Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FEIRA DE SANTANA - BA
2017
1
FEIRA DE SANTANA - BA
2017
2
BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
Aos meus filhos, Kátia, Claudia, Francisco Jr. e Alex, pelo incentivo de todas
as horas e conforto, especialmente, nos momentos em que senti me faltarem forças.
RESUMO
Essa pesquisa teve como objetivo central caracterizar e estabelecer relações entre
os desenhos rupestres localizados nos sítios arqueológicos das Serras Isabel Dias,
no município de Morro do Chapéu e a percepção de movimento. Durante o
procedimento analítico procurou-se priorizar aqueles desenhos que transmitiam a
percepção de movimento contínuo e cadenciado sugerindo, possivelmente, a
intencionalidade de se produzir uma cena animada. A pesquisa foi desenvolvida a
partir de revisões bibliográficas, estudos de campo e análises das cenas que indicam
o movimento, de acordo com os parâmetros propostos por Rudolf Arnheim e
utilizando-se ainda, de recursos comparativos recomendados por Leroi‑Gourhan
para identificar os padrões de movimento no desenho rupestre.
ABSTRACT
Keywords: Rock Drawings. Animated Scene. Movement. Serras Isabel Dias. Morro
do Chapéu.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 15: Danos causados pela ação do fogo na Toca Isabel Dias 67
UC Unidade de Conservação
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 12
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................... 90
APÊNDICES................................................................................................ 96
12
1 INTRODUÇÃO
No início, havia a imagem. Para onde quer que nos viremos, exis te a
imagem. Por todo o lado através do mundo, o homem deixou vestígios das
suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos feitos na rocha e
que vão desde os tempos mais remotos do paleolítico até a época moderna.
Estes desenhos destinavam-se a comunicar mensagens e muitos deles
constituíram aquilo a que chamamos “os pré-anunciadores da escrita”,
utilizando processos de descrição-representação que apenas retinham um
desenvolvimento esquemático de representações de coisas reais [...].
vazio ou ocupado, pode ser utilizado pelo desenhista com o objetivo de criar a
sensação de profundidade. Já a direção, está relacionada com o observador.
Finalmente, há os elementos práticos, que subjazem o conteúdo e extensão de um
desenho, tais como representação, significado e função. Todos esses elementos
visuais constituem a forma, ou seja, um formato de tamanho, cor e textura definidos.
No âmbito deste trabalho acadêmico, tais elementos voltarão a ser
contextualizados, durante o processo de análise dos suportes rochosos, painéis e
desenhos rupestres situados na área pesquisada. Deve-se, porém, reafirmar que os
elementos descritos, podem estar presentes nos grafismos rupestres de forma
planejada, ou apenas intuitiva. A ausência de conhecimento de determinadas
técnicas de expressão visual, de forma padronizada, tal como nos é apresentada
hoje, não é um impeditivo para a criação artística, como afirma Wong (2001, p. 13):
O pintor que retratou nas rochas os fatos mais relevantes da sua existência
tinha, indubitavelmente, um conceito estético do seu mundo e da sua
circunstância. A intenção prática da sua pintura podia ser diversificada,
variando desde a magia ao desejo de historiar a vida do seu grupo, porém,
de qualquer forma, o pintor certamente desejava que o desenho fosse "belo"
segundo seus próprios padrões estéticos. Ao realizar sua obra, estava
criando Arte. (MARTIN, 2005, p. 240).
daqueles povos. Há ainda, porém não menos importante, que se observar esses
desenhos quanto ao seu aspecto conceitual, ideativo.
Segundo Havre (2015), há uma premissa teórica que os desenhos rupestres
encontrados no Nordeste do Brasil, são manifestações gráficas dos povos
caçadores-coletores como resultante da ação de grupos homogêneos, simples e
isolados. No entanto, tal premissa não se evidencia: “Em outras palavras, a eventual
simplicidade dos grupos de caçadores-coletores pré-históricos do Nordeste do Brasil
ainda deve ser comprovada” (HAVRE, 2015, p. 16).
Refletir sobre esses grafismos sob o ponto de vista da inventividade, para
além da simplicidade sociocultural que eventualmente são aos seus autores, é a
principal proposta deste trabalho. A pesquisa partiu do seguinte problema: as
representações das cenas encontradas nas Serras de Isabel Dias foram
intencionalmente produzidas de modo que houvesse a percepção de movimento? A
hipótese considerada é que as cenas representadas por figuras contínuas,
diferenciadas apenas pela mudança de posição dos membros inferiores, superiores
ou tronco, indicavam uma premeditação do autor, para que fosse transmitida, ao
observador da cena, a percepção de movimento.
