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Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes


Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Eduard Alves Fernández

"Hoje a gente brinca do jeito que o povo quer":


cavalo marinho, performance e processo na fala dos brincadores

João Pessoa
2020
EDUARD ALVES FERNÁNDEZ

"Hoje a gente brinca do jeito que o povo quer":


cavalo marinho, performance e processo na fala dos brincadores

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito parcial para obtenção do título de
mestre em Antropologia, sob a orientação da
Profa. Dra. Luciana Chianca.

Linha de Pesquisa: Imagens, Patrimônios,


Artes e Performances.

João Pessoa
2019
EDUARD ALVES FERNÁNDEZ

"Hoje a gente brinca do jeito que o povo quer":


cavalo marinho, performance e processo na fala dos brincadores

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito parcial para obtenção do título de
mestre em Antropologia, sob a orientação da
Profa. Dra. Luciana Chianca.

Linha de Pesquisa: Imagens, Patrimônios,


Artes e Performances.

Defendido em:

Banca examinadora

____________________________________________
Profa. Dra. Luciana Chianca (Orientadora) - UFPB

____________________________________________
Profa. Dra ​Lara de Santos Amorim​ - UFPB

____________________________________________
Profa. Dra. Maria Acselrad - UFPE

João Pessoa

2020
A Obiang, por me ensinares a medir a distância
que separa o desejo da virtude.
AGRADECIMIENTOS

A minha mãe Emma e ao meu pai Rui por cultivar em mim o amor mais fértil de todos: o
amor paciente. Pelo estimulo contínuo e a confiança incondicional durante todos estes anos.

A Mónica Franch, professora e amiga, por me dar carona até Goiana em um primeiro de abril
de 2017, quando me dispunha a assistir à minha primeira sambada de maracatu de baque
solto; por me encorajar e me incentivar, naquele momento, a fazer o mestrado em
antropologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pelos cuidados e conselhos no
decorrer destes três anos. Sem aquela carona, provavelmente eu não estaria escrevendo estas
linhas.

A Aguinaldo Roberto pelas inestimáveis contribuições, fundamentais para a construção deste


trabalho e Ivanise, Betinho, Daysa, Jamerson e Jaqueline por deixarem sempre abertas as
portas de suas casas e me mostrarem um pouco mais sobre o que é a vida através da
convivência, do afeto e da brincadeira.

A Virna Franco pelo lindo mapa de Condado feito para este trabalho, pelas visitas durante
minha estadia lá, pelo apoio, cuidado, amor imensurável e, sobretudo, pelos aprendizados
durante as viagens.

A Fauno Guazina, por me fazer apreciar o valor das manhãs conversadas entre baldinhos de
café. Pelo apoio moral e correções feitas ao longo do processo de escrita deste trabalho e por
apontar os defeitos de forma leve mas objetiva, dizendo: “mas era isso ou não seria”.

A Eliana Teruel, pela revisão última deste trabalho, pelo acolhimento e pelos conselhos.

A Pol Cornudella, pela presença, mesmo na distância, nos momentos mais necessários. Pela
sua amizade desinteressada e genuína que me enche de esperança.

A Luciana Portela e Alan Monteiro pelo apoio e carinho fraternal. Por me ensinarem que as
amizades podem ser brincadeiras construídas à base de descobertas em parceria.

Ao Boi da Praça, em especial às pessoas que o configuram ou que já fizeram parte dele, que
se tornou o pretexto ideal para empreender esta pesquisa e, sobretudo, para fazer amizades
sinceras numa terra desconhecida.

Aos amigos e amigas que, mesmo intermitentemente, ajudaram em momentos de confusão a


me abstrair da tela do computador ou das páginas dos livros, seja para tomar uma cerveja ou
um banho de mar.
Ao pessoal do Maracatu Leão de Ouro, assim como ao do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de
Condado - PE, pelo acolhimento, recepção sempre efusiva e horas de brincadeira juntos e
juntas.

A Fábio Soares pelas conversas. Por apontar e problematizar certos aspectos de ingenuidade
presentes na minha visão sobre o cavalo marinho, estímulo imprescindível para
posteriormente refutar, reforçar ou complexificar as hipóteses desenvolvidas no decorrer do
trabalho de campo.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão
da bolsa de estudos ao longo do curso de mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), pelas oportunidades oferecidas e principalmente à Profa. Dra. Luciana
Chianca pela orientação, leituras, conselhos, ensinamentos e revisões oferecidos durante os
quase três anos de mestrado, este trabalho é seu também.
RESUMO
Neste trabalho buscamos apontar a relação interativa que se estabelece entre o
cavalo marinho e seus contextos social, histórico e econômico como principais
fatores do processo transformativo desta brincadeira. Partindo da exposição de
suas principais características e descrição de seus contextos, desenvolvemos
uma análise comparativa que pretende esmiuçar o diálogo entre a ação
performática e o trabalho laboral, as relações sociais, o entretenimento, a crítica
social, a economia local e os valores éticos e estéticos dos agentes sociais
envolvidos. Por último, investigando a conjuntura contemporânea do cavalo
marinho, apresentamos uma série de mudanças significativas que propuseram
novos cenários e desafios para seus brincadores e brincadoras.

Palavras chave: cavalo marinho, performance, processo, contemporaneidade


RESUMEN

En este trabajo queremos señalar la relación interactiva que se establece entre


el ​cavalo marinho y sus contextos social, histórico y económico, como
principales factores del proceso transformativo de esta ​brincadeira.​ Partiendo
de una exposición de sus características principales y descripción de sus
contextos, desarrollamos un análisis comparativo que pretende desmenuzar el
diálogo entre la acción performática y el trabajo laboral, las relaciones sociales,
el entretenimiento, la crítica social, la economía local y los valores éticos y
estéticos de los agentes sociales envueltos. Finalmente, investigando la
coyuntura contemporánea del ​cavalo marinho, ​exponemos una serie de
cambios significativos que han propuesto nuevos escenarios y desafíos para sus
participantes.

Palabras clave: cavalo marinho, performance, proceso, contemporaneidad.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11
Apresentação 11
Aproximações 12
Objetivos principais e específicos do trabalho 18

CAPITULO I: UMA BRINCADEIRA ENVOLVENTE 22


O cavalo marinho, uma brincadeira entre brincadeiras 22
Características e singularidades do cavalo marinho 32
Zona da Mata Norte de Pernambuco 45
Condado: a terra do “carralo marim” 49

CAPITULO II: UMA BRINCADEIRA EM PROCESSO 53


Entre o ritual e o teatro 53
Cavalo marinho: um “espelho mágico” da realidade social 62
O cavalo marinho sob o escopo dos dramas sociais 74

CAPÍTULO III: “O FEIJÃO-QUEIMÔ​”! Novos cenários e desafios da brincadeira 88


Espetacularização da brincadeira 91
Complexificação das formas de produção e organização da brincadeira 96
Novos contextos para a transmissão de saberes do cavalo marinho 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS 125

REFERÊNCIAS 127

ANEXOS 132
11

INTRODUÇÃO
1
Eu só queria achar!

Apresentação
2
Durante estes últimos oito anos , viajar – em suas múltiplas acepções – tornou-se o
meio através do qual saciar a curiosidade adstringente, minha sede de conhecimento e de
saber, mesmo que no final do caminho, entre encruzilhada e encruzilhada, praticamente nada
daquilo que almejava encontrar inicialmente fosse achado ou, pelo menos, não da forma
prevista. Do mesmo modo que a viagem tornou-se o melhor dos pretextos para verificar
aquilo indizível, a pesquisa transformou-se num processo que, longe de oferecer respostas
claras e objetivas levantou em mim um incessante fluxo de questões, por vezes abstratas e
profundas que, para além da compreensão, me mantiveram num estado de entusiasmo
insaciável, uma espécie de desejo continuado por

verificar algo, algo inexprimível que vem da alma, de um sonho ou de um pesadelo,


nem que seja para saber se os chineses são tão amarelos quanto se diz, ou se tal cor
improvável, um raio verde, tal atmosfera azulada e púrpura, existe de fato em algum
lugar, lá longe? (Deleuze, 1992, p.100).

A experiência etnográfica supôs, no entanto, um precioso argumento para suspender


minha rota errante e aparentemente caótica, prestar atenção aos detalhes e deixar-me fascinar
pouco a pouco e de forma consciente pela beleza poética do gesto, da palavra e também do
não dito, permitindo-me mergulhar no minúsculo e ​desimportante (como diria o poeta
cuiabano Manoel de Barros) ao mesmo tempo que me brindava a oportunidade de
compreender as coisas em relação ao seu contexto o que, em palavras de Eduardo Galeano
(2018), supõe ter “um olho no microscópio e o outro no telescópio”. Esta pausa vagarosa
agiu como um mirante do qual pude observar (como quem enxerga através de uns óculos

1
Frase proferida por Mané Taião, personagem do cavalo marinho que representa o indivíduo “bestalhão” e que
percorre o terreiro fazendo a “munganga” ou os gestos próprios da figura à procura de alguma coisa. O que é
essa coisa? mantém-se desconhecido ao longo de sua intervenção, atribuindo-lhe uma aura enigmática e, porque
não dizer, existencialista.
2
Cabe especificar que o autor deste texto é natural da Espanha, onde nasceu em 1994 e residiu até os dezoito
anos de idade. A partir de então, transitou entre as cidades de São Paulo, Londres (obtendo graduação em música
e tecnologias criativas), João Pessoa e Barcelona, onde habita atualmente depois de ter levado a cabo esta
pesquisa sobre os grupos de cavalo marinho de Condado - PE como discente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia (PPGA) na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
12

emprestados) percursos alheios, histórias singulares, cosmologias, imaginários


dessemelhantes e ,sobretudo, impensáveis antes desta vivência, fato que me colocava, por
vezes, como espectador indiscreto de minha própria história.

Assim, no desejo de achar, abriram-se caminhos repletos de encruzilhadas, paradas,


contemplações, afetações e tensões. Sem nunca encontrar aquilo que procurava na origem,
topei-me com coisas que me fizeram enxergar o mundo de forma diferente. Na procura
infinita, a forma de buscar modificou-se, mas permaneceu o desejo e uma incandescente
curiosidade: ​Eu só queria achar!

Aproximações

Minha aproximação à brincadeira do cavalo marinho consolida-se enquanto me


aprofundo nesta pesquisa. Talvez um dos principais desafios ao longo de todo o processo de
elaboração deste trabalho foi o fato de querer aprimorar e delimitar o cavalo marinho como
um “objeto” de estudo abarcável e analisável, tarefa que não tardou em se revelar impossível.
Assim sendo, cada ida a campo, cada conversa ou entrevista com brincadores, cada sambada
ou bate-papo com amigos e amigas de brincadeira, este “objeto” se complexificava, se
engrandecia, quase sempre transbordando minha capacidade de síntese e compreensão,
mostrando-se mais como uma “coisa” que me propunha como todo jogo, um desafio. Em
outras palavras, e como veremos ao longo deste trabalho, o cavalo marinho oferece uma
experiência composta por uma multiplicidade de elementos intersubjetivos e mutáveis, um
agregado de jeitos e gestos justapostos e aparentemente desorganizados que se arranjam
através da brincadeira, do ato festivo, do jogo e da provocação.

À terra onde fores ter faz(e) o como vieres fazer


em Roma, sé romano
em terra de lobos ouvia-se como eles
em terra de mouros cristão é mouro
em terra de sapo, de cócoras como eles
entre judeus , judeus como eles
13

por onde vás, assim como vires, assim farás


3
quando passares pela terra de tortos, fecha um olho.

Este refrão consolidou-se como uma das principais diretrizes pessoais no decorrer da
pesquisa e da contínua adaptação às formas de vida social tão diferentes das que estava
acostumado. Nestes três anos de pesquisa meu sotaque se “camaleonizou”, minha vestimenta,
meus gostos musicais, as formas de entender os relacionamentos interpessoais, de conversar,
dialogar e discutir, por exemplo, as interessantes conversas com desconhecidos em pleno
meio dia (outrora nada convencionais) enquanto esperava a lotação do transporte alternativo
com o que faria o trajeto João Pessoa-Goiana, e nas quais se compartilha, além da pouca
sombra disponível, os motivos da viagem e os acontecimentos semanais.
Deste modo, a forma de me introduzir ao contexto sociocultural do cavalo marinho foi
justamente estando “ao lado” de seus participantes, os sujeitos e sujeitas que o entretecem,
através de conversas e situações de afetividade, ao compartilhar viagens, mesas de bar, tardes
no campo de futebol (onde, por sinal, também aprendi a empinar pipa), ou no semanal
cuidado da barba na barbearia de Seu Paulo Barbeiro – que além de barbeiro é presidente do
Maracatu Leão de Ouro de Condado e por essa razão sua barbearia tornou-se um ponto
estratégico para a coleta dos comentários mais recentes e bombásticos sobre a atualidade da
brincadeira na cidade. Através da acumulação destes relatos, histórias, fofocas, intrigas e
sonhos fui entendendo, aos poucos, as diversas categorias nativas que, depois de submetidas à
análise antropológica, tornaram-se imprescindíveis para revelar, analisar e compreender
noções particulares sobre corporalidade, movimento, espaço e tempo, entre outras.
Assim como Anthony Seeger (2015) se propõe ao fazer uma antropologia musical, em
contraposição a uma antropologia da música, durante o processo de pesquisa esforcei-me em
encontrar o máximo de sentidos possíveis da brincadeira através do estudo e análise da vida
cotidiana de seus participantes.
Para tal fim, foi indispensável aprender a ​brincar para além do desejo imperativo de
saber tocar seus instrumentos, memorizar uma quantidade substancial das loas e toadas, ou
aprender as evoluções coreográficas das figuras e os passos, trupés e tombos de sua dança.
Supôs entender através do próprio corpo como a experiência de brincar é sentida e
compreendida nos corpos de seus participantes. Neste sentido e fazendo menção à obra de

3
(Lacerda et al. 2003).
14

Seeger, durante a pesquisa para esta dissertação desenvolvi, mais do que uma antropologia da
brincadeira, uma ​antropologia brincada​.
Embora seja possível aprender sobre cavalo marinho através dos múltiplos artigos,
dissertações, teses e livros que abordam a expressão popular ou frequentando algum dos
diversos grupos de estudos em cavalo marinho que se encontram semanalmente nas mais
4 5 6 7 8
diversas capitais do país (São Paulo , Rio de Janeiro , Recife , Natal e João Pessoa , ou
9
Campina Grande - PB , entre outras), através dos inúmeros documentários, registros e cds
disponíveis online ou da troca de mensagens de áudio via algum aplicativo de mensagens
instantâneas, e assim por diante, aqui refiro-me a outra escola, a outro tipo de aprendizado;
aquele que não se encontra nos livros, nem nos vídeos, nem nas mensagens de WhatsApp.
No contato e convivência com o contexto da brincadeira, configurando relações
afetivas e de confiança com seus participantes, seus mestres e mestras, assim como com suas
histórias de vida, hábitos, práticas, desejos e gostos, cultivamos um aprendizado que serve
para a vida, nos ensina a amar e a respeitar nossos companheiros e companheiras de
brincadeira, a confiar e a deixar-se levar por eles e elas, ao mesmo tempo que compreendemos
o valor de saber preservar nosso espaço e a importância de aguçar nossa própria intuição para
desviar as ameaças e os possíveis desarranjos. Deste modo, o cavalo marinho configura-se, a
meu ver, como uma escola onde aprendemos, não só a brincar, mas também a viver e a (nos)
cuidar.
Esta escola à que me refiro é incomum porque não tem professores, as provas de
papel, nem cadeiras, paredes ou quadros, não tem horários marcados, nem exames com
menções de aprovação ou reprovação, mas tem mestres/as, recados, chamadas de atenção,
provas, companheiros e rivais. Tem, isso sim, testes, fofocas, zombarias, enfrentamentos e
comemorações. Às vezes brincar é como andar sobre uma corda que por momentos prevalece
tensa, e por momentos se afrouxa, dificultando prever o instante em que podemos cair ao
chão.

4
Grupo Manjarra (​https://www.facebook.com/manjarra2004​) e Boi da Garoa
(​https://www.facebook.com/boidagaroa​)
5
Boidaqui (​https://www.instagram.com/explore/tags/boidaqui​)
6
​Boi Chatim (​https://www.facebook.com/boichatim​)
7
​Boi do Forte
8
Boi da Praça
9
Boi da Borborema (​https://www.facebook.com/cavalomarinhocg​)
15

Como ouvi dizer uma vez de um brincador, “cavalo marinho é dançar em direção a um
fuzil carregado que aponta direto para o rosto, sem saber em que momento o gatilho irá
disparar. Mas no fim da festa, quando percebemos que o sol raiou, os pesadelos se dissipam,
restando um amargo na boca de quem enfrentou a exaustão e remanesce nos primeiros raios
10
de luz do outro dia, para tudo começar de novo, mas de jeito diferente” .

Meu contato com o cavalo marinho e o universo das brincadeiras como um todo
desenvolveu-se e aprimorou-se num período de três anos para cá, concretamente mediante as
diversas viagens pelo litoral e sertão nordestinos que tiveram lugar nos sete meses posteriores
à minha mudança para João Pessoa em fevereiro de 2017, viagens que poderia praticamente
considerar como uma etapa inicial desta pesquisa, sempre direcionadas ao encontro e

10
​Esta fala pertence a Fábio Soares, brincador de maracatu e cavalo marinho, ex-integrante do Cavalo Marinho
Estrela de Ouro de Condado - PE. Neste caso (e por falta de registro físico), o autor tomou a liberdade de adaptar
a fala para uma linguagem um tanto mais poética.
16

interação com as “culturas populares”. De forma mais específica ainda, uma relação mais
íntima com o cavalo marinho teve seu ponto de partida na oficina ministrada por mestre
Aguinaldo (biografia disponível no Anexo B) em outubro de 201711, quando ainda não estava
vinculado à academia nem ao Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), fato que só iria acontecer em março de 2018 por
intermédio do mestrado que me estimulou a aprofundar nesta pesquisa. Imediatamente depois
deste primeiro contato com o cavalo marinho, passei a fazer parte do Grupo de Estudos em
Cavalo Marinho Boi da Praça (anexo M), grupo que promove encontros semanais nos quais
dialogamos sobre aspectos da brincadeira, compartilhando o conhecimento com o resto dos
integrantes, e brincamos com recursos limitados de que dispomos. Através do Boi da Praça,
também realizamos a visita a mestres e mestras dos diferentes estilos e tipos de cavalo
12
marinho .
Deste modo comecei a frequentar o terreiro de diversos grupos tradicionais de cavalo
marinho (tanto em Pernambuco como na Paraíba) localizados, em sua maioria, na Zona da
Mata Norte de Pernambuco, no Recife e na Grande João Pessoa, fosse coincidindo com uma
apresentação ou sambada de cavalo marinho, para nos reunir com um mestre ou à procura de
instrumentos, materiais e técnicas de confecção de máscaras e outros artefatos para nosso Boi
da Praça. As inúmeras visitas e viagens a estes lugares não só fomentaram um maior
entendimento sobre a brincadeira, mas também sobre o contexto sociocultural que envolve o
cavalo marinho, suas origens e seu cotidiano.
Cabe também ressaltar que uma das portas de acesso principal à brincadeira foi, no
meu caso, o saber tocar rabeca. Este fato principiou, muitas vezes, o interesse dos brincadores
pela minha pessoa, pelo fato de eu poder trazer algo que em muitos grupos falta: rabequistas
com a técnica e o conhecimento suficiente sobre as toadas (sonoras, chamadas de figuras, etc.)
para poder brincar a noite inteira. A modo de exemplo, exponho um fragmento do meu diário

11
Produzida por Luciana Portela (graduada em dança pela Universidade Federal da Paraíba [UFPB] e professora
de danças populares no Centro Estadual de Arte da Paraíba [CEARTE]) e Carolina Dias Laranjeira (dançarina,
pesquisadora e Professora adjunta dos cursos de Licenciatura em Dança, Licenciatura e Bacharelado em Teatro
do Departamento de Artes Cênicas e do Mestrado Profissional em Artes [PROFARTES] da Universidade
Federal da Paraíba [UFPB]). Esta oficina teve o apoio do Centro Estadual de Arte da Paraíba (CEARTE), que
disponibilizou o espaço.
12
Cabe aqui sublinhar que existem diferentes tipos de cavalo marinho distribuídos principalmente nos estados da
Paraíba e de Pernambuco (como por exemplo o cavalo marinho de bombo, o cavalo marinho de pandeiro
paraibano e o cavalo marinho de pandeiro pernambucano). Por falta de tempo não nos dedicaremos a mencionar
as diferenças entre cada tipo, porém destacamos que nesta pesquisa fazemos referência ao cavalo marinho de
pandeiro pernambucano.
17

de campo que foi recolhido no dia 2 de fevereiro de 2018 em Pedras de Fogo (PE), depois de
uma sambada no terreiro do Grupo Camboi, na qual fui gentilmente convidado a participar
como rabequeiro sem sequer conhecer alguém do grupo.

Nesta Sambada eu toco muito a rabeca, sou convidado para sentar no lugar do
rabequeiro e tocar junto com o toador do grupo, Mestre Tontonho. Todos parecem
estar muito contentes pela minha presença ali, tanto que me cedem o quarto de um
dos membros da casa para eu dormir. No dia seguinte tentam me convencer para que
fique com eles para o almoço. Sinto-me agradecido e muito afortunado por ter
vivenciado esta experiência, tornando-se num forte estímulo para continuar tocando
a rabeca e brincando.

Durante estes quase quatro anos, um dos lugares que visitamos com mais frequência
durante todo este tempo foi a cidade de Condado - Pernambuco, uma vez que ali se encontram
três grupos bastante populares de cavalo marinho pernambucano: o Boi Brasileiro, fundado
13
por Biu Roque e atualmente em mãos de Luiz Paixão ; Estrela Brilhante de Antônio Teles,
hoje administrado pela mestra Nice Teles e seus filhos Totó e Natan; Estrela de Ouro de
mestre Biu Alexandre, do qual participam Aguinaldo Roberto da Silva, Jamerson Roberto da
Silva e Risoaldo Roberto da Silva, todos eles interlocutores fundamentais para o
14
desenvolvimento deste trabalho e cujas biografias estão anexadas ao final do mesmo . Assim,
devido ao vínculo de assiduidade foi-se configurando uma relação de confiança entre a minha
pessoa e os mestres e mestras da brincadeira residentes na cidade de Condado, assim como
com seus familiares e parentes próximos (brincadores ou não), estabelecendo as bases para o
que, um ano e meio depois, se tornaria “meu campo” de pesquisa.
Durante minha residência em Condado, que teve uma duração de quatro meses (abril -
julho de 2019), trabalhei com diversas ferramentas de pesquisas etnográficas tais como a
15
observação participante, a entrevista e a escuta ativa, através de incontáveis conversas com
pessoas do lugar (pertencentes, ou não, ao contexto da brincadeira), empregando “uma
metodologia que reconhece a importância da reflexividade dos próprios atores e, em geral,
dos indivíduos sobre os processos sociais em que estão implicados” (Valverde, 2000, p.7).

13
Acesso à biografia: Muniz, Erica. ​A terra que deu Mestre Luiz Paixão​, 1 de ago. de 2017. Disponível em:
https://www.revistacontinente.com.br/secoes/perfil/-a-terra-que-deu-mestre-luiz-paixao​. Acesso em 14 de junho
de 2020.
14
Anexos G, E, C, F, D e H respectivamente.
15
Para este trabalho foram efetuadas sete entrevistas com diversos interlocutores que mantinham uma estreita
relação com a brincadeira. Estas entrevistas foram planejadas e realizadas a partir do método implementado por
Jean-Claude Kaufmann (2013). No total foram entrevistados/as quatro mestres/as, dois filhos de mestres/as e um
produtor cultural, encarregado de gerir um dos grupos familiares de cavalo marinho de Condado e membro da
própria família.
18

Além destes métodos de pesquisa, digamos mais clássicos, outra práxis investigativa
em campo consistiu em acompanhar diversas pessoas durante seus trajetos cotidianos: da
igreja para casa, do mercado para o bar, do cabeleireiro para a sorveteria, de casa para a
lotérica, etc. logrando, desta forma, traçar um mapeamento esquemático das relações e os
vínculos entre brincadores, assim como permitindo formular as histórias de vida destes atores
sociais. Esta técnica ou ferramenta de pesquisa recebe diversos nomes na escrita
etnometodológica, sendo um deles o ​go-along,​ que “se resume a uma disposição em
acompanhar os sujeitos de pesquisa em suas rotinas diárias, em seus passeios solitários ou
acompanhados, nos quais o pesquisador se dispõe a ‘ir junto’” (Kusenbach, M. 2003. Apud.
Kaufmann, 2013, p.15).
Assim mesmo, uma ferramenta clássica da pesquisa antropológica que se mostrou
indispensável tanto no decorrer do trabalho de campo como no decorrente processo de escrita,
foi a utilização do caderno de campo e um diário pessoal. No primeiro imprimia as reflexões e
hipóteses plausíveis que surgiam à medida que avançava o campo e no segundo projetava
minhas preocupações, temores, contentamentos e euforias. Assim, colocar os dados e
experiências etnográficas em contraste com minhas intuições, palpites e sensações, facilitou
de sobremaneira o processo de seleção e elaboração das hipóteses que iriam ser
problematizadas na etapa de elaboração teórica.
Em suma, a experiência etnográfica foi um processo decisivo para entrever a
complexidade e especificidade do contexto sociocultural do cavalo marinho, preparando
encontros com novas formas de ver, perceber e apreender que perpassam a memória oral e a
linguagem dos corpos.

Objetivos principais e específicos do trabalho

No presente trabalho buscamos problematizar certos aspectos presentes no cavalo


marinho pernambucano, associados ao cotidiano de sua sociedade. Desta forma, por meio da
análise da trama dramática do cavalo marinho e de suas formas de organização, produção e
transmissão dos saberes envolvidos, procuramos discernir o diálogo que se estabelece entre a
brincadeira e o trabalho, as relações sociais, o entretenimento, a crítica social, a economia
local e os valores éticos e estéticos de seus participantes, permitindo-nos finalmente apreciar
19

de forma mais detalhada os conflitos e desafios que caracterizam a contemporaneidade da


brincadeira e que são enfrentados pelos seus participantes.
Compreender o cavalo marinho como uma linguagem capaz de sublinhar, reproduzir
e/ou criticar aspectos da vida social tais como o trabalho, o ganho, as relações de poder, a
devoção religiosa, dentre outras, implica reconhecer, na própria brincadeira, um fenômeno
explícito de negociação da realidade que, de acordo com Velho (2006, p. 21, 22) “nem sempre
se dá como processo consciente, viabiliza-se através da linguagem no seu sentido mais amplo,
solidária, produzida e produtora da ​rede de significados”​ .
De forma adicional, atuando mediante um conjunto de elementos simbólicos
compartilhados, produzindo e reconhecendo os interesses e valores da comunidade em
questão, poderíamos interpretar o cavalo marinho como um fenômeno constitutivo da
comunicação cultural de uma sociedade: a brincadeira é uma “fonte de pressão para se
comunicar dentro de e entre grupos” (Turner, 2008, p.32), estimulando-nos à observação
minuciosa das mensagens por ela transmitidas.
Do mesmo modo podemos percebê-lo como fenômeno que se espelha, retratando uma
realidade social concreta, revelando hábitos e práticas locais, tensões da ordem e da desordem
social: podemos reconhecer o cavalo marinho como uma prática espetacular que ultrapassa os
limites do entretenimento, adentrando-se, assim, no terreno da ação ritual e estabelecendo
uma relação dialógica entre a arte e a vida, a ​poiesis e práxis, brindando-nos com a
oportunidade de entrever a ética através da estética ou vice-versa.
Em conjunto, tendo em conta que o cavalo marinho é uma prática que se renova
constantemente, fruto da interação que estabelece com os processos socioculturais, históricos
e econômicos do seu entorno, no decorrer desta dissertação procuramos enfatizar o caráter
dinâmico e, portanto, contemporâneo da brincadeira, identificando por um lado até que ponto
estas mudanças se pronunciam e se fazem visíveis na sua dança, música e trama dramática (na
brincadeira de modo geral) e por outro, as formas mediante as quais seus participantes tomam
consciência e gerenciam tais processos de modo coletivo ou individual.
No primeiro capítulo descrevemos o contexto e as caraterísticas principais do cavalo
marinho pernambucano de modo a proporcionar a compreensão da relação dialógica, fluida e
dinâmica que ele mantém com seu entorno – visando contemplar os conflitos, atividades e
empreendimentos históricos e sociais vários que transformaram a brincadeira. Do mesmo
modo, discutimos as conexões existentes entre o cavalo marinho e outras práticas
20

espetaculares, como as chamadas “brincadeiras de boi”, apontando para elementos estéticos e


simbólicos similares e as redes de significado afins.
Por outro lado, pretendemos expor o caráter flexível da brincadeira, apontando para a
capacidade que esta tem de se auto-afirmar à medida que o tempo passa, fortalecendo teias
afetivas e redes de sentido entre os trabalhadores rurais da Zona da Mata Norte de
Pernambuco. Para tal fim, expomos uma análise resumida da história da Zona da Mata Norte
Pernambucana e em específico da cidade de Condado, lugar onde habita a maioria dos
interlocutores presentes neste trabalho. Em suma, buscamos perceber o cavalo marinho como
uma reflexão crítica, irônica e ao mesmo tempo criativa da realidade social local, em cuja
ação dramática se articula uma reorganização virtual das convenções e valores sociais,
distanciando-se cuidadosamente (ou não) das mesmas.
No segundo capítulo, concentramo-nos em compreender o fenômeno de
retroalimentação que se estabelece entre a brincadeira e a realidade social, uma vez que
localizamos na dimensão dramática do cavalo marinho um entrelaçamento de elementos
rituais, estéticos e sociais. Neste aspecto, o caráter ritual do cavalo marinho faz com que
dilemas cruciais que tiveram e/ou continuam tendo lugar na realidade social local, sejam
reiteradamente performatizados e refletidos no decorrer da ação dramática, isto é, através de
um sistema de auto-elicitação criativa que se transforma e se reorganiza constantemente ao
mesmo tempo que permite “formular uma série potencialmente ilimitada de arranjos sociais
alternativos” (Turner, 2008, p.12).
Deste modo, podemos situar o cavalo marinho como uma arte cômica “eficaz” no que
diz respeito à renovação de percepção, atitude, pontos de vista, juízos de valor e reações do
espectador/intérprete perante o mundo que os envolve, colocando-se assim na fronteira entre
teatro e o ritual. Em suma, com base numa análise processualística de uma das partes da
brincadeira, buscamos compreender o fluxo que se dá na relação entre os dramas estéticos
(dança, música e teatro) e os dramas sociais, enfatizando as semelhanças entre os conflitos
presentes na experiência social e os conflitos representados na ação dramática.
No terceiro capítulo, a partir de falas e intervenções feitas pelos diversos interlocutores
e através de uma comparação com as formas tradicionais da brincadeira, propomos uma
reflexão sobre os sentidos atualmente vigentes do cavalo marinho, procurando identificar as
causas e os possíveis efeitos do processo de transformação que a brincadeira vem
experimentando de forma mais ou menos drástica nos últimos vinte anos.
21

Para facilitar a análise antropológica, dividimos este processo em três fases ou grupos:
(1) o surgimento de um novo formato de apresentação com tempo limitado e mediante acordo
que determina o pagamento de um valor predefinido ao grupo; (2) a complexificação das
formas de produção e organização dos grupos de cavalo marinho como resposta à
popularização e crescente demanda de apresentações ao redor do país e; (3) os novos
contextos de transmissão de saberes, onde apontamos para o surgimento de um novo modelo
de ensino/aprendizagem dos conhecimentos relativos à brincadeira. Finalmente, por meio da
identificação e posterior análise dos diversos debates e tensões relativas a estas
transformações – que encontramos expressas nas falas dos interlocutores e interlocutoras –,
observamos um conjunto de retóricas que funcionam como dispositivo reflexivo sobre as
divergências e/ou convergências existentes no coletivo de brincadores.
Em síntese, neste trabalho pretendemos reforçar uma abordagem da brincadeira que
realce seu caráter dinâmico e flexível, uma vez que, em virtude (ou apesar) das
transformações sofridas ao longo do tempo, continua gerando significados para seus
participantes, atualizando-se em convergência com o processo sócio-histórico, com a
experiência particular de cada brincador, permitindo a eles o acesso a um sistema de valores e
uma memória coletiva através da qual fortalecem e ampliam por um lado noções de
identidade e pertencimento e por outro a capacidade de agir em seu próprio nome.
22

CAPITULO I: UMA BRINCADEIRA ENVOLVENTE


Meu boi tava descansando
no sombre do meio dia
quando ele abriu ozói
Viu o véi Vicente Maria
cuma guiada na mão
dizendo: “boi, eu te boto no chão”...16

O cavalo marinho, uma brincadeira entre brincadeiras


Podemos considerar o cavalo marinho como uma prática espetacular popular brasileira
17
que representa cenas corriqueiras do contexto dos engenhos de cana-de-açúcar
compreendidos entre a Zona da Mata Norte de Pernambuco e as regiões limítrofes do sul da
Paraíba. Compreendida como uma manifestação de caráter polimórfico, o cavalo marinho
compõe-se por um amplo repertório expressivo que é atravessado pela arte cômica, a devoção
religiosa e a visão crítica e filosófica da vida social.
O cavalo marinho, exige ser ​brincado​, uma vez que o humor, a alegria, o riso ou a
desinibição são elementos intrínsecos e necessários para a sua realização. Neste sentido,
“brincar" s​ ignifica também relacionar-se, procurando romper as fronteiras entre posições
sociais, criar um clima não-verdadeiro, superimposto à realidade” (DaMatta, 1983, p.112,
113). A ​brincadeira c​ omo prática, também exige seus ​cuidados ao ser associada com
expressões do sagrado e símbolos religiosos (rezas, louvações a santos, etc) e ao se
estabelecer como contraponto a uma realidade que é observada, refletida e renovada.
Desta forma, o cavalo marinho se mostra como uma habilidade estética e poética no
sujeito que ​brinca, n​ o sentido de “perceber a fertilidade ou potencialidade do meio que o
cerca [...] É uma questão de saber olhar, tratar, cuidar, lidar” (Acselrad, 2013, p.50).

16
Toada cantada por mestre Inácio Lucindo da Silva na sambada que teve lugar entre o dia 1 e 2 de dezembro de
1990 em Condado, Pernambuco. Vídeo e áudio registrados por John Murphy e Siba Veloso (Murphy; Veloso,
1990).
17
​Joice Aglae Brondani (2013, p.13) considera as Práticas Espetaculares Populares brasileiras (abreviado PEPB)
como atos realizados para serem vistos, que exploram a ideia do cotidiano e possuem uma consciência do olhar
da alteridade. Por outro lado, são chamadas de p​opulares p​ elo fato de serem vistas como uma manifestação
advinda de um povo. No caso do cavalo marinho, a autora adere o atributo ​brasileira considerando uma
contextualização geopolítica da cultura em que se dá e onde se estuda.
23

Assim mesmo, a ​brincadeira ​envolve uma reflexão sensível, compacta e criativa da


vida e do vivido, articulando teatro, dança, música, poesia e religiosidade numa mesma
unidade expressiva que é, ao mesmo tempo, interseccional e flexível.

A origem do cavalo marinho é incerta. No entanto, encontramos diversas hipóteses


sobre o surgimento da brincadeira, difundidas em trabalhos de autores que estudaram o tema e
que revisaremos mais à frente. Assim mesmo, a versão mais difundida se ampara:

numa interpretação histórica de que a brincadeira teria se originado nas senzalas [...]
como parte do processo de adaptação e resistência dos escravos submissos à violenta
realidade imposta pelo sistema colonial escravista. A brincadeira teria sido a forma
pela qual se deu a reconstruir as relações de solidariedade entre os negros, vindos de
diferentes partes de África (Acselrad, 2013, p.51).

Do mesmo modo, o nome ​cavalo marinho, ​poderia-se justificar por uma das figuras18
que integram esta prática espetacular popular: ​O Capitão Marinho ​ou ​Capitão dos Cavalos.
Esta figura representa um importante latifundiário, dono do engenho e encarregado de
impulsionar e patrocinar a festa que, embora se propicie como louvor aos Santos Reis do
Oriente, gira em torno da legitimação de sua autoridade. Contudo, dependendo do
interlocutor, o nome da brincadeira pode ter diversas explicações e origens, como no caso a
seguir:

Muita gente não sabe, o cavalo marinho, o que é… Eu não sei. Porque o cavalo
marinho foi uma coisa que chegou na minha vida desde garoto. Mas nunca pude
saber como foi que veio o cavalo marinho, não pude entender isso; como foi que
surgiu o cavalo marinho, né? [...] O que eu sei de cavalo marinho é esse, que o nome
de cavalo marinho – que cavalo marinho não tinha nome –, foi através de um
pescador. – Isso foi a conversa que eu escutei, não sei se é verdade, se eu tiver
mentindo, é pelos outros –. Então um pescador, no mar, pegou um peixe por nome
de cavalo marinho... Eu nunca ví não [...] Então, como essa brincadeira aí não tinha
nome, aí disseram assim: Rapai! O nome desse peixe, a gente vai butá nessa
brincadeira que não tem nome: cavalo marinho! Isso é o que eu escutei, não é que eu
saiba não. Não tô dizendo com garantia, nem porquê eu sei não, é porquê eu escutei!
(Depoimento de Mestre Biu Alexandre em entrevista concedida ao autor em 20 de
maio de 2019, realizada em Condado - PE).

Como o próprio Mestre Biu Alexandre19 avança, com isso não queremos afirmar que o
nome da brincadeira provenha do próprio animal marinho, mas antes tencionamos oferecer

18
Nome com que os brincadores nomeiam as diversas personagens que aparecem no decorrer da trama dramática
do cavalo marinho.
19
Mestre e fundador do grupo de Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE). Começou a brincar no ano
1969, com 12 anos de idade. É também pai de Mestre Aguinaldo –brincador do mesmo grupo de cavalo marinho,
reconhecido e procurado tanto por brincadores como por pesquisadores do tema, pela sua qualidade no brincar e
seu conhecimento sobre a brincadeira.
24

uma de tantas versões que elucidam a multiplicidade de histórias, lendas e engenhosidades


que dão sentido tanto ao nome quanto à origem desta prática espetacular popular. Neste
sentido, por muito remotas e inverossímeis que estas histórias possam parecer, elas não
devem ser desconsideradas, pois sua existência reforça a pluralidade de sentidos e
significados que o cavalo marinho admite. Neste aspecto, poderíamos dizer que aqui, a
singular frase do poeta Manoel de Barros cobra sentido, pois “só dez por cento é mentira”,
restando um noventa por cento de invenção.
Por outro lado, este exemplo também nos serve para sublinhar a escassez de
documentos e registros que se tem sobre a trajetória histórica da brincadeira, fato que realça a
oralidade, a improvisação e a diversidade de opiniões como elementos intrínsecos à história
do cavalo marinho.
Centrando-nos no aspecto dramático do cavalo marinho, muitas das figuras e cenas
representadas derivam do imaginário coletivo das pessoas que dele participam, ou seja, são
dramatizações de figuras arquetípicas e tipificadas, extraídas do imaginário local e/ou da vida
cotidiana conhecidas e reconhecíveis por espectadores e participantes. Desta forma, no
decorrer de uma apresentação de cavalo marinho encontramos, entre outras coisas, um retrato
caricaturado dos processos e eventos sociais vigentes no âmbito da cana-de-açúcar;
autoridades hegemônicas (proprietários de terras, coronéis e militares, clérigos e
representantes da religião católica, etc.), aqueles que desafiam tais autoridades (valentões,
ladrões, mercenários e malandros), indivíduos submetidos e marginais (trabalhadores,
alcoólatras, tolos, aleijados, etc.) que se vêem de igual modo criticados e exaltados através da
sátira e da linguagem cômica ali encenada.
Neste sentido, podemos dizer que o cavalo marinho, amparado neste universo
imaginário, aborda aspectos singulares intimamente ligados à fenômenos locais (sejam estes
políticos, sociais, históricos, econômicos, etc.) que tanto relatam como reconfiguram as
características de uma realidade objetiva que serve “como ponto de partida para depois
estruturar-se no mundo das ideias e retornar ao real como força propulsora” (Silva, 2003 apud
Brondani, 2013, p. 14). Assim, percebemos o cavalo marinho como um “engenho lúdico” que
envolve realidade e imaginação num mesmo manto, estimulando uma dinâmica “em que
ambas se alimentam e chegam a gerar um movimento sequencial no qual não se sabe mais
onde termina a realidade e começa a imaginação, e vice versa” (Brondani, 2013, p.14).
25

Seguindo com este exemplo, percebemos que há uma ligação entre o cavalo marinho e
outras expressões populares existentes tanto no âmbito brasileiro como internacional. À hora
de compará-las, levamos em consideração a presença de figuras arquetípicas e alegóricas, a
utilização de certos géneros de poesía lírica (dramática e narrativa) e de improvisação, assim
como da linguagem cômica popular, passando pela presença de máscaras, danças em grupo e
música, até o formato singular de apresentação em ruas e terreiros onde a interação com
público é um fator essencial. Observamos assim, que há um princípio de
engenhosidade/invenção equivalente por trás destes fenômenos, que bem poderia ser atribuído
à ação do imaginário, comum em outras ​Práticas Espetaculares Populares,​ que assim
definidas por Joice Aglae Brondani (2013, p.15) agem:

se espalhando nas diferentes culturas de modo renovado e, de certo modo, repetitivo,


pois cada PEP comporta elementos que são extremamente antigos, mas que também
exercem uma renovação, recombinando com outros elementos da atualidade ou de
outra ancestralidade.

