nos assegurar de uma pós-vida ou um
renascimento favorável, dependendo de nossas crenças. Nas culturas budistas tradicionais,
as pessoas são motivadas pelo desejo de acumular méritos. O mérito é como uma série de
reações em cadeia entre peças de dominó, que possibilita resultados positivos nesta vida e
em vidas futuras. Nômades tibetanos partem em longas peregrinações religiosas, algumas
vezes prostrando-se meses a fio por vastas planícies despovoadas e cadeias de montanhas.
Fazem isso para mostrar sua devoção sincera pelos ensinamentos vivos do Buda. Mas,
implícita a sua atividade, encontra-se a motivação de fazer agora algo que os conduza a um
futuro mais feliz.
Quando viajei pelo Tibete, fiquei muito tocado pela devoção dos nômades. Todos
fazem oferendas ao mosteiro local. Pessoas quase sem nenhum dinheiro fazem doações
generosas aos mestres e monges. Sempre que eu me hospedava em um mosteiro, aldeões
ficavam em fila por horas, apertando-se e empurrando-se para poder ofertar o pouco que
tinham. As pessoas também passam o tempo esculpindo mantras em pedras e caminhando
em volta de lugares sagrados. Embora meditar e fazer oferendas seja a base da sua cultura,
sua verdadeira motivação é fazer com que mais tarde as coisas saiam bem para eles. Eles
estão menos voltados para seu “eu” presente e mais interessados em como podem se
preparar para a morte, assim como para o renascimento. Sabem que alcançar a iluminação
pessoal pode levar muitas vidas, então se preparam com atividades meritórias a fim de
estabelecer condições para um renascimento favorável e, finalmente, para a iluminação. Em
termos budistas, isso significaria nascer humano, em circunstâncias em que possam escutar
e praticar o dharma. Essa motivação é também uma versão ampliada da abordagem “tenha
um dia agradável”. Tentamos pôr tudo em ordem para fazer com que as coisas funcionem
no longo prazo. Queremos que esse dia agradável dure por mais tempo.

128
Na motivação seguinte, mais ampla, vemos com clareza que a reação em cadeia de
causas e condições que domina o mundo é cíclica, interminável e fundamentalmente
insatisfatória. Talvez tenhamos lutado um relacionamento depois do outro, ou tenhamos
problemas sucessivos com a família ou no trabalho. Algo abre os nossos olhos para o
aturdimento e a escuridão do samsara. Vemos que a dor, o sofrimento, a impermanência e
a morte são fatos da vida.
Quando ingressamos nessa motivação maior, deixamos de pensar que podemos
obter do círculo do sofrimento aquilo que desejamos. Percebemos sua qualidade
interminável e queremos que a roda-gigante pare. Aqui, a motivação é livrar-nos do ciclo e
buscar a libertação do sofrimento.
Todas essas motivações são consideradas pequenas, porque estão centradas em nossa
própria felicidade, em oposição à felicidade dos outros. No entanto, cada uma delas é um
pouco maior do que a anterior, porque sua perspectiva é mais ampla. O que assinala a
fronteira entre uma pequena e uma grande motivação é a mudança de enfoque, de nossa
própria felicidade para a felicidade dos outros. Considera-se uma grande motivação usar
nossa vida para produzir benefício aos outros. Ter essa motivação de bodhisattva guerreiro é
o que nos faz gerar o bodhichitta. Bodhichitta é nossa melhor mente, e excitar a coragem para
viver com base nela é a maior motivação que existe. É essa motivação que conduz à
iluminação.
Saber por que sofremos, saber que existe algo que podemos fazer a respeito disso, nos
leva a dedicar a vida a servir os outros, que sofrem assim como nós. Depois de termos
entendido nosso próprio sofrimento, já não temos medo dele. Temos a coragem de
oferecer aos outros uma compaixão genuína, não porque pensamos ser melhores do que
eles, mas porque sabemos que somos todos iguais. Sabemos que, exatamente como nós,
eles sofrem porque não conhecem sua própria riqueza. Sabemos que, da mesma maneira
como nós, eles poderiam despertar sua mente iluminada mediante a ativação do bodhichitta.
Isso faz nascer uma maior compaixão. Quanto mais confiança temos em nosso próprio
estado natural, mais queremos ajudar os outros a enxergar o deles. Essa sabedoria torna-se
o sol dentro do coração, e a compaixão torna-se a lua que brilha acima dele.
Essa é a motivação de um ser iluminado, a motivação que não tem limites e se
estende tão longe quanto a própria mente. Trazer benefício aos outros pode assumir muitas
formas, mas o benefício supremo consiste em ajudar os outros a despertar do aturdimento
e do sofrimento, ajudá-los a ver a bondade fundamental. Assumimos o bem-estar de todos

129
os seres como nossa responsabilidade e esforçamo-nos para alcançar a iluminação
incomparável como meio de realizar essa mesma iluminação nos outros. Estamos tão
familiarizados com as raízes do aturdimento e do sofrimento que não podemos deixar de
sentir amor e compaixão por todos. Iríamos até os confins da Terra para mitigar o
sofrimento dos outros. Trabalharíamos pelo benefício dos outros por milhares e
intermináveis vidas. Mesmo que talvez não acreditemos que existam muitas vidas, nossa
coragem é grande assim. Temos esse tipo de fortaleza e perspectiva visionária.
Esse é o modo de ser do bodhisattva guerreiro, um ser inspirado em alcançar a
iluminação. Obviamente, é uma motivação valiosa, mas é importante que sejamos honestos
com nós mesmos e comecemos onde estamos. Necessitamos de um terreno debaixo dos
pés para poder caminhar mais longe. Podemos expandir a motivação gradualmente. Essa é
a razão de nos familiarizarmos com nossa motivação e começarmos a expandi-la. Fazemos
isso mediante a contemplação.
Contemplar a motivação requer a disposição para ir mais devagar, abrir-se e entrar
em sintonia com a própria vida. O que está acontecendo neste preciso momento? O que
está nos impulsionando? A motivação muda de um dia para outro. Estando conscientes de
que temos uma motivação, sempre podemos fazer com que ela cresça, mesmo quando nos
sentimos tensos ou arrasados. Podemos praticar aumentar a motivação como um meio de
abrir o coração para além do nosso próprio sofrimento ⎯ relaxar no bodhichitta que nos liga
a todos.
Ao contemplar a motivação, percebemos que às vezes estamos aprisionados em
nossa mente rígida, hermeticamente fechada. O que nos puxará para fora dessa nossa
retração? Às vezes, tomar uma ducha, fazer uma caminhada ou descansar para relaxar pode
ser a maneira de abrir-se para uma motivação maior. Talvez pratiquemos ioga ou
meditemos por alguns minutos a fim de nos sentir melhor, um pouco mais fortes. Em
alguns momentos, percebemos que nos sentir confortáveis nos anima, mas apenas por
pouco tempo. Esse é um vislumbre da renúncia. Então o coração pode suavizar-se um
pouco, enquanto pensamos no amigo que sofreu um acidente de carro e agora não pode
mais praticar ioga. A compaixão surge em nosso fluxo mental e já não estamos mais
pensando só em nosso próprio bem-estar. O coração e a mente se suavizaram e cresceram;
simplesmente por importar-nos com outra pessoa, ingressamos na motivação corajosa do
coração desperto. Cada um de nós tem o potencial de aliar a mente a essa vasta motivação.
Isso exige que conheçamos nossa própria força, que é a razão pela qual meditamos.

130
Podemos nos suavizar e nos abrir além do nosso círculo restrito e viver a vida plenamente.
Fazer essa viagem requer disciplina, zelo e fortaleza, mas, como todas as viagens, ela
começa com um primeiro passo.
Experimentemos. Amanhã de manhã, ao abrir os olhos, sentemo-nos na cama,
inspiremos profundamente e perguntemos a nós mesmos: “Muito bem, como me sinto
hoje, mentalmente? Como vou enfrentar este dia? O que me motiva agora?”. Tragamos à
mente algumas das diferentes motivações. Contemplemos nossas motivações por alguns
segundos, ou como um ritual de cinco ou dez minutos no início do dia. Todos os seres
humanos já têm uma motivação. Temos uma oportunidade de conhecer a nossa e conduzir
a mente para a motivação do bodhisattva guerreiro.
A boa notícia é que o coração desperto está em harmonia com a motivação vasta. De
fato, é a motivação vasta. A mente da iluminação é naturalmente grande e aberta, zelosa e
bondosa. São os pensamentos discursivos de nossa mente-cavalo selvagem ⎯ e a bagagem
de nosso sólido senso de eu ⎯ que nos dão a sensação de pequenez e de claustrofobia. A
verdadeira felicidade reside em abrir a mente da iluminação. Como chegamos daqui até ela?
Aumentando a motivação. A motivação é o que pavimenta o caminho que vai do
aturdimento e do sofrimento até a sabedoria.