Desde o objetivo geral que buscava resposta para a questão motivadora da
presente pesquisa, buscou-se confrontar a hipótese com os desenhos rupestres
pesquisados nas Serras Isabel Dias, analisando as relações de semelhanças,
verificando os padrões e identificando o ponto de inércia a partir do qual é possível
analisar e estabelecer a existência do movimento, conforme propõe Arnheim (1982),
permitindo, desse modo, que se realizassem correlações entre os desenhos. Com o
objetivo de adotar métodos de comparação dos desenhos rupestres que sugeriam
movimento, foram selecionadas cenas indistintas sejam representando figuras
humanas ou de animais silvestres.
O possível deslocamento das formas no espaço gráfico estabeleceu os
parâmetros de seleção das amostras. Com esta finalidade foi determinada uma série
de critérios para identificação dos elementos formais que constituem a base
comparativa dos desenhos. No entanto, o uso da análise do movimento segundo
critérios de Arnheim (1982), só foi possível ao pesquisador com o conhecimento dos
princípios de forma e desenho, conceituados por Wong (2001). Com efeito, a partir
dos conceitos estabelecidos por Arnheim (1982) e Wong (2001), permitiu-se
18
1 A região de Morro do Chapéu é um complexo de serras e morros íngremes, separados por vales
profundos. A maior parte dos vales e morros é coberta por floresta densa. Ao longo da área de estudo
são possíveis de serem encontradas gravuras, símbolos e outros registros, presentes em paredes
rochosas ora abrigadas, ora expostas, sujeitos à ações humanas e intempéricas . São conhecidos,
entre outros, os sítios arqueológicos das Lages, das Serras Isabel Dias, das Carnaúbas, do Estreito e
do Badeco. Alguns desses sítios já foram objeto de cadastrado no pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) (INEMA, 2011, p. 10).
2 Há pesquisadores, que defendem uma ocupação humana no Brasil, que antecedem os 100.000 mil
anos, a exemplo de Beltrão (1992); no entanto, nos meios científicos, principalmente entre
pesquisadores norte-americanos, há quem resista em aceitar datações superiores a 11.000 anos
para a América do Sul (MELTZER; ADOVASIO, 1994).
3 No estudo da pré-história, Antes do Presente (AP) tem por convenção o ano de 1950; referência,
aproximada, ao período em que foi descoberta a técnica de datação conhecida como Carbono 14.
Conforme Martin, (2005, p. 75): “As datações foram calculadas segundo o termo internacional AP
"antes do presente" (BP – before present), mundialmente usado a partir de 1950, ano em que Willard
Frank Libby (1908-1980) obteve a primeira datação radiocarbônica na Universidade de Chicago”.
23
período que as águas oceânicas baixaram de nível devido a uma das quatro
glaciações, conforme esclarece Etchevarne (2000, p. 18):
4 O Pleistoceno é o período geológico que se estende entre 2.000.000 e 10.000 anos AP, ao qual
sucede o período atual, o Holoceno (PROUS, 2007, p. 14).
5 Período pós-glacial iniciado aproximadamente há 11.000 anos e compreende os dias atuais. Seus
eventos principais são o fim da denominada Era do Gelo e o início da expansão humana sobre o
planeta.
6 Grupos humanos que supostamente tinham como base aliment ar a caça, pesca e coleta além de
modo incipiente de produção agrícola. Usado especificamente em relação a povos ou grupos (antigos
ou atuais) que não praticam extensamente a agricultura e criação de animais (ROOSEVELT, 1992).
24
[...] era mais uma corrida de revezamento do que uma longa caminhada. É
possível que um grupo de talvez 06 ou 12 pessoas avançasse uma
pequena distância e decidisse se estabelecer naquele lugar. Outros vinham,
passavam por cima delas ou impeliam-nas para outro lugar. O avanço pela
Ásia pode ter levado de 10 mil a 200 mil anos.