Para dar forma ao conceito de “imaginário” como fundamento gerador de


significados, comuns em diversas expressões “populares”, proponho buscar sua equivalência
no conceito de “universo simbólico” concebido por Berger e Luckmann (1973) como “a
matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais” (Idem, 1985,
p.132).
Consequentemente, não é inusitado o fato de que o cavalo marinho seja
constantemente comparado com a ​Commedia dell’Arte italiana ou o teatro ​Noh japonês, tendo
em conta que ambas se desenvolvem através do imaginário.
Além destas duas, existem diversas ​Práticas Espetaculares Populares que, embora
menos conhecidas, mantém uma estreita relação tanto com a forma como com o conteúdo do
cavalo marinho, e cuja semelhança apontaria mais uma vez para a ação do imaginário sobre
estas brincadeiras. Um exemplo disto são as festas rituais do ​Bilmawen que, como descreve
Jean-Claude Thiery (2011), é uma manifestação praticada nos vilarejos das montanhas dos
Atlas, na zona central do Marrocos por volta do mês de novembro. Como o próprio nome
indica, esta prática espetacular é protagonizada pelos ​Bilmawen (​ pronunciado ​Bilmo’n)​ ;
personagens antropomórficas com aparência de bode que são temidas pelos habitantes dos
vilarejos por sua ferocidade (pois persegue e açoita todo aquele que cruzar seu caminho) ao
mesmo tempo que almejadas pelo fato de trazer felicidade a todo aquele que for golpeado
com seus cascos. Assim mesmo, cabe sublinhar a presença do séquito de personagens que
26

acompanham a personagem principal durante as apresentações, chamados ​Tamachoute.​ Esta


comitiva de personagens-satélite interagem entre si desempenhando situações cômicas e
satíricas que ridicularizam personagens reconhecidas pela população local (como o Judeu, o
Mendigo, o Comerciante Itinerante, a Velha, o Europeu, etc.).
O que realmente nos chama a atenção desta festa ritual, ao compará-la com o cavalo
marinho é, por uma parte, a convergência de diversas expressões numa mesma brincadeira;
pois não é só teatro, mas também dança, improvisação, música, interação com o público e arte
cômica que configuram o ​Bilmawen.​ Por outra parte, percebemos que tanto uma como outra
baseiam seu argumento dramático num diálogo direto com o cotidiano local (realidade) que se
desdobra no imaginário coletivo de seus participantes e espectadores, fazendo-os partícipes de
uma mesma história.
Em resumo, uma vez que nos deparamos com um repertório de elementos que se
repetem e se reorganizam de forma distinta em infinitas brincadeiras, identificamos que existe
um vínculo aparente entre o cavalo marinho e outras expressões que, mantendo cada uma suas
especificidades claramente destacadas, colidem num domínio de significados e reflexões
comuns, o qual nomeamos "universo imaginário". Este age como uma “força propulsiva” que
entrelaça realidade e ficção, verdadeiro e falso, através do ato de brincar; aparentemente
inócuo, mas repleto de potência transformadora. Talvez possamos considerar esta questão
como uma marca presente na maioria – se não no total – das brincadeiras.
Desta forma, dois debates nos interessam nesta parte do trabalho. O primeiro
problematiza e tenta dar forma às fronteiras e limites que cada brincadeira estabelece para se
diferenciar das outras tendo em conta seus traços distintivos únicos e característicos. O
segundo questiona de que maneira se dão as trocas e os compartilhamentos entre as
manifestações e como funciona a relação de interconexão que existe entre elas. Fazendo-as
cúmplices de um mesmo processo as vinculando em maior ou menor medida.
Neste sentido, Hermano Vianna (2005) percebe que no âmbito nacional existe um
repertório de elementos que se repetem de forma singular em cada brincadeira, identificando
um fenômeno de afinidade entre elas, o qual denomina de ​rede inter-brincadeiras20. Através
deste conceito, Vianna reconhece a especificidade de cada expressão como fruto de uma
recombinação desses elementos, fato que aponta para uma trama entrelaçada entre as diversas
manifestações. Em seguida o autor percebe que, longe de permanecerem estagnadas e

20
Devo agradecer a Luciana Portela por me apresentar e explicar este conceito.
27

invariáveis, estas expressões confluem num processo de ressignificação e reciprocidade


permanente, diluindo a percepção de que existem fronteiras rígidas entre umas e outras e
reforçando a noção de que as brincadeiras são coexistentes e codependentes.

Tudo circula entre as festas, na rede das festas: pedaços de melodias; versos;
instrumentos musicais; detalhes de indumentária; falas de encenações teatrais.
Danças de bumba-meu-boi migram para o reisado; melodias dos reisados são
absorvidas pelas congadas; letras das congadas são reinterpretadas pelas marujadas;
trechos de música pop-sertaneja entram para o repertório do siriri; e assim por diante
(Vianna, 2005, p. 07).

Por outro lado, no âmbito brasileiro outros estudiosos da matéria ao longo do século
XX, centraram parte de suas pesquisas em entender este fenômeno de interconexão entre
brincadeiras. Estes autores pretenderam definir a estrutura formal que se apresentava por trás
do conjunto de manifestações “populares” espalhadas por todo o território brasileiro, dando
conta de explicar as similitudes, diferenças e particularidades de cada uma, levando em
consideração não só os componentes estéticos, mas também as questões organizativas,
sociais, econômicas e históricas imbricadas em/entre cada manifestação.
Como exemplo, julgo oportuno citar a perspectiva do folclorista Edison Carneiro
(2008) que expõe de forma comparativa a correlação entre as diversas variantes de brincadeira
de boi existentes no Brasil. Ele faz referência ao bumba-meu-boi como sendo a forma mais
primitiva e simplificada da manifestação, posicionando o cavalo marinho (assim como outras
expressões similares ao bumba-meu-boi como o boi-de-mamão em Santa Catarina,
auto-dos-guerreiros em Alagoas ou turubibita ou cebola branca na Bahia) como alterações
intencionais e adulteradas do primeiro. No caso do cavalo marinho, Carneiro afirma que as
alterações se dão com o intuito de estender as apresentações, assim como para fazê-las mais
atrativas aos espectadores, relegando o boi, sua morte e ressurreição para um plano
secundário. Desta forma, o significado da representação resultaria desfigurado e finalmente
ocultado do entendimento dos espectadores (Carneiro, 2008, p.27).
Neste aspecto, Carneiro refere-se ao conteúdo simbólico do boi que é tido como uma
alegoria da preocupação básica do homem para com a terra e a natureza. Como fonte básica
de subsistência, o boi é a peça fundamental – ao lado do trabalho escravo – na produção e
extração de matéria prima no contexto rural brasileiro. Do mesmo modo, este animal nos
remete à ideia de unidade, força cosmogônica, origem e fim de tudo – morte e ressurreição. O
boi, portanto, representa a luta pela vida e a permanência, assim como representa a
28

coletividade, as práticas, costumes alimentares e a vida familiar. Consequentemente,


entendemos a figura emblemática como “símbolo da luta pela subsistência para os brasileiros”
(Murphy, 2008, p.134).
A parte da análise simbólica dos elementos da brincadeira, Edison Carneiro (2008)
também elabora um mapeamento do itinerário traçado pelas personagens entre as diversas
“variações” de bumba-meu-boi apontando, eventualmente, para o fenômeno de recombinação
de elementos entre brincadeiras:

Somente o Cavalo-Marinho, animalejo muito conhecido e estimado nos xangôs do


Recife e nos candomblés da Bahia, tem uma longínqua razão de se encontrar no
bumba-meu-boi, entre os muitos bichos que nele aparecem. [...] Não é difícil
descobrir onde se foi buscar o Arlequim do bumba-meu-boi. A Pastorinha
certamente vem dos bailes pastoris e dos ternos e ranchos de Reis; a cena do
Valentão deve ser parte de algum romance anônimo do sertão – ou, como veremos,
um desdobramento sugerido pela versão mais antiga; o Caboclo de Arco é uma
criação que lembra a figura convencional do índio brasileiro; o casal de cabanos
representa os sertanejos (​cabanos ​em Pernambuco, recordação da revolta de Vicente
de Paula); Mané Gostoso é um boneco articulado, de fabricação popular, do
Nordeste – e, no auto o figurante vem com um camisolão que lhe aumenta ou
diminui o tamanho, a vontade; a burrinha Calu é bem conhecida dos ternos e ranchos
de Reis. Os fantasmas resultam da concepção católica e espírita das almas do ​outro
mundo e dos seus correspondentes nagôs e bantos (Ibid. p. 29,30).

Do mesmo modo, em sua obra ​Danças Dramáticas do Brasil, ​Mário de Andrade


(1982) cataloga o cavalo marinho como uma variante dos reisados, sendo estes dramatizações
de diversas cantigas e poemas épico-religiosos reunidos numa longa apresentação. Dentro
desta mesma classificação, os reisados se integram no grupo genérico das ​danças dramáticas​,
definidas como qualquer tipo de bailado, dentro do contexto brasileiro, que se constitui por
uma combinação de dança, música e conteúdo narrativo.
Paralelamente a esta classificação, Mário de Andrade (1982) apresenta uma leitura um
tanto mais aprofundada no que diz respeito à análise dos símbolos arquetípicos e significados
presentes na maioria das ​danças dramáticas.​ De certa forma, o autor aponta para o caráter
ritual destas manifestações buscando reconhecer neles uma série de “funções sociais” que
dariam sentido prático às performances exercidas por seus participantes de forma
inconsciente. Como podemos comprovar neste fragmento que faz referência aos Congos:

Com isso, se poderá dizer que os ​Congos numa versão como esta minha,
funcionariam subconscientemente como uma espécie de luta entre os princípios não
direi do Bem e do Mal, mas do benefício e do malefício, a rainha Ginga. Vitória que
seria uma espécie de desforra da treva negra, se aceitando como raça danada, contra
o princípio do Bem (os brancos…) duma religião imposta, que não era nada deles,
que jamais a coletividade pôde aceitar na íntegra em quatro séculos de imposição.
[...] Um fundo forte desse pensamento elementar, dessa magia simpática, permanece
29

em nossos bailados populares, nos ​Cucumbis ​antigos, nos ​Caboclinhos, p​ araibanos,


no ​Bumba-meu-Boi ​nacional, nos Reisados amazônicos, em que o princípio do
benefício, o Mameto, o Matroá, o Boi, o animal que dá nome ao rancho, morrem e
renascem outra vez. (p. 32, grifo nosso).

Como podemos observar, estas obras são ricas em descrições e comparações


minuciosas das diversas brincadeiras, das formas em que se organizam e dos contextos em
que se dão, fato que nos leva a valorar positivamente as aportações teórico-metodológicas do
autor e seus coetâneos.
Neste aspecto, tomando como exemplo a excepcional qualidade etnográfica manifesta
na obra de Mário de Andrade (fruto de uma profícua coleta de dados, leituras e incontáveis
viagens etnográficas), nestes documentos encontramos reflexões detalhadas sobre a
complexidade formal e de conteúdo das diversas manifestações, aportando convincentes
hipóteses sobre os vínculos e conexões que estas estabelecem entre si, onde são chave as
análises dos contextos sociais, econômicos, históricos e políticos que as envolvem. Por
conseguinte, vemos como a capacidade descritiva e de análise dos autores, continuam a nos
proporcionar informações indispensáveis para compreender, entre outras coisas, os processos
de transformação que acompanharam e contornaram estas manifestações ao longo do tempo.
Por outro lado, faz-se necessário problematizar que o discurso dos movimentos
intelectuais modernos com base na cultura “popular” dá-se em decorrência de um interesse
político e ideológico para formalizar as bases da identidade nacional brasileira. Deste modo,
as elites artísticas e intelectuais da época consideravam as festas, poesias, danças, brincadeiras
e músicas próprias das classes subalternas como “um sistema cultural de preservação do
‘​espírito do povo’” (Rocha, 2008, p.219, grifo nosso). Como nos mostra Peter Burke ​(2010,
p.37):

A descoberta da cultura popular foi, em larga medida, uma série de movimentos


“nativistas”. No sentido de tentativas organizadas de sociedades sob domínio
estrangeiro para reviver sua cultura tradicional. As canções folclóricas podiam
evocar um sentimento de solidariedade numa população dispersa, privada de
instituições nacionais tradicionais. [...] De maneira bastante irônica, a ideia de uma
“nação” veio dos intelectuais e foi imposta ao “povo” com quem eles queriam se
identificar. Em 1800, artesãos e camponeses tinham uma consciência mais regional
do que nacional.

Através deste exemplo faz-se nítida a crítica existente por um lado aos movimentos
folcloristas (do qual participam Sílvio Romero, Mário de Andrade ou Edison Carneiro), que
apresentavam um caráter acumulativo, puramente descritivo, neutro (acrítico), e portanto
30

descontextualizado das pesquisas folclóricas que procuravam o ideal do povo brasileiro. Deste
modo, o folclore associou-se também no Brasil como consequëncia da imagem exótica,
idealizada e romantizada proposta pelos seus defensores, com a noção de “tradição”, cujo
sentido implicava o fato de pertencer a um passado longínquo e há tempos findado ou
sobrevivente em regiões recuadas e preservadas dos contextos urbanos.
Durante a década de 1950 e 1960, coincidindo com as políticas desenvolvimentistas
do governo de Juscelino Kubitschek, a subsequente sociologia brasileira (representada por
Florestan Fernandes) ganhou espaço no debate sobre o patrimônio imaterial nacional,
propondo a “cultura popular” como proposta ideológica para politizar as classes subalternas.
Porém, apesar de discordarem das premissas metodológicas, científicas e teóricas do
movimento folclorista, os sociólogos e antropólogos continuaram perpetuando, em seu
renovado discurso, a construção e produção da Cultura Nacional. Desta vez, com a motivação
de promover a conscientização política do povo, enfatizava-se a expressão das classes
subalternas como “portadora de uma cultura ‘autêntica’, ‘pura’ e, portanto, menos corrompida
[que a cultura urbana]” (Burke, 2010, p.227, grifo nosso). Por outro lado a mistificação da
cultura “do povo” como elemento unicamente enunciativo, referência útil para a autonomia e
consciência cultural e proposta desde a elite intelectual, terminaria destituindo o “povo” de
qualquer agência sobre o “popular”. Em suma, colocariam-se as bases da concepção clássica e
dominante de ​cultura popular,​ partindo das seguintes idéias:

que a cultura popular podia ser definida por contraste com o que ela não era, a saber,
a cultura letrada e dominante; que era possível caracterizar como ‘popular’ o público
de certas produções culturais; que as expressões culturais podem ser tidas como
socialmente puras e, algumas delas, como intrinsecamente populares (Chartier,
1995, p.183)

Em ambas abordagens da cultura “do povo”, as classes dominantes converteram-se em


porta vozes (sob um argumento político e ideológico) do que é “popular”, e as pesquisas sobre
este tema tornaram-se propensas à produção de generalizações tendendo a simplificar a
complexidade de suas expressões. Sendo assim, costumes, canções, usos, cerimônias, danças
e provérbios foram simplificados e unificados nestas narrativas até o extremo de invisibilizar
suas especificidades, desautorizando o domínio que os seus autores e detentores (“o povo”)
tem sobre este e tornando-os passíveis à processos de apropriação por parte das elites
intelectuais.
31

Esta noção romantizada do “popular” propicia uma visão cristalizada, anacrônica e


imutável das classes subalternas e suas formas de se expressar, fato que negligencia a
capacidade de ação e criação de um “povo” que, longe de ser monolítico e homogêneo,
produz e sustenta dispositivos de subjetivação, agência, identidade e pertencimento por meio
da expressão artística e do ato de brincar; delineando padrões éticos e estéticos que se
ressignificam junto com as transformações históricas do seu tempo. Da mesma forma:

O “popular” não está contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar,


repertoriar, descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de relação, um
modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são
recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras (Chartier, 1995,
p.184)

Assim, podemos considerar que não há uma brincadeira mais verdadeira ou mais
autêntica do que outras e que nenhuma se antepõe ou se sobrepõe às outras. Nesta lógica, cada
mudança e divergência existente entre uma e outra brincadeira e inclusive entre um e outro
grupo de cavalo marinho, com seus estilos, formatos e métodos organizacionais diferentes

se justificam na medida em que são usadas com o intuito de auto-fortalecimento dos


próprios grupos que fazem as ​brincadeiras​, considerando também a dinâmica
existente nestas ​tradições que permite que cada lugar e situação imprima nelas suas
próprias caraterísticas (Tenderini, 2003, p.62, grifo da autora).

Este último sentido de “tradição”, em contraste com a acepção anterior, passa a ser
sinônimo de uma força que permanece em constante mudança: “sempre ressignificada através
do tempo e do espaço. Ela muda conforme as necessidades e possibilidades do período e lugar
em que se situa” (Ibid, p.31).
Assim podemos refletir sobre as práticas culturais populares como forças de criação e
renovação das sociedades, elaborando e atualizando seus sentidos de forma intersubjetiva e
continuada, em outras palavras, enxergamos a “cultura popular” como uma

potência intensificadora da realidade e espaço de comunhão em que pluralidade e


singularidade se relacionam de forma dinâmica, rizomática e líquida, a qual inunda e
transborda, se movendo em diversas direções, sem qualquer tipo de fronteira, seja
cultural, temporal ou geográfica (Brondani, 2013, p.14).
32

Características e singularidades do cavalo marinho

Com o intuito de ampliar nossa percepção sobre o objeto de estudo aqui tratado, faz-se
imprescindível apresentar as principais características do cavalo marinho, isto é, descrever
onde e quando acontece, expor e enumerar suas partes, elementos e traços significativos
apontando para algumas alterações singulares e mudanças nos últimos anos. Para este fim
optamos por utilizar categorias cotidianas dos atores sociais que participam e compõem o
cavalo marinho (nativas), como categorias analíticas em detrimento dos termos elaborados e
utilizados na literatura especializada. Desse modo, categorias como ​puia​, ​pantim; brincador,
brincadeira e​ ​brinquedo;​ ​roda do samba ​e ​terreiro; sambada o​ u feijão queimou ​(cujos
significados iremos apresentando ao longo do trabalho) tornam-se, no contexto do cavalo
marinho, referências com sentidos específicos e exclusivos que abordam, medem e projetam
alguma coisa sobre a realidade da brincadeira, facilitando-nos uma compreensão mais
aguçada sobre seus significados, dinâmicas e formas organizativas.
Em seguida, o termo ​brincadeira é utilizado pelos sujeitos que formam parte do
contexto para designar tanto a ação performática como o universo que se desdobra a partir do
cavalo marinho. Como explicamos no início do capítulo, o termo nos remete a um clima de
diversão, entretenimento e lazer, porém também implica seriedade; por apresentarem cenas
densas, carregadas de violência e hostilidade que nos interpelam através da ironia e o
sarcasmo burlão.
A ​brincadeira r​ equer do sujeito​, ​a sensibilidade e a capacidade estética de apreciar,
cuidar e escutar o entorno que o circunda (enquanto belo e harmônico), mas também pode
acarretar desequilíbrios, desrespeito e descontrole. Podemos acrescentar a isto que a tensão e
instabilidade presentes na ação dramática do cavalo marinho, são geradas na fricção entre
componentes antagônicos como seriedade/comicidade, criação/destruição, ficção/realidade,
vida/morte, entre outros. O que sugere que “a ​brincadeira é​ uma prática que implica ​cuidado”​
(Acselrad, 2013, p.49), pois transborda continuamente qualidades positivas e qualidades
negativas. Neste sentido ​cuidado i​ mplica equilíbrio ou melhor, saber equilibrar a relação entre
o descontrole (o ​desmantelo​) e a ​consonância (​ Acselrad, 2013, p.49)
33

A categoria ​brinquedo​, já mais específica, faz referência ao conjunto de elementos


materiais e imateriais que dão identidade ao grupo de cavalo marinho. Abarca desde os
componentes cenográficos e adereços (máscaras, animais feitos de arame ou cipó e cobertos
de espuma, papietagem ou tecido, vestuário, instrumentos musicais, etc.) até os próprios
integrantes e suas formas singulares de brincar, transmitir conhecimentos e se organizar.
Neste sentido, “brinquedo” serve como análogo de grupo, companhia (no caso das artes
cênicas) pois é formado por um conjunto de agentes que se repartem e executam funções de
organização, produção e gestão; desde confeccionar máscaras até negociar possíveis contratos
de apresentações com prefeituras ou órgãos públicos.
Assim, o indivíduo que participa ativamente de um grupo de cavalo marinho recebe e
utiliza para si mesmo o nome de ​brincador, brincante, sambador ​ou folgazão21,
desempenhando um ou vários papéis cênicos durante o enredo, seja dançando, tocando um
instrumento ou interpretando as distintas personagens denominadas figuras no contexto do
cavalo marinho. Consequentemente, o ato de “botar” ou “colocar figura” remete à
interpretação de uma ou várias figuras, cada uma com evoluções específicas e distintas uma
das outras, caracterizadas por uma maneira particular de andar, de dançar e inclusive de falar;
cada figura costuma ter seus próprios versos, cantos e músicas, trazendo consigo indumentária
e marcas corporais distintos que a caracterizam.
Na brincadeira do cavalo marinho acredita-se haver em torno de 85 figuras22,
registradas a partir das diversas pesquisas realizadas nos últimos vinte anos (Amaral, 2013,
p.69). Segundo Borba Filho (1982), as figuras podem-se classificar em três grupos
majoritários; figuras humanas (homens, mulheres, idosos, jovens, etc.), bichos ou animais
(ema, boi, onça, urubu, etc.), e seres fantásticos (babau, gigante, Margarida, etc.). Estas fazem
referência à personagens da vida real ou pertencem ao universo imaginário local (bêbados,
bobos, comerciantes, ladrões, valentões, escravos, senhores de engenho, soldados, velhas
fogosas, etc.), tornando a brincadeira um espaço onde estas duas dimensões (real e
imaginário) se encontram e se atravessam constantemente.

21
Cabe dizer que apesar de que os termos brincante e folgazão sejam importados da academia (a palavra
folgazão é oficialmente elaborada pela Comissão Nacional do Folclore em 1953), hoje em dia são usadas de
forma indistinta pelos os participantes da brincadeira.
22
​Alguns pesquisadores já tentaram fazer um registro das figuras que existem e/ou existiram no cavalo marinho,
apesar dos próprios brincadores tenderam a problematizar a forma como estes registros foram feitos, ora
apontando para o fato de que os bichos, bonecos e os seres fantásticos da brincadeira não podem ser contados
como figuras, ora dizendo que não é realista contar as figuras que ninguém mais sabe como “botar”.
34

Por um lado temos a figura do Capitão Marinho, cujo nome dá título à brincadeira e
sobre a qual gira a história contada no cavalo marinho. Também chamada de Figura do
Cavalo ou Mestre Cavalheiro, esta figura se desvela como parte constituinte do argumento
fixo da brincadeira, personificando a liderança hegemônica; “é sempre portador do apito,
artefato que comanda a brincadeira, sinalizando o começo ou o término “das partes” [...] da
realização do folguedo” (IPHAN, 2013, p.43). Assim mesmo, é habitual ver esta figura sendo
interpretada por uma pessoa com autoridade dentro do grupo de cavalo marinho (um mestre
ou um brincador mais velho), uma vez que demanda uma autoridade reconhecida no domínio
do desdobramento da brincadeira.
Por outra parte, consideramos as figuras do Mateus, o Bastião e a Catirina que assim
como o Capitão estão presentes de forma permanente ao longo da brincadeira, mas
contrastando com eles como empregados do Capitão, assumindo um aparente papel de
subordinação. Um aspecto interessante é que tanto Mateus como Bastião participam no
aspecto musical da brincadeira de forma ativa, uma vez que produzem sons percussivos ao
bater bexigas23 em suas coxas. As bexigas são elementos característicos da indumentária dos
dois empregados (Mateus e Bastião), utilizados “para golpear outras figuras ou até mesmo o
público. Estes golpes são mais barulhentos que doloridos, de modo que é comum as bexigadas
desferidas por Mateus e Bastião arrancarem gargalhadas do público” (IPHAN, 2013, p. 106).
O golpe de uma bexiga contra algo ou alguém chama-se, entre os brincadores, de ​lapada.
Estas quatro figuras, como veremos mais adiante em detalhe, cumprem um papel
crucial no desenvolvimento da brincadeira, aportando ordem, dinamismo, continuidade e
consistência ao fio condutor da trama dramática. Através de depoimentos como os do Mestre
Biu Alexandre, podemos perceber a imprescindibilidade dessas figuras para a recepção de
outras que aparecem no decorrer da brincadeira; como é o exemplo do Pataqueiro:

(O) Pataqueiro só é bem feito quando o Mateus sabe trabalhar com ele. O
Pataqueiro, quando ele chega no pé da roda, ele fica deitado lá. O Mateus tem a
obrigação de levantar ele, quando ele pegasse na mão pra levantar, metia a bexiga
pra cima, que é pra ele se levantar direto e a gente ir fazendo munganga de lá (Biu
Alexandre, depoimento concedido ao autor em entrevista datada de 20 de maio de
2019, realizada em Condado, Pernambuco).

23
​Nome dado a um dos artefatos relativos à figura; uma bexiga de boi tratada e inchada com ar que produz um
som seco e grave. Também usam-na como arma de defesa e de ataque contra figuras que não são do seu agrado
ou que supõe serem uma ameaça.
35

O brincador encarregado de botar boa parte das figuras restantes (fora a do Mateus,
Bastião, Catirina e do Capitão) recebe o nome de ​figureiro​. Estas figuras costumam
permanecer no terreiro por algum tempo, visto ser interpretações complexas e que
normalmente requerem a presença de outras figuras. Assim mesmo, se exige dos figureiros a
memorização de ​loas24 extensas e/ou versos improvisados exigindo, para seu desempenho, um
grau elevado de experiência e de conhecimento destas figuras por parte dos que as
interpretam.
A distinção entre as figuras mais simples e as mais elaboradas está na profundidade
dramática que envolve sua interpretação. Neste sentido, para as figuras mais complexas o
figureiro deve aportar junto com sua atuação, conhecimentos e técnicas específicas que lhe
permitam construir uma personagem atraente, completa e convincente, mesmo que seja
através da caricatura; ressaltando suas características comportamentais e atitudinais, incluindo
gestos e formas de falar determinadas. Alguns exemplos podem ser as figuras do Soldado,
Mané do Baile, Vilanova, Mestre Domingos, Valentão, Vaqueiro, Doutor da Medicina, Véia
do Bambu, etc.
Os figureiros, assim como os mestres em geral, são brincadores veteranos e,
consequentemente, muito respeitados no contexto da brincadeira. Frequentemente são
reconhecidos como detentores do saber, tanto pelos membros do próprio grupo como por
brincadores de outros grupos.
Por outro lado, os integrantes mais inexperientes (os mais novos do grupo), brincam
na posição de ​galantes.​ Análogos de figurantes, formam um grupo de quatro ou mais
indivíduos aos quais se somam a Daminha, a Pastorinha e o Arlequim; todas são reservadas
aos noviços (normalmente crianças) da brincadeira. O conjunto de galantes recebe o nome de
galantaria ​e acompanharam o Capitão durante suas cantorias, bailes em louvor aos Santos
Reis do Oriente, executando danças e evoluções complexas como a de São Gonçalo25. Estes
jovens brincadores também interpretam outras figuras mais simples cujas execuções requerem
pouco exercício de memorização, ou nem sequer isso; pois algumas são mudas ou respondem

24
Loas são todos os versos com rima, declamados pelas figuras que podem ser de métrica simples, como as
estrofes de quatro versos de sete sílabas (ex: Em cima daquela serra/ Canta duas patativas/ Uma canta, outra
responde/ o dono da casa viva) como métricas mais complexas como sextilhas, décimas e galopes
25
​A dança de São Gonçalo é uma das múltiplas coreografias presentes na brincadeira. Em específico, esta se
desenvolve na parte “dos arcos” configurada por um conjunto de danças onde os galantes balançam, como o
próprio nome indica, uns arcos de um lado para outro, realizando manobras e evoluções ao longo do terreiro que
são comandadas pelo Capitão ou “puxador de cordão”.
36

com sons monossilábicos ou balbucios. Temos como exemplo o Empata-samba, o Babau, o


Padre, a Ema, o Samba-aqui, o Nego Titanga, entre outras.
Outro elemento característico é a dança, entendida como o conjunto de passos e
evoluções coreográficas que aportam movimento e dinamismo ao conjunto da brincadeira e
podem ser tanto individuais (de cada figura ou brincador) como grupais (a exemplo da dança
dos arcos ou ​aicos26, o tombo do ​magüio27, etc.). Estas se desenrolam sobre ritmo da música e
em sua maioria tendem a enfatizar a parte inferior do corpo (quadril encaixado, joelhos
flexionados e torço ligeiramente descontraído), atribuindo-lhe certa sensação de pesadez28, ao
mesmo tempo que são, em sua maioria, passos curtos, rápidos e que exigem uma grande
agilidade de parte do brincador.
Podemos dividir a dança em três grandes grupos: primeiro, encontramos os ​trupés,​
passos energéticos que enfatizam a intensidade rítmica do acompanhamento musical ao tocar
o chão com os pés que provocam um som seco e percussivo. Por outro lado temos as ​pisadas​,
passos menos “aterrados” (e portanto, menos sonoros) que exigem um nível de agilidade e
destreza mais elevado. Finalmente encontramos os ​tombos​, passos com movimentos mais
cadenciados que tendem a seguir a inércia do corpo, de cujo balançar devem sua essência
motriz.

26
Varas de uma madeira flexível e envergada, enfeitada com fitas coloridas. Elementos característicos e
imprescindíveis para o desempenho das coreografias e evoluções próprias da parte “dos arcos”.
27
Magüio, magui ou mergulhão é uma das múltiplas partes dançadas da brincadeira. Comumente situada no
começo da mesma, o magüio se baseia na interação entre os brincadores/as que entram e saem da roda
(mergulhando) com o singular ​tombo do magüio,​ que consiste em uma combinação de trupés (pisadas sonoras e
rítmicas contra o chão em combinação com um movimento balanceado (chamado de tombo). Os brincadores
entram ou, mais bem, mergulham na roda mantendo contato visual com a pessoa que entrará na roda depois dele.
Assim, o magui se configura como um concatenamento de pessoas que interagem através do tombo entrando e
saindo da roda.
28
Uma definição mais ajustada da dança do cavalo marinho é a de “peso flutuante”, parafraseando Helder
Vasconcelos: músico e brincador natural de Garanhuns, Pernambuco, conhecido por ser ex-membro do afamado
grupo recifense Mestre Ambrósio. Hoje em dia é coordenador do boi de carnaval Boi Marinho e brinca de
Arreiamá no Maracatu de Baque Solto Piaba de Ouro (Tabajara, Pernambuco), entre muitas outras coisas.
37

Adicionalmente, o aspecto musical e rítmico da brincadeira é atribuído ao banco: lugar


onde se sentam os músicos que tocam durante a brincadeira e que dá nome ao conjunto
musical do cavalo marinho. Um banco de cavalo marinho está formado por quatro
instrumentos que, seguindo na maioria das vezes uma mesma ordem, se colocam um do lado
do outro, demarcando três extremos da ​roda do samba29 (como se pode comprovar na figura
1).
Em primeiro lugar (da direita para esquerda) encontramos a rabeca (R na ​fig. 1):​
instrumento de fabricação artesanal, da família do violino e que chega ao Brasil junto com os

29
​É na ​roda do samba ​onde a brincadeira acontece à medida que as figuras vão ocupando e desocupando o
espaço. Neste sentido, se configura como um espaço “​flexível ​e ​polifocal, ​envolvendo frequentes deslocações do
centro dramático da representação – o que é um fator que influencia a atenção dos espectadores, ora mais
próximos, ora mais distantes deste centro (Valverde, 2000, p.6, grifo nosso).
38

colonizadores. Podemos dizer que a rabeca é, na atualidade, “o único instrumento


melódico-harmónico do grupo [...] fazendo-se acompanhar apenas por instrumentos de
percussão e cantores” (Araújo Neto, 2017, p.49).
Na sequência encontramos quatro instrumentos percussivos. O primeiro deles
(segundo, se contamos a rabeca) é o pandeiro (P na ​fig. 1​), que nas mãos do ​toador30 toca um
único padrão rítmico durante toda a brincadeira. No cavalo marinho, o pandeiro “é do tipo
comprado em loja, de cerca de 25 centímetros de diâmetro, platinelas metálicas e pele de
náilon afinada com tarrachas” (Murphy, 2008, p.64).
Em quarto e quinto lugar encontramos, no geral, as bages (B na ​fig.1)​, apesar de que
podemos encontrar só uma ou também mais de duas, dependendo da quantidade de músicos
que tenha o banco. Este instrumento caracteriza-se por ser “um pedaço de taboca31 sem nó, de
45-50 centímetros por 8,5 centímetros de circunferência, em que se entalharam ranhuras
transversais que são roda a volta , ao longo de 30 centímetros da extensão da taboca. Esta
superfície serrilhada é friccionada com um bastãozinho de perfil triangular” (Ibid, p.68).
Por último encontramos o mineiro ou ganzá (M na ​fig. 1)​, que é “um chocalho
cilíndrico de cerca de 30 centímetros de comprimento” (Murphy, 2008, p.67), recheado de
sementes areia ou qualquer tipo de material granuloso que produz um som contínuo, agudo e
de articulação bem definida que mantém, junto com as bages, a cadência e o andamento da
brincadeira, dando passo às danças e às cantorias. Em suma, “o banco tem uma função muito
importante no brinquedo, pois ele junto com o Capitão é quem dá o ritmo à cena. Um bom
banco esquenta a brincadeira” (Amaral, 2013, p.76).
Em quanto á localização do cavalo marinho no ciclo anual, este se associa às
festividades de celebração católica ao(s) Santo(s) Reis do Oriente32, razão pela qual seu
momento auge coincide com os dias próximos ao Natal e Dia de Reis. Não obstante, cabe
destacar uma maior amplitude no calendário de atividade pois, segundo a observação feita por
Seu Inácio Lucindo33, algumas décadas atrás a brincadeira iniciava no último sábado de São

30
​O toador é um integrante do banco que tem a função de conduzir as toadas que vão ser interpretadas pelos
músicos: poderíamos considerá-lo o líder do banco.
31
A taboca é um tipo de bambu nativo do Brasil, fácil de encontrar em todo o território do país e por extensão
também na Zona da Mata Norte. Com a taboca também se elaboram outros elementos do cavalo marinho como
as estruturas internas (ou ​bojos​)​ ​dos chapéus de Mateus e Bastião e dos Caboclos de Lança de maracatu.
32
Durante a pesquisa de campo pudemos comprovar como a nomenclatura usada para se referir aos Santos Reis
do Oriente varia entre o singular e o plural, mas unicamente na palavra ​santo o​ u ​santos​. Assim, os interlocutores
usam indistintamente “​O​ ​Santo R ​ eis do Oriente”​ ​e/ou “​Os​ ​Santos R
​ eis do Oriente”​.
33
Seu Inácio Lucindo tem 83 anos, dos quais leva 72 brincando cavalo marinho. Dono do Cavalo Marinho
Estrela do Oriente (hoje em dia inativo), foi o primeiro mestre de Aguinaldo Roberto. De natureza nômade, já
39

João ou no primeiro de Santana (meses de junho e julho respectivamente) começando com


ensaios onde não se usavam todas as vestimentas nem os adereços usados nas apresentações
(formais ou extraordinárias), apesar das figuras sempre se apresentarem de paletó e máscara.
Como podemos ver nesta crônica de mestre Biu Alexandre:
Depois de casado fui morar lá em Goiana. Tinha um cavalo marinho que nunca tinha
começo nem tinha fim. Eu disse pro mestre; o cavalo marinho daqui não tem ensaio
gerá, só tem ensaio, ai marquemos três ensaios pra dá ainda, né?... Eu quero ver tudo
trajado. [...] Nos ensaios não tinha boi nem cavalo (em depoimento concedido ao
autor em entrevista datada de 20 de maio de 2019, realizada em Condado - PE).

Este formato mais simples funcionava como prática preparatória para os grupos e
culminava num derradeiro ​ensaio ​gerá e​ m torno de agosto ou setembro​, que consistia numa
brincadeira “com tudo pronto”, equivalente à apresentação da Noite de Reis. A partir deste
ensaio gerá, a brincadeira acontecia semanalmente, (geralmente aos sábados) até o
encerramento do ciclo natalino no dia 6 de janeiro (dia de reis).
Em outras palavras, estes primeiros encontros favoreciam a reconstituição do grupo,
permitindo retomar e aprimorar certas habilidades/técnicas e transmitir conhecimento aos
novos integrantes, fossem estes crianças ou adolescentes inexperientes ou brincadores de
outros grupos com formas de brincar diferentes). Hoje em dia, diz Seu Inácio, “os ensaios são
escassos, assim como as próprias noitadas”34.
Contemporaneamente observamos em Condado (PE) que o cavalo marinho tem datas
definidas no calendário guardando seu vínculo com o ciclo natalino, ou seja, como devoção
aos Santos Reis do Oriente. Adicionalmente e segundo o que pudemos comprovar em campo,
os primeiros ensaios costumam acontecer na primeira semana do mês de julho ou Sant’Ana
(como a denominam os brincadores) e terminam na primeira semana do mês de janeiro
(IPHAN, 2013; Acselrad, 2013; Oliveira, 2006). Uma vez encerrado o período da brincadeira
dá-se passo ao ciclo carnavalesco e, por conseguinte, outras manifestações presentes na região
tomam protagonismo (tais como o maracatu de baque solto e os caboclinhos).
Tanto no modelo do ​ensaio gerá c​ omo na apresentação “formal”, o ato ou momento
de brincar cavalo marinho conhece-se como ​sambada,​ ​noitada ou ​samba de pé de banco que,
em seu formato mais conhecido, dura em média de oito a dez horas seguidas. Nestes casos, a
brincadeira começa geralmente à “boca da noite” e conclui ao “quebrar da barra do dia”,

morou em diversas cidades da zona da Mata Norte de Pernambuco, como Condado e Camutanga. Atualmente
vive em Ferreiros com Dona Maria, sua esposa.
34
​Em entrevista concedida ao autor em 29 de junho de 2019, Ferreiros, Pernambuco.
40

modo como os brincadores denominam o adentrar da noite (por volta das vinte e uma horas) e
o alvorecer (por volta das cinco horas da manhã), respectivamente. Percebemos que é durante
a noite que o cavalo marinho tem vez, terminando este nos primeiros raios de sol do dia
seguinte e coincidindo com a ressurreição do boi, que, como já vimos anteriormente,
configura-se como um componente crucial na trama dramática da brincadeira não só presente
no cavalo marinho mas também nos outros autos-de-boi.
A propósito do conteúdo espetacular de uma sambada, podemos dizer que esta se
desdobra numa concatenação de inúmeras ​passagens (como são chamadas as cenas),
configurando assim uma sequência ordenada, porém não necessariamente fixa, de situações
onde confluem elementos dramáticos, danças e coreografias, poesia, música e devoção
religiosa.
Segundo Oliveira (2006, p.258) as ​passagens podem ser de dois tipos; ou bem são
“momentos” -​ fazendo referência às que contém apenas elementos de dança ou de música; ou
bem de “episódios” – quando além dos elementos já mencionados abrangem uma
representação teatral, é dizer, com conteúdo lírico, épico ou dramático. Da mesma forma, com
o intuito de sintetizar a diversidade temática da brincadeira o autor divide o espectáculo em
cinco partes, sendo que a primeira coincide inevitavelmente com o início da brincadeira, razão
pela qual recebe o nome de “momento de aquecimento”: é quando percebe “uma integração e
uma aclimatação do ambiente, propiciando uma atmosfera essencial ao desenrolar da noite”
(Oliveira, 2006 p, 260).
A segunda parte, nomeada por Oliveira (2006) como “episódio de abertura da
brincadeira” é a apresentação das figuras elementares (Capitão, Mateus, Bastião e Catirina)
que farão parte de toda a brincadeira. A partir destes, o episódio (ou conjunto de episódios)
contempla a chegada de outras figuras, questionando a autoridade da festa que, a priori, é
representada pelo Capitão. Uma vez resolvida a questão, a brincadeira obtém legitimidade nas
mãos do Capitão e consegue prosseguir. Como podemos observar, este episódio gira em torno
das relações de poder; cenas que transitam entre a violência, o despotismo e a burla. É onde as
figuras disputam umas com as outras o protagonismo, tanto no domínio cênico como na
condução da trama da roda do samba. Mais adiante, faremos uma análise aprofundada sobre
as dinâmicas de imposição/negociação de poder presentes neste episódio.
Na terceira encontramos o “momento da evolução dos galantes”, no qual o Capitão,
após ter assumido o mando sobre a brincadeira, organiza seu conjunto de Galantes
41

(soldados/familiares do Capitão) e exibe seu poderio. Este é o momento mais ceremonial da


brincadeira, com forte conteúdo devocional católico e onde as danças e evoluções ao redor do
terreiro com arcos de fitas coloridas centralizam a atenção do espectador: “A galantaria brinca
no baile do Capitão Marinho e responde pela parte “nobre” da festa, quando se faz a dança
dos arcos e se canta em louvor aos Santos Reis do Oriente” (IPHAN, 2013, p.80).
Até esta parte da brincadeira observamos que a entrada e saída de figuras respeitam
uma sequência normatizada e ritualizada que pode ser enquadrada na seguinte ordem: Entrada
do Banco e Capitão (1). Depois das diversas danças do “momento de aquecimento”
presenciamos a chegada de Seu Ambrósio (2) para vender ou ​brindar as figuras que vão se
apresentar ao longo da noite, apesar de que esta figura pode chegar também em outros
momentos da brincadeira, dependendo do grupo. Imediatamente depois temos a chamada de
Mateus e Bastião (3), que encerram um trato com o Capitão no qual “tomam conta mas não
dão conta” da festa. Em consequência da desobediência dos dois trabalhadores, o Capitão
manda chamar o Soldado da Gurita (4) para prender e punir os dois rebeldes. Assim que o
Soldado cumpre com suas funções e se retira da roda do samba chega o Empata Samba (6),
um embusteiro que aproveita o vácuo no poder e para a festa para “prender” ​todos os
instrumentos e figuras que se encontram na roda. Assim, “num apelo a uma autoridade maior”
(Murphy, 2008), o Capitão requer a ajuda de Mané do Baile (7) para o restabelecimento da
festa, liberando os instrumentos e deixando o Capitão e seu séquito de Galantes encenar uma
série de canções, loas e evoluções coreográficas onde se narra a Epifania dos Santos Reis do
Oriente.
A quarta parte, denominada “episódios das figuras”, é a mais extensa35 de todas (por
ser flexível), dada sua estrutura modular. Nesta parte, figuras das diferentes categorias
(humanos, bichos e seres fantásticos) desfilam pelo terreiro com argumentos variados (seja de
forma individual ou coletivamente), interagindo com o público, com o banco e com o Capitão,
ficando em cena por tempo indefinido e desenvolvendo conflitos e situações dos mais
variados tipos.