131
20.

Sabedoria e vacuidade

Passo muito tempo estudando textos budistas tradicionais. Estudar é um exercício


profundo para entender os ensinamentos e, de certa forma, é como um jogo de estratégia,
que exige que estejamos atentos a cada lance. Certa vez, li um mestre antigo que descrevia
como entendia a meditação. Ele comentava como praticar, como a mente deve estar, que
tipo de motivação se deve ter, e assim por diante. Pensei: “Isso parece verdadeiramente
bom!”. Li então, no final do capítulo: “Por sinal, isso não é a história toda”. E o texto
passava a descrever, em detalhe, como tudo o que acabara de dizer era somente a verdade
relativa.
No caminho espiritual, há sempre um lugar mais além para ir. Pensamos ter chegado
àquele que é verdadeiramente “o lugar”, mas então surge algo que puxa o nosso tapete,
algo que nos arrasta para além daquela perspectiva, para uma percepção mais profunda.
Construir uma zona de conforto a partir da meditação nunca funciona. Se meditamos
corretamente, a prática e a compreensão sempre nos leva um pouco além do ponto a que
pensávamos querer chegar. Ao repousar no verdadeiro significado da contemplação,
familiarizamo-nos com nossa própria sabedoria. Começamos a ver a realidade como ela é.
Justamente quando ampliamos a perspectiva para além do que um dia imaginamos, nossa
sabedoria nos empurra para um mundo ainda mais vasto. É assim que continuamos a
avançar pelo caminho. A cada estágio da meditação contemplativa, encontramos um nível
mais profundo de conhecimento.
O aspecto da mente que conhece suas próprias ações é sheshin, “consciência”, “saber
agora”. A mente está sempre sujeita a distrair-se com pensamentos sobre o que aconteceu
no passado e com idéias sobre o que poderá ocorrer no futuro, mas a experiência da vida é
o que acontece agora. A mente passa a existir e deixa de existir a cada momento, assim
como a capacidade para saber. O agora é um momento fugidio, mas podemos conhecê-lo.
É um momento de novidade, um envolvimento pleno no presente instantâneo. A
meditação nos treina no impressionante poder da mente de estar completamente presente
no que acontece agora.
A consciência dá-nos a capacidade de saber o que fazemos, e a visão clara ⎯
vipashyana ⎯ nos dá a capacidade de compreender. Não andamos mais à toa ou passamos

132
ao largo das situações, perturbados, inconscientes de nossa própria vida. O poder da
consciência diz-nos como a mente se sente, o que ela experimenta, a qualidade de nossa
meditação e como nós a conduzimos. Nota a natureza transitória e ilusória dos
pensamentos, das emoções e dos conceitos. A visão clara é a visão mais elevada, que chega
a conclusões sobre o que a consciência percebe. Ela entende os fenômenos, nossa mente, a
confusão ⎯ tudo com que nos defrontamos ⎯, e percebe sua verdadeira natureza, seu
significado. Nesse momento, ocorre uma surpreendente transformação. O simples ato de
ter consciência, combinado com a capacidade de reflexão da visão clara, começa a
desenvolver um elemento mais profundo denominado prajna. O prajna é a inteligência
natural da mente. A palavra significa “o melhor conhecimento, o conhecimento mais
elevado, o conhecimento mais sublime”. É a capacidade de conhecer o que é. Ao
contemplar conceitos como impermanência, a preciosa oportunidade de nascer humano e
bodhichitta, usamos a compreensão conceitual como meio de abrir o portal para nossa
sabedoria.
Para compreender a verdade da realidade, precisamos ter uma mente que não esteja
completamente oprimida por padrões pré-fabricados e que tenha despertado a motivação
de ser verdadeiramente compassiva em sua busca. Nossa compreensão é contínua e
cumulativa: continuamos tendo pequenas percepções sobre a natureza da realidade e elas
vão se baseando uma na outra. Por exemplo, a dor que sentimos quando nos aferramos ao
nosso sólido senso de eu e a alegria que sentimos quando repousamos em nosso estado
natural abrem a porta para a compaixão pelo sofrimento dos outros.
A sabedoria relativa ⎯ o prajna causal ⎯ leva-nos além do conceito de “mim”,
diretamente para a realidade de nossa experiência. Ela cria as condições para o resultado
final, que é a compreensão não conceitual.
O que é compreensão não conceitual? É a percepção intuitiva que sabe a verdade
diretamente, não por intermédio da razão ou da lógica, mas além do campo do
pensamento. Digamos que nunca vimos a lua. Ao escutar a respeito dela, pintamos um
quadro em nossa mente. Alguém desenha uma lua na areia para nós e isso a faz mais
concreta, mas ainda é apenas uma idéia. Então, numa noite clara, vemos a lua refletida na
água. Embora essa imagem pareça mais próxima da verdade, ainda não conhecemos a lua
em si. Alguém, enfim, aponta para o céu e vemos a lua diretamente. Agora conhecemos a
lua. Costumamos dizer: “É ver para crer” ⎯ no entanto, a compreensão não conceitual
está além da crença. A lua em si mesma está além das palavras, do quadro, do reflexo e do

133
dedo. É nessa direção que o prajna nos leva ⎯ para além. A verdadeira realidade é sem
conceito, além da dualidade disto e daquilo. É saber sem o filtro do eu. A experiência direta
é a própria sabedoria ⎯ não nascida, incessante, nem parada nem em movimento.
É o prajna que nos leva além da mente conceitual para descobrir, passo a passo, a
bondade fundamental. É o prajna que nos dá um vislumbre da totalidade do coração do
universo, que tem a mesma natureza que nós próprios.
Com o prajna, descobrimos que não existe coesão física para o que vemos e, no
entanto, as aparências continuam surgindo. Nossa paixão é ainda estimulada. O que
compõe o objeto de nosso desejo? Aquilo que nos agarra ⎯ um sentimento, uma refeição
ou uma outra pessoa ⎯ é constituído de partes, e essas partes podem ser subdivididas
infinitamente. Quando procuramos um eu sólido, onde está ele? Em nossos sentimentos?
A meditação mostrou-nos como estes são efervescentes. Em nosso corpo? Nesse caso,
onde? Nos braços, nas pernas, na cabeça, no coração? Não podemos encontrar o eu em
nenhuma dessas formas. Mesmo que cheguemos à conclusão de que somos todas essas
partes, elas não se sustentam juntas como um eu. Há em nós algo além da forma; há
também a consciência.
A consciência ocorre em muitas formas. Ela também não é sólida. Há uma
consciência associada à visão, à audição, ao paladar, ao tato, ao olfato. É assim que
conhecemos o que percebemos. Também temos uma consciência mental, na qual temos as
recordações, as idéias e os sonhos. Essas recordações, esses pensamentos e sonhos, estão
baseados nas percepções sensoriais. Por intermédio dessas percepções sensoriais é que
conhecemos a forma. E por meio do prajna entendemos que as formas não são sólidas. Um
dos ensinamentos budistas mais instigantes coloca isso da seguinte maneira: “Forma é
vacuidade, vacuidade também é forma”.
Nossa investigação começa a mostrar-nos que o eu, que no princípio parecia tão
sólido, não é absolutamente sólido. Quando o desmontamos, não podemos encontrar
nada. Ver a realidade do não-eu é um entendimento preliminar da vacuidade profunda. No
entanto, assim mesmo, nós percebemos um eu, e o mundo nos parece bastante real. A
respeito disso, alguém perguntou ao Buda: “Se não existe eu, quem está aqui falando com o
senhor, e o que é esse mundo que vejo?”. Ele respondeu: “O que você vê são skandhas,
amontoados, agregados. São forma, sensação, percepção, formação mental e consciência”.
Ele colocou um punhado de arroz sobre o chão e disse: “O eu é como este monte de arroz.
Quando você olha para ele, isso parece ser uma entidade inteira. Quando olha mais de