Para Guidon (1992), pressupor que atravessar a Beríngia, vindo a pé, foi a
única forma de o homem chegar as Américas, não faz justiça a capacidade
intelectual dos humanos. Seguindo essa linha de raciocínio, constrói indagações a
respeito dessa via de ocupação única, defendida por seus críticos. Inquire Guidon
(1992, p. 38):
30
Crítico desse modelo de rota migratória por via marítima, Prous (1997),
desacredita que o homem pré-histórico tivesse navegado por longos percursos até a
América do Sul, e justifica:
Guidon (1994) afirma, ainda, que o modelo de ocupação única, por meio da
Beríngia não responde a algumas questões fundamentais no espaço e tempo, além
de criar enigmas. Uma dessas indagações diz respeito à suposta rapidez de
expansão humana pelas Américas; de certa forma se opondo ao próprio modelo
Clóvis First. Ora, segundo ela, ainda que as datações arqueológicas brasileiras não
ultrapassassem 11 mil anos, como propunham os pesquisadores norte-americanos,
seria necessário admitir uma extraordinária velocidade de dispersão territorial
desses colonizadores pré-históricos; considerando-se que há vestígios da presença
humana por todo o Continente americano com datações semelhantes.
31
diz que final do Século XIX e início do XX, foi um período em que a imagianação, o
mito e as fantasias, permearam as pesquisas arqueológicas:
8 Depósitos de conchas e cascas de ostras, junto à costa ou a rios e lagoas do litoral, onde, por
vezes, encontram-se ossos humanos, objetos líticos e cerâmicos que foram acumulados em período
pré-histórico por povos primitivos.
38
Fonte: cielo.br/img/revistas/ea/v29n83
de seus rios e riachos tributários, até atingir uma grande parcela do semi-árido
nordestino. Seguindo-se a linha de raciocínio da arqueóloga, convém observar, por
exemplo, inúmeros sítios rupestres no entorno dos rios Jacaré e Verde, tributários da
margem direita do São Francisco, o que torna essa hipótese consistente.
A época ainda é imprecisa, mas, sabe-se que em algum momento há milhares
de anos AP, os humanos chegaram na região que no futuro seria conhecida como
Chapada Diamantina Setentrional; mais precisamente, no Complexo de Serras
denominado de Isabel Dias, situado no Município de Morro do Chapéu, Bahia. Essa
cadeia montanhosa é parte de um planalto sedimentar que atinge altitudes em torno
de mil metros e constitui umas das balizas da bacia hidrográfica do Rio Jacaré.
A ação dos ventos, a força dos riachos caudalosos e velozes, tornam o relevo
acidentado. O intemperismo9, responsável pelas encostas íngremes, serras altas e
vales estreitos de sulcos profundos, também contribui para a construção da
paisagem. Planícies e planaltos e ziguezagueiam acompanhando o curso dos rios.
Moraes (1984), assim descreve a orografia da Chapada Diamantina:
contexto, portanto, são os grupos humanos que habitaram definitiva, ou temporariamente, a região
onde se localiza o Complexo de Serras denominado de Isabel Dias.
42
11 É a forma de vida dos povos nômades, isto é, povos que não têm habitação fixa. Os nômades são
do tipo caçador-coletores, ou seja, vivem da caça, pesca e da coleta de alimentos. Quando há
necessidade, deslocam-se para procurar melhores condições de vida. Durante a pré-história, na
América do Sul, Mesmo em sociedades agrícolas organizadas, a caça foi um imperativo para
obtenção de proteínas (MARTIN, 2005, p. 181).
44
12 Movimento pelo qual migrantes futuros tomam conhecimento das oportunidades de trabalho
existentes, recebem os meios para se deslocar e resolvem como se alojar e como se empregar
inicialmente por meio de suas relações sociais primárias com emigrantes anteriores (MACDONALD;
MACDONALD, 1964, p. 82).
45
Buco (2014) entende que é necessária uma análise contextual, para entender
o dinamismo do viver nômade. A autora propõe um novo modo de analisar esse
conjunto de costumes e hábitos dos povos caçadores-coletores pleistocênicos que
mesmo em constante itinerância, preservavam sua cultura.
13 Nestas sociedades, os indivíduos que a integram compartilham das mesmas crenças e valores
sociais. A solidariedade se baseias na interdependência do trabalho e interesses materiais
necessários a subsistência do grupo. Essa correspondência de valores é que irá assegurar a coesão
social (DURKHEIM, 1995).
