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DAS ARTES E SEUS

PERCURSOS SENSÍVEIS
CLAUDIA MARINHO
PATRÍCIA CAETANO
WALMERI RIBEIRO
(ORGS.)

DAS ARTES E SEUS


PERCURSOS SENSÍVEIS
Editora Intermeios
Rua Valdir Niemeyer, 75 – Sumarezinho
CEP 01257-080 – São Paulo – SP – Brasil
Fone: 2365-0744 – www.intermeioscultural.com.br

DAS ARTES E SEUS PERCURSOS SENSÍVEIS

© Claudia Marinho | Patrícia Caetano | Walmeri Ribeiro

1ª edição: julho de 2016

Editoração eletrônica, produção Intermeios – Casa de Artes e Livros


Revisão editorial Jacob Lebensztayn
Capa Lívia Consentino Lopes Pereira


CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS) – in memoriam
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)
José Carlos Vilardaga (Unifesp)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

M338     Marinho, Claudia, Org.; Caetano, Patricia, Org.; Ribeiro, Walmeri, Org.
    Das artes e seus percursos sensíveis / Organização de Claudia Marinho,
Patricia Caetano e Walmeri Ribeiro. – São Paulo: Intermeios; Brasília:
Capes; CNPq, 2016.
   278 p. ; 16 x 23 cm.
  ISBN 978-85-64586-040-5 
   1. Arte Moderna. 2. Cinema. 3. Teatro. 4. Dança. 5. Performance. 6. Artes
Visuais. 7. Território. 8. Curadoria. 9. Processo Criativo. 10. Metodologia.
I. Título. II. Metodologia(s) de processos de criação em artes. III. Fratura
romântica-positivista: um ensaio sobre a epistemologia da poiésis. IV.
Algumas experiências de arte em rede dos anos 80/90. V. Acaso e arte
computacional: tensões entre irregularidade e ordem. VI. A poética hacker.
VII. Documento de projeto e construção de referência de pesquisa. VIII. Da
filosofia e da arte contemporânea: para uma crítica diagramática da estética.
IX. A dimensão performativa do soma: metodologia somática e pesquisa. X.
Sintonia somática e meio ambiente: a abordagem somático-performativa de
pesquisa em artes cênicas. XI. Corpo em crise. XII. Tramar uma metodologia
de pesquisa indisciplinar. XIII. Pesquisas performativas e seus diálogos
possíveis. XIV. Deixe que o lugar determine. XV. Telebiosfera: abrigo sensível.
XVI. S.H.A.S.T.: processo investigativo em biotelemática. XVII. Reinvenção da
vida com sistemas enativos afetivos por pesquisa de arte e tecnociência dos
‘‘Novos Leonardos’’. XVIII. Marinho, Claudia, Organizadora. XIX. Caetano,
Patricia, Organizadora. XX. Ribeiro, Walmeri, Organizador. XXI. Intermeios
– Casa de Artes e Livros.
CDU 7.036
CDD 700i0
Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino
SUMÁRIO

  7 DAS ARTES E SEUS TERRITÓRIOS SENSÍVEIS:


UMA APRESENTAÇÃO

  9 FRATURA ROMÂNTICA-POSITIVISTA: UM ENSAIO SOBRE A


EPISTEMOLOGIA DA POIÉSIS
Caio Adorno Vassão

 37 ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE ARTE EM REDE DOS ANOS 80/90


Gilberto Prado

 59 ACASO E ARTE COMPUTACIONAL: TENSÕES ENTRE IRRE-


GULARIDADE E ORDEM
Fabrizio Augusto Poltronieri

 85 A POÉTICA HACKER


Fred Paulino

 91 DOCUMENTO DE PROJETO E CONSTRUÇÃO DE REFERÊNCIA


DE PESQUISA
Claudia Marinho

105 DA FILOSOFIA E DA ARTE CONTEMPORÂNEA. PARA UMA


CRÍTICA DIAGRAMÁTICA DA ESTÉTICA
Erik Alliez
123 A DIMENSÃO PERFORMATIVA DO SOMA: METODOLOGIA
SOMÁTICA E PESQUISA
Patrícia Caetano

131 SINTONIA SOMÁTICA E MEIO AMBIENTE: A ABORDAGEM


SOMÁTICO-PERFORMATIVA DE PESQUISA EM ARTES CÊNI-
CAS
Ciane Fernandes

161 CORPO EM CRISE


Julie Barnsley

177 TRAMAR UMA METODOLOGIA DE PESQUISA INDISCIPLINAR


Hélène Doyon e Jean-Pierre Demers

195 PESQUISAS PERFORMATIVAS E SEUS DIÁLOGOS POSSÍVEIS


Walmeri Ribeiro

201 DEIXE QUE O LUGAR DETERMINE


Jorge Menna Barreto

207 TELEBIOSFERA. ABRIGO SENSÍVEL


Guto Nóbrega

221 S.H.A.S.T.: PROCESSO INVESTIGATIVO EM BIOTELEMÁTICA


COMO PRÁTICA ARTÍSTICA
Maria Luiza Fragoso

235 REINVENÇÃO DA VIDA COM SISTEMAS ENATIVOS AFETI-


VOS POR PESQUISA DE ARTE E TECNOCIÊNCIA DOS ‘‘NO-
VOS LEONARDOS’’
Dianna Domingues

273 Sobre os autores


Das Artes e Seus Territórios Sensíveis:
Uma Apresentação

Ao pensarmos o conceito de Território em seu sentido geopolítico, este


já implica refletirmos sobre sistemas dinâmicos envolvidos no tempo e no
espaço, formados por um vasto conjunto de interações individuais, locais e
contingenciais. Territórios são constituídos por relações, implicando pluralidade.
O Seminário Das Artes e Seus Territórios Sensíveis propõe, desde a sua
primeira edição, em 2012, que os territórios das artes, assim como o da geopolítica,
compreendem sistemas complexos, dinâmicos e, sobretudo, sensíveis.
Em torno destas questões, como fruto do II Seminário, realizado em
dezembro de 2014, com o subtítulo Metodologias e processos de criação em
Artes, este livro apresenta-se como síntese de reflexões: traz uma reunião de
pensamentos, proposições e investigações das Artes num amplo diálogo com
outros territórios do conhecimento.
Criado em 2012, num momento de reflexão sobre a importância e o papel
de um programa de pós-graduação em Artes na universidade pública brasileira,
o primeiro seminário Das Artes reuniu dezesseis pesquisadores, durante
quatro dias, numa exaustiva e produtiva discussão sobre o nosso papel como
pesquisadores em Artes na sociedade, em suas dimensões politicas e poéticas.
Nesse momento estávamos criando o Programa de Pós-Graduação em Artes da
Universidade Federal do Ceará.
Em 2014, com a experiência de dois anos do PPGARTES e com a primeira
turma de pesquisadores já preparando suas dissertações, defendidas em março
de 2015, decidimos que era o momento de refletirmos sobre as metodologias,
procedimentos e processos de criação em Artes. Pensarmos as nossas pesquisas,
discentes e docentes, nos levou ao olhar que guiou a curadoria desta segunda
edição do Seminário Internacional Das Artes e Seus Territórios Sensíveis.
8 das artes e seus percursos

Este livro é fruto da parceria entre o Centro Cultural Banco do Nordeste,


Museu da Indústria do Ceará, Instituto de Cultura e Arte-UFC, Pró-reitoria
de Pesquisa e Pós-Graduação-UFC, contando também com o apoio da Capes
e do CNPq. Reúne quinze artigos que abordam, de forma transversal, temas
relacionados a arte, ciência e tecnologia e propõem reflexões sobre métodos,
procedimentos e modos de manifestações da arte para estender nossa rede
de pesquisa. Esperamos que a partir da articulação destes textos possamos
ampliar o escopo das reflexões sobre os desafios emergentes dos processos de
transformações – sociais, políticas, poéticas, técnicas e ambientais – que temos
vivenciado, no sentido de identificar a arte como estratégia possível.
Fratura romântico-positivista:um ensaio
sobre a epistemologia da poiésis

Caio Adorno Vassão

Introdução

Este ensaio propõe-se a discutir o “lugar epistemológico” da Arte,


do Design e da Tecnologia, tanto em relação às Ciências e à Filosofia, mas
também afirmando um espaço próprio para eles dentro do campo sociocultural
denominado “Pesquisa Acadêmica”.
Essa é uma empreitada que não se esgota em um artigo, ou em um ensaio.
Minha proposta seria apenas delimitar, inicial e tentativamente, algumas
questões e debater interpretações do que possa ser o ato da poiésis, da criação –
tanto entendido como “criação bruta”, como “transformação” – e reclamar a ele
um lugar de destaque e autonomia na Pesquisa Acadêmica. Minha abordagem
é pautada pela fenomenologia, pós-estruturalismo, teoria da complexidade,
história das concepções de Arte, e pela história do currículo acadêmico das
Artes, da Arquitetura e Urbanismo e do Design.1

Romantismo, positivismo e a fratura – O que é arte?

Das inúmeras definições do que pode ser considerada a Arte, parece-me


que a mais ampla, profunda e completa é a que a considera como “mobilização
ontológica”: a mutação do que se considera “real”. O ato criativo altera as

1. Este configura um campo complexo e variegado, cravejado de conflitos e contradições. No


entanto, essa empreitada implica um campo referencial desta natureza, e não é meu papel, aqui,
dirimir tais questões, e sim colocá-las em jogo por meio de uma abordagem transdisciplinar.
10 das artes e seus percursos

categorias do real, e contribui para ampliar, ou pelo menos questionar, o status


do real em determinado momento histórico.2
Essa definição, no entanto, só se manifesta com clareza após o processo
que chamo de “Fratura romântico-positivista”: a setorização conceitual feita, em
paralelo, pelos movimentos filosóficos Positivista e Romântico. O Positivismo
construiu a noção moderna de Ciência e Tecnologia, postulando o que pode, ou
não, ser objeto de pesquisa e produção nesses campos – exclui destes a Filosofia,
postula a Arte como campo de produção de objetos de uso (o que chama de
tecnologia, a partir do radical grego para a Arte: Techné) e inventa a Ciência
como detentora da verdade, possivelmente toda a verdade. O Romantismo
rechaça essa postura, reclama a importância tanto da Filosofia como da Arte
(além de sua dimensão útil, cotidiana), e garante a essas um campo de ação
circunscrito, mas de livre exploração, contanto que exclusivamente no interior
desse campo restrito – o pensamento profundo e a produção entendida como
exploração dos limites da percepção e da estética são garantidos, mas exige-se
que não façam parte do cotidiano. De fato, trata-se de uma Fratura, que separa
enfaticamente o que é pesquisa científica e “útil” daquilo que é pesquisa idealista
e estética: conforma-se a Ciência como entendida hoje, o campo de ação do
pensamento positivista (sustentado pelo complexo acadêmico contemporâneo
que é, em última análise, uma instituição positivista), e a Arte como entendida
nos últimos dois séculos, o campo de ação do pensamento crítico que se debruça
sobre a produção daquilo que não pode ser reduzido às categorias filosófico-
científicas existentes (sustentado pelo complexo das artes, museus, galerias,
salões de exposição, festivais e premiações, curadorias, instituições e comércio
das artes).
De fato, até fins do século XVIII, a palavra “Arte”3 designava a produção,
a atividade da poiésis: o “fazer existir”, tanto de pinturas, esculturas, peças
musicais, de literatura, poesia e teatro, mas também de edifícios, pontes,
represas, cadeiras, copos, telhas, discursos, textos técnicos, observações anotadas

2. Uma distinção é importante: por “real” compreende-se, neste contexto, o conjunto de


crenças, representações e formalizações que se faz do mundo e seus objetos, sendo que o
“concreto” seria aquilo que existe, independentemente de nossas crenças e representações.
Também importante é reconhecer que o “real” seria um subconjunto do “concreto”, ele está
contido no mundo concreto. O “real” é uma “ficção útil”, composto de representações que
permitem operar consciente e consequentemente no mundo. E o “concreto” é um devir, e
não um ser, é um fluxo e não um estado. Ver adiante uma elaboração mais consequente dessas
categorias.
3. Tanto em sua origem latina, como no grego “techné” e no “kunst” das línguas germânicas.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 11

das estrelas, corpos e paisagens, a atividade de cura e cuidados com o corpo.4


Na Antiguidade, a poiésis designava amplamente a capacidade de produzir, de
fazer existir – essa amplidão do conceito “Arte” era tal que a própria existência
cotidiana se confundia com o fazer do cotidiano, as atividades de construção do
mundo do homem, que se distingue da natureza: o “artificial”. Alinhada com
a noção platônica transcendental de “dar forma à matéria amorfa”, a palavra
grega Techné equivale ao Ars latino, e ambas significam “produzir”. Naquele
momento, o que hoje se chama “Ciência” chamava-se “Episteme”, e era a
capacidade de saber de fato – essa capacidade seria objeto não da techné, mas
do logos: a capacidade de ponderar-se de modo dialógico e rigoroso sobre as
coisas do mundo. Um astrônomo seria um artista porque observa e anota suas
observações: produz suas observações enquanto produto gráfico e de linguagem
– hoje, ele é chamado de cientista porque sua produção não é mais entendida
como suas anotações e discursos a respeito de suas observações, mas sim o
conteúdo dialógico e rigoroso de sua produção intelectual, que circula enquanto
documentação formal. Ou seja, hoje, a ciência da astronomia não seria o ato de
observação e anotação, mas sim a ponderação exclusivamente mental e formal
a respeito deste assunto. Na Antiguidade, também seriam Artes a medicina, a
matemática, e tantas outras áreas de conhecimento que são, hoje, chamadas de
ciências.
Ao longo da Idade Média, a atividade poiética da techné foi sendo dividida
em subcategorias. Inicialmente, separaram-se as Artes em dois campos: (1)
as Artes Liberais – relacionadas com o espírito e sua libertação da vida no
mundo, para a vida transcendental após a morte, para a qual o indivíduo seria
gradualmente preparado por meio de seu estudo e prática: gramática e retórica,
e sua aplicação, música, poesia, geometria e sua aplicação na astronomia, por
exemplo; e (2) as Artes Servis – relacionadas à vida cotidiana, à sustentação
da vida e da ampliação do conforto, ou seja, que servem ao corpo e, em última
análise (segundo a teologia cristã medieval) que aprisionavam ainda mais a
alma em um mundo de ilusões e tentações.5 Essa dicotomia entre aquilo que é

4. Com efeito, atividades que, após o Positivismo, seriam entendidas como ciências – tais
como astronomia, geografia e medicina – eram consideradas “Artes” no período clássico,
salientando-se sua dimensão produtiva.
5. Também se entende que as Artes Liberais são próprias do “homem livre”, e que as Artes
Servis estariam relacionadas com o trabalho manual (provavelmente escravo), mas essa
é uma noção complementar à noção transcendental da liberdade em relação à carne e ao
mundo. Inclusive a própria ideia de “liberdade” no mundo clássico e medieval está embutida
na noção de liberdade praticada naquele momento, e ainda hoje em algumas culturas, sendo
tradicionalmente transcendentalista. Para uma introdução rigorosa ao assunto, ver o verbete
12 das artes e seus percursos

dedicado à elevação da alma a um mundo espiritual, e aquilo que cede aos desejos
e tentações do corpo, foi se aprofundando nos séculos seguintes – afirmando de
modo notavelmente longevo a dicotomia ancestral entre Alma (artes liberais)
e Corpo (artes servis). E encontra, ao longo dos anos entre o Renascimento e
a Revolução Industrial, uma terminologia que estabeleceu claramente campos
socio-econômicos de produção, de Poiésis: aquilo que promove essa elevação
passa a ser mais comumente designado como Arte, enquanto aquilo que
sustenta a vida cotidiana vai sendo gradualmente denominado “artesanato”,
e a palavra grega Techné começa a designar o saber fazer, desvinculado de
qualquer intenção criativa consciente: saber misturar a tinta, saber preparar a
mistura de argamassa ou gesso, saber gramática e entonação vocal – a “técnica”,
independentemente de tratar-se de Arte ou de artesanato.
A Revolução Industrial, assessorada por diversos movimentos filosóficos
e sociais de fins do século XVIII e início do XIX – como o Empirismo e o
Utilitarismo, mas principalmente o Positivismo –, promove uma cisão explícita
entre o que seria do domínio da Arte, por um lado, e do artesanato, de outro:
o artesanato deveria ser completamente automatizado e eficientizado pela
indústria, por meio do estudo científico dos métodos e produção, enquanto a
Arte passou a ser vista como curiosidade, perda de tempo ou mesmo depravação.6
Por um lado, aquilo que é útil e aumenta o conforto deveria ser tratado como
objeto da ciência, do estudo científico da técnica, ou seja, “Tecnologia”;7
enquanto aquilo que seria especificamente a pura expressão ou questionamento
a partir da profundidade da alma passou a ser visto como algo perigoso, que
poderia questionar a ordem sociopolítica instituída. No entanto, esse campo de
expressão foi acolhido pela filosofia Romântica, que lhe abriu uma dimensão de
questionamento profundo da vida emocional, espiritual e cultural. A partir do
Romantismo, a Arte passa a designar um campo de impressão estética intensa,
que poderia pôr em xeque nossa percepção do real – e não apenas confirmá-
la, como foi comum na Arte pré-romântica. Não é por acaso que a categoria
estética mais valorizada por esse movimento foi o Sublime: a expressão de algo

“Arte” em: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
6. A carga moral de tais movimentos filosóficos e sociais era notável, e ecoavam as categorias
clássicas que opunham elevação da alma, por um lado, e subjugação desta aos desejos do
corpo, por outro. A Arte, desde Platão, estaria relacionada ao perigo da perpetuação da ilusão
do mundo.
7. “Tecnologia” foi um neologismo a partir da união das palavras para a “Arte” (Techné) e o
estudo científico (Logos). Do ponto de vista clássico, essa seria uma união, no mínimo,
inusitada, já que expressariam categorias opostas do pensamento. Mas, certamente, pode-se
fazê-las dialogar, como o faz o complexo tecno-científico contemporâneo.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 13

muito maior do que os meios disponíveis para tal.8 Surge ali a ideia do gênio
criativo, de sua dimensão “monstruosa”, da expressão do “Outro” filosófico nas
obras de fruição estética. E também ali se estabelecem as funções da Arte: a
mimese (imitação, simulação), a catarse (descarga emocional ou purificação)
e a educação (ampliação do repertório do público). Tais funções excluem
completamente qualquer participação ativa no cotidiano, e são desempenhadas
na fruição estética pura da obra em um museu, sala de concerto, galeria ou
apresentação pública etc. E tais funções aceitas para a Arte se manifestam no
cotidiano apenas mediadas pela fruição estética “desinteressada”.9
Em resumo, de um lado, o Positivismo toma para si a produção do
cotidiano, por meio da tecnologia e da indústria. Por outro, o Romantismo toma
para si a produção da psique, da cultura e da expressão estética. Em um sentido
muito rigoroso, a Arte passa a ser entendida como a expressão de conteúdos
que não se deixam reduzir ao que a Ciência e a Técnica podem expressar. Isso
implica questionar os limites filosóficos da percepção e do Real – pois, se a
Arte passa a fazer presente à percepção aquilo que não pode ser representado
enquanto conhecimento racional previamente estabelecido, as categorias em
operação em uma determinada episteme10 são postas em xeque pela obra de Arte.
Isso significou uma nova liberdade para um aspecto que, em certa medida, já era
intrínseco à Arte: a produção de um ente novo é, comumente, entendida como
algo que escapa à intelecção racional, mesmo que de uma entidade que possa,
a posteriori, ser racionalmente analisada. Por isso que, na Antiguidade e ainda
hoje, distingue-se entre Logos e Techné, como campos opostos e complementares
de entendimento e ação: o Logos trata do necessário, entendido como racional e
descritível de modo formal; e o Techné trata do possível, entendido como o que
pode existir de modos diversos, com autonomia à racionalidade e a múltiplas
descrições possíveis.

8. Os destaques do movimento romântico são salientes em demonstrar o sublime: o movimento


pré-romântico “Sturm und Drang” (“tempestade e ímpeto”), as paisagens de Caspar David
Friedrich, a música de Beethoven, por exemplo.
9. Uma análise interessante do surgimento da noção de “fruição desinteressada” da estética está
em: SHINER, Larry E. The Invention of Art: A Cultural History. Chicago: The University of
Chicago Press, 2001.
10. “Episteme” é o campo do conhecido e entendido como elucidado em determinado momento
histórico. Conceito proposto por Foucault para expor o entranhamento entre ideologia e
ontologia segundo uma visão de mundo, uma “cosmologia”, Foucault se apropria do termo do
grego clássico, o “saber”, não mais como um saber neutro, mas sim vinculado com as estruturas
de poder e de validação da verdade em determinado momento histórico (FOUCAULT,
Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2000).
14 das artes e seus percursos

Interpreto isso como uma dimensão semântica transbordante da entidade


concreta, do concreto frente ao real: o Concreto é o ente que existe em ato,
enquanto o Real é a representação cognitiva desse ente concreto – o Concreto
é sempre maior, mais complexo, e mais variegado do que o Real. O mundo
enquanto Fenômeno, incluindo aí os objetos que a Arte cria, não aceita sua
redução completa a uma entidade racional de conhecimento. O Fenômeno
recusa sua descrição completa e esgotada enquanto objeto de conhecimento
racional, dotado de categorias claras e exclusivas.11 O Real seria a coleção de
imagens e cognições que configuram o mundo como entendido individualmente
e/ou coletivamente. O Real está dotado de uma ontologia, uma organização
categórica que apresenta um quadro coerente de entendimento e classificação
do mundo. Essa ontologia pode ser construída de modo rigoroso e científico, ou
ser uma colagem de noções anedóticas e habituais, ou ainda uma mitologia mais
ou menos complexa ou duradoura, e pode, ainda, ser informada por conceitos
oriundos das ciências.12
Após a Fratura, aceita-se que a Arte se estabeleça como a mobilização
ontológica do mundo: os objetos de arte passam a rebater-se com a descrição do
mundo (científica ou anedótica), e convidam o público a compreender as coisas
além de seu campo de intelecção cognitiva. A Arte assume crescentemente,
até meados-final do século XX, o papel de afrontar o status quo, as ontologias
estabelecidas – um papel sempre recluso a um campo social controlado de
museus, galerias, salas de exposição e concerto. Na década de 1970, esse
papel outorgado pelo Romantismo chega ao seu ápice como prática descolada
do cotidiano, com a Arte Conceitual e a “Meta-Arte”, em que a declaração
de uma intenção poética poderia bastar para operar a afronta às ontologias
estabelecidas. Mas, é importante notar, essa afronta não opera como a filosofia e/

11. Esse aspecto de minha pesquisa está sustentado pela fenomenologia da percepção em Merleau-
Ponty (1975 e 1996), pela ecologia da percepção em J. J.Gibson (1977), na Ecologia da Mente
em Bateson (2000), e na teoria da mente de Searle (2002 e 2006). Gibson e Bateson são
influenciados por Korzybski (1994), que propõe o entendimento do Real como “construção
útil”, e não como “realidade última”, ou seja, como concretude.
12. Um último aspecto do Real, que não é de interesse intrínseco para esse ensaio, seria que ele
é parte do Concreto, já que as múltiplas representações que compõem o Real são entidades
que estão presentes no mundo Concreto: desenhos, imagens, pinturas, diagramas, mapas,
textos, arquivos digitais, tecnologias e toda a parafernália representacional é um complexo
de entidades concretas. Mas há uma ideologia muito presente no mundo contemporâneo
que nos vende a ideia de que as representações estariam em algum mundo “imaterial”, e ela
é parte do que chamo “ideologia da informação” (ver VASSÃO, Metadesign: ferramentas,
estratégias e ética para a complexidade. São Paulo: Blucher, 2010), que é pautada pela dualidade
corpo-espírito, e seus desdobramentos.
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ou a ciência: não se propõe uma “nova” ontologia, como um programa completo


que substituiria as ontologias estabelecidas. Para a Arte, basta estabelecer uma
nova dinâmica de percepção dentro de um campo de seu interesse, circunscrito
social, geográfica, cultural, ou tecnicamente (ou ainda de acordo com outras
categorias que não estão formadas e declaradas como o fiz agora). Porém,
diferentemente da ciência, essa circunscrição não se faz por uma fronteira ou
um recorte, mas sim a partir do alcance da própria obra, da própria intenção
pré-categórica do artista. A obra engendra sua própria ontologia e seu próprio
alcance a partir do movimento concreto, em ato, do artista, o qual se desenrola
por domínios que se estabelecem de modo emergente, a partir de um campo
semântico e operativo da própria obra.13

Amplidão da Arte, delimitação da Arte

Já que a Arte teria esse alcance enorme – em primeiro lugar, enquanto


epistemologia do produzir, da Poiésis, e em segundo lugar como meio de mobilizar
ontologias e questionar o Real – qual seria o seu limite? O que, conversamente,
não seria Arte?
Apresentar a delimitação, já consagrada após a Fratura, entre Arte,
Artesanato, Técnica e Artificial, pode ser interessante: a Arte seria a expressão
de conceitos estéticos, por meio da ação conscientemente criativa e crítica; o
Artesanato seria a mera produção de bens e objetos de uso – sapatos, cadeiras,
telhas e machados etc.; a Técnica seria o “saber fazer”, ou o “saber produzir”,
uma episteme da criação, entendida honestamente como “transformação” – e
contando com numerosas conexões com a Tecnologia; o Artificial seria o campo
completo da produção (e transformação) engendrado pela humanidade, aquilo
que se distingue do Natural, do pré- e pós-existente à ação criativa humana
– já se fala de uma era geológica “antropogênica”, uma camada de detritos e
produtos acumulados na biosfera que só podem ter origem “antrópica”, ou seja,
artificial.
Mas, mesmo assim, essas distinções consagradas não dão conta da amplidão
que reclamo para a Arte neste ensaio, e entendem que esses quatro campos
(Arte, artesanato, técnica e artificial) são hierarquicamente equivalentes. Não

13. Tassinari apresenta uma notável sumarização desse processo em que a obra de Arte Pós-
romântica engendra sua própria realidade em sua tese quanto ao “Espaço Moderno” (2001).
Tassinari não utiliza a terminologia que utilizo aqui e, diferentemente da minha abordagem,
acredita que o papel da obra de arte seja mesmo o de pura fruição outorgado pelo Romantismo.
16 das artes e seus percursos

creio que sejam. E afirmar que sejam seria dizer que há uma ontologia fixa, à
qual se recorre sempre que os três campos alheios à Arte são acionados: desse
modo, o artesanato, a técnica e o artificial em nada questionariam o que já se sabe
de acordo com a Ciência – podem apenas ilustrar o que é o “Real” segundo ela.
Talvez, a delimitação da Arte não se faz tanto por delimitar territórios
ou áreas de competência, e sim por meio de entender processologias diferentes,
algumas próprias da Arte, e outras próprias de outras formas de ação: não se trata
de conhecimentos diferentes, mas de modos diferentes de colocá-los em operação.
É por isso que se pode reconhecer a mesma mobilização ontológica que a Arte
empreende em um campo que se considera, em geral, bastante estável enquanto
forma de conhecimento: a Tecnologia. Ela não é muito diferente da Ciência,
enquanto forma e conteúdo de conhecimento. No entanto, ela é profundamente
diferente no sentido em que se aceita como criadora de novos mundos: cada
Tecnologia engendra uma nova Realidade, exatamente porque mobiliza novos
conceitos e novas ações, novas atualidades na práxis concreta de sua utilização
e adoção. Para entender isso, pode ser interessante tratar o assunto de modo
quase mitológico: O rei-Logos – do sonho positivista de dominação e controle a
partir de um cógito de verdades absolutas, de uma ontologia estabilizada porque
verdadeira e perene – convidou sua inimiga e complementar, a Techné-artesã – do
devir tempo-sonho,14 um devir-fluxo da mutação constante, que só se entende
como força motriz de realidades múltiplas, desprovidas de um chão constante –
para compartilhar de seu domínio, e queria desposá-la entendendo-a como uma
esposa obediente. Em outras palavras, o dominus positivista baniu a Arte como
alteradora do cotidiano, aceitando apenas o campo social de sua produção, e
circunscrevendo esse a um sistema controlado e debelado em sua potência de
alteridade. E acreditou que a Techné – controlada pelo Logos (tecno-logia) –
estaria circunscrita, por princípio, ao que este ditaria como verdade. E o que
sucedeu foi uma procissão de numerosas ontologias, cada uma motivada por uma
mudança profunda no “Real”, motivação que tinha origem na mudança de usos e
hábitos criados a partir de novas tecnologias em circulação livre pela sociedade.

14. O conceito do “tempo do sonho” (dreamtime), proveniente da cultura aborígene australiana,


é possivelmente um nome para o “tempo fora da história” que Deleuze e Guattari reclamam
para as culturas nômades, que não teriam uma história, e sim uma “nomadologia” (DELEUZE
e GUATTARI, Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995).
Trata-se de uma noção do tempo que não é cronológica, pautada pelo tempo mecânico-
espacial do relógio ou da linearidade; e se refere a um mundo em que as categorias são, por
princípio, mutantes e fluxionares. Situação profundamente incômoda para a mente ocidental
ou eurocêntrica que quer categorias constantes, e compreende o mundo como uma narrativa
com “começo-meio-e-fim”.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 17

A Techné, sendo potência de alteridade que é, promoveu repetidas vezes,


nos últimos duzentos anos, mudanças ônticas de naturezas diversas: a Primeira
Revolução Industrial (racionalização da fabricação) criou a noção do “mesmo”
ou “idêntico” como objeto de produção seriada, a qual se derivou na noção de
entidades vivas controladas também como entidades seriadas, entendidas como
idênticas entre si; a Segunda Revolução Industrial (mecanização e automação da
fabricação) criou a noção da guerra industrial, de armamentos e equipamentos
que convertiam o soldado em entidade descartável, o que se estendeu para a
sociedade civil na noção do cidadão descartável; a Terceira Revolução Industrial
(computação digital) está criando a noção da fragmentação fractal do meio
social, em inúmeras subsociedades e subpolíticas, manifestações de uma única
política do fluxo de informação digital. Mas nem de longe essas três teses quanto
às três ditas Revoluções Industriais sequer começam a elucidar os câmbios
ônticos que se sucederam desde a Fratura. Pelo contrário, para iniciar-se essa
elucidação, cada uma das numerosas tecnologias que emergiram – e cada um
dos métodos pelos quais circularam pela sociedade, criando cultura cotidiana –
deveria ser entendida como câmbio ôntico de direito próprio na microestrutura
da sociedade. Porém, é bom lembrar que essas mobilizações ontológicas não são
entendidas pela episteme ainda hoje reinante como fruto da Techné, mas sim da
potência tecnológica de produção, e resiste-se bravamente à alteridade que é
trazida constantemente ao cotidiano, como se as categorias do real pudessem
permanecer inalteradas, e fosse possível que apenas as práticas do cotidiano
fossem alteradas, sem a emergência de novos significados, novas subjetividades
e realidades.
Este é outro aspecto de interesse dessa processologia: a relação entre sua
dinâmica sociocultural, o desenvolvimento e a adoção de novas ontologias. Não
seria possível afirmar que toda obra de Arte (pré- ou pós-Fratura) contribua
uma nova ontologia completa para a cultura e a sociedade. Na verdade, como já
disse, cada obra de Arte carrega sua própria ontologia, mas ela não é completa,
e não aspira a substituir a ontologia reinante em determinado contexto sócio-
histórico – ela meramente exige que ajustemos ou cedamos nossas ontologias
para que possamos fruir sua estética. No caso do impacto sociocultural que a
Tecnologia tem, esse se dá como uma expansão de sua ontologia para as práticas
cotidianas – e, em geral, essas práticas têm, na ontologia do objeto tecnológico
em questão, um complemento e não uma mutação radical.
Mutações ontológicas radicais podem ocorrer. Como no caso do
automóvel: ao longo da primeira metade do século XX, novas maneiras de
habitar a cidade emergem gradualmente, à medida que a ontologia do automóvel
18 das artes e seus percursos

“torna reais” conceitos banais hoje em dia – morar longe do trabalho, cidades
de baixa densidade populacional, bairros habitacionais semirrurais. Creditam-se
ao automóvel, e à sua popularização, mudanças de grande escala na natureza
das cidades, mas essas não ocorreram imediatamente após o surgimento da
indústria automobilística. O automóvel não cambiou completamente, e da
noite para o dia, os usos e práticas das cidades. Sua ontologia não apenas não
foi explicitada de início, como também não era inteiramente explorada por seus
próprios criadores.15
No caso de cada tecnologia, há, em sua proposta inicial, uma
visão simplificada do papel que ela terá para a sociedade e a cultura, que
invariavelmente se revela parcialmente correta, mas de um impacto muitíssimo
menor do que aquilo que de fato emerge de seu alastramento pela sociedade.16
A ontologia de uma nova tecnologia se revela aos poucos, à medida que sua
operação convida a sociedade a novos hábitos.