35
Para termos uma ideia da extensão desta parte de brincadeira, pretendemos mencionar alguns exemplos de
figuras que podem (ou não) integrar este episódio, tais como: Mestre Cavaleiro, Valentão (ou Tintinqué), Seu
Bronzo (Pataqueiro ou Cobrador), Babau, Ema, Véia do Bambu, Mané Joaquim (o Véi da Véia), A Morte, O
Padre, O Cão, Bicheiro, Nego(s) Titanga, Samba Aquí, Parece Mais Não É, Varredor (ou Vila Nova), Margarida,
Mané Gostoso, Mané Chorão, Mané Pequenino, Mané do Motor, Mané Taião, Mane da batata (ou da burrinha),
Mana Nêga, Matuto da goma, Mestre Domingos, Macaco, Jaraguá, Onça, Urso, Italiano, Gigante, Sardanha,
Véio Friento, Pisa Pilão, Caboclo de Arubá, Lika, Bêbado, Vaqueiro, entre muitos outros.
42

Se por um lado podemos dizer que a ordem de chegada das figuras na roda do samba é
aleatória – pois existe de fato uma sequência central que deve acontecer para poder dar passo
à figura do Boi, por outro se observam ​passagens ​que precisam de mais de uma figura para
seu desenvolvimento – a distribuição de figuras ao longo deste episódio, assim como o tempo
que estas têm de permanecer na roda do samba dependem da pessoa que esteja mestrando a
brincadeira, a que decide qual será a próxima figura ou grupo de figuras a entrar no terreiro,
avisando ou mandando avisar um dos figureiros disponíveis para que a “bote”. Esta escolha se
realiza em base a duas: a primeira é a hora, pois o mestre deverá levar um cálculo aproximado
das horas que restam até o “raiar” do sol36 ( quando o boi deve sair) ou, alternativamente, até a
hora prevista para terminar. A segunda, mais subjetiva, dá-se pela percepção do estado
anímico do público e da energia da atmosfera no geral. Neste aspecto o mestre tem a
obrigação de ponderar e balancear a energia do ambiente, criando com a liberdade que lhe
oferece o roteiro flexível da brincadeira, formas de compensar ou contrastar as diversas
circunstâncias, visando um equilíbrio dinâmico entre momentos mais serenos e momentos
mais agitados. Adicionalmente, também deve ter cuidado para a figura não “ficar velha” na
roda, é dizer, para que não esgote seu tempo e, junto com ele sua potência dramática,
arriscando-se a perder a graça. Esta habilidade de percepção é fundamental tanto na hora de
mandar “botar” a figura (no caso do mestre) como no caso de “botar” figura (no caso do
figureiro) pois, tanto um como o outro se dispõe a todo momento providenciar uma energia
em constante fluidez, evitando que o público e os brincadores percam o interesse.
Por último, consideramos o “momento da despedida” como a derradeira parte da
sambada, logo antes do episódio do Boi ser encerrado, ou seja, por ocasião de sua morte e
ressurreição; é quando os músicos, figureiros, galantes (brincadores no geral) e os
espectadores ainda presentes se aglomeram e dançam em direção à ​tôda37 “entoando canções
de despedida e o ‘Viva!’, uma espécie de agradecimento e de exaltação ao desenrolar da noite
de festa.” (Oliveira, 2006, p. 262).
Percebemos, portanto, a grande importância das figuras e outros elementos dramáticos
na hora de representar o conteúdo poético e épico da brincadeira; relevantes não só pelo

36
Modo como os brincadores chamam, no contexto da brincadeira, ao amanhecer do dia que, em Condado e
durante a época de Natal, costuma ser sobre as cinco da manhã.
37
​Lugar onde se guardam, durante a noite, os diferentes adereços, vestimentas e outros elementos que fazem
parte da sambada, assim como também é o espaço onde os figureiros se preparam e trocam de indumentária.
Neste sentido pode ser entendido como um análogo do camarim.
43

desempenho da trama dramática, mas também pela amplitude simbólica que lhe aportam,
assim como seu amplo repertório musical e lírico que contribuem para o desenvolvimento da
brincadeira, regulando suas dinâmicas por meio de contrastes rítmicos e melódicos enquanto
conduz (sob o comando do apito do Capitão Marinho) a ordem sequencial, interagindo,
chamando e despedindo as figuras e os elementos dramáticos. Em última instância, a música é
a base sobre a qual se executam as múltiplas danças e evoluções coreográficas; dinamismo e
movimento em estado puro.
Por um lado, poderíamos distinguir o teatro, a música e a dança como expressões
diferenciadas dentro da brincadeira, pois tanto as formas de organização como o tipo de
linguagens que se articulam são distintas. De fato, nos últimos 20 anos, percebemos que a
cultura de massa tem-se apropriado e feito diversas releituras das diferentes camadas
expressivas do cavalo marinho, separando-as de seu contexto original. Por conseguinte,
podemos encontrar reinterpretações e recontextualizações da dança, da música e do conteúdo
dramático da brincadeira em formatos mais heterodoxos. A exemplos disto, uma toada de
cavalo marinho é reelaborada em formato radiofônico (de aproximadamente 3,5 minutos)
como uma faixa de álbum autoral38; vários ​trupés soltos inspiram uma coreografia para o
videoclipe de outro grupo musical39; as características de uma figura influenciam a construção
de uma personagem no processo criativo de uma peça teatral40 ou de uma performance41, etc.
Nesta análise porém, faz-se necessário reconhecer cada expressão (música, dança e
teatro principalmente) não como eixos individuais e circunscritos, mas como peças de um
quebra-cabeça que, em suma, constituem uma equação que tem por resultado este produto
sensível e concreto que é a brincadeira; articulada ao mesmo tempo que homogénea, na qual
suas partes, longe de disputar um protagonismo, se complementam e se interpenetram de

38
A canção ​Caboclo Arreia ​da artista Alessandra Leão (2019), versão da toada do Caboclo de Arubá​, p​ resente
no repertório do cavalo marinho.
39
​A canção ​Cavalo Marinho do artista Barro (2019), cuja letra e música também são uma releitura da
brincadeira.
40
A peça intitulada ​Donzela Guerreira (2011) da Cia Mundu Rodá, onde tanto a história como os diálogos entre
personagens foram extraídos e inspirados nos diálogos do cavalo marinho: “No trabalho, eles elaboraram uma
linguagem cênica, a partir da observação e do diálogo com as danças tradicionais brasileiras” (Amaral; Pardo,
2011).
41
Apresento no anexo deste trabalho um trecho do vídeo intitulado ​av ppga 2018 a-23 n​ o qual apreciamos o
registro de uma performance que teve lugar em Rio Tinto (PB) em 23 de junho de 2018, onde o autor juntamente
com seus colegas de disciplina, estabelecem um diálogo como os moradores da cidade através de personagens
que remetem ao Ambrosio do cavalo marinho, à Véia do Bambu e ao Mané Joaquim (O Véi da Véia). Este
vídeo, assim como a performance registrada, surgiam como pretexto para a elaboração de um exercício prático
para a disciplina de Antropologia Visual, com o professor João Martinho (PPGA, CCHLA, UFPB) no primeiro
semestre do ano 2018.
44

forma harmônica, dando continuidade à brincadeira. Em outras palavras, não é teatro [...],
ritual, dança ou música e, porém é tudo isto ao mesmo tempo, apesar de aquelas facetas
poderem ser mais ou menos valorizadas em diferentes momentos e lugares do espaço-tempo
cênico (Pina Cabral, 1991, apud. Valverde, 2000, p.6)
Consequentemente, podemos interpretar as diversas dimensões estéticas do cavalo
marinho como sendo analogias de “elétrons” que gravitam em órbitas circulares ou elípticas
ao redor do “núcleo”, – que seria a própria sambada –, ao mesmo tempo que giram sobre si
mesmas, assim como o faz a Terra ao redor do Sol. Deste modo, podemos compreender uma
sambada como um sistema atômico, compacto e ao mesmo tempo oscilante e de grande
potência energética.
Por meio desta ​metáfora-radical42, pretendo sublinhar o caráter dinâmico e multivocal
do cavalo marinho, como uma prática artística que pressupõe o movimento como potência
criativa. Deste modo, o terreiro se apresenta também como uma encruzilhada, onde figuras,
loas, toadas, risos e coreografias, entre outros, se sobrepõem e se atravessam, dando lugar a
uma série quase irrestrita de arranjos, agregações e associações possíveis. Como resultado,
temos que

Cada brincadeira é única. A ordem das figuras, as loas declamadas, as toadas que
vão se sucedendo e enunciando a evolução das danças, a participação da audiência, o
ambiente festivo são alguns dos fatores que determinam a dinâmica de uma
brincadeira de cavalo-marinho que, mesmo respeitando regularidades, é tecida com
as linhas do improviso, o que contribui para produção de inesperados (Acselrad,
2013, p.59).

Em resumo, percebemos que no ato de brincar, diversas dimensões criativas se


intercalam para produzir um ambiente que transcende e suplanta a realidade. No entanto,
também se apresenta como um conjunto de discussões críticas que refletem e espelham o
cotidiano de seus participantes. Desta forma, brincadeira e vida encontram-se no cavalo
marinho, “dispostos de forma atravessada, no que diz respeito aos padrões éticos e estéticos,
exigindo cuidados semelhantes e reorganizações constantes” (Acselrad, 2013, p.46).
Por outro lado, uma reflexão conveniente para nossa análise é a de que a brincadeira
se desenvolve a partir de uma ​estrutura flexível (Oliveira, 2006, p. 258), uma vez que parte de
regras definidas, técnicas e elaborações reflexivas pré-estabelecidas que são imprescindíveis à

42
Utilizo aquí o termo ​metáfora radical utilizado por Victor Turner no seu livro ​Dramas, campos e metáforas
(2008, p.21-22) entendendo-o como analogias ou imagens cautelosamente selecionadas que podemos utilizar
para descrever e dar forma lógica a conceitos, fenômenos ou sistemas abstractos e/ou complexos de entender,
como “a ideia de sociedade como um ‘grande animal’ ou uma ‘grande máquina’” (Idem, p.21, grifo nosso).
45

fundamentação e justificação de sua execução. Apoiando-se nesta ​estrutura ​flexível ​não só se


formaliza a prática espetacular, mas também um ​sistema cultural43 ​que propicia vínculos
identitários e de pertencimento entre seus participantes. Desta forma, consolidam e
estimulam-se as teias afetivas e de cuidado comunitário, assim como as redes de sentido e as
formas de produção e manutenção dos saberes, que serão transmitidos para futuras gerações.

É aí que se percebe a flexibilidade desta estrutura, que sustenta a perpetuação e a


renovação da brincadeira. É porque são pessoas que dão vida ao espectáculo.
Pessoas que dão corpo ao efêmero. E por serem pessoas, transformam e são
transformadas, refletindo suas vidas na festa e festejando suas histórias a cada dia,
convertendo suas práticas espetaculares numa fonte inesgotável de devir, de
esperança e de força coletiva. (Oliveira, 2006, p. 258)

Com o intuito de interpretar e descrever as interconexões e o envolvimento existente


entre a brincadeira e a realidade, faz-se necessário refletir, embora de modo pontual e
sintético, sobre o contexto histórico e geográfico da Zona da Mata Norte de Pernambuco.
Região administrativa que abarca o território de Condado, município onde realizamos nossa
pesquisa de campo. Assim, poderemos localizar e descrever mais facilmente diversos aspectos
que, estando presentes na trama dramática do cavalo marinho, fazem referência a processos
sociais e históricos das áreas rurais do Brasil. Subsequentemente, poderemos perceber o
cavalo marinho como um retrato oral da história e dos valores próprios do lugar e pessoas às
quais pertence.

Zona da Mata Norte de Pernambuco

Inserida no contexto socioeconômico da exploração intensiva sucroalcooleira, a


brincadeira surgiu, segundo os brincadores, nas senzalas da Zona da Mata Norte de
Pernambuco (IPHAN, 2013), uma região localizada no extremo setentrional da Microrregião
da Mata Pernambucana, (situada a 80 km da Capital Estadual) e que é marcada por extensas
plantações de cana-de-açúcar que se expandem na paisagem cobrindo planaltos, morros e
depressões com o tom verde limão característico das suas folhas. Paradoxalmente, o nome que
recebe este território contrasta com a realidade que nos é desvelada ao penetrá-lo, pois, em

43
Utilizo aqui a noção de Sistema Cultural proposta por Victor Turner (2008, p.27, 29) enquanto conceito social
científico que se dá a partir das relações humanas e que “dependem da participação de agentes humanos
conscientes e volitivos e das relações continuadas e potencialmente cambiantes dos “homens” uns com os outros,
não somente quanto ao seu significado, mas também para sua própria existência”.
46

vez de grandes áreas de florestas e boscagem, nos deparamos com latifúndios desflorestados
de mata atlântica e dominados pelo monocultivo da cana-de açúcar.
A história da região vê-se intimamente relacionada à exploração do solo,
estabelecendo relações diretas entre os habitantes do lugar e o trabalho do corte de cana.
Nesta região agrícola, que constitui parte fundante e fundamental do contexto rural brasileiro,
com relações sociais marcadas pela desigualdade socioeconômica estrutural, oriunda da
história colonial do Brasil, as relações sociais estão expressamente afetadas pela ideologia
hierárquica (Murphy, 2008, p.132).
Nos inícios da época colonial brasileira, a lavoura da cana-de-açúcar foi o principal
recurso produtivo do país e da região, sendo que a estrutura social44 da Zona da Mata Norte de
Pernambuco configurou-se sobre relações de interdependência que se estabeleceram entre os
proprietários dos engenhos, e os escravos que neles trabalhavam. Ao final do século XIX,
através das conquistas políticas abolicionistas, uma nova forma de organização econômica e
territorial foi se consolidando, levando ao que conhecemos hoje como sistema de ​morada.​
Este sistema, se fundamenta sobre relações que vinculam o proprietário da terra ao
trabalhador, quem ele emprega no trabalho ​na cana45, com relações que impõem direitos e
obrigações para ambas as partes. Ao trabalhador é assegurada uma pequena remuneração,
uma casa e um terreno onde ele desenvolve uma agricultura de subsistência, com acesso à
água, lenha e a um barracão de venda de produtos que ele próprio não consegue produzir. Em
troca, espera-se dele que conceda ao proprietário sua força de trabalho de forma exclusiva –
isto é, só pode trabalhar para este como contrapartida da morada e eventual remuneração deve
fornecer-lhe parte de sua produção alimentar, oriunda do terreno que lhe foi cedido. ​Por outro
lado, o proprietário se compromete com a garantia de sua residência, através de uma
negociação com regras não necessariamente formalizadas:

Sem que fosse necessário consagrá-las no papel, proprietários e moradores, ao


estabelecerem o “contrato” de morada, tinham internalizadas as regras de uma
relação assimétrica que tornava o morador mais um bem do proprietário. E era
justamente a violação dessas regras, tanto por parte de um quanto do outro, que
levava à quebra da relação individualizada (Sigaud, 1979, p.34).

44
​Refiro-me à estrutura social como “um arranjo mais ou menos peculiar de instituições mutuamente
dependentes e à organização institucional de posições sociais e/ou atores que elas implicam” (Turner, 2008,
p.253).
45
​Trabalha “na cana” a pessoa que se dedica ao arado, capina, plantio e transporte da cana, entre tantas outras
tarefas ligadas à sua produção primária.
47

Em resumo, através do contrato de ​morada,​ consolidava-se um acordo não escrito


entre o dono das terras e o trabalhador. Apesar de ser assimétrico, este acerto moral pautava
princípios de obrigação recíprocos, organizando as dinâmicas sociais da exploração da
cana-de-açúcar. O não comprimento dessas obrigações de qualquer parte, poderia culminar na
ruptura abrupta da relação individualizada e de toda possibilidade de entendimento comum.
A assimetria dessa relação tem levado historicamente essa região a um intenso
movimento de reivindicações de direitos por parte dos trabalhadores rurais. Espalhados pelos
engenhos e usinas da Zona da Mata Norte, eles se mostram insatisfeitos com as relações de
trabalho que lhes são impostas, entre as quais a temível expulsão da terra, de modo que os
deixaria sem “paradeiro”, não lhes restando muitas alternativas além de buscar outros
proprietários que lhes subordinassem à condições contratuais morais semelhantes àquelas
anteriormente experimentadas.
Até meados da década de 1950, o sistema de ​morada ​encontrava-se fortemente
arraigado na estrutura social da Zona da Mata Norte. A partir de então e devido,
principalmente, às circunstâncias específicas relacionadas aos conflitos de interesse entre
grandes proprietários, às transformações tecnológicas e às revoltas de camponeses e
trabalhadores através de ações sindicais, o sistema de ​morada começou a sofrer profundas
modificações, indo muitas vezes ao colapso, o que culminou na quebra da relação
individualizada entre o proprietário e o trabalhador e provocou a “transformação do morador
em um mero vendedor de força de trabalho” (Sigaud, 1979, p. 44).
As tensões acumuladas nos anos seguintes, motivadas por questões de ordem
histórica, política, econômica e social (além de tecnológica) levaram muitos engenhos à
falência. Junto com suas famílias, os moradores ficaram sem casa, sem trabalho e sem roçado.
Vieram então a ocupar as zonas urbanas ou ​ruas, c​ omo os brincadores nomeiam as cidades da
Zona da Mata Norte que, a partir de então, experimentaram um crescimento extraordinário.
Em conclusão, se unirmos a migração interna dos trabalhadores para as cidades, a
quebra da relação individualizada e a sua nova condição de força de trabalho independente,
observamos que os trabalhadores, agora “livres” do sistema assimétrico de ​morada, ​passaram
a usufruir de alguns direitos básicos do trabalho regular como aposentadoria e assistência
médica. Por outro lado “acentuou-se bastante o processo de fragmentação das relações e a
degradação da qualidade de vida do trabalhador rural da região, que, por falta de opção se viu,
48

muitas vezes, trabalhando na clandestinidade, sem direitos e sem estabilidade” (Acselrad,


2013, p.33).
Tais condições de trabalho desfavoráveis condicionaram fortemente a vida dos
brincadores de cavalo marinho, na sua maioria moradores de engenho, provocando grande
impacto na própria brincadeira. Neste sentido, os brincadores viram-se progressivamente
obrigados a trabalhar horas-extras, sem emprego nem renda fixa, buscando outras fontes de
renda para suprir as demandas básicas das suas famílias. Com isso, “a margem do tempo para
o lazer diminuiu”, como bem apontou Murphy (2008, p.131), pois além do trabalho ​na cana
que continuaram exercendo nas usinas, agora como trabalhadores livres e com carteira
assinada, muitos passariam a desempenhar outros ofícios para gerar um bônus na renda
familiar, empenhando sua força de trabalho em outras atividades tais como pedreiro, feirante,
carregador, funcionário público ou artista de cavalo marinho, como veremos.
Nesse contexto, nas últimas duas décadas “uma nova maneira de se relacionar com o
dinheiro resultante de uma brincadeira de cavalo-marinho começa a se revelar” (Acselrad,
2013, p.34), pois vários brincadores passaram a se beneficiar dela também como uma fonte de
renda alternativa, seja através de apresentações contratadas para festas de santo padroeiro,
aniversários fundacionais de municípios ou também, mais recentemente, através de oficinas,
turnês nacionais46 e palestras. Deste modo, a brincadeira vem sofrendo um processo de
reestruturação considerável no que diz respeito a seu formato tradicional de apresentação,
com o fito de se adaptar aos parâmetros mercantilização/espetacularização do cavalo marinho.

Solicitado, geralmente, nas mais diferentes capitais do país, em períodos e contextos


bem distintos daqueles em que costuma ocorrer a brincadeira, financiado por órgãos
públicos, privados ou produtores culturais, este tipo de apresentação tem garantido
mais contratos, retorno financeiro e popularidade à brincadeira (Acselrad, 2012,
p.157).

Isto não quer dizer que o cavalo marinho não tinha explorado, desde seus inícios, seu
potencial lucrativo: como veremos mais adiante, a brincadeira está repleta de exemplos e
momentos que retratam transações econômicas. Além disso, a compra/venda de doces,
bebidas e a presença de jogos de azar nas redondezas das sambadas cumprem um papel muito
importante no desdobramento da ação dramática, uma vez que os espectadores se mantém

46
Durante o ano de 2019, o grupo de Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) realizou uma turnê
nacional com duração de 9 meses e co-produzido pelo Serviço Social do Comércio (SESC) dentro do projeto
Palco Giratório (Anexo K).
49

estimulados ao longo da noite através das diversas práticas de distração e divertimento


oferecidas.
Contudo, cabe dizer que o processo de mercantilização/espetacularização modificou as
datas em que estas manifestações acontecem hoje; como exemplo, um dos grupos pesquisados
mantém ensaios contínuos durante todo o ano, duas vezes por semana47, e também há grupos
que se apresentam durante o carnaval, São João e outras épocas do ano (ver Anexo L).
Demonstrando sua disposição de persistir no tempo, essas mudanças revelam como a
brincadeira se moldou de acordo com transformações sociais a ela advindas, que será
discutido com mais detalhes no último capítulo deste trabalho.

48
Condado: a terra do “carralo marim”
Condado tem suas primeiras referências historiográficas datando do final do século
XVIII, quando era um povoamento nascido com os primeiros engenhos implantados nas
redondezas e considerado distrito do município de Goiana – razão pela qual recebia o nome
de Goianinha. A partir de 1835, documentos dão conta de um grupo de legalistas da região de
Goiana que ali se refugiaram, fugindo da cidade devido à ocupação desta pelos adeptos do
movimento revolucionário conhecido como ​Guerra dos Cabanos49.
Posteriormente, em 1870, a cidade sofreu um surto de varíola (também conhecida
como bexiga) que causou numerosas mortes no povoado: foi quando segundo algumas
narrativas (Andrade, 1995) a população teria atribuído o fim do surto a São Sebastião (santo
das doenças da pele), tornando-se assim co-padroeiro da localidade (junto com Nossa Senhora
das Dores) e sendo homenageado anualmente desde então a cada 20 de janeiro.
Em 1950, Goianinha passou a ser chamada Condado, em alusão ao engenho Condado
que ali existia, e ao riacho com o mesmo nome. Oito anos mais tarde, o município

47
Em concreto o Cavalo Marinho Mirim Estrela Brilhante de Condado (PE) e o Estrela do Amanhã, ambos
administrados pela Mestra Nice Teles (filha do já falecido Mestre Antônio Telles) e seus Filhos Natan e Totó,
representando as duas últimas gerações de brincadores da família Teles.
48
“Carralo marim” é a forma como muitos brincadores nascidos e criados na Zona da Mata Norte pronunciam o
nome da brincadeira. Como se fosse um idioma vernáculo, compreender as diversas corruptelas que configuram
a fala Condadense exige, do pesquisador forasteiro, uma imersão profunda, escuta ativa e atenção constante.
49
No final dos anos 1830, o Brasil viveu uma das maiores insurreições de camponeses, pobres urbanos,
mestiços, negros, indígenas, quilombolas, escravizados, conhecida como Cabanagem. Durante esta época,
rebeldes conseguiram dominar câmaras municipais e o governo provincial por mais de um ano, formando o
estado independente do Maranhão. Após este período, a rebelião se expandiu pelo Brasil, alcançando diversas
partes do litoral Nordestino, até que em 1840 se dissolveram, por completo, todos os focos da insurgência,
deixando atrás de si mais de 30.000 mortes. (Bueno, 2018)
50

emancipou-se de Goiana, tendo instalação definitiva da sua Prefeitura no dia 11 de novembro


de 1962, no mesmo edifício da antiga empresa de luz elétrica, inaugurado em 1926.
Situada na Zona da Mata Pernambucana e com área de 89,65 km​2​, Condado limita-se
ao Norte pelo município de Itambé, ao Sul pelos municípios de Itaquitinga e Nazaré da Mata,
a Leste pelo de Goiana, e a Oeste de Aliança. Segundo dados estimativos do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística50, a população era de 26.421 pessoas (IBGE, 2017). Entre
todas as atividades econômicas, predominam a extração e o tratamento da cana-de açúcar, o
cultivo e a comercialização do inhame, da batata doce e de várias frutas e verduras.

Na atualidade, Condado é considerada por seus cidadãos como “a terra do cavalo


marinho”, não tanto por um passado que a vincule à brincadeira, pois de fato não há: nos
registros e documentos oficiais examinados para este trabalho, não encontrei nenhuma
menção a cavalo marinho na cidade de Condado. Isto é compreensível, pois é muito provável
que os primeiros brincadores vindos dos engenhos das redondezas começaram a chegar em
Condado após os anos 1950, com o declínio do sistema de ​morada,​ mas principalmente pela

50
No censo demográfico mais recente ao que se teve acesso.
51

quantidade e qualidade dos brincadores e dos grupos de cavalo marinho que se encontram,
hoje em dia, ativos no município: o Estrela de Ouro, o Estrela Brilhante e o Boi Brasileiro.
Ocorre que estes grupos não são apenas uma referência para a cidade de Condado: eles
representam uma boa parte do total de brincadores tradicionais de cavalo marinho, pelo
menos na Zona da Mata Norte.
Também devemos levar em consideração que todos eles estão registrados em cartório
e possuem um CNPJ próprio: cada grupo têm membros quase-exclusivos que brincam
somente num ou, no máximo, dois grupos ao mesmo tempo, o que pode ser compreendido
pelos vínculos e compromissos familiares entre brincadores de um mesmo grupo.
Se somássemos os integrantes destes três grupos, o total aproximado de brincadores
existentes atualmente em Condado seria de aproximadamente cinqüenta pessoas. Porém, é
importante frisar que nesta estimativa não incluímos os brincadores inativos (sejam pessoas
idosas, com algum tipo de déficit físico ou trabalhos que as impossibilitam de brincar por
questões de tempo ou de esforço), ou aquelas pessoas que participam da brincadeira de forma
indireta, como é o caso da maioria das mulheres (donas de casa, esposas, mães e filhas que
colaboram, entre outras coisas, na confecção de indumentárias, preparo da comida e cuidados
domésticos e familiares enquanto a sambada está acontecendo).
Cada grupo possui sua sede particular. Neste espaço geralmente acontecem os ensaios,
se elaboram e se armazenam os materiais do brinquedo e defronte de onde acontecem as
sambadas. Normalmente, e para facilitar a logística dos encontros, as sedes se localizam perto
das casas dos donos e demais membros do grupo, quando não as sedes suas próprias casas: no
caso de Seu Luiz Paixão, rabequista e dono do Boi Brasileiro, sua casa transforma-se em sede
toda vez que se realiza lá uma sambada.
O fato das diversas sedes se encontrarem a escassos metros de distância umas das
outras, todas elas concentradas na zona limítrofe Sudoeste da cidade em seus bairros Novo
51 52
Condado e Loteamento São Roque , chamou nossa atenção desde o primeiro momento . A

51
Podemos considerar estes dois bairros contíguos como periféricos, uma vez que se encontram a uns 2 km do
centro e que de uma ponta a outra da cidade existem aproximadamente 4 km de distância.
52
A maioria das hipóteses, reflexões e análises apresentados nesta dissertação surgem dos dados acomulados
durante as diversas idas e vindas a campo, que teve lugar na cidade de Condado - PE entre os anos de 2018 e
2019. Em tais visitas, recolheu-se abundante informação sobre os três grupos de cavalo marinho anteriormente
mencionados.
52

pergunta se configurava da seguinte forma: Que relação tem Novo Condado com seus atuais
moradores? Porquê os/as brincadores/as se instalam, em sua maioria, em Novo Condado?

Num primeiro momento, a hipótese traçava uma relação direta entre a saída de
moradores dos engenhos próximos a Condado e a integração destes na periferia da cidade,
fato que justificava que a maioria dos brincadores de cavalo marinho se encontrassem em
Novo Condado. Posteriormente e através das diversas entrevistas com brincadores e pessoas
vinculadas à brincadeira descobrimos que foi o contrário: a maioria dos brincadores que
vinham dos engenhos se estabeleceram, num primeiro momento, nas ruas do bairro
Esperança, próximo ao centro. Deste modo, apenas após os anos 1970 estes brincadores e suas
famílias foram-se instalar no Bairro de Novo Condado e São Roque, então loteamentos que a
Prefeitura tinha aprovado e repartido entre os novos moradores da cidade, como expõe
Risoaldo José da Silva (Irmão de Aguinaldo e filho de mestre Biu Alexandre):

Na rua que a gente se criou, que é a Rua do Maranhão, onde minha mãe mora, lá
parece que tem um chama de cavalo marinho, porque não é só a minha família não!
Tem menino de lá que brinca cavalo marinho melhor do que a família da gente, que
a própria família da gente, tem aquele que não tem em outro lugar. [...] Cavalo
Marinho foi fundado lá, nessa mesma rua. A maioria dos brincador era lá, só que
depois que Condado foi crescendo… Oxe! Filho foi se casando e veio tudinho para o
lado de cá. Aí a sede ficou aqui, aí todo mundo veio para cá. [...] Seu Martelo já
morava por aqui, já, por aqui nessa rua já. Agora Zé Mário morava no engenho, Zé
Biu morava no engenho e morou por aqui, né? Assim, teve essas coisas
assim…Quem veio depois… pai não morava também por aqui? Pai morava, pai não
tinha canto certo pra morar, pai morava… Antônio Teles morava lá perto do campo,
aí como teve esse loteamento, muita gente ganhou terreno aqui, a maioria das
pessoas ganharam terreno aqui, foram construindo e vieram morar. Porque mãe
ganhou esse terreno aqui, ela construiu a casa e aí que veio morar aqui, aqui já
morou Renaldo, já morou outro meu irmão que é Heraldo, que não brinca Cavalo
Marinho, e eu. Mas ela nunca quis vir para cá, ela ficou lá no cantinho dela (Excerto
da entrevista a Risoaldo José da Silva datada de 11 de junho de 2019, realizada em
Condado - PE).

Em consequência, não seria incoerente dizer que na atualidade boa parte das atividades
relacionadas ao cavalo marinho se encontram condensadas nas poucas ruas destes dois bairros
contíguos da periferia de Condado: Novo Condado e São Roque.
53

CAPÍTULO II: UMA BRINCADEIRA EM PROCESSO

Oi lá morreu, lá morreu Tabelião


morreu, morreu meu boi mamãe,
mas não deu siná
morreu, deixô bom gosto mãe
de vê meu pião ronca.53

Entre o ritual e o teatro


Partindo da premissa de que o cavalo marinho pode ser descrito como uma prática
espetacular que representa cenas próprias do contexto dos engenhos de cana-de-açúcar da
Zona da Mata Norte de Pernambuco, neste capítulo nos dedicaremos a analisar o repertório
expressivo da brincadeira como trânsito entre os limites da ação dramática e da ação ritual,
para assim identificar as continuidades da brincadeira sobre realidade social e vice-versa.
Consideramos o cavalo marinho como uma performance que tanto na sua forma local como
na espetacular participa ativamente dos diversos processos de elaboração e reestruturação de
sentidos da vida social.
Diante das características dramáticas do cavalo marinho, cabe elucidar num primeiro
momento, seu caráter ritual mediante uma abordagem analítica proposta pelos estudos do
ritual e da performance (DaMatta, 1983; Turner, 2008; Schechner, 2012; Dawsey, 2013;
Cavalcanti, 2014). Assim, concebemos as práticas rituais como formas de interação social que
permitem organizar e reorganizar o comportamento humano numa série de comportamentos
aos quais, permanentemente, novos significados são atribuídos: atualizando-os e fazendo
deles novas formas de interagir socialmente (Schechner, 2012a).
Como explicação da definição do ritual, podemos recorrer à duas descrições de rito; na
primeira, oferecida por Cavalcanti (2014, p.10), entendemos rituais como:

esses agregados de condutas e ações simbólicas que, sempre feitos e refeitos no


curso do tempo, permeiam a experiência social, conferindo-lhes graça, intensidade e
ritmo próprios. [...] Nos trazem sempre para o solo vital e concreto da experiência
humana – feita de cores, sabores, cheiros, visualidades, danças, gestos, vocabulários,

53
​Toada cantada por mestre Inácio Lucindo da Silva na sambada que teve lugar entre o dia 1 e 2 de dezembro de
1990 em Condado, Pernambuco. Vídeo e áudio registrados por John Murphy e Siba Veloso (Murphy; Veloso,
1990).
54

pensamentos, melodias, interações e relações, processos, conflitos, tensões,


sentimentos, emoções e afeições.

Na segunda definição, DaMatta (1984, p.29) propõe o rito “como elemento privilegiado de
fazer tomar consciência do mundo, é um veículo básico na transformação de algo ​natural e​ m
algo social” (o grifo é nosso).
Através do ritual se elucida a natureza simbólica da ação humana, posto que ele
permite o acesso aos processos de construção de subjetividades e de identidades sociais, assim
como da condição dinâmica e em constante conflito da experiência social (Cavalcanti, 2014,
p.9, 11).
Esta percepção já foi identificada e examinada pela Escola Sociológica Francesa no
final do século XIX, em cujas elaborações teóricas e etnográficas, destinava-se um papel
central ao discernimento das dimensões rituais da vida social, assim como à compreensão dos
efeitos da ação simbólica sobre a sociedade. Embora seja desnecessário mencionar a
consistência investigativa e etnográfica presentes nos estudos desta Escola (assim como a
influência que continuam tendo nas pesquisas atuais sobre o assunto), cabe ressaltar o fato
desses trabalhos terem colocado seu foco na importância da questão simbólica, “renovando a
abordagem da vida social ao atribuir ao ritual um lugar criativo central na produção simbólica
de um grupo humano” (Cavalcanti, 2014, p.9).
Neste sentido, através de Durkheim (2009) entendemos que a vida social só se torna
possível graças a um vasto simbolismo e, por outro lado, também compreendemos que a ação
ritual se revela como um transbordamento do inconsciente coletivo sobre o universo material.
Do mesmo modo, Mauss (1979, p. 147-153) apontou para a forma como os sentimentos e
emoções são gerados como consequência de um estímulo simbólico, repercutindo de imediato
no comportamento dos atores que participam da vida social: ao enxergar o ritual como um ​ato
tradicional eficaz ele concebe seus atores enquanto inscritos num universo de símbolos e
sentimentos pactuados socialmente, onde os corpos e as técnicas corporais nele incorporados,
agem como instrumentos e veículos técnicos de transmissão num sistema simbólico, que atua
através da tradição.
Em resumo, sob esta perspectiva sociológica procura-se, também através da ação
ritual, ​fatos sociais totais numa abordagem metodológica que busca articular os fatores
psicológicos, biológicos e sociais da humanidade em cada fato social investigado.
55

Apesar das valiosas contribuições para a compreensão e posterior análise da ação


ritual, críticas ao caráter normativo e generalizador do modelo estrutural-funcionalista foram
empreendidas por Barth (2008) e por Clifford (1998) para os quais a “função social” ​da ação
ritual, seria uma forma de elucidar as bases de um “sistema cultural” atuando “por trás” (ou
por baixo) do ritual, compreendendo-o como “apenas um reforço das normas e a expressão de
conflitos que sempre, afinal, rumam em direção à restauração do equilíbrio e da coesão
social” (Cavalcanti, 2014, p. 11).
Os estudos sobre o ritual sofreram uma importante atualização no que diz respeito à
concepção das experiências sociais vividas e elaboradas mediante atos simbólicos e
expressivos como meros atos funcionais – sejam estes estéticos, festivos ou afetivos. Através
de seu extenso trabalho sobre a ação simbólica, o ritual e, posteriormente, sobre a
performance, Victor Turner nos incita a pensar as sociedades também processualmente,
apontando para o caráter dinâmico e dramático das relações sociais estendidas por e através
do tempo e com uma enorme influência da ação performativa. Este autor, apreciado por suas
aportações nos estudos antropológicos do ritual e da performance, consolida em 1974 as bases
teóricas dos dramas sociais, tencionam ​entrever os vínculos que se estabelecem entre ação
ritual, ação social e os dramas estéticos (teatro, ópera, dança ou qualquer outro tipo de prática
espetacular).
Entendemos por performance as ações e comportamentos social humano observados a
partir do critério analítico de sua “qualidade”, ou seja, o tipo de sequência em que se desdobra
e as circunstâncias em que se produz (Schechner, 2012b). Neste sentido, quase todo fenômeno
humano, desde que estudado e enquadrado em categorias específicas, pode ser categorizado
como performance; inclusive a auto-representação, ou a ideia do ​eu q​ ue, como aponta Erving
Goffman:

Não é uma coisa orgânica, que tem uma localização definida, cujo destino
fundamental é nascer, crescer e morrer; é um efeito dramático, que surge
difusamente de uma cena apresentada, e a questão caraterística, o interesse
primordial, está em saber que será acreditado ou desacreditado (2009 p.231).

Em outras palavras, a performance se constitui como objeto e conceito analítico


através do qual examinamos certos eventos ou práticas envolvendo “comportamentos teatrais,
ensaiados ou convencionais adequados-à-ocasião” (Taylor, 2013, p.10). Os estudos da
performance enquadram estas práticas, destacando-as daquelas ao seu redor ou de suas
próprias continuidades, constituindo um objeto de estudo definido no tempo e no espaço,
56

como acontecimento “da” e “na” vida. Assim ela é efêmera, ou seja, ela se desfaz assim que
ocorre; como os rituais que podem se repetir uma e outra vez, mas sempre acontecem no
presente transformando-se de imediato em passado; o que torna impossível sua documentação
ou reprodução exata, já que não há forma de apreender o “vivo”. Neste sentido, uma mesma
performance nunca acontece duas vezes.
Aprimorando nossa definição, e levando-a para um campo mais familiar,
centramo-nos agora na categoria das performances estéticas que englobam dança, teatro,
música ou qualquer tipo de expressão artística. Destas, podemos dizer que se desdobram
como um reflexo ou como uma imitação da realidade ordinária, tendo a capacidade de
elaborar formas abstratas e complexas (além da realidade) através da interação com a vida
social (Schechner 2012b). Assim como o ​ato tradicional eficaz, a performance atua como um
ato de transmissão de “conhecimento social, memória e senso de identidade por meio de
comportamentos reiterados [...] como sendo limítrofe com a memória e a história,
participando na transferência e na continuidade de conhecimento” (Taylor, 2013, p. 9, 12).
Para alguns, as representações da vida e do vivido recaem no lugar da ficção e da
artificialidade, mas ​as considerações derivadas da análise da performance, nos indicam que
estes atos construídos se fortificam justamente nas fronteiras da “realidade”, dando-lhe um
sentido limitado. Em consequência e de forma mais desafiadora, as performances estéticas
parecem refletir ​acerca de uma verdade mais “verdadeira” do que a própria vida (Taylor,
2013, p.11), revelando o “não real” para podê-lo contrapor ao que entendemos por real.
Ainda assim, sabemos que estas reflexões não são inovadoras nem tampouco
pós-modernas; diversos pintores, bailarinos, dramaturgos, escritores, fotógrafos, cineastas e
poetas experimentaram a transitoriedade e a instabilidade dos domínios da vida, do vivo, do
real, assim como da ficção pelo imaginário, pelo onírico, o fantástico e portanto irreal nas
suas obras e composições.
Um exemplo particularmente fascinante é o quadro de James Ensor intitulado ​A
Intriga ​(1890), no qual encontramos, dentro de uma cena costumeira de casamento, um clima
grotesco e ao mesmo tempo cômico, onde o uso de das máscaras, ao invés de esconder ou
camuflar os rostos das personagens que a configuram, nos revelam seus verdadeiros dilemas:
no centro do quadro encontramos seu protagonista; o recém-casado no qual identificamos o
olhar confuso e vacilante para uma das personagens à sua esquerda. Com feição acanhada, um
57

boneco inanimado nos braços e de olhos arregalados, ela parece estar lhe advertindo de algo,
revelando ali, naquela cena, algum tipo de verdade…
Do lado direito do noivo encontramos a noiva que, segurando-o pelo braço direito, o
mantém próximo do seu corpo, quase imobilizando-o. Mostra-se orgulhosa do recém
inaugurado matrimônio e apresenta o noivo à sociedade com vaidade e orgulho. Ao redor dos
recém-casados identificamos diversas personagens com expressões alternadas, sempre
beirando a burla, o desdém ou a apatia. Entre elas, uma caveira de queixo desencaixado se
mostra surpreendida: será esta a cena de um casamento ou a de uma captura? Ou a
comemoração de um evento fatídico, de uma morte anunciada? Estariam estas personagens
parabenizando ou estariam de fato se apiedando do noivo?
Neste sentido, provavelmente Ensor nos comunique sua própria visão do casamento,
plasmando, nessa tela os seus medos, inseguranças e visões da união matrimonial,
colocando-se no papel do noivo. Em suma, a performance das personagens ao redor dos
recém-casados não se adequaria ao esperado para tal ocasião: em um ato festivo como este
não há lugar para a morte, representada pela caveira.
Como contraponto, nos restam algumas perguntas, pois (se) as figuras do quadro são
atores ou atrizes interpretando uma cena (sendo performatizados seus atos, sentimentos e
comportamentos) quem é que estaria por trás das máscaras? Será que James Ensor quer que
vejamos as máscaras como se fossem expressões e sentimentos que se ocultam e são
censurados nas ações e eventos sociais que estas personagens performam na “vida real”?
Podemos encontrar uma resposta em Turner (1987, p.125):

Pode-se até dizer que as máscaras, fantasias e outras ficções de alguns tipos de
brincadeiras, são dispositivos para fazer visível o que tem sido escondido, inclusive
inconscientemente [...] para deixar que os mistérios se revelem nas ruas, para
inverter a ordem diária até tal ponto que o inconsciente e os processos primários se
fazem visíveis, enquanto o ego consciente é restringido, por assim dizer, à função de
criar regras para manter sua insurgência limitada, enquadrando-as ou canalizando-as
(tradução nossa).

Com esta parábola pictórica, Ensor brinca com a distinção do real e do irreal, do
verdadeiro e do falso, mediante uma cena de intriga: um jogo de máscaras que nos revela a
malícia que habita nos indivíduos, que nas performances da vida social é administrada
chegando até mesmo ao silêncio pelos múltiplos padrões da moral através dos quais os
indivíduos são julgados.
58

Mas enquanto atores, os indivíduos interessam-se não pela questão moral de realizar
esses padrões, mas pela questão amoral de maquinar uma impressão convincente de
que estes padrões estão sendo realizados. Nossa atividade, portanto, está
amplamente ligada a assuntos morais, mas, como atores, não temos interesse moral
neles. Como atores, somos mercadores de moralidade. Nosso dia é entregue ao
íntimo contato com as mercadorias que expomos e nosso espírito está ocupado com
a íntima compreensão delas (Goffman, 2009, p. 230).

Analisando os comportamentos e ações humanas (em performance),os estudos de


performance são um profícuo dispositivo de compreensão dos nossos modos de relação e do
nosso entendimento como atores sociais, pois qualquer ação, comportamento ou hábito social
pode ser entendido como um ato construído, sendo possível esboçar uma ponte, conectando
os dramas de palco com os dramas da vida social.
Com o intuito de prosseguir nossa busca por um modelo analítico que dê conta de
localizar e descrever tal vínculo, acreditamos ser preciso resolver, primeiramente, as
diferenças e semelhanças entre as manifestações teatrais e rituais para assim, uma vez
tenhamos clara a natureza destes dois elementos assim como a relação que se estabelecem
59

entre elas, possamos centrar-nos sobre as continuidades existentes entre os dramas estéticos,
os dramas rituais e os dramas sociais54.
Para tal propósito, nos inspiramos principalmente na obra de Richard Schechner
(1974) onde o autor aponta para o fato de que qualquer ritual sugere ou presume uma certa
eficácia sobre as pessoas que dele participam, assim como o teatro supre uma demanda de
entretenimento. Deste modo, poderia-se dizer que o teatro emerge do ritual ao fazer uma
separação explícita entre audiência e participantes, isto é, entre palco e plateia55. Neste
formato, se espera que os intérpretes satisfaçam a audiência ​e não mais um dogma ou uma
série de códigos fixos, como num ritual. Assim mesmo, qualquer ritual pode ser deslocado de
seus parâmetros originais e ser performado numa configuração teatral – do mesmo modo,
poderia-se fazer o mesmo com qualquer evento ordinário. Isto é possível devido a uma
distinção dos contextos de ritual, de entretenimento e de cotidiano, ocasionalmente
estabelecida e acordada por espectadores e intérpretes.
Por outro lado, Schechner revela que é também possível forjar um ritual a partir do
teatro, invertendo o processo anterior. Porém, estes rituais tendem a ser mais instáveis, dado
seu desvinculamento com uma “estrutura” social determinada: uma vez que são provenientes
do teatro. A diferença entre ambos também depende do grau de simbolismo envolvido na
performance, assim como da expectativa que se têm (sua eficácia) seja por parte da audiência
como de seus intérpretes.
Por último, o autor ressalta as continuidades presentes entre o ritual e o teatro por
meio da sobreposição dos conceitos de eficácia e entretenimento (traços característicos do
ritual e do teatro respectivamente) que, apesar de sugerir significados relativamente distintos,
se entrecruzam num processo interativo e híbrido em cujo fundamento se encontra a
performance, através do qual deduzimos que “em todo entretenimento há algo de eficácia, em
todo ritual há algo de teatro” (Schechner, 1974, p. 480, tradução nossa).