134
perto, isso se subdivide em grãos de arroz, e esses grãos de arroz também podem ser
subdivididos. Assim, as coisas parecem ter forma e, no entanto, estão vazias de qualquer
forma”.
A contemplação das palavras do Buda pode nos dar apenas um pequeno vislumbre
da vacuidade, com base em uma concepção. Podemos não acreditar no que vemos, mas
uma semente de entendimento foi plantada. Isso afrouxa nosso sentido de eu. Isso é o
começo do prajna, o começo da capacidade da mente de ver de fato o que está
acontecendo. O prajna precisa de nosso envolvimento e de nossa curiosidade. Não
podemos nos experimentar como vacuidade; no entanto, depois de contemplar isso por um
tempo, é possível chegar à conclusão de que sim, realmente não existe um eu. É assim que
o prajna começa a entender quem nós somos — ou não somos —, e também a entender
nosso ambiente. Diz-se que, na hora da morte, essa profunda compreensão alvorece em
nós naturalmente, porque sentimos nosso corpo se desagregando e, no entanto, resta nossa
consciência, que é capaz de saber. Tudo o que era eu explodiu nas dez direções.1 Mas, se
agora contemplamos a verdade da vacuidade, não precisamos esperar esse momento
especial para descobrir isso. É com a meditação que nos preparamos para a morte ⎯ e
para a vida. A meditação é um processo em que nos colocamos à vontade com nossa
sabedoria, que é a experiência direta da verdade derradeira.
Por muito tempo sustentamos o ponto de vista de que as coisas existem e são reais.
Quando realmente começamos a olhar para elas, quando as subdividimos até o nível mais
microscópico, vemos que não há nada que seja inerente a elas. Podemos olhar tanto quanto
quisermos, nunca encontramos nada de concreto. A verdade derradeira é vacuidade,
qüididade2 — em sânscrito, shunyata. A vacuidade está na base de tudo o que
experimentamos. Com isso, não estamos dizendo que nada exista, em um nível relativo, e
sim que existe uma qualidade presente em tudo, segundo a qual algo parece não estar bem
certo. Essa qualidade é a vacuidade. Não devemos nos enganar e pensar que a vacuidade é
niilismo ou não-existência, porque essa vacuidade transcende a existência e a não-
existência, a ambas e a nenhuma delas. Isso é conhecido como ta shi trö trel, “livre dos
quatro extremos”..
Essa vacuidade é inseparável da sabedoria inerente à própria mente. A vacuidade da
mente de sabedoria tem esplendor. É por isso que a natureza da mente de sabedoria é
conhecida como vacuidade da luminosidade. Da mesma maneira, o sol que brilha é
inseparável do vazio do espaço que ocupa. Essa qüididade é a natureza de tudo. É a

135
bondade fundamental — simplesmente o que é. É desse modo que um ser iluminado
experimenta o mundo. Tudo é luminosidade e vacuidade inseparáveis, quer vejamos isso
com clareza ou não. O prajna desperta o potencial para vermos isso diretamente, o que faz
surgir uma grande alegria ou enorme felicidade.
Prajna é onde visão e meditação se encontram. A visão é nosso entendimento, e a
prática é como a tornamos nossa. Praticamos o shamatha para entender a estabilidade, a
clareza e a força de nossa mente. Para começar a entender a vacuidade, contemplamos o eu
e tentamos encontrá-lo. Isso não quer dizer que damos um salto, indo direto do amansar a
mente para a contemplação da vacuidade não conceitual. Nem que juramos lealdade ao
Buda e nos preparamos para saltar. É uma transição suave. A prática do shamatha tornou
nossa mente sutil e flexível o bastante para entender essas verdades profundas. Quanto
mais praticamos, mais nos damos conta de que a rocha sobre a qual estamos de pé — o eu
fabricado — está longe de ser sólida. Com a prática e o entendimento, a rocha começa a
dissolver-se. Ao descobrir a vacuidade, não estamos saltando para lugar nenhum. A prática
desgasta a rocha, como água mole que pinga durante éons em pedra dura. Quando enfim
notamos o que está acontecendo, já superamos nosso medo de cair. Conhecemos o
sofrimento causado pelo simples mal-entendido de que havia alguma coisa sobre o que nos
mantínhamos de pé. Queremos que a prática desgaste a ilusão de um eu.
É claro que nos manter agarrados a nós mesmos é um velho padrão, profundamente
enraizado. É preciso coragem, persistência e trabalho árduo para renunciar a ele.
Entretanto, quer nos apeguemos, quer renunciemos ao eu, na realidade ele nunca existiu. É
como uma miragem. Dentro do samsara, nunca encontraremos uma existência verdadeira.
Nem a encontraremos no nirvana. Enquanto investirmos nessa ilusão, jamais haverá um
dia perfeito; algo sempre sairá errado. O prazer pelo qual esperamos sempre se
transformará na dor que tememos. Por outro lado, a sabedoria é livre de mudanças.
É através do prajna que nos familiarizamos com a verdadeira natureza da realidade.
Vemos que o samsara não é um lugar, mas uma visão equivocada, uma maneira de congelar
a realidade em um conceito. Vemos como esse padrão nos conduziu a nosso sofrimento.
Sentimos compaixão porque, é claro, todos sofrem do mesmo engano, e isso causa muita
dor. Essa sabedoria e essa compaixão podem conduzir à iluminação plena, ao pleno
despertar dessa existência de sonho, ao conhecimento completo e ao entendimento de
quem somos (ou não somos), e de onde estamos (ou não estamos).

136
Experimentar a verdadeira natureza da realidade nos traz grande alegria, raptu gawa.
Ao perceber diretamente essa qüididade, sabemos que a iluminação é possível. Subimos ao
topo da montanha e espiamos o outro lado, e vemos um lago bonito e uma planície.
Olhamos para trás e vemos que outros se empenham morro acima, com todas suas forças.
Podemos dizer agora, como o Buda: “Se para mim é possível, é possível para todos. Posso
ir até lá, ajudar a trazer essa gente aqui para cima”. Essa é a aspiração do bodhisattva
guerreiro e o fundamento da sociedade iluminada.

137
21.