Processo de inovação como Arte

Se Arte é a mobilização ontológica, é importante reconhecer que inovação


seria Arte. O campo de inovação, entendido de modo “mágico” ou recluso
em sistemas inescrutáveis, como é comum no modo como a mídia de massa
apresenta os contextos em que a inovação acontece, não elucida o que, de fato,
se trata por “inovação”. No entanto, se estudarmos os processos históricos em
que as inovações surgiram,17 são notáveis os choques perceptuais e cognitivos
que emergem continua e sequencialmente nas sucessivas etapas com que uma
inovação se torna aceita pela sociedade: de um momento de recusa absoluta
(nenhuma inovação é, como se crê, “necessária” – ou seja, requisitada pelo

15. A indústria automobilística promoveu o automóvel como “veículo de passeio”, literalmente,


até fins da década de 1940, quando se tornou óbvio que ele estava engendrando uma nova
maneira (possivelmente destrutiva) de construir-se a cidade. Emerge o “urban sprawl” e os
bairros de condomínio, assim como se fortalece o papel das cidades-dormitório, que já haviam
surgido com o sistema ferroviário.
16. Há uma farta literatura que trata das “consequências inesperadas das tecnologias”.
Certamente, o teórico mais conhecido quanto a esse assunto é Marshall McLuhan, que insiste
que só é possível conhecer a história “pelo retrovisor” (MCLUHAN, O meio são as massa-gens:
um inventário de efeitos. Rio de Janeiro: Record, 1969).
17. Em outra oportunidade, tratei a inovação como uma das modalidades da “emergência”
(VASSÃO, Metadesign: ferramentas, estratégias e ética para a complexidade. São Paulo: Blucher,
2010). E o processo de inovação, e seus diálogos com a complexidade e com a Arte foram parte
de outra pesquisa (VASSÃO, Arquitetura livre: complexidade, metadesign e ciência nômade. Tese
de doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2008).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 19

público), a um momento final de aceitação generalizada (em que a inovação é


naturalizada e incorporada no cotidiano, tornando-se, aí sim, necessidade), e
passando por momentos de exploração, experimentação, e construção de modelos
mentais, culturais, jurídicos e legais para que possa circular pela sociedade.
Concretamente, a única diferença entre Arte e inovação – entendendo a
segunda no contexto sócio-técnico industrial e pós-industrial – é que a segunda
é uma proposta sociopolítica que almeja explicitamente participar da sociedade,
enquanto a primeira é uma proposta que se entende, por princípio, reclusa ao
circuito social da fruição estética desinteressada. Essa diferença incorre em
diferenças secundárias, mas ainda assim muito importantes: a inovação procura
por meios de validar-se perante o aparato comercial, cognitivo e jurídico que
paramenta as práticas sociais estabelecidas, enquanto que a Arte procura
frequentemente questionar e solapar os mesmos valores.
No entanto, essas diferenças são superadas quando se depara com
o processo perceptual e cognitivo de proposição em ambos os contextos: a
mobilidade ontológica da Arte é tão extrema e radical quanto na inovação.
Com efeito, a inovação procura por fazer existir o que antes não havia, e o faz
principalmente pela plasticização do que se considera estático, pela imposição
de uma “nova realidade” sobre a realidade estabelecida.
É interessante contemplar-se a inovação como Arte: percebe-se o esforço
considerável de quem inova em digladiar-se com um campo de preconceitos
que existem necessariamente, já que compõem o que se chama “realidade”.
Compreender a inovação como uma mudança exclusivamente “tecnológica” já
é, necessariamente, compreender que a tecnologia envolve uma ideologia, um
campo de percepções que se organizam em cognições e crenças quanto a “o que
é possível” segundo certo repertório tecnológico – a inovação seria a mudança
desse campo de percepções, cognições e crenças. De fato, a inovação tecnológica
altera a realidade em que se vive – mas compreender a concreta extensão dessa
alteração é reconhecer uma dimensão “monstruosa” da inovação tecnológica,
que amplia sua potência para o questionamento do status quo. Como a inovação,
entendida como distinta da Arte, é um fenômeno sociocultural que negocia a
sua validação institucional e jurídica em todas as etapas de sua disseminação,
essa dimensão “monstruosa”, romântica de fato, passa despercebida, ou pelo
menos não é salientada por quem a empreende, e pelos canais de comunicação
que a divulgam e avaliam.
Nesse sentido, podemos observar os últimos duzentos anos como um
momento de extrema inovação, em que a própria Fratura foi um de seus
elementos necessários, criando campos específicos de ação, e neles permitindo
20 das artes e seus percursos

que novos extremos de coerência interna pudessem ser atingidos: a Arte


assume-se como mobilização ontológica, a Ciência como produtora da verdade,
a Tecnologia como “saber fazer”, e a Poiésis como o campo inescapável da vida,
que incessantemente fez-se presente nas mais diversas esferas da vida pública,
mesmo que em choque com o establishment e com as instituições. Superar a
Fratura será compreender a integralidade do processo criativo como a articulação
necessária da Arte e da Ciência.

Esvaziamento semântico do cotidiano, “Artes aplicadas” e Metadesign

A “setorização” das práticas e conhecimentos decorrente da Fratura


operou com notável eficácia, até que os produtos da indústria se demonstraram
relativamente desinteressantes para a população consumidora (categoria
social também inaugurada pela instituição da Indústria). Do ponto de vista
semântico-estético, os produtos da indústria primitiva (até meados do século
XIX) demonstram-se notavelmente vazios, ocos de significado, objetos que
expressavam, de fato, uma coisa: seu modo mecânico-geométrico de produção.
Mesmo que essa expressão seja, necessariamente, estética, seu significado
conflitava diretamente com a ontologia estabelecida no mundo cotidiano
daquele momento histórico – tanto do ponto de vista dos consumidores,
como dos próprios industrialistas – sua semântica não dialogava com o mundo
doméstico, cotidiano ou da ostentação socioeconômica, mas sim com os próprios
modos mecânicos de produção: a geometria euclidiana e a automação mecânica
aplicadas aos métodos produtivos. Em um sentido bastante pragmático,18 o
cotidiano industrial se esvazia de semântica – não porque os objetos industriais
não tivessem significado intrínseco – como vimos, a Techné sempre produz
alteridade significativa –, mas sim porque seu significado intrínseco é recusado
pelos consumidores.19

18. Mas não “pragmatista” – referente ao movimento Pragmático em filosofia, contemporâneo ao


momento histórico discutido acima, do qual Peirce foi destaque e provável fundador.
19. Diversas interpretações são dadas para essa recusa: que a produção em série é “inexpressiva”,
seus resultados estéticos carecem de expressão que individuem cada uma das peças, o que
coloquialmente chama-se “massificação”. Mesmo que primária, tendenciosa e incapaz
de reconhecer a própria carga semântica dos processos industriais, a interpretação da
“massificação” é amplamente adotada, e dá conta, anedoticamente, do esvaziamento do qual
falamos.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 21

Em resgate à indústria, recorre-se às Artes, que descem de seu pedestal


de pura fruição. Para que se distingam da “Arte Pura”, são denominadas “Artes
Aplicadas”: diversos movimentos artísticos fazem a ponte entre o campo
positivista da tecnologia industrial e o campo romântico da produção da fruição
estética.20 A estética é, intrinsecamente, a produção de significado, e conferi-lo
a produtos de consumo foi entendido como o meio para ampliar sua aceitação
pelo público consumidor. A princípio, a Arte empresta à Indústria seus conteúdos
de modo um tanto postiço, sobrepondo-se a entidades completamente alheias
a ela – caracterizadas pela sua origem no pensamento geométrico-mecânico
do maquinário industrial – recorre-se à pintura, maquiagem e decalque, para
conduzir a percepção do público para longe da própria natureza mecânica
dos produtos – ou procura-se pela produção emulada de produtos artesanais,
partícipes de um mundo doméstico já configurado antes da indústria, assim
como revalorizado como reação à mecanização imposta pela produção
industrial. Nesse momento, a mobilização ontológica da Arte Romântica não
é aceita na indústria, e a contribuição das Artes Aplicadas fica restrita ao
“embelezamento” dos produtos, ou do ajuste de métodos produtivos para se
atingir a aparência de produtos artesanais. Certamente, isso contribui para a
popularização, incrivelmente nefasta, de entender-se Estética como “beleza” e/
ou “embelezamento”, acionando mais um esvaziamento: nesse caso da própria
potência ôntica da estética – ela não trata apenas da categoria “belo”, mas
tantas outras, e ainda da própria existência enquanto percepção. Se “viver
é perceber”,21 a estética está presente em tudo, quer intencionalmente – nas
obras da Arte –, quer não intencionalmente, mas inevitavelmente, em qualquer
“obra” humana, e também no mundo não artificial da natureza; e ela não se
manifesta como “percepção passiva”, e sim participa de qualquer esfera da vida
como uma construção de realidades pelo próprio perceptor-ator: agir no mundo
é um processo de percepção/ação.

20. Dentre eles: Art Déco, Art Nouveau, o proto-modernismo holandês etc. O movimento Crafts
and Arts, que se declarava anti-industrial, valorizava a produção manual e os conhecimentos
a ela associados, o que também contribuiu diretamente para a criação do currículo tecno-
lógico da Bauhaus, assim como viabilizou a produção de itens domésticos em escala industrial
baseados nos achados estéticos do movimento.
21. Corolário necessário tanto da fenomenologia da percepção (MERLEAU-PONTY,
Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996), como da noção “ecológica” da
percepção e pensamento, em Bateson (Steps to an Ecology of Mind. Chicago: University of
Chicago Press, 2000) e Gibson (“The Theory of Affordances”, 1977).
22 das artes e seus percursos

E, confirmando-se tal tese, em início do século XX, entende-se que a


ponte entre Tecnologia e Estética pode e deve ser mais profunda e íntima. O
currículo da Bauhaus é concebido exatamente para promover essa ponte de
modo mais consequente. Seu reaparecimento na Escola de Ulm, trinta anos
depois, dá continuidade a essa abordagem. Mas propõe a ideia de que esse
casamento pode ser mais do que uma parceria, e a mobilização ontológica
da Arte pode estender-se para o próprio chão de fábrica. Dentre elas, está a
proposta de Van Onck do Metadesign, que reproduz o que a Arquitetura tinha
feito com a construção civil: segundo Venturi, o movimento moderno (não
apenas a Bauhaus, mas também Wright e Corbusier) tinha estetizado todo o
processo de concepção arquitetônica, desde o estudo preliminar até o próprio
entendimento público da obra; e, segundo Argan, a urbanidade passa a ser vista
como Arte.22
Emerge, gradualmente, a noção de que o projeto (“design”) deveria
envolver aspectos intrínsecos aos dois lados da Fratura: a Ciência e sua
capacidade analítica e determinística, a Arte e sua capacidade de doar
significados ao mundo e seus objetos. Isso se traduz em uma noção de que o
“Design” estaria entre esses dois mundos, mesmo que em uma espécie de terra-
de-ninguém epistemológica, já que essa região estaria tomada pela ponte entre
Logos (ciência) e Techné (arte) que a Tecnologia empreende – sendo que a
proposta do Design seria a de compreender a produção, a Poiésis, segundo ponto
de vista da mobilização ontológica, e não segundo a estabilização ontológica
que é a meta sociocultural mais recorrente nas práticas científicas.23 Em outras
palavras, enquanto a Tecnologia quer controlar e reduzir a mobilidade intrínseca
à produção de novas entidades, o Design se abre à mutabilidade e à alteridade
trazida pela exploração estético-poética, sem rechaçar seus desdobramentos
para a vida cotidiana, como queria a Arte segundo o Romantismo.24

22. VENTURI, Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2004;
ARGAN, História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
23. É claro que não é assim que Design, ou Arquitetura e Urbanismo são explanados pelo
establishment acadêmico. Mas parte da proposta desse ensaio é exatamente o de explicitar
esse processo subterrâneo da interpenetração entre Arte e a “cultura de projeto” que está
subjacente no desenvolvimento do currículo acadêmico do projeto e do Design.
24. Certamente, essa noção de que o Design tem embutida, em sua prática, a mobilização
ontológica não é parte da autoconsciência da maioria dos Designers. No entanto, ela está,
sim, presente em suas práticas – fala-se muito de “educar os clientes”, criando neles o senso
do papel profundo que o Design teria para alterar o modo de perceber-se das empresas e
das linhas de produto. E uma das presenças mais notáveis no cenário empresarial atual é o
alastramento de técnicas de “Design Thinking”, que seriam capazes de alterar radicalmente
a operação das empresas, a partir de câmbios de percepção e novas categorias de ação no
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 23

Enquanto isso, mesmo que a superficialidade e a incompetência do


pensamento positivista tenham sido continuamente denunciadas tanto pela
própria produção acadêmico-científica,25 como pela ruína do sonho desse
movimento em elucidar completamente o universo por meio do processo
hipotético-indutivo,26 as categorias de pensamento que se estabeleceram no
meio acadêmico, de forma generalizada, foram aquelas que Auguste Comte
postulou em início do século XIX.27 Segundo estas, a pesquisa em Arte
está classificada, como se sabe, sob a égide de “Linguística, Letras e Artes”,
entendendo-se que o papel da Arte é “comunicar algo”. Não que não seja,
mas certamente não se pode reduzir a Arte a um processo de comunicação. Do
mesmo modo, áreas como Design, Arquitetura e Urbanismo são classificadas
como “Ciências Sociais Aplicadas”, como se de fato fossem “ciências” (o que
não são), apenas fizessem sentido enquanto no contexto social (o que não
é sempre verdade) e, de algum modo, fossem “ciências aplicadas”, talvez no
sentido positivista da palavra “tecnologia”.28 De fato, ainda hoje, os dois campos
separados pela Fratura não podem ser reatados porque a própria legislação
vigente, em escala global, determina que ela esteja em operação: ações poéticas
radicais, como a prosaica nudez, por exemplo, ainda hoje são consideradas
ilegais se conduzidas fora do campo protegido das Artes (atentado ao pudor,
nesse caso). A mobilização ontológica da Arte não pode circular livremente
pelo cotidiano.
Por outro lado, as Artes tiveram um período de extrema fertilidade após
a Fratura. Elas puderam dedicar-se com quase total liberdade à exploração do
que se considera “real”. Sob a tutela da filosofia estética e, em paralelo, do
mercado de arte, a Arte pôde assumir uma dimensão ontológica que estava,
desde a Antiguidade, latente em sua composição, mas que não conseguia
expressar-se completamente talvez por causa de suas obrigações “práticas”, de

mercado (VIANNA e SILVA et al., O que é design thinking: inovação em negócios, 2011).
25. Vide a produção filosófica desde Schopenhauer, passando por Nietzsche, Husserl, Heidegger,
Deleuze e tantos outros.
26. Vide os dois teoremas de Gödel, que demoliram o sonho de formalização completa da
matemática, que seria a base para as outras ciências, segundo o Positivismo. Se a própria
matemática não pode ser elucidada enquanto projeto formal, o que dizer do restante das
ciências? Isso não significa que as ciências de nada valem, como se chega a afirmar, mas sim
que elas não podem aspirar a deter a única e completa explicação de todos os conteúdos
e assuntos, como se afirma tacitamente em boa parte dos discursos laudatórios quanto às
ciências.
27. Vide a lista de disciplinas como categorizadas pelo CNPq. http://www.cnpq.br/
documents/10157/186158/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf.
28. Idem.
24 das artes e seus percursos

uso e de sustentação do cotidiano – como analisarei adiante. E, notavelmente,


o entendimento romântico da Arte teve um papel de reavaliação retroativa
e geopolítica da Arte de outras culturas anteriores à modernidade e/ou
exteriores à matriz eurocêntrica: passa-se a classificar como “Arte” objetos
de complexidade sociocultural muito diferente ou mesmo superior às obras
de Arte Romântica. Culturas aborígenes de todo o mundo têm seu repertório
material e cultural classificado de acordo com a matriz eurocêntrica que
entende, como quer a Fratura, o divórcio entre ação poético-estética e vida
cotidiana.

Mobilização ontológica e a dimensão política da arte

No entanto, e não por acaso, o processo de mobilização ontológica, mesmo


aquele circunscrito ao espaço sociocultural da Arte, tentou continuamente
libertar-se das amarras prescritas pela Fratura, propondo-se a superação das
categorias românticas do gênio monstruoso, da autoria profunda, e até mesmo da
classificação da obra de Arte como objeto de pura fruição estética, desvinculada
do cotidiano. Ao longo do século XX, e início do século XXI, proliferam-se
propostas de que a Arte possa ser parte do cotidiano, que enfrentam grande
resistência e incompreensão. O Romantismo libera a Arte de outras obrigações,
mas a aprisiona em uma redoma de fruição estética.
Desse modo, como a Arte – mesmo em suas manifestações antigas e outras
anteriores à Fratura – já tem em si embutida a mobilização ontológica, todo e
qualquer ato de poiésis é uma mobilização ontológica: o fazer existir é um ato
que invoca o Outro, pois é a apresentação do novo, que necessariamente está
além das categorias estabelecidas de pensamento. Esse Outro não pode ser nem
poderá ser assimilado, convertido em item de circulação segura pelo cotidiano:
sua presença sempre convidará a questionar-se o status quo. No caso de obras
de arte anteriores à Fratura, é possível que essa potência de alteridade seja um
tanto atenuada pelas exigências de funcionalidade e operabilidade, no caso de
entidades criadas no contexto do artesanato e das “artes servis”, ou ainda no
caso das “artes liberais” que foram posteriormente convertidas em ciências,
como a astronomia, por exemplo. De fato, o objeto de Arte existe em ato, em um
constante estado de fluxo, em devir, porque não se reduz a uma representação
estática ou sobrecodificada, como entendem Deleuze e Guattari: a linguagem
da poesia é o Outro expresso por meio do código, enquanto a Ciência Régia,
a ciência de Estado, captura os conteúdos da Arte e os converte em entidades
circulantes pela economia e cultura estabelecidos – trata-se de uma linguagem
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 25

“sobrecodificada”, ou seja, de aspecto normativo, que se estabelece como uma


coleção de artigos e normas.29
Recorrendo a matrizes culturais não europeias, encontram-se categorias
estéticas interessantes que podem apresentar campos estético-semânticos
que dão conta dessa dimensão que não se aceita reduzir ao assimilado,
ao sobrecodificado. No Japão, fala-se de uma qualidade de inacabamento
permanente, de imperfeição intencional, denominada “wabi-sabi”, por meio do
qual o artista deixa perceber o Outro por entre as rachaduras e as imperfeições
de sua obra, que permanece em estado constante de abertura para o novo.30
Se há uma diferença de fato fundamental entre socialismo e capitalismo,
ela estaria no modo como lidam com o Outro que é trazido pela Arte à atenção do
poder instituído: no socialismo, deseja-se a regulamentação e controle da Arte
enquanto ferramenta de Estado, possivelmente produzido por representantes
dessa mesma ordem – a assimilação do Outro ao Estado, e recusando-se
conteúdos que não podem ser assimilados, ou seja, não são aceitáveis como
ferramenta de Estado – daí os pogroms, a perseguição à “arte degenerada” etc.,
é a filtragem periódica da criatividade socialmente distribuída, sua sanção
ou exclusão/perseguição; enquanto no Capitalismo, a atenção se volta para
a captura do que se descobre, ou inventa, como Outro – sendo que essa
captura se dá pela normatização, por debelar o poder de alteridade que a Arte
apresenta –, ou seja, a captura é o encapsulamento do Outro segundo formas
de sua assimilação pelo mercado de consumo. É por isso que, como comentam
Deleuze e Guattari, o capitalismo é de fato mais liberto do que o socialismo –
mas essa diferença não se dá pela ausência de regras, ou pelo afrouxamento
delas, e sim pela capacidade de proliferação incessante de critérios de avaliação
e assimilação, de conversão do Outro em assimilado, em capturado.31 Há aí uma
reveladora analogia com o processo de semiose, como descrito na semiótica
peirceana, em que signos existentes engendram novos signos em um processo
incessante, motivado pela própria natureza comunicacional da cultura.32 Se a

29. Deleuze e Guattari apresentam um entendimento das questões sócio-técnicas a partir de uma
coleção de conceitos renovadores. Contando com: as oposições entre “Árvore” e “Rizoma”,
Espaço Estriado e Espaço Liso, Ciência Régia e Ciência Nômade, código e sobrecodificação,
desterritorialização e “mecanosfera”. (DELEUZE e GUATTARI, Mil platôs: Capitalismo e
esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995).
30. KOREN, Wabi-Sabi for Artists, Designers, Poets & Philosophers. Point Reyes: Imperfect
Publishing, 2008.
31. DELEUZE e GUATTARI, op. cit.
32.. PEIRCE, 2003. Mesmo que Peirce entenda a semiose como, inclusive, a semântica, adoto o
ponto de vista de Deleuze e Guattari, Derrida e outros representantes da chamada “Filosofia
26 das artes e seus percursos

linguagem remete à linguagem, em um jogo de espelhos que sempre se expande,


a semiose se autorreproduz do mesmo modo que a lógica de Estado no mundo
capitalista: acredita-se, em nossa episteme contemporânea, que é necessário que
o Outro seja debelado. Na semiótica, esse controle se dá pela representação
enquanto signo; no Estado Capitalista, ele se dá como construção de uma
realidade coerente com práticas de comércio, legislação e poder. Daí a existência
de inúmeros festivais, premiações, bolsas, residências artísticas, exposições de
curadoria sofisticada: a intenção é mapear o Outro e suas manifestações na Arte,
e localizar modos de captura e conversão, assimilação enquanto mercadoria e/
ou ferramenta de Estado.

Ciência nômade, arte e pesquisa acadêmica

A pesquisa acadêmica é uma empreitada multifacetada, composta de


numerosos níveis de realização. Por princípio, se formos adotar a perspectiva
deleuziana, os conteúdos da ciência são produzidos pela “Ciência Nômade”,
relativa à descoberta-invenção concreta do mundo. No entanto, esses conteúdos
só podem circular pela sociedade enquanto manipulados e normatizados pela
“Ciência Régia”, que os recodifica e sobrecodifica, capturando-os para uso
prático no mundo estatal, empresarial e institucional.
Para compreender os diversos modos como o diálogo e sobreposições
entre “Ciência Nômade” e “Ciência Régia” se dão, proponho interpretar o
processo de pesquisa acadêmica e sua circulação pela sociedade a partir de três
modalidades ideológicas da ciência:

(1) Ciência como Religião – a ciência como produtora única e absoluta


da verdade – a realização do sonho positivista do “rei-cientista”, postulado por
Comte. Os positivistas chegaram a erigir templos à ciência, e tratá-la, de fato,
como religião. Aqui está a compreensão que boa parte da comunidade não
acadêmica faz da ciência, e essa visão é promovida pelos meios de comunicação
de massa. E há cientistas que abandonam sua prática profissional para se
dedicarem a reforçar publicamente essa ideologia.33

Pós-Estruturalista”, em que a linguagem não é vista como a natureza do significado, mas sim
um processo de representação que pode, comumente, converter-se em prisão. (DELEUZE
e GUATTARI, op. cit., e O que é filosofia? Rio de Janeiro, Editora 34, 1991; DERRIDA,
Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004.)
33. Um bom exemplo é o ativismo do biólogo Richard Dawkins, que empreende uma cruzada
contra o fundamentalismo religioso, a qual tem os contornos gerais de uma postura, em si,
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 27

(2) Ciência como Burocracia – ciência como produtora de uma verdade


negociada – processo altamente burocrático de produção autorreguladora
de verdade. É o domínio do trabalho cotidiano acadêmico, a elaboração de
propostas de pesquisa, a condução diária de experimentos e sua validação por
pares, trabalho de gabinete em revisão bibliográfica, processo de publicação
em periódicos, a comprovação curricular de produção e filiações institucionais.
A partir dessa modalidade ideológica, é possível interpretar-se a sucessão de
paradigmas científicos no sentido kuhniano34 como um processo de negociação
socioinstitucional. Também estaria a compreensão da ciência como um processo
jurídico de construção quase legalista da verdade, decisões de tribunal e a
construção de consenso.35 Nesse sentido a “verdade” não existiria como um
absoluto, e sim como um consenso fabricado pela dinâmica socioacadêmica.
Cada contexto socioacadêmico conta com um conjunto de consensos
próprios, que operam como verdades circunstanciais que são periodicamente
questionadas, revalidadas ou alteradas.36
(3) Ciência como Atividade Prática – ciência como produtora de uma
verdade singular – o processo concreto de encontro com o Outro e a criação de
modelos elucidadores, no entanto precários, sem nenhuma garantia de verdade
transferível, ou seja, universal e portanto aplicável em outras situações. Aqui
estaria a ação criativa de entendimento do mundo que Deleuze e Guattari
chamam de “Ciência Nômade”. No entanto, enquanto modalidade ideológica,
é possível que os pesquisadores que realizam em primeira mão a descoberta-
criação científica37 não se vejam como produtores de modelos precários e
transitórios, mesmo que eficazes, mas sim de material prévio para a “ciência
negociada” da burocracia documental acadêmica, que será, ela sim, capaz de
conferir permanência e universalidade à situação singular que é característica
do experimento, da elaboração de interpretações e também de seu registro

religiosa – dogmática, agressiva e segregacionista (DAWKINS, The God Delusion. New York,
Bantam, 2006). Outro exemplo é o astrônomo e biólogo Carl Sagan, que acreditava que a
única chance de redenção civilizatória da humanidade reside na Ciência – notável reprodução,
provavelmente sem o saber, da ideologia positivista (SAGAN, O mundo assombrado pelos
demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997).
34. KUHN, A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2001.
35. SHAPIN e SCHAFFER, Leviathan and the Air-Pump: Hobbes, Boyle, and the Experimental Life.
Princeton: Princeton University Press, 1985; LATOUR, 1998.
36. Latour desenvolve uma análise antropológica do contexto tecno-científico que desnuda
muito dessa ideologia. (LATOUR, Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São
Paulo: Editora 34, 1998, e Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora.
São Paulo: Editora Unesp, 2000.)
37. MOLES, A criação científica. São Paulo: Perspectiva, 1998.
28 das artes e seus percursos

imediato enquanto anotação do processo científico. A “Ciência Nômade” seria


um momento de extremos de fragilidade e subjetividade, em que o cientista-
artista vai de encontro a uma concretude fugidia, que se recusa representar, e
que apenas aceita ser apresentada enquanto modelo precário.

Obviamente, há cientistas que operam em miríades de outras modalidades


ideológicas, ou em uma atitude ideológica menos ativa, e mais disponíveis ao
trabalho científico de fato. É possível que muitos entendam a ciência a partir
de sua idealização como uma força política subversiva da ordem rigidamente
dogmática de visões opressivas e mais primitivas – talvez a religião e a ordem
totalitária do Estado que se prolifera por meio do ensino industrial baseado no
conteúdo único de impressionar submissão e disciplina aos pupilos – e entendem
a ciência como uma força socialmente libertária, capaz de criar novas visões a
partir da descoberta científica.38
Por outro lado, cada uma das três modalidades dialoga com as outras duas
de modos diversos: a ciência como religião não é explicitamente aceita pela
ciência como burocracia, mas certamente esta tira proveito do prestígio que
aquela acaba por investir nos cientistas. Já a ciência como burocracia depende
intimamente da ciência como atividade prática: sem esta, aquela não pode gerar
a documentação que é sua realidade. De fato, uma maneira de entender esse
diálogo seria exatamente segundo a lógica de captura engendrada pela Ciência
Régia (ciência como burocracia) dos conteúdos produzidos pela Ciência
Nômade (ciência como atividade prática). E, em última instância, a ciência
enquanto religião seria uma antagonista da ciência como atividade prática, pois
a precariedade desta depõe contra a pretensa universalidade daquela.

Pesquisa em Arte e Projeto

Assim, o que resta à pesquisa acadêmica em Arte? Como ela se articula


com a noção arraigada de pesquisa acadêmica entendida como forçosamente
“Ciência”, e com as modalidades ideológicas citadas? E também como a Arte
pode articular-se com outros campos igualmente precários de conhecimento,
como o Design, Arquitetura, Urbanismo e, em última análise, a própria Filosofia?

38. Provavelmente, é desse modo que os cientistas-ativistas, como os citados Sagan e Dawkins,
devem entender sua contribuição sociocultural: como uma subversão da opressão do Estado
por meio da elucidação de verdades tão profundas e imóveis que não podem ser solapadas
nem mesmo pela ordem totalitária. Uma visão estranhamente romântica.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 29

De fato, o mesmo sistema de classificação do conhecimento diz que Arte


seria uma modalidade da comunicação, e a arquitetura, o urbanismo e o design
seriam ciências sociais aplicadas, e a filosofia seria parte das “ciências humanas”
– enquanto, rigorosamente, segundo a própria história do conhecimento, a
ciência é uma modalidade da filosofia, e não o contrário.39
De saída, podemos afirmar que a Arte já é, inescapavelmente “pesquisa”,
pois é mobilização ontológica, ou seja, o mesmo que a Ciência Nômade, a
produção de novos conteúdos, alheios à própria estrutura ontológica reinante
em determinada episteme. Porém, tornar isso reconhecível no contexto
acadêmico é, talvez hoje, o maior desafio em pesquisa formal em Arte: validar
a própria natureza da Arte frente às instituições de fomento à pesquisa que
são, fundamentalmente, instituições que têm seu sustento epistemológico no
Positivismo.
De modo prosaico, a capacidade de artistas, designers, arquitetos e
urbanistas em fazer operar práticas das ciências em sua pesquisa é fundamental
para a própria coerência e rigor de sua produção. No entanto, isso nunca pode ser
entendido como a conversão da Arte, do Design, da Arquitetura e do Urbanismo
em Ciências, de fato. O que ocorre é o mesmo que na filosofia: o filósofo é capaz
de entender a ciência, seu modo de produção, rigor e coerência, assim como
seus conteúdos, epistemes e cosmologias, mas sabe que sua atividade, enquanto
filósofo, ainda é Filosofia, e não Ciência – mesmo que tome emprestadas
abordagens científicas, como a estatística e os princípios da físico-química, por
exemplo, ou seus achados enquanto modelos de compreensão da realidade:
o filósofo sabe que sua produção está além disso, e pode estar, inclusive, em
questionar se, de fato, tais modelos são expressão de um fato ou um modo de
explicação, uma representação eficaz, que nem por isso é universal e imutável.
Em um certo sentido, a filosofia está em um trânsito entre as múltiplas verdades
que se podem produzir pela ciência, mas não apenas por ela.40 Do mesmo modo,
os artistas, designers e arquitetos podem operar empréstimos das Ciências, e
compreender um mundo que é informado por elas, não apenas por elas. Ser

39. Deste modo, inclusive a própria filosofia foi reclusa a uma posição secundária em relação
à ciência, o que é uma fabricação epistemológica positivista, amplamente conhecida e
denunciada (vide publicações introdutórias à história do conhecimento e da filosofia,
como em ABAGNANO, op. cit., e CHAUÍ, Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000).
Para compreender-se, historicamente, a ciência com uma das modalidades da filosofia, ver a
origem das ciências positivistas nas “filosofias naturais”, como entendidas e classificadas pelo
Iluminismo (Idem).
40. DELEUZE e GUATTARI, O que é filosofia?, 1991.
30 das artes e seus percursos

capaz de operar pesquisa enquanto mobilização ontológica incorre em superar a


mesma estabilização ontológica que é a marca da pesquisa acadêmica enquanto
empreitada burocrática – mesmo que desse universo o artista possa encontrar
elementos e conteúdos de enorme valia à sua pesquisa.
Além disso, há um novo paradigma científico que procura superar o
Positivismo: a Ciência da Complexidade, que é uma empreitada multifacetada,
com representantes oriundos das ciências “duras”, das ciências humanas
e da filosofia, contando com abordagens tão variadas quanto suas origens.
A Complexidade compreende que o que chamamos de “Realidade” é uma
construção epistêmica, e não uma descoberta de uma entidade imutável
subjacente ao mundo, e os modelos que se constroem para explicar as coisas são
entidades transientes e úteis, mas também ocultam nossa própria ignorância.41
Uma das categorias que mais se põe em xeque na Complexidade é a
“teleologia”: já que os sistemas tendem a ser compostos de modo “emergente”,
seu projeto deveria ser impossível, já que projetar é a procura pela determinação
de um futuro. No entanto, arquitetos, designers e urbanistas projetam há
muitos anos, e lidam com essa questão de modo sofisticado. Há algo na “cultura
do projeto” que exige explicação científica ou filosófica. E certamente essa
explicação envolveria elucidar a capacidade de projetar e sua parceria com
a poiésis, que envolve a teleologia (projeto) em diálogo com a emergência
(entendendo a poiésis como invocação do Outro). Esse é um processo que não
se deixa reduzir a um modelo único, e envolve a integralidade do ambiente e
do ecossistema.