14Palavra de origem grega, formada por tekne (“arte, técnica ou ofício”) e por logos (“conjunto de
saberes”). É utilizado para definir os conhecimentos que permitem fabricar objetos e modificar o meio
ambiente, com vista a satisfazer as necessidades humanas. Sobre tecnologias do homem pré-
histórico vide MARTIN, 2005, p. 110.
47
3 DESENHANDO NA PEDRA
15 A partir da divisão por Territórios de Identidade, em 2010, reconhecido pelo Governo da Bahia,
como divisão teriotorial oficial para políticas públicas, a Chapada Diamantina ficou composta por 24
municípios: Abaíra, Andaraí, Barra da Estiva, Boninal, Bonito, Ibicoara, Ibitiara, Iramaia, Iraquara,
Itaeté, Jussiape, Lençois, Marcionílio Souza, Morro do Chapéu, Mucugê, Nova Redenção, Novo
Horizonte, Palmeiras, Piatã, Rio de Contas, Seabra, Souto Soares, Utinga, Wagner.
48
16 As UCs, conceituadas pela Lei no 9.985/2000, são territórios, geridos de forma diferenciada, com o
objetivo de promover a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais, a educação
ambiental, o contato harmônico com a natureza, o lazer e a pesquisa científica (IPEA, 2009).
49
uma vez no CNSA, apenas com denominação modificada. Costa (2012) alerta para
essa possibilidade de denominações diversas para o mesmo sítio 17. Considerando-
se que durante as visitas técnicas demandadas pela presente pesquisa, foram
localizados um pouco mais de 50 sítios cujos respectivos cadastrados não foram
localizados na lista on-line fornecida pelo IPHAN, é possível deduzir que somente
uma pequena porção de sítios arqueológicos contidos no Parque Estadual, foram
objetos de registro no CNSA.
O difícil acesso aos locais onde estão tocas, paredões e seus respectivos
painéis de desenhos rupestres, na maioria das vezes, só é possível por meio de
trilhas abertas pelo gado criado à solta; num costume avoengo que perdura até os
dias de hoje na área pesquisada. O gado, na busca de fontes de água ou locais de
pastagens, abre variantes no meio da vegetação que terminam, também, sendo
usadas por vaqueiros, garimpeiros e caçadores.
Ao trafegar por esses caminhos os habitantes locais encontram as tocas que
compõe sítios arqueológicos, utilizando-os, muitas vezes, como abrigo temporário;
prática atual que replica procedimentos dos povos pré-históricos. Não raro, a
informação sobre o encontro de um novo sítio arqueológico chega ao conhecimento
dos pesquisadores quando os danos causados pela ação das fogueiras e/ou
escavações garimpeiras se apresentam irreversíveis.
Procurou-se fazer, em virtude da extensão territorial da área onde estão
circunscritas as Serras Isabel Dias, um recorte geográfico que permitisse coletar
amostras que pudessem confirmar, ou negar a hipótese deste trabalho acadêmico,
sem, contudo, haver pretensão de esgotar as possibilidades que as dezenas de
sítios encontrados em área relativamente pequena, oferecem para pesquisas
futuras.
Deste modo, decidiu-se que deveria ser feito um recorte esquemático para
efeito de análise, compreendendo quatro sítios arqueológicos, quatro painéis de
desenhos rupestres e cinco desenhos. A escolha dos painéis refletiu uma seleção de
desenhos mais significativos, nos termos em que a definição de movimento/ação,
fosse mais perceptível. A área geográfica definida para as pesquisas de campo está
situada no âmbito do conjunto de serras denominado de Isabel Dias, inseridas no
território do PEMC.
Desde a cidade de Morro do Chapéu, sede do Município com mesmo nome,
até as Serras Isabel Dias, viaja-se 29 km pela rodovia BA-052, em seguida percorre-
se 06 km pela rodovia pavimentada Flores-Morro do Chapéu, até o povoado de
Tareco. A partir desta comunidade, percorre-se mais 12 km a pé até uma localidade
denominada Pocinho dos Peixes, onde há uma pequena fonte, que originou a
denominação da paragem. Esse local foi estabelecido como ponto de apoio para as
pesquisas de campo realizadas ao longo da construção desta dissertação.