54
Usamos aqui a noção de ​dramas sociais ​elaborada por Victor Turner (2008) em ​Dramas, Campos e Metáforas,
e que faz referência a qualquer “episódio de irrupção pública de tensão”(p.28). Identificados como fases
desarmônicas do processo social, os dramas sociais surgem em situações univocamente conflitivas, fazendo com
que os aspectos fundamentais da sociedade – encobertos pelas normas, costumes e hábitos – ganhem uma
assustadora proeminência (p.31). Cabe ressaltar que uma melhor explicação deste conceito pode ser encontrada
na última parte deste mesmo capítulo.
55
O que podemos chamar de teatro de ​quarta parede,​ já que o palco possui 3 limitações estruturais (fundo e duas
laterais) a quarta parede seria essa imaginária que separa os atores do público. Quando algo do público vai até o
palco ou vice-versa, chamamos isso de romper a 4ª parede – principalmente quando o teatro é participativo e os
atores fazem isso deliberadamente.
60

Neste sentido, as “performances podem ser vistas como uma ‘trança’ (​braid) ​de
elementos de ritual e teatro. Quanto mais ‘trançadas’ forem as performances, mais eletrizantes
tendem a ser” (Schechner, 1999, apud. Dawsey, et. al., 2013, p.24). Através desta abordagem,
Schechner procura entender a interação entre elementos rituais e elementos teatrais através de
um modelo que denota as amálgamas, as formas justapostas e os processos retroalimentativos.
De igual modo, e com o intuito de retomarmos o debate interrompido na página anterior, o
mesmo padrão pode ser identificado na relação entre os dramas estéticos e os dramas sociais.
Baseando-nos nas reflexões contidas no trabalho sobre a performance de Victor
Turner (1987), Schechner elabora também em outra obra ​(1976) um modelo com o qual
analisa a dinâmica das relações entre a vida social e as manifestações teatrais, também
nomeadas “performances culturais”. Neste sentido, o autor nos mostra, através de uma figura
do infinito partida em seus dois hemisférios, a sequência sinérgica pela qual se dá esta
interação. Cada lóbulo representa um tipo de drama; o esquerdo são os dramas sociais, o
direito os dramas estéticos. A partir daqui vemos como seguindo um mesmo sentido, o drama
estético através de sua performance – como por exemplo uma peça de teatro que denota um
conjunto de técnicas teatrais que são reais, palpáveis e explícitas no decorrer de sua
apresentação – lembra-nos a estrutura retórica implícita nos dramas sociais que, por sua vez,
não é perceptível ao olhar simples do cotidiano. Contudo, a parte que é visível no
desdobramento de um drama social são suas consequências na ação social e política do local
onde ele acontece. Para fechar o circuito, a ação social e política do drama interage com o
processo social implícito nos dramas de palco que, por seu turno, nos desvelam de forma
fantasmagórica; encoberta pelo artifício das técnicas teatrais.
61

Assim, percebemos o caráter dinâmico da relação entre dramas sociais e estéticos pois
tanto a vida social sugestiona as manifestações teatrais – enquanto crônicas e narrações –
quanto as manifestações teatrais condicionam as formas da vida social provocando, em
espectadores e intérpretes, novas formas de interpretar e reagir perante o mundo dos dramas
sociais (Schechner, 1976, p.12). Em conclusão, desvela-se um processo de espelhamento,
retroalimentativo e sinérgico, onde as linguagens dos dramas estéticos influenciam a retórica
dos dramas sociais, (como vimos no exemplo de Ensor). Ao mesmo tempo, estes últimos
inspiram os enredos, argumentos e problemas dos dramas estéticos que, neste sentido, são
como “espelhos mágicos” que não só refletem como refratam, exageram, invertem,
engrandecem e falsificam propositalmente os acontecimentos relatados da vida real (Turner,
1987, p.42). Assim, podemos dizer que o teatro “se situa nas fronteiras entre a arte e a vida”
(Bakhtin, 2010, p.6).
62

Cavalo marinho: um “espelho mágico” da realidade social


Se pararmos para analisar a vasta produção científica que centra o cavalo marinho
como objeto de estudo específico desde meados dos anos 8056, encontraremos aportes e
interpretações de diversas áreas do pensamento acadêmico, desde as artes cênicas (Laranjeira,
2008; Oliveira, 2012; Aglae 2013), passando pela musicologia (Perazzo, 2000; Gonçalves,
2001; Murphy, 2008; Neto, 2017), as ciências humanas e letras (Marinho, 1984; Santos
Moreno, 1998), as ciências sociais (Moreno, 1997) até a filosofia e estética (Tenderini, 2003;
Acselrad, 2013). Contudo, podemos comprovar que em todos estes trabalhos, a pesquisa
etnográfica toma um papel central como quadro teórico-metodológico na abordagem do
assunto, transformando-se numa ferramenta privilegiada com a qual se retratou, analisou e
problematizou o cavalo marinho em seus múltiplos enunciados, levando em consideração a
comunidade que o praticava numa considerável extensão de tempo. Por meio destas
pesquisas, se revelou um cavalo marinho multivocal e complexo, descrito em seu caráter
dinâmico e interativo, entre a brincadeira e a realidade social.
Neste rico cenário de interpretações, cabe destacar a análise do etnomusicólogo norte-
americano John Patrick Murphy (2008), um referencial na visualização do axioma
retroalimentativo e dinâmico existente na relação entre o cavalo marinho como performance e
seu contexto histórico e social.
Consequentemente, Murphy (2008) nos oferece um detalhado estudo etnográfico
sobre diversos aspectos que caracterizam o cavalo marinho; desde uma minuciosa análise de
sua dimensão musical, passando pela descrição de uma sambada, uma coleta biográfica de
alguns de seus representantes, ao estudo e subsequente reflexão sobre os efeitos da violência
estrutural presente na Zona da Mata Norte e seu vínculo com a exploração da cana-de-açúcar,
e das estruturas hierárquicas que permeiam as relações sociais locais. Consequentemente,
poderíamos dizer que o autor discorre sobre a relação entre os elementos estéticos e sociais
presentes na manifestação seguindo uma abordagem antropológica dos estudos do ritual e da
performance, a cuja explicação dedica um subcapítulo na introdução do livro.
Deste modo, fortemente influenciado pela antropologia construtivista de James Scott
(1976 a 1990) e com uma densa experiência em campo, Murphy (2008) estabelece uma

56
​Uma das primeiras pesquisas documentadas é o trabalho de Edval Marinho (1984) intitulada ​O folguedo
popular como veículo da comunicação rural: estudo de um grupo de cavalo-marinho.
63

relação entre os fenômenos sociais presentes na Zona da Mata Norte de Pernambuco e


algumas características presentes no argumento dramático do cavalo marinho, reconhecendo
que certos atributos do ritual estão também presentes na performance do cavalo marinho, se
ajustando aos quatro critérios fundamentais da ação ritual, que segundo Combs-Shilling
(1989, ​apud​. Murphy, 2008, p.16) se dividem em formalidade (convencionalidade),
estereótipo (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição).
Encarando a brincadeira em termos do significado que ela têm para seus participantes,
o autor interessa-se, ao longo do trabalho, em desenvolver uma hipótese segundo a qual o
cavalo marinho concretiza-se como um drama que enfatiza as relações de poder
(patrão/empregado, opressor/oprimido) e outras particularidades da autoridade tradicional.
Deste modo, o autor propõe considerar o cavalo marinho como uma encenação efetiva da
“economia moral do homem do campo’’ (Murphy, 2008, p.14).
Para explicar tal perspectiva, Murphy desenvolve uma breve análise do drama,
enfatizando três características distintivas: a primeira é que o cavalo marinho se articula como
janela da visão moral ​do campesinato, atuando como um espelho distorcido que reflete a
realidade local revelando-nos, de forma condensada, a retórica social da região. Esta reflexão
se pronuncia através da arte cômica, cujo elemento primordial, o riso, atua como elemento
(de)codificador das mensagens sonegadas e violentas, presentes tanto na brincadeira como no
dia a dia da realidade que a configura (Ibid, p.132, 133).
Desta forma, o cavalo marinho atua como uma resposta cômica que promove uma
narrativa não só analítica, mas também crítica do modelo social, encenando e expondo seus
dilemas e conflitos através da sátira; propiciada pelo “riso ritual” que, segundo Bakhtin (2010,
p.5) converte “as divindades em objetos de burla e blasfêmia. [...] Paralelamente aos mitos
sérios, mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos”. Este
caráter de ​equilíbrio em tensão situa o cavalo marinho entre a diversão (entretenimento) e a
seriedade (eficácia ritual), o sagrado e o profano, que denotam o ​cuidado necessário para
transitar entre o ​desmantelo –a falta de respeito, o sarcasmo, a violência e o descontrole–, e a
consonância​ –harmonia, beleza, cuidado e respeito. (Acselrad, 2013, p.46-49).
A segunda característica expressa uma devoção religiosa radicada no catolicismo
popular e sincrético. Isto faz-se nítido nas múltiplas passagens de louvor aos diversos santos
(Divino Santo Rei do Oriente, São Gonçalo de Amarante, etc.), mas também pela presença de
elementos representativos como a morte, o “cão” ou diabo e entidades espirituais que também
64

estão presentes na Jurema, como o “Caboco” de Arubá ou o Caboclo do Arco documentado


por Edison Carneiro (2008, p.29), hoje não mais presente nos terreiros tradicionais de cavalo
marinho. Deste modo, pode-se entender a linguagem religiosa como definindo o caráter
devocional/religioso da brincadeira assim como dos seus participantes. Por outro lado,
também podemos compreender essa referência – ao conteúdo devocional principalmente
católico – como agente legitimador da brincadeira, emprestando a seriedade e a ampla
aceitação da religiosidade católica para tornar a brincadeira reconhecível e aceitável aos olhos
da igreja e das classes dominantes.
Por último, temos que a brincadeira é criada e apreciada como um “produto artístico”
(Murphy, 2008, p.129) que ressalta, novamente, o espírito cômico de brincadores que
apreciam o humor e o jogo como forma de arte. Assim mesmo, a brincadeira se torna uma
espécie de arena onde seus participantes, a modo de jogo, rivalizam expondo suas noções de
música, dança, composição poética e humor, fazendo com que espectadores e intérpretes
participem, de forma descontraída, de uma reflexão social através do riso, do espectáculo e do
humor (Idem, p. 138).
Por outro lado, se reconhecemos que o cavalo marinho pode, de fato, ser classificado
como expressão estética e por tanto artística (Acselrad, 2008), compreendemos que esta
expressão é gerada e subsidiada pela ​imaginação criativa (Turner, 2008, p.45) – inspiração
genuína, inventividade, etc: é muito mais fértil do que as imagens, pois vai além da
capacidade de mimetizar e manipular os mapas sensoriais e de percepção. Neste sentido ela
“é chamada de criativa porque consiste na habilidade de criar conceitos e sistemas
conceituais que podem não encontrar nenhum correspondente nos sentidos, (embora possam
encontrar algum correspondente na realidade) e também suscita ideias não convencionais
(Ibid, p. 45, 46). Portanto, poderíamos dizer que a arte se ativa através ou mediante a
imaginação criativa que transforma e altera a percepção de realidade do mesmo modo que a
realidade (o mapa de imagens que preenchem o sentido de real) afeta e dá forma à arte. Neste
sentido, “a vida imita a arte tanto quanto a arte imita a vida [...] Enfim, trata-se de discutir não
apenas os fundamentos sociais da vida estética, mas também os fundamentos estéticos da vida
social” (Dawsey et. al, 2013, p.24).
65

Seguindo com a análise de Murphy, este visualiza o cavalo marinho não só inserido
num contexto socioeconómico que o molda e lhe dá forma, mas também como um recurso
cognitivo através do qual os seus participantes acessam à chaves de reflexão e análise de sua
própria realidade, proporcionando modos de compreender, vivenciar e/ou subverter um
entorno marcado por processos de violência e desigualdade social através da arte cômica “por
vezes crua e tão sutil” (idem, 2008, p.138). Ele é um lugar onde se viabiliza o ver e o ser
visto; onde cada participante estende suas habilidades corporais, poéticas, técnicas e onde o
principal elemento a se dominar é o humor, formulando, assim, um jogo onde o divertimento
se torna fator superlativo:

Nesta relação inevitável, que é o encontro com o outro, o viver e construir estruturas
de sociabilidade para dirimir conflitos, fatalidades e tensões, é preciso que o ser
humano, individual e socialmente, desenvolva sistemas de integração mais próximos
de uma esfera lúdica, festiva, que alimente a sensação de liberdade e prazer,
fortemente castrados pelas regras, leis e ordens criadas pelos mecanismos sociais
(Oliveira, 2006, p.25).

De outro ponto de vista, encontramos diversas interpretações que consideram o cavalo


marinho como dispositivo de comunicação, enfatizando a eficácia da ação ritual na hora de
transmitir imagens, mensagens e metáforas da vida social através do seu conteúdo simbólico.
Nesta acepção encontramos os trabalhos de Edval Marinho (1984), que propõe o cavalo
marinho como um meio de comunicação simbólico, expressando uma problemática cultural
específica, baseada numa sociedade dividida entre os que possuem terra e os que não a
possuem e que, portanto, devem lutar por ela. Neste sentido, segundo o autor “a vida é
contada no espetáculo” (Marinho, 1984 ​apud.​ Acselrad, 2013, p.36).
Outro autor que refletiu sobre esta mesma perspectiva foi Weber Pereira Moreno
(1997), para quem a brincadeira não é apenas um reflexo da vida: através da brincadeira
também se elaboram, se transmitem e se mantêm conhecimentos imprescindíveis para a
compreensão da vida social. Neste aspecto, o autor percebe o cavalo marinho como um
conhecimento que se administra, processa e transmite ao longo da vida e de várias gerações
brincando juntas. Por outro lado, Moreno equipara a brincadeira com a crônica social, com o
intuito de expor a “relação existente entre o universo da brincadeira e o cotidiano dos
brincadores” (Moreno, 1997 apud. Acselrad, 2008, p. 40).
As formas de comunicação verbais e corporais envolvidas no do dia a dia dos atores
sociais que participam do cavalo marinho, se configuram como unidades de comunicação
66

carregadas de “símbolos, signos, sinais e marcas, verbais ou não verbais, que as pessoas
empregam para alcançar metas pessoais e do grupo” (Turner, 2008, p.32, 33). Em
consequência, cabe a nós como pesquisadores conhecer a retórica local em seus múltiplos
segmentos e sentidos, com o intuito de interpretar e analisar as formas de interação e de
entendimento que se estabelecem entre nossos interlocutores, assim como os efeitos que estas
têm sobre as formas de se relacionarem.
A exemplo disto observamos que no contexto do cavalo marinho linguagens como as
da ironia, da irreverência, as falas de duplo sentido com conteúdo pornográfico e/ou satírico
–reconhecidas como ​puia ou ​zoeira ​pelos brincadores–, ocupam um lugar relevante nas
relações sociais e familiares locais. Com esta mesma intenção, poderíamos associar a ​puia
com a ​linguagem familiar da praça pública​, descrita por Mikhail Bakhtin (2010, p.15), cuja
característica principal se baseia no

uso frequente de grosserias, ou seja, de expressões e palavras injuriosas, às vezes


bastante longas e complicadas. [...] Essas blasfêmias eram ambivalentes: embora
degradassem e mortificassem, simultaneamente regeneravam e renovavam. [...]
Graças a essa transformação, os palavrões contribuiam para a criação de uma
atmosfera de liberdade, e do aspecto cômico secundário do mundo​.

Apesar da vida ter seus momentos sérios, onde a linguagem obscena e satírica não é
conveniente, distinguimos que tanto brincadores como pessoas alheias à brincadeira
compartilham e dominam uma linguagem que se elabora a partir de uma visão cômica da
vida, fato que nos conduz a repensar o papel do riso e da ironia no cotidiano destes
indivíduos; insistindo na arte cômica como uma das características axiomáticas da brincadeira
e, por extensão, das formas comunicativas da vida social.
Isto posto, cabe refletir sobre a linguagem cômica como uma a mais dentro de um
extenso repertório de meios de comunicação. Do mesmo modo que a ​puia, a​ dança, a poesia e
a música, são fenômenos expressivos que acontecem com o corpo, no corpo e através do
corpo dos brincadores. Deste modo, cabe entender estes corpos como vínculos com o mundo
que os envolve; um “lugar onde se constituem as significações que fundam a experiência
individual e coletiva” (Acselrad, 2013, p.124).
Retomando o trabalho de Murphy, o autor enfatiza que por meio da sua eficácia
comunicativa, o cavalo marinho expõe diversas situações –conflitivas ou não– que serão logo
resolvidas ou tratadas mediante um conjunto de “códigos morais”; uma retórica compartilhada
e implementada nos domínios da vida social da comunidade que dela participa. Neste sentido,
67

o cavalo marinho atua como como uma ​janela da visão moral d​ e seus participantes, mediante
a qual se operam denúncias sobre as formas abusivas e despóticas de poder (modos de
resistência popular), ao mesmo tempo que as relações hierárquicas (modos de controle social)
são implicitamente reforçadas, evocando um espaço onde se pode simultaneamente criticar o
patrão abusivo e punir o empregado subversivo.
Nesta continuidade, vale a pena comparar esta perspectiva com a análise que Paulo
Valverde (2000, p.7) faz sobre o conteúdo reflexivo do ​tchiloli ​são-tomense, cujas
performances promovem, coincidentemente, a transmissão de valores morais e éticos alusivos
à ontologia local:

É uma performance que encena um dilema moral extremo [...], uma longa reflexão –
feita de palavras e movimentos corporais ora exorbitantes, ora rigorosamente
geométricos – sobre os temas da injustiça e da traição, da finitude da existência
humana, e da necessidade de esta ser conduzida segundo padrões éticos [...] Por esta
razão o ​tchiloli, ​para além de ser um lugar de fruição estética e lúdica, é também a
teatralização de uma ontologia, uma reflexão em acto sobre valores morais, sobre
diferentes concepções da pessoa humana e o seu lugar no mundo, sobre o mundo e
as suas fronteiras.

Para dar forma à sua hipótese, Valverde aponta para uma estrutura das relações sociais
hierárquicas da Zona da Mata Norte baseadas no ​complexo do patrão (Joseph, 1990, apud.
Murphy, 2008, p.132), cujo princípio gira em torno da dependência dos trabalhadores ao
patronato, onde o “bom” patrão é tratado com respeito e por consequência desejado e zelado,
em oposição, o “mau” patrão desconsiderado e criticado. Por outro lado, o trabalhador
irresponsável e rebelde, ao transgredir as bases da conduta moral, é “merecidamente” punido
e ridicularizado.
Este vínculo de sujeição entre empregado e patrão evidencia um conjunto de discursos
e práticas de poder que permitem o desenvolvimento da brincadeira e que são extrapoláveis a
outras esferas de atuação da vida social, como as relações intrafamiliares (avô/pai >
filho/neto), entre a prefeitura e os concidadãos, na organização interna dos grupos de cavalo
marinho (dono/mestre57 > produtor > figureiro > galante), entre proprietários e arrendatários,
na interação musical entre puxador e coro, na relação entre os brincadores e a polícia militar,

57
Cabe ter em conta que o fato de ser ​dono da brincadeira não implica ter domínio sobre ela. Não
necessariamente o dono do brinquedo é a mesma pessoa que o seu mestre. Neste aspecto, “o dono é quem ​tem
posse sobre o material do brinquedo – armações dos bichos, roupas, instrumentos; o mestre é o que ​tem domínio
​ aterial – saber construir as figuras​, s​ uas roupas, bordar as golas dos
sobre o todo que envolve a brincadeira​: m
galantes, fazer máscaras e armações – e imaterial – dizer as loas (versos falados), cantar as toadas (versos
cantados), saber os movimentos próprios de cada figura” (Tenderini, 2003, p.77).
68

etc. Desta forma percebemos um princípio organizacional hierárquico presente na brincadeira


que continua agindo como base para as relações sociais de seus participantes.
Do mesmo modo, podemos comparar a ação ritual do cavalo marinho com as ​formas
cotidianas de resistência camponesa Scott (2002), interpretando a discursividade subalterna e
contra-hegemônica presente no argumento dramático do cavalo marinho como uma forma de
resistência simbólica e ideológica, entendida e desempenhada exclusivamente por seus atores
– isto é, as classes dominadas. Manifestando-se, deste modo, como um “ato de protesto
velado” (Ibid, p.25) contra as classes dominantes, os subalternos expressam seu
descontentamento perante as desigualdades do sistema social: o cavalo marinho seria como
um olhar renovado sobre a vida social.
Se partimos do pressuposto que toda sociedade concebe, em maior ou menor grau, um
mundo extraordinário​, onde “a vida transcorre num plano de plenitude, abastança e
liberdade” (DaMatta, 1984, p.32), a ação ritual do cavalo marinho propõe, para seus
participantes, um ​universo moral alternativo que evoca uma ​vida de engenho ideal​, onde
abstrações como “liberdade”, “verdade” e “justiça social” se reformulam em coletividade
adquirindo um significado extraordinário e momentâneo, transformando-se em princípios
alicerçadores da vida (Murphy, 2008, p.134).
Consequentemente, a mensagem transmitida na ação dramática do cavalo marinho não
pretende incitar uma revolução contra as classes dominantes e nem uma revolta contra os
donos de engenho ou chefes de usina. Mas parece prover uma visão própria da sociedade,
reforçada através do riso e da violência, que atua como um espaço onde é possível expressar e
elaborar criativamente uma perspectiva do subalterno que represente e unifique o grupo que
participa da brincadeira. Desta forma, o cavalo marinho propõe num espaço e num tempo
determinado – efêmero, passageiro, dinâmico, indiferenciado e igualitário –, uma comunhão
entre pessoas afins para “além e acima de qualquer vínculo social” (Turner, 2008, p.40),
permitindo experimentar a sociedade como comunidade, uma ​communitas58 ​humana.
Por outro lado e com o intuito de refletirmos sobre a continuidade da brincadeira ao
longo do tempo – entendendo-a como forma de resistência diária dos trabalhadores rurais –,
caberia também levarmos em consideração que, para além do interesse ritual que a
brincadeira possa ter para seus participantes – pelo seu caráter intersubjetivo, capaz de

58
​Empregamos aqui o termo ​communitas em referência a uma “comunhão de indivíduos iguais, não-estruturada
ou rudimentarmente estruturada e relativamente indiferenciada” (Suzuki, 1967, p.96, apud. Turner, 2008, p.43)
69

proporcionar efeitos de comunhão benéficos para a convivência em si –, a performance do


cavalo marinho também tem sido convenientemente valorizada e consequentemente
estimulada pelas classes opressoras – no contexto dos engenhos, por exemplo –, uma vez que,
aos olhos do patrão ou do dono de terras, a brincadeira seria uma ​válvula de escape para seus
trabalhadores, suprindo não só uma forma de entretenimento, mas também uma restituição da
aceitação das condições de desigualdade social. O que, nas palavras de Burke (2010, p.273)
ao descrever a permissividade das classes altas perante algumas festividades nos inícios da
Europa moderna, significa que:

É como se elas tivessem consciência de que a sociedade em que viviam, com todas
as suas desigualdades de riqueza, status e poder, não pudesse sobreviver sem uma
válvula de segurança, um meio para que os subordinados purgassem seus
ressentimentos e compensassem suas frustrações.

Sob outra perspectiva, também devemos apontar para a rede econômica que se
constitui em torno de uma sambada de cavalo marinho. Como comprovamos nas entrevistas,
muitos dos interlocutores apontaram para este fato como sendo um aspecto relevante da
brincadeira, tanto no passado como na atualidade.
Por conseguinte, descrevemos aqui o arranjo econômico que rege uma sambada de
cavalo marinho, sublinhando o fato de que o desempenho e o lucro econômico se revelam
como motivação, estímulo e atrativo para que tanto brincadores como vendedores ambulantes
e Prefeituras estabeleçam relações de afeto com bases mercantis. Esta consideração não só se
ampara, como veremos, nos relatos e histórias que nos oferecem os brincadores mais velhos,
mas também se faz evidente no argumento dramático do cavalo marinho, uma vez que as
transações, acordos e negociações decorrentes de vendas, prestações de serviço e outras
formas de acordos econômicos presentes na interação entre figuras, são extraídas da esfera da
vida social.
Centrando nossa atenção no formato tradicional de uma sambada, esta costuma
acontecer no terreiro, que tanto pode ser na ​frenteira59 da casa de um dos brincadores do
grupo, como numa praça pública – no caso das festas de Santos Padroeiros, aniversários das
cidades, etc. financiadas pelas prefeituras municipais. A partir deste tipo de práticas,
concebemos duas relações de troca possíveis. Por um lado, encontramos um sistema de
remuneração econômica onde se negocia um valor determinado com a prefeitura em troca de
uma apresentação. Por outro lado, encontramos um sistema de cooperação horizontal entre os

59
​Forma como denominam, alguns brincadeiras, a parte da rua ​em frente​ da casa do dono.
70

brincadores quando todo brincador tinha direito de fazer uma festa por ano no seu terreiro,
sem ter que pagar nada aos demais membros do grupo, sempre e quando o dono da casa
provesse os demais brincadores do grupo comida e bebida60. Neste último caso, podemos
observar que o interesse econômico é só um dos fatores que configuram e que fazem a
brincadeira acontecer. Assim mesmo, cabe ter em conta que outros valores também são
importantes na hora de considerar os estímulos e motivações que fazem os brincadores
participar de uma sambada, como o compromisso com o grupo, a responsabilidade de
continuar com a herança familiar, o prestígio de ser mestre ou mestra, o amor pela brincadeira
ou o prazer de brincar. Neste sentido:

Ninguém brinca apenas pelo dinheiro, embora alguma remuneração seja sempre
bem-vinda, pois, mesmo quando insuficiente, complementa o salário, confere valor
simbólico ao brincador e, assim, reforça o seu prazer com a ​brincadeira ​(Acselrad,
2013, p.47)​.

Tendo isto presente, retornamos para nossa análise sobre a rede econômica em torno
das sambadas de cavalo marinho. Assim, nos casos em que existe um contrato para a
apresentação e, por conseguinte, uma remuneração previamente acordada com um contratante
(prefeitura, instituição municipal ou estatal, festival ou evento cultural, entre outros), o dono
do brinquedo é o encarregado de repartir o dinheiro entre os outros membros do grupo. Este
pode ser tanto o próprio dinheiro pago pela prefeitura ou pela pessoa que contratou a festa –
podendo ser entregue antes, na hora da apresentação, ou alguns dias, semanas ou meses
depois– como uma quantia antecipadamente solicitada pelo dono a um agiota61, à espera de
receber o pagamento. Neste formato, o dono do cavalo marinho contrai uma dívida com uma
terceira pessoa, a quem deve devolver o empréstimo e mais a pequena quantia de juros assim
que receba o dinheiro do contrato.
Cabe dizer que esta forma de pagamento apesar de trazer prestígio ao dono do
brinquedo como alguém que cumpre com as obrigações para com seus brincadores, pode
trazer consequências nefastas, uma vez que existe a possibilidade de que os contratantes não
cumpram com o pagamento. Nestes casos, a responsabilidade econômica (o prejuízo) se torna
exclusivamente do dono. Na situação em que o dono espera o pagamento ser efetuado, para

60
Relato de José Borba; Mateus do grupo Boi Pintado, cantor, pai de santo, canavieiro e ator protagonista dos
filmes ​O homem da mata​ (2005) e ​A volta de Jack para o inferno​ (Inédito) do diretor Antônio Carrilho.
61
​Os agiotas, no contexto do cavalo marinho, são indivíduos com certo poder aquisitivo que emprestam uma
quantidade de dinheiro aos mestres para que eles possam, ou bem pagar seus brincadores antes de receber o
dinheiro da prefeitura ou bem poder comprar material necessário para o brinquedo. Este crédito deverá ser
ressarcido ao agiota, somando-lhe uma quantia percentual de juros.
71

depois pagar seus brincadores, o prejuízo para o dono não é tanto econômico, mas sim à sua
reputação, pois os brincadores insatisfeitos pelo descumprimento das obrigações do dono
chegam ao ponto de não brincar mais com ele.
Na distribuição do pagamento ao grupo existe uma hierarquia que estipula tanto o
valor do pagamento como sua urgência. Dependendo da função executada, cada membro será
valorado num rateio de importância relativa – isto é, relativo ao tempo que levem brincando
ou ao conhecimento requerido para o desempenho de sua atividade. Por exemplo, o
rabequeiro (ou violeiro62), dada sua experiência e conhecimento técnico sobre o instrumento,
assim como sua relevância para a sonoridade da brincadeira, cobrará uma maior quantidade,
geralmente recebendo antes dos outros integrantes do grupo. Os galantes (daminha, pastorinha
e arlequim), dada à sua condição de aprendizes, recebem cachês inferiores, podendo
complementar esse valor ​pedindo a sorte,​ isto é, ​botando f​ iguras que permitam passar o
chapéu ao redor do público e ficando, consequentemente, com o dinheiro obtido.
O cachê de um galante é significativamente inferior ao de outros integrantes com
funções diferenciadas. A exemplo disto observamos que se um rabequeiro ganha hoje em
torno de uma quinta parte de um salário mínimo (sobre R$200 ou 37€) por apresentação
remunerada, um galante receberá apenas a metade desse valor63.
Além do cachê, podemos observar que sob o pretexto de uma sambada, se reúnem
quitandas, barracas e quiosques, onde podemos observar a venda de cachaça, cerveja,
churrasquinho, milho, caldinho, água, refrigerante e até mesas de jogos de azar64, quando
pequenos comerciantes também podem obter um lucro através da venda de consumíveis e de
apostas. Os donos destas barracas ou são os próprios donos da casa, que organizam seu
alpendre para vender os consumíveis, ou são vizinhos e mercadores ambulantes que, atraídos

62
Embora a viola já tivesse feito parte do banco de cavalo marinho, sendo assim documentada nos registros
efetuados por Mário de Andrade na ​Missão de Pesquisas Folclóricas (1938), ao longo do século XX, a presença
da viola nos bancos de cavalo marinho diminui até desaparecer por completo, sendo substituída pela rabeca.
Porém existe, na atualidade, um grupo de cavalo marinho (Boi Pintado de Mestre Grimário) que integra tanto a
rabeca como a viola, no intuito de recuperar a sonoridade abrangente da viola, ao mesmo tempo que conserva o
timbre pungente da rabeca. Esta proposta é substancialmente interessante, não tanto pela aparente recuperação do
formato tradicional de um banco de cavalo marinho, mas porque neste projeto, se revela o processo de
transformação e modificação ao qual se expõe o cavalo marinho, mostrando-nos uma ampla gama de
reconfigurações possíveis de uma brincadeira que permanece, contraditoriamente, marcada pelo dogmatismo
ambíguo da tradição.
63
Estes números são extraídos do valor total pago pelo município de Condado (PE) para uma única apresentação
de cavalo marinho com duração de entre 1 e 3 horas, equivalente a R$ 3.000 (três salários mínimos ou 560€).
64
Como podemos ver no minuto 1:59 do registro anônimo de uma sambada na década de 1980 (Espaço
Tradições Culturais, 2018).
72

pela notícia de que haverá festa, dispõem suas mercadorias para vender ao público. Uma vez
terminada a sambada, estes últimos devem pagar uma porcentagem do que venderam ao longo
da brincadeira para o dono da casa ou terreiro.
Como exemplo disso, expomos um caso que presenciamos no terreiro do Cavalo
Marinho Estrela Brilhante de Condado (PE) em 22 de abril de 2019: ao terminar uma
brincadeira feita com motivo da noite de Páscoa, através dos alto falantes, Nice Teles65 (a
dona do brinquedo) advertiu à vizinhança da rua que vendia cerveja, refrescos, cachorro
quente, milho e espetinhos para os espectadores de que deviam separar uma quantia
proporcional dos ganhos obtidos naquela noite, visto que algum membro do brinquedo iria
passar de barraca em barraca a fim de receber a soma como signo de remuneração e
valorização dos brincadores e do brinquedo, que tinham facilitado as vendas.
Deste ponto de vista, o contexto de uma sambada viabiliza diversas formas de ganhar
dinheiro que, por pouco que seja, resultam na elaboração de uma rede econômica que propicia
acordos, pactos, contratos e negociações entre pessoas e grupos. Do mesmo modo que se
incentiva o mercado local e a interação social por meio de uma economia criativa, se
cristalizam as expectativas de comportamento individuais através da confiança, desconfiança,
disposição, prestígio, concorrência e disputa. Deste modo, se contribui à originalidade e
autenticidade das formas de organização que participam tanto na coesão como na ruptura
entre indivíduos, grupos de cavalo marinho e agentes externos.
De igual modo que o contexto da brincadeira denota formas de organização e códigos
comportamentais que fazem alusão às noções de troca, negociação e reconhecimento do
trabalho, podemos encontrar no desenvolvimento da ação dramática, traços reconhecíveis das
mesmas. Em consequência, ao analisar as abundantes cenas onde o Capitão contrata algum
tipo de serviço pelo bem da festa, ou bem adquire algum bem, localizamos aspectos como a
desconfiança, a astúcia e a ociosidade presentes na atitude tanto das figuras como do Capitão.
Desta forma percebemos como se põem em marcha mecanismos para expor ações
fraudulentas, localizar posturas confiáveis ou tirar o máximo de vantagem de acordos e
negociações econômicas.

65
Maria de Fátima Rodrigues, mais conhecida como Nice, é dona e organizadora do cavalo marinho Estrela
Brilhante e do análogo Estrela do Amanhã (configurado por membros mirins), assim como do maracatu também
chamado Estrela Brilhante. Filha de Antônio Teles, seus brinquedos estão atualmente ativos sob a coordenação
conjunta dela e de seus dois filhos.
73

Como exemplos concisos do próprio cavalo marinho, vemos figuras como a do Seu
Ambrósio que aparece para vender o resto das figuras que serão usadas no decorrer da
brincadeira e apesar do seu propósito comercial, a figura abandona o terreiro sem receber
nada, pois o Capitão consegue iludi-lo no pagamento. Também apreciamos a figura do
Bicheiro que se apresenta no terreiro com uma caneta e uma caderneta na mão, pedindo para
espectadores e participantes da brincadeira apostar num bicho. Ao dar o resultado – um bicho
que não existe no repertório do jogo – se esclarece a desfaçatez da figura, que é
imediatamente expulsa do terreiro pelas bexigadas do Mateus e do Bastião.
Outra figura oportuna neste aspecto é o Pataqueiro (Seu Bronzo) também chamado de
Cobrador, que aparece no terreiro para cobrar algo que o Capitão está lhe devendo. Apesar de
sua postura briguenta e irascível, não consegue convencer ninguém da legitimidade de sua
demanda sendo também mandado embora por Mateus e Bastião, que lhe chamam de ladrão e
lhe dão bexigadas.
Em resumo, vemos como na própria ação dramática, se exprime uma realidade
comercial, sublinhando que tanto o dinheiro como as formas de ganhá-lo ou conservá-lo são
questões fundamentais. Passamos assim a perceber o cavalo marinho como uma expressão
polissêmica e de significados complexos, que ocupa um lugar liminar ao mesmo tempo que
visibiliza as tensões presentes na ordem social experimentadas por indivíduos e grupos.
Considerando sua potencialidade performática não somente como forma de entretenimento,
mas também como produto artístico e cômico, e sendo construído pela imaginação criativa de
seus participantes, ele deve ser também analisado pelo viés de sua potência comunicativa,
uma vez que apresenta a capacidade de combinar ação ritual e ação estética, espelhando e
transgredindo a vida social e emitindo uma série de reflexões críticas sobre a mesma em
forma de imagens metafóricas e mensagens eficazes.
Contudo, este espelhamento não é tanto um processo reflexivo, como também é
refratário, posto que tanto o público como os intérpretes revelam seus conflitos e processos
harmônicos e desarmônicos manifestos na vida social, configurando formas virtuais,
coletivas, momentâneas e específicas de resistência e de resiliência coletiva. Igualmente,
reconhecemos o cavalo marinho como prática festiva e afetiva: estimuladora de redes
organizacionais que perpassam as relações comerciais, estabelecendo vínculos afetivos e de
cuidado entre seus participantes, que se reajustam e se reorganizam sempre de forma tensa e
complexa.
74

Desta forma, concebemos a brincadeira como ​potência em movimento:​ uma dimensão


criativa que digere, ao mesmo tempo que agita, os parâmetros da vida social e de como ela é
vivida. Assim se estabelece um diálogo ontológico sobre o que é considerado real e
imaginário, certo e errado, tradição e contemporaneidade, fazendo luz sobre fronteiras que se
mantêm em constante movimento, perpetuamente instáveis e dinâmicas. Do mesmo modo,
observamos como esta prática espetacular se atualiza no decorrer do tempo através da
persistência e da repetição como condições indispensáveis para sua continuidade, (apesar da
permanente ameaça dos fantasmas do esquecimento) adaptando e reorganizando suas formas
e conteúdos em sincronia com as transformações históricas e sociais.

O cavalo marinho sob o escopo dos dramas sociais


A perspectiva de Victor Turner (2008) sobre o caráter dinâmico das relações sociais e
dos processos envolvidos na experiência da vida social, nos são úteis para aprimorar nossa
compreensão do cavalo marinho como um “espelho mágico” da realidade. Nesta obra, o autor
propõe uma visão dos sistemas sociais como produtos da cultura e não da natureza, estando,
portanto em constante transformação, num fluxo contínuo e dinâmico. Além disto, Turner
localiza certas afinidades nas sequências de eventos sociais de diversas sociedades por ele
estudadas, às quais denomina ​unidades processuais66 (Ibid, p.31).
Em decorrência, Turner percebe o desenvolvimento destas ​unidades processuais a​
partir de uma ​estrutura temporal67 que se mostra fluida e, simultaneamente, com tendência a
se repetir no decorrer do tempo, caracterizando-se, desta forma, pela “persistência enquanto
um notável aspecto de mudança” (2008, p. 27). Em outras palavras, as ​estruturas temporais
são organizadas pelas relações estendidas através do tempo, assim como pelas metas pessoais

66
Utilizamos aqui a noção de ​unidade processual empregada por Victor Turner (2008) para designar “seqüências
de eventos sociais” ou “unidades do processo social” que podem ser tanto desarmônicas (no caso dos dramas
sociais) como harmônicas (no caso dos empreendimentos sociais de caráter econômico). Turner aponta para
estas unidades como tendo uma estrutura comum sendo, portanto, “isoláveis e passíveis de uma descrição
pormenorizada” (Ibid, p.28).
67
Apesar do uso de “estrutura” como conceito funcional no estudo de Turner (Ibid.), percebemos que esta se dá
com intuito de abordar, classificar e entender a organização dos processos sociais como algo dinâmico, e não de
promover o conceito de estrutura formal. Mesmo assim, a quebra da compreensão das estruturas formais como
sistemas categóricos, inamovíveis e atemporais, – guiadas por máximas (nódulos) que se arranjam como “meros
pontos de intersecção de linhas em repouso” (Ibid. p.32) –, se dará somente de forma parcial, visto que, apesar
da crítica para com a abordagem estruturalista clássica das sociedades, o autor reconhece que este tipo de
estruturas continuam exercendo uma “função direcionadora” no plano psicológico (e inconsciente) de cada
indivíduo.
75

e coletivas – objetos da ação e do esforço – que, por sua vez, se alteram e variam em
decorrência dos contextos históricos, econômicos, políticos, sociais e geográficos em que seus
atores se vêem envolvidos.
No decorrer de sua obra, Turner (2008) centra sua atenção nos dramas sociais e suas
unidades processuais, que surgem a partir de situações conflitivas, instaurando um clima
público de tensão entre grupos (​Ibid. p.28). Neste aspecto, o autor argumenta que o caráter
mais profundo e individual das culturas se revela nas diversas fases dos dramas sociais, ou
seja, pela forma em que se implementam em seu desenvolvimento e em sua resolução. Os
dramas sociais vistos “respectivamente por um observador, podem mostrar-se como tendo
uma estrutura” (​Ibid. p.31). Nela, as ​unidades processuais ​podem ser isoladas e expostas a
descrições, comparações e análises minuciosas. Neste sentido, o autor aponta para uma
similitude entre o desenvolvimento dos dramas sociais e a estrutura dos dramas de palco, uma
vez que ambos apresentam particularidades dramáticas em suas formas, isto é, contém um
princípio, um meio e um fim direcionados para um ápice. Sua abordagem performática das
fases e dos processos sociais, incentivam a análise narrativa processual como base para
compreender a natureza dos dramas sociais.
Prosseguindo, Turner (2008, p.33-37) estipula quatro fases observáveis no
desdobramento dos dramas sociais​, s​ endo estes: ​ruptura ​(1)​, ​onde duas ou mais partes entram
em conflito e no qual se manifesta a existência de uma antiestrutura, seguida d​ e um episódio
de ​crise crescente ​(2), onde se estabelecem os motivos, desejos e metas de cada parte em
conflito. Esta exige, por sua vez, a articulação e o aprimoramento de uma ação corretiva (​ 3)​,
operacionalizada por membros da liderança estruturante com o intuito de alcançar (ou não), a
quarta fase do drama, que é o da ​reintegração ​(4) dos elementos e/ou indivíduos que
previamente entraram em conflito na sociedade – sinônimo da restauração da paz entre
grupos. Com o intuito de facilitar a compreensão e ajudar ao leitor ou a leitora a dimensionar
tanto seu formato como suas fases, dispomos a seguir um diagrama (fig.4) dos dramas sociais
.
76

(fig.4)68

Nesta continuidade, Victor Turner nos adverte da importância de estudar as sagas e as


falas míticas das sociedades, pela capacidade que estas tem de revelar, mesmo
dissimuladamente, a forma e o perfil diacrônico dos dramas sociais:

Atendo-me à comparação explícita da ​estrutura temporal de certos tipos de


processos sociais com aquela dos dramas de palco, com seus atos e cenas, vi as fases
do drama social acumulando-se num clímax [...] cada fase tem sua própria forma e
estilo de discurso, sua própria retórica, seus próprios tipos de linguagens e
simbolismos não-verbais. Estes variam bastante, é claro, interculturalmente e
intertemporalmente, porém, eu defendo que sempre existem algumas afinidades
genéricas importantes entre os discursos e linguagens da fase crítica, da fase
corretiva e da fase de restauração da paz (Ibid p.38, o grifo é nosso).