O guerreiro no mundo

Quando falamos em sociedade iluminada, não falamos de alguma utopia em que


todos sejam iluminados. Falamos de uma cultura de seres humanos que conhecem a
natureza desperta da bondade fundamental e invocam sua energia para se oferecerem
corajosamente aos outros. Sua motivação está aliada à compaixão, ao amor e à sabedoria.
Essa atitude iluminada não conhece inibição: ela acomoda e incorpora as vicissitudes da
vida.
Para encontrar nossa bondade fundamental, meditamos. Ao repousar na paz,
aprendemos a permanecer destemidamente em nosso estado natural. Vemos o que vê um
ser iluminado: a bondade fundamental é a base do ser, a natureza de tudo; é um contínuo
indestrutível, um holograma de diamante com infinitas facetas. Ao contemplá-la,
descobrimos que, como o reflexo de uma gema à luz do sol, ela é vacuidade. Ao continuar
a contemplação, vemos que essa vacuidade é vibrante e dinâmica ⎯ uma divertida
exposição de pensamentos, emoções e percepções. Isso é luminosidade.
Experimentamos a bondade fundamental quando relaxamos profundamente em
como as coisas são, sem desejar mudá-las. A partir desse estado sutil, o bodhichitta flui com
naturalidade. Essa é a mente da iluminação. Nós nos aliamos a ela quando usamos a
meditação para dissolver a ilusão do eu. Podemos agora confiar na energia da mente tal
como podemos confiar na energia de um cavalo. O espírito majestoso da nossa mente-
cavalo selvagem foi domado e concentrado no cavalo-de-vento, a energia primordial da
bondade fundamental. Nossa prática consiste agora em cavalgá-la.
Nós a chamamos cavalo-de-vento porque sua natureza é elevada, forte, exuberante e
brilhante. Ela corre a galope e sua crina é agitada pelo vento. Quando visitei o Tibete, vi o
cavalo-de-vento na maneira de montar dos guerreiros que usavam trajes como os do rei
Gesar, o herói épico do Tibete. Fazer da mente uma aliada dá-nos o poder de cavalgar o
radiante cavalo-de-vento, em qualquer situação. Montar a energia da bondade fundamental
é como cavalgar os raios de um sol que está sempre nascendo. Na tradição budista de
Shambhala, chamamos isso de Sol do Grande Leste. Tudo o que encontramos resplandece
com a dignidade e o esplendor da bondade fundamental, e vemos um mundo sagrado.
Com essa visão, começamos a deitar os alicerces de uma sociedade iluminada.
Como vivemos a partir da base imaculada e pura da bondade fundamental? Como
geramos a cada encontro um coração compassivo? Como plantamos a flor do bodhichitta na
rocha da idade das trevas? O modo mais rápido e prático de fazer isso é afrouxar o
controle sobre nós mesmos. É então que o cavalo-de-vento se faz mais acessível. Sempre
volto a uma de minhas frases favoritas: “Se quiser sentir-se desgraçado, pense em si
mesmo. Se quiser ser feliz, pense nos outros”. É assim que fazemos com que a mente
iluminada desça e retorne à realidade.
Quando alcançou a iluminação, o Buda usou a terra como sua testemunha. Mais
tarde, ensinou os seis paramitas ⎯ modos corajosos de viver na terra. A palavra denota um
processo: “Chegar ao outro lado”. Fundamentamos nosso comportamento nessas ações
que nos mantêm em movimento para além da motivação pequena, rumo à perspectiva
sagrada do Sol do Grande Leste. Generosidade, paciência, empenho, disciplina, meditação
e prajna são atividades iluminadas de um bodhisattva guerreiro. É a sabedoria do prajna que as
faz iluminadas, pois as transforma, de virtudes convencionais, em maneiras de ir além da
escuridão do samsara. O prajna usa os outros paramitas para colocar o bodhichitta em
atividade.
O poder dessas atividades está em que elas nos ajudam a ficar à vontade com a
bondade fundamental. Elas nos apóiam quando estamos relaxados no alicerce de nosso
verdadeiro ser. Elas também se sustêm umas às outras. Sempre oferecer, com espírito de
generosidade, enriquece a disciplina do desapego. A disciplina de manter o coração e a
mente abertos aumenta a paciência. Ter paciência confere um poder de sustentação ao
empenho. Agir com empenho alegre em benefício dos outros fortalece a meditação. A
mente da meditação aguça o prajna, que vê as coisas como elas são. O prajna usa as outras
atividades para continuar a ativar o bodhichitta, nossa mente mais leve, e leve porque não
tem o ponto de referência de um eu. De resto, isso também nos dá certo senso de humor.
Generosidade ⎯ jinpa ⎯ é o primeiro paramita. É o tesouro do bodhisattva guerreiro
porque impede que nos apeguemos a nós mesmos. Porque temos uma mente flexível,
podemos abrir mão. A generosidade afasta o egocentrismo e o desejo de consumir, que
obscurece a bondade fundamental e amortece nossa capacidade de amar.
Às vezes é difícil sermos generosos em nossa prática. Muitas vezes, quando tentamos
gerar amor e compaixão, descobrimos que não podemos doar nosso coração àqueles que
estão além de nosso círculo imediato. Somos mesquinhos, até mesmo no nível da
aspiração. Pensamos: “Por que devo me importar com pessoas neutras? O que elas fizeram
por mim?”. Queremos tanto para nós que nem sequer podemos oferecer o desejo de que
outros sejam felizes. Não queremos dar ⎯ nem nossos pensamentos ou intenções. Nós
nos perguntamos: “Como apenas pensar pode ser de ajuda aos outros?”. Mas, quando
ouvimos que alguém está pensando em nós, subitamente o jogo vira e os pensamentos
passam a ter grande poder.
Na realidade, o que temos feito em favor de qualquer pessoa? Continuamos a receber
e consumir, tanto psicológica como materialmente, e ainda esperamos por mais. A beleza
de estimular o amor e a compaixão é que isso nos obriga a ir além dessa visão pequena. Em
face de nossos apegos, imaginar alguém que experimenta a felicidade fortalece nossa
capacidade de abrir mão. A mente torna-se mais leve. Torna-se muito claro que nossos
ressentimentos e desejos são modos habituais de apegar-nos a nós mesmos. Excitar o
bodhichitta é uma maneira de redirecionar nossa atitude para a generosidade. Ela nos impele
a começar a dar em vez de receber.
Dar fisicamente é uma maneira simples de ativar a generosidade. Dar roupas,
presentes, dinheiro, tempo ou alimentos libera os apegos e cria um canal para o amor e a
compaixão. No momento em que damos, somos totalmente altruístas. Também podemos
oferecer palavras: dando pêsames, conforto, confiança, coragem e força. Quando geramos
uma intenção ainda maior — ao fazer o oferecimento: “Que todos os seres se beneficiem”,
“Que eu possa alimentar o mundo todo” ⎯, expandimos nosso tesouro.
Fiquei maravilhado com a generosidade dos aldeões do Tibete quando os visitei em
suas casas muito modestas. Eles me ofereciam literalmente tudo o que tinham: quadros,
tapetes, panelas, frigideiras, iaques, ovelhas. Sua generosidade sem inibições era genuína.
Não era como se esperassem que eu não aceitasse suas ofertas. Quando eu as aceitava,
ficavam inacreditavelmente felizes. No entanto, algumas vezes, em nosso mundo de
fartura, escondemos a caixa de chocolates quando recebemos a visita de amigos. Olhamos
as belas frutas expostas no mercado e queremos que a pessoa à nossa frente saia do
caminho para podermos ser os primeiros a escolher.
Às vezes somos mesquinhos até conosco. Compramos uma roupa e não nos
permitimos o prazer de usá-la. Guardamos indefinidamente para uma ocasião especial.
Esse tipo de avareza apenas nos causa dor. Agarrar-se a qualquer coisa é uma maneira de
nos agarrarmos a nós mesmos. O modo de conseguir chegar ao outro lado é dar sem
hesitação. Se somos tão miseráveis que não podemos dar aos outros, é possível começar
dando da nossa mão esquerda para a direita.
Certa vez, quando eu visitava Sua Santidade Khyentse Rinpoche, um homem doente
entrou na sala querendo uma bênção que o fizesse ficar bom. O Rinpoche apenas o
segurou, como um pai. Não fez nada especial. Apenas deixou que aquela pessoa se sentisse