Estética e Poética como condições inescapáveis: primado da percepção


entendido como primado da poética

A Fenomenologia de Merleau-Ponty propõe que a condição fundamental


de existência é a percepção.42 Esse “primado da percepção” incorre em uma
noção que pode ser definida como “ecossistêmica”, como na obra de Gibson e

41. Talvez as abordagens mais distintas dentro do campo conhecido como “Complexidade” sejam
a do filósofo Edgar Morin (MORIN, Introdução ao pensamento complexo, 2005) e a do grupo
sediado no Santa Fe Institute (BETTENCOURT et al., “Growth, Innovation, Scaling, and
the Pace of Life in Cities”, 2007): tratam do limite das ciências, e se suas cegueiras inevitáveis;
e da complexidade enquanto objeto de simulação computacional, respectivamente. Isso não
impede que se façam pontes e diálogos entre os dois, como este pesquisador já o fez (VASSÃO,
2008 e 2010).
42. MERLEAU-PONTY (Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 31

Bateson a respeito da dimensão ecológica da percepção e do pensamento.43


De fato, a percepção não pautada pela “ditadura da visão” é sinestésica, e trata
de totalidades e do diálogo dinâmico entre elas.44 Haveria uma ‘holonomia’
da vida cotidiana, uma integralidade entre percepção, ação, cosmologia e
intencionalidade, que se encontra fraturada, esquizofrenizada pelas contradições
profundas propagadas pela vida civilizada e sob o Estado e suas manifestações
corporativas, especialmente no mundo industrial dotado de cisões socioespaciais
profundas.45
No entanto, se há um “primado da percepção” – que é, em outras
palavras, um “primado da estética” – é decorrente disso que – ampliando e
refinando a noção de que a percepção seja compreendida como uma ação, um
“perceber/criar” que é o ato perceptual – o processo criativo, dentro do espaço
constrito da Arte como fruição desinteressada, ou no campo da construção
tecno-científica da indústria, implica um “primado da poética”. A Poiésis não é
um ato exclusivo da Arte pré-Fratura, ou dos artistas participantes do circuito
sociocultural atualmente reconhecido das Artes, mas sim é o ato criativo em
qualquer circunstância, que engendra, sempre, objetos com carga estética,
intencionalmente ou não. Até a própria Fratura romântico-positivista pode
ser entendida como uma grande obra de arte, que engendrou uma realidade
de notável alcance, se não histórico, pelo menos populacional: a civilização
tecnológica poderia ser vista como seu produto, e trata-se da maior população
humana já registrada.46
Assim sendo, a construção da vida cotidiana é uma ação estético-poética.
O jovem Marx propõe que a alienação seria a incapacidade de produzir a
própria vida – que no velho Marx era entendida como a não posse dos meios
industriais de produção.47 O jovem Marx se alinha ao idealismo romântico e seus
contemporâneos, com Hegel e Baumgarten, e compreende a amplidão ontológica

43. GIBSON, “The Theory of Affordances”, 1977; BATESON, Steps to an Ecology of Mind, 2000.
44. McLUHAN, O meio são as massa-gens: um inventário de efeitos, 1969; MERLEAU-PONTY, “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio”, 1975.
45. BATESON, op. cit.; DELEUZE e GUATARRI, Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, 1995.
46. Interessantemente, temos uma explosão demográfica iniciando-se no mesmo período em que
ocorre a Fratura Romântico-Positivista, o início do século XIX – é óbvio que em decorrência
das grandes descobertas da ciência médica. Mas, certamente, há uma correlação que vai
além disso, possivelmente a composição do aparato biológico-produtivo que é a sociedade
industrial. Assim como o período das grandes reformas urbanas modernas inicia-se no mesmo
momento em que nasce a teoria da informação – a álgebra binária, ou lógica booleana
(proposta pelo matemático inglês George Boole), é contemporânea às reformas de Hausmann
em Paris: a emergência da lógica de Estado formalizada.
47. EAGLETON, Marx e a liberdade. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
32 das artes e seus percursos

da Arte, e seu papel em uma vida integral; enquanto que o velho Marx parece
ter-se alinhado com o Positivismo e suas categorias, em especial com a mal-
desenvolvida ideia de “materialidade”.48 Concretamente, os povos nômades/
selvagens produzem integralmente sua vida, todos seus artefatos, utensílios
e mitos – não há divisão do trabalho no meio social e quanto a ‘classes’; em
especial, não há divisão entre estética/poética versus função/utilidade, como se
torna patente no mundo pós-Fratura, divisão que já se prenunciava e articulava
desde a fundação das instituições e da divisão social do trabalho.49 Não se está
propondo aqui que voltemos a uma vida aborígene, e sim que percebamos que
a construção do cotidiano nos é alheia porque ela, de fato, não é uma obra
nossa. Ela é, concretamente, uma obra coletiva da qual somos todos autores, e
nenhum de nós a conhece, ou a entende. O processo industrial, como queria o
velho Marx, é de fato um sistema de alienação, mas, contradizendo-se, o jovem
Marx diria que não é a posse dos meios de produção pela classe trabalhadora
que resolveria a questão da alienação (materialismo positivista) – como se fez
nas nações socialistas, com pouca consequência para essa questão – mas sim a
capacidade de construir-se a própria vida de modo intencional e consciente,
portanto estética e poética (idealismo estético); além de racional e funcional (em
uma possível integração que superaria a Fratura). A construção do cotidiano, de
modo integrado, envolveria a construção das próprias ferramentas de produção,
se não diretamente, pelo menos de sua apropriação cognitivo-simbólica pela ação
criativa. Do ponto de vista cognitivo, trata-se da necessidade do Metadesign:
um campo de considerações criativas a respeito da própria criatividade, também
chamado de “Meta-Arte”.50 O que se observa atualmente é a popularização

48. Pode-se entender como o ponto de clivagem na obra de Marx a passagem do idealismo
hegeliano para o materialismo positivista. A categoria do “material” é um grande problema
para a epistemologia moderna, porque é, de fato, uma categoria profundamente abstrata,
e cravejada de contradições, e pautada mais pelo senso comum do que pelas próprias
descobertas da física, da química e da ciência pós-positivista. O entendimento da “realidade
objetiva” como sendo de caráter “material” é altamente questionável (INNES e BOOHER,
Planning with Complexity: an Introduction to Callaborative Rationality for Public Policy. London,
Routledge, 2010; BATESON, op. cit.; KORZYBSKI, Science and Sanity: an Introduction to
Non-Aristotelian Systems and General Semantics. New York, Institute of General Semantics,
1994).
49. CLASTRES, A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac
Naify, 2003; DELEUZE e GUATTARI, Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, 1995.
50. De fato, em um nível de abstração que considere o Design como forma de ação concreta
e integral sobre o cotidiano, ele se aproxima das operações da Arte pré-Fratura, e da
“Ciência Nômade” de Deleuze e Guattari. Alguns autores da Arte Conceitual cogitaram e
desenvolveram o conceito da “Meta-Arte”, ainda na década de 1970, propondo compreender
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 33

de técnicas de produção altamente sofisticadas e complexas de artefatos,


anteriormente sob o domínio de especialistas encastelados em plantas industriais
– um processo que expõe o complexo produtivo a um escrutínio criativo, que
torna o próprio aparato de fabricação uma obra de Arte. Da fabricação rápida
à logística empresarial, passando pela produção de componentes eletrônicos
sob demanda, e abordagens de contato direto com a comunidade consumidora/
coprodutora – trata-se da emergência de uma lógica distribuída de produção
que supera a Primeira e Segunda Revoluções Industriais em seu aspecto mais
criticado: a massificação que impede a identificação legítima do indivíduo e o
artefato que utiliza, deseja ou constrói. Essa identificação foi estabelecida por
inúmeras técnicas de manipulação da percepção e da cognição, em especial o
chamado Branding, que criava uma constelação de imagens, valores e mitos
que poderiam ser tomados pelo indivíduo e pelas comunidades como índices de
identificação pessoal e comunitária. A produção distribuída não apenas poderia
democratizar as técnicas de produção, como promover um campo estético
complexo, aberto para a cocriação coletiva, em que artistas, designers e não
especialistas estariam envolvidos no desenvolvimento colaborativo de uma
realidade material e simbólica que seria não apenas a ampliação da indústria, e
sim o questionamento de sua própria natureza estético-poética.
O primado da estético-poética poderia ser uma baliza interessante para
a pesquisa acadêmica em Artes, Design, Arquitetura e Urbanismo, em especial
se ele for posto em diálogo com o universo epistemológico engendrado pelas
Ciências e pela Filosofia, que encontram no mundo contemporâneo novas e
potentes expressões.

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Algumas experiências de arte em
rede dos anos 80/90

Gilbertto Prado

1 - Introdução: arte em rede/arte postal

Como uma referência inicial à questão da arte em rede, acredito ser


importante relatar alguns movimentos dos anos 60 e 70 que utilizaram as
redes de forma diferenciada e que antecederam algumas das manifestações
artísticas que estamos presenciando atualmente. Na medida em que valorizava
a comunicação, a mail-art ou arte postal é o primeiro movimento da história
da arte a ser verdadeiramente transnacional. Esta é a razão de não podermos
falar de redes artísticas sem nos referirmos a essas manifestações. Reunindo
artistas de todas as nacionalidades e inclinações ideológicas, “partilhando”
um objetivo comum, tratava-se de experimentar novas possibilidades e
intercambiar “trabalhos” numa rede livre e paralela ao mercado “oficial” da
arte. A arte postal é certamente uma das primeiras manifestações artísticas a
tratar com a comunicação em rede, a grande escala. Ela encontra suas origens
em movimentos como o Néo-Dada, Fluxus, Novo Realismo e o Gutai. O ano
de 1963, data de fundação do “New York Correspondence School of Art” pelo
artista Ray Johnson, pode ser considerado como “data de nascimento” da arte
postal.1

1. A respeito de mail-art, ver: POINSOT, Jean-Marc. Mail Art: communication à distance concept.
Paris: Éditions Cedic, 1971; FISCHER, Hervé. Art et Communication Marginale: Tampons
d’artistes. Paris: Balland, 1974; GHINEA, Virgile. Dada et néo-dada. Luxemburgo: Édition
Renaissance, 1983; CRANE, Mike; STOFFLET, Mary. Correspondence Art: Source Book for
the Network of International Postal Art Activity. San Francisco, USA: Contemporary Art Press,
1984; ESPINOZA, César. Signos Corrosivos: Seleccion de Textos Sobre Poesia Visual Concrete –
Experimental – Alternative. México: Ediciones Literarias de Factor, 1984; LASZLO, Jean-Noël.
“Le timbre c’est la message”. In: Timbres d’artistes. Paris: Musée de la Poste, 1993, pp. 13-16;
38 das artes e seus percursos

Essa rede desenvolvida por artistas explorou mídias não tradicionais,


promovendo uma estética de surpresas e de colaboração. É importante salientar
o uso desviado dessa estrutura em rede já estabelecida que desafiou os limites e
convenções vigentes, evitando o sistema oficial de arte com sua prática curatorial,
mercantilização e valor de julgamento. Tornou-se uma rede verdadeiramente
internacional, com centenas de artistas participando febrilmente num fluxo
intenso de trabalhos e mensagens audiovisuais e em meios múltiplos.
Desde o início, a arte postal era não comercial, sem censura e de
participação aberta e irrestrita. Talvez seja importante relembrar que entre os
anos 60 e início dos anos 80, em países com regimes opressivos que silenciavam
vozes dissidentes torturando e matando os seus próprios cidadãos, e onde as
tecnologias eletroeletrônicas eram inacessíveis à grande maioria dos indivíduos,
a arte postal se tornou frequentemente a única forma de intervenção artística
antiestablishment. No Uruguai, por exemplo, os artistas Clemente Padin
e Jorge Caraballo foram encarcerados em 1975 por crime de “difamação e
zombaria das forças armadas”. Liberto da prisão em 1977, Padin foi impedido
de deixar Montevideo e sua correspondência proibida até fevereiro de 1984.
Não menos provocadora foi a atuação de Paulo Bruscky, que de cunho menos
marcadamente político, porém igualmente contestatório quanto aos regimes das
instituições e sistemas de artes estabelecidos, iniciou e divulgou a arte correio
no Brasil e foi também um dos pioneiros aqui na arte-xerox, entre outras tantas
experimentações no campo artístico.

HELD JR., John. A World Bibliography of Mail Art. Texas, USA: Dallas Public Library, 1989;
ZANINI, Walter. Catálogo Prospectiva’74, São Paulo, MAC-USP, ago./set. 1974; ZANINI,
Walter. “A arte postal na busca de uma nova comunicação internacional”, O Estado de S.
Paulo, 27/03/1977; BRUSCKY, Paulo. “Arte Correio”. Jornal Letreiro, n. 2, Natal, UFRN, ago.
1976; PLAZA, Julio. “Mail-Art: Arte em Sincronia”, Catálogo de Arte postal, XVI Bienal
de São Paulo, out./dez. 1981. PRADO, Gilbertto. “Um toque sobre a mail art”. Wellcomet
Boletim, n. 10, Dap-Ia-Unicamp, Campinas, jun. 1989, p. 12.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 39

Fig. 1 – Gilbertto Prado: 1. Arte Postal, XVII Bienal de São Paulo – Núcleo de Arte Postal
(foto do catálogo), 1981; 2. Venus, Mond, Mund, 1981; 3. Carimbo “Welcomet Mr. Halley,
1984; 4. Carimbo “Depois do Turismo vem o Colunismo” 1986/1998; 5. Carimbo e chancela,
1982; 6. Postal da série Circuito Impresso, 1985.
40 das artes e seus percursos

Fig. 2 – Gilbertto Prado: série Caixas Sedex, 1986; exposição individual “Par e Impar”, Centro
Cultural São Paulo, 1987.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 41

Remarcamos também em 1981 a XVI Bienal de São Paulo, sob a


curadoria geral de Walter Zanini2 e curadoria de Arte postal por Julio Plaza,
que contou com a participação de mais de uma centena de artistas, entre os
quais também tive a oportunidade de participar. Essa mostra de arte postal foi
um exemplo exponencial dessa prática onde, em um andar inteiro da Bienal,
todos os trabalhos foram expostos, vindos de todo o mundo, lado a lado, numa
polifonia de cores, línguas e linguagens.
O processo de mostra de Arte postal trazia na época as questões do
trabalho em rede, do projeto partilhado, pela abertura da participação, e pela
não seleção (ou curadoria estrito senso) e exposição de todos os trabalhos
recebidos. Claro que esse modus operandi fazia parte das utopias dos anos
70/80, enquanto processo e estrutura de produção artística, onde os trabalhos
eram não só construídos pelos artistas, que, embora efemeramente, tinham os
canais de realização, distribuição e difusão (que no caso dos correios não era
eletrônica, nem assíncrona, mas acessível por grande número de pessoas em
distintos lugares), como eram os próprios artistas que organizavam, criavam e
apresentavam, além de evidentemente participarem da própria mostra.3

2. O Núcleo de Arte Postal da UNICAMP: algumas realizações

No final dos anos 70, começo dos anos 80, havia em Campinas uma rica
atividade de manifestações em arte postal com a forte participação de alguns
artistas como Hélio Leite e João Proteti, entre vários outros. Entre as exposições
locais, as de cunho estudantil também integravam trabalhos de arte postal,
como a I Mostra de Arte, em outubro de 1978 organizada por Décio Chiba
e outros no Centro Acadêmico da Faculdade de Engenharia de Alimentos e
Agrícola da Unicamp, assim como a revista ARTO4 e outras manifestações,
que serviam de nucleadores de contatos e de experiências entre jovens artistas
plásticos, poetas, fotógrafos e pessoas interessadas no campo das artes e das

2. Sobre textos selecionados do prof. Zanini, ler Walter Zanini: Escrituras críticas. Org. Cristina
Freire. São Paulo: Annablume/Mac USP, 2013.
3. Ocorria com frequência o revezamento do papel de “organizador”, e/ou da indicação “projeto
de”, em que esse papel do idealizador era uma das chaves, que junto com o tema ou proposta
trazia as participações mais elaboradas, específicas, um ponto de encontro e diálogos.
4. Equipe formada por Caio Glauco Sanchez, Elisabete Maria Saraiva, Eva Maria Botar, Flávio
Teixeira da Silva, Gilbertto Prado, José Colucci Jr., Juan Marcos Rossi, Marcelo Martino
Jannuzzi, Rubens Stuginski Júnior e Silvia Oberg, entre outros colaboradores. As reuniões
aconteciam na Casa dos Centros Acadêmicos da Unicamp, 1977/78.
42 das artes e seus percursos

letras. E dentro desse “espírito”, a primeira exposição que concebi e organizei5


foi, “Welcomet Mr. Halley”, em 1984/85 pela passagem do cometa Halley e
numa referência também ao evento “Good Morning, Mr. Orwell” de Nam June
Paik,6 O evento “Welcomet Mr. Halley” foi realizado no Centro de Convivência
Cultural de Campinas em agosto-setembro de 1985 e no Paço das Artes em
São Paulo, no local, onde hoje é o MIS, em fevereiro 1996, entre vários outros
locais. A exposição contou com a participação de 257 artistas de 31 países e
também com as Performances de Marilia de Andrade que dançou a música
Cartas Celestes do compositor Almeida Prado, e de Madalena Bernardes numa
improvisação vocal corporal.7

Fig. 3 Welcomet Mr. Halley”, Centro de Convivência Cultural de Campinas, agosto


de1985; Paço das Artes, São Paulo, fevereiro de 1986

5. Inicialmente, não me coloco como curador, que para mim é atividade bissexta, porém a
questão é interessante e tem relação com o meu percurso de artista também. Entre outras
participações pontuais além das de arte postal que estão apontadas neste texto, Emoção Art.
ficial II: Divergências tecnológicas – Itaú Cultural, São Paulo (2004); Exposição de Arte
Eletrônica do XII Simpósio Brasileiro de Computação Gráfica e Processamento de Imagens –
SIBIGRAPI, Unicamp (1999); Arte e Tecnologia no MAC-USP (1995).
6. Em 31 dezembro de 1983, Nam June Paik realiza o evento Good Morning Mr. Orwell,
transmissão interativa via satélite entre Nova York – WNET – e Paris – FR3. O projeto faz
uma homenagem/referência ao romance 1984, de George Orwell (1949).
7. http://www.gilberttoprado.net/projetos/halley/index.html.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 43

Nessa mesma época concebi e editorei o Welcomet Boletim, tabloide


sobre mail-art, performance, arte-xerox e mídias eletrônicas, publicado pelo
Departamento de Artes Plásticas. Onze números foram publicados entre 1985 e
1990.8 Fui, com Lúcia Fonseca igualmente o fundador e coordenador do Núcleo
de Arte postal da Unicamp que teve sua formação oficial a partir do número
5 do Boletim, de janeiro de 1987, com atividade bastante significativa nesses
anos.

Fig. 4 “Babel Torre de Bambu”, Gilbertto Prado e Lucia Fonseca, Unicamp, 1987.

Entre os projetos do Núcleo de Arte postal tivemos o “Babel Torre de


Bambu” que foi realizado em coautoria com Lucia Fonseca. Apresentado no
VIII Universidade Aberta, Campus da Unicamp, Departamento de Artes
Plásticas, Instituto de Artes, Campinas, São Paulo, de 27 a 31 de agosto de
1987.9 Também a Exposição de Mail Art / instalação / performance, “A terra
e seus terráqueos em 88” que contou com a participação de 263 artistas de 29
países. Criado e coordenado por Gilbertto Prado, com participação do Grupo
Ô-Koto. Exibido no Clube de Criação de São Paulo, com o apoio de Hugo
Pasquini e da Terra Propaganda em maio de 1988.10

  8. Com minha ida para a França em dezembro de 1989 para realizar o doutorado, Lucia Fonseca
assume integralmente o Welcomet Boletim e o Núcleo de Arte Postal da Unicamp.
 9. http://vimeo.com/25872924http://www.youtube.com/watch?v=-hw8Uj_u5_o&feature=fvsr
http://www.gilberttoprado.net/projetos/babel/index.html.
10. http://vimeo.com/25873348http://www.youtube.com/watch?v=FafbLTxckfA
http://www.gilberttoprado.net/projetos/terraqueos/index.html.
44 das artes e seus percursos

Fig. 5 “A terra e seus terráqueos em 88”, Gilbertto Prado, com participação do Grupo Ô-Koto,
Clube de Criação de São Paulo, 1988. Selo Marcel Duchamp, Artpolice, 1987.
Fig. 6 Mesa redonda sobre Arte Postal e Propostas Contemporâneas, Clemente Padin, Gilbertto
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 45

Prado, Hudinilson Jr., João Pirahy, Leon Ferrari, Lúcia Fonseca, Maurício Villaça, Paulo Bruscky e
Paulo Klein, Instituto de Artes, Unicamp, 1987.

Fig. 7 Com Cavellini em Brescia, Itália, 1988.


46 das artes e seus percursos

Outro projeto relevante foi a série “Videoscópio: video-encontros na


rede de arte postal”, com a produção do Núcleo de Arte postal da Unicamp e
apoio de Marcius Freire. Essa série foi realizada entre 1987 e 1989 e visava a
dar uma nova aproximação a contatos e intercâmbios cultivados anteriormente
na vivência do mail-art. Partindo da máxima de H. R. Fricker “After Dadaism,
Fluxism, Mailism, comes Tourism”, uma série de artistas começaram a viajar pela
rede de mail-art e estabelecer contatos pessoais. Uma tentativa de transformação
desse espaço de intimidade, gerado pelo próprio movimento. A ideia era a de,
com uma câmera de vídeo portátil, percorrer essa rede (alguns nós dessa rede), e
de surpresa e sem contato prévio tocar à porta desses artistas que não conhecia
pessoalmente e estabelecer um diálogo-performance, um encontro registrado
em vídeo. Chegava às casas das pessoas, em alguns locais, sem falar a língua
ou sem fluência do idioma e com a câmera ligada me apresentava. O humor
e a disposição iam ditando o ritmo das gravações e o tempo das visitas. As
gravações foram feitas durante viagens à Europa (Alemanha, Itália, Espanha e
França), uma à Argentina e Uruguai e com alguns artistas brasileiros. O trabalho
foi conduzido por Gilbertto Prado e Lucia Fonseca que participou da viagem
à Argentina e de entrevistas com alguns artistas brasileiros. Algumas dessas
entrevistas tiveram o caráter mais formal e documental, outras trabalharam o
aspecto lúdico da surpresa e do encontro inesperado, do (re)conhecimento. Do
ponto de vista técnico o equipamento era amador, pesado, incômodo e muito
precário assim como as condições de transporte/viagem e de registro muito
difíceis. Mas a intenção primeira era o registro dessa ação efêmera, o retrato
mesmo da “precariedade” e “fragilidade” desses contatos.11 A maior parte do
material não foi editada, e acabou se perdendo por questões diversas, embora
parte deste tenha circulado em forma bruta pelo circuito alternativo e entre os
próprios artistas.

11. Os vídeo-encontros no período foram feitos com: Brasil: Paulo Bruscky, Maurício Villaça,
Lucio Kume, Ana André, Paulo Klein, Hudinilson Jr., João Pirahy, Ozéas Duarte, Roberto Keppler,
Célia Borato Carvalho, Orlando Guereiro;
Argentina: Edgardo - Antonio Vigo, Suzana Lombardo, Hilda Paz, Alfredo Manduel;
Uruguai: Clemente Padin, Antonio Ladra, Jorge Caraballo, A. Costa Bento, Ruben Tani;
Alemanha: Klaus Groh, Henning Mittendorf, Angela Mittendorf, Jo Kofflei (Joki);
Itália: Ruggero Maggi, Emilio Morandi, Denti, Dario Bozzolo;
Espanha: José Luis Mata, Antonia Payero, Victor Nubla, Anton Ignorant, Fransec Vidal, Carmem
Muntané, Ibirico, David Castillo, Montserrat Cortadellas, Verdin, Xavier Sabater;
França: Daniel Daligand, Caren;
Inglaterra: John Furnival
http://www.gilberttoprado.net/projetos/videoscopio/index.html.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 47

Fig. 8 Videoscópio: vídeo-encontros na rede de arte postal, Gilbertto Prado e Lúcia Fonseca,
1987-1989.

3 - Outras formas de produção e distribuição em rede por meio das


telecomunicações e da eletrônica.

Nas diferenças entre a arte postal e as outras manifestações artísticas


em rede que começam a emergir no início dos anos 70 estavam as então
recentes possibilidades eletroeletrônico/informáticas e os novos dispositivos
de comunicação, permeados pela tecnologização em larga escala da sociedade
ocidental, suas potencialidades e suas contradições.
No início da década de 1970 já existiam por parte de alguns artistas
a vontade e a intenção de utilizar meios e procedimentos instantâneos de
comunicação e suportes “imateriais”. Não se desejava mais trabalhar com o
lento processo de comunicação postal, era preciso fazer depressa e diretamente,
passar do assíncrono ao sincrônico. O desejo de instantaneidade e de
transmissão em direto revelava que as questões de ubiquidade e de tempo real
já estavam presentes nessa época. Outra particularidade dos anos 70, segundo
Carl Eugene Loeffler, era a característica “instrumental”. Nesse período,
começavam a se estabelecer e se desenvolver as bases de uma relação entre
arte e telecomunicações com artistas que criavam projetos de ordem global.
Experiências dessa natureza proliferaram utilizando satélites, SSTV, redes de
computadores pessoais, telefone, fax e outras formas de produção e distribuição
por meio das telecomunicações e da eletrônica.
Quanto aos artistas, podemos citar Fred Forest, que teve vários
envolvimentos com o Brasil, e que em Paris, em 1974, ao lado de Hervé Fischer
e Jean-Paul Thénot, criou o “Collectif d’Art Sociologique”. Suas várias ações
48 das artes e seus percursos

do período 1962-1994 estão descritas em seu livro 100 Actions.12 Ainda, a


dupla Kit Galloway e Sherry Rabinowitz, por projetos com uso de satélites e
pela criação do Electronic Cafe (Communication Access For Everybody) no Museu
de Arte Contemporânea de Los Angeles, em 1984, o qual posteriormente
sediado em Santa Mônica, na Califórnia, vai ser ponto de contato e conexão
entre vários projetos e artistas. Salientamos ainda Roy Ascott, artista e teórico,
considerado um dos pais da arte telemática. É autor do primeiro projeto de arte
internacional, em 1980, de computer conferencing (sistema de comunicação via
rede de computador que permite ler e responder a mensagens dos participantes
em fórum eletrônico público), entre o Reino Unido e os Estados Unidos,
intitulado Terminal Consciousness.
Enquanto evento artístico, não poderíamos deixar de assinalar aqui no
Brasil a 17ª Bienal Internacional de São Paulo, com curadoria-geral de Walter
Zanini, em 1983, que apresentou no seu setor de Novas Mídias o evento Arte e
Videotexto, organizado por Julio Plaza com a participação de vários poetas e artistas
do país; e, sob curadoria de Berta Sichel, uma área de trabalhos composta de seis
setores: cabodifusão, computadores, satélites de comunicação, TV de varredura
lenta, videofone e videotexto. O catálogo da manifestação continha textos de
Berta Sichel, Robert Russel (entrevistando Otto Piene),13 Marco Antonio de
Menezes, Katty Huffman e André Martin. A iniciativa, segundo o próprio Zanini,
mesmo com as grandes limitações tecnológicas do país, representava um passo
adiante dos projetos habituais da instituição.14 É dessa mesma época, no início
dos anos 80, que Zanini, em conjunto com Regina Silveira e Julio Plaza, começa a
convidar de forma sistemática para cursos na ECA-USP artistas estrangeiros que
influenciaram enormemente a produção brasileira no campo da arte e tecnologia,
entre eles Doug Hall, Bob Kaputof e Antoni Muntadas.

12. FOREST, Fred. 100 actions. Nice: Z’Éditions, 1995.


13. Lembremos também os eventos internacionais Sky Art Conference, dirigidos por Otto Piene,
antigo fundador do Grupo Zero, com uma primeira realização no CAVS em 1981. Segundo
ele, o acontecimento inaugural, “com vários projetos tecnológicos, demonstrou que o ato
criativo de unir a terra ao céu é tão vital, hoje em dia, quanto no tempo em que as culturas
antigas produziram os zigurates da Mesopotâmia, os desenhos na planície peruana de Nazca e
outros trabalhos de inspiração astrológica”.
14. BIENAL INTERNACIONAL DE SÃO PAULO, 17, 1983, São Paulo, SP. Catálogo geral.
Introdução Walter Zanini. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983, pp. 103-150.
Ver também ZANINI, Walter. “A arte de comunicação telemática: a interatividade no
ciberespaço”. ARS (São Paulo) [online]. 2003, vol.1, n.1 [citado  2012-08-17], pp. 11-
34. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-
53202003000100003&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1678-5320.  http://dx.doi.org/10.1590/
S1678-53202003000100003.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 49

Muntadas, com vasta produção de cunho


crítico e sem concessões, tem entre suas obras dos
anos 90 um dos clássicos da Web, o “File Room”,
remetendo-nos à questão da censura e um bom
exemplo de instalação híbrida que funciona
simultaneamente na internet. Trata-se de um
banco de dados que coleta, em escala mundial,
casos de censuras de arte. Essa obra-arquivo
foi apresentada em numerosas manifestações
artísticas na forma de uma instalação kafkiana,
rodeada de muros de caixas empilhadas, nas quais
se intercalavam monitores de vídeo conectados
à internet. Desde sua inauguração, em 1994,
simultaneamente no Chicago Cultural Center e
na web, The File Room oferece aos internautas
a possibilidade de adicionar seus próprios
exemplos de censura artística no site atualizado
Fig 9. Evento realizado pelos
artistas participantes, no pe-
regularmente. No final dos anos 80, começo
ríodo do curso de Bob Kapu- dos anos 90, também assinalamos o grupo Art-
tof na ECA-USP, Madame Satã, Réseaux,15 coordenado por Karen O’Rourke da
1989 Universidade de Paris I, com o nodo de Paris
com a participação de Christophe Le François,
Gilbertto Prado, Isabelle Millet, Hélène Spychiger, Michel Suret-Canale, entre
outros e em intercâmbio com vários nodos nos Estados Unidos, Inglaterra,
Brasil, Alemanha, entre outros. O grupo Art-Réseaux realizou e participou de
inúmeros projetos, entre eles o City Portraits.16

15. O’ROURKE, Karen. “City portraits: an experience in the interactive transmission of


imagination”. Leonardo, San Francisco, v. 24, n. 2, pp. 215-219, 1991. O’ROURKE, Karen.
“Paris réseau: Paris network”. Leonardo, San Francisco, v. 29, n. 1, pp. 51-57, 1996.
16. Partindo de pares de imagens de entrada e saída (fotos e outros documentos) transmitidas
aos parceiros, os participantes eram convidados a perfazer caminhos e estabelecer retratos
de cidades que não conheciam. Com a exploração da metamorfose entre essas duas imagens
(de entrada e de saída) intercambiadas via fax, os participantes faziam uma enquete sobre os
seus próprios imaginários que se abriam sobre o imaginário do outro, ou seja, descobriam sua
própria cidade pela visão do outro. Uma viagem imaginária por si mesmo e pelo outro, com
itinerários-retratos que se construíam durante o percurso.
50 das artes e seus percursos

Fig. 10 Intercâmbio de imagens fax para o projeto City Portraits de Karen


O’Rourke. Campinas-São Paulo, org. Artur Matuck, Paulo Laurentiz e Gilbertto
Prado, Unicamp, 1989.