Entretanto, nesta ocasião dispomo-nos a analisar a evolução do primeiro e do segundo


episódio do cavalo marinho – referentes ao “momento de aquecimento” e “episódio de
abertura” segundo a classificação proposta por Oliveira (2006 p, 260) –, através da
comparação das suas ​passagens com aquelas fases e processos característicos dos dramas
sociais. Com o intuito de sublinhar as formas de resolução de conflitos presentes na trama
dramática do cavalo marinho, comparando-as com a disposição sequencial dos dramas sociais
locais69, buscamos entrever melhor alguns símbolos característicos da ​estrutura ​e da

68
Modelo do drama social inspirado na imagem disposta no artigo de Richard Schechner, Selective Inattention:
A Traditional Way of Spectating Now Part of the Avant-Garde (1976, p.9)
69
Cabe ter em consideração que na hora de comparar o drama estético com os dramas sociais – enquanto formas
e processos sociais que são refletidos e reorganizados na brincadeira e re-encenados na vida social – nos
referimos ao contexto tradicional do cavalo marinho. Apesar de que, como veremos mais adiante, a relação entre
sociedade e brincadeira têm sofrido mudanças significativas nos últimos 20 ou 30 anos, continuamos a
vislumbrar sinais que apontam para a continuidade e interação destas duas dimensões.
77

antiestrutura – assim como de seus componentes; ​communitas e liminaridade – presentes


nesta parte específica da brincadeira.
Como descrevemos no primeiro capítulo, a brincadeira transcorre dentro da ​roda do
samba ​sob a administração do Capitão; ele é quem concebe e oferece a festa, assim como
também comanda, administra e conduz boa parte do processo dramático. O Capitão deve ser
tratado com respeito pelos brincadores, músicos e demais figuras, com excepção das licenças
cômicas de Mateus e Bastião, que comentaremos mais tarde. Sua soberania é evidente desde o
início da sambada; sendo ele o exemplo do “bom-patrão”, representa o topo da ideologia
hierárquica nas relações que se estabelecem durante a brincadeira e, por extensão, nas
relações sociais do Brasil rural (Murphy, 2008, p.132). De certa forma, ele representa a
ordem; é um diplomata da ​estrutura, encarregado de manter as pessoas separadas, assim como
de definir as diferenças entre elas e limitar suas ações (Turner, 2008, p.41).
Juntamente com a chegada do Capitão, o ​banco ​assume seu lugar num dos extremos
da ​roda​. Seguidamente, dispõe-se a tocar um repertório – ​baião​, ​toada de abertura e toadas
soltas – q​ ue chama as pessoas que estão presentes no terreiro, para que se aglutinem em torno
​ esta sequência, o Capitão inicia a
da ​roda que, de certo modo, abre ou inaugura a ​sambada. N
festa, atuando como mestre de cerimônias e comandando os músicos, e em extensão várias
das ações da brincadeira com seu apito; instrumento de “juiz”, daquele que impõe e estabelece
as regras e através do qual gere seu poder hegemônico.
Imediatamente depois do “momento de aquecimento”, assim que a atmosfera da
brincadeira e a atenção do público já foram estabelecidos, presenciamos a chegada de Seu
Ambrósio, que vende para o Capitão as figuras necessárias para realizar o resto da festa. Seu
Ambrósio, mais do que uma figura, corresponderia ao que nós entendemos como ​metafigura​,
uma vez que representa em cena uma ação que pertence à logística e preparação da
brincadeira. Neste sentido, o Seu Ambrósio atua como uma ponte entre o universo cênico do
cavalo marinho e a vida real que articula e redige a brincadeira. Por outro lado, não o teremos
na representação do drama social, uma vez que esta figura pode vir tanto nesta parte como no
início da quarta parte ou “episódio das figuras”, dependendo das decisões do mestre ou do
formato de apresentação do grupo.
78

A segunda parte, ou “episódio de abertura da brincadeira” é a apresentação das figuras


elementares: Capitão, Mateus, Bastião e Catirina70, que permaneceram na ​roda do samba
durante o resto da brincadeira. Além destas, durante o episódio – composto por várias
passagens – ​contemplamos a chegada de outras figuras que questionam ou tentam arrebatar a
autoridade do Capitão. Uma vez resolvidas as diversas tensões, a legitimidade do Capitão
permanece íntegra, prosseguindo para o “momento da evolução dos Galantes”.
Cabe insistir que as ​passagens ​deste episódio giram em torno de conflitos inerentes às
relações de poder, onde se representam cenas que, sem deixar de ser cômicas, veiculam ações
violentas – despóticas ou de caráter transgressor, que configuram climas de tensão, uma vez
que as figuras irrompem na ​roda do samba seja desafiando a ordem do ​status quo,​ ou atuando
em prol de sua restituição.
Na sequência, aparecem as figuras do Mateus, seguido de Bastião e Catirina. O
propósito destas figuras, na sua condição de empregados é, a priori, a de serem responsáveis
pelo bom decorrer da festa enquanto o Capitão houver de se ausentar. Este adverte: ​enquanto
eu estiver aqui, quem manda sou eu... Quando eu não estiver, quem manda é você! –
dirigindo-se para o Mateus momentos antes de ensinar-lhe a comandar a ação do banco
mediante uso do apito.
Neste aspecto, o apito é o objeto que regula as relações entre o ​samba (​ como sinônimo
da união entre música e dança) e o drama, que impõe a ordem; que regula o bom
funcionamento da brincadeira. “Tá vendo isso aqui? eles respeitam isso aqui!” (Cavalo, 2007)
– Insiste o Capitão para o Mateus, enquanto aponta para o banco com o apito71. Assim, o apito
é um objeto respeitado no contexto do cavalo marinho: é um símbolo de poder exclusivo do
Capitão.
Igualmente poderiamos comparar o apito com a imagem do chicote ou açoite, ou seja,
como modo de impor a ordem de forma abrupta, estridente e violenta. Assim como o apito
irrompe o ar com o seu tinido, o látego rasga o ar com som análogo.72

70
Cabe dizer que nas apresentações e sambadas que presenciamos ao longo da pesquisa, tivemos a oportunidade
de ver a Catirina brincando uma única vez. Por esta razão, não a teremos em conta no decorrer de nossa análise.
71
Os excertos de diálogo e descrições presentes nas seguintes páginas foram transcritos da apresentação de
cavalo marinho registrada para o DVD Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado do Mestre Biu Alexandre,
lançado em 2007. Sua elaboração contou com apoio da FUNCULTURA (Fundo de incentivo a cultura) e da
Secretaria de Cultura do Governo de Pernambuco.
72
Devemos agradecer a intervenção de Fauno Guazina nesta parte do texto.
79

Ao longo desta parte, tanto Mateus como Bastião são tratados com condescendência
por parte do Capitão e das outras figuras que representam a ordem, pela condição de
subalternidade que é atribuída àqueles enquanto empregados. No entanto, os trabalhadores
conscientes de sua posição inferior na hierarquia pré-estabelecida, fazem uso de sua suposta
inocência para causar estragos, desordem e confusão, talvez como forma de reivindicar seu
lugar e espaço dentro da brincadeira.
Em um dado momento, assim que as negociações e acordos do trabalho são ajustados
– e as regras do samba são passadas para Mateus e Bastião: os empregados invadem o terreiro
e mandam o banco tocar e parar inúmeras vezes, seguindo seu desejo, impondo suas próprias
regras e, por extensão, “tomando conta do baile” –. Podemos considerar, portanto, que na
inversão do apito como instrumento de poder e subsequente apropriação do espaço por parte
de Mateus e de Bastião, se propicia uma ​ruptura das “relações sociais formais” através do
“descumprimento deliberado de alguma norma que regule as relações entre as partes” (Turner,
2008, p.33). Deste modo, podemos apontar para este momento como o “estopim simbólico de
confronto ou embate” (ibid.) que propicia o drama social representado.
Esta ruptura se expande progressivamente de modo deliberado, estabelecendo um
clima de tensão que progride para uma ​crise crescente​. Este segundo estágio dos dramas
sociais, segundo o modelo proposto por Turner, se apresenta como um daqueles “pontos de
inflexão ou momentos de perigo ou suspense, quando se revela um verdadeiro estado de
coisas, quando é menos fácil vestir máscaras ou fingir que não há nada de podre na aldeia”
(Ibid. p.34). Em decorrência, se clarificam as posições de cada grupo; o Capitão assume a
representação da ​estrutura,​ assim como ​antiestrutura é liderada pelo Mateus e o Bastião que,
consequentemente, desvendam suas caraterísticas liminares e de ​communitas​, assumindo um
aspecto ameaçador e desafiante para com a ordem. Com o intuito de esclarecer os traços de
antiestrutura p​ resentes na dupla de trabalhadores tencionamos, na continuação, elaborar uma
análise simbólica das figuras.
A priori, a natureza do Mateus – assim como o palhaço, o ​trickster ou o malandro –,
denota outro ordenamento de atributos morais e físicos, em relação às figuras da “ordem”.
Porém, também revela o carisma representativo das lideranças (Murphy, 2008, p.135), com
sua subversão, coragem, espontaneidade, liberdade, improviso e criatividade desta figura que
desvela, em si mesmo, uma atitude desafiadora das relações convencionais entre opressores e
80

oprimidos – ricos e pobres, donos de engenho e canavieiros. Neste aspecto, o Mateus


representa o lado mais transgressor e resistente das classes subalternizadas.
A relação que Mateus estabelece com Bastião é indiferenciada, direta e igualitária73,
fato que sugere a imagem de um grupo diversificado porém agregado através de um “vínculo
que une [...] pessoas além e acima de qualquer vínculo social formal” (Turner, 2008, p.40).
Deste modo, percebemos uma comunhão se formando que parte de preceitos como a
liberdade e a espontaneidade comunal. Composta por indivíduos iguais e sem ​estrutura
aparente, com a chegada do Mateus e do Bastião vemos os primeiros indícios da ​antiestrutura
infiltrando-se, aos poucos, na brincadeira. Cabe dizer que é através dos múltiplos conflitos e
situações de tensão no decorrer da sambada que a ​antiestrutura p​ ermanece presente até a
morte e a ressurreição do boi até a brincadeira acabar.
Se reparamos na entrada do Mateus à ​roda do samba, percebemos corporalmente sua
chegada definitiva e lenta, partindo de movimentos confusos e descoordenados no chão para
em seguida adquirir a forma vertical e bípede própria da corporalidade humana. Neste sentido,
conforme aponta Maria Acselrad (2013, p.71), “a chegada do Mateus costuma a evocar a
imagem de um nascimento”. Por outro lado, se observarmos cuidadosamente sua vestimenta,
deparamo-nos com o ​maturão74 que leva pendurado nas costas; um acessório próprio tanto de
Mateus como de Bastião que viria a ser o lugar onde se guardam e transportam os pertences
das figuras – o material necessário para desempenhar suas funções na festa, além dos itens
indispensáveis para satisfazer suas necessidades pessoais.
Consequentemente, podemos equiparar Mateus e o Bastião a andarilhos ou transeuntes
que vagam pelo mundo à procura de alguma coisa ou lugar, afinal aquele que anda com seus
pertences a tiracolo está sempre pronto para partir – demonstrando que também não possui
um lugar seu, estando sempre desterrado por outro lado, pode demonstrar desapego:
possuindo tudo que precisa consigo, por consequência, ele não precisa encontrar coisa ou
lugar nenhum. Tendo consigo tudo que precisa, ele desafia a ordem haja visto que não tem
nada a ganhar nem perder. Em resumo, seres itinerantes em constante transição entre limites
ou fronteiras; num “estado de se estar ​entre participações sucessivas em um meio social

73
Um exemplo disto poderia ser a forma com que Mateus e Bastião se evocam; sob o grito de “Viva pareia!”;
apelido que os qualifica como “companheiros” ou como um par de complementares.
74
​O maturão ou ​matulão é uma “espécie de feixe de palha de bananeira ou de cana de açúcar que, pendurado nas
costas na altura das nádegas, o protege nas constantes quedas e ajuda na imagem deformada de seu corpo”
(Picolli, 2013, p.121)
81

dominado por considerações sociais estruturais” (Turner, 2008, p.47, o grifo é nosso). Desta
forma, sublinhamos a condição liminar das figuras, como sujeitos à margem da vida
cotidiana, da rotina e, por extensão, da “normalidade”.
Dito isto, podemos extrapolar este “ir e vir” das figuras para refletir sobre a condição
dinâmica e por vezes desorganizada que se estabelece entre os brincadores e as figuras que
eles mesmos interpretam. Neste sentido, as características comportamentais e físicas de cada
brincador (o chamado ​pantinho75) aportaram, em maior ou menor medida, particularidades
irrepetíveis ao caráter e gestualidade das figuras por eles ​colocadas​. A recíproca, porém,
também é efetiva: certas características da figura se imbricam na personalidade do sujeito que
as interpreta; o brincador se torna figura à medida que esta se revela como um alterego do
sujeito que vai além da personagem, dificultando localizar onde termina a figura e onde
começa o brincador. Percebemos este fenômeno por meio de diversas experiências e
conversas com brincadores de cavalo marinho como, por exemplo, Seu Martelo76 – Mateus do
Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado e um dos brincadores mais veteranos em ativo
(84 anos).
Deste modo, observamos como a figura do Mateus ocupa, além de um lugar ​entre os
limites do individual e do comum, um lugar nas fronteiras do real e do imaginário – fazendo
difícil a tarefa de separar o brincador da figura. Além do mais, Mateus e Bastião comportam
um veículo de mediação entre o público e o desdobramento da ação dramática: ao passo que
auxiliam na recepção e despedida de certas figuras, também resolvem possíveis imprevistos
externos ao drama que podem surgir durante a sambada (animais que cruzam no meio da ​roda
do samba​, a presença incômoda de bêbados, possíveis conflitos entre espectadores, entre
outros). Do mesmo modo, mantém a atenção dos espectadores centrada na brincadeira, quer
seja interagindo com eles ou integrando-os na trama dramática – fazendo as ​passagens mais
ricas e atrativas –, incorporando à sambada a confusão sem motivo aparente. Nestes

75
O ​pantinho ou pantim é​ o modo como os brincadores denominam as formas particulares e subjetivas de ​botar
figura ou de dançar, que o diferenciam de outros brincadores
76
“​Seu Martelo nasceu no final de maio de 1936, no engenho Gambá, município de Nazaré da Mata. Aos 7 anos
já trabalhava no roçado e posteriormente como canavieiro. É um dos autênticos e mais antigos representantes da
tradição oral da Mata Norte Pernambucana, talvez antes do Cavalo Marinho ou por causa dele. [...] Desse
brincante que podemos afirmar: é um Mateus vinte e quatro horas por dia”. Este texto foi extraído do folheto
divulgativo de um dos projetos realizados por Seu Martelo (ir para Anexo B). Chamado ​Só vai no sonho​, o
projeto teve lugar no mês de Janeiro de 2019, constando de 4 dias de oficinas e rodas de diálogo em diversas
cidades de Pernambuco (texto composto a partir da biografia: Garoa, Boi da. ​Seu Martelo! 17 de setembro de
2015. Disponível em: ​https://boidagaroa.wordpress.com/2015/09/17/seu-martelo/​. Acesso em 14 de junho de
2020.
82

momentos nos deparamos novamente com a relação de reciprocidade que se estabelece entre
o drama social e o drama estético:

A relação entre audiência e espectáculo se torna mais direta, sem se estabelecer


claramente onde está o limite entre estes dois universos. Na verdade, todo o
espetáculo se desenvolve neste clima de cumplicidade entre público e brincadores e
a descontração e o contato direto é um elemento intrínseco à brincadeira, ao jogo
(Oliveira 2006, p.399).

Uma vez que a dupla de trabalhadores “tomou conta” da festa, impossibilitando o


Capitão de continuar o baile, observamos o auge da ​crise.​ Neste momento do drama, o
Capitão não pode mais desprezar ou ignorar o desarranjo feito pelos empregados, nem
tampouco o desafio que isso supõe à sua legitimidade enquanto representante da ordem. Em
consequência, procura conter sua propagação através da intervenção do Soldado da Gurita.
Neste momento o Capitão sinaliza, com seu apito, a chamada para que o Soldado entre
na ​roda​, porém, os músicos se encontram distraídos pelas artimanhas de Mateus e Bastião que
avivam a bagunça para assim poder prosseguir com sua festa particular – jogando-se no chão,
interagindo com o banco e com o público, e dançando suas próprias toadas:

Toada da Tiririca Toada do Embolador


Tiririca navalha de cortar, samba nêgo Embola embola, embolador
Branco não vem cá Nêgo Mateus, embolador
Tiririca navalha de cortar
deixa a poeira voar

Como percebemos, a mensagem contida nestas toadas é clara: os dois negros


subvertem a ​estrutura pré-estabelecida por meio da dança e do humor, cometendo uma
transgressão dos códigos e valores impostos pela norma: os escrúpulos, a organização, a
branquitude e a higiene. Neste sentido, também especifica a capacidade de destruição desta
communitas ​representada por Mateus e Bastião, que ameaçam com “cortar” qualquer branco
(leia-se qualquer força de segregação étnica) que se aproxime da roda​, assim como exaltam a
confusão, a desordem e a sujeira como elementos representativos e que, ao mesmo tempo,
dignificam e consagram a ação revolucionária das figuras. Se estabelecem, deste modo, outros
padrões organizacionais e comportamentais que partem da espontaneidade e da liberdade, do
livre arbítrio e do humor dilacerante; suscitando idéias não-convencionais que apontam para
83

“criatividade social – onde novas formas sociais e culturais são engendradas” (Turner, 2008,
p.46). – preconizada pela condição de liminaridade.
Prosseguindo, o Soldado se apresenta na ​roda do samba de forma dissimulada, por
um de seus extremos, ocultando-se entre o público. Porém, assim que Mateus e Bastião notam
sua presença, aproximam-se para interceptar seu transcurso até o Capitão e de passagem
manifestam sua inconformidade com a presença do Soldado. Este, sem esclarecer os
propósitos de sua chegada na ​roda i​ ndica, apenas com o dedo, o lugar de seu destino
(apontando para o Capitão ou, em todo caso, para o Banco). Mateus e Bastião inquirem:
“você vai pra onde?” ou “aqui não passa não!” ou ainda “vai, faz meia lua e vai, vai-te
embora!” (Cavalo, 2007) – desencorajando o Soldado de continuar sua trajetória e
expulsando-o finalmente da ​roda, ​dando-lhe várias ​lapadas77. A
​ ssim, conseguem dar
continuidade a sua festa particular.
Poderíamos associar a chegada do Soldado da Gurita com a terceira fase dos dramas
sociais, ou seja; a ​ação corretiva.​ Considerando a chamada da figura como uma resposta
factual perante a crise na qual se põe em marcha vários dispositivos de ajuste e regeneração:
informais ou formais, institucionalizados ou ​ad hoc​, sendo “operacionalizados por membros
de liderança ou estruturalmente representativos do sistema social perturbado” (Turner, 2008.
p.34), que tem por objetivo amenizar o conflito entre as partes implicadas e regenerar a
​ importante frisar que, durante a ​ação corretiva,
estrutura anterior ao momento de ​ruptura. É
tanto as “técnicas pragmáticas ​quanto a ação simbólica alcançam sua mais plena expressão¨
(Ibid. p.36), fato que coloca o grupo ou sociedade em seu momento mais “autoconsciente”,
expondo, de forma concisa, seus conflitos, problemas, motivações e conhecimentos.
O Soldado é considerado entre os brincadores uma figura de natureza agressiva e
violenta, dada sua ação na roda. Do mesmo modo, há outras figuras que aparecem no decorrer
da brincadeira que se assemelham ao comportamento do Soldado (como o Pataqueiro, o
Sardanha e o Valentão ou Tintinqué, entre outras) justamente pelo seu caráter arruaceiro e
brigão. Para os brincadores, ​botar este tipo de figuras supõe um estímulo para a comparação e
competição entre brincadores, pois através de sua performance demonstram suas aptidões
para a briga, e a imposição sobre outros companheiros de brincadeira, com o fim de
mostrar-se mais “competente” na concepção nativa da masculinidade. Como reflete Biu
Alexandre:

77
Forma como os brincadores nomeiam o ato de dar ou receber uma pancada de bexiga.
84

De menino botava pataqueiro, e era pataqueiro brabo. Oia, Pataquero, Sardanha,


Soldado da Gurita que é tudo na brabeza, né? E Doutor e mais algum... E quando eu
pegava um caba mais fraco, eu lascava ele (ri), quando eu pegava um caba mais
forte, a gente empatava [...] Eu não era coisa boa, eu era bem insolente, eu castigava
mesmo, eu era presepeiro! (depoimento de Biu Alexandre concedido ao autor em
entrevista datada de 20 de maio de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

​ ediante suas diversas toadas.


Tendo isto em mente, o Soldado é chamado na ​roda m
Assim, o banco alerta os empregados do perigo que está por vir:

Toadas de chamada do Soldado


Fui na rua da cidade Oi! Papai diga a Mamãe
para ver o quê que há que amarre o cachorro dela
Ai! quem tiver a faca guarde o Soldado da Gurita
que o soldado vai tomar tá fazendo o sentinela

Num dado momento, geralmente quando Mateus e Bastião estão distraídos dançando,
o Soldado atravessa subitamente a ​roda,​ desviando-se de qualquer bexigada e alcançando
finalmente o Capitão. Este lhe informa, reclamando, do estado das coisas: “Mandei lhe
chamar pra prender os dois negros. Tão muito rebeldes e não querem deixar o Capitão
Marinho dar baile na cidade!” ​(Cavalo, 2007). S
​ ucessivamente, o Capitão contrata o Soldado
para “prender os negros” em troca de uma soma de dinheiro:

Toada de ação do Soldado da Gurita:


Amarra o nêgo Soldado
Eu quero o nêgo amarrado
Amarra o nêgo soldado
Por ordem do delegado

Neste instante, o Soldado faz evoluções ao redor da ​roda do samba perseguindo os


rebeldes um por um. O processo sempre é o mesmo; primeiro os encurrala para depois os
capturar e, por último, exibindo-os para o Capitão, atravessa-os com sua espada pelo traseiro
– zombamento ou ​puia que causa um efeito hilariante entre o público e os brincadores –, uma
vez que, antes de ceder ou “dar” (jogando com o duplo sentido sexual)​, t​ anto o Mateus como
o Bastião articulam uma diversidade enorme de recursos improvisados para escapulirem da
represália, ora dando bexigadas e afrontando o Soldado, ora pedindo a compaixão e a
85

indulgência do mesmo. Contudo, este não recua em sua intenção e derruba os negros no chão
para desmoralizá-los.
Em consequência, observamos que a ​ação corretiva ​implementada pelo Capitão e
concretizada pelo Soldado resulta numa submissão do ato de rebeldia dos negros que se
revelam novamente submissos à sua condição de empregados obedientes. Em seguida, uma
vez que Mateus e Bastião foram reduzidos e desmoralizados mediante diversas formas de
vexações e crueldades pelas forças da ordem, acontece a liberação de ambos no baile do
Capitão e, em decorrência, “​reintegração ​do grupo social perturbado” (Turner, 2008, p.36),
fato que podemos vincular à quarta e última fase dos dramas sociais.
É assim que o Soldado é imediatamente expulso da ​roda​; sem nenhum tipo de reforço
ou apoio por parte do Capitão – que outrora era seu empregador –, sendo mandado embora
pelos empregados, que não hesitam em administrar-lhe abundantes bexigadas enquanto têm
oportunidade. Assim, podemos considerar que junto ao restabelecimento da ordem, o Mateus
e o Bastião são reconhecidos novamente pela autoridade do Capitão.
Neste sentido, os empregados podem não ter mantido a suspensão das normas e a
subsequente revolta de modo indefinido, porém, em virtude de sua submissão, lhes é
conferido um reconhecimento, fato que transformará a relação destes com o Capitão. Em
outras palavras, apesar da reconciliação só ocorrer em condições de submissão às demandas e
inquéritos dos empregados manifestadas durante a etapa de ​crise, terão conferido um papel
importante para a consolidação de um novo modelo de relação entre estes e o Capitão.
Por fim, apesar de certas normas e relações cruciais persistirem no decorrer da
brincadeira em alternância entre relação hierárquica e vertical de patrão/empregado, cabe
salientar que, uma vez terminado este drama social, a relação entre Mateus, Bastião e o
Capitão terá mudado:

novas normas e regras terão sido geradas durante tentativas de remediar o conflito;
[...] As bases de sustentação políticas teram sido alteradas. [...] A distribuição dos
fatores de legitimidade terá mudado, assim como as técnicas utilizadas pelos líderes
para conquistar anuência (Turner, 2008, p.37, 38)​.

A partir de então e no decorrer da brincadeira, Mateus e Bastião assumirão papéis de


legítimos trabalhadores, conferindo ordem, representando a autoridade do Capitão e
assumindo o controle da brincadeira nos momentos em que este último se ausentar. Do
mesmo modo, Mateus e Bastião, apesar de conservarem seu caráter liminar com tendência ao
86

desarranjo, terão seu comportamento respeitado e consentido pelos membros representativos


da ​estrutura​ (Capitão, Galantaria, etc), desde que estes respeitem a hierarquia estabelecida.
A retórica desta ​sequência nos mostra, em suma, o processo requerido para alcançar
uma espécie de “equilíbrio social”, onde as relações e comportamentos ideais ​entre patrões e
empregados se mantém firmes, ressaltando o sistema de valores morais necessários para obter
esse estado de equilíbrio. Esta perspectiva condiz com o que Da Matta entende por ​sistema
moral,​ pois através da mensagem contida na resolução do conflito entre os empregados e o
Capitão, se desvela uma narrativa “onde fica patente a expressão de valores de uma sociedade
onde o sistema econômico tende a estar submerso [...] no sistema moral, o qual se atualiza por
meio de uma rede básica, e às vezes imperativa, de relações pessoais” (1983, p.223).
Cabe destacar que apesar de percebermos uma resolução do drama social, o drama não
fez mas do que começar, pois ao longo da brincadeira as tensões entre ​estrutura e​
antiestrutura s​ e darão de forma permanente, estendendo o drama até a morte e o renascimento
do boi o que, por sua vez, é extremamente simbólico, pois representa (como vimos no
primeiro capítulo) a unidade, força cosmogônica e intersubjetiva: a ​communitas.
É importante frisar que o confronto e o desafio à autoridade do Capitão sobre o baile
se repete em diversas ocasiões, inclusive depois dos trabalhadores terem sido reintegrados no
sistema. Neste aspecto, a chegada de figuras como o Empata Samba ou o Mané do Baile
também geram conflitos e tensões que, de algum modo, exigem um retorno às etapas de ​crise
crescente ​e ​ação corretiva p​ róprias dos dramas sociais.
No entanto, gostaríamos de apontar a brincadeira do cavalo marinho, não tanto como
uma forma de projetar, reproduzir e estipular as formas de poder hegemônicas de um sistema
social atrelado às ​estruturas escravocratas e colonialistas do contexto rural brasileiro, mas
como um meio eficaz que estimula noções, posicionamentos e comportamentos
antiestruturais ​(Turner, 2008). Por meio da ação simbólica, reconhecemos um drama ritual
que aciona a criatividade social, isto é, por intermédio do riso, da liberdade criativa, da
improvisação, etc. novas formas de experienciar a vida social são engendradas, as quais
contêm, certamente, as características particulares da ​antiestrutura. ​Neste aspecto, o cavalo
marinho atua como um condutor de mudanças para os grupos e sujeitos envolvidos,
provocando um

espaço-tempo libertário, em que o actor desliza entre várias identidades em que o


espectador pode intervir activamente e, em alguns casos, tornar-se o próprio foco
dramático através de intervenções – por exemplo, comentários brejeiros ou morais –
87

que, por vezes, transformam os espectadores em actores e os actores em


espectadores interessados (Valverde, 2000, p.8).

Na atualidade, apesar do mundo do trabalho não ser necessariamente relacionado à


cana-de-açúcar e de muitos brincadores das novas gerações nunca terem trabalhado nesse
contexto, percebemos como as relações hierárquicas e a violência seguem ressoando no
cotidiano e na organização sócio-econômica da Zona da Mata de Pernambuco e, por extensão,
nas relações entre brincadores/as de cavalo marinho.

A ideologia do ex-morador se impõe com tamanha força que mesmo aqueles que
nunca moraram num engenho, que nunca estiveram submetidos a um senhor de
engenho ou usineiro, operam com as mesmas categorias e modelos de pensamentos
forjados na prática de morador. (Sigaud, 1979, p.45, e grifo é nosso).

Assim, percebemos como algumas das mensagens contidas na trama dramática da


brincadeira continuam a fazer sentido na atualidade pois, como vimos, refletem sobre a moral
ideal de um sistema social baseado nas relações patrão-empregado e da mão-de-obra agrícola,
“extremamente preocupado com ‘cada um em seu lugar’, isto é, com a hierarquia e com a
autoridade” (DaMatta, 2984, p.142). Consequentemente, tanto as figuras transgressoras –
representativas da subalternidade como Mateus e Bastião – como as figuras que representam a
autoridade – como a figura do Soldado ou do Capitão – mantêm seu caráter reflexivo sobre os
diversos papéis e performances sociais, trazendo à tona uma síntese dos conflitos seculares e
das resistências cotidianas.
Neste aspecto, o cavalo marinho se desdobra como um fenômeno construído social e
individualmente onde as novas gerações interagem com os sentidos da brincadeira de modo
similar a seus antecessores. Assim, podemos falar de uma memória herdada (Pollak, 1995,
p.5), que vai se acomulando no decorrer da vida de um brincador e que será, em algum
momento transmitida para os novos integrantes e as novas gerações de brincadores. Assim é
que estas experiências de vida social do passado se revelam no presente, contribuindo para
uma brincadeira que envolve noções de identidade enquanto pertencimento ao lugar e ao
coletivo.
88

CAPÍTULO III:​ “O FEIJÃO-QUEIMÔ”!


Novos cenários e desafios da brincadeira

Se meu boi morrer, que será de mim


manda buscar outro, oh! Sadona, lá em Surubím.
Se meu boi viver, bota ele na escola
78
pra aprender a ler, oh! Sadona, e a tocar viola.

Fruto da continuidade histórica, ou dito de outra maneira, da sobreposição e


acumulação da experiência social, o cavalo marinho revela, em si mesmo, um princípio de
transformação que, percebido de modo diacrônico, denota sua capacidade de persistir no
tempo e se transformar com ele, fato que requer a intervenção e mediação constante de seus
representantes, ou seja, seus mestres e mestras; brincadores e brincadoras.
Este mesmo axioma transformativo se encontra representado no caráter singular e
irrepetível de uma sambada, onde novos arranjos se configuram e se dissolvem, em cada
ocasião, num fluxo interativo e intersubjetivo guiado pelas especificidades do espaço, do
79
momento e dos indivíduos , tais como o terreiro onde acontece, o estado anímico e físico do
brincador, a coesão entre os integrantes do grupo/família, o momento específico em que se
encontra a brincadeira (boca da noite, madrugada, quebrar da barra do dia), as condições
financeiras do dono, dentre outras.
Por outro lado, é no próprio terreiro onde se tecem os vínculos entre o passado e o
presente, repassando e reorganizando a história “num ciclo de transmissão, apropriação,
difusão de valores, crenças e visões de mundo próprias daquelas comunidades” (Oliveira,
2012, p. 80). Neste aspecto, o ato de brincar apresenta-se como uma “combinação particular e
histórica que propicia, a cada noite, resultados diferentes” (Acselrad, 2013, p.61), atuando
como recurso de produção e reprodução dos sentidos e valores sócio-culturais, reforçando

78
​Toada que é cantada no final da brincadeira antes da ressurreição do boi. Na cena em questão, o boi
permanece deitado no centro da roda do samba, enquanto a galantaria canta ao redor dele. Estas toadas, que
tratam sobre a vida e a morte do boi, antecipam de forma indireta ao término da brincadeira, revelando um
possível paralelismo entre o animal e o próprio brinquedo.
79
Do mesmo modo que existem diferenças entre os estilos de brincar dos distintos grupos de cavalo marinho
(ordem das sequências, repertório de toadas e de figuras, entre outras), as características corporais e gestuais
variam também de brincador para brincador, realçando a diferença como elemento de destaque.
89

noções de pertencimento ao lugar e ao grupo e fortalecendo laços identitários e afetivos. Em


suma, enquadrando uma memória coletiva própria de uma região (Pollak, 1989, p.3):

Oia, Cavalo Marinho mudou muito, já... mudou muito, né? Do tempo de pai, ou
melhor dizendo, do tempo do pai de meu pai pro tempo de pai; do meu tempo, pro
tempo de agora já mudou bastante, porque a gente vem de uma geração, né, que já
vem dos Quina. Pedro de Quina que é o meu avô, de pai, eu que sou filho, né, dos
filhos de pai, né, dos meus filhos. Então a gente já tem até neto, bisneto, melhor
dizer. (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista
datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Entretanto, nos últimos vinte anos identificamos um processo de mudanças que


80
afetaram de forma significativa diversos aspectos “tradicionais” da brincadeira ​(Acselrad81,
2011, 2012, 2013; Oliveira, 2012). Por um lado, vinculamos estas mudanças à dinâmica
interativa e de adaptação constante que se interpõe entre brincadeira e contexto sociocultural,
explicado anteriormente. Neste sentido, identificamos uma reordenação da brincadeira no
contexto capitalista (urbanizado, tecnológico, global, etc.) que difere amplamente do contexto
tradicional do ​sistema de morada​ relatado no primeiro capítulo.
Por outro lado, cabe destacar os fortes vínculos que se estabeleceram, neste período
recente, com agentes exógenos à brincadeira (como as artes cênicas, a pesquisa etnográfica,
os efeitos do sistema e da produção econômicos, ou a história com seus processos mais
globais) que influenciaram, conforme se verá, as formas de ver, entender e fazer o cavalo
82
marinho, tanto para ​quem é da tradição​ como para ​quem não é .
Mediante estas novas relações de interação os grupos de cavalo marinho conseguiram
desenvolver projetos que

contribuíram para o reconhecimento da brincadeira como símbolo de identidade


cultural local, documentando suas atividades, criando um elo entre as gerações,

80
Colocamos estes aspectos característicos “tradicionais” entre aspas para poder diferenciá-los de suas formas
contemporâneas, podendo assim ser alvo de comparações e especulações que reflitam sobre o processo
transformativo da brincadeira, e não como elementos atemporais, imutáveis e fixos, uma vez que, no nosso ponto
de vista, o cavalo marinho resiste ao tempo pela dinâmica de adaptação e transmutação constante.
81
82
Alguns membros da brincadeira estabelecem os limites entre quem pode e quem não pode se apropriar da
brincadeira mediante uma categoria específica, tem “​quem é da brincadeira e tem quem não é da brincadeira”​ .
Como esclarece mestre Aguinaldo, “​a diferença é porque eu sou do cavalo marinho, e você não é do cavalo
marinho, então você está tentando se encaixar agora na história do cavalo marinho, você está tendo força de
vontade de querer aprender, certo? Então você não é do cavalo marinho, você está tentando entrar, tentando
compreender. Eu que sou do cavalo marinho não sei de nada, não conheço o cavalo marinho, a história do
cavalo marinho é muito longa, é muito além do que a gente imagina, mas eu sou da tradição​” (depoimento de
Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada de 13 de junho de 2019, e realizada em
Condado, Pernambuco).
90

dando suporte aos grupos, renovando instrumentos, máscaras e trajes ou


viabilizando o intercâmbio entre brincadores. (Acselrad, 2012, p.160).

Contudo, estas transformações não se vêem livres de polêmicas pois, como veremos,
suscitaram uma crescente preocupação associada à manutenção e preservação da tradição
frente ao atual cenário de mudanças aparentemente drásticas do cavalo marinho. Apesar dos
conflitos serem fenômenos constitutivos da vida social como um todo, estamos convencidos
de que estas polêmicas constantes na contemporaneidade da brincadeira supõem um pano de
fundo cativante a partir do qual podemos desenvolver algumas reflexões sobre a memória
coletiva, pertencimento e identidade social, reconhecendo o papel de seus participantes não só
como brincadores ou brincadoras, mas como agentes de mediação que participam de um
“constante e ininterrupto processo de ​negociação da realidade, ​com idas e vindas, recuos e
avanços, alianças sendo feitas e desfeitas, projetos adaptando-se e alterando-se, com
transformações institucionais e individuais” (Velho, 2006, p.5).
A seguir vamos analisar as transformações mais relevantes que tiveram lugar nas
últimas duas décadas, agrupando-as em três grupos principais: (1) a espetacularização da
brincadeira; (2) a reestruturação de suas formas de produção e organização e; (3) os novos
contextos em que se dão a transmissão dos saberes específicos da brincadeira.
A partir daqui, esta análise se nutre e dialoga com reflexões, comentários e relatos
presentes nas falas dos diferentes brincadores, mestres e mestras; interlocutores e
83
interlocutoras que colaboraram com o autor durante a pesquisa (por meio de conversas ou
concedendo-lhe entrevistas) e, consequentemente, também participam deste texto, que é
apenas um esforço para desenvolver aquilo que Clifford (1998, p.54) chamou de “trabalho
polifônico”.
Através de suas intervenções, opiniões e crônicas (todas diferentes, assim como são
suas vozes) poderemos nos aprofundar nas distintas transformações – suas causas e efeitos –
partindo de pontos de vista diferentes. Do mesmo modo, elas nos permitirão compreender as
tensões, conflitos, conquistas, desejos e preocupações que decorrem das mesmas e que estão
84
presentes no dia a dia dessas pessoas . Por outro lado, estas narrativas também nos mostram

83
Devidamente apresentados/as por via de breves biografias presentes nos anexos deste trabalho.
84
Cada interlocutor/a apresenta, por um lado, um tipo de relação particular com o cavalo marinho: seja por causa
da idade, da sua escolaridade ou das oportunidades que tiveram ao longo da vida para desenvolver seus
conhecimentos sobre a brincadeira. Por outro lado, suas falas se interligam através de três fatores principais:
grupo, parentesco ou residência; podendo cumprir-se os três – como é o caso do vínculo entre mestre Aguinaldo
(Anexo F) e Minho (Anexo D) que são pai e filho, brincam no mesmo grupo e moram na mesma casa –, ou só
91

as diversas estratégias e práticas de negociação que os próprios interlocutores desempenham


com a intenção de assimilar, rejeitar ou propor opções alternativas, uma vez que, como
veremos, algumas das transformações ameaçam fragmentar e dissolver a brincadeira,
dando-lhe um futuro incerto.
Em outras palavras, estas narrativas nos permitiram tomar consciência das múltiplas
perspectivas e objetivos que existem entre os participantes de cavalo marinho que, por sua
vez, atuam como mediadores entre a tradição e a contemporaneidade, garantindo assim a
continuidade da brincadeira. Sem mais demora, passamos à observação do primeiro grupo de
mudanças na forma e contexto do cavalo marinho.

Espetacularização da brincadeira
O primeiro destes fatores equivale ao fenômeno de espetacularização da brincadeira
em decorrência das novas demandas e solicitações de apresentação que, por um lado “tem
garantido mais contratos, retorno financeiro e popularidade à brincadeira” (Acselrad, 2013,
p.157) e, por outro, tem contribuído para uma reestruturação do formato da brincadeira,
provocando uma certa homogeneização da forma de brincar.
A partir dos anos 2000 as ações de valorização, salvaguarda e patrimonialização dos
bens materiais e imateriais do país (IPHAN, 2013) somados ao crescente interesse por parte
de agentes externos aos valores socioculturais, estéticos e simbólicos da brincadeira –
pesquisadores/as, artistas, atores, atrizes, músicos e dançarinos/as que demandam oficinas,
palestras e apresentações–, contribuíram para a popularização de um novo formato de
apresentação de cavalo marinho; mais enxuto e econômico (financeiramente falando), que se
ajusta a certas práticas mercadológicas associadas ao consumo contemporâneo de arte e
cultura (Acselrad, 2012, p.160).

um deles – como no caso da relação entre mestre Biu Alexandre (Anexo C) e mestra Nice (Anexo G), ambos
residindo no bairro de Novo Condado.
92

85
Conhecida entre os brincadores como “apresentação do tipo ​feijão-queimô​” , este
novo formato de exibição caracteriza-se por ser uma versão sintetizada do formato de
sambada que enfatiza, sobretudo, a terceira parte ou “momento da evolução dos galantes”.
Esta apresentação, com duração aproximada de duas horas, é esteticamente mais vistosa (seja
pelas cores e movimentos dos arcos ou pelos trupés rápidos e sonoros da galantaria), e
deliberadamente mais ágil e fácil de compreender – uma vez que, ao conter poucas
intervenções de figuras, o desenvolvimento da brincadeira torna-se mais veloz e também mais
acessível ao público desconhecedor da trama dramática do cavalo marinho.
Em contrapartida, as apresentações do tipo ​feijão-queimô ​converteram-se numa opção
mais interessante do ponto de vista econômico para as prefeituras, festivais e demais
propostas enfocadas no consumo de cultura massificada que, de forma geral, visa oferecer a
maior quantidade de eventos com o menor orçamento possível.
Neste aspecto, este novo formato, junto com as oficinas que os mestres e mestras
proferem nas diversas capitais do país (das quais falaremos mais adiante) tornaram-se uma
fonte de renda alternativa para alguns brincadores, promovendo:

um maior reconhecimento social e financeiro dos mestres envolvidos. Antes vistos


pela população em geral como agricultores analfabetos, hoje estes brincadores
passaram a ser considerados professores, detentores de um saber específico.”
(Acselrad, 2012, p.160).