Tal escolha deve-se à maior facilidade de acesso à água potável, além de
estar próximo de alguns dos sítios arqueológicos cujos desenhos rupestres foram
mais significativos para a pesquisa, entre estes está a Toca conhecida como Isabel
Dias. O nome tem origem em uma lenda, já registrada em romance de José de
Alencar intitulado As Minas de Prata, de 1865. A lenda referencia a história de um
suposto sertanista de nome Robério Dias, e uma índia que ele capturou e batizou-a
com o nome de Isabel. A nativa, por quem Robério Dias se enamorou, foi tornada
sua companheira e, durante alguns anos, eles teriam morado numa das inúmeras
tocas da localidade, sendo que uma delas, de aproximadamente 40m² foi batizada
com o nome de Isabel Dias.
O Tema das minas de prata baianas também foi assunto de um livro de
Calmon (1950). Entretanto, naquele livro, o autor tenta desconstruir a história
afirmando que é apenas uma lenda romanceada e que, provavelmente, esse
sertanista jamais esteve na área citada. O fato é que o nome Isabel Dias passou a
referenciar o conjunto de serras em seu entorno e além. Na Figura 8 é possível
verificar a rota percorrida desde o povoado de Tareco até o início da área
pesquisada, mostrando o local exato onde está a Toca de Isabel Dias.
51
Martin (2005) entende que o conceito de arte é plenamente aceito, desde que
não implique em considerar as pinturas rupestres apenas como uma manifestação
artística.
Quando se discute a adjetivação de “arte” para os grafismos rupestres,
considera-se que, para além da função utilitarista, informativa ou ideológica, também
havia nos autores dos desenhos a concepção do belo.
Arte pode ser considerada uma atividade humana ligada a manifestações de
ordem estética, feita por artistas a partir de percepção, emoções e ideias. Para
Gaspar (2006), do mesmo modo que um artista contemporâneo, seja ele um cantor,
coreógrafo, escritor ou pintor, pretende que sua arte, além de encantar os sentidos,
leve uma mensagem ao público; não era outro o objetivo final do homem pré-
histórico que desenhou na pedra.
É possível inferir, observando- se o acervo de pinturas rupestres das Serras
Isabel Dias, que seu autor, ou autores, demonstram grande habilidade em
estabelecer a semelhança relacional nas cenas desenhadas, estabelecendo padrões
que podem simbolizar força, rapidez, movimento, e atributos que estejam para além
da propriedadade concreta do objeto. Em outras palavras, embora apresentem
padrões repetitivos, nos moldes de uma linguagem reconhecível fica evidente que os
desenhistas nem sempre se apegavam à concretude dos objetos, exercendo, em
alguns casos, a subjetividade (KONDAKOV, 1954, p. 300). Diz Martin (2005, p. 238):
Da mesma forma que não há duas obras de arte iguais, a não ser quando
se trata de cópia ou plágio, não há também dois painéis rupestres repetidos,
pois o que se repete são as idéias e os comportamentos, plasmados
graficamente e de forma subjetiva.
forma a novos instrumentos e que lhe serão úteis para transmitir informação e
conhecimento.
Não apenas o produto, mas, igualmente, os meios utilizados fazem parte da
mensagem. O desenho rupestre é um meio de comunicação que delineia o homem
e seu horizonte cultural. A rocha, o tema retratado, os pigmentos, obtenção e
preparação dos minerais, a habilidade manual no exercício do traço e instrumentos
disponíveis foram, possivelmente, levados em consideração no momento em que o
homem pré-histórico idealizou um determinado painel e suas formas.
McLuhan (1974) aponta uma equivalência entre forma e conteúdo na
transmissão da informação. Essa paridade coloca em evidência que o humano
modela ferramentas que também o modelam. O suporte rochoso configura um plano
gráfico capaz resistir à passagem do tempo, sendo ele próprio uma mensagem que
estabelece as relações do humano e seu meio ambiente.
Entende-se que desde o suporte até os materiais empregados, tudo foi
devidamente apropriado, formando um único corpus a serviço do artista. Entende-
se, pois, que a tecnologia disponível não criou entraves para a execução da obra. O
paredão, a pedra, o matacão e os instrumentos que foram utilizados para desenhar
nos paredões, trazem, também, uma mensagem do homem, seu tempo e sua visão
de mundo. Pois o meio empregado também é uma mensagem. Conforme Buco
(2012), o desenho feito nas rochas, em períodos pré-históricos, com os recursos
materiais que se dispunha à época, é certamente uma representação artística:
18 Antropomorfos, no contexto das pinturas rupestres, são definidos como grafismos representando
seres humanos (de maneira realista ou esquemática). Já zoomorfos são desenhos que de forma
figurativa ou através de linhas simples, representam animais.