Nessa mesma direção, assinalamos alguns eventos dessa natureza


realizados no Brasil:17
Em 31 de outubro de 1980 aconteceu o primeiro contato via fax entre
artistas no Brasil. Os protagonistas foram Paulo Bruscky no Recife e Roberto
Sandoval em São Paulo. Em São Paulo, 1982, Arte pelo Telefone, projeto artístico
em videotexto com coordenação e participação de Julio Plaza, com Carmela
Gross, Lenora de Barros, Leon Ferrari, Mário Ramiro, Omar Khouri, Paulo
Miranda, Paulo Leminski, Régis Bonvicino e Roberto Sandoval.18

17. A respeito de eventos de Arte e Telemática: PRADO, Gilbertto. Expériences artistiques


d’échanges d’images dans les réseaux télématiques. 1994. 2 vols., 398p. Tese de doutorado
em Artes. U.F.R. D’Arts Plastiques et Sciences de l’Art / Université Paris I – Panthéon
Sorbonne, Paris, França, 1994. O anexo I “Chronologie résumée d´échanges artistiques
de télécommunications”, vol 2, pp. 327-354, traz uma cronologia desses eventos artísticos,
dos anos 70 até 1993. Em português, a cronologia foi publicada inicialmente em PRADO,
Gilbertto. “Cronologia de Experiências Artísticas nas Redes de Telecomunicações”, Trilhas,
n. 6, vol. 1, pp. 77-103, Unicamp, jul./dez. 1997. A última versão saiu no livro: PRADO,
Gilbertto. Arte telemática: dos intercâmbios pontuais aos ambientes virtuais multiusuário. São
Paulo: Itaú Cultural, 2003. O livro pode ser acessado em http://www.gilberttoprado.net/
textos/index.html ou http://poeticasdigitais.wordpress.com/textos/.
18. PECCININI, Daisy (Coord.). Arte: novos meios/multimeios: Brasil 70/80. São Paulo: Fundação
Armando Álvares Penteado: 1985, p. 48.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 51

Em 1983, Wagner Garcia e Mário Ramiro criaram Clones – uma Rede


de Rádio, Televisão e Videotexto, uma instalação com terminais de videotexto,
monitores de TV, rádio e alto-falantes com a recepção sincronizada das
três transmissões no Museu da Imagem e do Som de São Paulo. No mês de
outubro de 1985, na exposição Arte: Novos Meios/Multimeios – Brasil 70/80,
em São Paulo, apresentaram-se os seguintes trabalhos: Fac-Similarte, projeto
fax de Paulo Bruscky e Roberto Sandoval (proposição de outubro de 1980);
Caricaturas e A Arte na Trama Eletrônica, projetos artísticos em videotexto
de Rodolfo Cittadino; e Arte Videotexto, de Julio Plaza, com participação de
Alex Flemming, Alice Ruiz, Augusto de Campos, Carmela Gross, Leon Ferrari,
Lenora de Barros, M. José Palo, Lucia Santaella, Mônica Costa, Nina Moraes,
Omar Khouri, Paulo Leminski e Paulo Miranda.19
Na noite de 14 de outubro de 1986, com a coordenação de Joe Davis e
a colaboração de José Wagner Garcia (fellow do Center for Advanced Visual
Studies, CAVS), realizou-se uma edição especial de Sky Art Conference. Foi
uma transmissão com slow scan entre artistas de São Paulo localizados no
campus da USP e artistas americanos localizados no CAVS, em Cambridge,
numa ação telemática interativa internacional inédita no Brasil. Em São Paulo,
as imagens vindas dos Estados Unidos foram vistas em tela múltipla para doze
projeções de vídeo, acompanhadas por um público numeroso de artistas,
professores e estudantes. Nos Estados Unidos, a coordenação esteve a cargo de
Otto Piene e Elizabeth Goldring. Entre os participantes figurava Nam June Paik,
que apresentou SKY-TV. O artista coreano passou a imagem de um ideograma
representando uma partitura sincronizada com o som da violoncelista Charlotte
Moorman que, todavia, não pôde ser ouvido. Entre os organizadores do encontro
telemático no Brasil encontravam-se os professores Walter Zanini e Frederic
Michael Litto, da ECA-USP, e os artistas Julio Plaza, Artur Matuck, Marco
do Valle, José Wagner Garcia, Mário Ramiro e Guto Lacaz, os compositores
de música eletrônica Conrado Silva e Wilson Sukorski e o poeta Augusto de
Campos, entre vários outros participantes.20 No encerramento do encontro,
Otto Piene transmitiu a primeira versão do “Manifesto Sky-Art”, que recebeu

19. DONGUY, Jacques. “Fax, slow-scan, télématique, minitel, modems, esthétique des nouvelles
technologies de la communication à travers la décennie 1980 ou les jardins électroniques de
l’esprit”. In: O’ROURKE, Karen (Coord.). Art-Réseaux. Paris: Cerap, 1992, pp. 15-19.
20. MATUCK, Artur. “São Paulo cidade planetária: breve história do slow scan em São Paulo”.
São Paulo, Sem data. [Texto inédito]. Ver também MATUCK, Artur. “Telecommunications
Art and Play: Intercities São Paulo/Pittsburgh”. Leonardo, San Francisco, v. 24, n. 2, pp. 203-
206, 1991.
52 das artes e seus percursos

adesões dos participantes. O texto seria reelaborado após serem ouvidos os


participantes, e preparado em versão definitiva por Lowry Burgess, Otto Piene e
Elizabeth Goldring, em Paris, sendo datado de 3 de novembro.21
Em 1988, o evento Intercities: São Paulo/Pittsburgh – intercâmbio de
imagens via slow scan entre o Instituto de Pesquisas em Arte e Tecnologia, Ipat,
de São Paulo, e o Digital Art Exchange, DAX, da Universidade de Carnegie-
Mellon, Pittsburgh – foi coordenado em São Paulo por Artur Matuck e Paulo
Laurentiz, e em Pittsburgh por Bruce Breland. Participou do evento o projeto
Still Life/Alive, de Carlos Fadon Vicente.22
Entre os dias 11 e 15 de dezembro de 1989, as primeiras imagens via fax
no projeto City Portraits, concebido por Karen O’Rourke, foram intercambiadas
entre o grupo Art-Réseaux, em Paris, e outros artistas nas cidades de Düsseldorf,
Filadélfia e Campinas.23 Participaram das transmissões no nodo Campinas /São
Paulo Paulo Laurentiz, Artur Matuck, Gilbertto Prado, Milton Sogabe, Shirley
Miki, entre outros.
Em 28 de fevereiro de 1990, sublinhamos o projeto de Paulo Laurentiz
L’Oeuvre du Louvre, em que artistas localizados em Campinas “invadiram” com
envios de fax o Museu do Louvre, em Paris, durante o carnaval. Participaram
Anna Barros, Lúcio Kume, Mario Ishikawa, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz
e Regina Silveira. Para celebrar o Dia da Terra, o grupo DAX, situado na
Universidade de Carnegie-Mellon, Pittsburgh, organizou o projeto Earthday
90 Global Telematic Network & Impromptu.76 Foram estabelecidos contatos
via slow scan e fax entre artistas das cidades de Viena, Lisboa, Campinas, São
Paulo, Boston, Baltimore, Pittsburgh, Chicago, Vancouver e Los Angeles. Por
intermédio do Café Eletrônico de Santa Monica, Tóquio e Moscou estiveram
ligadas por videofone. Esse evento foi realizado nos dias 21 e 22 de abril.
Participaram, entre outros artistas, André Petry, Anna Barros, Artemis Moroni,
Artur Matuck, Carlos Bottesi, Carlos Fadon Vicente, DAX Group, Eduardo
Kac, Elisabeth Bento, Ernesto Mello, Eunice da Silva, Gilbertto Prado, Hank
Bull, Hermes Renato Hildebrand, Irene Faiguenboim, Karen O’Rourke, Mário
Ramiro, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Roy Ascott.

21. Posteriormente foi incluído no artigo “Desert Sun/Desert Moon”, de Elizabeth Goldring,
publicado na revista Leonardo, n. 4, de 1987.
22. FADON, Vicente. “Still Life/Alive”. Leonardo. Abstracts, San Francisco, v. 24, n. 2, pp. 234-
235, 1991.
23. Para a relação completa de cidades e participantes, assim como textos sobre o projeto, ver
O’ROURKE, Karen (org.). Art-Réseaux. Paris: Cerap, 1992.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 53

Fig. 11 Intercâmbio de imagens via fax. Unicamp, 1989 (nas fotos, Artur Matuck, Gilbertto Prado,
Milton Sogabe e Paulo Laurentiz).

Em 29 de abril de 1990 foram realizados mais um intercâmbio de imagens


e a exposição do projeto City Portraits, concebido por Karen O’Rourke, com
imagens realizadas pelo grupo Art-Réseaux em Paris e seus correspondentes
de nove cidades europeias e americanas, na Galerie Donguy, em Paris. Pelo
Grupo Art-Réseaux em Paris: Christophe Le François, Isabelle Millet,
Delphine Noteau, Karen O’Rourke, Gilbertto Prado e Michel Suret-Canale.
Em Campinas, Lucia Fonseca, Paulo Laurentiz, Shirley Miki, Artemis Moroni,
André Petri, Milton Sogabe, entre outros; em Chicago: Carlos Fadon Vicente,
Irene Faiguenboim, Eduardo Kac; em Dusseldorf, Klaus Kammerichs e Kris
Scholzs; em Madrid: Mariza Gonzalez e Paloma Navares; em Philadelphia,
Catherine Jansen e Cyinthia Farruggio; em Pittsburgh, The Dax Group; em
54 das artes e seus percursos

Saint-Denis Liliane Terrier; em São Francisco, Stephen Wilson; em São Paulo,


Artur Matuck, Milton Dines, entre outros; em Vancouver, Western Front; em
Viena, Robert Adrian, Sylvia Eckermann, Mathias Fuchs.

4 - Considerações finais

Cabe assinalar que a maior parte dos eventos em arte e telecomunicações


utilizando computadores e/ou outros meios anteriores à internet (foco deste
trabalho) eram realizados a partir de redes efêmeras, especialmente estruturadas
para o evento.24 Eram propostas de artistas que se reuniam pontualmente para
essas participações: eram disponibilizados computadores e modens para esses
fins específicos em diferentes locais do planeta que se comunicavam entre
si via telefone formando uma rede única e “dedicada”. Uma vez o evento
transcorrido, esse “grupo de participantes” e a “rede” estabelecida deixavam
de existir enquanto estrutura de comunicação e de agenciamento. No caso
particular da internet, uma vez que a ação termine, mesmo com a “dissolução”
do grupo, a estrutura de comunicação se mantém. Com a internet existe
inclusive a possibilidade de haver espaços de interação permanentes – mesmo
que a participação das pessoas seja pontual e efêmera – como é o caso de vários
sites que funcionam como espaços de experimentação artística, que era uma das
discussões apresentadas no projeto e site wAwRwT, de 1995.25

24. Sobre essa questão: PRADO, Gilbertto. “Algumas experiências de arte em rede: projetos
wAwRwT, colunismo e desertesejo”, Porto Arte, v. XVII, n. 28, maio 2010. Porto Alegre:
Instituto de Artes/UFRGS, pp. 71- 83. Outra importante referência é KAC, Eduardo.
Telepresença e bioarte: humanos, coelhos e robôs em rede. São Paulo: Edusp, 2013.
25. PRADO, Gilbertto. “Experiências artísticas em redes telemáticas”. Ars (São Paulo),  São
Paulo,  v. 1,  n. 1,   2003. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1678-53202003000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em  17  ago.  2012. 
http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202003000100005. Ver também: PRADO, Gilbertto.
“Experimentações artísticas em redes telemáticas e web”. In: Interlab: labirintos do pensamento
contemporâneo. Coord. Lucia Leão. São Paulo: Iluminuras, 2002, pp. 115-125. DONATI,
Luisa Paraguai; PRADO, Gilbertto. “Artistic Environments of Telepresence on the World
Wide Web”. Leonardo, vol. 34, n. 5, pp. 437-442, MIT Press, USA, out. 2001.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 55

Fig. 12. Projeto wAwRwT, Gilbertto Prado, 1995

Além do endereço desses sites (ULR), esses espaços podem ser localizados
por ferramentas de busca, ou seja, disponíveis a qualquer pessoa que tenha
acesso à rede, em contrapartida aos eventos anteriores onde para se formar
o grupo da ação artística, os contatos eram muito mais longos e mediados
por cartas, telefones, fax e contatos pessoais, ou seja, ficavam mais restritos a
grupos de atuação específicos. Evidentemente, na internet esses grupos acabam
também se formando por simetrias e/ou interesses precisos mas a veiculação e
a informação dessas possibilidades para possível participação são muito mais
“abertas” e dirigidas a todos os interessados. Igualmente o grau de facilidade
para reunir esses grupos e disponibilizar a criação de um evento em rede, assim
como sua divulgação são enormemente agilizados: o grau de virtualização desses
contatos é muito maior ao mesmo tempo que a disponibilidade dos equipamentos
e a utilização dos mesmos são crescentes e se banalizam.
É importante remarcar que todos esses novos processos que atestam
presença e a influência da tecnologia da comunicação informatizada no cotidiano
do cidadão contemporâneo representam novos contextos para a reflexão e o
fazer artístico, ganhando inclusive um enorme espaço com o público leigo. É
todo um imaginário social e artístico que está em jogo e em transformação.
Espaços de transição, eles funcionam como ativadores ou catalisadores de
56 das artes e seus percursos

ações que se seguem e se encadeiam. Nas experiências de arte em rede o artista


renuncia à produção de um objeto finito para se ater aos processos de criação,
geralmente coletivos. Mais do que uma obra no senso tradicional de objeto
único dotado de uma presença física, o artista propõe um contexto, um quadro
sensível no qual alguma coisa pode ou não se produzir, um dispositivo capaz de
provocar intercâmbios. Esses podem tomar formas bem diferentes. O artista
explora as relações entre os seres e as coisas, propondo novos agenciamentos.
O artista como um gerador de instantes de mobilização coletiva, envolvendo o
“outro” numa dinâmica de transformações e potencializações, através de ações
colaborativas e eventualmente partilháveis ao redor do mundo.

Referências bibliográficas

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Acaso e arte computacional:
tensões entre irregularidade e ordem

Fabrizio Augusto Poltronieri

Meu objetivo com este artigo é elucidar algumas questões presentes na


maneira como o acaso manifesta seu importante papel nos procedimentos de
codificação e decodificação dos fenômenos1i trazidos à tona pelas linguagens
produzidas computacionalmente, caracterizadas por suas possibilidades de
leituras em saltos, pela hibridização dos códigos sonoros, visuais e verbais e pelo
aspecto de jogo nelas presente.
Antes, porém, desejo elucidar a preferência pelo uso do termo “arte
computacional” ao invés das popularmente encontradas definições “arte
tecnológica” e “arte digital”. Entendo que “arte tecnológica” traduz-se
simplesmente como uma práxis artística em que são empregadas uma série
de técnicas aplicadas. Visto que toda forma de manifestação através da arte
pressupõe a utilização de alguma técnica, o termo “arte tecnológica” resulta
em algo redundante. Toda arte é tecnológica por si. Sempre que o homem

1. Entendo por fenômeno qualquer coisa que se apresente à mente, seja ela real – objetual –,
advinda do campo da ficção ou da própria mente, conforme conceituou Charles Sanders
Peirce: “Eu proponho o uso da palavra Phaneron como um nome apropriado para denotar o
conteúdo total de qualquer consciência […], a soma de tudo que temos em mente do modo
como for, a despeito de seu valor cognitivo” (“I propose to use the word Phaneron as a proper
name to denote the total contente of any one consciousness […], the sum of all we have in mind in
any way whatever, regardless of its cognitive value”). (EP 2, 362).
Todas as traduções utilizadas neste trabalho foram realizadas livremente por mim.
Como mostrarei a seguir, minhas concepções teóricas sobre o acaso são baseadas centralmente
no pensamento de Charles Sanders Peirce. Entretanto, devo alertar de antemão que uma
parte da concepção peirciana sobre o acaso tem como fonte reconhecida a teoria das causas
acidentais de Aristóteles, à qual Peirce se dedica a partir de 1890 (“O que Peirce quer dizer
por violação das leis da natureza pelo acaso?”. Cognitio: Revista de Filosofia. São Paulo, v. 10,
n. 1, p. 131, jan./jun. 2009c).
60 das artes e seus percursos

desenvolve alguma tecnologia, esta se torna acessível a pessoas que a utilizam


para produzir arte.2
É revelador observar que arte e tecnologia têm ontologicamente uma
origem comum. Ambas as palavras derivam do termo grego tékne, que designava
todo e qualquer meio apto à obtenção de determinado fim. Tékne

é arte no sentido lato: meio de fazer, de produzir. Nessa acepção, artísticos


são todos aqueles processos que, mediante o emprego de meios adequados,
permitem-nos fazer bem uma determinada coisa. Sob o aspecto dos atos
que tais processos implicam, e que tem por fim um resultado a alcançar,
arte é a própria disposição prévia que habilita o sujeito a agir de maneira
pertinente, orientado pelo conhecimento antecipado daquilo que quer
fazer ou produzir. Dai a conceituação de arte que Aristóteles fixou nos
seguintes termos: hábito de produzir de acordo com a reta razão, isto é, de
acordo com a ideia da coisa a fazer.3

Desde os gregos fazer com arte significava fazer corretamente, ou aplicar


corretamente as técnicas. Com relação à “arte digital”, Lopes4 nos diz que
“arte computacional não é a mesma coisa que arte digital”. Acima de tudo,
“arte computacional é uma nova forma de arte enquanto a arte digital não”.
ii
O autor alerta para o fato de que os computadores são tão úteis, em todos os
âmbitos humanos, por serem dispositivos representacionais de múltiplos usos,
que lidam com dados de diferentes origens – textos, números, imagens e sons –
a partir da conversão destes em um código digital comum, entendendo que os
códigos digitais são elementos discretos – diferenciados, distintos e finitos – e
descontínuos. Os computadores eletrônicos, disponíveis nos dias atuais, utilizam
um código binário, representado por zeros e uns, como forma de troca simbólica.
Contudo, o formato binário não é o único código digital. O alfabeto é outro
código digital, assim como os numerais e os sinais de trânsito, para dar alguns
exemplos. Nenhum deles é binário, mas todos são digitais, pois são constituídos
por elementos discretos e descontínuos – como as letras e os números. Ainda
que a maioria dos computadores usem o código binário por razões de engenharia,
é possível construir computadores que operem com outras espécies de códigos

2. LOPES, Dominic McIver. A Philosophy of Computer Art. New York: Routledge, 2010, p. XIII.
3. NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 2002, p. 19, os grifos são do
autor.
4.  LOPES, Dominic McIver. Op. cit., p. 1.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 61

digitais. O mais importante é a maneira como cada computador trata os dados,


formatando-os de maneira unívoca no mesmo padrão de digitalização.5
Torna-se claro perceber que antes do computador o homem já produzia
arte digital, pois

Midsummer Night’s Dream é codificado digitalmente, pois é escrito no


alfabeto latino, que é um código digital. Da mesma maneira, Well-tempered
Clavier é codificado digitalmente, pois a notação musical padrão é um
código digital.6

Obviamente nem Shakespeare nem Bach são artistas computacionais,


embora tenham realizado suas obras utilizando códigos digitais.
A principal característica de uma obra de arte computacional é, assim, ter
sido produzida com a mediação de um aparelho que tensionou constantemente
o processo de escritura digital, na forma de um jogo entre ele e o homem. Como
resumo pode-se dizer que a arte computacional é a

arte criada através do agenciamento de um computador onde o computador


opera simultaneamente como meio, ferramenta e contexto, em conjunto
com seus elementos organizacionais e interativos.7

Tal definição me parece apropriada, pois a autora a utiliza para descrever


o conjunto de artistas que jogam de uma maneira procedural, nos domínios
das artes visuais, dança, performance, textos, luz ou som, através de práticas
que exploram ou utilizam, predominantemente, o computador. Assim, o termo
“computacional” acaba por abarcar um tipo específico de tecnologia que na
atualidade é baseada principalmente em métodos de digitalização binários.
Todavia, a característica mais marcante da arte computacional, do
ponto de vista de sua práxis – o que leva à sua concreção – é o fato de esta
ser fruto de lógicas de programação, resultado do processamento de linguagens
computacionais no interior de aparelhos. Utilizo essa denominação, seguindo
o caminho trilhado pelo filósofo Vilém Flusser, por considerar que a principal
característica dos aparelhos é exatamente o fato de estes poderem ser

5. Idem, p. 3.
6. Ibidem.
7. MASON, Catherine. A Computer in the Art Room. The Origins of British Computer Arts 1950-
80. Hindrigham, Norfolk: JJG Publishing, 2008, p. IX.
62 das artes e seus percursos

programados. Esclarecido esse ponto fulcral, posso dar continuidade à discussão


central do texto.

Uma abordagem do acaso como sendo o elemento responsável pela


distribuição irregular de qualidades

Santaella nos diz que as linguagens computacionais se caracterizam por


serem universais, permitindo a “estocagem e o tratamento de todos os tipos
de informação”,8 através do advento da digitalização, ou seja, da capacidade
computacional de transformar qualquer tipo de linguagem, sem distinção,
em pulsos elétricos manipulados por microprocessadores, sempre através de
procedimentos de programação.
Uma vez digitalizados, os códigos verbais, visuais e sonoros tornam-se
indiferentes aos sistemas computacionais. No atual estágio da informática
tudo pode ser manipulado em seu nível binário, o que traz uma possibilidade
de hibridização nunca antes experimentada na história, eliminando inclusive
a incompatibilidade de suportes, visto que “antes da digitalização, os suportes
eram incompatíveis: papel para o texto, película química para a fotografia ou
filme, fita magnética para o som ou vídeo”.9
Mais do que um simples instrumental técnico, as linguagens computacionais
servem como bases para a hibridização, atuando como “propulsores para
o crescimento das linguagens”.10 Dessa forma, o que estamos buscando é
a compreensão do papel do acaso nesses procedimentos de hibridização que
emergem das práxis proporcionadas pelas artes computacionais. Dar ao acaso
um tratamento científico é tarefa árdua, porque se trata de um objeto que foge
a nossa apreensão por, como areia, escorregar por entre os nossos dedos. Sempre
que tentamos apreendê-lo, ele já se mostra de outra maneira. Como uma
primeira abordagem sobre o conceito de acaso irei recorrer a Aristóteles, que
identificou o “ser acidental”, cujas características são passíveis de correlação
com o acaso1. Inicio ressaltando que:

Digamos inicialmente que a questão do acidente (e, por consequência,


do ser acidental) é bastante complexa, enquanto o termo ‘acidente’, em

  8. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora visual verbal. São Paulo:
Iluminuras, 2005, p. 23.
 9. Ibidem.
10. Idem, p. 28.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 63

Aristóteles, é dos mais flutuantes. Em todo caso, quando o Estagirita2 fala do


ser acidental, entende sempre o ser fortuito ou casual […]. O ser acidental
é o que pode não ser, é o que não é sempre nem na maioria das vezes. […]
Não é absolutamente necessário que um homem seja pálido ou irado: que
o homem tenha estas qualidades é acidental, fortuito, casual, no sentido
de que elas poderiam, indiferentemente, ser ou não ser; porém é necessário
que o homem tenha qualidades (não importa se estas ou outras). […] Em
conclusão: o acidente, em sentido próprio, e o ser acidental só podem
fundar-se (como, de resto, também os outros significados do seriii) sobre as
categoriasiv, mas distinguem-se totalmente delas, enquanto a categoria é
necessária, e o acidente é afecção ou acontecimento meramente fortuito,
que tem lugar segundo cada uma das categorias. Em suma: O ser acidental
é a afecção contingente ou evento contingente que se realiza segundo as
diferentes (necessárias) figuras das categorias.11

Sobre o modo estrito de ser do acidente, recorro às palavras do próprio


Aristóteles:

nenhuma ciência se ocupa dele: nem a ciência prática, nem a ciência


poiética, nem a ciência teórica. De fato, quem faz uma casa não faz também
tudo o que, acidentalmente, a casa virá a ter. Com efeito, os acidentes
são infinitos; nada impede que a casa, uma vez construída, a uns pareça
agradável, a outros incômoda, a outros útil, e que seja diferente de todas
as outras coisas. Ora, a arte de construir casas não produz nenhum desses
acidentes […]. E é natural que assim seja porque o acidente quase se reduz
a puro nome.12

Portanto o ser acidental que se forma por si só não tem algo, um outro,
que diga como ele deve cristalizar-se. Por isso ele não pode ser apanhado.
Ele também não se corrompe por sua causa finalv ser indeterminada, em
constante construção. Portanto, ele não possui um relativo “não ser”, porque
já é por si algo próximo ao não ser, ou seja, aproxima-se do que Aristóteles
considerou como sendo o ser enquanto potênciavi. Tratamos de algo cuja
necessidade não pode ser determinada, pois seu ser é contingencial, livre, já

11. REALE, Giovanni. Aristóteles. História da filosofia grega e romana, vol. IV. São Paulo: Edições
Loyola, 2007, p. 43, os grifos são do autor.
12. Met., E2, 1026b 4.
64 das artes e seus percursos

que “de fato, das coisas que são ou que se produzem por acidente também a
causa é acidental”.13
O acidental é o que acaba por escapar. Entretanto, é esse escapar que
possibilita a emergência do que é necessário, pois é impossível que tudo seja
necessário:

Dado que nem tudo se gera necessariamente e sempre, mas a maior parte é
ou advém na maioria das vezes, é necessário que exista o ser por acidente.
Por exemplo, nem sempre nem na maioria das vezes o [homem] branco
é músico; mas, posto que às vezes ocorre, então será por acidente. Se não
fosse assim, tudo seria necessariamente.14

Como então conhecer o que não apresenta um padrão de comportamento


definido? Sobre a impossibilidade de uma ciência que dê conta do acidental, o
filósofo chega à conclusão de que

toda ciência refere-se ao que é sempre ou na maioria das vezes: se não


fosse assim, como seria possível aprender ou ensinar outros? De fato, o
que é objeto de ciência deve existir sempre ou na maioria das vezes: por
exemplo, que o hidromel é na maioria das vezes benéfico a quem tem febre;
e não será possível enumerar os casos em que isso não ocorre dizendo, por
exemplo, na lua nova, porque isso também ocorre sempre ou na maioria
das vezes, enquanto o acidente está fora do sempre e da maioria das vezes.
Fica, portanto, dito o que é o acidente e a causa pela qual existe, e que dele
não existe nenhuma ciência.15

Peirce lembra que “é uma observação comum que a ciência começa a


ser exata quando esta é quantitativamente tratada”,16 por ser a ciência uma rede
que busca apreender e capturar o que é geral, que se repete, deixando escapar o
pequeno e o diferente. Por isso o acidente, o acaso, não é objeto da ciência. Disto
trata a arte, do que não se coloca sob o jugo de nenhum outro. Este é o princípio
do acaso e da ligação que faço dele com a arte: Algo que não é redutível a outro,
“este será, então, o princípio do que ocorre por acaso e não haverá nenhuma

13. Met., E2, 1027a 7.


14. Met., E2 1027 a8, grifos meus.
15. Met., E2, 1027a 20.
16. PEIRCE, Charles Sanders. Chance, Love and Logic. Philosophical essays. Lincoln: University of
Nebraska Press, 1998, p. 61.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 65

outra causa do seu produzir-se”.17 O particular não pode ser redutível à razão,
da qual a ciência é representante. O objeto do pensamento racional deve ser o
geral, o que apresenta um padrão de comportamento definido, que pode ser, ou
deveria ser em grande parte, predizível. Não é o caso da arte, do ser acidental
prenhe de significados que escapam à generalização.
Trato, pois, da arte e do acaso como correlatos, como formas anteriores
à generalização que se apresenta predizível. O caráter mágico, fortuito, da arte
é essencial para o entendimento de suas mensagens livres e para a construção
de seus métodos. Minha intenção não é tratar especificamente desses métodos,
mas tentar dar alguma legibilidade a esse caráter através do acaso.

Um breve levantamento sobre a historicidade do acaso

Como ponto de partida, devemos compreender que o acaso, considerado


inabolível pelo poeta Haroldo de Campos,18 é uma noção que está na raiz do
nosso sentimento de existir, sendo essencial biologica e cognitivamente ao
homem, embora, como visto, seja uma ideia difícil de abordar e de definir
de maneira objetiva,19 justamente por não ser, ou pouco ser, apreensível pela
ciência, pelo conjunto de disciplinas que constituem a base de nossa moderna
compreensão ocidental.
Como compreender algo que está indissociavelmente ligado à nossa
existência mas que, ao mesmo tempo, é alvo das mais controversas opiniões e
crenças? Se tivéssemos que definir de forma muito simples o acaso, sem dúvida
diríamos que este é caracterizado pela ausência de leis. Para Santaella, o acaso

é o primeiro do primeiro, universo de puras possibilidades qualitativas.


Sob o ponto de vista da sintaxe, possibilidades qualitativas altamente
indeterminadas, quer dizer, libertas de quaisquer regras ou leis regendo suas
ocorrências, só podem ser sintaxes do acaso.20

17. Met., E3. 1027b 10, grifos meus.


18. CAMPOS, Haroldo de. “Caos e ordem: acaso e constelação”. In: CAMPOS, Augusto de;
PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 195.
19. LESTIENNE, Rémy. O acaso criador. O poder criativo do acaso. São Paulo: Edusp, 2008, p. 16.
20. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora visual verbal. São Paulo:
Iluminuras, 2005, p. 120.
66 das artes e seus percursos

A autora ainda nos alerta para o fato de que “se o acaso é ontologicamente
real , ele é possibilidade que pode se transformar em ocorrência a qualquer
vii

momento”,21 evidenciando seu caráter de potencialidade. Este ainda se caracteriza


sobremaneira pelo caos, indefinição, heterogeneidade e multiplicidade: “onde
houver frescor, espontaneidade, indeterminação, possibilidade em aberto, ai
estará o acaso”.22
Pode-se afirmar ser o acaso um elemento criador, aglutinador de
novas estruturas, de forma completamente livre, já que este recusa qualquer
acontecimento anterior, podendo produzir o inesperado a qualquer instante.
Outra característica essencial do acaso é sua imprevisibilidade de princípio.
Isto quer dizer que os produtos do acaso são irreversíveis, ou seja, não podem
ser reconstituídos através de técnicas de engenharia reversa. O resultado
de algo sob o jugo do puro acaso é único e irreconstituível. O seu modo de
ser é correlato ao do tempo, cujo movimento se processa em apenas uma
direção. A irreversibilidade temporal está sob constante jugo do acaso. Como
exemplo, a desordem dos movimentos moleculares criada pelo calor contém
a irreversibilidade em ato, visto que não podemos reverter um fluxo de calor.
A desordem é indispensável para a existência da irreversibilidade presente no
tempoviii.
O acaso possui atributos que lhe concedem o status e a capacidade de
produzir existentes únicos, dotados de qualidades que são irreprodutíveis:
embora as rosas, por exemplo, se agrupem, em nossa percepção mediada
pela linguagem, em uma classe – a das rosas – que ignora as características
únicas de cada uma delas, cada rosa é completamente diversa no que tange à
distribuição de seus espinhos ou com relação à abertura de seus botões. Embora
compartilhem de características em comum – o que permite agrupá-las em
uma classe – cada uma foi produzida por um sutil jogo de distribuição de suas
características. Jogo regido, em primeira instância, pelo acaso. Observo que a
criatividade está intimamente relacionada ao que é indeterminado a princípio,
sendo a indeterminação uma propriedade fundamental do acaso, e também
sendo sua aceitação como componente do mundo real a abertura de uma
ampla via de acesso à hibridização a partir do diálogo da ficção com a realidade.
Afirmando-se a possibilidade de diálogo entre a ficção e a realidade, rompe-se
também a ideia cartesiana clássica que divide espírito – mente – e matéria.
Passamos a ter uma ciência que se abre, criativamente, à descoberta, partindo

21. Idem, p. 122.


22. Idem, p. 121.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 67

do pressuposto de que espírito e matéria são conaturais, ou seja, surgem do


mesmo princípio, dividem a mesma origem e avançam na mesma direção. Arte
– criação de ficção que se pretende realidade – e ciência – tentativa de congelar
o real para apreendê-lo – passam a ser modalidades distintas do mesmo discurso,
embora empreguem grades diferentes para mapear o mundo humano, regido
não mais pelo determinismo cartesiano, mas pelo diálogo com o que é livre.
Dessa maneira, o acaso é colocado como base da criatividade e até
mesmo dos mais contemporâneos pressupostos da ciência. Ainda falta, porém,
uma disciplina que o trate ontologicamente. Este será o papel da fenomenologia
de Peirce neste trabalho.