Por outro lado, a popularização deste formato de apresentação assim como as


86
conquistas à ela associadas, trouxeram uma série de aspectos controversos de profundo
impacto tanto nas características formais do cavalo marinho como na realidade dos
brincadores. Em primeiro lugar, observamos um potencial e paulatino desaparecimento de
figuras do repertório dramático do cavalo marinho. Como explica mestre Aguinaldo:

85
A referência culinária faz sentido ao esclarecer-se que este tipo de apresentação dura em média duas horas,
intervalo de tempo ligeiramente superior aos minutos necessários para cozinhar uma panela de feijão. A
nomenclatura ​feijão-queimô ​faz referência à brevidade deste tipo de apresentações, tratando-se de uma ironia dos
brincadores para inferiorizar este formato, em prol do formato tradicional ou ​sambada. ​Assim, Mestre Biu
Alexandre (em entrevista concedida ao autor e datada de 20 de maio de 2019, Condado, Pernambuco)
argumenta: “Porque cavalo marinho, quando se brinca, a gente começa de 9 horas da noite e vai até as 5 da
manhã: aí tá brincado! Mas esse cavalo marim de duas horas... isso é coisa de conversa de velhingo: acabou-se...
(aí fica até sem jeito). A gente diz que é que nem o feijão-queimô: Começou, terminou!​”
86
​Uma análise e consequente problematização destes efeitos vêm sendo elaborada e promovida nos últimos dez
anos, tanto por pesquisadores como pelos próprios brincadores (Oliveira, 2012; Acselrad, 2012). Em nossa
opinião, estes apontamentos revelam a relativa perenidade do problema relativo às formas que os brincadores e
os grupos têm de interagir e negociar com as interfaces, ​a priori alheias ao cavalo marinho, deixando-se
influenciar ou não pelas práticas mercadológicas do consumo cultural.
93

Tem tantas figuras boas de Cavalo Marinho que eu vi quando era criança... como eu
vou saber dela? O mestre que sabe não apresenta mais essa figura e talvez se ele
souber, o banco não vai saber cantar a toada daquela figura. Hoje o Cavalo Marinho
está mais um espetáculo de uma hora, porque... é isso que está acontecendo no Palco
Giratório, não é mais do que duas horas. E quando vai uma hora e meia de
apresentação o povo já começa a sair. O que faz o Cavalo Marinho é a figura! Eu
alcancei e já aconteceu comigo da gente começar a brincar o Cavalo Marinho de oito
e meia e ir até às cinco e meia da manhã, a gente brincava o Cavalo Marinho até… E
lá em Andreza, a gente foi até às sete da manhã, cara! E o povo querendo mais, e o
terreiro cheio de gente! Então o que faz a brincadeira acontecer são as figuras, não é
a dança dos arcos, e hoje o povo só quer saber da dança dos arcos. Então o segredo
pra mim está aí, naquela figura que a gente não conhece ela (depoimento de
Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada de 13 de junho
de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Neste formato o tempo de apresentação é tão escasso que somente permite mostrar
uma pequena quantidade do total de figuras que um grupo conseguiria ​botar num contexto de
sambada. Neste sentido, faz-se explícito que a relação com o ​tempo é um fator de suma
importância para a manutenção do repertório dramático da brincadeira (Acselrad, 2012,
87
p.161). Seu Martelo , um dos Mateus com mais anos de longevidade e experiência na
brincadeira – que, coincidentemente, brinca no Estrela de Ouro de Condado –, alega que
ninguém sabe mais qual é a figura do ​Titinqüem (bisavô do ​Sardanha)​ , e que apenas se vê a
88
figura do ​Doutor da Medicina e sua comitiva: o ​Fiscá,​ o ​Urubú​ e o ​Pacaya.​
Como aponta Risoaldo Roberto da Silva (biografia disponível no Anexo H) quando
lhe perguntamos sobre sua opinião sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado estar
de turnê nacional (ver Anexo K) se apresentando nas diversas capitais do país, e como os
brincadores mais jovens não tinham oportunidade de aprender figuras novas:

É pouco, porque por mais que os meninos estejam lá, queiram aprender alguma
coisa, é difícil. Porque não está botando uma figura completa. Aí como é que o
menino vai aprender? Vai aprender pela metade? É difícil. A não ser que chegue
perto de um mestre como pai, que tá, o Seu Martelo, e saia perguntando algumas
coisas pra aprender ali. Mas tem esse tempo, né? A vantagem é essa que tem esse
tempo, mas se for pra aprender também olhando, é difícil. Porque não bota a figura
completa, não faz o papel da figura completa. O tempo é pouco. (depoimento de

87
Acesso à biografia: Garoa, Boi da. ​Seu Martelo! 17 de setembro de 2015. Disponível em:
https://boidagaroa.wordpress.com/2015/09/17/seu-martelo/​. Acesso em 14 de junho de 2020.
88
Na atualidade, a presença desta figura no terreiro (que aparece no momento da morte do boi [no quebrar da
barra do dia] e que cumpre um papel importante para o encerramento da brincadeira) viu-se significativamente
reduzida até o ponto em que são poucos brincadores os que sabem ​colocar o ​Doutor da Medicina ​e seus
acompanhantes: o ​Pacaya,​ que vem trazer o livro da medicina e chega acompanhado do ​Fiscá e do ​Urubú.​ Este
último entra pelo ânus do boi e sai furando seu olho. Segundo seu Martelo, o ​Urubú veste umas penas pretas
com as partes de baixo e as pontas encarnadas. O bico dele é grande, comprido e preto. Também leva uma crista
de penas pretas, um capuz com dois buracos na altura dos olhos que cobre a cara do figureiro. (desenho
disponível em Anexo I).
94

Risoaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada de 11 de junho


de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Subsequentemente, este recorte significativo da duração das apresentações associado


ao seu potencial de monetização, propiciou a preferência dos grupos pelas apresentações do
tipo ​feijão-queimô em detrimento do formato tradicional de sambadas, que são cada vez mais
escassas. Deste modo compreendemos o dinheiro como elemento de destaque na relação
contemporânea dos brincadores com a brincadeira:

Acho que todo mundo está fazendo as coisas pelo dinheiro mesmo, acho que isso é a
verdade. Muitos que não diz, né? “Não, porque gosto da brincadeira, e tal e tal...”.
Não. Não é isso, é mais pelo dinheiro mesmo, né? E claro que o cabra gasta, corre
atrás e tal. Então tudo tem despesa, e hoje tudo é pelo dinheiro mesmo. Não é como
era no mundo passado, né? quando seu Inácio começou, seu Martelo, pai... tantos e
tantos. Ou eu mesmo, que eu sou da geração mais nova. Mas eu alcancei isso aí
ainda, da gente brincar o Cavalo Marinho pelo amor à brincadeira, e não o amor pelo
dinheiro, e hoje o povo está brincando pelo amor ao dinheiro e não pela brincadeira,
né? (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista
datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Como observamos, as relações entre o cavalo marinho e seus participantes também se


viram ressignificadas, uma vez que o conjunto de desejos e valores tradicionais associados ao
ato de brincar – antes relacionado ao prazer ou ao gosto de brincar –, hoje se vêem
influenciadas pelo objetivo de ganhar dinheiro. Citando caso análogo, Jamerson Roberto da
Silva (biografia disponível no Anexo D) reflete:

Brincar hoje pra ganhar vinte reais, cinquenta real. E ninguém sabe nem quando vai
receber… aí fica difícil! Que a pessoa não vai deixar de trabalhar pra chegar e
brincar cavalo marinho. Se eu não tiver fazendo nada e tiver cavalo marinho, brinco.
Agora, se eu tiver trabalhando, não vou deixar de trabalhar pra brincar, não. (excerto
da entrevista com Jamerson da Silva datada de 9 de junho de 2019, realizada em
Condado, Pernambuco).

De outro modo, a conjuntura atual do novo formato de apresentação, contribuiu para


uma padronização e homogeneização ​da brincadeira que atenuaram e limitaram as
subjetividades, marcas particulares e idiossincrasias de cada indivíduo e grupo à hora de
89
brincar. Exemplos disso são a presença do ​tombo do magüi na maioria de grupos atuais
(praticada, nos anos 70 por, no máximo, um ou dois grupos na Zona da Mata Norte de
Pernambuco), ou a invisibilização/ omissão de estilos diferentes de cavalo marinho (como o

89
Ver notas de rodapé da página 32.
95

cavalo marinho de bombo de Glória do Goitá), ou ainda a sistematização da chegada da figura


90
do Ambrósio no começo da brincadeira .
Por outro lado, esta homogeneização pode ser sintomática do fato de não haver o
conhecimento suficiente ou tempo para absorvê-lo, como reflete mestre Inácio Lucindo:
“​Quem não sabe, faz a mesma coisa do outro​”. Vimos este aspecto retratado numa das
múltiplas conversas com Minho, quando argumentou que atualmente o seu grupo, o Estrela de
Ouro de Condado, têm um déficit de técnica considerável, se comparado à forma de brincar
de três ou quatro décadas atrás (figuras, loas, diversidade de trupés, tombos e pisadas, entre
outros), e que isso se deve ao fato de não ter ensaios, das noitadas serem curtas, assim como
pela presença cada vez maior das apresentações reduzidas do tipo ​feijão-queimô.
Por último, também podemos vincular este apagamento dos traços característicos das
formas tradicionais pela influência de outros métodos de atuação que surgem do contato com
as artes cênicas:

Hoje, dentro do Cavalo Marinho, as pessoa tão trazendo muito treato (teatro) pro
Cavalo Marinho, né? O que Manezinho Salu diz: “munganga”. O povo faz muita
munganga dentro do Cavalo Marinho. No Cavalo Marinho tem munganga, mas não
tanto… e é munganga do Cavalo Marinho! Mas trazer munganga do triato (teatro)
pro terreiro, é que nem Manezinho mesmo diz: “só quem acha certo aquilo dali são
as pessoas de fora que não compreende, não entende.” (depoimento de Aguinaldo
Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada de 13 de junho de 2019
realizada em Condado, Pernambuco).

Em resumo, faz-se evidente que este novo formato de apresentação teve um impacto
significativo, não só sobre os aspectos formais da brincadeira, mas também sobre os
organizacionais, como veremos em seguida. Por outro lado, estas mudanças também tiveram
efeitos sobre vida dos brincadores/as e mestres/as de cavalo marinho que, ao agenciá-las,
beneficiaram-se da oportunidade de fazer da brincadeira um trabalho que lhes trouxe, além de
uma fonte de renda mais ou menos fixa, um reconhecimento de seus saberes e uma maior
popularidade. E também fomentando uma tomada de consciência coletiva sobre estas

90
Seu Ambrósio (ver p. 73) é uma figura que tanto pode chegar no início da brincadeira (ou episódio de
abertura) para vender ou ​brindar as figuras que irão aparecendo à medida que avança a noite, como na quarta
parte (ou episódio das figuras) onde, na parte de apresentar as figuras que ainda estão por vir, ele faz a função de
cobrador, pedindo o dinheiro que foi acordado com o Capitão em troca do serviço (empeleitada), e iniciando
uma briga com este último em consequência de sua recusa em lhe pagar.
96

mudanças, estimulando debates que problematizam ou reforçam estes processos de


91
transformação e permitindo-lhes forjar opiniões e ​projetos​ individuais .

Complexificação das formas de produção e organização da


brincadeira
Como conseqüencia do surgimento deste novo formato de apresentação sucinto e mais
acessível ao público geral, assim como da demanda por oficinas nas diversas capitais do país,
festivais de cultura popular, festas municipais e demais contextos diferenciados da tradicional
noitada ou sambada, percebemos uma concatenação de transformações nas formas de
produzir a brincadeira e os brinquedos, que podem ser resumidas em: (1) profissionalização e
especialização dos brincadores; (2) reestruturação do modelo organizativo dos grupos; (3)
institucionalização do cavalo marinho. Revisaremos cada um destes processos a seguir.

Profissionalização e especialização dos brincadores

Na atualidade, as condições necessárias para que um grupo de cavalo marinho (ou


qualquer outro tipo de prática espetacular) possa se apresentar se incrementaram, exigindo de
suas lideranças um conhecimento maior sobre processos burocráticos e metodologias de
projeto. Uma das possíveis causas desta realidade é, por exemplo, a exigência que os grupos
(coletivos) sejam registrados no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) ou,
alternativamente, que um dos encarregados da direção do grupo possua um registro de
Microempreendedor Individual (MEI) junto à secretaria de tributação da prefeitura, para
poderem receber um cachê mediante pagamento de uma apresentação, ou para se inscrever na
maioria dos editais e projetos promovidos pelo estado de Pernambuco, IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) ou FUNDARPE (Fundação do Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco), e demais órgãos e instituições, sejam estas públicas ou
privadas.

91
Entendemos o ​projeto individual ​como intenções, propósitos e desejos pessoais que lidam com “a
performance, as explorações, o desempenho e as opções, ancoradas a avaliações e definições da realidade”
(Velho, 1994, p.28).
97

Como consequência destas demandas de formalização, nos grupos de cavalo marinho


observamos um aumento e segmentação dos cargos de responsabilidade, instituindo-se
funções que antes não existiam, como as de presidente, tesoureiro (das associações ou
coletivos), gestor, produtor, técnico (microempreendedores). Estas posições de gestão
administrativa e profissionais vieram, como veremos mais tarde, substituir as lideranças do
modelo tradicional (donos, capitães ou mestres) ou, pelo menos, suscitar tensões junto às
lideranças.
Este fato aponta para uma profissionalização dos brincadores de cavalo marinho da
cidade de Condado que podem combinar uma função específica na organização do brinquedo
92
com um papel dentro da brincadeira, ou seja, no desempenho da trama dramática . E é o que
se verifica nas diversas entrevistas realizadas para este trabalho, onde a maioria dos e das
interlocutores/as se definem como “artistas” ou trabalhando na “cultura popular”,
independente da função ou papel que ocupam dentro do grupo.
Respondendo às demandas do mercado local de arte e cultura e atingindo um maior
público através de mais apresentações, muitos fazendo do brinquedo o seu trabalho ou sua
profissão, tal como reflete Pinone:

Antes não tinha esse negócio de estar brincando pra governo! Era na casa dos povo
brincando... E foi passando um tempo... Graças a Deus foi aumentando a burocracia,
eu também fui me envolvendo com essas coisas, né? E eu estava até conversando
com Pedrinho (Salustiano) hoje: “Graças a Deus que mestre Biu, teve você!”
(depoimento de Risoaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada
de 11 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Como dizíamos, estas dinâmicas exigiram uma série de atualizações e especializações,


sobretudo para os líderes e/ou administradores dos grupos. Porém, este fenômeno não se deu
de forma genérica, havendo muitos casos de capitães/donos/mestres de brinquedo com
dificuldade de absorver e executar tais demandas, sobretudo aqueles com idade mais
avançada, frequentemente analfabetos, ou com pouco/ nenhum apoio dos familiares e
brincadores que, usualmente, pedem ajuda e orientação a pessoas de outros grupos com este

92
Distinguimos entre função e papel para conseguir diferenciar as tarefas de desempenho logístico organizativo
(dono, presidente, gestor, produtor, tesoureiro) das atividades que se executam no terreiro (seja no banco, como
figureiro, na galantaria, etc). É comum que um mesmo integrante exerça e combine ambas tarefas: um papel
dentro do terreiro e uma função fora deste. Porém, existem casos onde as pessoas que exercem funções logístico
organizativas do grupo não têm necessariamente um papel na brincadeira ou, inclusive, sabem brincar. No
segundo caso poderíamos falar não só de uma profissionalização, mas também de uma especialização das tarefas
e entre os integrantes do grupo.
98

tipo de habilidades e conhecimentos. Deste modo se articula uma rede de assessoria e suporte
muito positiva para o coletivo de brincadores.
Encontramos um exemplo disso na interlocução a seguir, onde Pinone narra a situação
93
de Seu Luiz Paixão no processo de registro do seu brinquedo:

Eu disse, “Luíz, vamos fazer seu documento, pôxa! Eu resolvo a ata, e o estatuto eu
faço em casa, e a gente vai lá no contador e faz lá!”. Ele “ôxe, eu lá quero saber de
documento! Se eu brincar, eu brinco, se eu não vou brincar…”. Mas aí quando ele
viu a coisa apertar mesmo, aí ele veio aqui semana passada, “Bora, Pinone! Eu vou
fazer meu documento.”. Aí eu disse: “vá lá no contador.”, ele perguntou onde era e
eu disse. Ele foi lá. Aí o contador mandou ele voltar praqui, mandou eu fazer a ata e
o estatuto dele pra levar pra lá, só pra adiantar, né? Aí eu disse a ele: “Deixe passar
esse negócio de São João, traga o nome do povo que você quer botar na diretoria pra
gente fazer a ata e o estatuto!”. Porque eu já tenho aqui pronto, eu só faço mudar
quando chega alguma pessoa da diretoria, aí eu faço pra ele e ele desenrola. Mas
num instante correu atrás! Eu sei; não é fácil, não é fácil. [...] Ele tem o grupinho
dele que é Pimenta com Pitú, e tem o Cavalo Marinho. Eu disse a ele: “você pode
juntar os dois num estatuto só, pode juntar os dois”. Mas ele disse que já tem o do
Pimenta com Pitú, disse que não ia misturar não. Aí eu disse a ele “Mas a Pimenta
com Pitú, tu tá como pessoa física, tu botando no estatuto tu vai ficar como pessoa
jurídica também, é melhor pra tu!”. Aí ele disse que depois via isso. É porque ou o
cabra corre atrás pra fazer essas coisas, ou não (pausa) e eu disse a ele, eu digo:
“Olhe, manter contador, manter conta em banco, meu amigo... pra quem brinca uma
vez no ano é complicado” (depoimento de Risoaldo Roberto da Silva concedido ao
autor em entrevista datada de 11 de junho de 2019 realizada em Condado,
Pernambuco).

Um caso análogo teria ocorrido durante os meses de pesquisa de campo para a


posterior elaboração deste trabalho, quando mestre Aguinaldo ofereceu-nos a possibilidade de
administrar e resolver a parte burocrática do grupo Estrela do Oriente, hipoteticamente sob a
gestão de Seu Inácio Lucindo, mas que dada sua incapacidade de lidar com papéis, registros e
documentações junto com um estado transitório de desgosto e desencantamento, alertou os
brincadores mais próximos do mestre levando-os à procura de possíveis soluções. Para
explicar melhor este acontecimento, faremos uso do diário de campo do autor:

Querem registrar o cavalo marinho de Seu Inácio no meu nome, para que assim
possa participar no próximo encontro de cavalo marinho na Casa da Rabeca (Cidade
Tabajara, Grande Recife). Também me oferecem a oportunidade de gerenciar e
administrar o grupo (para registrá-lo, inscrevê-lo em editais, etc.). Isto faz-me pensar
sobre a situação delicada do Cavalo Marinho Estrela do Oriente (Seu Inácio
Lucindo) e sobre como isso alerta e aciona a maioria dos brincadores mais próximos
à ele, especialmente Aguinaldo. Me pergunto porque é que Aguinaldo não assume,
ele mesmo, o brinquedo de Seu Inácio? Depois compreendo que Aguinaldo se
colocaria numa posição um tanto delicada, assumindo sua gestão. Não só pela pouca
familiaridade que ele tem com as funções de organização e produção do grupo, mas
por ele ter uma responsabilidade e um comprometimento com o Cavalo Marinho

93
Acesso à biografia: Muniz, Erica. ​A terra que deu Mestre Luiz Paixão​, 1 de ago. de 2017. Disponível em:
https://www.revistacontinente.com.br/secoes/perfil/-a-terra-que-deu-mestre-luiz-paixao​. Acesso em 14 de junho
de 2020.
99

Estrela de Ouro de Condado: o fato dele assumir o Cavalo Marinho de Seu Inácio,
poderia desencadear fortes críticas por parte dos integrantes dos dois grupos. (trecho
datado de 2 de junho de 2019, Condado, Pernambuco).

Outro fator da especialização das funções organizativas é o fato destes grupos terem
que buscar recursos através dos quais projetar e escrever os projetos que irão garantir a
participação de seu grupo nos diversos editais. O que o mesmo Pinone explica:

Quando eu comecei a escrever, já foi com a ajuda dos outros, eu não sabia de nada,
né? E chegou um produtor e perguntou se podia inscrever. E eu disse “Pode!”. Fez o
projeto. Ainda bem que ele deixou comigo, foi um cabra bom, deixou comigo. Aí no
próximo ano eu já fui fazendo mais a menina [filha de Pinone] (depoimento de
Risoaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada de 11 de junho
de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Um terceiro aspecto desse conjunto de ações profissionalizantes decorrentes contexto


das apresentações do tipo ​feijão-queimô,​ é a cada vez mais necessária presença de pessoas
com algum tipo de conhecimento técnicos sobre som, por tal de conseguir amplificar
devidamente a música e os diálogos durante as exibições, adaptando a brincadeira ao palco ou
outros contextos adversos ao formato tradicional onde podem compartilhar o espaço com
diferentes atrações (praças públicas, galpões, teatros, entre outros), questão sobre a qual
Aguinaldo disserta de forma crítica:

Outra coisa que eu acho muito chato, é ter uma festa numa brincadeira e a prefeitura
colocar o trio elétrico na festa, não tenho nada contra porque a turma jovem, ou
turma idosa também precisa se divertir, eles têm o direito. O que eu sou contra é
deles colocar um trio elétrico no espaço da festa e com uma distância de 30, 40
metros mais ou menos, colocar uma ciranda, cavalo marinho, ou outras brincadeiras.
Eu estou dizendo isso porque isso aconteceu várias vezes com a gente, certo, e aí,
isso acaba com a brincadeira, porque imagina uma tonelada de som com a equipe é
cinco pessoas no banco com aqueles instrumentos, sem som, sem microfone, sem
nada, as pessoas não ouve nada, né? Nem a gente mesmo entende e atrapalha a gente
(depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada
de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Outro aspecto que nos serve para evidenciar a complexificação das formas de
produção da brincadeira que abriram espaço para a multiplicação e fragmentação das tarefas e
exigiram uma especialização por parte dos integrantes do grupo é o aumento de turnês e
viagens de longa duração a outras cidades e países aos quais se sujeitam alguns mestres e
grupos em decorrência da demanda de oficinas, apresentações e projetos colaborativos com
94
companhias teatrais . Este tipo de empreendimento requer uma maior sofisticação das
logísticas de transporte, tanto para os integrantes do grupo como para os materiais e

94
Referências sobre estas viagens nos Anexos J e K.
100

instrumentos que serão utilizados nas apresentações. Estas logísticas devem levar em
consideração e satisfazer ao máximo as necessidades individuais e coletivas do grupo, que
diferem e variam amplamente segundo a idade do brincador, a duração da viagem, o lugar de
destino, etc. Neste contexto, os seguintes depoimentos apresentam-se-nos como
auto-avaliações críticas da experiência destas viagens à trabalho:

É bom. A gente aprende muito com isso, e também, olhe; vida de viajante não é
nada fácil. É muito fácil de olhar a sua vida, de olhar você, porque você está
viajando, que vai pra um canto, vai pra outro, passa uma semana fora, quinze dias,
um mês, dois meses...Pra quando você chegar na sua cidade, olha a sua vida, né?
Mas quem sabe o que você passou foi você. Então quando estou viajando, eu sei o
que passo: passo mais coisa boa do que ruim... O ruim que eu falo é assim: aeroporto
é muito chato, né? Ficar sozinho nos cantos. Por mais atenção que a pessoa dá a
você, certo? Trata você como se você fosse um grande artista, né? Mas o cara está
sozinho no lugar, meu amigo... é chato! Porque não tem ninguém pra conversar, isso
já aconteceu algumas vezes comigo, já. Uma coisa que é muito bom é o respeito que
as pessoas têm comigo, e eu tenho com as pessoas também, e isso é muito bom.
(depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada
de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Outro exemplo poderia ser este extrato do diário de campo do autor que remete a uma
extensa conversa com Seu Luiz Paixão:

Durante a visita conversamos sobre as dinâmicas do grupo quando saísse de viagem.


Ele fala a respeito de uma turnê de seis meses de duração que fez com o grupo Grial,
(espetáculo “A Barca”, SESC Palco Giratório, 2012) e de como era difícil lidar com
18 pessoas, com as quais normalmente não convivia e que teve, inclusive, que
intervir e acalmar uma pessoa num mal entendido que aconteceu durante uma das
viagens, para que deixasse de causar problemas. (trecho extraído do diário de campo
do autor datado de 9 de maio de 2019, Condado, Pernambuco).

Um derradeiro caso se encontra neste outro excerto do nosso diário de campo em


conversa com Seu Martelo (anexo B) e Dona Didi, sua esposa.

Assim que Seu Martelo termina de costurar, nos dispomos a dar um passeio pelas
ruas próximas à sua casa (detalhe: Seu Martelo anda sempre com a faca-peixeira no
cinto). Ele me conta sobre suas viagens, sobre uma oficina que deu em Condado (na
sede do Estrela de Ouro), e que as crianças riram dele. Sobre sua relação com o
espetáculo “A Barca” (2012), que apresentou em 55 cidades do Brasil, ensaiaram 3
meses. Ao ter 3 idosos (Martelo, Biu Alexandre e mestre Inácio Lucindo) a duração
da turnê teve que diminuir consideravelmente (de nove para seis meses). Seu
Martelo já se apresentou na Alemanha, no ano da copa (2014). Aquela mesma tarde,
já em casa, Dona Didi me conta sobre as vivências do seu marido durante as
viagens, fazendo um comentário sobre uma pequena bronca que Aguinaldo deu em
Seu Martelo, num dos múltiplos aeroportos quando, distraído, ficou para trás e
perdeu-se do resto do grupo, causando alvoroço e preocupação nos demais membros
do grupo. Dona Didi repreende Seu Martelo, insistindo em que deve ficar sempre
alerta para não se perder do resto do grupo, pois não têm celular para poder
localizá-lo e diz que se isso acontecesse, “seria uma desgraceira, vai ficar sozinho no
aeroporto, sem poder voltar pra casa e sem comida”. Logo, reflito sobre o
extraordinário que é, na verdade, o fato de gerir essas turnês com um grupos
101

integrados por idosos e jovens; faixas etárias com necessidades e requerimentos tão
distintos. (trecho do diário de campo do autor datado de 9 de maio de 2019,
Condado, Pernambuco).

Reestruturação do modelo organizativo dos grupos

No contexto tradicional da brincadeira, quem geralmente ocupa as posições de


95
liderança são os donos/capitães/mestres do brinquedo, que tanto se encarregam das funções
de organização inerentes à brincadeira (gestão de sua economia, contratação e condução das
apresentações, abastecimento dos materiais indispensáveis para a execução das sambadas,
recrutamento de brincadores, entre outras) como da transmissão dos saberes específicos da
mesma. Por outro lado, era muito comum que a pessoa que possuísse o brinquedo também
96
assumisse o cargo de mestre, como no caso de mestre Batista ou de mestre Biu Alexandre.
Usualmente, os vínculos entre mestres e aprendizes se inscreviam em relações de
poder definidas pela experiência na brincadeira, onde eram comuns as reprimendas e
correções dos mestres através de pedagogias rigorosas e um tanto inflexíveis. A modo de
97
exemplo, vemos um comentário de Pedro Salustiano sobre o costume de mestre Antônio
Teles de deter a brincadeira e apontar, com o seu bastão, para aquilo que precisava ser
corrigido, aproveitando a intervenção para dar conselhos aos participantes.

Porque cavalo marinho é o seguinte, em tudo falta uma perninha. Falta uma perna
em figureiro, falta uma perna em Mateus, falta uma perna no banco, no toadeiro, em
tudo falta uma coisinha. [...] Porque cavalo marinho tem que ter ordem, quando eu
levantei [o Estrela de Ouro] tinha um pouquinho de ordem: “êpa! é assim, é assim, é
assim mesmo!”. Não é só ver, têm que reclamar, chamar o homi (homem) pro pé da
conversa: “É assim, é assim, é assim. Quem quis, quis. Quem não quis, corra!”

95
Os nomes que as lideranças ou representantes dos grupos de cavalo marinho recebem, no contexto tradicional,
foram-se modificando com o tempo, absorvendo novas nomenclaturas e deixando outras em desuso. Como
argumenta Aguinaldo: “Cavalo Marinho nunca teve mestre, Cavalo Marinho tinha capitão, né? O cabra chegava
e perguntava:,“-Quem é o capitão?”, tipo: quem é o dono da brincadeira? Quem botou esse nome de mestre
realmente foi as pessoas que vêm pesquisar.” (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em
entrevista datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco). Não obstante, ao nos referirmos a
este tipo agente (líder de grupo) “tradicional”, faremos uso do conjunto de terminologias.
96
Severino Lourenço da Silva, mais conhecido como Mestre Batista, nasceu em 1932 no município de Aliança,
Pernambuco, onde faleceu no ano de 1991. Suas contribuições ao cavalo marinho contemporâneo são notáveis,
dado que se verifica pela decorrência de sua morte e a consequente dissolução do seu grupo, quando muitos de
seus brincadores se tornaram mestres de cavalo marinho – como o próprio Mestre Biu Alexandre (Cavalo
Marinho Estrela de Ouro) ou Mestre Grimário (Boi Pintado de Chã de Esconso) –, formando diversos grupos
que prosseguiram o legado e o estilo de Batista.
97
Que tivemos a oportunidade de registrar durante uma reunião de mestres e mestras de cavalo marinho em 09
de junho de 2019 em Condado, Pernambuco.
102

(excerto da entrevista com mestre Biu Alexandre em depoimento concedido ao autor


em entrevista datada de 20 de maio de 2019, realizada em Condado, Pernambuco).

Ainda um traço característico deste modelo de liderança é sua capacidade de agregar


pessoas através de suas habilidades de negociação, expresso no seguinte relato sobre um
encontro de Biu Alexandre com mestre Batista:

Eu trabalhava na Usina Aliança de tratorista, aí terminou que [...] na hora que eu fui
receber, Batista tava na usina. E aí ele falou: “E ai, rapaz! Vai brincar comigo ou
não?”. Eu já tava me aprontando sem saber, né? Eu disse, “Vou não, Seu Batista, eu
não sei… eu tive olhando o [cavalo marinho] do senhor e é muito diferente do que
eu brinco”. [Batista responde] “Nada rapaz, hoje a gente brinca de todo jeito, hoje a
gente brinca do jeito que o povo quer”. Aí ficou, conversou mais eu, conversou,
conversou… Aí eu digo assim, ôxe! Ai fiquei muito contente. (excerto da entrevista
com mestre Biu Alexandre em depoimento concedido ao autor em entrevista datada
de 20 de maio de 2019, realizada em Condado, Pernambuco).

Como podemos observar na sentença de Batista – que por sinal dá título a esta
dissertação –, o desejo do mestre de fazer a brincadeira acontecer deixa em segundo plano a
questão estética e política da diferença entre estilos, alegando que o importante não é só
brincar, mas fazê-lo com o propósito de agradar e alegrar o público e os membros que
98
participam da brincadeira .
99
Em última análise, considerando o vasto ​capital social que estes
donos/capitães/mestres acumulam ao longo de sua carreira, somado à responsabilidade que
supõe o desempenho das tarefas acima mencionadas, compreendemos que estes líderes gozem
de uma ampla condição de respeitabilidade dentro do seu contexto local e que, inclusive,
tendam a desenvolver atitudes centralizadoras no que diz respeito à brincadeira.
Entretanto, ao longo destes últimos 20 anos, um novo modelo de organização e de
liderança dos grupos de cavalo marinho têm ganhado espaço e protagonismo. Por um lado
este modelo está vinculado ao renovado padrão de produção e às transformações do contexto
social local, levando a uma reestruturação do modelo organizativo das lideranças, capazes e
capacitadas para contornar as múltiplas demandas que o cavalo marinho contemporâneo
encontra.

98
Cabe inferir que na época em que este episódio teve lugar, mestre Batista já era uma referência para os
brincadores de cavalo marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco, enquanto mestre Biu Alexandre ainda se
encontrava em processo de consolidar seu título como contramestre. Neste contexto, é importante frisar que
neste acontecimento a relação que se estabelece entre os dois indivíduos está fortemente marcada pelo ​status que
cada um ocupa dentro da brincadeira.
99
Entendemos ​capital social ​como “o agregado dos recursos efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede
durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento ou reconhecimento mútuo” (Bourdieu,
1986, p.21).
103

Com o intuito de caracterizar este novo modelo organizativo, iniciaremos nossa


análise identificando suas possíveis causas, fato que contribuirá para uma posterior
compreensão dos seus efeitos sobre os grupos e o coletivo de brincadores.
A primeira dessas causas está relacionada à multiplicação, complexificação e
consequente fragmentação das tarefas de produção da brincadeira que, como vimos,
produziram um maior número de cargos administrativos semi-especializados, exigindo dos
indivíduos que os ocupam, uma alfabetização mínima, noções básicas sobre gestão de
empresas e de pessoas, experiência com redes de comunicação abrangentes via internet ou a
manipulação de computadores e outros dispositivos eletrônicos. Cabe salientar que, neste
enquadramento, o modelo de liderança “exclusivo” (onde o poder de decisão se concentra
num único indivíduo) apresenta limites para assimilar a proliferação de responsabilidades
exigidas pelo novo formato de apresentação e produção da brincadeira.
A segunda causa se vincula às transformações de cunho relacional que experimentam
as sociedades complexas contemporâneas, onde os indivíduos “estão expostos, são afetados e
vivenciam sistemas de valores diferenciados e heterogêneos” (Velho, 1994, p. 39). Durante os
três meses de campo em Condado, estas transformações foram perceptíveis através das
atividades de entretenimento e lazer, que não só eram múltiplas e diversas (empinar pipa, dar
passeios de bicicleta, jogar dominó nos bares, futebol…) como se projetavam para o consumo
individual (consumo de TV, vídeo game, celulares e computadores, principalmente).
Se a tudo isto somarmos a diminuição do tempo disponível para brincar – sendo
explicada pelo aumento das atividades que os indivíduos, independentemente da idade,
desempenham ao longo do dia ou da semana (trabalho, viagens, escola, dentre outras) –, a
condição exigida por muitos participantes em “idade ativa” de brincar em troca de um cachê
garantido, – como vimos no caso de Minho –, e a atenuação da influência e controle que os
mestres tinham sobre seus aprendizes, podemos ver a dificuldade de donos/capitães/mestres
em conseguir novas adesões e manter a assiduidade dos membros do grupo.
Por outro lado podemos perceber, nas apreciações a seguir sobre a situação atual da
100
brincadeira feitas pelo mestre Inácio Lucindo e mestre Biu Alexandre, uma aceitação do
processo irrevogável de transformação da brincadeira que, mesmo sendo uma forma de
resignação, é um passo fundamental na vida de qualquer brincador: ​“hoje é assim mesmo, (​ os

100
Em entrevista concedida ao autor em 26 de junho de 2019, realizada em Ferreiros, Pernambuco.
104

brincadores mais jovens) ​tão queimando tudo mas tão achando bonito... hoje é tudo dissipado
101
!”,​ ou:

O cavalo marinho eu quero é assim: “ou faz ou não brinca”. Ou-faz-ou-não-brinca


hoje em dia corre tudim. Então hoje têm que deixar do jeito que eles querem. É o
que Batista dizia: “hoje a gente brinca do jeito que o povo quer!”, porque é assim
mesmo! (excerto da entrevista com mestre Biu Alexandre datada de 20 de maio de
2019, Condado, Pernambuco).

Antes responsáveis pela maioria das funções de produção, organização e transmissão


do brinquedo, estes donos/capitães/mestres hoje são reconhecidos, quase exclusivamente, pelo
seu papel como detentores do saber da brincadeira. Todavia, se temos em conta que os
contextos de repasse dos saberes também estão se modificando, podemos compreender que a
maioria destes donos/capitães/mestres (sobretudo brincadores de idade mais avançada que
experimentam ou experimentaram estas transformações) se sentem parcialmente ameaçados à
medida que percebem que seu papel na liderança dos grupos diminui. Segundo mestre
Aguinaldo:

Eu acho que o mestre pensa que aquela pessoa vai tomar o espaço dele. Ninguém
toma o espaço de ninguém, cada pessoa tem o seu espaço, cada pessoa tem aquele
espaço livre, tem que conquistar seu espaço. Agora, o problema do mestre é não ter
conhecimento, não ter leitura. Internet pra gente é bicho brabo, então precisa de ter
uma pessoa que entenda o que é computador, bulir na internet, pra correr atrás de
projeto. E como o mestre não tem esse conhecimento, aí invés de ele ajudar, ele vai
criticar (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em
entrevista datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Por outro lado, podemos perceber que os brincadores e mestres mais jovens (que na
atualidade beiram os 50 anos de idade, como é o exemplo de mestre Aguinaldo e mestra Nice)
estão desenvolvendo outros formatos de liderança que pouco ou nada têm a ver com o
arquétipo do mestre rigoroso e centralizador que viemos expondo: mestres/as com pedagogias
que se adaptam às novas dinâmicas e dimensões do consumo de arte e cultura global, que
dialogam com as demandas das gerações mais novas e que visam integrar as pessoas que, não
pertencendo à tradição, se aproximam e se interessam da brincadeira com desejo de aprender
e participar dela.
Consequentemente, contemplamos o surgimento de lideranças que moldaram seu
papel de acordo com o contexto; se agenciaram das adversidades adjacentes a estas

101
Querendo dizer que está desaparecendo por causa de um espalhamento, que provavelmente derive da “falta de
ordem” na organização dos grupos causada pela diluição da liderança tradicional.
105

102
transformações através de um processo de ​metamorfose , apropriando-se do lugar que lhes
corresponde na ulterior segmentação de funções e cargos organizativos e assumindo um papel
de responsabilidade “sui generis” de onde poder repensar, adaptar ou afinar as formas e
contextos em que o cavalo marinho se aprende e é passado adiante. Encontramos uma
possível representação disso na interlocução à seguir:

Então, eu sempre conscientizava eles dessa forma, dizia “Olhe, o artista, ele tem que
ser o artista com e sem o dinheiro. Você tem que ser você, você tem que demonstrar
ao mundo o que você é, o que traz no sangue. Artista, e é cultura popular, é a
tradição que está dentro de você que lhe move, e não 10, 20, 30, 100 reais que lhe
mova. Porque nem sempre a gente vai estar com esse dinheiro”. E hoje a gente vê
que se fosse pelo dinheiro a cultura já tinha... a tradição já tinha dado uma caída,
porque a gente vê a dificuldade que é o tempo de quando a gente brinca, pra poder a
gente receber, né? Então eu acredito que a conscientização anterior ajuda muito pra
que eles viessem a ter essa paciência de estar dentro do brinquedo, mesmo tendo
essa distância tão longa de poder ser ressarcido. [...] Então a nossa vida, ela mesmo
faz a transmissão do saber, a nossa luta, a nossa labuta diária, ela consegue
transmitir isso pra nós e da gente pra outras pessoas, entendeu? E eu sempre tenho
dito, não basta só dançar, mas é preciso mergulhar de corpo e alma dentro do
universo, né? (excerto da entrevista com mestra Nice datada de 30 de junho de 2019
realizada em Condado, Pernambuco).

Institucionalização do cavalo marinho

Este contexto atual de transformações e suas respectivas implicações no que diz


respeito à complexificação das formas de produção e organização dos grupos de cavalo
marinho parecem favorecer o surgimento de um modelo de representação comum para todos
os grupos e estilos de cavalo marinho, através do qual podem manifestar as diversas
reclamações, petições, dúvidas, interesses e necessidades do coletivo, tornando-as ostensivas
e visíveis aos olhos de organismos de salvaguarda e outros órgãos de apoio institucional.
Por outro lado, este novo modelo de representação visa proporcionar uma base
associativa e de cooperação entre brincadores/as, facilitando o auxílio e a assessoria aos
grupos com menos recursos, ou seja daqueles que têm mais dificuldades para se atualizar ou
que estão em processo de formação.
Faz-se difícil distinguir um ponto de partida específico que dê lugar ao surgimento do
processo de institucionalização da brincadeira pois, como vimos ao longo desta dissertação, o

102
Segundo G. Velho (1994, p.46), a ​metamorfose se refere a um trânsito ou circulação entre papéis, dimensões e
esferas simbólicas diferentes, permitindo que os indivíduos estejam sendo permanentemente reconstruídos, assim
como o próprio processo de construção social da realidade se modifica através da interação entre sujeitos.
106

103
cavalo marinho se compreende como tal, no mínimo, desde 1871 . No entanto, num esforço
para localizar os primórdios desta faceta institucional da brincadeira, poderíamos referenciar
os Encontros de Cavalo Marinho que acontecem na Casa da Rabeca (Cidade Tabajara, Olinda,
104
PE), fundada em 21 de abril de 2002 , congregando uma quantidade significativa de grupos
(geralmente da Grande Recife e da Zona da Mata Norte) para sambar nas noites do 25 de
dezembro e do 6 de janeiro de cada ano.
Estes encontros promovidos pela família Salu (descendentes de Manuel Salustiano
Soares, mais conhecido como Mestre Salustiano), têm efeitos ambivalentes e, por vezes,
controversos. Se bem é certo que, por um lado, atuam como ponto de estímulo e convergência
entre brincadores, dando visibilidade e incentivando o formato de sambada – sendo um dos
poucos espaços onde podemos vivenciar a brincadeira no seu formato de apresentação
tradicional, que vai desde a “boca da noite” até o “quebrar da barra do dia”–, por outro lado
também colaborou no processo de espetacularização da brincadeira, uma vez que, a modo de
exemplo, cadeiras são colocadas estrategicamente ao redor da roda com o intuito de que os
espectadores assistam a performance de forma mais confortável e por mais tempo,
procedimento que, a parte de se diferenciar claramente do formato tradicional de apresentação
– onde o espectador comparece a noite toda de pé ou, caso contrário, vê-se obrigado a se
sentar no chão – , aporta outras conotações ao ato de acompanhar e participar da brincadeira.
Todavia, a iniciativa da família Salu, têm trazido questões muito positivas no que diz
respeito ao fortalecimento do sentimento de unidade dentro do coletivo de brincadores/as.
Como reflete Natan:

Eu sempre lembrava daquelas noitadas lá, de pegar de 9 horas até o arraiá do dia. A
primeira vez que eu fui pra Casa da Rabeca e peguei a noite toda, não imaginaria
que havia tanta figura dentro do cavalo marinho. Eu fiquei meio espantado, né?...
Assim... fiquei surpreso naquela hora das músicas, de ver outros cavalos marinhos
também. Então foi uma coisa nova pra mim que deu mais propulsão ainda a esse
interesse do cavalo marinho (depoimento concedido ao autor em entrevista datada de
10 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Contudo, ainda aspiramos associar o processo que aqui chamamos de


institucionalização ​da brincadeira a um evento específico assinalável no tempo: o

103
Ano do registro mais antigo conhecido pelo nome de “cavalo marinho”, e que faz referência a uma
brincadeira praticada por pessoas negras escravizadas num engenho de Alagoa Seca, nas redondezas de Nazaré
da Mata. (IPHAN, 2013, p. 118, 119).
104
Mais informação sobre os Encontros anuais de Cavalo Marinho em:
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2019/12/tradicional-encontro-de-cavalo-marinho-na
-casa-da-rabeca-completa-25.html​. Acesso em 16 de junho de 2020.
107

reconhecimento do cavalo marinho como patrimônio Cultural Brasileiro outorgado pelo


IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no ano 2014 (ver anexo M).
Influenciada pela conquista deste registro de patrimônio imaterial nacional, surgiu cinco anos
mais tarde a Associação de Cavalo Marinho, com a premissa de se tornar um órgão que
represente e proporcione estabilidade e visibilidade aos grupos e brincadores/as de cavalo
marinho, propondo uma série de objetivos e demandas que dialogam com a maioria das
transformações aqui analisadas e garantindo uma a continuidade do cavalo marinho.
Na etapa de gestação, as metas da Associação aderiam às “indicações de medidas a
serem adotadas” para a sua continuidade e sugeridas no dossiê do Inventário Nacional de
105
Referências Culturais do Cavalo Marinho . Não obstante, com o passar do tempo e a
consolidação do projeto, algumas delas foram modificadas ou abandonadas segundo as
necessidades do coletivo de brincadores. Como resultado deste esforço coletivo, percebemos
um maior grau de autonomia e capacidade de decisão por parte dos participantes que exigem,
de forma assertiva, um maior grau de​ envolvimento e participação por parte do poder público.
106
Na atualidade, estas metas e propósitos são : (1) sensibilizar as prefeituras
municipais sobre a necessidade da efetivação de políticas culturais locais específicas para o
cavalo marinho; (2) promover encontros de mestres/as e grupos de cavalo marinho; (3) exigir
dos órgãos a reformulação dos cachês pagos e do formato das apresentações, estimulando
assim as sambadas ou noitadas nos terreiros dos grupos; (5) articular a construção/criação de
sedes para os grupos; (6) reivindicar o reconhecimento profissional dos mestres e brincadores,
bem como sua aposentadoria; (7) inserir a arte de brincar cavalo marinho nas escolas públicas,
estimulando o interesse das novas gerações pelo brinquedo; (8) organizar um acervo
documental (banco de dados) que preserve materiais de pesquisa e informações sobre grupos
e brincadores de cavalo marinho; (9) promover a continuidade das formas tradicionais de
transmissão de conhecimento associadas à brincadeira (salvaguarda dos saberes dos mestres);
(10) facilitar trâmites burocráticos para o acesso a verbas públicas (11) monitorizar a
quantidade e qualidade dos grupos que existem e os que estão sendo criados.