aceita. A generosidade mais profunda que podemos oferecer é esse tipo de amor e
compaixão. Não importa se alguém nos fez algo ou não, podemos oferecer-lhe nosso amor
e nossa compaixão. Podemos fazer isso a qualquer tempo, em qualquer lugar. Mesmo ao
cruzar o olhar com outra pessoa, podemos liberar aquilo que ocultamos. A derradeira
generosidade acontece no nível da sabedoria: saber que o doador, o recebedor e o presente
são puros e vazios. Essa é a generosidade mais profunda, porque não há apego.
A atividade transcendente seguinte é a disciplina, conhecida como tsültrim. A
disciplina são os olhos do guerreiro. Está estreitamente associada à consciência. Com
disciplina mantemos a mente ligada à visão da bondade fundamental, o terreno imaculado
do ser. Falamos e agimos a partir do bodhichitta ⎯ o coração genuíno da ternura, que
conhece a riqueza e o deleite, a impermanência e o sofrimento que dançam sobre aquele
terreno. A disciplina é uma perspectiva de longo prazo, panorâmica, que nos dá a sabedoria
de viver além do engano e da atividade discursiva.
A disciplina vê a relação entre as atividades virtuosas e as não virtuosas. Na
meditação, percebemos que retornar a mente à respiração ou repousar no significado de
certas palavras reforça a mente da iluminação. Quando nos demoramos na tagarelice
mental, ficamos temerosos e distraídos. Quando perdemos de vista o amor e a compaixão,
tornamo-nos mesquinhos e irritados. A disciplina nos faz progredir além da ignorância de
pensar que podemos fazer mais ou menos o que queremos.
Quando temos disciplina para praticar a meditação de maneira consistente, nossa
mente se torna mais forte. No interior do recipiente da disciplina, podemos relaxar. Por
exemplo, um dia meu amigo Jeff e eu estávamos jogando golfe. Ele é um jogador razoável,
mas nesse dia em particular estava muito preocupado com a distância que podia alcançar
com sua tacada. Quanto mais força usava ao bater na bola, pior era seu swing. Ele realmente
estava jogando muito mal. Tentei conversar sobre os seus movimentos, enfatizando que o
golfe era um jogo de forma, de elegância, tanto quanto da distância que a bola seria capaz
de atingir. Quando chegamos ao décimo terceiro buraco, disse: “Seus movimentos estão
tão ruins que para nosso próprio bem vou tentar ajudá-lo. Se você me permite, vou lhe dar
uma tacada de graça”. Trabalhei a posição dos seus pés, das mãos, sua postura. Ele
respondeu que aquilo parecia estranho. Então o orientei para que caminhasse até a bola e
fizesse exatamente o que eu tinha dito. Ele avançou, iniciou o movimento para trás, bateu
na bola e comentou: “Isso me pareceu realmente bom”. Foi uma bonita tacada. A bola
voou cerca de 160 metros, rolou de volta para o green e entrou no buraco. Jeff disse: “Isso
funciona, isso realmente funciona!”. Esse é o poder da disciplina.
Ao decidir o que fazer e o que não fazer, estamos usando a disciplina para preparar o
caminho para o futuro. Trata-se de aprender o que aceitar e o que rejeitar. Somos capazes
de perceber, cada vez mais claramente, a diferença entre a virtude e a não-virtude ⎯ gewa e
migewa. Percebemos a natureza do samsara e suas ciladas. A mente tornou-se forte com a
prática; logo, não somos persuadidos a agir a partir de emoções negativas, nem mesmo em
nossa mente. Sabemos que tais ações nos criam mais sofrimento. Em vez disso, voltamos a
mente para o bodhichitta e para a sabedoria. Com disciplina, começamos a compreender
como manobrar no campo do karma. A disciplina examina cada situação e pergunta: “Qual
é a ação? Qual é o resultado?”.
Com disciplina, juntamos qualidades virtuosas. Permanecer tranqüilo é virtuoso;
irradiar amor e compaixão é virtuoso; compreender a impermanência, a vacuidade, o karma
e o samsara é virtuoso. Persistir nos seis paramitas é virtuoso. Ao viver dessa maneira,
começamos a perceber que harmonizar a visão com as ações é o modo de continuarmos a
despertar. Dessa forma, abandonamos o que é negativo e recolhemos o que é positivo.
A disciplina constrói um recipiente para a atividade iluminada. Ela percebe quando
agimos de maneira egoísta e quando agimos com desprendimento. Percebe os obstáculos à
nossa atividade e aplica os antídotos apropriados. Para o guerreiro no mundo, o antídoto
mais básico contra a negatividade é irradiar amor e compaixão.
A paciência, söpa, é construída sobre a disciplina. A paciência é nossa sela.
Permanecer sentado na sela não significa necessariamente ser paciente e esperar pelo
médico, pelo ônibus ou pelo avião. Para o guerreiro bodhisattva, a paciência refere-se a
dominar a raiva e a agressividade. A agressividade e a raiva são perigosas para a mente da
iluminação. Quando estamos coléricos, somos totalmente absorvidos, escravizados, presos
na armadilha. A raiva com freqüência conduz à ação. Ela nos dá ímpeto para matarmos os
outros, o que lhes nega a oportunidade de descobrir a própria mente iluminada. Mesmo se
nos contemos e deixamos de agir, a raiva tem o poder de aniquilar nosso cavalo-de-vento e
destruir também nosso amor, a compaixão, a sabedoria, a generosidade, a disciplina, o
empenho, a meditação e o prajna. Por essa razão, ficamos montados na sela da paciência
para opor-nos à agressividade.
Na meditação, quando aprendemos a manter a mente sobre um objeto, treinamos a
paciência. Então, quando na vida cotidiana surge um momento de raiva, somos capazes de
conter-nos em vez de falar, e de refrear nossa ação. Não pulamos, atacamos ou reagimos.
Se nos dedicamos com afinco à prática da paciência, aprendemos até mesmo a gerar amor e
compaixão no momento em que a raiva surge. Isso é possível: no instante em que estamos
prestes a ficar com raiva, com a disciplina podemos perceber o que acontece e dirigir a
mente para a iluminação. Mesmo que façamos isso apenas por um breve momento, esse
ato fortalece enormemente nossa prática.
Paciência quer dizer não resistir à natureza da realidade. Temos a fortaleza de
manter-nos na sela da grande visão e da motivação. Não nos importamos em atravessar a
vau o rio da impermanência. Gostamos de cavalgar pelas planícies da vacuidade. Ficamos
felizes até mesmo em situações difíceis. Queremos trabalhar pelo bem-estar dos outros por
tanto tempo quanto necessário para que todos alcancem a mente da iluminação.
Da paciência vem o empenho ⎯ tsöndru. O empenho é nossa armadura indestrutível.
Nele cintila a alegria. Com empenho, celebramos a bondade fundamental oferecendo aos
outros o nosso cavalo-de-vento. Podemos fazer isso porque superamos a preguiça. Não
temos mais receio de praticar o bodhichitta porque já sabemos que ele é quem somos.
Praticamos o empenho com o prazer despreocupado de um elefante que salta dentro de
um tanque de água num dia quente. Não há como o elefante não saltar dentro do tanque. É
entusiasmados assim que nos sentimos ou nos empenhamos para beneficiar os outros.
Excitar o bodhichitta é uma oportunidade para termos um prazer contínuo. Mal
podemos esperar para elevá-lo outra vez. Se fôssemos os únicos no mundo a gerar amor e
compaixão, faríamos isso com alegria e prazer destemidos, até o dia de nossa morte. Nossa
aspiração de ajudar os outros é tão grande que até mesmo passaríamos de bom grado toda
a eternidade no inferno para ajudar uma criança a ter menos medo de falar na sala de aula.
Por que estamos tão felizes? Porque nos libertamos do eu. Trabalhar para fazer feliz
o eu somente causa dor. Trabalhar pela felicidade dos outros nos traz alegria. Não
praticamos o bodhichitta porque é bom para nós; nós o praticamos porque conhecemos a
verdade vivificante, brilhante e vazia, da bondade fundamental. Quando sabemos essa
verdade, oferecer amor e compaixão é tudo o que resta a fazer. Não nadamos mais contra a
correnteza da realidade. Essa é a base de nossa conduta como bodhisattvas guerreiros.