Sobre a fenomenologia, ou a lógica das aparências

Para Peirce, a lógica está relacionada ao que percebemos, estando na base


de suas reflexões sobre a aparência, ou o modo como os fenômenos se mostram
à mente, campo de estudo denominado pelo autor como fenomenologia. A
fenomenologia tem uma ligação direta com o acaso, já que em Peirce a concepção
de acaso foi desenhada como sendo um princípio responsável pela diversidade e
variedade constatadas na natureza e já inventariadas ao nível fenomenológico.
A respeito do caráter geral da fenomenologia, diz o próprio Peirce:

Tento uma análise do que aparece no mundo. Aquilo com que estamos
lidando não é metafísica: é lógica, apenas. Portanto, não perguntamos o
que realmente existe, apenas o que aparece a cada um de nós em todos
os momentos de nossas vidas. Analiso a experiência, que é a resultante
cognitiva de nossas vidas passadas, e nela encontro três elementos.
Denomino-os categorias.23

A fenomenologia, para Peirce, é a primeira disciplina que aparece


atrelada à filosofia. Ela deveria ser seguida por uma ciência que a estudaria de
um modo geral, ou o modo como as coisas se apresentam através da experiência
comum.24 Dentro da fenomenologia encontramos as categorias mais universais
da experiência, conceitos abstratos e ao mesmo tempo elementares, válidos
para toda e qualquer experiência. As categorias peircianas são:

23. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 22, grifos do autor.
24. EP 2, p. 272.
68 das artes e seus percursos

A potencialidade, que Peirce denominará Primeiridade, presente naquilo


que é livre, novo, espontâneo e casual; a existência ou fatualidade,
denominada por Peirce Secundidade, característica do esforço, da
resistência, da ação e reação, da alteridade – como presença do outro –, da
negação e da existência; e, por fim, a generalidade, denominada por Peirce
Terceiridade, característica do contínuo, do pensamento e da lei.25

Diante dessas breves colocações acerca da natureza geral da fenomenologia,


é possível perceber que Peirce dedicou completamente uma categoria ao
estudo do que está relacionado ao acaso, sendo a base para a existência das
outras categorias. Não por outro motivo, Peirce denomina essa categoria de
Primeiridade, à qual o acaso se subsume em sua configuração ontológica.
No plano científico, as preocupações e indagações de Peirce com
relação ao acaso eram compartilhadas por alguns outros cientistas, mesmo que
nunca tenha ocorrido algum tipo de troca ou contato mais formal entre suas
especulações e observações. É o caso de uma possível relação com Darwin,
para quem o acaso também constitui uma realidade objetiva, tendo em sua
construção teórica o mesmo patamar de realidade que outros pressupostos
teóricos.26 Dentro do sistema filosófico peirciano, “o acaso é real em si mesmo
e não o resultado de nossa ignorância a respeito de uma causa oculta de que
o acaso seria o efeito”.27 Portanto, afirmações como “o acaso existe na medida
em que a seletividade de nossa percepção permite enxergá-lo”28 mostram-se em
descompasso com essa concepção ontológica, em que o acaso é componente da
própria realidade, e não apenas de nossa percepção com relação a ela.

Acerca do sinequismo: A correlação entre mente humana e mente aparelho

O sinequismo é o ramo da metafísica peirciana que trata da continuidade,


da ligação entre mente e matéria. Esse tema é central para meu objetivo de
lançar luz ao jogo entre homem e aparelho no contexto da arte. A concepção
filosófica que está no alicerce do sinequismo é generosa, por não separar mente
– espírito – e corpo – matéria –, rompendo com uma tradição filosófica moderna

25. SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa. Curso de semiótica geral. São Paulo: Editora Quartier
Latin, 2007, p. 41, os grifos são do autor.
26. LESTIENNE, op. cit., p. 20.
27. SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora visual verbal, 2005, p. 121.
28. ENTLER, Ronaldo. Acidentes e encontros na criação artística. São Paulo: ECA-USP, 2000. 202
p., Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes, USP, São Paulo, 2000, p. 36.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 69

cartesiana, que busca afirmar a supremacia da inteligência humana sobre a


inteligência natural observada no cosmos. A mente humana, na concepção
peirceana, diferencia-se das outras formas mentais por ser a verdade mais
plástica de todo o universo conhecido, isto é, aquela que apresenta o maior
nível de maleabilidade para a mudança de hábito. Essa maleabilidade a torna
receptiva ao acaso.29
A utilização dos termos “mente humana” e “mente aparelho” pressupõe
que, sendo duas formas mentais, o homem e o aparelho podem estabelecer
uma comunicação efetiva, na forma de processos comunicacionais. É preciso
compreender esse processo e suas implicações, principalmente nas relações
observadas no jogo entre homem e aparelho, já que é esse aspecto mental que
torna o jogo possível. Para Peirce, de acordo com essas ideias não há separação
ou divisão, mas diferenças de grau, entre a natureza e a cultura, entre o orgânico
e o inorgânico, o físico e o psíquico, o natural e o artificial.30
Portanto, o termo sinequismo deve ser entendido como continuidade entre
mente e matéria, sendo esta última também uma forma de mente, porém mais
exaurida, cansada, principalmente se posta ao lado, para efeitos de comparação,
da mente humana. É esse aspecto conatural, correlacional, que possibilita
um fluxo comunicacional entre os diversos tipos mentais que observamos no
universo. Há mente na obra de arte, o que permite que a contemplação seja
um diálogo, uma via de mão dupla, e não apenas um discurso a ser observado.
Tal fato explica o porquê do observador contribuir para a construção da obra,
mesmo com relação às que não são consideradas interativasix. O sinequismo
é um conceito-chave para a compreensão da metafísica peirciana, baseada
na ideia pragmática da continuidade e da evolução. O universo, e tudo o que
o compõe, é uma forma mental por ter suas leis físicas derivadas de modelos
psíquicos, de modo que a grande lei do universo é a lei da mente.31
O sinequismo reforça o papel eminentemente presente do acaso, que
permeia todas as nossas experiências e o universo:

De acordo com o sinequismo, não há nada sobre a atualidade que apenas


é. De um lado, a atualidade retém um elemento de acaso arbitrário, um
elemento fortuito que a predispõe a ser algo distinto daquilo que é. De outro

29. SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora visual verbal, 2005, p. 122.
30. SANTAELLA, Lucia. “Sinequismo e onipresença da semiose”. Cognitio: Revista de Filosofia.
São Paulo, v. 8, n. 1, pp. 141-149, jan./jun. 2007, p. 141.
31. Idem, p. 143.
70 das artes e seus percursos

lado, a lei do hábito prescreve que os eventos atuais não podem escapar do
governo das leis. Entretanto, a regularidade das leis está constantemente
sendo violada em algum grau infinitesimal por um elemento de acaso
arbitrário.32

De fato, quanto mais sabemos das leis, mais percebemos a quantidade de


acaso nelas contida:

A investigação mais apurada […] evolui para a indeterminação do objeto


investigado, fazendo-se sujeito de sua própria representação. A precisão da
experiência conduz à descoberta da imprecisão do mundo.33

Peirce nos diz que o acaso equivale, metafisicamente, ao conceito de


liberdade que objetivamente existe no mundo e que explica a variedade e a
heterogeneidade encontradas na natureza, garantindo uma liberdade que foge
ao controle de crenças deterministas. O acaso dá conta de eventos possíveis,
mas não necessários. O filósofo nos traz a constatação de que tudo aquilo
que possamos conhecer, de qualquer maneira, é puramente mental, já que a
inteligência só é possível agir sobre o que é inteligível.34 O sinequismo abre as
portas para uma compreensão desimpedida do universo, já que “a conaturalidade
entre representação e objeto real elimina a barreira nominalistax entre sujeito
e objeto, entre consciência e mundo”.35 Tal fronteira livre já está presente na
fenomenologia peirciana, visto que todos os fenômenos, sob as três categorias,
perpassam de modo indiferenciado a interioridade – os fenômenos como eles
realmente são – e a exterioridade – a aparência. Assim, para compreendermos
e utilizarmos a doutrina do sinequismo, devemos admitir “que se o universo
material é provido de hábitos de conduta na forma de leis naturais, há que o conceber
como uma forma de mente”.36
Esta é, na realidade, a argumentação central da doutrina que Peirce
denomina como idealismo objetivo. Tal doutrina postula que a matéria é também
uma forma de mente, porém esgotada, transformada em hábitos cristalizados.
Entretanto, mesmo entre as mentes com maior número de hábitos cristalizados
podemos observar diferenças com relação ao grau de cristalização apresentado.

32. dem, p. 148. O grifo é da autora.


33. IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 46, os grifos são do autor.
34. Idem.
35. Idem, p. 58.
36. Ibidem, grifos do autor.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 71

No território dos artefatos materiais que expandem o universo das linguagens


percebemos que os dedicados aos jogos – como os aparelhos computacionais –
são as formas mentais mais livres, que proporcionam uma maior maleabilidade,
possibilitando a emergência fértil de novas sintaxes e semânticas.
O acesso a essas mentes se dá em seu grau mais sofisticado pelo uso
de metalinguagens, como as linguagens de programação, que permitem uma
completa dissolução de uma forma mental na outra. Elas representam uma
super-rodovia para o comércio sígnico.

Pode existir um acaso computacional?

É o momento da discussão sobre a influência do acaso no âmbito


computacional. Se o aparelho computacional for considerado integrante de um
jogo permutacional, que se estabelece dentro de um contexto maior, cultural, fica
muito mais nítida a presença efetiva do acaso nos jogos computacionais. Como
Peirce observouxi, o acaso matemático é correlato às probabilidades. Ou seja,
parte do pressuposto de que existam coisas a serem distribuídas fortuitamente.
Essas coisas podem ser puras qualidades mentais, ou seja, meras formas. Um
dos aspectos dos aparelhos computacionais programáveis que mais se destaca
correlaciona-se com essa ideia de qualidades mentais, sedimentando também a
via de comunicação que se estabelece entre a mente humana e a mente que se
encontra nesses aparelhos.
Onde está, por exemplo, a cadeira tridimensional exibida na tela de
um computador? Esta existe enquanto forma, produto do jogo dialógico
entre homem e aparelho e, para existir, prescinde da matéria da qual uma
cadeira é feita. A mente humana estabelece uma comunicação com a mente
computacional na tentativa de programá-la, ou seja, atribuir qualidades formais
que possam ser distribuídas no jogo icônicoxii de autorrepresentação, que o
aparelho desenvolve. Partindo da premissa do falibilismo, de que por meio do
raciocínio (atividade mental) não podemos nunca obter certeza, exatidão e
universalidade absolutas,37 já temos argumentos para considerar que mesmo a
tentativa programática com maior tendência à exatidão traz em si a imperfeição,
o espaço para o inesperado, mesmo que este seja milimétrico.

37. SALATIEL, José Renato. “Falibilismo e matemática em Charles S. Peirce”. Argumentos,


Revista de Filosofia. Fortaleza, ano 1, n. 2, p. 7, 2009a.
72 das artes e seus percursos

Nöth38 alerta para o fato de que um computador com relação a si próprio


não é capaz de ser interpretante de seu próprio funcionamento. Ele reage de
maneira causal, em uma cadeia de causa e efeito diádica, sendo que essas
reações não denotam nada, não relacionam o signo ao objeto da experiência.
De acordo com os conceitos peirceanos, um processo de semiose completo é
sempre triádico. Por isso Nöth chama os computadores de dispositivos quase
semióticos, por produzirem quase signos, observando que

um quasi-signo é similar a um signo apenas em alguns aspectos, mas não


pode cumprir todos os requisitos da semiose […]. O conceito de quasi-
signo sugere então a existência de graus de semioticidade.39

Entretanto, o mero processar de dados no interior dos computadores


não me interessa neste estudo. O que é relevante é a relação entre a mente
humana e o aparato computacional, relação que envolve os mecanismos de
programação, de produção e de fruição do que é processado nesses aparelhos.
Nesta relação sim existem processos de semiose genuína, visto que aqui

signos são produzidos por humanos, mediados por máquinas, e interpretados


por humanos. Nessa cadeia clássica de comunicação, o computador pertence
à mensagem. Remetente e destinatário humanos são, ou duas pessoas
distintas, ou a mesma pessoa em uma situação de autocomunicação. Nestes
processos de comunicação mediados por computador, ele serve como uma
extensão semiótica da semiose humana; ele é usado como a mais poderosa
ferramenta para manipulação mais eficiente da semiose humana. Trata-se
do desenvolvimento mais recente na extensão semiótica de humanos em
um processo cultural que começou com a invenção da pintura, escrita,
impressão, fonografias, máquinas de escrever e outras mídias.40

38. NÖTH, Winfried. “Máquinas semióticas”. In: QUEIROZ, João; LOULA, Ângelo; GUDWIN,
Ricardo (orgs.). Computação, cognição, semiose. Salvador: EDUFBA, 2007.
39. Ibidem, p. 164.
40. Ibidem, p. 166.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 73

Isso posto, tratando mais especificamente do aparelho computacional,


e mesmo considerando-o como um produto indubitável da cultura humana,
podemos dizer que todos seus processos são absolutamente pautados pela
determinação? Vejamos a seguinte citação:

Em todas as artes, o uso dos meios eletrônicos traz uma ampla possibilidade
de manipulação dos códigos que estimula a presença do acaso. O
computador, não obstante seja útil pela precisão de seu processamento,
será frequentemente usado pelos artistas para reciclar informações, para
simular o acaso e para permitir o intercâmbio de intenções entre o artista
e o público. Tudo isso leva a um campo muito vasto de experimentações
que tem em comum a mobilidade e a imprevisibilidade de seus produtos.41

Embora interessante e pontual, o trecho acima traz um ponto do qual


discordo. O computador pode simular imagens, simular representações ou
simular realidades, visto que “o mapeamento, modelagem e até a simulação
da realidade pertencem às formas mais complexas de representação icônicas
das quais computadores são capazes”.42 Entretanto, o acaso no contexto
computacional não é mera simulação, mas pode também ser parte constituinte
de sua operação, na forma de acaso matemático. Como exemplo concreto da
ação do acaso no aparato computacional, vamos tomar a simulação de um jogo
de dados realizado por um programa de computador. Nessa simulação iremos
ignorar as forças e leis físicas que atuam sobre o dado material – como a força
com que este é lançado, a lei da gravidade, o atrito com a superfície em que o
dado cai etc. – e nos deteremos no sorteio de um número entre 1 e 6. A regra
do jogo está, portanto, posta: O resultado deve estar compreendido entre os
numerais 1 e 6, inclusive. Como o acaso matemático atua nesse cenário?
Vou analisar uma das possibilidades de codificação, em linguagem
computacional, dessa simulação. Faço isso não para simplesmente ilustrar o
procedimento de escritura, mas sim porque entendo que o jogador mais pleno
do jogo com o aparelho computacional é aquele que entende as regras contidas
na lógica do aparelho. De meu ponto de vista, a mais central dessas regras é
entender a codificação que gera os processos computacionais. Assim, tomemos
o seguinte código simples escrito na linguagem Rubyxiii:

41. ENTLER, op. cit., p. 16.


42. NÖTH, op. cit., p. 161.
74 das artes e seus percursos

resultado = 0.0
resultado = rand (1.0..6.0)
resultado.to_int

Utilizo o processo de geração randômicaxiv mais simples. Na primeira linha


defino uma variável, uma posição na memória do computador cujo conteúdo
pode variar no decorrer da execução dos processos que constituem o programa.
Nomeio essa variável de “resultado”, pois esta irá armazenar o número sorteado.
Essa variável não armazena somente números inteiros (como 1, 2 ou 8), mas
também frações (como 1.5, 2.87 ou 8.90, por exemplo). Na segunda linha
realiza-se o sorteio, fazendo uso da função “rand”, que simplesmente sorteia
um número compreendido entre os valores passados a ela (no caso, de 1 a
6, inclusive). A terceira linha transforma o número sorteado em um número
inteiro. Executando o programa, obtém-se o resultado desse simples jogo de
dados computacional.
Onde reside o acaso aqui? Diante do código de programação, pode-se
argumentar que

um programa de computador pode sortear números ou, se quisermos,


significados atribuídos a esses números. É o que chamamos de função
randômica. Mas um computador, em princípio, não erra, não tem “jogo” em
seu funcionamento […]. O programa pode tomar um número (semente)
consultando no sistema informações como hora, minuto, segundo. Depois
realiza, através de um conjunto de instruções que chamamos de algoritmo,
uma série de operações matemáticas muito precisas com esse número, até
deduzir o resultado final daquilo que entenderemos como um sorteio. Para
o computador, a operação é absolutamente determinada: bastaria repetir
a mesma semente e o mesmo algoritmo para obter o mesmo resultado.43

Temos na citação acima uma descrição ligeira do processo de geração


de números randômicos em computadores. Entretanto, é necessário alertar
para alguns fatos. Entler parte da premissa de que o computador é a máquina
da determinação, onde o resultado de tudo já está dado de antemãoxv. A
afirmação que acompanha este raciocínio, a de que o “computador não erra”,
parte da premissa errônea de que os computadores não estão inseridos no
mundo da cultura, como se estivessem em ambientes idealizados, sem nenhum

43. Ibidem, op. cit., p. 20, os grifos são do autor.


claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 75

contato com outros artefatos ou com a mente humana. Se assim fosse, não
teríamos mais acidentes com aviões, por exemplo, pois estes são controlados
e monitorados por computadores. Pelo fato de estarem imersos na cultura, os
computadores só não erram nos contos de ficção científica que trazem ambientes
idealizadamente perfeitos. A afirmação de que o computador “não tem jogo”
também soa ficcional, visto que programar e executar programas é estabelecer
um sofisticado jogo de permutações icônicas, um jogo de distribuição de dados
que estão contidos nas voláteis memórias computacionais e nos processos de
comunicação com as mentes humanas. Outro índice determinista do texto é
a afirmação de que “basta repetir a mesma semente e o mesmo algoritmo para
obter o mesmo resultado”.
Ora, mesmo em computadores que estejam programados para tal, para
executar a mesma operação quando seu relógio interno marcar os mesmos
numerais do sorteio anterior, ou ainda se retrocedermos o relógio do computador
para que este reflita o momento anterior, ainda assim o acaso se faz presente, por
dependermos de uma ação humana. Sendo o próprio aparato computacional
fruto da mente humana, o acaso é também elemento substancial da essência
dos computadores, evidenciado ainda mais em nosso trato com eles. Um
exemplo da semente de indeterminação que rege os aparatos computacionais
pode ser evidenciado mais efetivamente com uma simples modificação em
nosso programa de sorteio de dados. Se retirarmos a terceira linha obteremos
resultados ainda mais heterogêneos, como “1.3513477”, “3.3524456”,
“4.8460064”, “3.6884344”, “5.463128” e assim infinitamente. Ora, temos então
no computador o acaso tecendo uma rede mais fina e mais sensível do que no
clássico exemplo de jogo de dados físico. Como conclusão, observo o seguinte
trecho de Flusser:

Se dispusséssemos de computador suficientemente poderoso, poderíamos,


em tese, “futurar” (calcular antecipadamente) todas as situações pouco
prováveis que surgiram, estão surgindo e surgirão desde o Big Bang até
a “morte térmica”. A dificuldade para construirmos tal computador não
está na quantidade literalmente inacreditável das virtualidades que devem
acidentalmente coincidir para que tais situações pouco prováveis, como
nebulosas ou cérebros humanos, emerjam. A dificuldade está no fato de
que o nosso computador deverá conter na sua memória não apenas todo
o programa contido no Big Bang, mas igualmente todos os erros contidos
em tal programa, de maneira que o nosso computador deveria ser maior
que o universo. E, além disto, necessitaríamos de “metacomputador” ainda
76 das artes e seus percursos

maior que pudesse ‘futurar’ os erros no programa do computador futurador


do universo. Tal metacomputador poderia futurar não apenas as situações
pouco prováveis no universo lá fora, mas inclusive o presente texto em vias
de ser composto. De forma que poderia, de alguma forma, “autofuturar-
se”.44

Claramente a construção desse computador “futurador” corresponde ao


desejo de um conhecimento total de Einstein, sendo sua concepção resultado de
um desejo determinista a respeito do que é conhecer as coisas, implicando o fim
da própria evolução do conhecimento. Evidenciados e conhecidos os aspectos
gerais que permeiam as estruturas do acaso, posso passar agora a uma aplicação
mais efetiva desses aspectos no território da arte computacional.

As teogonias visuais

Como demonstração da atuação do acaso aplicada na produção de


programas relacionados à arte computacional em um contexto de diálogo com a
poesia, apresento, formalmente, algumas “Teogonias visuais” (imagens 1, 2 e 3),
série icônica gerada por um software desenvolvido por mim em linguagem Ruby
para a criação de imagens que não possuem índices externos. Ou seja, essas
imagens são frutos da pura manipulação matemática ao acaso de determinado
conjunto de dados contido no interior da memória do computador. O termo
“Teogonia” é tomado emprestado de um poema escrito pelo grego Hesíodo
nos fins do século VIII a.C. O poema trata do processo de nascimento dos
deuses gregos e, por isso, o conjunto recebe o subtítulo de “imagens do deus
computacional”, já que neste caso os deuses se transmutam na vontade dos
algoritmos computacionais regidos pelo acaso.
Hesíodo, um mestre da poesia instrutiva, viveu em Ascra, na Beócia,
parte central da Grécia continental, sendo recordado por seus dois poemas, a
“Teogonia” e “Os trabalhos e os dias”. A “Teogonia” é um poema sobre os mitos
do panteão grego de deuses e deusas, estabelecendo a genealogia dos imortais,
visto que a palavra teogonia, etimologicamente, vem de theós, deus, e gígnesthai,
nascer, significando o nascimento ou origem dos deuses. O poeta viveu no início
do que podemos chamar de era de ouro da civilização grega. Sendo assim, sua
obra ainda tem um ar micênico e minoano, sendo ele ao mesmo tempo herdeiro

44. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas. Elogio da superficialidade. São Paulo:
Annablume, 2009, p. 25.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 77

das antigas civilizações mediterrâneas e progenitor, junto com Homero, de


uma nova era. Como herdeiro de uma cultura anterior, Hesíodo segue a antiga
tradição do menestrel e do contador de histórias.
“Teogonia” de Hesíodo é um poema que representa uma fase do
pensamento grego em que não havia relações de causa e efeito, os deuses
existiam por si e para si e o tempo não era contado cronologicamente. Um
período de relações puramente mágicas, em que um fato não explicava outro,
mas dava margem a interpretações múltiplas e abertas. O paradoxo para esses
gregos também não constituía um problema, pelo contrário: Era o modo de
pensar e de agir mais sublime que poderia existir. Esse programa cultural que
conduzia o modo de vida grego da época não estava balizado por nenhuma
ciência, apenas pela crença em algo que se apresentava por si mesmo, como os
produtos do acaso.
O código de programação desenvolvido para a criação dessa série de
imagens é, ele próprio, uma representação das próprias Teogonias Visuais, ou,
ainda, as Teogonias Visuais são a representação de algumas das possibilidades
elencadas nos códigos. Não se trata de um simples espelho, mas sim de uma
operação mais complexa, já que os códigos dão forma às imagens, pois estas
são criadas a partir das escrituras computacionais. Assim, olhar e compreender
os códigos de programação envolvidos já é contemplar, em parte, as imagens
formadas a partir do choque das possibilidades infinitas do acaso com a alteridade
do algoritmo de programação.
O software aqui é, dessa maneira, verdadeiro representante da doutrina
iconoclasta platônica, na medida em que rompe com a mimese. Essas imagens
desprendem-se da mímese para criarem e propagarem – como os deuses –
realidade através do jogo computacional de permutação icônica. O diálogo
com o acaso se manifesta plenamente nelas, onde as eventualidades do acaso,
que decorrem diretamente de suas possibilidades, se tornam eventos a partir da
manifestação de possibilidades que sequer poderiam ser inventariadas de outra
maneira. Na execução do código ocorre a apresentação das imagens do deus
computacional, verdadeiro caos preparatório para o surgimento de um cosmos
organizado. Como apresentação do caos as Teogonias Visuais não apontam para
referentes externos, e a divindade nos traz o resultado do puro jogar: ícones que
são frutos poéticos do acaso.
78 das artes e seus percursos

Imagem 1: Tália (Θάλεια)

Imagem 2: Memória (Μνημοσύνη)


claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 79

Imagem 3: Hefesto (Ήφαιστος)

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i  Como mostrarei a seguir, minhas concepções teóricas sobre o acaso são baseadas centralmente
no pensamento de Charles Sanders Peirce. Entretanto, devo alertar de antemão que uma parte
da concepção peirciana sobre o acaso tem como fonte reconhecida a teoria das causas acidentais
de Aristóteles, à qual Peirce se dedica a partir de 1890 (“O que Peirce quer dizer por violação das
leis da natureza pelo acaso?”. Cognitio: Revista de Filosofia. São Paulo, v. 10, n. 1, p. 131, jan./jun.
2009c).

ii  O termo “Estagirita” se refere a Aristóteles, pois o filósofo nasceu em Estagira, “cidadezinha
obscura da Macedônia oriental colonizada originalmente por jônicos” (LUCE, John Victor. Curso
de filosofia grega. Do séc. VI a.C. ao séc. III d.C. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 113).

iii  Os significados do ser, para Aristóteles, são quatro: O ser segundo as diferentes figuras de
categoria; o ser segundo o ato e a potência; o ser como verdadeiro e falso e o ser como acidente ou
ser fortuito.

iv  As categorias, ou tábua das categorias, de acordo com Aristóteles, compreendem o grupo de
significados do ser per si, por tratarem dos significados originários do ser. As categorias delineadas
pelo filósofo são: 1. A substância ou essência; 2. Qualidade; 3. Quantidade; 4. Relação; 5. Ação ou
agir; 6. Paixão ou padecer; 7. Onde ou lugar; 8. Quando ou tempo, 9. Ter e 10. Jazer.

v  Sobre a causa final, esta “constitui o fim ou o propósito das coisas e das ações; ela indica aquilo
em vista de que ou em função de que cada coisa é ou advém ou se faz; e isso, diz Aristóteles, é o
bem de cada coisa” (Reale, 2005:54).

vi  A distinção entre ato e potência se faz necessária para a compreensão do processo de criação a
partir do acaso. De acordo com Reale, “a experiência diz, com efeito, que além do modo de ser em
ato, há o modo de ser em potência: isto é, o modo de ser que não é ato, mas capacidade de ser em ato:
quem nega a existência de outro modo de ser além daquele em ato, acaba fixando a realidade num
imobilismo atualístico que exclui qualquer forma de devir ou de movimento” (2007:41). De modo
mais completo, é possível afirmar que “por exemplo, dizemos que vê, seja quem tem a potência para
ver, isto é, quem pode ver (isto é, o que tem a capacidade de ver, mas, momentaneamente, digamos,
tem os olhos fechados), seja quem vê em ato; ou dizemos que é sábio, seja quem pode fazer uso do
próprio saber (por exemplo, quem sabe aritmética, mas não está no momento contando), seja quem
dele faz uso em ato. Analogamente, dizemos também que é em ato uma estátua já esculpida e, ao
invés, que é em potência o bloco de mármore que o artista está esculpindo; e nesse sentido dizemos
que é trigo a muda de trigo, no sentido que é trigo em potência, enquanto da espiga madura dizemos
que é trigo em ato” (ibidem:38, grifos do autor). Ou ainda, nas palavras do próprio Aristóteles: “De
fato, dizemos que vê tanto quem pode ver como quem vê em ato; e de maneira semelhante dizemos
que sabe, tanto quem pode fazer uso do saber como quem faz uso dele em ato; e dizemos que está em
repouso tanto quem já está em repouso como quem pode estar em repouso. Isso vale também para as
substâncias: de fato, dizemos que um Hermes está na pedra e que a semi-reta está na reta, e dizemos
que é trigo também o que ainda não está maduro” (Met., ∆ 7, 1017b 2-8).

vii  Sobre o conceito de real, devo deixar claro a posição que este ocupa no sistema filosófico de
Peirce. O autor adota um posicionamento ao qual denomina “idealista objetivo”, onde “o real é
entendido não como independente do pensamento em geral, mas do pensamento de um individual.
Há aqui duas definições. Na primeira, real é aquilo que permanece independente do que possa ser
pensado a respeito dele. Por exemplo, posso pensar o que quiser a respeito de alguma coisa, o que
não a torna um objeto necessariamente real. Pode ser apenas um sonho ou uma ficção. Objeto real
é aquele que vai resistir ao que o indivíduo pense de sua existência. Na segunda definição, real é
uma opinião final do curso de investigações sobre o objeto. Uma comunidade de investigadores
(dado o ser humano possuir a capacidade de adivinhar leis) é portadora de uma tendência para
atingir uma verdade a respeito desse real – verdade sempre aproximativa e provisória – no curso de
testes e confirmações empíricas. Realidade, portanto, é algo que independe do pensamento de um
indivíduo, mas possui um componente geral, uma mesma matriz conforme a lei compartilhada pela
natureza e pelo homem. De outra forma, como seria possível conhecer algo de natureza diversa?”
(Salatiel, 2009b:110).

viii  Para um detalhamento maior a respeito destas colocações, ver PRIGOGINE, Ilya. O fim das
certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora Unesp, 1996.

ix  Para uma discussão profunda a respeito da interatividade, consultar meu trabalho em
Poltronieri, 2009.

x  De maneira breve, o nominalismo é uma doutrina filosófica que “sustenta que as coisas
denominadas pelo mesmo termo nada tem em comum exceto isso; o que todas as cadeiras tem em
comum é serem chamadas de ‘cadeiras’. Essa doutrina é habitualmente associada à tese de que tudo
que existe são individuais particulares, não existindo portanto ‘universais’. […] No entanto, é difícil
enunciar essa doutrina de modo peremptório, porque se as cadeiras podem partilhar a característica
de se chamaram ‘cadeiras’, então também deverão poder partilhar outras características. A questão
não deveria ser colocada em termos de quantas características em comum existem, mas sim em que
consiste ter uma característica em comum e se a linguagem desempenha um papel fundamental na
criação desse fenômeno. O nominalismo é uma versão extrema da noção sempre atraente de que
as características comuns das coisas são uma espécie de criação das idéias humanas” (Blackburn,
1997:268). Em oposição ao nominalismo, Peirce adota uma forte posição realista, onde a natureza
se autodetermina, independente da vontade ou das linguagens humanas.

xi  Peirce estabeleceu uma hierarquia a respeito do acaso. Podemos, em seus textos, “apreender
até três concepções diferentes de acaso […] que progridem de um ‘fraco’ ou subjetivo para uma
posição mais ‘extrema’, de acaso objetivo” (Salatiel, 2009c:106). Os três tipos de acaso identificados
por Peirce são, a saber: “1) Acaso matemático: A principal característica é a independência de fatos
ou eventos, prescrita pela teoria das probabilidades. 2) Acaso absoluto: Responde pela variedade
e diversidade do mundo, originadas por um princípio de espontaneidade e novidade que viola
as leis da natureza, e uma condição de dependência (causalidade). 3) Acaso criativo: Se o acaso
absoluto interrompe uma lei pré-existente, e se as leis nascem de um acaso original (de acordo com
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 83

a cosmologia peirciana), então deve haver uma função criativa que opere antes da existência das
leis” (ibidem:108).

xii  É por ser fruto direto do pensamento matemático e por operar por cálculos que os jogos
computacionais são icônicos. Vejamos: “Nas ciências exatas, em que a matemática é a linguagem
subjacente, embora a hierarquização dos fenômenos ou objetos e o uso em larga escala de conceitos
e definições reforcem a aparência de um caráter simbólico, persiste na verdade um jogo interno e
estrutural de signos matemáticos que se dá por semelhança […] a matemática, na sua composição
intrínseca, opera através de similaridades. Daí a possibilidade de obtenção de resultados imprevistos
a partir de outros previamente conhecidos” (Campos, 2003:137).

xiii  http://www.ruby-lang.org/

xiv  A respeito da capacidade do computador de gerar números randômicos, interessa-me a


posição de Greenberg, ao afirmar que “em praticamente todas as obras de arte com software que
eu crio, eu incluo alguns processos randômicos. A randomização traz uma qualidade orgânica ao
processo de codificação, assim como um sentimento de constante descoberta” (2007:742).

xv Entler não leva nem em conta a existência de mecanismos sofisticados para a geração de
números pseudo-randômicos. Para um aprofundamento maior sobre o assunto, acessar http://
en.wikipedia.org/wiki/List_of_random_number_generators
A poética hacker
Fred Paulino

– Est-ce qu’on ne peut pas admettre que des hommes capables,


intelligents, et à plus forte raison doués de talent ou même de
génie – donc indispensables à la société – au lieu de végéter toute
leur vie soient dans certains cas libres de désobéir aux lois?
– Cela me paraît difficile, et dangereux.
– Pour la société ce serait tout bénéfice.
– Et qui distinguera des autres ces hommes supérieurs?
– Eux-mêmes, leurs consciences.1

O filme Pickpocket, obra-prima de Robert Bresson, conta a trajetória


de um atormentado, talentoso e apaixonado batedor de carteiras. Apesar de
exercer esse “ofício”, o protagonista não parece ser movido por ambição. Ele
parece, na verdade, instigado por um misto de falta de opção, conveniência e
satisfação tátil, mas, principalmente, por um sentimento irracional de desafio
pessoal, a partir da contravenção. Mais do que uma obra genial sobre a condição
psicológica humana e seus desvios, em uma sociedade que nos cobra, a todo
instante, coerência e produtividade, o filme – realizado com extremo rigor
cinematográfico – abre caminho para uma leitura singular sobre a questão ética.