58
homem pré-histórico utilizou para registrar sua visão de mundo. Diz Etchevarne
(2007, p. 19):
reforço às ideologias do grupo; para narrar uma batalha ou falar sobre instrumentos
de guerra.
diante da comunidade, seria um gesto socializante. Para, além disso, o homem pré-
histórico da Chapada Diamantina Setentrional tinha naquele acervo imagético um
instrumento de coesão.
Conforme entendem: Martin (2005), Pessis (1992) e Guidon (1992), é
possível que os desenhos em suporte rochoso fossem usados como reforço
ilustrativo das narrativas. É admissível ainda que houvesse algum tipo de
ensinamento para que o grupo aprendesse a interpretar aquela gramática pictórica.
Faz-se, pois, necessário admitir a evidente função utilitarista das pinturas rupestres
como ferramenta educacional e ideológica. Pois, como assevera Marcondes (1997,
p. 64):
Figura 15 – Danos causados pela ação dofogo às pinturas rupestres das Tocas Isabel Dias
Fonte: Acervo do autor com vetorização executada por Tatiane Alves (2017).
Em análise objetiva da cena, pode-se verificar o que poderia ser uma ação de
caça, perseguição e/ou fuga. Desde o ponto de partida 1 até o ponto 5, observa-se
um zoomorfo de duas patas, assemelhando-se ao que hoje poderíamos chamar de
“emas”, dada a aparência desse elemento com aquela ave da família das Rheidae,
em deslocamento não linear. A ema percorre um espaço numa perspectiva que
sugere o aumento do tamanho da forma, indicando um provável deslocamento
conforme o movimento sugerido nos membros inferiores e também no pescoço e
cabeça.
Do ponto 2 para o 3, as formas recuam, indicando que as formas d, e, f se
distanciam da c; na sequência, a direção muda novamente (4-5) e as formas g, h, j
aumentam de tamanho come se esquivando de algum obstáculo.
71
Fonte: Acervo do autor com vetorização executada por Tatiane Alves (2017).
Numa leitura interpretativa livre, poderia-se imaginar que uma ema estaria
sendo caçada por humanos que interferem em sua trajetória e na sequência esse
animal retorna a sua trajetória original. A diferença de pigmentação entre os
elementos, pode sugerir que houve intervenção no suporte rochoso em momentos
diferentes, mas também é possível que seja apenas uma técnica para reforçar a
percepção de volume.
Etchevarne (2017), analisando pinturas rupestres localizadas em Lagoa da
Velha, município de Morro do Chapéu, nas proximidades das Serras Isabel Dias,
72
Fonte: Acervo do autor com vetorização executada por Tatiane Alves (2017).
19Vídeo-aula do Professor Dr. Carlos Etchevarne intitulada Projeto Gráfico e Execução na Arte
Rupestre da Bahia, apresentada em 10-03-2017, na aula inaugural do semestre 2017-1 do PPGDCI.
73
Fonte: Acervo do autor com vetorização executada por Tatiane Alves (2017).
Desde o Paredão da Ema Saltadora, ainda seguindo pelo mesmo vale onde
ele está inserido, percorre-se por trilhas pedestres aproximadamente 4 km até o
abrigo da Toca da Juriti. Localizado na encosta de um morro, o abrigo da Toca da
Juriti, é parte de um conjunto de dois paredões e duas outras tocas. Possui
aproximadamente 9m² de área coberta e 3 metros de altura no ponto mais alto
daquela cavidade de estrutura irregular. Sua denominação advém da proximidade
com uma nascente que aflora entre rochas, denominada Toca da Juriti. Essa
nascente pode ser uma das respostas sobre a ocupação do entorno pelos povos
pré-históricos. Na Figura 31 vê-se o vale onde estão compreendidos vários sítios
rupestres nas Serras Isabel Dias. O abrigo da Toca da Juriti está assinalado à
esquerda da imagem.