Irradiar o calor do amor é simplicidade pura; gerar os raios frescos da compaixão é um
alívio; manter a ilusão de um eu separado, sólido, é enfadonho ⎯ trabalho árduo sem
nenhum sentido de satisfação. Não procuramos mais meios de evasão para não praticar o
bodhichitta.
Apesar disso, precisamos usar o senso comum. É importante que primeiro cuidemos
de nós. É como primeiro colocar sua própria máscara de oxigênio quando o avião perde
altitude, e depois ajudar os outros a colocarem as suas. Tampouco deveríamos começar
com projetos grandes demais, que não sejamos capazes de concluir. Por exemplo, todos os
anos vou para a Índia, e muitas vezes as pessoas que viajam comigo ficam arrasadas diante
da pobreza e do sofrimento que vêem. Fazem com que se sintam impotentes ⎯ como
podemos ajudar todas essas pessoas? Uma abordagem excessivamente grandiosa apenas
nos desanima, solapa nossa atividade. Talvez comecemos com apenas uma pessoa, uma
família. É importante que escolhamos atos de compaixão ou bondade que possamos
completar. Então podemos dar um segundo passo, um pouco maior. Pode ser que
tenhamos dificuldades em nosso passeio, mas nunca desistiremos. Agora vemos com
clareza que cada ato é uma oportunidade para amadurecer a mente da iluminação e,
realmente, queremos seguir em frente. A armadura do empenho é também a armadura da
alegria.
O próximo paramita é a meditação, samadhi, que significa “completamente
absorvido”. Ao montar esse cavalo, continuamos a abrir mão de nós mesmos e a renunciar
ao caminho do egoísmo. Estamos totalmente estáveis na renúncia e em nosso contínuo
abandono do samsara. Estamos intimamente familiarizados com o ciclo interminável de
sofrimento que se origina quando pensamos que o eu é real e tentamos gratificá-lo.
Estamos comprometidos em examinar os muitos modos como o samsara nos faz cair na
armadilha. Nunca nos esquecemos de que no samsara não se encontra a felicidade.
Estamos completamente comprometidos em largar a visão do eu. Se agimos de maneira
egoísta e caímos do cavalo, o paramita da meditação nos ajuda a recuperar o equilíbrio quase
instantaneamente. Somos cavaleiros tão experimentados que flutuamos com os
movimentos do cavalo.
Estamos completamente concentrados, de forma unipontual, em nossa dedicação ao
caminho do guerreiro. A mente da bondade fundamental é nossa aliada. Usamos sua força
e sua clareza para que nos removam da escuridão do aturdimento e do sofrimento, com o
coração aberto do bodhichitta. O bodhichitta envolve-nos como a luz do sol numa montanha.
Gerar amor e compaixão é nossa resposta natural a qualquer situação. Sabemos que
avançar na sabedoria do Sol do Grande Leste é a melhor maneira de renunciar ao samsara.
Essa capacidade para renunciar ao samsara nos leva ao próximo paramita, prajna, a
forma mais elevada de conhecer. O prajna é uma espada de dois gumes que surge de nossa
experiência meditativa. Sua luz prateada cintila sob o sol da bondade fundamental,
refletindo a pureza sem mácula de todas as coisas, tais como elas são. A mente que sabe a
verdade da realidade é forte e poderosa, como um raio laser. Sozinha, ela pode nos libertar
da ilusão de que existimos. Ela corta através das paredes do aturdimento e da ignorância e
as torna obsoletas. Ela queima através da confusão, do ciúme, da raiva, do auto-engano, da
hesitação e da dúvida ⎯ todos os padrões habituais que querem tornar sólida a nossa
visão, a nossa meditação, a nossa atividade. Ela vê o que é e ilumina o caminho para
libertar os outros do aturdimento que os mantém aprisionados na armadilha da escuridão e
do sofrimento. Essa espada é a arma máxima do guerreiro bodhisattva.
Generosidade, disciplina, paciência, esforço, meditação e sabedoria viram nossa
mente em direção à iluminação, como uma flor que procura a luz do sol. Isso produz
prazer genuíno. Quanto mais despertos estamos, mais ligados nos sentimos aos outros
seres sencientes. Quanto mais despertos estamos, mais queremos ajudar os outros a
alcançar a mesma liberdade.
Como podemos ajudar? Como ajudamos os outros a perceber sua bondade
fundamental, a aprender a tocar seu coração partido e aberto? Como conduzimos os outros
à mente da iluminação? Ao descrever a motivação do bodhichitta, o Buda usou a imagem do
pastor que conduz o rebanho à sua frente. Isso pode não ser muito prático: como
motivaríamos os outros a alcançar a plena iluminação sem que nós mesmos a tenhamos
alcançado? Talvez seja mais realista ver-nos como reis e rainhas guerreiros, cavalgando
nosso cavalo-de-vento com majestade, elegância e riqueza. Podemos considerar os paramitas
como um código de comportamento iluminado. Podemos usar essas qualidades como
moeda em nossas transações com os outros. Assim poderemos inspirar os outros a
descobrir sua própria bondade fundamental. Assim poderemos encorajá-los a seguir o
caminho da condição guerreira. É assim que podemos ajudar. Nossa intenção é aquela do
pastor, mas nossas ações são as de um chefe amoroso, sábio e compassivo. Se todos nós
agirmos de acordo com esse código, criaremos uma sociedade iluminada.
É possível levarmos a sério essa imagem quando estivermos andando de um lado
para outro em nosso dia-a-dia. Na estrada, trabalhando no escritório, jantando com os
amigos, trocando fraldas, no cinema, podemos nos visualizar sentados eretos na sela da
paciência, montados sobre o cavalo da meditação. Nossos olhos são os olhos da disciplina.
Próximo ao coração repousa o tesouro da generosidade. Estamos protegidos pela armadura
do empenho e na mão direita seguramos a espada resplandecente do prajna. Montamos
incessante e corajosamente sobre os raios do Sol do Grande Leste, para o benefício de
todos.
Tendo a mente como nossa aliada e esse código de comportamento iluminado, é
nosso dever e nossa alegria servir aos outros. Isso não significa servir de capacho; significa
ver com clareza qual ação hábil é apropriada a cada situação. Isso é viver a partir da mente
da iluminação. Para viver a vida com toda a exuberância, geramos amor e compaixão. Se
não progredirmos dessa maneira, tornaremos mais forte o círculo do sofrimento: agindo
por interesse, fazendo as mesmas coisas ano após ano, cada vez mais próximos da morte.
Isso é uma perda de tempo, um desperdício do cavalo-de-vento. Quando vivemos a vida a
nosso serviço, nossa força vital diminui naturalmente.
Como evitamos desperdiçar a nós mesmos? Incluindo a meditação na vida cotidiana
e excitando nossas qualidades iluminadas sempre que possível. Se nos sentirmos
desanimados ou deprimidos, visualizar o cavalo-de-vento correndo através de belas
planícies nos estimulará e fará com que nos sintamos energizados. Isso nos dá leveza e
versatilidade, como se tudo fosse possível. Essa força vital incrivelmente poderosa é o
cavalo-de-vento. Sempre temos a possibilidade de evocá-lo aqui e agora. Quando
colocamos a sela nele e o cavalgamos, tornamo-nos reis e rainhas de nossa própria vida.
A jornada do guerreiro bodhisattva começa com a atitude básica de ampliar nossa
motivação para incluir o bem-estar dos outros. Essa é uma resposta simples à idade das
trevas. Comecemos agora mesmo, engajando o amor e a compaixão, como for possível ⎯
não amanhã, mas hoje. Ao cultivar a coragem e a confiança em nós mesmos, ao manter
nosso lugar, poderemos desfrutar da criação de um ambiente sadio, usufruir da criação de
uma sociedade iluminada. Isso não precisa ser um fardo. Podemos começar procurando em
nossa própria vida e descobrindo o que podemos fazer, um passo de cada vez. O amor é a
graça salvadora. É o Buda dizendo, de pé, dentro de você: “Embora esteja escuro, tenho
esta jóia”.
Por este mérito, alcancem todos onisciência.
Que ele derrote o inimigo e as más ações.
Das ondas tempestuosas do nascimento, da velhice, da doença e da morte,
Do oceano do samsara, livre eu todos os seres.