105
Capítulo 5: A brincadeira tem que continuar… Recomendações de salvaguarda do Cavalo-Marinho (IPHAN,
2013, p. 155 - 166). Neste capítulo vemos uma análise atualizada da situação contemporânea do cavalo marinho,
trazendo consigo uma coleta de demandas e medidas propostas pelos próprios participantes da brincadeira assim
como pelos órgãos e instituições de salvaguarda e financiamento do patrimônio material e imaterial de
Pernambuco (IPHAN e FUNDARPE principalmente).
106
Pelo que pudemos documentar nas duas reuniões da Associação que tiveram lugar em Condado, Pernambuco,
nos dias 19 de junho e 21 de julho de 2019.
108

107
Na atualidade a Associação de Cavalo Marinho e seus membros constituintes
trabalha para a articulação de todos em torno de cada um destes pontos, ganhando uma maior
visibilidade e reconhecimento tanto entre os grupos de cavalo marinho como entre as
instituições municipais, estaduais e nacionais, mantendo reuniões periódicas e estando
prevista a construção de uma sede própria em 2020, que estará localizada no Bairro
Loteamento São Roque (Condado, Pernambuco) em terrenos cedidos pela prefeitura da
cidade. Embora possamos identificar uma série de conquistas levadas a cabo pela Associação,
certos aspectos do projeto devem ser problematizados.
Por exemplo, observamos que a liderança da Associação recai não por acaso, sobre os
grupos, famílias e indivíduos com uma capacidade comunicativa e organizativa mais
108
desenvolvida e, em alguns casos, com melhores condições econômicas . Neste aspecto, estes
109
grupos, famílias e indivíduos passaram a ter um poder de decisão maior do que outros
(grupos menores, menos influentes ou organizados), incentivando uma desconfiança palpável
e crescente destes últimos para com a Associação como órgão representativo dos seus
brinquedos.
Neste aspecto, podemos contemplar como o estabelecimento da Associação de Cavalo
Marinho, reforça a intenção de unificar a brincadeira num todo representável, embora o
cavalo marinho continue se mostrando heterogêneo e disseminado, revelando sinais de
capilarização constantes, tanto através dos seus múltiplos e variados estilos como nos
interesses e objetivos divergentes, dando margem a conflitos e processos de negociação entre
seus participantes. A nosso ver, isto ratifica a dinâmica fluida e multifacetada da brincadeira,
fazendo improvável, por ora, sua institucionalização definitiva.

107
Pedro Salustiano (Presidente), Risoaldo Roberto da Silva (Vice-presidente), José Grimário da Silva (assistente
de presidência).
108
Boi Matuto da Família Salu (Olinda - PE); Estrela de Ouro da Família Silva (Condado - PE); Boi Pintado de
mestre Grimário (Aliança - PE).
109
Como o Boi Ventania do mestre João Picica (Feira Nova, PE); Estrela do Oriente de mestre Inácio Lucindo
(Ferreiros - PE); mestre Aicão (Araçoiaba - PE).
109

Novos contextos para a transmissão de saberes do cavalo


110
marinho
Retomando o fio argumentativo do subcapítulo sobre a reestruturação dos modelos
organizativos da brincadeira (onde apontamos para o surgimento de um novo modelo de
ensino e aprendizagem da brincadeira), apresentamos agora alguns pontos que caracterizam
de modo incipiente o contexto de transmissão dos conhecimentos relativos ao cavalo marinho.
Acreditamos que esta análise seja imprescindível para compreender os motivos e as dinâmicas
que têm implementado o processo de transformação da brincadeira pelo qual nos interessamos
aqui, apesar de não nos entretermos numa análise detalhada dos pontos aqui propostos por
limites de tempo e espaço nesta dissertação.
Dito isto, seguiremos fazendo uso das falas e intervenções dos interlocutores e
interlocutoras que nos acompanharam até agora, acreditando na extraordinária expressão dos
mesmos, revisando antes de mais nada, o desempenho dos mestres em relação às formas de
transmissão de conhecimentos no contexto “tradicional” da brincadeira.
Coletivamente reconhecidos como responsáveis pelo ensino e aprendizagem dos
valores socioculturais e simbólicos imbuídos na brincadeira, os mestres detém também uma
autoridade de detentor de conhecimento. Assim, o processo de aprendizado se dava de forma
continuada ao longo “de toda uma vida” de contato com a brincadeira e dependia do acúmulo
de experiências decorrente da ​presença e da ​relação constantes do mestre com a brincadeira,
dois aspectos que são condições fundamentais para a realização do cavalo marinho.
Seus aprendizes desenvolviam seus conhecimentos através da prática e da repetição,
que se dava, de forma total e plena nas sambadas ou nos ensaios preparatórios, sempre
contando com a figura do mestre como referência e orientação. O tipo ideal de transmissão
empregado por estes mestres poderia se enquadrar num lugar intermediário entre o ​guru e o
iniciador, ​uma vez observamos que, por um lado, ele “alcança sua realização como tal ao

110
Tomamos este título emprestado do subcapítulo com o mesmo nome presente no texto de Maria Acselrad
(2012, p.157 - 162) intitulado: ​Transmissão e Espetacularização no Cavalo Marinho​: Corpo e Dança, Tempo e
Saber​.
110

reproduzir o conhecimento” (Barth, 2000, p.145) oferecendo-o continuamente, explicando e


instruindo seus pupilos, como vimos anteriormente, no exemplo de Seu Antônio Teles.
O mestre também não distribui seu conhecimento de forma aberta ou imediata,
protegendo e guardando-o em forma de segredos e mistérios que raramente se materializam
em um legado formal, só sendo passados através da performance, que corresponde ao clímax
deste aprendizado, a iniciação:

Através do segredo, eles conseguem evocar uma sutil experiência de mistério; por
meio da manipulação de símbolos concretos, construir uma tradição de
conhecimento complexa e dinâmica. [...] Sua tarefa, contudo, é pôr em ação esse
conhecimento de modo a fazer com que os noviços sejam afetados por sua força, e
não simplesmente explicá-lo a eles (Barth, 2000, p.146).

Neste sentido, mestre Aguinaldo corrobora:


Olhe, pra todas as pessoas, pra todos, do que eu já vi e do que eu nunca vi, e o que
eu sei que eu nunca vou ver, que já pesquisou, que está pesquisando e vai pesquisar,
o segredo ainda continua. E até aqui ninguém descobre, não. Porque quem inventou
o cavalo marinho já morreu há muito tempo, há muitos anos. Como eu falei aqui, o
mais velho é mestre Inácio e mestre Biu... Quantos mestres de cavalo marinho teve
antes deles, que já morreram? Então fica só as histórias, só os comentários, só
aqueles que já viram. (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao
autor em entrevista datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado,
Pernambuco).

Nesta sequência, percebemos alguns elementos essenciais exigidos ao iniciante para


que este consiga desenvolver o aprendizado imbuído na brincadeira, que são, em primeiro
lugar, a ​força de vontade e a perseverança. Ambos vão contribuir para o florescimento do que
os/as interlocutores/as chamam de ​paixão o​ u ​amor pela brincadeira. Podemos apreciar a
conexão intrínseca entre ambas noções (​força de vontade x ​paixão pela brincadeira​) no
seguinte depoimento:

Mas eu comecei fazendo, né?... isso foi em 69. Pronto, aí levantei o Cavalo marinho
e até hoje é a minha paixão, é com o que eu tenho mais saúde, é quando eu brinco
cavalo marinho. (excerto da entrevista com mestre Biu Alexandre datada de 20 de
maio de 2019, Condado, Pernambuco).

O mesmo se percebe nesta outra entrevista:

Pra brincar o Cavalo Marinho, meu filho, tem que ter amor pela brincadeira, paixão
pelo que você está fazendo, força de vontade, acho que… Já acabei namoro por
causa de Cavalo Marinho, já brinquei com papeira, que vocês chamam de caxumba,
já brinquei com o pé inchado que não podia nem calçar o sapato, mas dancei, então
tudo isso por uma brincadeira, está entendendo? [...] A vontade de brincar tem que
vir de você mesmo, cabra, se você vai iniciar uma brincadeira, se você quer estar
iniciando aquilo ali, então a vontade é sua, certo? Porque ninguém vai obrigar você
dançar, nem fazer as coisas à pulso, não! (depoimento de Aguinaldo Roberto da
111

Silva concedido ao autor em entrevista datada de 13 de junho de 2019 realizada em


Condado, Pernambuco).

Ou ainda neste:

Eu sempre conscientizo cada um deles, eu digo: “minha gente, temos que nos
apaixonar pela cultura”! E conscientizo eles desde os primeiros casos, quando as
pessoas convidavam a gente e diziam: “Nice, não tem dinheiro, só teve lanche.”. E
eu não dava um sim logo pra eles, primeiro eu perguntava pra eles: dizia “minha
gente; temos uma viagem, temos um trabalho pra desenvolver, só que não tem
dinheiro. E aí, vocês vão?”, “Ôxe, tia Nice! Pode fechar que a gente vai!” (excerto
da entrevista com mestra Nice datada de 30 de junho de 2019 realizada em Condado,
Pernambuco).

Em segundo lugar, enfatizamos o papel fundamental dos mestres não só como guias
ou direcionadores do aprendizado, mas também como agentes que estimulam a motivação e a
vontade de brincar em seus pupilos, ao mesmo tempo que supervisionam a qualidade do seu
brincar através de avaliações e formas de reconhecimento que dão ao aprendiz uma noção de
do estado ou nível de conhecimento em que se encontram na brincadeira. Vemos, portanto, a
importância de uma ​relação​ direta e constante entre mestre e aprendiz.
Neste ponto destacamos e fazemos uso da categoria elaborada por mestra Nice para
analisar os códigos que os mestres/as usam para dizer quando alguém (seja ou não integrante
do seu grupo) assimilou um grau satisfatório de técnica ou está preparado para assumir um
cargo de responsabilidade maior dentro do terreiro: ​o carimbo do mestre​.
Alguns exemplos destes ​carimbos ​são: ​“o neguim é bonzim!” ​de mestre Antônio
Teles; ​“amô e parabéns!” d​ e mestre Inácio Lucindo; ​“o caba é bom!” d​ e mestra Nice Teles
ou “​Quando eu pegava na máscara, que ela tava tudo na ponta da língua pra sair fora. Aí é
111
que eu digo. Eu só digo que a pessoa sabe quando ele faz isso”​ , de mestre Biu Alexandre.
Mestra Nice nos ajuda a entender o contexto em que se dão este tipo de autenticações:

Mestre Biu dizia: quando ele viu, não reconheceu Natan. Mas reconheceu a
qualidade do personagem que Natan estava, que era o Mateu. Ele dizia “Ó, Nice.
Quem era aquele Mateu que tava?”. “O senhor não reconheceu não?”. “Não, quem
era? O cabra é bonzinho, viu?”. Aí foi onde eu fui ligando, porque eles não chegam
pra dizer assim “Menina, o cabra é bom, é ótimo!”. Não. É a linguagem deles. Então
o “bonzinho” deles é o melhor possível. (excerto da entrevista com mestra Nice
concedida ao autor em 30 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Outro ponto de vista mais concreto, do ponto de vista técnico, se exprime neste trecho
da entrevista com mestre Aguinaldo:

111
Em entrevista com mestre Biu Alexandre datada de 20 de maio de 2019, Condado, Pernambuco.
112

S​e a gente vê que ele botou a figura bem, ou mais ou menos, a gente dá os parabéns.
Se a gente vê que a figura não foi tão boa assim, a gente diz “Cara, deu pra tapear.
Não está muito original, não. Não está o 100% não, mas deu pra tapear”. Mas
também tem as vezes que a gente chega até a mangar da pessoa, tirar onda da
pessoa, né? Mas assim; devido à brincadeira e a liberdade que a gente já tem, a gente
diz “Olha, não foi tão bom, foi razoável, foi mais ou menos, mas se aprende assim!”.
A gente dá aquela palavra de conforto, né? Palavra de apoio mesmo: “segue em
frente que tu vai aprender, e vai ser bom”.

Entrevistador​: E esses comentários se fazem quando? No meio da brincadeira?

Não no meio da brincadeira, né? Lá fora, talvez... Sábado aqui, a gente foi pra a tóda
(lá no espaço da rua que a gente usava de camarim). Aí vai lá e: “pô, foi bom, etc”.
O meu menino [Minho] nunca tinha botado um Varredor. Aí nessa viagem que a
gente fez ele botou o Varredor. Foi bom. O que falta nele é ele soltar a voz, mas eu
sempre converso isso com ele. Aí pronto. (excerto da entrevista com Aguinaldo
Roberto da Silva datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado,
Pernambuco).

Um terceiro elemento, muito comentado sobretudo entre brincadores mais veteranos, é


a prática de observar, olhar e estar alerta no decorrer de uma sambada, para perceber e reter o
máximo de informação possível. Mestre Aguinaldo aborda e nomeia esta metodologia com a
expressão “​aprender a duras penas”​, o que remete às múltiplas camadas de habilidades que
são exigidas pela brincadeira: memorização das loas e toadas, interiorização dos trupés,
tombos e pisadas (dança) e o conhecimento das figuras (movimentos, vozes e características),
mas também se refere à ausência de indicações explícitas por parte dos mestres (em forma de
sugestões ou advertências).
Por este ângulo, o “​aprender a duras penas” n​ os convida a refletir sobre um processo
de aprendizagem certamente exigente e demorado que estimula a ​intencionalidade e a
112
agência dos atores sociais envolvidos. Como vemos, este fenômeno está intimamente
ligado à ​presença f​ ísica e mental do indivíduo no terreiro como fator incondicional no
processo de aprendizado da brincadeira.
Consolidado através da experiência prática, o aprendizado vem sendo cada vez mais
influenciado por registros não convencionais e culturalmente exógenos (como as entrevistas,
filmagens ou gravações de áudio), que estão influindo nas pesquisas e nas performances das
gerações mais novas. Estas últimas podem ser um indício de que a transmissão do

112
Utilizamos as noções de ​intencionalidade e ​agência tomando como referência o trabalho de Sherry B. Ortner,
(2007) onde a autora articula os dois conceitos como sendo elementos constituintes e universalizantes das
relações sociais. De forma mais específica, ​intencionalidade remete aos estados cognitivos orientados para
algum fim específico (metas, objetivos, ideais, desejos, vontades ou necessidades). A agência, por contraste, são
as formas de poder que as pessoas têm à sua disposição e que projetam sua capacidade de agir em seu próprio
nome, de influenciar outras pessoas e acontecimentos e de manter algum tipo de controle sobre suas próprias
vidas.
113

conhecimento e saberes da brincadeira está em transição da experiência prática para uma


experiência intelectual, como reflete mestre Aguinaldo:
Acho que isso é uma coisa mais moderna, porque não tinha esse negócio de ir na
casa de ninguém pra pesquisar. Até aqui ninguém me ensinou, porque pai mesmo
disse que nunca ninguém ensinou a ele: ele aprendeu na dura sorte. Seu Inácio
também diz que aprendeu vendo, na dura sorte: ele viu, ele aprendeu olhando,
assistindo e fazendo. No meu caso, até aqui ninguém me ensinou nada e também até
aqui eu também não sei de nada, mas o pouco que eu sei realmente era de ficar...
mesmo no tempo de eu de dama, era costume de ficar atrás do banco ao lado do
rabequista com o Capitão, ouvindo as conversas que tinha as figuras com o Capitão.
O Capitão com as figuras, ou Mateus com o Capitão, o Capitão com o Mateus... eu
aprendi assim; aprendi vendo e como eu falei, até aqui eu não sei de nada ainda,
certo? (excerto da entrevista com Aguinaldo Roberto da Silva datada de 13 de junho
de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Em decorrência do ato de observar, a mimese é um fator crucial no processo instrutivo


da brincadeira, pois é através da imitação que o aprendiz incorpora (no sentido de encarnar ou
personificar) aquilo que viu e vivenciou, fazendo-o próprio, tal como vimos numa sambada do
Boi Brasileiro onde registramos uma figura peculiar entre o elenco de personagens, o
Sebastiãozim, ​que nada mais era do que o filho de cinco anos do brincador que ​botava o
Mateus e que participou do início ao fim da sambada, imitando cada um dos movimentos do
Mateus e do Bastião: olhando para o público quando eles olhavam, girando no chão e
incorporando-se quando os adultos o faziam. Como escrevemos no nosso diário de campo
daquele dia: “Observa a brincadeira desde dentro, de fato, é uma figura a mais: veste as
mesmas roupas que o Mateus e até têm uma espada pequenina.” (trecho extraído do diário de
campo do autor datado de 15 de setembro de 2018. Condado, Pernambuco).
Sobre esta mesma questão, Natan argumenta:

A gente copia mais do que outra coisa, a gente tá imitando [...] essa coisa que meu
avô fazia; ele tinha um toque pra cada figura, tinha uma característica pra cada figura
que só ele fazia, só ele mesmo! Era uma coisa bem... que me lembra até hoje, que ele
fazia. Então eu tento fazer o que ele... tento imitar o que ele fazia, com as
características, mas sempre vai ter um quêzinho a mais que ele colocava (depoimento
de Natan Noberto Rodrigues concedido ao autor em entrevista datada de 10 de junho
de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Se o processo transformativo da brincadeira também atingiu as formas e contextos em


que se dá sua transmissão, ensino e aprendizado, podemos apreciar tais efeitos na implantação
de um modelo organizativo também modificado, onde os mestres/as passaram a ocupar um
lugar de responsabilidade exclusiva no que se refere à transmissão de saberes.
Não queremos, com isto, atestar para uma ruptura total destes/as mestres/as com os
cargos administrativos do brinquedo (que muitos/as continuam exercendo hoje em dia) mas
114

reconhecer que sua atividade como educadores e detentores de conhecimento passou a ser
destacada e valorizada, promovendo a “autonomia dos mestres em relação ao seu próprio
saber, através do acesso a uma visão ampliada do processo educacional, do diálogo com
outros sistemas de educação e com políticas públicas de cultura” (Acselrad, 2012, p.161).
Neste aspecto, faz sentido que os ​projetos i​ ndividuais destes mestres e mestras estejam sendo
direcionados mais para ações pedagógicas do que para a administração dos grupos.
Destes detentores de saber se exige, cada vez mais, uma aproximação criativa com
distintos tipos de pedagogias, formatos e contextos de repasse de conhecimentos que
consigam interagir com o cenário contemporâneo da brincadeira e suas demandas. Nesta
continuidade, nos dedicamos a explorar alguns destes diferentes contextos pedagógicos que
surgiram como consequência desta interação.
113
O primeiro destes contextos são as ​Oficinas ​de cavalo marinho q​ ue (assim como as
apresentações do tipo ​feijão-queimô), p​ or um lado propagaram e divulgaram a brincadeira
para além da Zona da Mata Norte ou do estado de Pernambuco, estimulando a criação e
proliferação de grupos em diversas capitais do país e por outro aportaram um reconhecimento
social e econômico aos mestres. Neste aspecto, as oficinas representaram uma mudança
drástica no modo de vida de alguns mestres e mestras, convertendo-se numa fonte de renda
substancial durante aqueles meses do ano em que não têm apresentações (janeiro a setembro).

Meu amigo, cortando a sua conversa aí: eu um matuto do mato, menino que nasceu
no meio do engenho, no meio dos canaviais, vim morar na rua acho que não tinha
nem 10 anos ainda, numa cidade pequenininha, sem ter contato com ninguém de
fora, a não ser com o povo daquele povoado pertinho. Aí vai pra uma brincadeira,
começa a brincar, que foi o meu caso. Aí terminava a brincadeira, ia embora pra
casa... e o tempo vai passando, e chega o ponto de ir fazer oficina lá fora. Que eu fui
pra São Paulo pela primeira vez, né? Levado por Alício e Juliana da Mundu Rodá, e
na época, eu trabalhava na cana, no corte da cana. Trabalhei muito na cana... Foi
uma coisa que também nunca neguei [...] Tô cansado de dizer isso: primeiramente
agradeço a Deus, né? Segundo, a Alício e Juliana, que eu tenho esse casal do jeito
como se fosse uns irmãos mesmo, né? São pessoas que me tirou do serviço pesado,
me levou pro mundo, através desse casal foi que peguei correr o mundo, né? Foi da
onde chegou o conhecimento, várias pessoas pegou me chamar pra fazer oficina.
Então eu já fiz oficina com vários grupos, pra teatro, grupo de cavalo marinho
mesmo; no caso o Manjarra foi o primeiro, que foi Alício e Juliana. Outros grupos
também que não chegou a acontecer, né? que tentaram fazer, mas não conseguiu.
Mas eu fui… eu fiz a minha parte, não consegui com o grupo porque não é fácil, né?

113
Neste mesmo contexto também podemos integrar a colaboração dos mestres em palestras e rodas de conversa
nas universidades ou grupos de estudos independentes, assim como em espetáculos de companhias de teatro ou
dança profissionais. Do mesmo modo, gostaríamos de sublinhar os espetáculos solo que alguns brincadores
desenvolveram e através dos quais expõe seu lado mais criativo e pessoal, sempre em diálogo com cavalo
marinho e o maracatu. Dois exemplos disto podem ser os espetáculos solo de mestre Aguinaldo “Do Terreiro à
Cena” e “A Flor da Cana” e o espetáculo de Fábio Soares “Caminhos”.
115

Aí tem o Boi da Garoa, fiz um trabalho com o “Scambio Dell’Arte” com a Joice,
Verônica, Diana, demais pessoas, Lineu, demais pessoas mesmo. Teve outro
também, “A Chegada do Mamulengo no Reisado do Cavalo Marinho”, com o
mestre Chico Simão, lá de Brasília, que também foi bem legal o trabalho, né? Muito
bom o trabalho. Aí no Recife trabalho já com alguns grupos, e pelo incrível que
pareça, né? por eu ser daqui, mas pra onde eu vou mais fazer oficina é São Paulo,
né? Então: São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, né? Hoje é que já fui alguma vez pro
Recife, Paraíba.... São coisas que se abriram agora há pouco, mas pra Curitiba
também. Mas Curitiba eu acho que só fui duas vezes pra lá. Mas São Paulo é direto!
[...] Falar que 70% dessa casa aqui, foi da brincadeira, foi realmente fazendo oficina
de cavalo marinho e de Maracatu. Não assim de apresentação, de ... isso aí, não!
Mas de oficina, de estar juntando. Porque eu não sou de farra, não sou de estar em
mesa de bar, em mesa de jogo, de fumar... (depoimento de Aguinaldo Roberto da
Silva concedido ao autor em entrevista datada de 13 de junho de 2019 realizada em
Condado, Pernambuco).

Como podemos ver nesta intervenção de Aguinaldo, as ​oficinas ocorrem na maioria


dos casos, em âmbitos externos ao contexto local, sendo estas experiências de curta duração
(entre um dia e uma semana), enfocadas para grupos de pessoas interessadas na brincadeira,
mas sem a exigência de conhecê-la ou ter tido contato prévio com ela. Nas oficinas o mestre/a
é responsável pela escolha e síntese do conhecimento (claramente limitado) que será passado.
Através destes contextos, os mestres/as (e brincadores/as que ministram oficinas embora não
sejam mestre/as) viram-se impelidos a desenvolver pedagogias que se adequem às demandas
deste formato, exigindo deles um esforço e benefício duplo. Como nos relata Natan:

Quantas vezes não fui fazer oficinas fora que o pessoal não conhecia nada de cavalo
marinho e quando chegava lá a gente começava, né?... Têm uns passos de cavalo
marinho que eles não interpretam assim de cara, porque são passos ligeiros! Então a
gente tem que pegar na mão daquela pessoa, a gente faz um grupão na horizontal
assim: todo o mundo pegado na mão, e começava uns passos mais devagar: um,
dois, três... um, dois, três. Então daí a gente começava devagar, e depois a gente ia
acelerando aqueles passos. Quando o pessoal pegava os passos já era hora dos
diálogos das figuras. Depois a música (que era no final) que era pra complementar a
figura, a dança e a música. Aí dava todo aquele teatro que servia bem! (depoimento
de Natan Noberto Rodrigues concedido ao autor em entrevista datada de 10 de junho
de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Ou nesta de mestre Aguinaldo:

Então, quando eu cheguei lá pela primeira vez [em São Paulo], vixe Maria! Aquele
matutão brabo, naquela cidade grande. E quando chega no espaço da oficina, um
monte de mulher foram fazer alongamento. Eu já fiquei sem jeito, sem graça. Eu
cheguei e saí da sala: eu e Seu Inácio, porque a gente achava aquilo muito esquisito.
Ainda acho aquilo dali um negócio muito estranho. E aí as pessoas vinham falar
comigo; eu sempre falava de cabeça baixa, mais sem jeito, todo acanhado; eu não
olhava pro olho da pessoa, né? Eu não tinha olhar pra encarar a pessoa e dizer “não,
você tem que fazer assim, fazer assado”. Eu não encarava o rosto da pessoa, sempre
olhava mais de banda assim, e dizia assim mesmo: “quem aprendeu, aprendeu, quem
não aprendeu, não aprende mais”. Então pra mim era tudo na dura sorte, no bruto
mesmo. E aí, cara, o tempo vai passando [...] hoje eu já chego assim, já chego
chegando. Mas claro que não é que nem na minha casa, né? A gente na nossa casa é
116

uma coisa, na casa dos outros é chegar devagar, numa terra estranha.... mas levo de
boa hoje, tranquilo. Falo olhando pras pessoas, encarando as pessoas… Então, o que
for do meu conhecimento, eu explico, eu falo. Hoje pra mim é de boa, mas no
começo, eu sofri, viu? [...] Eu sempre digo assim, eu vou passar um pouco do meu
saber, certo? Então, o que for do meu conhecimento, eu passo pra você. E pra mim,
como eu falei aqui, pra mim, é melhor, certo? E melhor pra você, porque assim; por
mais que eu passe pras pessoas, pra mim é pouco. Pra quem está fazendo oficina, pra
eles é muito! (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em
entrevista datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).
114
Outro dos contextos que identificamos foram as ​aulas-ensaio , q​ ue se assemelham
com as ​oficinas ​pelo fato de serem experiências que requerem a presença física de mestres/as
e aprendizes num mesmo espaço. Não obstante, as ​aulas-ensaio ​diferem das ​oficinas ​em, pelo
menos, dois aspectos distintivos: o primeiro é que as ​aulas-ensaio t​ êm o propósito de
envolver e formar brincadores que permaneçam no terreiro em que se formaram, participando
do grupo e suas apresentações. As ​aulas-ensaio são um contexto de transmissão que demanda
um lugar fixo para poder se desenvolver (uma sede, um ponto de cultura, o alpendre de uma
casa, entre outras), assim como uma relação continuada entre o/a mestre/a e seus pupilos, o
que nos leva para o segundo aspecto distintivo; as ​aulas-ensaio v​ isam oferecer uma
experiência prática ininterrupta ao longo do ano. Este fato favorece a assiduidade dos
aprendizes e uma formação continuada se assim o/a aprendiz o desejar e puder.
Outra particularidade interessante deste contexto é que as ​aulas-ensaio s​ ão adaptações
dos ​ensaios tradicionais que, como comentamos no primeiro capítulo, aconteciam
previamente ao ciclo natalino com objetivo de preparar e atualizar os grupos para as sambadas
e apresentações. Conforme Natan:

Então estou dando umas aulas nas segundas, quartas e sextas, e daí quero passar pra
frente o que meu avô me ensinou, né? Essa coisa da rabeca com mimo (carinho) tem
que ser passada de geração em geração, se assim possível [...] Antigamente, nos
anos 90, meu avô sempre ia pras noitadas de ensaio que eles faziam, sempre nos
sábados. O pessoal dos cavalos marinho se reuniam, daí eles iam na casa de alguém.
[...] Hoje em dia a gente estuda uma coisa por noite: pegava uns menino bom pra

114
Cabe ressaltar que estes contextos de transmissão foram registrados durante a pesquisa de campo, em dois
grupos de cavalo marinho: o Cavalo Marinho Estrela do Amanhã de Condado - PE (administrado por mestra
Nice e seus dois filhos Natan e Totó), e o Cavalo Marinho Infantil Sementes João do Boi do bairro dos Novais,
João Pessoa - PB (administrado por mestra Tina). Ambos os grupos caracterizam-se por ter um ou mais
encontros semanais com duração de duas a três horas – no caso do Estrela do Amanhã, os ensaios eram às
segundas, quartas e sextas-feiras de 19h à 21h, enquanto no Sementes eram aos sábados no mesmo horário que o
anterior. Por último, mas não menos importante, cabe enfatizar que ambos são grupos infantis.
117

formar o Banco, e daí botava dois Mateus, e daí ficava uma fila de Soldados, né?
Cada um vinha aí entrava, interpretava o Soldado e eu dizia alguns pontos que tavam
um pouco negativos, que davam pra fortalecer, dar caraterística, dar mais resistência
àquele Soldado, o molejo de Soldado mesmo. Então os meninos pegavam, vinha,
dava a dica, daí a gente fazia a sambada da gente. A partir daquele momento, quando
eles vinham de novo, já vinham com as dicas que eu dei, né? A gente faz muito isso
pra eles entenderem como é aquela figura, como é que se vem, a loa daquela
figura… A gente acha importante. (depoimento de Natan Noberto Rodrigues
concedido ao autor em entrevista datada de 10 de junho de 2019 realizada em
Condado, Pernambuco).

Nesta outra intervenção, além de fazer referência ao contexto das ​aulas-ensaio​, mestra
Nice nos concede um valioso registro que revela a capacidade criativa dos/as mestres/as
contemporâneos em relação à experimentação com formatos e contextos de
ensino/aprendizagem diferentes do tradicional:

Eu disse a ele [mestre Antônio Teles]: “eu vou convocar alguns meninos”. E eles
tinham uns filhos de colegas deles, e aí ele saiu convidando uma galerinha jovem e
eu levei pra casa de Tio Mariano. Enchi uma kombi de jovem, por umas duas três
vezes, e levei essa galera pra lá. Então lá, numa escola, num dia de domingo foi
onde eu comecei a desenvolver as atividades de “o que é o cavalo marinho”, “porque
cavalo carinho”, não é? Então eu comecei trazendo esses meninos, e mostrando a
eles o horizonte do cavalo marinho através da dança, né? Que eles podiam ir muito
além. Então foi essa necessidade que eu senti de fazer diferente, acreditando que
poderia dar certo, sabe? E de fato que assim deu, deu certo e até hoje a gente já está
na terceira geração do Estrela Brilhante e eles não largam. Eles vão. Mas em dia de
apresentação, eles vem, e dá suporte aos outros cavalo marinho, né? Muitos
brincantes daqui de casa dão suporte de cavalo marinho, e é isso, né? Então pra
mim, foi uma grande realização e uma grande experiência também. (excerto da
entrevista com mestra Nice datada de 30 de junho de 2019 realizada em Condado,
Pernambuco).
115
O último dos contextos que aqui expomos é o da ​internet , que apresentaremos de
116
forma abreviada a partir dos interlocutores:

É, hoje é tudo pelo WhatsApp, Facebook, Instagram, esses negócios… Se o mestre


vê que a pessoa tá se interessando, que sem querer ou não ele vai lembrar da pessoa
que se interessou por aquela tal figura... Aí manda um áudio dizendo os versos da
figura [...] Tipo: no meu celular tem muitos versos que meu pai mandou, gravei Seu
Martelo, tem meu avô também falando, não tive a oportunidade de Seu Inácio, mas
qualquer dia eu vou lá. ²

115
Escolhemos o termo genérico “internet” pelo fato de conseguir abranger a enorme quantidade de registros de
sambadas, ensaios, cd’s e dvd’s disponibilizados em plataformas como YouTube, Spotify ou Deezer ao acesso
quase irrestrito a documentos, dissertações, teses, livros e artigos sobre cavalo marinho, passando pelo material
acumulado sobre encontros, simpósios, sambadas e demais nas redes sociais como Facebook, Instagram ou ainda
os aplicativos multiplataforma de mensagens instantâneas como Whatsapp ou Telegram, que favorecem o
trânsito ilimitado e constante de informação entre mestres/as, brincadores/as e pesquisadores/as.
116
Nossa revisão tem por objetivo registrar sua existência sem necessariamente fazer uma análise aprofundada
do tema, razão pela qual será exposta aqui de forma resumida.
118

Este é, de forma talvez redundante, o contexto de ensino/aprendizado mais recente que


temos conhecimento e que ganhou um protagonismo exponencial nos últimos 10 anos,
favorecendo um superabundante intercâmbio de informações e de contatos que propiciaram
117
redes de comunicação mais abrangentes e internacionais ​. Por outro lado, este contexto
impôs uma série de adversidades para aqueles/as mestres/as mais veteranos/as, que mesmo
sabendo ler e escrever enfrentam dificuldades para integrar, no seu dia a dia, as novas formas
de comunicação, de entretenimento e de consumo.
Dito isto, durante o período que passamos em Condado, fomos testemunha e partícipes
do processo de adaptação de mestre Aguinaldo a este novo contexto, quando ele solicitou
nossa assistência para abrir uma conta no Instagram (ou, como ele o nomeia, “Instragado”),
consciente de que era uma forma de visibilizar o seu trabalho e de monitorizar a atividade de
outros/as mestres/as, brincadores/as e grupos. A seguir mostramos um fragmento do nosso
diário, onde explicamos de forma sucinta, este processo de adaptação através de um relato um
tanto irônico:
Um grupo de maracatu de baque virado do Japão (​http://avecovo.com​) começa a se
interessar pelo cavalo marinho. É através da conta de Instagram do grupo
(@avecovomaracatu) que eles entram em contato com diversas representatividades
do universo do cavalo marinho da Zona da Mata Norte que tem perfil ativo no
Instagram, sobretudo aquelas de uma geração intermediária (±50 anos) e,
obviamente as mais jovens. É também através desta rede social que, da Zona da
Mata Norte, se seguem de perto (numa mistura de admiração e aversão que envolve
sarcasmo e certo ceticismo) às postagens desta curiosa imersão nipona ao universo
da brincadeira. Nos vídeos o grupo explora diversos aspectos da brincadeira: imitam
alguns trupés, raspam bage e tocam pandeiro (sempre a ​grosso modo​), inclusive
adaptam algumas toadas ao japonês.
Não me atreveria a dizer que dominam os aspectos técnicos da brincadeira (tanto
musicais como corporais) mas, sem dúvida alguma, pode-se dizer que se divertem e
que estão passando um bom tempo.
Um dia, indo para Ferreiros (PE) para visitar seu Inácio Lucindo, Aguinaldo fez
questão de me mostrar um vídeo do grupo japonês: Ele ri. Fui eu que o ajudei a criar
sua conta de “Instragado” (como o próprio Aguinaldo nomeia o aplicativo) uma vez
que aprender a manipular a plataforma causava-lhe certa apatia, do mesmo modo
que reconhece sentir preguiça na hora de ler ou de escrever. Desta forma, nas redes
sociais, ele costuma usar os emojis para se comunicar, dialogar e expor suas
impressões.
Bem, a questão é que recentemente deparei-me em que num dos vídeos do grupo
japonês, Aguinaldo tinha comentado com várias carinhas chorando em sinal de
desaprovação, ao que o grupo replicou, em portugués: “eu vou praticar mais”. Dias
mais tarde voltei para a mesma publicação, que nessa altura tinha ganhado vários
comentários de mestres reconhecidos e pessoas próximas à brincadeira. Alguns deles

117
Neste aspecto, não podemos negligenciar o fato de que as primeiras aproximações do autor com o cavalo
marinho deram-se através de vídeos de Youtube.
119

até empreenderam autênticas aulas rápidas de cavalo marinho através de sugestões e


observações, e numa das respostas se explicitava um convite informal para ministrar
uma oficina no Japão (trecho extraído do diário de campo do autor datado de 14 de
junho de 2019. Condado, Pernambuco)

Através deste depoimento podemos observar como por uma ação não-intencional do
grupo japonês deu-se uma interação dialógica, na qual eles acumularam bastante informação
relativa à brincadeira. Poderíamos então dizer que durante esta breve interação houve uma
transferência de conhecimento? E que no caso específico de Aguinaldo, isso ocorre de forma
virtual e iconográfica (através de emojis)?
De acordo com Pinone, uma das propriedades positivas do contexto da ​internet ​é o
fato de favorecer as práticas de ensino/aprendizado à distância e sem a necessidade de
presença física ou síncrona- o que está em sintonia com o enquadramento do consumo global
contemporâneo:

Olhe, eu nem sou contra oficina, nem sou contra esse negócio de internet também.
Tanto que esses dias eu estava dando oficina pelo Whatsapp pra um menino em
Salvador, lá na Bahia. Eu estava passando um negócio pra ele, tinha um menino até
aqui do Recife. Ele viu, né? E: “Oxente, o que é isso?”. Ele fica me perguntando
alguns versos do banco e eu tô passando pra ele aqui, que ele tem um grupinho lá.
Quer dizer: quer formar um grupo, né? Ele viu o DVD [do Estrela de Ouro] e estava
se atrapalhando nas toadas que a gente cantava. Aí ele me perguntava, e eu ia
responder pra ele. Eu não sou contra. (depoimento de Risoaldo Roberto da Silva
concedido ao autor em entrevista datada de 11 de junho de 2019 realizada em
Condado, Pernambuco).

Porém, segundo Aguinaldo, o contexto da ​internet só é vantajoso se complementado


com a experiência presencial de uma oficina, ou qualquer outro contexto que implique o
contato direto com alguém já iniciado na brincadeira:

Pra aprender pela internet é muito fácil, hoje tem vídeo do Estrela de Ouro e tem
imagem, tem o vídeo do DVD do Estrela de Ouro e tem vários no YouTube. Vários
filmes de cavalo marinho. Então se eu não conheço o cavalo marinho e vou olhar, eu
vou demorar a decorar aquilo ali, pra ver os passos de dança, eu vou demorar pra
caramba! Ele vai tentar encaixar algumas coisas, alguma toada, em compreender as
toadas, as loas, os versos... enquanto não chega uma pessoa de cavalo marinho que
faça uma oficina pra aquela pessoa, pra ele pegar a manha mais direitinho, pegar o
ritmo do corpo, da dança, e ele pesquisar mais. Mas que nada é difícil! Hoje está
sendo tudo muito fácil, se for olhar o tempo de agora pra o tempo que pai começou,
que eu comecei, que era muito mais complicado, que era ruim pra caramba, pra
agora. (depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista
datada de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).
120

Esta condição supletiva do aprendizado via ​internet também é sinalizada por Natan
que, apesar de reconhecer suas contribuições em simplificar o processo de aprendizado, nos
desvela alguns aspectos negativos da utilização desta ferramenta no contexto da brincadeira:

Ficou mais fácil muitas coisas dentro do próprio cavalo marinho: você pode gravar
uma oficina, uma aula, colocar ali na internet. Você tá no fim do mundo... que você
vai aprender cavalo marinho, né? Não com aquela intensidade, não no 100% de estar
com mestre ali convivendo, e vendo aquilo que o mestre tá fazendo. Mas é uma
forma de você estar aprendendo, de você estar se instigando ali através da internet.
[...] As coisas que eu divulgo na internet, são coisas antigas, né?... São coisas
passadas, pra relembrar da essência do cavalo marinho, né? [...] Esses vídeos antigos
que serve muito pra gente ver as características do corpo das pessoas, que não é um
corpo de brincante de agora, mas um corpo mais de trabalhador rural, né?... Essas
são as características que se tinham antigamente: um pouco mais duro. [...] A
internet tanto serve para divulgar como pra destruir, então aí é quando fica difícil.
[...] O que não é bom é que você faz um DVD do cavalo marinho e daí você quer
vender – os mestres querem vender pra arrecadar um fundo pro seu cavalo marinho.
Daí a coisa ruim é a pirataria: você cria o DVD e quer vender, mas lá na frente, não
dá nem um mês direito que o pessoal já coloca na internet, já tá no YouTube. Isso
dificulta a vida dos mestres, de trazer um pouco de rendimento do material que é
feito. Essa é a dificuldade com a internet. (depoimento de Natan Noberto Rodrigues
concedido ao autor em entrevista datada de 10 de junho de 2019 realizada em
Condado, Pernambuco).

Em suma, podemos dizer que a implementação (forçosa ou não) destes contextos e


formatos de transmissão de saberes diferenciados dos tradicionais, promoveu um verdadeiro
processo de pedagogização da brincadeira, fazendo com que o cavalo marinho se atualize e se
reformule, ao mesmo tempo, propondo formas alternativas de experienciá-lo, entendê-lo e
repassá-lo.

Não obstante, no momento atual podemos observar o surgimento de pelo menos duas
questões claramente conflitivas entre os participantes de cavalo marinho que fazem referência
por um lado à preservação das representatividades tradicionais da brincadeira e por outro à
continuidade de sua existência. A primeira questão tem seu fundamento na quantidade
desproporcional de pessoas “que não são da brincadeira” e que estão sendo formadas em
detrimento daquelas que pertencem ao terreiro. Neste sentido, a ameaça surge quando este
desequilíbrio incentiva uma “fuga” de conhecimentos de dentro dos terreiros para fora, fato
que provocaria um eventual enfraquecimento das representatividades tradicionais do cavalo
marinho. Nas palavras de mestra Nice:
É por isso que sempre eu escuto dizer, se não tiver cuidado o Cavalo Marinho vai
acabar, porque não são os mestres, mas as pessoas da forma deles... querendo mudar
o Cavalo Marinho; eles vão matando a tradição. Nós, que vivemos aqui na Zona da
Mata, a gente vive quase que com água aqui, né? Porque como eu disse, eles vêm,
bebem da fonte, lá fora passam à maneira deles: “eu vou botar assim porque dessa
121

forma fica melhor”. Não! respeite a tradição, sabe? (excerto da entrevista com
mestra Nice datada de 30 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Como sinal de consenso, Minho expõe:

Muitas vezes os mestres que não têm estudo, até os cabra que têm estudo, que é mais
vivido na cidade grande, têm mais lábia, aí começa a conversar, tal… O cabra que
têm estudos leva vantagem. Se esse povo tivesse a nobreza de aprender e reconhecer
com quem eles aprendeu… mas o povo tá aprendendo e diz que aprendeu só: chega,
pega o conhecimento e vai embora (excerto da entrevista com Jamerson Roberto da
Silva datada de 9 de junho de 2019, realizada em Condado, Pernambuco).