No Abrigo da Toca da Juriti, do lado externo, numa parede formada por arenito
silicificado, sem cobertura, exceto aquela oferecida pela vegetação nativa, um
desenho chama a atenção do observador. A pintura representa três grupos de
antropomorfos em que cada grupo forma um semicírculo em circunferências
distintas. No primeiro e maior, observa-se vinte e um antropomorfos unidos como se
estivessem realizando uma dança ritualística abraçados. No segundo grupo, quatro
antropomorfos conduzem, com braços erguidos, objetos que se assemelham. No
terceiro grupo vê-se oito antropomorfos, formando o último semicírculo. Estes
personagens estão portando na mão direita objetos idênticos entre si, porém,
diversos dos objetos conduzidos pelo segundo grupo.
Na Figura 32, a imagem pode ser visualizada ao natural com a pigmentação
ocre. A coloração, semelhante da parede arenítica, dificulta a visualização do
desenho que sugere uma dança ritualística.
Observa-se, por exemplo, que o grupo de figuras formado pelo segmento A-B,
denominado de grupo X, apresenta uniformidade no posicionamento dos membros
superiores e inferiores, indicando um movimento cadenciado. Todos os elementos
estão com os superiores levantados e posição em horizontal. As extremidades
desses membros superiores se tocam, sugerindo contato físico entre os indivíduos
colaterais. Nota-se ainda que membros inferiores se assemelham em posição, forma
e envergadura.
Rudolf Arnheim, explica que um facilitador da admissibilidade da ação, é o
conhecimento do que a cena representa culturalmente: “Quando se trata do
comportamento humano, as qualidades expressivas do movimento se envolvem com
o que sabemos sobre seu significado” (ARNHEIM, 1982, p. 386). Nesse caso, a
compreensão de que o grupo X, realiza um movimento conjunto e coordenado, tem
como parâmetro o conhecimento da cultura ritualística de alguns grupos pretéritos e
também contemporâneos. Danças como as da cerimônia do Quarup, nos remetem
ao desenho formado pelo segmento A-B do Grupo X.
Contudo, a análise dos grupos Y e Z, e seus elementos, ainda pode oferecer
mais pistas sobre essa cena e a ação que sugere. Verifica-se na Figura 34 que a
trajetória dos elementos do grupo X é de difícil identificação, pois tanto pode estar se
movendo no sentido A-B como B-A. As formas estão em posição frontal aos demais
elementos da cena.
81
A cena se compõe em sua parte final com o grupo Z. Esses elementos, pelas
formas projetadas, aparentam estar de costas para a composição, efetuando
movimentos ascendentes e descendentes, pois se verifica que no movimento
descendente do tronco a cabeça do antropomorfo deixa de ficar visível para
ressurgir na cena seguinte, dando a percepção que ergue o tronco sequencial e
compassadamente. Nesse movimento, os membros superiores ora ficam visíveis ora
se ocultam sob o tronco, assim como os objetos portados.
É possível inferir pelo movimento das pernas, e posição inalterada do eixo do
tronco, que o grupo Z se move lateralmente, de costas para o observador, como se
estivesse ritualisticamente, prestando reverência ao objeto, ferramenta ou adorno,
do grupo Y. Desde os movimentos assinalados e, observando-se a totalidade da
composição, percebe-se que toda a cena está direcionada para o centro do
desenho, onde o grupo Y, provavelmente, porta algum objeto de significância
ritualística. Assevera o pesquisador Luís, Luís (2012, p. 79): “É impossível ao artista
replicar o devir do real, mas ele encontrou uma abstração gráfica para o representar.
Paradoxalmente, se, por um lado, procurou fixar o real na pedra, ele conseguiu
fazê‑lo dando‑lhe novamente vida”.
Esclarece Leroi‑Gourhan (1985), que a ação implica uma narrativa e um
discurso, que certamente fundamentava a execução da arte rupestre. As
representações paleolíticas são a evidência dessa narrativa cujo principal reforço foi
a animação executada por decomposição segmentar do desenho inicial.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
objeto específico de análise, já que esse foi o vetor da pesquisa. Tais dados,
análises e suposições atenderam à inquietação motivadora da pesquisa e sua
hipótese.
Foi estabelecido, ainda, um recorte geográfico que situou os estudos
especificamente nas Serras Isabel Dias, no município de Morro do Chapéu, no
Estado da Bahia. Dessa forma, recomenda-se que os resultados obtidos não sejam
automaticamente estendidos a outros sítios arqueológicos e localidades da região já
que a base de dados foi pequena e não permite replicações sem estudos mais
aprofundados.