Pela confiança do áureo Sol do Grande Leste,


Floresça o jardim de lótus da sabedoria dos Rigdens
E seja dissipada a obscura ignorância dos seres sencientes.
Que todos os seres gozem de profunda e brilhante glória.
APÊNDICE A

Preparação para a prática

O melhor apoio para uma prática de meditação regular e consistente é gostarmos


dela. Se nos preparamos corretamente e fazemos dela parte de nosso dia-a-dia, praticar é
como beber água. Por isso, antes de começar, precisamos examinar nosso estilo de vida e
preparar-nos para praticar da maneira certa.
A premissa fundamental da meditação é “nem muito tensa, nem muito frouxa”.
Podemos aplicar os princípios da gentileza e da precisão a todos os aspectos da prática. Sem
a precisão, somos incapazes de estabelecer um recipiente forte no qual a prática possa
prosperar. Por isso, estabelecemos uma rotina e a seguimos com disciplina, atendo-nos às
instruções. Sem moderação, a meditação se tornaria apenas uma outra maneira de tentarmos
nos colocar à altura de um ideal impossível. Assim, concedemos tempo e espaço para
meditar, respeitamos nossos limites e abrandamos a mente e o corpo da maneira
apropriada. É importante não esperar perfeição ou não nos apegar às minúcias da
instrução. Com moderação e precisão, a prática da meditação nos dá alegria.
Começar a prática da meditação é uma excelente oportunidade para pensar em como
passamos o tempo. Quanto do que fazemos é importante e verdadeiramente necessário?
Um dos obstáculos à meditação é deixar-se arrastar por muitas atividades. O que nos
esgota e o que nos nutre? Há atividades que poderíamos postergar ou eliminar? No início, é
útil fazermos perguntas desse tipo. Conscientizar-se prepara o terreno para um
compromisso forte com a prática. Domar a mente não é um passatempo ou uma atividade
extracurricular — é a coisa mais importante que podemos fazer. Pode até mesmo ajudar a
aliviar as pressões de nossa vida, pois nos dá clareza, paz e fortaleza. Assim, ainda que
talvez tenhamos de simplificar a vida para meditar, um dos benefícios da própria prática é
tornar a vida mais simples.
O passo seguinte é estabelecer uma rotina básica para a meditação. Quando e onde
praticaremos? Para muita gente, o melhor horário para meditar é pela manhã. Para outras, é
o fim da tarde. Alguns consideram eficaz dividir o restante do dia entre duas sessões curtas.
Podemos experimentar diferentes horários até descobrir o melhor. Tendo escolhido um
horário regular, devemos segui-lo. É assim que se desenvolve um ritmo diário de
meditação. Fixar um horário definido para a prática nos livra de ter de planejar cada dia.
Também não devemos nos preocupar com a duração da prática. Se decidimos que
vamos meditar por vinte minutos, devemos permanecer em nossa almofada por esse
tempo, a menos que a casa esteja em chamas. Use um relógio para poder simplesmente
relaxar, sem ter de pensar sobre os minutos que passam.
Uma prática de meditação bem-sucedida é uma prática consistente. A melhor
maneira de praticar shamatha ou contemplação é em sessões curtas mas consistentes ao
longo do tempo. É bom fazer de dez a vinte minutos de prática sentada algumas vezes por
dia, diariamente, por um certo período. É claro que podemos alongar as sessões sempre
que quisermos. No entanto, seguir sessões mais curtas e consistentes ao longo do tempo é
melhor do que fazer sessões longas mas esporádicas ou simplesmente não praticar. A
receita que funciona para a maior parte das pessoas é a de sessões curtas, todos os dias.
Fazer isso no começo e no fim do dia é muito bom para estabilizar a mente. Se não
podemos meditar todos os dias e decidimos praticar duas ou três vezes por semana, o
importante é que nos atenhamos a isso. Adaptamos a prática ao nosso horário. Quando
temos menos tempo, fazemos sessões mais curtas.
Se meditamos desordenadamente, fazendo uma sessão longa num dia e passando um
mês sem voltar à almofada, não temos prazer com a meditação. Essa abordagem é frenética
e estressante, como cavar um grande buraco no jardim e depois esquecê-lo. Quando
voltamos, temos de começar do zero. Uma meditação em surtos é desconfortável e penosa
porque não podemos nos beneficiar do efeito cumulativo da prática regular. Estamos
sempre começando tudo de novo. Temos de empenhar-nos com persistência. Sentar-se
regularmente, por sessões curtas, é uma abordagem mais branda. Uma das razões mais
comuns pelas quais as pessoas param de meditar é porque administram mal seu tempo.
Vincular a prática a uma situação perfeita também pode trabalhar contra nós. Um de
meus estudantes começou a praticar meditação aos vinte anos e era bastante disciplinado,
com uma prática regular de uma hora por dia. Então, quando o trabalho passou a ocupá-lo
cada vez mais, ele não pôde seguir sua programação e parou de praticar. Disse a si mesmo
que voltaria a meditar quando sua vida estivesse mais estável. Mas ele se casou e se tornou
chefe de família. Uma prática regular de uma hora de duração transformou-se em uma
possibilidade ainda mais remota. Em vez de simplesmente abreviar as sessões e permitir
que a vida se reorganizasse em torno de sua prática, ele se deixou tomar pelo pensamento
de que poderia criar um estilo de vida perfeito que acomodasse sessões mais longas. Como
resultado, havia muito tempo já não praticava.
Uma das coisas simples que podemos fazer é criar um ambiente apropriado à prática
— um lugar que seja confortável, quieto e limpo. Um canto de um quarto que tenha um
sentido elevado e seja seguro, espaçoso e privativo é suficientemente bom. Vale a pena
investir em uma boa almofada de meditação. Se o ritual nos atrai, arrumamos uma mesa
com velas, uma flor, incenso, fotos — qualquer coisa que nos inspire — e meditamos na
frente dessa mesa. No entanto, mais uma vez, não devemos nos agarrar à idéia de um
ambiente perfeito para meditar. Algumas pessoas saem da cidade e vão para as montanhas
meditar em paz e descobrem que os grilos e pássaros não se calam.
Quando era adolescente, participei de diversos retiros de prática e estudos intensivos
com o lama Ugyen Chispem, um de meus tutores. Em nossos retiros, ele sempre insistia
em que nos vestíssemos corretamente pela manhã, embora estivéssemos na montanha, em
cabanas rústicas, onde ninguém nos veria. Ele estava apenas nos transmitindo o que havia
aprendido nos retiros com grandes mestres tibetanos dos quais participara, que lhe
ensinaram a importância de cuidarmos bem de nós próprios e do ambiente em que
meditamos. Algum senso básico de dignidade em nossa aparência e no ambiente ajuda a
apoiar a prática da meditação.
No Tibete e em outros países budistas, lamas, monges e monjas vestem túnicas.
Embora no Ocidente talvez vejamos as túnicas como uma roupa muito simples, um
mínimo denominador comum, o Buda ensinou seus discípulos a usarem suas túnicas com
dignidade, especificando até mesmo que as túnicas deveriam ter bainhas uniformes e bom
caimento.
Ele ensinou que se vestir bem — mesmo usando túnicas — é uma maneira de
respeitar os ensinamentos, os outros e a nós mesmos. Mais uma vez, é uma questão de
dignidade: apresentamo-nos aos outros de um modo que seja agradável de ver, e assim
mostramos respeito por nosso corpo e nossa prática.
Esse tipo de atitude elevada se estende ao trabalho com o corpo e à alimentação.
Todos nós temos consciência de como a mente influencia o que podemos fazer com o
corpo. Reciprocamente, nem sempre consideramos a influência do corpo sobre a mente. Se
o corpo tem fome ou sente dor, é difícil estabilizar a mente. Ambos têm de estar em
harmonia. Abertura e flexibilidade do corpo estimulam essas mesmas qualidades na mente.
Um corpo flexível serve de apoio a nossa meditação sentada.
A ioga é uma maneira tradicional e poderosa de abrir a energia corporal e também de
desenvolver a flexibilidade. Quando estou em retiro na Índia, tenho o privilégio de estudar
com um dos maiores mestres vivos, Pattabhi Jois. Ele me ensinou os benefícios de fazer
algumas posturas de ioga antes da prática, como maneira das mais eficazes de relaxarmos
ao meditar. Antes de sentar-me, faço alongamentos por um tempo. É claro que, embora
seja relaxante e energizante, a ioga não substitui a meditação formal. São duas práticas
diferentes. Mesmo nos antigos sistemas hindus, a finalidade das várias posturas sempre foi
preparar o estudante para trabalhar a mente e desenvolver a sabedoria.
Praticar artes marciais, treinar tai chi ou chi-gung, ou simplesmente exercitar-se com
regularidade, são boas maneiras de preparar o corpo para a meditação. É claro que as
disciplinas tradicionais que trabalham com nossas energias interiores e com a consciência
têm mais em comum com o shamatha e a contemplação. Por essa razão, na comunidade de
Shambhala, temos um sistema tibetano próprio de ioga e treinamento físico. Comer
corretamente é outra maneira de auxiliar a prática.
Tudo o que acontece na meditação se origina no cotidiano. Por exemplo, caso
tenhamos tido um dia agitado, temos que levar isso em conta. Quando adestrava cavalos,
não podia simplesmente chegar de repente à cocheira, arrastar o cavalo para fora, prendê-lo
na guia e começar a trabalhá-lo. Tinha de ser sensível a como o cavalo se sentia naquele dia.
Parecia um pouco mais pesado? Estava de cabeça baixa, com as orelhas inclinadas para
trás? Como estava sua cauda? O cavalo tentava me cheirar ou recuava? Da mesma maneira,
precisamos compreender que cada dia é um pouco diferente do anterior.
Ao preparar a mente, começamos parando por um momento para ver como ela se
sente. É como recuar e examinar o cavalo que vamos montar. O modo como nos sentimos
muda o tempo todo, assim, a prática também deve mudar. Temos de ser compassivos e
honestos com nossas necessidades e, ao mesmo tempo, ter a disciplina necessária. Por
exemplo, se nos sentimos agitados, pode ser uma boa idéia dar uma caminhada, sem pressa,
antes de iníciar a sessão. Se estamos sonolentos, podemos tomar uma ducha fria para
despertar antes de sentarmos. Talvez nos agrade ler alguma coisa sobre meditação para
lembrarmos por que estamos praticando.
Quando iniciamos a sessão, também precisamos estar atentos para perceber o que
estamos pensando. Se apenas nos deixamos cair na almofada, logo ao chegar do escritório
ou depois de uma discussão, talvez passemos todo o período da meditação tentando
desacelerar a mente para então nos lembrarmos de que estamos meditando. Aprendemos a
deixar certas coisas para trás. É como ir para a cama domir. Se dormimos sem roupa,
primeiro tiramos cada peça. Se deixamos a jaqueta e os sapatos, ficamos desconfortáveis.
Antes de sentar para meditar, desprendemo-nos de tudo aquilo de que formos capazes. A
maior parte das vezes, em circunstâncias normais já teremos de lidar com muitos
pensamentos discursivos.
Um exercício útil é fazermos uma “verificação” física antes de nos sentarmos.
Ficamos de pé, com os braços caídos ao lado do corpo, relaxados, os olhos semicerrados
ou fechados. Lentamente dirigimos a atenção de baixo para cima, dos pés ao topo da
cabeça. Fazemos uma pausa onde encontramos alguma tensão ou desequilíbrio, e dirigimos
a respiração para essas áreas, permitindo que a tensão se dissolva. Ficamos conscientes do
corpo no espaço; sentimos o chão debaixo dos pés, dando-nos apoio. Respiramos fundo
pelo nariz e exalamos o estresse, a agitação e a tensão. Procuramos ter consciência do
corpo. Esse exercício permite que sintonizemos e relaxemos, em vez de nos atirarmos à
prática da meditação.
A essência de toda essa preparação é realmente simples: quando nos sentamos para
meditar, deixamos de lado todas as outras atividades. Escolhemos a hora e o espaço com
sabedoria para reduzir todas as distrações. Preparamos o corpo para relaxar, antes de
sentar. Preparamos a mente para ser tão simples e estar tão presente quanto possa. E
fazemos tudo isso com precisão, e também com gentileza. Mas lembremo-nos: isso é
apenas a preparação, não a meditação de fato. Se tentarmos criar as condições ideais, talvez
nunca cheguemos à almofada. Em algum momento é preciso que simplesmente nos
sentemos e pratiquemos.
APÊNDICE B