1.  – Será possível admitir que homens com certas habilidades, dotados de inteligência, talento ou
genialidade, e que são indispensáveis para a sociedade, ao invés de se sentirem paralisados,
sejam livres para desobedecer às leis em certos casos?
– Isso seria difícil. E perigoso.
– A sociedade só ganharia com isso.
– Quem identificaria esses homens superiores?
– Eles mesmos. Suas consciências.
Diálogo do filme Pickpocket – O batedor de carteira, de Robert Bresson, 1959.
86 das artes e seus percursos

A ética (proveniente do grego ethos, “bom costume”, traduzido para o


latim mos) é um conceito amplamente abordado na filosofia. Para se ter ideia,
uma busca pelo termo na Stanford Encyclopedia of Philosophy retoma nada mais
nada menos que 907 verbetes. Em linhas gerais, a ética está relacionada com a
atuação do homem sobre o meio coletivo, pautada pelo caráter e pelas regras
sociais vigentes (ou possíveis). É o estudo do código moral e da forma como
lidamos com ele cotidianamente, a partir de nossas múltiplas individualidades.
Filósofos da Antiguidade defendiam que o homem deve ser correto
e virtuoso. Para Aristóteles, a felicidade (eudemonia) não consiste nem nos
prazeres, nem nas riquezas, nem nas honras, mas numa vida virtuosa. Séculos
depois, Spinoza abordaria o tema de forma racional e geométrica no livro
Ética, de 1677. Segundo ele, para alcançar a felicidade é preciso compreender
e criar as circunstâncias que aumentem nossa potência de agir e de pensar. É
imprescindível, para isso, tornar-se o mais independente possível das paixões.
A ética pode, portanto, ser interpretada como uma espécie de estudo
“qualitativo” da conduta humana em sua relação com o mundo, pautada
por duas interpretações relacionadas, mas frequentemente incompatíveis: o
julgamento de si pela “maioria” e a busca pela satisfação pessoal. Nossa procura
pelo “prazer” está quase sempre relacionada com o outro. Como, então, pensar
a ética hoje, em um contexto no qual nossa relação com a sociedade é cada vez
menos pessoal, e sim virtualizada e mediada pela tecnologia?
Há um obscuro personagem da sociedade contemporânea que nos permite
diversas elucubrações sobre a ética: o hacker.
O que é um hacker? O senso comum sugere que se trata de um jovem
cidadão sagaz, geralmente do sexo masculino, com conhecimento tecnológico
avançado que, guiado por um espírito destrutivo e aproveitando-se de
fragilidades em sistemas de criptografia e segurança, passa seu tempo invadindo
computadores e contas bancárias alheias. Segundo essa leitura, o hacker flerta
constantemente com a ética, ou com a ausência dela, ignorando a legalidade
na rede em prol de benefícios próprios. Mas essa interpretação é limitada, se
considerarmos a potência por trás desse personagem.
O termo “hacker”, cuja etimologia original é “cortar grosseiramente”
(por exemplo, com um machado ou facão), foi reapropriado na década de
1950, para descrever modificações em relés eletrônicos de controle dos trens.
A partir da década de 1960, passou a ser usado para nomear truques mais ou
menos engenhosos de programação, muitas vezes usando recursos obscuros
do computador. Nos anos 1980, surgem os primeiros vírus eletrônicos e
posteriormente, no início da década 1990, hackers derrubam seguidamente a
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 87

rede de ligações de longa distância da AT&T nos Estados Unidos. A reação


governamental vem na mesma proporção, com a criação de leis específicas
para conter e punir o chamado “crime digital”. Desde sempre, à medida que
contraventores eletrônicos praticam sua arte, o sistema trabalha para contê-los.
No entanto, analisando mais profundamente a atuação dos hackers e seus
valores, é possível concluir que eles não estão necessariamente interessados em
praticar crimes digitais, mas muito mais em usar as limitações de segurança
das redes de computador – e de outros sistemas – para testar, e aprimorar, seus
conhecimentos sobre tecnologia e, por que não, sobre o mundo em geral. Sempre
movidos muito mais pela superação de desafios próprios e pela colaboração com
a comunidade com a qual se relacionam do que por benefício material.
Muito já se escreveu sobre o assunto, mas a pedra fundamental de uma
possível “filosofia hacker” é o livro Hackers: heroes of the computer revolution,
publicado pelo jornalista norte-americano Steven Levy, em 1984, e lançado
tardiamente no Brasil, em 2012. Na obra, Levy discorre sobre as pessoas, as
máquinas e os eventos que definiram uma “cultura hacker” e propõe os
fundamentos de uma ética hacker, seguida até hoje por muitos adeptos. São
eles:

• o acesso a computadores – e a qualquer coisa que possa ensinar algo


sobre como o mundo funciona – deve ser ilimitado e total;
• toda informação deve ser livre;
• duvide da autoridade – promova a descentralização;
• hackers devem ser julgados pelo que realizam, e não por critérios
fictícios, como grau acadêmico, idade, raça ou posição social;
• você pode criar arte e beleza em um computador;
• computadores podem mudar a sua vida para melhor.

Mesmo que o autor devaneie acerca da concepção clássica sobre a ética,


a interpretação visionária “hackeada” de Levy sobre o conceito abre caminho
para nova leitura da relação tecnólogo-mundo, possibilitando uma compreensão
mais ampla do nosso personagem. Já no sumário do livro, ele se refere aos
hackers como “aventureiros, visionários, gente que corre riscos, artistas”... e
não nerds rejeitados socialmente, ou programadores pouco profissionais que
escrevem códigos computacionais toscos.
A proposta de uma ética hacker é retomada em outra obra fundamental
sobre o tema, The Hacker Ethic and the Spirit of the Information Age (A ética
hacker e o espírito da era da informação, tradução livre), de Pekka Himanen.
88 das artes e seus percursos

Seu livro – cujo título remete a A ética protestante e o espírito do capitalismo,


de Max Weber – estabelece princípios que relacionam, ou contrapõem, a
ética hacker à protestante, focando sua análise nas relações com o tempo, o
trabalho, a estabilidade e o dinheiro. Himanen sugere que o hacker (assim
como o personagem de Bresson) não se pauta necessariamente pelo retorno
financeiro nem se prende à rotina em busca de resultados imediatos. Sua
construção é cotidiana, movida por impulsos de paixão e liberdade, em que
há um fluxo dinâmico entre o trabalho criativo e os prazeres da vida. O que
importa é o valor simbólico da sua realização, os benefícios à comunidade e
o reconhecimento pelo grupo, nem sempre através de uma remuneração.
Resistente ao modelo de acumulação produtiva capitalista, o hacker não está
necessariamente interessado em um resultado final, mas num processo, ou mais,
em uma potência transformadora.
O “hackeamento” pode ser, assim, comparado a uma intervenção.
Hackear é transfigurar um sistema qualquer – inserindo nele algo não previsto
inicialmente, subvertendo seu uso original, redefinindo sua função. Isso nos
permite uma nova definição do hacker: ele deixa de ser o “nerd tecnólogo”,
ligado exclusivamente ao universo dos computadores.
Como muito bem apontou Raquel Rennó em seu texto para o catálogo da
exposição “Gambiólogos 2.0” citando Mackenzie:2 é um engano nos limitarmos
“a entender a tecnologia e mesmo o software como virtualidade”. Para o autor, é
necessário “ver o código como prática e matéria, até mesmo para se compreender
como se deu a construção discursiva que deu origem à ideia de invisibilidade
e, consequentemente, todas as implicações sociais e políticas desse fenômeno.
Assim, retiramos a tecnologia do ambiente puramente técnico e podemos
compreendê-la a partir de seus entrelaçamentos com as práticas culturais”.
Não se trata mais de uma subcultura específica do território da informática,
tampouco de uma contracultura. A verdadeira “cultura hacker” se manifesta,
também, no cotidiano e em inúmeras áreas do conhecimento. O hacker pode
atuar efetivamente sobre a realidade, questionando e reprogramando saberes.
Compreender a dinâmica do hackeamento no mundo atual e aproveitar-
se da noção de reaproveitamento/reapropriação/refuncionalização é se
instrumentalizar para compreender melhor o uso das coisas e, por fim, do mundo.
Assim como o artesão-gambiólogo cria novas utilidades para os objetos
ao redor, multissignificando seus usos, o hacker “brinca” com códigos digitais,
refuncionalizando sistemas segundo necessidades ou interesses (não por acaso,

2.  MACKENZIE, A. Cutting Code: Software and Sociality. New York: Peter Lang, 2006.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 89

esse acento lúdico fica claro quando observamos que muitos hackers são,
profissionalmente, programadores de jogos). Da mesma forma, o poeta, por sua
vez, é aquele que “reprograma” o vocabulário, criando novos significados, não
necessariamente lineares. O artista joga com os materiais do mundo; o poeta
manipula livremente as palavras, para além das normas gramaticais. Ambos
transfiguram linguagens, subvertendo-as.
Pois voltamos a Aristóteles, que, junto a Platão, foi pioneiro na
investigação da poesia enquanto criação estética. Várias de suas anotações
foram organizadas posteriormente no livro Poética, em que reflete sobre a
poiesis, ou seja, “fazer, compor, realizar, converter pensamento em matéria” – o
que curiosamente, diga-se, nos faz remeter à figura do maker e, por que não,
do hacker. Dentre diversas possíveis interpretações sobre sua obra, podemos
reconhecer a poesia como o processo criativo em si, que pode ter um viés lúdico
ou não, mas sempre resulta em uma experiência de prazer.
Pino Parini, por sua vez, afirma que “no campo das artes, poiesis se refere
à fascinação provocada no momento em que, mediante múltiplos fenômenos
associativos alcançados pela percepção, os diferentes elementos de um conjunto
se interrelacionam e integram-se para gerar uma entidade nova, denominada
estética”.3 Trata-se, literalmente, do próprio processo de hackeamento definido
como poesia e, portanto, como arte.

A ética hacker torna-se uma poética.


Conforme sugerido por Steven Levy, o hacker é, então, um criador. Por
meio de uma poética própria (que não é necessariamente estética, mas pode
ser), ele reconfigura e remodela sistemas quaisquer a seu redor. Não negamos
aqui o hacker tecnólogo, mas propõe pensarmos além. Da mesma forma que a
Gambiologia é a ciência que une o analógico ao digital, a criatividade cotidiana
às artes formais, a inovação tecnológica à cultura de rua, o hacker é aquele
que, saindo da obscuridade, invade o nosso dia a dia e disponibiliza formas
alternativas e, por que não, criativas, de acessarmos os sistemas vigentes.
Retornemos ao batedor de carteiras. Ao invadir o espaço de outro
indivíduo sem ser notado, seria ele um hacker de sentidos? E o que dizer de um
ilusionista que se livra de correntes debaixo d’água, a olhos vistos, sem que jamais

3. “En el campo de las artes, poiesis refiere a la fascinación provocada en el momento en que, mediante
múltiples fenómenos asociativos aportados por la percepción, los distintos elementos de un conjunto
se interrelacionan e integran para generar una entidad nueva, denominada estética.” – PARINI,
Pino. Los recorridos de la Mirada: del estereótipo a la creatividad. 2001. Disponível em: http://
es.wikipedia.org/wiki/Poiesis. Acesso em: 24/03/2015.
90 das artes e seus percursos

cogitemos descobrir o seu truque? Seria ele um hacker do olhar? Há formas de


hackear o sistema educacional, o mercado de ações, o escritório? Seria a causa-
tendência queer uma forma de hackear o cotidiano e a sexualidade, ditados há
séculos pela heteromonogamia? Como o hackeamento biológico, a decifração
e a recombinação dos códigos genéticos podem reverberar em conquistas que
melhorem efetivamente a vida das populações? Como avaliar a incomensurável
relevância de hackers como Edward Snowden e Julian Assange, figuras-chave
para se compreender a dinâmica geopolítica atual?
Na contemporaneidade, tempo em que praticamente toda comunicação
passa por sistemas indexados comercializáveis, o cotidiano é programável
e a vigilância é crescente, o impulso hacker pode, e deve estar presente em
qualquer área, em qualquer indivíduo. E, talvez, hackear a realidade através de
uma poética seja, a essa altura, a única forma de independência e criatividade
possível.
My crime is that of curiosity.4

Referências bibliográficas

MACKENZIE, A. Cutting Code: Software and Sociality. New York: Peter Lang,
2006.
MANIFESTO “A Consciência hacker”, publicado por O Mentor em 1986.
PARINI, Pino. Los recorridos de la Mirada: del estereótipo a la creatividad. 2001.
Disponível em: http://es.wikipedia.org/wiki/Poiesis. Acesso em: 24/03/2015.

4.  Citação ao manifesto “A Consciência hacker”, publicado por O Mentor em 1986.


Documento de projeto e construção de
referência de pesquisa

Claudia Marinho

1. Apresentação

Este ensaio apresenta a síntese de algumas notas feitas durante as etapas


iniciais de desenvolvimento de um projeto de pesquisa que envolve a produção
de um jogo pervasivo voltado para a educação patrimonial. Relata o processo
de produção do jogo como uma oportunidade para falar sobre fazer pequisa
em um contexto tramado pela conexão entre procedimentos (pensamentos)
da arte, da ciência e do design e sobre a invenção|validação de estratégias
investigativas. Baseado na computação pervasiva, nos recursos da Realidade
Aumentada (RA), no georeferenciamento e em procedimentos típicos do design
de jogos eletrônicos (missões, interfaces e sistemas narrativos progressivos), o
jogo Memória Fortaleza é produto da parceria entre pesquisadores das áreas do
design, do patrimônio cultural, da arte e da computação e tem como proposta
explorar os recursos da computação pervasiva, da Realidade Aumentada (RA)
e a linguagem do jogo para levar a história de Fortaleza aos alunos do ensino
médio do município.
Wilson (2003), ao falar sobre o papel da arte no desenvolvimento científico
e tecnológico, descreve seus processos e produções como um contraponto às
poderosas forças politicas, econômicas e sociais que determinam que tipo de pesquisa
acaba sendo apoiada, promovida e aceita, e que produtos ganham mercado.1 O
autor ressalta ainda o papel do artista como comentador crítico dos mundos da
ciência e da tecnologia e aponta caminhos para pensar sobre uma cultura de

1.  WILSON, Stephen. “Arte como ciência: A importância cultural da pesquisa científica e o
desenvolvimento tecnológico”. In: Arte e vida no século XXI. São Paulo: Editora Unesp, 2013,
p. 149.
92 das artes e seus percursos

projeto tramada em contextos engajados menos na construção de artefatos e


mais na proposição de novas sínteses sociais. Nesse sentido os processos da arte
– e também o design – poderiam ser vistos como zonas independentes de pesquisa,
contextos para investigar aquelas temáticas abandonadas, desacreditadas, não
creditadas e não ortodoxas bem como para a valorização de procedimentos
de pesquisas também abandonados, desacreditados, não creditados e não
ortodoxos, em relação aos processos técnicos e sociais legitimados pelo universo
científico e comercial.
Laddaga (2012) aborda esse cenário a partir da noção de “regime
prático”, expressão empregada por ele para descrever ações colaborativas de
grupos de produções artísticas e os mecanismos empregados por eles, em vista
ao seu papel na ampliação das redes da arte, em termos de circulação e de
transformação social. O autor fala sobre a geração de coleções – textos, filmes,
animações, imagens – e a proposta de sínteses que extrapolam a noção de
obra, a partir da configuração de estruturas – pensadas para a exibição dessas
coleções – traduzidas pela configuração de espaços inabituais e novas formas de
sociabilização.

Em um regime prático não se produzem apenas obras, mas também ecologias


culturais, comunidade, processos abertos e cooperativos, formas de vida e
mundos comuns.2

A ideia de negociação – entre procedimentos de investigação descritos


e não previstos – está presente também na concepção de ciência como prática
social, como descrito por Latour (2000). O autor parte da imagem das duas
faces de Jano para descrever as negociações que acontecem entre uma ciência
em construção – a face que olha para a direita – moldada pelas controvérsias,
e outra, pronta e acabada, mais severa – que olha para a esquerda – descrita
como caixa-preta. Para definir que investigação científica seria o produto da
convivência de duas vozes contraditórias que falam ao mesmo tempo.

A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina


ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é
desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada,
senão o que nela entra e o que dela sai. [...] Ou seja, por mais controvertida
que seja sua história, por mais complexo que seja seu funcionamento

2.  LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 93

interno, por maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua
implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e o que dela
se tira. 3

Segundo Latour, se fazemos um flashback das caixas-pretas, encontramos


incertezas, trabalho, decisões, concorrências, controvérsias que são as tônicas
de quando “as coisas” não estão ainda estabilizadas.4
Entendemos que as ocasiões de conflito, negociação e debates se tornam
produtivas quando os agentes envolvidos nos debates compreendem que estão
em desacordo e trabalham a partir dessa perspectiva.
Trata-se de um cenário que descreve a prática da pesquisa pela perspectiva
de uma crítica dos processos que a engendram, as quais, materializadas nos
registros e documentos de projeto, mostraram-se para nós como um mote para
discutir os métodos de pesquisa empregados para o desenvolvimento do jogo.
Tendo em vista a opção por comunicar visualmente a produção e partilha das
informações e a construção das referências da pesquisa.
Em vista dos acordos e conflitos que demarcam os processos de pesquisas
interdisciplinares, investimos em explorar o potencial crítico, estético e discursivo
das documentações de projeto, tendo em vista os seguintes objetivos: (i)
proposição de estratégias de projeto; (ii) elaboração de mecanismo de tradução e
partilha dos saberes disponibilizados pelos grupos de pesquisa; (iii) recombinação
e conciliação de interesses relacionados aos propósitos de cada núcleo de
pesquisa; (iv) encontrar uma definição de cidade que articule dimensões politicas
e culturais e o potencial de se tornar tema e suporte (plataforma) do jogo.
Em torno destes propósitos da pesquisa, recorremos aos pensamentos
de Salles (2013) e Latour (2001), quando falam, respectivamente, sobre o
documento de processo e diagrama, para apresentar um relato sobre os modos
que buscamos para relacionar os processos da arte, da ciência e do design,
no contexto da nossa investigação. Seja para buscar fundamento para o
desenvolvimento das interfaces gráficas, para a construção de personagens e das
narrativas, para a definição das missões e mecânica; mas também para definir
os parâmetros do processo do projeto, tendo em vista o pressuposto das ações,
da materialidade da comunicação e o reconhecimento de uma mais valia do
conhecimento tácito que ancora a prática projetiva.

3. LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 14.
4. Idem, p. 16.
94 das artes e seus percursos

A produção do jogo envolve uma preocupação em relacionar os processos


da arte, do design e da ciência em relação com as dinâmicas cotidianas da
cidade, para validar as nossas ações de pesquisa – processos técnicos, científicos
e poéticos – a partir dos questionamentos reflexões sobre as relações entre
desenvolvimento tecnológico e social. Nesse sentido, as noções de documento
de processo e diagrama, como apresentadas por Salles e Latour, possibilitam
uma abordagem da pesquisa pelo viés das construções cotidianas que envolvem
nossas práticas como pesquisadores, enquanto artista, cientista e designer.

2. Contexto da pesquisa

Os dispositivos móveis (smarthphones, tablets) de comunicação são hoje


artefatos dotados de recursos que possibilitam a conexão entre espaços físicos
e virtuais, promovendo formas de comunicação que têm remodelado nossos
potenciais perceptivos e cognitivos; seja pela proposição de novas visualidades
ou pela promoção de novas formas de articulação dos espaços. Os jogos móveis
locativos, que surgem da relação entre a já consolidada cultura dos viedogames
e a emergente cultura da mobilidade com as mídias locativas (Lemos, 2010),
além de estimularem o desenvolvimento das nossas habilidades cognitivas,
na nossa pesquisa, são explorados a partir do seu potencial para promover a
descoberta de espaços físicos confinados na cidade, pelo apagamento da sua
história. O jogo “memória Fortaleza” faz uso dos atributos do jogo pervasivo
para propor intervenções temporárias nos espaços urbanos de Fortaleza pelo
viés do uso de conteúdos multimidiáticos (audio, vídeos, fotos, textos, objetos
virtuais), associados à localização (ruas, praças, monumentos, edifícios etc) e a
cultural oral (relatos da cidade), para abordar o patrimônio material e imaterial
da cidade de Fortaleza.
Esse jogo se insere na categoria serious game,5 tem como finalidade
promover a educação patrimonial, e investe na identificação de novos cenários
de uso e aplicação de jogos que extrapolam a ideia de entretenimento, mas
sem abrir mão dele. Araujo (2012), ao definir serious games, sugere que para
uma melhor aplicação desse tipo de jogo, sobretudo quando aplicado para
fins educacionais, convém o processamento das informações em um contexto

5.  O que separa serious games do restante [dos jogos] é o foco em um resultado de aprendizado
específico e intencional para alcançar mudanças de performance e comportamento sérias,
mensuráveis e continuadas. (CARRYBERRY, 2008, apud ARAÚJO, Maicon Hackenhaar
de. “Jogo e serious games: conceito e bons princípios para análise do jogo SpaceCross, da
Volkswagen”. Anais: XI SBGames – Brasília – DF – Brasil, nov. 2012).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 95

que possibilite acolher elementos da realidade dos jogadores como dado da


jogabilidade; ou seja, ter como base a cultura e a identidade dos jogadores como
parâmetros para pensar as missões e ações do jogo.
A ideia de integração entre cultura, identidades e tecnologia, indicada
na definição de Araujo (2013), mais do que um requisito do projeto mostrou-
se como parâmetro para o seu desenvolvimento, em vista da demanda de
integração entre os saberes, sujeitos e dispositivos que definem os núcleos de
pesquisa envolvidos no desenvolvimento do jogo: plataforma de autoria de
jogos (realizada pelo Great),6 Inventário do Patrimônio Material e Imaterial
de Fortaleza (realizado pelo CPHC)7 e o Documento de desenvolvimento do
Jogo (realizado pelo LabRp e ActLab).8

2.1 Ferramenta de autoria

O jogo Memória Fortaleza está sendo produzido a partir de uma


plataforma de autoria, desenvolvida por pesquisadores do Great, capaz de criar
jogos que utilizem a localização do jogador, e ao mesmo tempo apliquem a
realidade aumentada apresentando imagens, vídeo e objetos em 3D. Dentre os
objetivos dessa ferramenta o principal é possibilitar que não programadores das
mais diversas áreas, como professores de história, geografia, biologia, possam
criar seus próprios jogos, monitorar e controlar o estado dos jogos que venham
a ser armazenados pela mesma. A sua arquitetura está dividida em três partes:
editor, cliente (aplicação do jogador), servidor. No editor o usuário terá a opção
de definir os grupos participantes do jogo e as missões a serem realizadas, formas
de pontuação, ações, vitória etc. A segunda parte da arquitetura é a aplicação
do jogador (APP Cliente), que oferece acesso à lista de jogos disponíveis criados
pela ferramenta; ao iniciar um jogo, essa aplicação será responsável por capturar
o contexto do usuário (a localização) e em seguida a renderização das informações
que constituem as missões. O servidor define onde ficarão armazenados todos os
dados dos jogos e dos jogadores. Essa camada é responsável por gerenciamento
de todas as execuções de jogadores, desde o compartilhamento de mensagens,
as localizações e eventos disponíveis.

6. Grupo de Redes de Computadores, Engenharia de Software e Sistemas – UFC.


7. Coordenação de Patrimônio Histórico e Cultural – Secretaria Municipal de Cultura de
Fortaleza.
8. Laboratório de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia – UFC.
96 das artes e seus percursos

2.2 Inventário

O Inventário do Patrimônio Histórico e Cultural de Fortaleza (IPHCF)


constitui a base de dados do jogo e define os parâmetros para o desenvolvimento
do roteiro, criação de personagens, narrativas e missões. Um inventário pode
ser definido como uma estratégia de preservação patrimonial, um instrumento
de conhecimento de bens culturais, seja de natureza material ou imaterial,
que subsidia as políticas de preservação do patrimônio cultural, como descrito
no projeto apresentado. O IPHCF está sendo desenvolvido em parceria com
o Departamento de História da Universidade Estadual do Ceará (UECE)
e a Coordenação de Patrimônio Material e Imaterial da Cidade de Fortaleza
(CPHC). Ele consiste no levantamento das manifestações humanas no
município, com suas devidas caracterizações, classificações e registros, a partir
da criação de um banco de dados georeferenciados, contendo, além da descrição
detalhada dos bens, outras formas de registro e catalogação: croquis, fotografias,
áudios, videos.
Essa base de dados tem por função alavancar estratégias para a preservação
do patrimônio cultural, uma salvaguarda que assegura a análise do conjunto
de bens culturais antes de possíveis ações depredatórias. Para conhecer e
reconhecer os valores patrimoniais históricos e culturais da cidade e garantir
uma proteção antecipada a eventos prejudiciais à memória e história.
O conteúdo da primeira fase de desenvolvimento do IPHCF consiste da
descrição e registro de sete praças localizadas na área central de Fortaleza, as
edificações e personagens a elas relacionados. São elas, Praça do Ferreira, Praça
dos Leões, Passeio Público.

2.3 Documentação do jogo

A proposta do jogo está apresentada em um documento (Game design


documento: GDD) cuja função é definir um ponto de convergência da ideia
do jogo para toda a equipe e tem também o papel de comunicar e guiar os
diversos agentes envolvidos no seu desenvolvimento (sujeitos, procedimentos,
tecnologias). Descreve as características do jogo, desde informações básicas de
premissa, conceitos, passando por personagens e cenários, até informações mais
detalhadas como as missões, interfaces, áudio, animações.
Esse documento foi desenvolvido pelos pesquisadores do ActLab com a
colaboração dos pesquisadores da CPHC. Nosso jogo tem como tema gerador o
conceito de ars memorativa; estratégia inventada na época anterior à imprensa
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 97

que ensina a memorização valendo-se de procedimentos que imprimem a


memória nos lugares e imagens. Tendo como espaço de jogabilidade a região
central da cidade, visa a promover uma experiência da cidade a partir da
proposição de ações ancoradas nas possibilidades do georeferenciamento e da
Realidade Aumentada, para relacionar diferentes temporalidades de Fortaleza
às ações presentes dos jogadores – desenvolvidas a partir das missões propostas.
O jogo é constituído de três fases as quais relacionam os objetivos do jogo
às formas de interação com o patrimônio material e imaterial da cidade. São
elas:

1. Identificação: conhecer os locais e personagens;


2. Preservação: reverter ocorrências que degradam a memória;

3. Resgate: alimentar (ampliar) a memória da cidade

Cada uma dessas fases é constituída por capítulos, estas, por sua vez, das
missões. Essa estrutura, descrita pelo viés de um gráfico, tem servido de parâmetro
para conectar as ferramentas oferecidas pela plataforma e os conteúdos gerados
e disponibilizados no Inventário, mas também como um meio de refletir sobre as
estratégias do design no desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares.
A produção do conteúdo do GDD partiu de ações colaborativas ancoradas
no uso de diagramas tendo em vista a possibilidade que oferece de colocar frente
aos olhos conceitos, formas e ideias ainda não partilhados e aqueles a serem
construídos. A opção por essa ferramenta fundamenta-se no caráter metaprocessual
do diagrama, como descrito por David Sperling (2013), ao afirmar que por ser
um ícone, representa por semelhança e provê um mapeamento (representação)
do processo que investiga.
Consideramos também a definição de diagrama trazida por Hoffmann
(2013), como estratégia de construção de representações externas do
pensamento baseadas em regras e convenções de um sistema de representação
e sua função de “facilitar processos de pensamento individual ou sociais em situações
que são complexas demais para serem conduzidas exclusivamente por meios cognitivos
internos”.9

9.  HOFFMANN, M. H. G. “Cognição e pensamento diagramático”. In: QUEIROZ, João;


MORAES, Lafayette de (orgs.). A lógica de diagramas de Charles Sanders Peirce: implicações em
ciência cognitiva, lógica e semiótica. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.
98 das artes e seus percursos

4. Documentação de projeto e produção de referência

O uso dos diagramas para a criação de estratégias de pesquisa


apresenta-se como resposta à estratégia de contar com a visualidade para
a apresentação de conceitos e saberes – como proposto neste projeto – e
envolve reflexões sobre as documentações de processos-projetos no design,
na arte e na ciência.
No contexto de desenvolvimento do design, podemos falar sobre os
documentos de projeto como um conjunto de símbolos a partir dos quais o
designer procura fixar e comunicar suas intenções, sem perder de vista que para
o seu desenvolvimento supõem-se processos de tradução – que envolvem uma
produção material voltada para o reconhecimento e integração de conhecimentos
distintos – e operações epistêmicas que qualificam a prática projetiva como um
contexto de experimentação e validação de novas ferramentas, tecnologias e
métodos de projeto. Para Schneider (2010), os documentos de projeto seriam
o meio a partir do qual o designer tornaria visíveis e partilháveis os novos
conhecimentos que se produzem através do design.
O autor recorre à noção de desenvolvimento para qualificar esses
conhecimentos como inovação: a introdução de novos processos e produtos a
partir do desenvolvimento planejado, criativo, e sistemático de visualizações, em um
primeiro momento, de processos de interação e de mensagens de diferentes autores
sociais, e em um segundo, das diversas funções dos artefatos e a sua adequação às
necessidades dos usuários ou seus efeitos sobre eles.10 Segundo o autor, diante das
questões que ao designer se apresentam hoje, parece cada vez mais necessário
pensar novos sistemas de representação para a elaboração de documentos
que reúnam e traduzam os conhecimentos implicados no desenvolvimento do
projeto e tornem disponíveis os resultados de pesquisas através do design.
Na medida em que, como afirma o autor, já não é mais possível solucionar
problemas complexos de projeto sem atividades prévias e paralelas de pesquisa
e uma produção material-visual que integre diferentes modos de produzir e
partilhar conhecimento.
Podemos supor que a partir de um estudo comparativo entre os
documentos de projeto de design, desenvolvidos em diferentes períodos – desde
o aparecimento do design como prática e disciplina, quando da incorporação
da prática artística nos processos industriais de produção, século XIX – ficariam

10. SCHNEIDER, B. “Design: pesquisa e ciência”. In: Design uma introdução. São Paulo: Blucher,
2010, p. 274.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 99

evidentes as mudanças que se operaram nas formas de relacionar tecnologia e


sociedade.
Entre uma concepção de design tramada pela demanda de superação das
formas pré-industriais de produção e aquela apresentada por Flusser (2007),
como aquele lugar em que arte e técnica caminham juntas, com pesos equivalentes,
tornando possível uma nova forma de cultura (84), identificamos que hoje o design
se ajusta menos a uma visão determinista de projeto – ancorada nas rubricas da
competência e da construção de futuros baseados na eficácia tecnológica – e
mais a uma noção de processo de in-formação, de doação de forma.11
Em texto publicado em 1965, Argan (2010) aborda um momento crucial
de transformação no modo de pensar a prática planificada – definida pelo
aparecimento do design como disciplina ao marcar a separação entre concepção
e produção – ao anunciar uma crise irreversível da noção de projeto tendo
em vista os impactos das novas tecnologias na produção da arte, no período.
Segundo ele a sedução da arte pela tecnologia teria colocado em xeque a
própria artisticidade da arte, já que a tecnologia, como utopia realizável, teria
despido a arte do seu impulso crítico. Nesse sentido procura articular perguntas
em torno da possibilidade de uma produção artística em uma sociedade em que
a tecnologia se apresenta como autoridade – a qual ele identifica como anti-
história.

O insucesso do desenho industrial, que entretanto havia iniciado


brilhantemente a colaboração de arte e indústria, demonstrou que a
tecnologia industrial, ao menos nessa fase do seu desenvolvimento, quer
o comando absoluto e não admite em seu próprio processo a intervenção
inventiva da arte.12

Concordamos com o autor quando afirma que projetar seria um “ato


histórico por excelência”, ao descrever o projeto como resultado de uma
experiência calcada no passado como condição essencial para a construção de
um futuro. Sobretudo como relacionado aos dois momentos distintos previstos
pelo processo do projeto e como realizado para a configuração do objeto:
um momento anterior à sua execução (processo de projeto ) e um momento
posterior (dimensão de uso e significados).

11. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
12. ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000, p. 22.
100 das artes e seus percursos

Nesse mesmo texto Argan recorre à história para assegurar uma


continuidade entre processo e produção para buscar uma concepção de projeto
que garanta a construção do mundo, em contraposição àquela que se presta
como forma de programas forjados pela tecnologia. Oferece como resposta
o conceito de projeto como Obra aberta (eco), a partir de uma perspectiva
do projeto como um processo dinâmico e flexível, aberto à variabilidade do
contexto e essencialmente criativo (work in progress), que inauguraria uma
nova lógica da invenção e promoveria a conexão entre os processos sociais e
tecnológicos.
Essa noção de projeto parece presente nos recursos conceituais
empregados por Salles (2013) ao abordar os processos da arte contemporânea
a partir da noção de documento de processo. Com base na teoria dos signos
de Peirce, Salles descreve esses documentos como índices do fazer criativo,
relatos materiais dos percursos do artista em direção à obra.13 A partir do olhar do
crítico de processo, possibilitariam a identificação de um pensamento de projeto
não determinista que pauta o fazer do artista, a partir de uma lógica capaz de
enfrentar a imprecisão e a mobilidade – que engendra a prática investigativa –
ao se ancorar na materialidade da linguagem e na invenção de dispositivo de
materialização das ideias.
A partir do conceito de rede de criação, Salles (2006) oferece uma
concepção dinâmica de projeto ao falar da criação a partir dos agenciamentos
recíprocos entre sujeito e objeto (artista e matéria) e um movimento dialético,
entre rumo e vagueza, que caracterizaria o fazer do artista; que facultaria ao
projeto um lugar para a experimentação.
Latour fala sobre documentação e produção de referência na ciência, a
partir dos termos inscrição, transdução, laboratório e referência circulante, em
um artigo no qual apresenta um relato de acompanhamento de uma expedição
científica na floresta amazônica. Fazendo uso de uma câmera fotográfica, de
uma observação acurada de filósofo e de um caderno de notas, o autor descreve
de que modo um grupo de pesquisadores – fazendo uso de aparelhos e diagramas
– enfrentaram a questão sobre se teria o cerrado avançado sobre a floresta ou se
teria a floresta avançado sobre o cerrado.
As operações de pesquisa que descreve – o que envolveu a descrição
de processos de resultados da pesquisa de campo até a produção de papers
– são argumentos para falar sobre o projeto como estratégia de redução e de

13. SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios,
2013, p. 26.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 101

construção de territórios de passagem – série de transformações sofrida pelas


coisas em direção à linguagem; como ele descreve a produção científica.
Relata os processos de extração de diagramas de uma confusão de plantas,
ao identificar sínteses operadas pela construção de contextos de reflexão-
produção (Laboratórios), de cadeias de distintas traduções (pelo uso dos
equipamentos e aparelhos), de inscrições (mapas, tabelas, gráficos) e a conexão
entre atores humanos e não humanos (redes de pesquisa).
No relato de Latour, o conceito de diagrama não está articulado somente
pelas construções gráficas, mas presente em todos os processos de reconhecimento
e de interpretação de informações de campo, como, por exemplo, na definição
de dinâmicas que transformam em laboratório uma mesa de bar, a floresta em
biblioteca, a partir da etiquetagem das árvores e do esquadrinhamento do solo.
As argumentações de Latour e Salles apontam para as possibilidades de
acolher como documento de projeto as ações sobre os objetos, a forma de uso
de uma ferramenta, a transformação do material, como recurso para transportar
para o interior dos processos de investigação as informações do mundo, bem
como devolvê-los como inscrição – comentário – a partir da proposição de
novos contextos

A produção de informação permite, portanto, resolver de modo prático,


por operações de seleção, extração, redução, a contradição entre a presença e a
ausência num lugar. Impossível compreendê-la sem se interessar pelas instituições
que permitem o estabelecimento dessas relações de dominação, e sem os veículos
materiais que permitem o transporte e o carregamento.14

O parâmetro da materialidade, para pensar a prática da pesquisa, pelo


viés da descrição dos documentos de projeto, evidencia que antes das ações
não vêm os conceitos – ou o inverso – ambos se movem para frente e para trás,
ao longo das cadeias de mediações e de transformações que definem os processos de
investigação. Como foi possível constatar ao refletir sobre a estruturação do contexto
para a produção do jogo.

14. LATOUR, Bruno. A esperança Pandora: Ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru:
Edusc, 2001, p. 42.
102 das artes e seus percursos

5. Considerações finais: em torno do relato dos processos de projeto

A relação entre representação e processo, como apresentada neste ensaio,


procura ressaltar o caráter indutivo do nosso processo de pesquisa, a partir de
um relato dos percursos conceituais realizados para a proposição de mecanismos
de apropriação e uso das informações disponibilizadas por cada um dos núcleos
de pesquisa. Interessa-nos falar sobre os percursos realizados para a validação
de estratégias de conexão entre tecnologia e cultura e pensar o projeto como
dispositivo que transporta, pelo viés da visualidade, as informações do mundo
para nossa rede de pesquisa.

Para identificação dos potenciais de nossa pesquisa pareceu necessário


inventar mecanismos que tornassem visíveis as conexões entre os saberes
trazidos por cada um dos núcleos, tendo em vista os seguintes parâmetros:

i. O inventário: Identificamos seu potencial para promover novas


experiências da cidade a partir da disponibilização de uma produção material-
imaterial organizada em um banco de dados georeferenciado. A partir
deste parâmetro o jogo se apresenta como um ponto de convergência entre
experiências passadas na cidade e aquelas (futuras) que serão promovidas pelas
ações do jogo.
ii. A plataforma: Identificamos seu potencial para buscar uma equivalência
entre projeto e ação, bem como a oportunidade para refletir sobre a inserção
de novas tecnologias nas dinâmicas sociais. A partir deste parâmetro o jogo se
apresenta como uma oportunidade para refletir sobre as relações entre propósito
e finalidade, para a proposição de métodos de projeto.
iii. O GDD: Identificamos o seu potencial de articular as estratégias do
design pelo viés de um conjunto de práticas materiais ancoradas na produção
de diagramas e na construção de experiência. A partir deste parâmetro o jogo
se apresenta como forma de validação de estratégia de integração de saberes
distintos, relacionados à educação patrimonial, comunicação e criação.

A partir destes tópicos identificamos que os documentos de projeto – um


conjunto de gráficos, planos e mapas – são os meios para relatar nossos próprios
processos de pesquisa, para traduzir e partilhar ideias. O registro das atividades
realizadas durante uma série de encontros – para a simulação de situações do
jogo, a construção de fluxogramas para a previsão de novas etapas de trabalho,
a construção colaborativa de gráficos de visualização das redes saberes que
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 103

tornariam a pesquisa possível – possibilitou rever nossas ações, avaliar o que


havia sido produzido e definir novo princípios (regras) para ações futuras.
Por isso optamos por tencionar os pressupostos oferecidos pelas
metodologias de jogo já sedimentadas, ao incluir as dinâmicas do cotidiano (da
pesquisa) e as dimensões experimentais do fazer arte, ciência e design, para a
proposição de novos parâmetros de abordagem das tecnologias empregadas em
relação aos conceitos de interação, jogabilidade e interface.

6. Referências bibliográficas

ARAÚJO, Maicon Hackenhaar de. “Jogo e serious games: conceito e bons


princípios para análise do jogo SpaceCross, da Volkswagen”. Anais: XI SBGames
– Brasília – DF – Brasil, nov. 2012.
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação.
São Paulo: Cosac Naify, 2007.
HOFFMANN, M. H. G. “Cognição e pensamento diagramático”. In: João
Queiroz, Lafayette de Moraes (orgs.). A lógica de diagramas de Charles Sanders
Peirce: implicações em ciência cognitiva, lógica e semiótica. Juiz de Fora: Editora
UFJF, 2013.
LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade
afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
______. A esperança Pandora: Ensaios sobre a realidade dos estudos científicos.
Bauru: Edusc, 2001.
LEMOS, André. “Jogos móveis locativos: Cibercultura, espaço urbano e mídia
locativa”. São Paulo: Revista USP, n. 86, 2010.
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São
Paulo: Intermeios, 2013.
______. Redes de criação: Construção da obra de arte. Vinhedo: Ed. Horizonte,
2006.
SCHNEIDER, B. “Design: pesquisa e ciência”. In: Design uma introdução. São
Paulo: Blucher, 2010.
104 das artes e seus percursos

SPERLING, David. “Diagrama e processo. O diagrama como processo”. Anais


do XVII SIGraDi Valparaiso, Chile. 2013.
WILSON, Stephen. “Arte como ciência: A importância cultural da pesquisa
científica e o desenvolvimento tecnológico”. In: Arte e vida no século XXI. São
Paulo: Editora Unesp, 2013.
Da filosofia e da arte contemporâneas.
Para uma crítica diagramática da
estética

Eric Alliez
Tradução de Cíntia Vieira da Silva

Meu programa de pesquisas ainda em progresso – Para uma crítica


diagramática da estética – é precedido de um título que eu desejo menos
“genérico” do que portador de uma carga transgenérica introduzida em nome do
contemporâneo entre a filosofia e a arte contemporânea. É que, também, a primazia
manifesta dada a esta última no título de minha intervenção – Da filosofia e da
arte contemporâneas – está associada a uma “filosofia contemporânea” que só
pode contestar uma arte contemporânea do espírito do tempo tornado o cenário-
laboratório das creative (e sempre cultural) industries. E isso no momento mesmo
em que a dita filosofia contemporânea alveja a arte contemporânea como um
“conjunto de partida”, cuja definição intensiva supõe-se fazer movimento Para
uma crítica diagramática da estética. Com retroação sobre uma filosofia que
a “crítica da estética” fará diferir de si afastando-a de saída de sua abordagem
a mais comum nas matérias artísticas, a saber, a estética como filosofia da arte.
Tratar-se-ia, portanto, menos de produzir uma filosofia da arte contemporânea
do que de se colocar no entre-dois da Arte e da Filosofia com vistas a introduzir
aí uma oscilação, um batimento suplementar entre uma filosofia contemporânea
da arte contemporânea e uma arte contemporânea da filosofia contemporânea.
O contemporâneo assim duplamente visado e dividido em si mesmo não é
assunto de condição filosófica (o que poderia querer dizer exatamente uma arte
contemporânea posta sob condição da filosofia contemporânea?) mas do problema,
acirrado pela problematização recíproca das duas entradas postas em quiasma
para demolir suas categorias assim como as partilhas disciplinares registradas
ou afiliadas. Pois o problema é decididamente aquele do “contemporâneo”
cuja noção comum afasta, de seu pouco defensável a priori/a posteriori, toda
temporalidade crítica “diferencial” de e na arte ou na filosofia. É preciso ousar
que o conceito do contemporâneo só valha pela construção político-especulativa
106 das artes e seus percursos

(seguramente um monstro!) que determina sua dramatização, e o plano de


defasagem com o espírito do tempo que ele traça a partir de uma zona de fratura
introduzida no que Giorgio Agamben chama de “a homogeneidade inerte do
tempo linear”.1
Podem-se inferir daí três consequências cujos efeitos podem e devem ser
de direito distinguidos em arte/filosofia, mas, de fato, conjugados ao performativo
presente de uma “arte” do contemporâneo.
Primeira consequência, a mais imediata: o contemporâneo só faz sentido
ao nos engajar na operação de uma crítica da identidade do presente (o
estado de coisas) e de uma relação clínica com as alteridades portadoras de
uma acontecimentalidade nova (virtualidade), cujos signos são abafados sob a
forma histórica da presença (e da onipresença da atualidade). Uma maneira de
urgência e de absoluto do pensamento afirma-se aí sob a figura do “intempestivo”
em uma experimentação política do presente cuja implementação deriva
da heterogênese do pensamento às voltas com os devires os mais reais que
condicionam seu surgimento.
Essa primeira efetuação do contemporâneo se estabelece na pragmática
de um pensamento em ato, a um só tempo transcategorial e transdisciplinar.
Retomando Deleuze e Guattari na propriamente última página do capítulo
“Arte” de O que é a filosofia?: “Cada elemento criado sobre um plano apela
a outros elementos heterogêneos, que restam por criar sobre outros planos”2
comunicando sobre um mesmo plano de consistência ontológica sempre
singularmente apreendido e modulado para construir um real por vir a partir
dos pontos de criação e de potencialidade do presente. Essa transformação das
relações que institui e investe o pensamento como meio da arte e da filosofia,
mas em excesso sobre suas formas constituídas (uma arte transcategorial, uma
filosofia transdisciplinar em intersecção com todas as ciências), eu tentei realizá-
la uma primeira vez com Jean-Claude Bonne no cabeçalho de La Pensée-Matisse3
e na perspectiva ainda em gestação de uma arqueologia da arte contemporânea.
Tratava-se então de pensar novamente a radicalidade da ruptura que Matisse,
na longa duração de meio século, ousa na pintura e com a Forma-Arte definida
pela estética do “pictórico” no qual ele substitui o decorativo em um sentido

1. AGAMBEN, G. Qu’est-ce que le contemporain ?, trad. franç., Paris: Payot, 2008, p. 37.
2. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Qu’est ce que la philosophie ?, Paris: Éditions de Minuit, 1991,
p. 188. [G. Deleuze, F. Guattari. O que é a filosofia?, São Paulo: Editora 34, 1997 (2ª edição),
p. 255. Tradução de Bento Prado Jr. e Alonso Muñoz.]
3. Cf. ALLIEZ, E.; BONNE, J.-Cl. La Pensée-Matisse. Portrait de l’artiste en hyperfauve, Paris, Le
Passage, 2005.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 107

“bio-energético” tão inédito quanto a relação ao entorno que dele decorre. O


decorativo faz fundo aí sobre um pensamento vitalista de espírito bergsoniano
com desenvolvimento construtivista e prolongamento pragmatista (donde a
inserção, menos gerativa que transformacional, da filosofia deleuziana).
Terceira e última consequência: O motivo do contemporâneo, desse
modo estrategicamente reinterpretado, encontra-se determinado em relação
a um tempo que é o da colocação em devir da modernidade. Ele pede para ser
analisado em uma dupla perspectiva, genealógica e arqueológica. Genealógica:
o contemporâneo se instrui e se pensa a partir dos anos 1960 e a crise total
de todos os modelos de determinação, crise contemporânea da abertura de
novos campos de possiblidades e de virtualidades portadoras dessa mutação
social à escala do mundo que se traduziu em “des-definição” da política como
esfera separada da vida. Separação remetendo em última instância à política
profissional que tinha posto as vanguardas a girar entre a arte como política e
a arte política. Essa contemporaneidade pode se resumir em uma fórmula: “68
teve lugar”, e esse lugar é biopolítico pelas questões micropolíticas de subjetivação
que ele avança. Poder-se-á observar aqui que a “des-definição da arte” (para
retomar a expressão famosa de Harold Rosenberg) – e sua motivação primeira
em “arte e vida confundidas” – é por sua vez contemporânea da des-definição
da filosofia tal como um Deleuze dela estabelece o princípio nesse ano de 1968:
“Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de Filosofia
como há muito tempo se faz...”. Interessa-nos particularmente a maneira pela
qual ele fixa as modalidades dela: “[...] A pesquisa de novos meios de expressão
filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à
renovação de outras artes [...]” para melhor fazer ressoar aí um esperado com o
look/ L.H.O.O.Q.4 tão duchampiano: “Seria preciso que a resenha em História
da Filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e que comportasse a modificação
máxima próxima do duplo. (Imagina-se um Hegel filosoficamente barbudo, um
Marx filosoficamente imberbe, do mesmo modo que uma Gioconda bigoduda)”.5
Aquém do sentido propriamente deleuziano de uma Diferença e repetição da
filosofia, essa colagem incita a passar ao plano arqueológico para reescrever
a modernidade de um século que começa com a “crise dos fundamentos”

4. Nota da tradutora: A pronúncia da sigla que dá título à tela de Duchamp com a Monalisa de
bigode seria próxima da frase elle a chaud au cul, que é uma gíria de baixo calão e poderia ser
traduzida como “ela dá para todo mundo”, segundo sugestão do autor.
5. DELEUZE, G. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, p. 4 [DELEUZE, G. Diferença e
repetição. 2. ed. revista e atualizada. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2006, p. 18.]
108 das artes e seus percursos

científicos e prossegue em uma crítica filosófica da representação atacando


todos os dispositivos formais e categoriais que puderam incidir sobre os regimes
específicos de identidade objetiva e/ou subjetiva.
Reencontra-se aqui Duchamp, que abusa dessa crise para desencadear
sua “física divertida” (de ambição quadridimensional) em 3 Stoppages-étalon,
significando uma mudança radical de paradigma da Ideia de arte submetida a
uma tripla paralisação do padrão (da) estética. O que mostra suficientemente
que a arte como experiência, por ele elevada ao patamar de um protocolo
(pseudo-)experimental, não está menos implicada que a filosofia na descoberta
e na exploração de todas as forças que agem sob e contra a representação do
idêntico na lógica da recognição. Mas não é então também, como o tinha ainda
afirmado Deleuze, que a arte – e a arte contemporânea (Deleuze “cita” a Pop art
*) – pode, mesmo, indicar um “caminho” à filosofia até no questionamento de sua
identidade formal (a Forma-Arte) distribuída em gêneros (a Forma-Pintura...)
e pela multiplicação dessas obras por natureza problemáticas que se ajeitam mal
sob a categoria pós-romântica, ainda estética, de um “pensamento-artista”? De
modo que a fórmula arqueológica do contemporâneo poderia se enunciar: “o
século XX teve lugar6”. E nos embarcar – para além de Deleuze – Deleuze – em
um fora que é também aquele da filosofia-filosofia apontando o que “ao pé da
letra, os filósofos nunca fizeram, mesmo quando falavam de política, mesmo
quando falavam de passeio ou de ar puro”: “conectar o pensamento diretamente
e imediatamente ao fora”.7 Então, Deleuze tomado do Efeito-Guattari, Deleuze
que escreve essas linhas marcadas pelo “pensamento nômade” do pensador
do intempestivo (Nietzsche), e que, avançando até a ponta extrema de seu
pensamento (com Guattari), pode até mesmo enunciar que “o modelo do pintor
é a mercadoria”.8 O que não deixa de complicar a ideia de um acoplamento
direto e imediato no fora...

* * *

6. Retomamos aqui a proposição de Natacha Michel colocada como epígrafe-dedicatória do


livro de Alain Badiou, Le Siècle, Paris, Seuil, 2005.
7. DELEUZE, G. “Pensée nomade” [1972/1973], repris dans Idem, L’Île déserte et autres textes.
Textes et entretiens 1953-1974, Paris: Minuit, 2002, p. 356. [DELEUZE, G. A ilha deserta.
“Pensamento nômade”. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 323. Tradução de Milton Nascimento.]
8. DELEUZE, G. “Le froid et le chaud” [1973], in: Ibidem, p. 344 (première publication
sous le titre: Fromanger, le peintre et le modèle). [Idem. “O frio e o quente”, p. 344. Tradução
de Christian Pierre Kasper].
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 109

A perspectiva de uma arqueologia da arte contemporânea desde então


deveria se afirmar em um singular, mas necessário deslocamento de visão do
“século das vanguardas”. Se se tratasse, com efeito, de investir a crise da ideia
de imagem aberta pela arte moderna9 mostrando que esta iria produzir todos os
seus efeitos na fenomenal des-continuidade da arte contemporânea, esta última
parecia-me depender da ruptura que Matisse e Duchamp operam, em frentes
revertidas, com a fenomenologia pictórica da imagem estética. Produzindo essa
ruptura, Matisse e Duchamp determinarão juntos menos os dois paradigmas
fundadores da arte contemporânea que sua colocação em tensão, não no nível
(genealógico) das práticas através das quais ela se constitui, mas no plano
(arqueológico) dos modos de construção de sua autoproblematização no campo
de forças assim criado entre:

– um vitalismo construtivista (ou seja, processual e relacional no sentido


matissiano de um construtivismo decorativo) levando a pintura para fora dela
mesma, encenando a defenestração da Forma-Pintura para exceder o mundo
contemplativo do quadro e tomar posse do entorno que já está em excesso
sobre toda site specificity pelas forças do Fora que ela mobiliza (“elsewhere as well
as anywhere else”),10 como avança com arrependimento Dominique Fourcade
apontando a lógica “não arte” impulsionada pelos guaches recortados de
Matisse;
– e um construtivismo do significante: é Duchamp que começa por reduzir
a Forma-Arte aos jogos de linguagem sobre a arte a fim de subverter seu regime
estético cortando-a das artes ditas plásticas por uma reversão ready-made
da perspectiva bergsoniana do fazendo-se do qual se apossa um significante
literalizado assim como falicamente desencadeado contra a dialética do visível
e do invisível. E por isso mesmo, desde então esta informa o desejo de imagem
mantendo exposto na vitrine das grandes lojas. O Fora passou para a vitrine da
mercadoria tornada absoluta. Fresh Widow: rebatida sobre a vitrine refletindo o
olhar como um espelho (o onanismo na vitrine), a janela-perspectiva-da-pintura
torna-se cega por e para o voyeur-consumidor que deve, segundo a visada
duchampiana, refletir o conjunto do ciclo produção-circulação-consumo (da
arte) sobre o circuito mais curto valendo por curto-circuito da “masturbação”
estética.

 9. Cf. É. Alliez (com a colaboraçãode J.-Cl. Martin), L’Œil-Cerveau. Nouvelles histoires de l’art
moderne, Paris: Vrin, 2007.
10. Nota da tradutora: Em outro lugar assim como em qualquer outro lugar.
110 das artes e seus percursos

Mas a verdadeira reinvenção de Duchamp à qual dão lugar os anos


1960 confirma por seu turno o obstáculo de uma projeção “continuísta” da/
na arte contemporânea, imprimindo uma volta a mais ao aviso foucaultiano
segundo o qual são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam”.11 Está longe de ser indiferente que essa reformatação (de Duchamp)
participe da desconstrução do campo artístico em termos políticos exacerbados
pela institucionalização das vanguardas históricas, inclusive na configuração
mais ready-made dessa extrema modernidade; institucionalização que poderá
igualmente se tornar o fator determinante de uma crítica “institucional” (avant
la lettre)12 do “mito Duchamp” e de uma substituição da linhagem matissiana
(toda a importância do trabalho de Daniel Buren liga-se ao fato de ele conjugar
essa dupla modalidade). Que ela vá de um radical pós-Matisse surgido de um
inevitável pós-Duchamp é confirmado pela retomada a mais experimental que
exista da questão da arquitetura como significante social.13 Ela vai determinar
ao mesmo tempo a ontologia espacial da arte contemporânea e a reabertura
ontológica da arte como questão transcategorial com efeito pós- ou trans-mídia
(como, por exemplo, Hélio Oiticica e, sobretudo, Gordon Matta-Clark para a
questão do site/não site14). Tudo se passa como se a exposição problematizante
do “site” na negociação da passagem (a mais arriscada) da plenitude viva
da experiência estética (Art as experience, segundo o título-guia do livro de
John Dewey) à arte como experimentação extra- ou não estética determinasse a
orientação contemporânea da arte do lado da crítica e da clínica da organização
semiomaterial do tempo presente. O Pop teria sido um componente essencial
dessa passagem em sua ruptura com toda espécie de estética participativa.

* * *

Mas é preciso dizer enfim qual é o traço maior dessa descontinuidade que
se desdobra em síntese disjuntiva da arte contemporânea. Eu o reagrupei sob a
ideia de regime ou de agenciamento diagramático para distingui-lo do regime estético
da arte e da análise formal que sustenta sua por demais genérica indeterminação
constitutiva. A estética é, com efeito, em Jacques Rancière esse momento

11. FOUCAULT, M. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, p. 67. FOUCAULT, M. A


arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 55.
12. Antes que a assim chamada “teoria institucional” da arte tivesse sido criada.
13. Cf. P. Osborne, Anywhere or Not At All. Philosophy of Contemporary Art, Londres: Verso, 2013,
p. 141.
14. Nota da tradutora: a referência aqui é ao tipo de composição artística chamada de site specific.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 111

histórico-transcendental de revolução total própria a essas “novas formas de


visibilidade e de inteligibilidade que não definem jamais qualquer conteúdo
específico para estender ao infinito o domínio de sua condição de possibilidade
em uma poética superior da metáfora”.15 Imagens e enunciados remetidos um
ao outro, em uma incessante relação, ou não relação (a relação de uma não
relação), animada por uma poética paradoxal que amarra com o torniquete
de suas metáforas o “regime estético” o qual ela comanda clandestinamente.16
Ora, esse nome de “diagramática” ou de “diagramatismo”, aqui sinônimo de um
desfazer a imagem do regime estético da arte, é de início uma senha e uma palavra de
passagem17 engajando o uso que dele fazemos (“o problema não é de sentido, mas
apenas de uso”18) para passar das condições de possibilidade (de um livre jogo de
“formas-signos” ou de “frases-imagens”) às condições de realidade (das forças-
signos). É nesse primeiro sentido que o diagrama pode ser mobilizado como o
“localizador”19 de uma arte-pensamento contemporâneo o qual nós percebemos
todos que não é mais aquele de outrora, nem o de um “belo hoje” colecionando
tudo o que (se) passa nela.
Sobre esse ponto, é preciso lembrar que a lógica da posição estética tão
profundamente redefinida por Rancière em um pós-kantismo tendo recoberto
(pace Schiller) seu horizonte metapolítico para fazer vacilar as partilhas as mais
bem estabelecidas do sensível e do inteligível se desdobra “depois do fim do
século XVIII”. Ruptura fundadora com a ordem representativa e hierárquica
das artes, a estética é a tarefa de uma reconfiguração aberta da experiência
cortando o singular da arte do qual se poderia fazer, na nascente da purificação
greenberguiana, “contra-história” de sua modernidade artística ao remergulhá-
la na longa duração dos jogos da autonomia e de uma heteronomia “sincrônica

15. RANCIÈRE, Jacques. “Deleuze, Bartleby ou la formule littéraire”, in: idem., La chair des mots.
Politiques de l’écriture. Paris: Galilée, 1998, p. 187.
16. Sobre o paradigma literário do “regime estético” (e da estética rancièriana estritamente), ver
antes de mais nada Jacques Rancière, La parole muette, Paris, Hachette Littératures, 1998 (em
particular pp. 106-115 sobre a “metafísica da literatura” flaubertiana – e a conclusão em que o
avanço da literatura sobre as artes plásticas se torna o fato de uma “arte cética” capaz de viver
suas contradições).
17. Nota da tradutora: a expressão francesa para “senha” é mot de passe. O autor utiliza a
expressão mot de passe et de passage, que contém um jogo de palavras impossível de reproduzir
em português sem cair numa artificialidade extrema.
18. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-Œdipe. Paris : Éditions de Minuit, 1972, p. 92.
[DELEUZE, G & GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz
B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 108.
19. Nota da tradutora: a expressão em francês é tête chercheuse, um dispositivo de localização do
alvo utilizado em mísseis.
112 das artes e seus percursos

com todas as vibrações da vida universal”20 – sem, portanto, que a questão


do contemporâneo e da arte contemporânea emerja jamais como problema.
Mas não se passa o mesmo do lado simetricamente inverso da “inestética”
de Alain Badiou? Badiou coloca, com efeito, a constatação da saturação de
todos os esquemas empregados pelas artes do século XX em sínteses diversas
que só poderiam sobreviver à desaparição das vanguardas21 sob a espécie
contemporânea degradada de um “formalismo romântico”. A substituição
“afirmacionista” que propõe Badiou pode então inventar para si sob medida o
conjunto-alvo de uma arte contemporânea constituindo o objeto de “máximas”
(ou seja, de prescrições) em forma de requisição de um “querer artístico” que é
preciso “restituir [...] a seu rigor incorporal”22 para subtrair a “forma” (eidos) ao
romantismo da expressividade alimentando o “motivo multimidiático e de uma
arte multisensorial”.23 E denunciar a concepção deleuziana da arte reduzida à
encarnação do infinito no finito.24
Essa crítica da sacralização romântica da obra e do artista, Badiou a leva
adiante, com efeito, (em Le Siècle) em nome de uma “concepção integralmente
laicizada de infinito25 que, supostamente, esposaria as rupturas maiores da arte
moderna-contemporânea (da crítica da obra-quadro ao ready-made e à arte
minimalista). A lógica dessa posição se deixa resumir, nele, sob a noção de
“formalização experimental”. Então, o infinito não é mais capturado na forma,
ele transita pela forma finita que, tomada na animação de seu ato, é o infinito de que
a arte é capaz na multiplicidade de suas formalizações26. Reverteu-se assim a “forma
sensível da Ideia” em Ideia da forma como ato de formalização do sensível
em acontecimento da Ideia. A forma não é mais classicamente “colocação
em forma de uma matéria, da aparência orgânica da obra, de sua evidência
como totalidade”; ela se conforma ao ato de desmaterialização do sensível que
formaliza a Ideia como esse “infinito qualitativo” afirmando o que Hegel chama
ainda de a “qualidade pura do próprio finito”, e que é como o fundo “subjetivo”
da forma essencial das obras.

20. RANCIERE, Jacques. Aisthesis. Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Galilée, 2011, p. 306.
21. Idem, pp. 14-19.
22. BADIOU, A. “Troisième esquisse d’un Manifeste de l’affirmationnisme”, in: Idem,
Circonstances 2, Paris, Lignes – Éditions Léo Scheer, 2004, p. 95.
23. “ […] a arte trata o sensível região por região”: o motivo modernista é aqui solidamente
reafirmado (idem, p. 99).
24. Cf. A. Badiou, Petit Manuel d’inesthétique, op. cit., p. 22. [BADIOU, A. Pequeno manual de
inestética. Tradução de Mariana Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, p. 23.]
25. A. Badiou, Le Siècle, op. cit., p. 218.
26. Idem., p. 219.
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A ontologia badiousiana da arte empurra assim a forma em seus últimos


redutos contemporâneos e na arte contemporânea do lado de uma “formalização”
mantendo bem classicamente que “a essência do pensamento reside sempre
na potência das formas”.27 Aquilo em relação a que o “diagrama” (ou a
diagramatização experimental) é a rigorosa alternativa no nível mesmo do “que
o ato artístico autoriza de pensamento novo”28 começando por exceder em um
devir multiplicador das forças os jogos de desaparecimento da forma no ato de
formalização. Um pensamento novo, um pensamento contemporâneo da arte
como captura de forças... que obrigam, salvo se caímos em conversa fiada, a
“afirmar” a quantidade (um “infinito quantitativo”) e a relação (o processo e as
operações de colocação em relação mais do que o ato pelo qual se moderniza
o platonismo do Mesmo na forma da arte: o enunciado retorna a Matisse na
revolução do fauvismo. Com efeito, se toda força é relação de forças e não
tem outro ser que não a relação (de forças: imanência), a construção (sempre
singular) de um diagrama das forças age transversalmente aos pontos que conecta
mobilizando “pontos relativamente livres ou desatados, pontos de criatividade, de
mutação, de resistência” em uma “distribuição de singularidades”29 redefinindo
a força enquanto afeto: é cada força que tem o poder de afetar outras forças
(com as quais ela está em relação) e de ser afetada por outras ainda. No encontro
dos dois procedimentos de “verdade” mantidos distintos na arte e na política
por Badiou, é toda uma concepção micropolítica do “real” que avança para a
destinação da arte nesse fraseado deleuziano, cuja montagem nos é necessário
explicar brevemente e cujo contexto é necessário lembrar.