Ainda, Natan desenvolve essa mesma questão relacionando-a, no entanto, ao contexto


da ​internet​:

Se a gente expor tudo na internet, o pessoal não vai se interessar, não vai querer vim
ver a brincadeira no interior, entendeu? As pessoas vão querer montar um cavalo
marinho pra si próprio, sem ter a experiência do mestre... você vai estar imitando o
que tá na internet, então vai ficar uma coisa sem essência, sem base, sem lógica,
entendeu? [...] Eu aprendi com meu mestre, – que era meu avô – a tratar bexiga, a
fazer uma máscara e bordar golas. Também, aprender a fazer chapéu, aprender a
fazer bage, que é a mais difícil: tem que ir lá na mata e diferenciar a taboca do
bambu, daí quebrar lá e trazer a taboca pra casa, deixar secar no sol, e daí tem que
fazer as espirais, cortar ela todinha pra daí termos a bage, né?... Mas aí foi uma lição
muito importante que eu trouxe assim... do meu avô, né?... Porque aí já posso
ensinar outras pessoas. Então, os mestres é muito importante pra veia do brincante:
sem o mestre, o brincante não ia fazer nada disso, e a internet não ensina isso…
Então aquele manuseio todo tem que ser com um mestre. Tem coisas que é só com
um mestre ou com uma pessoa que já aprendeu, porque tem muitos detalhes!
(depoimento de Natan Noberto Rodrigues concedido ao autor em entrevista datada
de 10 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Por outro lado, avivando a discussão, existem brincadores que consideram este
fenômeno como uma decorrência de um processo orgânico de expansão da brincadeira e,
portanto, o vêem como algo coerente:

Eu sou contra assim: quando eu saio daqui, eu vou tirar o exemplo por mim. Quando
eu saio daqui, eu sair daqui pra ir dar oficina no Rio de Janeiro, é porque eu quero
que o povo aprenda. Aí depois que o cabra aprender, pode brincar em qualquer um
Cavalo Marinho, pode ser do Rio, São Paulo, Porto Alegre, do exterior, pode ser de
onde for. Se ele aprendeu, ele pode brincar em qualquer um Cavalo Marinho e tem
gente que dá oficina e depois acha ruim que o cabra vá brincar o Cavalo Marinho.
Porque se eu não quero que você brinque o Cavalo Marinho, pra que eu vou lhe dar
oficina? Porque eu vou receber seu dinheiro, você me pagando pra lhe dar oficina se
eu vou ser contra você brincar o Cavalo Marinho? Isso aí eu sou contra. Agora
assim, eu acho que ninguém aprende o Cavalo Marinho com uma oficina, aprende o
Cavalo Marinho vendo o Cavalo Marinho, porque se eu for dar uma oficina,
qualquer brincador for dar uma oficina, ele não vai ensinar o Cavalo Marinho
completo, ele vai ensinar você a dançar, ensinar algumas figuras, mas não vai
ensinar o Cavalo Marinho completo, Cavalo Marinho se aprende vendo Cavalo
Marinho (depoimento de Risoaldo Roberto da Silva concedido ao autor em
entrevista datada de 11 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).
122

O segundo destes conflitos emana da preocupação por uma eventual extinção


da brincadeira vinculada à perda gradual de seus saberes, promovida pela morte dos mestres
por um lado e pela diminuição do tempo e da presença que os/as brincadores/as em processo
118
de aprendizado dedicam à brincadeira . Tempo e presença que, de acordo com Acselrad, são
fatores imprescindíveis para que o repasse de saberes aconteça:
A tradição oral ou corporal ali envolvida necessita de experiência para ser
transmitida e passa a ser ameaçada não pelo risco da inovação, mas do
esquecimento. [...] Se, no caso das brincadeiras, um novo formato, curto, rápido,
enxuto, tem prevalecido, parece que no caso da transmissão algo insiste em se
manter. A nosso ver, a relação com o ​tempo necessário para a construção do saber
(Idem, 2012, p.157, 161).

De forma equivalente, mestre Aguinaldo argumenta:

A turma jovem que quer aprender não aprende mais, certo? Ou ele vai correr atrás de
um mestre, um sambador de Cavalo Marinho que já compreende, que já entende,
para ele pesquisar, pra aprender, e se ele não sair de casa para não pesquisar, chegar
na casa do mestre, do sambador, de uma pessoa mais experiente, ele não vai
aprender nunca, porque a gente não está tendo espaço suficiente para se brincar a
noite toda, para a turma jovem aprender, e até pra gente também aprender mais,
certo? Porque a gente passa tempo parado e a gente também esquece as coisas. A
gente esquece de toada, esquece de loa, esquece de verso. O corpo, os nervos ficam
mais entrevados, então a gente perde com isso aí, isso para qualquer brincadeira
(depoimento de Aguinaldo Roberto da Silva concedido ao autor em entrevista datada
de 13 de junho de 2019 realizada em Condado, Pernambuco).

Uma vez expostos os principais conflitos, centremo-nos naquelas falas que


prognosticam, de uma ou outra forma, o desaparecimento da brincadeira. Ao nosso ver, esta
percepção de que a brincadeira “vai se extinguir” expressa, mais do que uma problemática
urgente a ser resolvida, um recurso retórico mediante o qual se evidenciam certas ações que se
opõem aos interesses coletivos ou individuais dos/as brincadores/as, ao mesmo tempo que
chamam a atenção para os efeitos do processo de transformação do cavalo marinho para os
demais participantes assim para aqueles que “não são da brincadeira”.
A título de exemplo, encontramos esta mesma retórica na crítica de Pinone à presença
de pessoas que “não são da tradição” (pesquisadores/as principalmente) nos terreiros dos
grupos tradicionais:

A segunda briga da noite aconteceu no fim da noite, quando duas pessoas “de fora”
entram numa disputa intensa. Uma das pessoas está claramente embriagada e atua

118
A título indicativo, esta mesma preocupação foi a que impeliu diferentes mestres e mestras de Condado a
encontrar soluções para a delicada situação de Seu Inácio Lucindo, da qual falávamos anteriormente (ver p. 11);
a inatividade do Mestre pressupõe um severo risco de seus conhecimentos não serem mais transmitidos, o que
levaria à perda irrevogável de tais conhecimentos como também do esquecimento de uma forma de brincar
única- já que Seu Inácio Lucindo brinca de um modo diferenciado dos demais mestres e mestras de Condado
(herdeiros da tradição de mestre Batista e dos Irmãos Teles).
123

com violência perante a outra que, enfrentando a provocação, não hesita em


responder violentamente. [...] Na metade da briga, Pinone dirigiu-se aos
espectadores (a maioria vindos de João Pessoa e do Recife) dizendo: “Estão vendo?
Os de fora não só sugam da brincadeira, que ainda vêm aqui pra fazer isto!! É assim
que a brincadeira acaba! (fragmento do diário de campo do autor recolhido no dia 19
de maio de 2018​, ​Condado, Pernambuco).

Neste aspecto, observamos como para além da simples condenação do comportamento


inapropriada dos dois indivíduos que brigaram, a intervenção de Pinone despertou,
propositalmente ou não, um certo grau de incômodo nos ouvintes/espectadores “de fora”,
operando, em nosso entender, como uma advertência sobre o lugar estes ocupam nos terreiros
de cavalo marinho.
De modo similar, encontramos esta mesma retórica na fala de Minho: desta vez,
relacionando-a à má gestão e à falta de incentivos previstos pelas instituições municipais de
Condado e de seus representantes- organismos que, segundo ele, deveriam esforçar-se mais
em cuidar e valorizar os grupos de cavalo marinho e outras expressões de cunho popular que
existem na cidade:

A prefeitura poderia fazer um projeto: “Pega aqueles pessoal e vamos arrumar um


trabalho pra cada um na Prefeitura, pra manter a cultura naquele caminho alí”...
“Vamos dar aula naquela escola!”. “Aquele vai dar aula de cavalo marinho, outro
vai pra outra escola”… “Hoje não vai ser bola, hoje vai ser cavalo marinho, vai ser
Maracatu!”... Aí vai envolvendo a cultura no meio, né? E aí cada brincador vai ter
seu ganha-pão. Aí sim! A pessoa que ama a cultura vai amar mais ainda porque você
tá vivendo do que você gosta! [...] É isso que podia fazer a Prefeitura ou o governo
[do estado de Pernambuco]. (excerto da entrevista com Jamerson Roberto da Silva
datada de 9 de junho de 2019, realizada em Condado, Pernambuco).

Por outro lado, e de forma controversa, esta relação de dependência entre os grupos de
cavalo marinho e os órgãos municipais vêm sendo amplamente questionada e criticada por
diversos grupos de cavalo marinho, convertendo-se num ponto de discussão principal nas
reuniões promovidas pela Associação de Cavalo Marinho. Muitos pensam que os interesses
das Prefeituras é eleitoral, e que depois de eleitos os gestores nunca cumprem com suas
promessas. Consequentemente, quanto mais fraco seja o vínculo dos grupos com a esfera
política, mais autonomia e liberdade eles parecem ter. Caso contrário, esta dependência pode
repercutir diretamente sobre o grupo, como apreciamos neste relato:

Voltando ao assunto sobre Seu Inácio: Aguinaldo me falou que ele sempre dependeu
e confiou muito nas promessas de alguns políticos, e que estes, não acostumados a
cumprir com suas palavras, se comprometeram unicamente em arrecadar votos,
prometendo empregos para seus familiares, filhos e noras, sem cumprir
reiteradamente, seus compromissos. [...] O caso é que já teve tantas complicações na
relação de Seu Inácio com a brincadeira que ele se desanimou por completo, até o
ponto de não se sentir mais reconhecido sequer pelos próprios filhos (que apesar de
124

terem brincado junto com ele na infância, não estão interessados em continuar com o
brinquedo do pai), nem pelos antigos integrantes do grupo. Segundo Aguinaldo, isto
gera em Seu Inácio um sentimento de desgosto e indignação tamanha, chegando ao
ponto dele querer tocar fogo no Boi e no Cavalo, reduzindo sua própria história a
cinzas (trecho do diário de campo do autor datado de 9 de junho de 2019, Condado,
Pernambuco).

Em suma, interpretamos estes conflitos (assim como os debates e retóricas que os


configuram, expõem e complexificam) como uma visão crítica da contemporaneidade do
cavalo marinho, que permitem visualizar um conjunto de questões problemáticas para o
coletivo de brincadores, assim como suas eventuais soluções ou ajustes.

Como vimos ao longo deste capítulo, a brincadeira transforma suas características


estéticas, organizacionais e de transmissão dos seus saberes ao interagir com uma história e
um entorno sociocultural sempre cambiantes. Ser conscientes dessas mudanças implica ter
acesso a uma história própria e singular que permite ser revisada e reorganizada à medida que
os brincadores se apropriam dela, fortalecendo o laço invisível entre o passado, o presente e o
futuro deste coletivo. ​Neste aspecto percebemos como os indivíduos que participam da
brincadeira:

sempre estão inseridos em teias de relações, de afeto ou de solidariedade, de poder


ou de rivalidade, ou, muitas vezes, em alguma mescla dos dois. Seja qual for a
“agência” que pareçam “ter” como indivíduos, na verdade se trata de algo que é
sempre negociado interativamente (Ortner, 2007, p.74).

As práticas espetaculares populares e tradicionais são frequentemente compreendidas


desde sua capacidade de persistir no tempo, partícipes de um “processo geral que envolve,
permanentemente, mecanismos internos, aquisitivos, desintegrativos e de recomposição e
recombinação e movimentos externos, que tomam forma agressiva ou acomodatícia, que por
sua vez ocasionam novos processos internos” (Carneiro, 2008, p.14).

Neste processo memorial através do ato espetacular, o passado eo presente se


irmanam na roda do cavalo marinho, corporificando figuras de um tempo remoto no
tempo atual, ressignificando e atualizando a história em um contexto no qual a
referência ao passado está em contato direto com as mudanças do presente e as
perspectivas de futuro, gerando ao mesmo tempo um diálogo e um embate entre os
elementos internos e externos a seus participantes, num ciclo de transmissão,
apropriação e difusão de valores, crenças e visões de mundo próprias daquelas
comunidades (Oliveira, 2012, p.80).
125

Ao nosso ver, o cavalo marinho garante sua continuidade no tempo ao se inscrever em


processos capazes de reconhecer, visibilizar e manipular as dinâmicas de transformação,
reforçando assim a agência de seus participantes sobre a própria história e a da brincadeira.
126

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Anda o sol e anda a lua
anda as estrelas também
seguimos nossa viagem
nas horas de deus, amém

Em primeiro lugar observamos que as expressões e práticas espetaculares populares


tendem a ser reconhecidas pela sua capacidade de persistir no tempo; porém, esta qualidade
não se dá de forma axiomática, tendo repercussões sobre os agentes envolvidos. Desta forma,
consideramos que o cavalo marinho em sua organicidade e dinamismo, resiste, permanece e
continua vivo através da adaptação constante às transformações de cunho sociocultural,
histórico e econômico com as quais dialoga e interage. Isto se reflete num aguçado sistema de
negociações contínuas levadas a cabo por seus participantes ao procurarem compreender e ter
consciência sobre essas mudanças. Assim, a sobrevivência da brincadeira é correlata ao
potencial que os brincadores têm de se mobilizar e com eles também à opinião pública, sendo
capazes de expor os objetivos e metas que perseguem e as adversidades que enfrentam.
Por outro lado, retomando o caráter liminar do cavalo marinho, cuja prática implica
um cuidado que oscila entre a ​consonância e o ​desmantelo (Acselrad, 2013, p.49) – entre o
“tomar conta” e o “não dar conta” –, reconhecemos os conflitos e tensões, assim como as
ações solidárias presentes no decorrer dos processos de negociação como formas de cuidado
para com a brincadeira.
Em segundo lugar, consideramos que a experiência única de uma sambada se dá
mediante a combinação e a coordenação das intenções e motivações singulares de cada
brincador ou brincadora, resultando numa reunião ou ajuntamento de sincronicidades. Deste
modo a expressão “hoje a gente brinca do jeito que o povo quer” realça o caráter atual,
intersubjetivo, versátil e adaptativo do cavalo marinho. No entanto, embora insistamos sobre a
natureza transmutável e dinâmica do cavalo marinho (perceptível nas sucessivas modificações
e processos de reorganização), a presença física, a constância e assiduidade de participantes
(nutrindo teias de relações afetivas por meio da brincadeira) e o contínuo fluxo de
apresentações são de vital importância para garantir a continuidade desta prática espetacular.
Como aponta Acselrad (ibid, p.61) “a presença e a relação que se estabelece com a
brincadeira são condições fundamentais para sua realização”.
127

Neste aspecto, não só nos referimos a uma presença física, mas também a uma
presença perdurável pelo cultivo da memória dos mestres e brincadores que já faleceram
deixando, em herança para seus discípulos e familiares, o desejo de continuar brincando.
Como exemplo, mestra Nice reflete sobre a importância e o simbolismo de manter o
brinquedo ativo para seguir cultivando a memória do pai (o finado mestre Antônio Teles) e
vice-versa.

Eu tava dizendo até: “Mãe, como é forte a presença de pai aqui junto de mim. Como
é forte a certeza de que ele está lá fora sentado!”. Então pra mim, é isso, é mantendo
essa tradição, que ele nunca vai morrer, ele sempre vai estar vivo e eu sempre vou
dizer às pessoas que ele viajou… então era isso que eu também desejaria aos meus
filhos, ou netos, (se tiver) fizessem também! Não deixassem morrer a tradição da
família, a tradição do folguedo do Cavalo Marinho, porque era um sonho muito
grande que pai tinha e eu, no primeiro momento que ele teve essa chance, eu não
deixei se perder, me juntei com ele, e “vamos fazer!”. Entendeu? Então eu acredito
que onde ele estiver, ele deve estar velando por mim com certeza, agradecendo
porque eu não deixei o sonho dele passar... (excerto da entrevista com mestra Nice
em depoimento concedido ao autor em entrevista datada de 30 de junho de 2019,
realizada em Condado, Pernambuco).

Da mesma forma que uma sambada não se repete duas vezes, devido à sua
singularidade espaço-temporal, as formas de organização do cavalo marinho não serão as
mesmas de um dia para outro, pois haverão mudado os desejos, as metas e os planos, em
suma, a intencionalidade dos agentes envolvidos.
Consequentemente, cabe levantarmos uma derradeira reflexão que remeta ao contínuo
estado de metamorfose e transformação do cavalo marinho como um processo que projeta a
extensa variedade de futuros possíveis tanto para a brincadeira como para seus participantes.
Dando-se a ação brincada (é dizer, as teias afetivas, redes de significado, transmissão dos
saberes específicos imbuídos desta ação) de forma constante e contínua, através das gerações,
se estimula uma memória herdada que preenche os corpos com a experiência social e histórica
de outrora, sendo esta uma forma de vincular e articular passado e o futuro no momento
presente ou, dito de outro modo, impregnar a vivência individual e subjetiva com os processos
sociais coletivos já experimentados e os que ainda estão por vir.
128

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133

ANEXOS
ANEXO A​. Performance na rua (Ambrósio e Velhos) – Rio Tinto, Paraíba, 23 de junho 2018.
Disponível em: ​https://youtu.be/CMIOOctes8E​, Aceso em 13 de jun 2020.

Este vídeo surge como pretexto para a elaboração de um exercício prático da disciplina
de Antropología Visual, ministrada pelo professor João Martinho (PPGA, CCHLA,
UFPB) no primeiro semestre do ano 2018. Nesta performance o autor, junto com seus
colegas de disciplina, estabelece um diálogo com os moradores da cidade de Rio Tinto
(PB) através de personagens que remetem ao Ambrosio, à Véia do Bambu e o Mané
Joaquim (O Véi da Véia). Deste modo, tanto o vídeo como a performance pretendem
explorar a capacidade dialógica e interativa destas figuras num contexto diferente ao da
sambada ou inclusive do cavalo marinho,.
134

ANEXO B. ​Folheto de divulgação do projeto ​Só vai no sonho: ​Roda/Oficina com Seu
Martelo. Janeiro 2019.
135

ANEXO C. ​Biografia I

Mestre Biu Alexandre

Severino da Silva, mais conhecido como mestre Biu Alexandre, é o fundador do


grupo de Cavalo Marinho Estrela de Ouro e um dos brincadores mais antigos da cidade
de Condado - PE. Severino nasceu em 1945 e começou a brincar aos 12 anos de idade.
Apesar do pai, Pedro de Quina da Silva, brincar cavalo marinho, ele aprende junto com
Duda Bilau e seu grupo de cavalo marinho (brincador já falecido mas lembrado e
reconhecido por muitos até os dias de hoje) que, na época, tinha sede no Engenho
Guarani (Zona da Mata Norte Pernambucana) – ​“Daí por diante eu comecei indo pro
cavalo marinho dele, e papai se deixar. Papai não queria que eu fosse pro cavalo
marinho”119; a primeira vez que Severino conduziu uma brincadeira de cavalo marinho
foi na cidade de Goiana - PE, com o grupo do mestre Preá e, mais tarde, fez a função de
contra-mestre no grupo de Batista, cuja forma de brincar influenciou notavelmente o
estilo do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado, que funda em 1979, despois de
acomular conhecimento e dinheiro suficientes para compor seu próprio brinquedo.
Segundo o próprio mestre, o nome do brinquedo é um tributo ao grupo de maracatu
homônimo de Chã de Camará - PE. Desde então, o grupo é composto fundamentalmente,
por membros da família de mestre Biu, entre os quais se encontram brincadores
excepcionais como Aguinaldo Roberto da Silva (filho), sendo até quatro gerações que
brincam, atualmente, no terreiro do Estrela de Ouro, repassando os conhecimentos deste
mestre e mantendo viva a tradição familiar.

119
Excerto da entrevista ao mestre Biu Alexandre datada de 20 de maio de 2019, realizada em Condado - PE.
136

ANEXO D. ​Biografia II

Minho

Jamerson Roberto da Silva nasceu em 3 de abril de 1996. Conhecido por amigos


e familiares como "​Minho​", ele é o filho caçula de Aguinaldo e Ivanise, assim como neto
de mestre Biu Alexandre. Brincador desde os 7 anos de idade, aprendeu junto com o pai,
avô, irmãs e primos a brincar no Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado. Com vinte
e quatro anos, Jamerson reúne uma enorme experiência sobre a brincadeira, fruto do
contato direto com os mestres e de incontáveis sambadas. Porém, assim como muitos
outros jovens brincadores da Zona da Mata Norte de Pernambuco, a busca de um trabalho
com o qual poder gerar uma renda fixa para se manter lhe impele a se distanciar
intermitentemente da brincadeira, ora migrando para outro estado com um contrato
temporário, ora dedicando seu tempo, quase de forma exclusiva, a estudar e trabalhar
como técnico eletricista en Condado. Entretanto, seu desejo é o de poder ganhar dinheiro
fazendo o que ele mais gosta: brincar cavalo marinho.
Numa conversa casual de domingo à noite, Minho argumenta que agora que se
casou e vai formar família (a mulher dele, Jaqueline, está esperando um filho) enxerga o
cavalo marinho, a cultura popular e o palco como uma fonte de renda digna e forma de
sustento familiar. Atualmente está à procura de mais conhecimento sobre a brincadeira,
desenvolve sua própria pesquisa, decorando as loas e versos dos mestres mais antigos e
grava no celular.
Deste modo, ele concilia o trabalho de eletricista com o de artista e pesquisador,
como revela sua carteira de trabalho: Contratado pelo Serviço Social do Comércio
(SESC) no projeto Palco Giratório 2019, Minho e outros brincadores do Cavalo Marinho
Estrela de Ouro de Condado percorreram as diversas capitais do país apresentando seu
brinquedo durante nove meses. Sem dúvida um estímulo e motivação importante para a
carreira do jovem brincador que, como ele mesmo alega: ​“A gente tá aprendendo mais
agora, [...] tá ajudando bastante porque pra mim, na minha opinião, ta sendo tipo
ensaio, [...] aí você grava um verso, uma figura: vai gravando um, outro...”​.
Depois desta experiência, Minho se mostra mais interessado que nunca em
continuar aprendendo junto com seu pai e os demais mestres de Cavalo Marinho. No
terreiro ​bota a figura de Mané Joaquim (​o Véi-da-Véia​) junto com o pai, que ​bota a​
137

esposa (​a Véia-do-Bambu​), juntos fazem uma dupla insuperável. No entanto, apesar de
Aguinaldo ser seu principal mentor na brincadeira, Minho procura se diferenciar de suas
referências mais próximas, elaborando um modo singular de brincar. Assim, atualmente
estuda figuras como a do Soldado da Gurita com ajuda do pai e de outros brincadores
mais antigos (como Seu Martelo, mestre Inácio Lucindo, entre outros), desenvolvendo
sua própria pesquisa.
138

ANEXO E. ​Biografia III

Natan

Natan Noberto Rodrigues é filho de Nice e Doda, e por conseguinte, neto de


Antônio Teles. Brincador desde idade precoce, Natan nasce em Condado em 1995, três
anos depois do seu irmão mais velho Totô. Ambos crescem e estudam na cidade de
Condado - PE onde residem até hoje. Durante a infância e o princípio da adolescência, o
seu avô os introduziu no cavalo marinho, aprendendo a maior parte dos conhecimentos
que hoje retêm sobre a brincadeira, propiciando a paixão e o interesse por ela. Na
atualidade, são eles que administram o Cavalo Marinho Estrela Brilhante e Estrela do
Amanhã, sob a supervisão de Nice.
Seja pelo acesso a mais oportunidades, tecnologias e informações que outras
gerações anteriores ou pelo esforço destas últimas em manter vivo o interesse e a
disposição dos mais jovens pela brincadeira. Natán dedica seu tempo e habilidades quase
exclusivamente ao desenvolvimento e manutenção do brinquedo familiar, elaborando
formas de ​“viver da cultura e passar o conhecimento pra frente”120. Deste modo, garante
que crianças e adolescentes se interessem pelo cavalo marinho e aprendam os
ensinamentos transmitidos por seu avô em oficinas, aulas e ensaios dirigidos semanais na
sede dos grupos de cavalo marinho que ele e sua família administram.
Por outro lado, Natán faz um vigoroso e interessante labor de curadoria
disponibilizando, de forma aberta e interativa, diversos registros audiovisuais de cavalo
marinho (desde a década de 1980 até o presente) que podem ser encontrados no canal de
YouTube: ​Espaço Tradições Culturais121, disponibilizando, referências observáveis do
passado da brincadeira, assim como organizando a memória do cavalo marinho. Neste
aspecto, Natan é um exemplo claro da nova geração de brincadores que não só mantém
viva, mas atualizada a brincadeira.

120
Excerto da entrevista com Natan Noberto Rodrigues datada de 10 de junho de 2019, realizada em Condado -
PE
121
Disponível em ​https://www.youtube.com/channel/UClPgBu0zx4ejnZP7_9DAxzg
139

ANEXO F. ​Biografia IV

Mestre Aguinaldo

Aguinaldo Roberto da Silva nasceu no Engenho Paraguaçu em 28 de fevereiro de


1966. Ainda criança ele, seus dois irmãos e seus pais mudaram-se para a cidade de
Condado. Como a maioria dos rapazes de sua geração, começou a trabalhar no corte da
cana desde cedo. Com doze anos de idade, ao passo que se familiarizava com o duro
trabalho “da cana”, Aguinaldo entra em contato com o cavalo marinho aprendendo ao
lado do que foi e continua sendo seu principal mentor: mestre Inácio Lucindo da Silva.
Apesar de ser filho do também brincador e mestre Biu Alexandre, Aguinaldo começa
brincando no cavalo marinho de mestre Inácio como daminha – figura iniciática por
excelência. Mesmo reconhecendo que no começo sentia vergonha por ter que usar um
vestido de menina para poder brincar, admite que o tempo, a força de vontade e a
auto-superação foram aspectos indispensáveis para poder desenvolver sua paixão pela
brincadeira.

Eu trabalhava na cana, aí, rapaz, a vida era um serviço ruim para caramba, da
criança olhar assim e dá vontade de voltar pra casa, e quando era no sábado a
gente fazia a “meinha”, que nós chamávamos assim, que não era uma diária
completa, né, aí a gente fazia a meinha, eu andava duas três horas a pé, as
vezes não tinha um dinheiro da passagem, de Itaquitinga para Condado. [...] A
gente saia do engenho, lá perto de Araçoiaba, cortando por dentro, pra chegar
na pista de quem vem para Itaquitinga, aí vai esperar carona de trator, às
vezes vinha a pé mesmo, às vezes demorava de carro pequeno, era um
aperreio arretado, até chegar aqui, e muitas vezes os ônibus chegavam com os
trabalhadores primeiro do que eu, aí eu chegava lá em casa, tomava banho,
almoçava e ia dormir e de noite estava lá, firme e forte brincando e esquecia
todas as coisas ruins que aconteciam no serviço. Para brincar o Cavalo
Marinho, meu filho, tem que ter amor pela brincadeira, paixão pelo que você
está fazendo, força de vontade, acho que… Já acabei namoro por causa de
Cavalo Marinho, já brinquei com papeira, que vocês chamam de Caxumba, já
brinquei com o pé inchado que não podia nem calçar o sapato, mas dancei.
Então tudo isso por uma brincadeira, está entendendo? (Excerto da entrevista
com Aguinaldo Roberto da Silva datada de 13 de junho de 2019, realizada em
Condado - PE).

A carreira profissional de Aguinaldo é tão profícua como eclética, conciliando as


tarefas domésticas e familiares com seus múltiplos projetos artísticos, tanto colaborativos
como individuais. Em casa convive com com seu filho caçula Jamerson Roberto e sua
nora Jaqueline, além de cuidar, junto com sua esposa Ivanise, de dois netos, Betinho e
Daysa. Aguinaldo e Ivanise administram um negócio familiar de pequeno porte,
vendendo frutas e verduras aos sábados em Condado e aos domingos em Freixeiras
140

(Goiana). Toda quintafeira, um ou outro viaja para a CEASA (Centro de Abastecimento e


Logística de Pernambuco, localizado no Recife) onde adquirem a mercadoria que vendem
na feira durante o fim de semana. Por outro lado, existem os distintos projetos artísticos
relacionados à brincadeira e as artes cênicas que obrigam a Aguinaldo a se ausentar da
vida familiar por longos períodos. Viaja sem parar para as diversas capitais do país como
São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, e Curitiba onde ministra oficinas e palestra sob
demanda dos grupos de cavalo marinho que ali existem. Alguns exemplos que
configuram a carreira profissional do brincador são a parceria com a companhia Mundu
Rodá (São Paulo) desde o ano 2004, a participação no projeto de intercâmbio cultural
Itália-Brasil ​Scambio Dell'arte (2013), duas turnês nacionais junto ao projeto Palco
Giratório do SESC (Serviço Social do Comércio), a primeira com o espetáculo ​A Barca
(2004)​, p​ roduzido pelo Grupo Grial de Dança, e o segundo com o Cavalo Marinho
Estrela de Ouro de Condado (2019). De todos estes projetos, cabe destacar, por sua
relevância estética e simbólica seus dois espetáculos solo, pois ambos expõem, através de
elementos autobiográficos, sua própria transição de brincador e trabalhador rural a ator e
artista reconhecido internacionalmente (pois já se apresentou tanto na Alemanha como
em Portugal). O primeiro, é uma aula-espetáculo intitulada ​Do Terreiro à Cena (​ 2014), o
segundo é um espetáculo intitulado ​A Flor da Cana (​ 2019)​, c​ oproduzido pela Cia. Mundu
Rodá e Alán Monteiro.
Atualmente com 54 anos, Aguinaldo é referência tanto para os brincadores mais
jovens como para todas as pessoas que chegam de fora, interessadas pelo cavalo marinho.
O que chama a atenção não é somente seu desempenho no terreiro e na cena, fruto de
anos de experiência e dedicação à brincadeira, mas sua forma de pensar e compreender as
dinâmicas em contínua transformação do cavalo marinho. Curioso, aberto à explorar
novas formas e caminhos criativos que dialogam de uma ou outra forma com a cultura
popular, compartilhando seu conhecimento com quem se mostre disposto a conhecer e a
aprender.

Ele se descreve como sério, tímido e até meio matuto, mas passado o primeiro
momento, lá está ele com sua fala rápida e pensamento mais rápido ainda,
fazendo alguma brincadeira, algum jogo de palavras que deixa as pessoas que
conversam com ele desconcertadas e caindo na risada (GAROA, 2014).

Sem dúvida um excelente brincador, mas nada faz sombra à sua personalidade
gentil, bem humorada e honesta a tempo completo.
141

ANEXO G. ​Biografia V

Mestra Nice

Maria de Fátima Rodrigues, mais conhecida como Nice Teles ou Nice do Cavalo
Marinho, nasceu no dia 13 de janeiro de 1969 na cidade de Condado-PE. Na atualidade,
possui e administra dois grupos de cavalo marinho – o Estrela Brilhante (herdado de seu
pai, mestre Antônio Teles) e o Estrela do Amanhã (criado por ela e configurado
principalmente por crianças e adolescentes) – e um grupo de maracatu, também chamado
Estrela Brilhante. Filha do “saudoso mestre” Antônio Teles e de Benedita, sua relação
com a cultura popular começou na infância, acompanhando seu pai às sambadas e
carnavais da região.
Aos seus 51 anos, Nice se auto qualifica como artista e dona de casa,
combinando ambas profissões com esmero e dedicação. Sua carreira como brincadora
começa aos 24 anos, com o objetivo e o desejo de “quebrar o tabu”, é dizer, ocupar um
espaço até então restrito ao universo masculino. Nice tornou-se uma mulher pioneira em
ocupar o lugar de mestra de cavalo marinho, título que diz aceitar com orgulho e com
muita humildade: ​“pelas minhas ações eu me tornei [mestra], eu não fui buscar nem
tomei de ninguém. Foi as minhas ações, os meus ensinos, a minha transição, o que eu
herdei de pai e fui transmitindo”122.
Desde o ano 2005 também exerce a função de pedagoga: contratada de forma
intermitente pela prefeitura de Condado (dependendo do mandato), Nice ministra aulas
de cavalo marinho, coco de roda, ciranda, quadrilha junina e outras danças populares para
grupos de crianças, adultos e também de idosos.
Outra faceta distintiva da mestra é sua devoção a Nossa Senhora das Graças.
Católica desde criança, Nice realiza diversas atividades litúrgicas e administrativas na
Igreja de Nossa Senhora das Dores em Condado, da qual faz parte e participa
altruisticamente.
No presente, mestra Nice assume um papel essencial na vida social e cultural de
Condado, não só por seu trabalho educacional e de acompanhamento de grupos em risco
de exclusão social (idosos, crianças de bairros marginais, etc), mas também por criar
formas de acesso para mulheres e jovens ao universo do cavalo marinho que, cada vez

122
Excerto da entrevista com Nice Teles datada de 30 de junho de 2019, realizada em Condado - PE.
142

mais, experimenta a participação das mulheres no seu contexto dramático; seus


brinquedos estão atualmente ativos sob a coordenação conjunta dela e de seus dois filhos,
Natan e Totó.
143

ANEXO H. ​Biografia VI

Pinone

Risoaldo Jose da Silva, também conhecido como Pino ou Pinone, nasceu em


1974. Irmão de Aguinaldo e filho de Biu Alexandre, Risoaldo criou-se numa família de
brincadores, aprendendo com pai e fazendo da brincadeira um ofício com o qual ganha a
vida ao mesmo tempo que mantém viva a tradição familiar: ​“Meu ofício desde que nasci
foi o cavalo marinho. Eu nunca trabalhei fichado, nunca cortei cana, eu me orgulho de
dizer que nunca precisei cortar cana, vi?”
Pinone começa a brincar em 1980 com somente seis anos de idade, um ano
depois que mestre Biu Alexandre fundasse o Cavalo Marinho Estrela de Ouro. Quando o
pai se separou da mãe e foi morar em Goiana, a mãe de Risoaldo e Aguinaldo se dispôs a
comprar o brinquedo que Biu Alexandre tinha deixado em Condado, como consequência
de sua partida. Desde então, Risoaldo assumiu a responsabilidade de administrar o
Cavalo Marinho da família Silva.
Como a maioria dos iniciantes, começou a brincar de dama, passando pela
posição de ​arrelequim,​ galante e, mais tarde, figureiro. Hoje em dia, a posição de pinone
durante uma brincadeira encontra-se fixa no banco como bajista, papel que faz mais
devido à falta de alguém que o substitua do que por gosto. Ainda assim reconhece que
seu desempenho no banco é fundamental para cada brincadeira e que sem ele ​“o Cavalo
Marinho não brinca”.​
Atualmente suas atividades se centram na administração do Cavalo Marinho
Estrela de Ouro de Condado, assim como o Maracatu Leão de Ouro (da mesma família),
resolvendo assuntos de gestão do grupo como pagar contas, atualizar documentos, ou
inscrevê-los em diversos editais: ​“corro atrás de documentação pra botar tudo em dia,
corro em banco, vou em contador, o que tiver eu vou correr atrás pra resolver”123.
Junto com Pedrinho Salustiano, Pinone preside a associação de Cavalo Marinho,
projeto que desenvolvem desde o ano 2019 com o intuito de fortalecer a unidade entre
grupos de cavalo marinho e estimular a recuperação de sambadas nos diferentes terreiros.

123
Excerto da entrevista com Risoaldo José da SIlva datada de 11 de junho de 2019, realizada em Condado -
PE.
144

ANEXO I. ​Excerto do diário de campo do autor contendo desenho com detalhes da fantasia
da figura do Urubú:
145

ANEXO J. ​Encarte do Projeto Palco Giratório (SESC, 2012) contendo as informações do


espetáculo “A Barca” co-produzido pela Cia. Grupo Grial de dança (dirigida por Maria Paula
Costa Rêgo) e co-protagonizado por diversos mestres e mestras de diferentes grupos de
Cavalo Marinho. Apresentado em 55 cidades do Brasil.
146
147
148
149

ANEXO K. ​Encarte do Projeto Palco Giratório (SESC, 2018) contendo as informações do


espetáculo do Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado. Disponível em:
http://www.sesc.com.br/portal/site/palcogiratorio/2018/espetaculos/espetaculosinternos/caval
o+marinho+estrela+de+ouro​. Acesso em 12 de junho 2020.
150

ANEXO L. ​Registros de apresentações de cavalo marinho durante o carnaval, São João e


outras datas que não coincidem com o calendário tradicional da brincadeira.
151

ANEXO M. ​Titulação do cavalo marinho reconhecendo-o como patrimônio cultural do


Brasil. Conferido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 03 de
dezembro de 2014.
152

ANEXO M. ​Descrição do Grupo de Estudos em Cavalo Marinho Boi da Praça (fundação e


objetivos).

Grupo de Estudos Em Cavalo Marinho Boi da Praça

A iniciativa de desenvolver um grupo de estudos em Cavalo Marinho nasce a partir


da percepção de que ambientes formais, como aulas, oficinas e demonstrações, abordam
vivencial e tecnicamente uma parte analítica e reflexiva da brincadeira, mas não formas de
como brincar em uma sambada, por exemplo, onde a pulsação, o ritmo e a dinâmica do
espaço-tempo do acontecimento não obedecem como no ambiente controlado da sala de
aula. Assumindo isso, um conjunto de amigos interessados aprofundar seus conhecimentos
sobre a brincadeira do Cavalo Marinho por meio da vivência, juntaram-se em 2015 e
começaram experimentar modos de estreitar relações com brincadores/as e mestres/as.
A primeira iniciativa veio como formas de organizar e viabilizar financeiramente a
vinda e os encontros com os/as folgazões/onas, mas isso ainda acontecia no formato de
aulas. Por volta do final de 2016, Alan Monteiro começou a frequentar a iniciativa do então
grupo de estudos Boi Chatin, que se encontrava na época na garagem da casa de mestre
Grimário do Cavalo Marinho Boi Pintado. Inspirado nessa iniciativa e com a ideia de
desenvolver uma “rede de brincadeiras”, em março de 2017 Alan Monteiro junto com
Luciana Portela, Leydianne Gonzaga e Larissa Mendes, formaram o Grupo de estudos em
Cavalo Marinho Boi da Praça, procurando desenvolver atividades semanais inspiradas na
formação da brincadeira e do/a brincador/a de Cavalo Marinho. Ainda hoje os processos de
transmissão oral e a vivência no acontecimento frequente da brincadeira são os principais
meios de construção das experiências que formam esse folguedo popular e seu brincador/a.
Dessa forma, o Boi da Praça vem realizando estudos brincados em espaços
públicos da cidade de João Pessoa e parcerias com outros grupos como o Boi Chatin de
Olinda - PE, Boi da Borborema de Campina Grande - PE, o Cavalo Marinho de Mestre
Araújo em Pedras de Fogo - PB, tentando estabelecer uma rede entre folgazões/onas desses
municípios. Buscamos viver as dimensões musicais, dançadas e teatralizadas da
brincadeira, de modo articulado o mais próximo ao acontecimento da sambada de Cavalo
Marinho. Sendo assim nos organizamos de forma coletiva em espaços públicos como
praças e calçadas, tentando agregar outras pessoas interessadas. São práticas constantes dos
encontros cantar e tocar as toadas, como também realizar os trupés e o “botar” de figuras,
seguindo uma metodologia de observação-percepção dos mais experientes e como aquela
153

forma de brincar pulsa em cada um/a, dando corpo à brincadeira do Cavalo Marinho. Da
mesma forma procuramos visitar mestres/as e brincadores/as, além de trazê-los para
ministrarem oficinas, a modo de alimentarem e direcionarem nossa prática de encontros
semanais.
Até o presente momento o Grupo de Estudos em Cavalo Marinho Boi da Praça
realizou mais de 200 encontros com duração mínima de 3 horas em praças, universidades
públicas, pontos turísticos, ruas e calçadas da capital paraibana. Foram organizados 04
encontros com mestres/as de Cavalo Marinho, como Aguinaldo Roberto e Seu Martelo
(ambos de Condado - PE) totalizando mais de 100 horas-aula. Somado a isso, uma média
de 05 apresentações curtas, denominadas “feijão queimô”, em parceria com outros grupos
de estudos, em locais como Instituto Federal da Paraíba (o (IFPB) de Campina Grande e
centros culturais da cidade de Cabedelo, Campina Grande e João Pessoa; além de um fluxo
de mais de 300 horas de vídeo e vários registros fotográficos. Também realizamos cerca de
10 visitas de campo, como idas a sambadas e visitas aos mestres/as, como o encontro de
Cavalos Marinhos na Casa da Rabeca, ocorrido anualmente nos dias 25/12 e 06/01, e
sambadas na cidade de Condado-PE e Pedras de Fogo - PB, bem como a visita a mestres
/as nessas localidades.
Atualmente o grupo conta com oito integrantes que organizam e estruturam o
grupo, e mais seis pessoas assíduas nos encontros semanais, totalizando, em media, 14
participantes. Além disso, há frequentadores esporádicos e, a cada reunião pública, temos
em média 30 espectadores locais, entre transeuntes e moradores do bairro. A formação dos
integrantes coaduna com a ideia principal dessa formação de vincular espaços distintos à
brincadeira e pesquisa do Cavalo Marinho. Há cinco arte-educadores com contribuição
forte em espaços de formação “formal” e “não-formal” (escolas públicas, associações de
bairro, comunidades periféricas), a exemplo de Luciana Portela, por meio do Centro
Estadual de Arte da Paraíba (CEARTE) e de iniciativas independentes, oferece formações
nas quais o Cavalo Marinho é uma das linguagens abordadas, servindo de base para
processos pedagógicos criativos. Ações que ampliam os tentáculos que o grupo de estudos
pode atingir. Há também licenciandos, mestrandos e doutorandos cujo objeto de estudo são
manifestações populares, dentre elas o próprio Cavalo Marinho, contribuindo no vínculo
entre os espaços acadêmico e não-acadêmico, bem como produção documental (na forma
de dissertação, tese, artigo e ensaios) e difusora desses conhecimentos que se
intercambiam. Especialistas em audiovisual que contribuem com o olhar técnico sobre os
registros necessários acerca das produções do grupo. O grupo também dispõe de pessoas
154

responsáveis pela gestão financeira, um trabalho que envolve administrar as contas


bancárias, gastos, controle e atualização da planilha, prestação de contas, notas fiscais, etc.
Acreditamos que nesta rede comunitária também devemos levar em consideração
agentes externos ao grupo nuclear (Boi da Praça), dado que a interação com os/as
mestres/as, e outros grupos de cavalo marinho são essenciais para o desenvolvimento do
processo, assim como para levar cabo a troca de saberes, intenção primordial do grupo. São
exemplos de tais trocas, os vínculos estabelecidos com outros grupos de estudo em Cavalo
Marinho o Boi da Borborema (Campina Grande – PB) e Boi Chatin (Olinda – PE), assim
como os laços estabelecidos com o Mestre Aguinaldo (Condado –PE), Seu Martelo
(Condado – PE), Mestre Inácio Lucindo (Camutanga – PE), etc.
Em suma, o objetivo do Boi da Praça não é “resgatar” essas manifestações, mas
sim investigar e cultivar a riqueza que a cultura popular configura nos mais diversos
campos de estudo. Riqueza esta que é traduzida na experiência incorporada pelos/as
folgazões/onas, a qual configura-se como memória atualizada no decorrer dos processos de
transmissão de conhecimento ancestral. Portanto, pretendemos por meio deste projeto:
viabilizar uma rede de interações com mestres/as e brincadores/as tradicionais do Cavalo
Marinho; sistematizar e documentar registros; observar práticas corporais e representativas;
oferecer oficinas às comunidades com a participação de mestres e mestras de Cavalo
Marinho dos estados de Pernambuco e Paraíba. Os conteúdos de seus encontros
contemplam as várias possibilidades desta brincadeira: técnicas corporais, confecção de
indumentárias e adereços, técnicas e confecção de instrumentos, etc. Os saberes adquiridos
nestas formações são posteriormente utilizados pelos integrantes deste coletivo no seu
desenvolvimento enquanto Grupo de Cavalo Marinho.

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