A postura da meditação

1. A coluna vertebral permanece ereta, elevada, com sua curvatura natural.


2. As mãos repousam sobre as coxas.
3. Os braços e ombros ficam relaxados.
4. O queixo fica ligeiramente para dentro.
5. As pálpebras ficam semicerradas.
6. A face e o maxilar ficam naturais e relaxados.
7. Se nos sentamos sobre uma almofada, devemos cruzar os tornozelos de uma
maneira relaxada. Se nos sentamos em uma cadeira, devemos conservar as plantas dos pés
firmemente apoiadas no chão.
APÊNDICE C

Instruções para a meditação contemplativa

1. Acalmamos a mente, repousando-a na expiração.


2. Quando sentimos que estamos prontos, trazemos à mente, sob a forma de palavras, um
certo pensamento ou intenção.
3. Usamos essas palavras como objeto da meditação, voltando continuamente a elas
quando surge uma distração.
4. Para ajudar a estimular a experiência profunda de seu significado, pensamos nas
palavras. Trazemos à mente idéias e imagens que nos inspirem sobre o significado.
5. Quando começamos a ser penetrados pelo significado das palavras, deixamos que elas
sejam descartadas e permanecemos apenas com o significado.
6. Familiarizamo-nos com o significado à medida que ele continua a penetrar-nos.
7. Concluímos a sessão e levantamo-nos da prática com o significado no coração.
“Significado” é a experiência direta, livre de palavras.
8. Agora, ingressamos no mundo com a aspiração de nos conduzir com a perspectiva da
contemplação que fizemos. Por exemplo, se contemplamos a preciosidade do nascimento
humano, a perspectiva será de gratidão e apreço.
Informações

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Dorje Denma Ling


2280 Balmoral Road
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Almofadas de meditação e outros acessórios podem ser obtidos com:

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Samadhi Cushions
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telefone: +1 (800) 331-7751
website: www.samadhistore.com
e-mail: info@samadhicushions.com

Naropa University é a única universidade de inspiração budista reconhecida da


América do Norte. Para mais informações, contatar:

Naropa University
2130 Arapahoe Avenue
Boulder, CO 80302
telefone: +1 (800) 772-6951
website: www.naropa.edu

Informações sobre o Sakyong Mipham Rinpoche, sobre suas de atividades de ensino


e uma galeria de fotografias estão disponíveis no website:
www.mipham.com

As palestras e os seminários do Sakyong Mipham Rinpoche são falados em inglês.


Gravações em áudio ou em vídeo podem ser adquiridos de:

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O Shamhhala Sun é uma revista budista bimestral fundada pelo falecido Chögyam
Trungpa Rinpoche e agora dirigida pelo Sakyong Mipham Rinpoche. Para assinaturas,
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Shambhala Sun
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website: www.shambhalasun.com

Buddhadharma: The Practitioner’s Quarterly é um periódico dirigido à prática em


profundidade, que oferece ensinamentos de todas as tradições budistas. Contato para
assinaturas:

Buddhadharma
P.O. Box 3377
Champlain, NY 12919-9871
telefone: +1 (877) 786-1950
website: www.thebuddhadharma.com
Agradecimentos da edição brasileira

Agradecemos ao autor, o Sakyong Mipham Rinpoche, por ter confiado à Comissão


de Tradução — Shambhala Brasil a tradução e revisão deste livro. A Marcelo Gomes e
Pascoal Soto, da Editora Planeta do Brasil, por terem acreditado na iniciativa e
possibilitado sua concretização. A Carlos Alberto Inada, pelo seu esmero na edição e
habilidade de manter a boa comunicação entre os membros de nossa equipe de trabalho. A
Andrea Vilela de Almeida, pelo projeto gráfico e capa. A João Paulo Amaral Vilela, pelo
seu trabalho voluntário como ilustrador.
A Richard Reoch, presidente de Shambhala International, cujo interesse pelo Brasil e
oportuna visita em setembro de 2005 nos deu redobrado entusiasmo para completarmos
este trabalho nesta primavera.
Ao acharya Simon Luna, de Santiago do Chile, representante da linhagem budista
shambhaliana na América do Sul; a Helena Patsis Bolduc, de Karma Dzong, em Boulder,
Colorado; a Emily Hilburn Sell, Lely Abud, John Sell e Diana Church, de Halifax, Nova
Escócia; e a Christina Junghans, que representou o Brasil no Congresso de Shambhala em
2005, pelo encorajamento e apoio incondicional que cada um deles tem dado a tudo que
por aqui procuramos fazer para tornar o dharma disponível em língua portuguesa.
Às co-diretoras do Centro de Meditação Shambhala de São Paulo — Alicia Beatriz
Negri e Helena Soares Hungria — e aos demais membros da Comissão de Tradução ⎯
Eleonora Issler Marsiaj, Emerson R. Zamprogno e Liane Camargo de Almeida Alves ⎯,
por doarem generosamente seu tempo e empenharem seu talento e objetividade na revisão
dos originais. Sua leitura atenta e suas valiosas sugestões muito nos ajudaram.
A York Stillman, diretor da Escola Shambhala de Estudos Budistas, e seus alunos,
por terem se prestado a testar a primeira versão não revisada do texto português no grupo
de estudos preparatório para o Seminário Shambhala 2006. Suas reações, dúvidas e
comentários contribuíram para que o texto final resultasse mais fluido, claro e preciso.
E, principalmente, nossa gratidão ao falecido Vidyadhara Chögyam Trungpa
Rinpoche, de quem o autor é filho e sucessor. Aquele grande mestre é lembrado com
devoção pela maneira compassiva e sábia com que transmitiu a nossa comunidade
internacional no Ocidente os preciosos ensinamentos e práticas das linhagens Shambhala,
Kagyü e Nyingma.
Oddone Marsiaj
Setembro de 2005

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