Há percepção de movimento nos desenhos rupestres das Serras de Isabel
Dias? Com essa questão norteadora, foram iniciadas algumas visitas não-científicas
àquelas serras, desde o ano de 2007. Porém, somente em 2015, é que
efetivamente, com o ingresso no Programa de Pós-graduação em Desenho Cultura
e Interatividade ocorreram visitas técnicas à região. A hipótese inicial é que haveria
sim essa possibilidade de movimento nos desenhos rupestres das Serras Isabel
Dias. As pesquisas bibliográficas, estudos e orientação científica, ao longo do
período da Pós-graduação, induz o pesquisador a afirmar que essa é uma hipótese
verdadeira.
Os desenhos analisados são sinalizadores da existência de um movimento
intencionalmente contínuo: destaca-se aqui a ema que se desloca e fica prestes a
executar um salto (FIGURA 22), e a dança ritualista executada na Figura 27.
No desenho da “ema saltadora”, (FIGURA 22), observa-se a intencionalidade
de movimento coordenado de membros inferiores e do pescoço e cabeça daquela
ave. Há ainda uma construção em perspectiva que aproxima o desenho do conceito
de tridimensionalidade.
No que se refere ao provável ritual de dança (FIGURA 27) é possível se inferir
que um grupo de antropomorfos, (GRUPO X) se move com seus personagens
abraçados, enquanto um único antropomorfo, (GRUPO Y), conduzindo um objeto
realiza movimentos do ponto C em direção ao ponto D. Nesta cena, outro
antropomorfo, conduzindo instrumento não identificável, faz movimentos que
indicam deslocamento do ponto E ao ponto F. Esse elemento, apresenta possível
flexionamento do tronco, membros superiores e cabeça, de modo coordenado. São
88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. São Paulo: Livraria Pioneira, 1982.
BLAINEY Geoffrey. Uma breve história do mundo. 3.ed. São Paulo: Fundamento
Educacional, 2008.
CALMON, Pedro. O segredo das minas de prata. Rio de Janeiro: A noite, 1950.
DILLEHAY, Tom et al. New Archaeological Evidence for an Early Human Presence at
Monte Verde, Chile. PLOS ONE, v.10, n.12, p.145-471, 2015.
GASPAR, Madu. A arte rupestre no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
GRAY, James. The Lost City of Z. Baseado no livro de mesmo nome de David
Grann, EUA, 2017.
92
GUIDON, Niéde. Pedra Furada: uma revisão. In: Simpósio Internacional, 2. Parque
Nacional Serra da Capivara, PI, Anais “O povoamento das Américas”, 2006.
GUIDON, N.; ARNAUD, B. The Chronology of the New World: Two Faces of One
Reality. World archaeology, v.23, n.2, p.167-178, 1991.
ILYENKOV, Evald Vasilyevich. The dialectics of the abstract and the concrete in
Marx's Capital. Tradução Marcelo José de Souza e Silva. Aakar Books
LAHAYE, Christelle et al. Human occupation in South America by 20,000 BC: the
Toca da Tira Peia site, Piauí, Brazil. Journal of Archaeological Science, v.40, n.6,
p.2840-2847, 2013.
93
MARCHESOTTI, Ana Paula Almeida. Peter Wilhelm Lund: o naturalista que revelou
ao mundo a pré-história brasileira. Rio de Janeiro: E-papers, 2011.
MELTZER, David J. First peoples in a new world: colonizing ice age America.
University of California Press, 2009.
MORALES, J.R. The Nordeste tradition: innovation and continuity in Brazilian rock
art. 2002. Tese (Doutorado) – Virginia Commonwealth University, 2002.
MORALES, J.R. The angelim style and northeast brazilian rock art. Making
Marks: Graduate studies in Rock Art Research at the New Millennium, p.27-39, 2005.
PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: A pré-história do nosso país. 2.ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
ROOSEVELT, A.C. Arquelogia Amazônica. In: CUNHA, M.C. (Org.). História dos
índios do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
SCHMITZ, Pedro Inácio. De pedras e homens. In: JORGE, M.; PROUS, A.;
RIBEIRO, L. Brasil rupestre: arte pré-histórica brasileira. Curitiba: Zencrane Livros,
2006. p.106-109.
VON MARTIUS, Karl Friedrich; RODRIGUES, José Honório. Como se deve escrever
a história do Brasil. Revista de História de América, n.42, p.433-458, 1956.
WONG, Wucius. Princípios de forma e desenho. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
96
APÊNDICES
VÍDEO A: Cervídeos