* * *

O trabalho com Guattari teria guiado, antes dos desenvolvimentos mais


importantes em Mil platôs, a primeira retomada do termo “diagrama”, por Deleuze
sozinho, em um artigo consagrado a Vigiar e punir30 em 1975, a partir de um
hápax de Foucault, qualificando o Panopticon de “diagrama de um mecanismo

27. Idem., p. 231.


28. Idem, p. 225.
29. DELEUZE, G. Foucault. Paris: Éd. de Minuit, 1986, p. 51, p. 80. [DELEUZE, G. Foucault. São
Paulo: Brasiliense, 2005, p. 81. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. Revisão da tradução
de Renato Janine Ribeiro.]
30. DELEUZE, G. “Écrivain non: un nouveau cartographe”, Critique, n. 343, décembre 1975. O
artigo é retomado, modificado em Idem, Foucault, op. cit., pp. 31-51, sob o título geral “De
l’archive au diagramme”. [Idem, pp. 13-53]
114 das artes e seus percursos

de poder levado à sua forma ideal”.31 Mas a “forma ideal” é riscada por Deleuze
para substituí-la pelo princípio de uma “máquina abstrata [...] coextensi[va]
a todo o campo social”32 que não sela a diferença de natureza entre “micro”
e “macro” sem se ver rapidamente afetada por uma dupla direção ou por dois
estados opostos: o “diagrama do poder” regulado por um princípio de integração
das forças que é um plano de organização ligado ao Estado (enquanto regulador
molar dos “microdados” do diagrama); e o “diagrama das linhas de fuga [...]
ligado a uma máquina de guerra animando o “campo de imanência coletivo33”.
É em função dessa dupla instanciação que Deleuze opõe aos dispositivos de
poder foucaultianos sua própria concepção de um “agenciamento de desejo”
elaborado com Guattari. Ela afirma o primado do desejo (sempre agenciado: um
construtivismo desejante) e das linhas de fuga sobre o poder34 cujos dispositivos,
por mais abstratos que sejam, são sempre de reterritorialização no horizonte
de um capitalismo que não cessa de recodificar e de axiomatizar o que ele
desterritorializa em primeiro lugar.
Convocada por essa revolução copernicana em desejo/poder, a função
micropolítica de desterritorialização experimental da qual a arte se tornará
o laboratório reconduzindo as “Ideias” às relações de forças mais materiais
confirma-se pela argumentação desenvolvida por Deleuze: “se [se estabelece
que] os dispositivos de poder são de alguma maneira constituintes, só pode
haver contra eles fenômenos de ‘resistência’”.35 No lugar dos quais se afirmará
a existência de fenômenos de criação passando por um pensamento tornado
máquina de guerra, máquina de desterritorialização absoluta, positiva, e se
definindo por um diagramatismo cujo regime Deleuze antecipava em seu artigo
sobre Foucault: “o diagrama não funciona nunca para representar um mundo
objetivado; ao contrário ele organiza um novo tipo de realidade. [...] O diagrama
não é uma ciência, é sempre assunto de política [...] desfazendo as realidades e
as significações precedentes, constituindo outros tantos pontos de emergência
ou de criacionismo, de conjunções inesperadas, de contínuos improváveis”.36

31. FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975, p. 207. [FOUCAULT, M. Vigiar e
punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 170.]
32. DELEUZE, G. “Écrivain non: un nouveau cartographe”, op. cit., pp. 1216-1217.
33. DELEUZE, G. “Désir et plaisir” (1977), repris dans Idem, Deux régimes de fous, Paris: Minuit,
2003, pp. 121-122. [Há uma tradução de Luiz B. L. Orlandi, publicada em Cadernos de
Subjetividade, São Paulo, PUC-SP, n. especial, junho de 1996, pp. 15-25. Não foi possível ter
acesso à edição para localizar as citações.]
34. Idem, p. 116.
35. Idem, p. 117.
36. DELEUZE, G. “Écrivain non : un nouveau cartographe”, op. cit., p. 1223.
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“Ele duplica a história com um devir”, conclui Deleuze,37 pelo mapa de forças,
ou intensidades (um mapa intensivo), que ele pilota. O próprio diagrama está
aí submetido a uma desterritorialização que o desliga de seu uso científico
mais comum para participar de uma “arte” cartográfica indissociável de uma
distribuição de afetos subjetivando o conjunto do processo qualificando-o como
“desejante”. Se o princípio de um pensamento diagramático se extrai assim da
compreensão “esquematizante” do diagrama prolongando seu uso foucaultiano
até reverter sua lógica, ainda é preciso que sua desterritorialização se inscreva no
exercício do diagrama que confunde, per se, até sua etimologia em desenho-escrita,
espaço de visibilidade e campo de legibilidade, sem se limitar mais, portanto, ao
formalismo experimental de uma coadaptação abstrata entre forma de expressão
e forma de conteúdo38. É, com efeito, “o conteúdo mais desterritorializado e
a expressão mais desterritorializada que o diagrama retém, para conjugá-los.
E o máximo de desterritorialização vem ora de um traço de conteúdo ora de
um traço de expressão, que será denominado ‘desterritorialização’ em relação
ao outro, mas justamente porque ele o diagramatiza, arrastando-o consigo,
elevando-o à sua própria potência”.39
Trata-se das virtualidades reais de um “diagrama revolucionário de onde
decorrem a um só tempo um novo fazer e um novo dizer”40 em condições que,
para atingir “matérias não formadas, não organizadas, e funções não formalizadas,
não finalizadas”,41 e recolher consequentemente o elemento informal das forças
que banha o visível e o enunciável, poderão produzir “a exposição das relações
das forças que constituem o poder”.42 Pois é sobre essas relações de forças que
estão em jogo entre o conteúdo e a expressão que se determina “a estabilização
das relações de desterritorialização”43 do ponto de vista de sua formalização e
das formações de poder (estratificação) ou, ao contrário, a montagem de uma
máquina de desterritorialização intensiva que se coloca sobre os fluxos de signos

37. DELEUZE, G. Foucault, op. cit., p. 43. [DELEUZE, G. Foucault, op. cit., p. 45.]
38. Tal como sua formalização peirceana do diagrama, que mantém, no nível mais formal da
semiótica que engaja, a articulação em significante/significado.
39. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux, op. cit., p. 177. [DELEUZE, G. & GUATTARI,
F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. Sobre alguns postulados da linguística. Tradução
de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 100.]
40. DELEUZE, G. “Écrivain non: un nouveau cartographe”, artigo citado, p. 1227.
41. DELEUZE, G. Foucault, op. cit., p. 42. [DELEUZE, G. Foucault, op. cit., p. 43].
42. Idem, p. 44. [DELEUZE, G. Foucault, op. cit., p. 46]
43. GUATTARI, F. “Échafaudages sémiotiques”, in: Idem, La révolution moléculaire. Paris:
Encres-recherches, 1977 (1e édition), p. 243. [Este artigo não consta da edição brasileira de
A revolução molecular.]
116 das artes e seus percursos

engajando-os em processos de conjunção diagramática acoplados aos fluxos


materiais de toda natureza nos quais trabalham sempre mais.44 Tanto aqui quanto
ali, “antes do ser, há a política”45 que não vem depois: “diagrama” é também
o nome do processo conduzindo a esse enunciado que coloca em situação de
posição no ser as práticas geradoras de heterogeneidade e de complexidade.
“Os signos trabalham rente aos fluxos materiais”:46 tal é o lema guattariano
que lançou o construtivismo do desejo, correlativo da desterritorialização
ontológico-política do signo e da imagem, na maquinação do diagrama e sua
função de embreante47 sobre uma dimensão de criatividade processual que
se reconhece cada vez menos nas formalidades estética/ inestética da arte. A
estetização arquivista da arte conceitual aí está para confirmar a “tendência e
remete, in fine, à vertente necessariamente crítica da noção de pós-conceitual.
Mas a fórmula-guia de Guattari marca também a recolocação em jogo do
contemporâneo e da arte como experimentação na trajetória de um pensamento –
o de Deleuze. Se este não pensasse em não ser forçado pela intrusão problemática
de um “signo”48 que lhe arranca da representação até na revolução copernicana
do sujeito e do objeto, a signestesia guattariana comanda a passagem de um
pensamento-artista (investe a revolução da abstração em pintura em modelo
de um “pensamento sem imagem”49 para aí fazer subir o “sem fundo” das forças
no nível das formas50), a um pensamento micropolítico determinando-se na
codificação e na desterritorialização generalizadas dos fluxos materiais e dos
signos característicos do campo de imanência capitalista. A coextensão do
campo social ao desejo que o define vai, então, redefini-lo em uma arte tornada

44. Donde a expressão particularmente infeliz “capitalismo imaterial”.


45. G. Deleuze, F. Guattari, Mille Plateaux, op. cit., p. 249. [DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil
platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Três novelas ou “o que se passou?”. Tradução de Ana
Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 78. ].
46. Idem, p. 250. [Não foi possível encontrar o texto na página indicada, nem mesmo pesquisando
uma versão digitalizada do original francês.]
47. Em francês embrayeur é um termo utilizado em linguística, notadamente a partir de Émile
Benveniste, para nomear os índices de enunciação que participam de sua atualização, tais
como os pronomes (eu, tu, nós e vós), que indicam quem enuncia e a quem se dirige o
enunciado, os advérbios de tempo e lugar, e assim por diante.
48. Cf. G. Deleuze, Proust et les signes. Paris: PUF, 1964 para a primeira edição francesa. [DELEUZE,
G. Proust e os signos. 2. ed. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003]. 
49. É outra frase célebre de Diferença e repetição (Différence et répétition, op. cit., p. 354): “A teoria
do pensamento é como a pintura: tem necessidade dessa revolução que faz com que ela passe
da representação à arte abstrata; é este o objeto de uma teoria do pensamento sem imagem”
[DELEUZE, G. Diferença e repetição, op. cit., p. 382].
50. Na qual é difícil encontrar a visitação crística do infinito denunciada por Badiou.
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“menor”. De modo que se orientar no pensamento no presente é se redefinir


entre capitalismo e esquizofrenia – para retomar o título único do pensamento
deleuzo-guattariano e o lugar de emergência de seu pensamento diagramático.
Será que ele não partilha com a “esquizofrenia”, ou o processo esquizofrênico, a
experimentação dos fluxos decodificados e desterritorializados que ela entrega
à produção desejante na ultrapassagem de todos os limites da produção social?
Pode-se avançar agora, bem rapidamente, que não se toca aqui na
implicação diagramática do pensamento deleuzo-guattariano (ou guattaro-
deleuziano) em seu plano de insistência o mais politicamente afiado sem que
o “diagrama”, ultrapassando a letra e a intenção de seus geniais maquinistas,
possa se explicar e se complicar singularmente deslizando no “e” que liga
capitalismo e esquizofrenia (identidade de natureza, diferença de regime) à
possibilidade constitutiva de uma ontologia da arte contemporânea enquanto
arte-cartografia do nosso presente. (Daí também que ela possa se reterritorializar
sobre o capitalismo de laboratório das creative industries.) O acesso a ela será
comandado pelo sentido operatório sempre singular do diagrama, colocado em
variação na variedade de todas as suas montagens. Que estes tenham talvez em
comum apenas o afirmar em uma perspectiva contemporânea tão reconfigurada
da arte como máquina-abstrata-real forçando o infinito dos possíveis a proceder
diretamente do finito confirma a identidade-alteridade menos problemática
do que problematizante de um “diagrama” que, depois de Peirce, só engaja a
realidade do possível elevando-se às virtualidades de uma experiência de
pensamento51 animando-a de um “ardent desire”.52 Mas visto que se trata de
uma experiência de pensamento pela arte53, será preciso sempre singularizar as
condições de realidade de seu funcionamento em uma matéria-fluxo (por mais
desterritorializada e semiotizada que seja) cujo “site” contemporâneo não pode
ser “teoricamente” analisado sem dar lugar à exploração das passagens ao ser
imanentes às obras – e isto no nível mesmo dos dinamismos mais conceituais
de um pensamento contemporâneo que alimenta a interrogação sobre a própria
noção de obra. Também os diagramas poderão ter nomes próprios de artistas,
mas que designarão operações e efeitos mais do que “pessoas e sujeitos”. O
que, à guisa de método de “remontagem” da arte contemporânea, engaja toda

51. O que Peirce chama de “diagrammatic reasoning“ [raciocínio diagramático].


52. PEIRCE, Charles S. Philosophical Writings of Peirce, ed. Julius Buchler. New York: Dover
Publications, 1955, p. 98.
53. “En pensant par l’art” [Pensando pela arte] era o título da apresentação do número da revista
Critique, n. 759-760, agosto-setembro 2010, p. 643-646, À quoi pense l’art contemporain? [Em
que pensa a arte contemporânea?], colocada sob a direção de Élie During e Laurent Jeanpierre.
118 das artes e seus percursos

uma pragmática indissociável da política de experimentação posta em jogo por


essas “forças-signos” que atacam os “estratos” para deles fazer fugir algo de
imprevisível e neles fazer passar a forma estética da arte em todo sentido que
ela força.

* * *

Para concluir propondo uma forma de exemplificação de minha proposta,


gostaria brevemente de relembrar as molas diagramáticas do que chamei a
Operação-Neto, do nome do artista brasileiro Ernesto Neto, que produziu em
2006 uma intervenção, intitulada Leviathan Toth, sobre o sítio mesmo do Panteão
da República (francesa, pela revolução). Um monumento cuja idade, hão de nos
conceder, é quase a mesma que a da “estética”. Conectada ao Panteão como um
monstruoso parasita em escala mas fora de proporção, irredutível a toda espécie
de metáfora ou imagem, a instalação coloca em ligação com um corpo por
demais estrangeiro – e sem dúvida demasiado maquinado: uma contrainstalação?
– para se prestar também a esse êxtase estético de uma matéria informis cuja
demasiado “sublime” determinação ideal aprendemos a reconhecer. Pois é
bem antes a complexidade dos procedimentos físicos tanto quanto mentais
engajados nesse alto lugar dos signos de reconhecimento republicano que o
visitante, interditado ou aturdido, percebe logo de início. Arrisco-me aqui a
rearticular os motivos de Crítica e Clínica.
Crítica: Leviathan Toth confronta-se ao conjunto do prédio tomado na
multiplicidade de suas “escalas” arquiteturais (técnica, funcional, material,
ótica, simbólica etc.)54 e a enfrenta energicamente em uma posição em e sob
tensão de todas as coordenadas físicas tanto quanto metafísicas, engajando
assim em sua operação nada menos que a imagem do poder reportada ao
poder da imagem que a anima e à sua posição em existência discursiva. Pois a
denúncia “an/arquitetural” do Panteão produzida por Neto caminha junto com
a enunciação metafísica (hobbesiana) do Leviatã que ela convoca e evoca até
no diagrama das forças estendido embaixo e em volta de nós e que estende
sobre toda a altura do cruzamento do transepto enfeitada a partir de sua
gigante cúpula. É daí que cai de toda sua altura uma espécie de largo cilindro
de tela formando uma vasta reticulação com células fortemente distorcidas pelo

54. É aos trabalhos de Philippe Boudon que a gente deve o desenvolvimento da noção de “escala”.
Cf. Philippe Boudon, Sur l’espace d’architectural. Essai d’épistémologie de l’architecture. Paris:
Dunod, 1971; idem, Architecture et architecturologie. Paris: AREA, 1975.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 119

esticamento que a alarga até o solo em que ela está ancorada em torno do
pêndulo de Foucault. A estrutura reticulada e estática da cúpula – anamorfose
da grade ortogonal que comanda a reforma de todo o plano do Panteão como
um princípio de racionalização more geométrico – é assim capturada por um
jogo de forças deformantes e potencialmente dilacerantes que poderia assim
dar a perceber a estranha analogia formal da cúpula de ornamentos ocos
com o frontispício desenhado pelo Leviatã de Hobbes por Abraham Bosse.
A disposição dos ornamentos ocos não invocaria a dos sujeitos anônimos
apresentados de costas e cujas cabeças convergem em direção ao soberano
segundo uma perspectiva de assujeitamento “igualitário”, rigorosamente
calculada? Como se sabe, é sem dúvida a imagem mais constituinte do Poder por
ser a apresentação da protofundação política da Modernidade. A política aí se
afirma capaz de unificar o corpo do povo pela representação de todos os seus
“membros” em um organismo consentido, em paz consigo mesmo, que não é
outro além do “Estado”. Mas o Leviatã está igualmente depositado no título da
contrainstalação de uma maneira tal que a sintaxe significada-significante, que
de início se supõe atar em um mesmo “enunciado” o Leviatã bíblico ao in situ
de sua metaforicidade política hobbesiana, é logo perturbada pelo acoplamento
de um misterioso Toth – outro ou duplo mensageiro dos signos e dos gráficos
abrindo uma improvável linha de fuga que passa entre as duas figuras “míticas”
submetendo-as à posição em a-significância de suas cadeias significacionais. A
montagem rítmica do enunciado (than-thot)55 é também combinada à estranha
ortografia adotada por Neto para o deus egípcio Thot,56 que ele escreve Toth:
o que reforça ainda o registro da alteridade discursiva na qual está tomado “o”
Leviatã: uma D-enunciação, com efeito, submetendo a enunciação a essa função
de desterritorialização que Deleuze e Guattari anotam como D na conclusão de
Mil platôs.
Clínica – na medida em que essa posição em tensão é ela mesma
sustentada pela natureza fundamentalmente energética do processo de
apropriação ambiental: toda instalação repousa com efeito sobre a diferença
de potenciais e sobre os graus de intensidade entre os elementos (elasticidade
e resistência, leveza e ponderabilidade da poliamida extensíveis, estiramento
em longos feixes estreitos, em volumes expandidos ou em planos suspensos).
A tomada de ser virtual-real de sua alteridade física (um Corpo sem órgãos, diz

55. Em francês, Leviatã escreve-se Léviathan.


56. Interrogado sobre o assunto, Neto respondeu que tinha querido introduzir um princípio de
variação de acordo com sua própria “operação” sobre o Leviatã.
120 das artes e seus percursos

Neto) “descola” assim de seu efeito de “contraimagem” de um puro trabalho


do negativo na imagem tanto quanto de uma relação exclusivamente crítica a
suas formas estéticas para aí introduzir o fato intensivo de uma “potente vida
não orgânica”57 que satura essas últimas por signestesia. Nesse lugar patriota, a
“potente vida não orgânica” não deixa de fazer subir à superfície todos os signos
de uma multiplicidade “dissolvida” (multitudo dissoluta, no latim de Hobbes) des-
organizando a representação da unidade “civil” do povo do Estado-Leviatã. Esse
povo “unido em uma só pessoa [...] denominado uma REPÚBLICA” (Lev. XVII)
da qual o Panteão é o templo (ex nostro arbítrio enquanto more geométrico).
Daí que a subversão rizomática à qual o submete a “Clínica” de Neto desdobra
o diagrama das forças mobilizadas in situ pela potência da afirmação de uma
crítica biopolítica da Forma-Estado.
Na falta dessa dupla dimensão crítica e clínica engajando toda a política
de experimentação que deu realidade aos “diagramas” da arte contemporânea
no desregramento de todos os sentidos e de todas as formas estéticas da
expressão e do conteúdo, dos corpos e dos signos, a estética poderá sempre
pegar o retorno. É o que mostra a remontagem no Guggenheim Bilbao do único
dispositivo formal do Léviathan Toth (na realidade, de uma de suas “partes”) em
uma brutal de-monstração da contra-instalação parisiense. Sem recolocação em
jogo diagramática da estratigrafia implicada no prédio-símbolo do Capitalismo
Mundial Integrado do complex Arte-Arquitetura, o Anti-Leviatã de Neto se viu
aí revertido em garante da ênfase pós-modernista de um Leviatã arquitetural
coberto de “escamas de peixe”.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. Qu’est-ce que le contemporain?, trad. franç. Paris: Payot, 2008.


ALLIEZ, É. (avec la collaboration de J.-Cl. Martin). L’Œil-Cerveau. Nouvelles
histoires de l’art moderne. Paris: Vrin, 2007.
______; BONNE, J.-Cl. La Pensée-Matisse. Portrait de l’artiste en hyperfauve.
Paris: Le Passage, 2005.

57. Sobre a “potente vida não orgânica” reportada ao Corpo sem órgãos, cf. G. Deleuze, Francis
Bacon, op. cit., p. 33-34 [DELEUZE, G. Francis Bacon: lógica da sensação. Tradução brasileira
de Roberto Machado (coordenação), Aurélio Guerra Neto, Bruno Lara Resende Ovídio de
Abreu Paulo Germano de Albuquerque e Tiago Seixas Themudo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2007, pp. 35-37].
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 121

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A dimensão performativa do soma:
metodologia somática e pesquisa

Patricia Caetano

Ao adentrarmos o campo da pesquisa, logo nos deparamos com seus


diversos meios e modos de trilhar o pesquisar. Esses diversos meios e modos
nos apontam por sua vez para os múltiplos pontos de vista, práxis, paradigmas e
políticas que compõem os diferentes ethos da pesquisa. O fazer pesquisa envolve,
portanto, valores, crenças, atitudes e práticas de uma determinada época,
sociedade e localidade. Ao longo deste breve artigo, procuraremos apresentar
a singularidade da pesquisa em artes, mais especificamente as artes do corpo,
pelo viés da Educação Somática e sua metodologia de investigação experiencial.
Metodologia esta que se desenvolve por meio de um contágio estético-sensível
entre corpo, ambiente e, por que não, o próprio “ser da pesquisa”.
Toda pesquisa pressupõe uma metodologia, ou seja, um modo de
caminhar na direção de sua execução que já é em si a constituição de uma
tecitura da mesma. Esses modos de produção da pesquisa não são estanques e
muito menos regidos por leis universais. Poderíamos afirmar que cada campo do
conhecimento traça os seus variados modos de realização da pesquisa balizados
pelas necessidades intrínsecas ao seu modo de conhecer/criar mundos. Sim,
iniciamos esta conversa com a afirmação de que conhecer é criar mundos e
realidades. Conhecer, diferente de descobrir, se aproxima mais de inventar a
realidade, engendrando-a a partir de um determinado prisma do olhar, mas
também a partir de um determinado jeito de tocar e de se deixar tocar pelo
mundo, e consequentemente pelo território da pesquisa.
A partir da cartografia como “um método que visa acompanhar um
processo e não representar um objeto”1 de pesquisa, podemos esclarecer que o

1.  KASTRUP, Virgínia. “O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo”. In: Pistas do


método da cartografia. Porto Alegre: Sulina. 2010.
124 das artes e seus percursos

modo pelo qual nos colocamos a abordar aquilo que nos atrai ao ato de pesquisar
pressupõe, concomitantemente, uma disponibilidade para ser abordado,
envolvido pelo que também nos espreita no ato de pesquisar. Ao propor um
acompanhamento dos processos da pesquisa em oposição à representação
de um objeto da pesquisa previamente dado, observamos alguma afinidade
entre a cartografia e os modos de pesquisar da Educação Somática. Campo de
conhecimento iniciado em fins do século XIX, a Educação Somática, ainda
hoje, se mostra um campo fértil para as possíveis construções nos territórios
da pesquisa em artes. Mas antes de adentrarmos nesta reflexão, será preciso
reconhecer que ao aproximarmo-nos da cartografia, já estamos tocando nas
discussões a respeito dos alicerces paradigmáticos envolvidos no fazer pesquisa.
De modo geral, podemos citar aqui o paradigma positivista e o paradigma pós-
positivista.
O surgimento da ciência moderna no século XVII inaugurou o paradigma
positivista que se tornou predominante na produção do conhecimento pela
comunidade científica. Segundo o paradigma positivista, haveria um mundo
preexistente ao sujeito do conhecimento, passível de observação e medição
por parte desse sujeito. O paradigma positivista estabelece o conhecer por
meio de uma abordagem do mundo que privilegia a abstração e a objetividade
distanciada, assim como também os modelos hipotéticos e dedutivos. Aqui
a pesquisa é concebida como representação de um objeto e caracteriza-se
principalmente pela separação entre o objeto e o sujeito da pesquisa. A partir
de então, “abordagens mais perceptivas e/ou intuitivas foram mais ou menos
ignoradas pelo menos na comunidade científica que foi construída”.2
Para Virgínia Kastrup, toda atitude investigativa opera uma política
cognitiva determinada, “um tipo de atitude ou de relação encarnada que se
estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo”.3 Seguindo
a perspectiva do paradigma positivista, o sujeito cognoscente opera uma
atitude realista, idealista e individualista atuando como centro do processo do
conhecimento e tomando-o como uma questão de representação.4 Pelo viés
positivista, o pesquisador atua no processo de construção do conhecimento a

2.  COESSENS, Kathleen. “A arte da pesquisa em artes: Traçando práxis e reflexão”. Art Research
Journal/Revista de Pesquisa em Arte, vol. 1/1, p. 6, jan./jun. 2014. Disponível em: http://www.
periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/issue/view/354.
3.  KASTRUP, op. cit., p. 34.
4.  KASTRUP, “Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre”.
Sociedade & Educação. Campinas, vol. 26, n. 93, set./dez. 2005. Disponível em: http://www.
cedes.unicamp.br.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 125

partir de uma política cognitiva realista. É possível reconhecer que ainda nos
dias atuais, muitas pesquisas em diversos campos do conhecimento, inclusive
nas artes, balizam-se pelo paradigma positivista de pesquisa. No entanto,
para além dessa política cognitiva, Kastrup nos apresenta ainda uma segunda
atitude investigativa que aponta para uma política cognitiva construtivista,
ou inventiva, na medida em que o agente do conhecimento toma o mundo e
a si próprio como invenção, ambos coengendrando-se mutuamente. Aqui, o
pesquisador desenvolve uma atitude cognitiva e atencional disponível ao plano
processual das forças moventes. O sujeito que se coloca em atitude de conhecer
desloca-se de um lugar centralizado no fazer da pesquisa. Aqui o sujeito deixa
de ser o único agente da pesquisa, aquele que age e passa a exercer, ele também,
um papel receptivo. Nessa abordagem, sujeito pesquisador e elemento a ser
pesquisado tornam-se ambos agentes e receptores do processo de pesquisar.
Nessa trilha, a política cognitiva inventiva nos faz atentar para
o paradigma pós-positivista, que compreende a existência de múltiplas
realidades engendradas pelos diferentes pontos de vista e abordagens dos
pesquisadores e seus contextos. Nesse paradigma os processos de produção
de subjetividade fazem parte dos processos da pesquisa, e, portanto, sujeito e
objeto de investigação não se encontram distanciados, mas atravessando-se e
cocriando-se constantemente. O paradigma pós-positivista aponta caminhos e
norteia reflexões para possíveis criações de outros modos do fazer pesquisa em
diversas áreas do conhecimento. Nos últimos anos, metodologias de pesquisa
emergentes e férteis se tornam cada vez mais presentes nas pesquisas em artes
tais como a Prática como Pesquisa, a Performance como Pesquisa, a Pesquisa
Somático-Performativa,5 a Prática guiada pela Pesquisa, entre outras. Sem falar
nas escritas de artista que cada vez mais contagiam os formatos de dissertações
e teses no meio acadêmico.
No campo de conhecimento das artes a pesquisa se apresenta em
sua complexidade. Vemos aqui uma abordagem de pesquisa orientada
fundamentalmente pela experiência, na qual sujeito e objeto da pesquisa se
mesclam e muitas das vezes se confundem. Assim, no contexto da pesquisa
acadêmica, o artista-pesquisador é aquele que possui todos os predicativos que
o podem levar a romper, se não definitivamente, pelo menos parcialmente, com
a objetividade distanciada e a abstração racional. A prática artística é pautada
pelos percursos experienciais do artista que desenvolve ao longo de toda uma

5.  CIANE, Fernandes. “Princípios em Movimento na Pesquisa Somático-Performativa. Resumos


do 5º Seminário de Pesquisas em Andamento. São Paulo: PPGAC/USP, 2015.
126 das artes e seus percursos

vida a habilidade de habitação estética do mundo e de si mesmo, sempre em


atitude relacional com os múltiplos outros (inclusive os não humanos e as
infinitas alteridades humanas). O artista, e também o artista-pesquisador, é
aquele que se põe em estado de abertura do olhar e dos poros. Toca, deixando-
se tocar por uma realidade que ele sabe ser feita por uma textura movente,
inacabada, e em constante processo latente de invenção. Nesse estado de
abertura, o artista e o pesquisador-artista produzem pensamento. Portanto, é
a partir de um ponto de vista experiencial, por meio de um alargamento dos
sentidos, que o artista vive, cria a sua obra e, cada vez mais, produz pesquisa
acadêmica. Assim, aproximando-nos de Kathleen Coessens, uma abordagem
estética da pesquisa, orientada pelos sentidos do artista-pesquisador, “tem
origem em um ‘pensamento testemunho’, um pensamento a partir de uma
experiência”,6 e, portanto, “no domínio das artes, as teorias não podem ser
articuladas de forma isolada da prática e da pesquisa do artista, porque elas são
estabelecidas e construídas a partir da própria prática”.7
A partir da perspectiva do campo da Educação Somática, e na medida
em que esta começa a habitar cada vez mais o território acadêmico, podemos
apontar então para a emergência de um pensamento corporificado no processo
da pesquisa em artes, especificamente as artes do corpo. Poderíamos dizer
que o pensamento corporificado ou encarnado é aquele que se engendra na
experiência do corpo, em oposição a um pensamento apartado do corpo, e
que se quer fruto ideal único da razão. Um pensamento corporificado é aquele
engendrado por um corpo que se experimenta na relação com os outros corpos
e o ambiente, e que inclusive, ao mesmo tempo, é gerador de experiências.
A noção de soma que dá origem ao termo somática(o) foi utilizada pela
primeira vez pelo pesquisador Thomas Hanna, em 1976 em seu artigo The Field
of Somatics, no intuito de evocar um corpo vivido e experienciado a partir da
percepção daquele que experimenta o corpo. Desse modo, soma enquanto
corpo experienciado se opõe à noção de corpo objetificado. O corpo entendido
desde a perspectiva somática é aquele que se experimenta ao mesmo tempo em
que experimenta o mundo, ou experimenta o mundo ao mesmo tempo em que
se experimenta, e, no entanto, vai um pouco mais além, pois gera experiência.
Essa afirmação é bem importante para nós e será melhor compreendida a partir

6. COESSENS, Kathleen. “A arte da pesquisa em artes: Traçando práxis e reflexão”. Art


Research Journal/Revista de Pesquisa em Arte, vol. 1/1, p. 6, jan./jun. 2014. Disponível em:
http://www.periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/issue/view/354.
7.  Idem, p. 7.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 127

de um olhar sobre o método somático Body Mind Centering. De todo modo,


o soma jamais será compreendido e abordado como um objeto inerte, passivo,
secundário e passível de controle ou docilização. Bem ao contrário, gostaríamos
de frisar, o soma é o corpo que experiencia, se experiencia e gera experiência.
Nesse sentido, o corpo como gerador de experiência é um criador de realidades.
No encontro com o mundo, o soma é o corpo inacabado, processual e relacional,
que se cria na experiência, ao mesmo tempo em que cria um mundo possível.
Dentro dessa perspectiva, mundo e corpo são realidades que somente existem
por co-engendramento. Assim, para além da experiência fenomenológica
pessoal de um sujeito que experimenta o mundo em primeira pessoa, afirmamos
aqui o soma como “metafenômeno”, tanto visível quanto invisível, “feixe de
forças” e gerador de espaço-tempo.8
A Educação Somática é um campo constituído por diversas práticas,
tais como a Eutonia, o Método Feldenkrais, a Técnica de Alexander, os
Bartenieff Fundamentals e o Body Mind Centering, entre outros. No Brasil,
podemos considerar como pertencentes ao campo da Educação Somática, a
metodologia Klauss Vianna e o Método Angel Vianna de Conscientização
do Movimento. As diversas abordagens e técnicas somáticas, cada qual com
suas especificidades, possuem em comum uma metodologia de investigação do
corpo pautada pelo trabalho sobre a senso-percepção. Assim, é a partir de um
exercício de alargamento dos sentidos que as práticas somáticas atuam como
propositoras de uma experiência de abertura à criação de um corpo outro para
além de suas organizações demasiadamente cristalizadas em condicionamentos
e automatismos. De um modo geral, as práticas somáticas convidam o corpo a
exercitar os sentidos para além do âmbito restrito da representação. Assim, a
partir de um convite à experimentação dos sentidos no âmbito prismático das
sensações, o corpo tem a oportunidade de experimentar o mundo e a si mesmo
para além da representação de corpos, objetos e signos já dados. Olharemos
para essas questões a partir da metodologia somática do Body Mind Centering.
Abordagem somática criada pela norte-americana Bonnie Bainbridge
Cohen, o Body Mind Centering consiste numa anatomia experimental do
corpo. Tal abordagem tem como proposição metodológica a experimentação dos
sistemas corporais (sistema esquelético, muscular, endócrino, nervoso, sistema
dos ligamentos e fáscias, sistemas dos órgãos, sistema dos fluidos, e os órgãos dos
sentidos e a percepção) por meio do toque, movimento e sonorização. Além da
experimentação dos sistemas corporais, essa técnica também propõe o estudo e

8.  GIL, José. Movimento total. O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
128 das artes e seus percursos

a experimentação das etapas ontogenéticas e filogenéticas do desenvolvimento


do movimento, pressupondo uma linha de continuidade e “planos de contágio”
em movimento entre humanos e não humanos.
Diferente de outras abordagens somáticas, o Body Mind Centering não
propõe um método centrado em exercícios corporais codificados, através dos
quais se operaria uma reorganização do corpo na direção de um uso motor
mais adequado previamente estabelecido. Trata-se aqui de uma aprendizagem
eminentemente experimental através da qual o corpo compreendido em sua
ontogênese perpétua explora os seus próprios meios de constituição tanto
materiais e energéticos, quanto formais. Essa aprendizagem ocorre por meio
da focalização senso-perceptiva sobre uma ou várias estruturas anátomo-
fisiológicas (regiões teciduais constitutivas da matéria-corpo múltipla)
implicadas num movimento determinado e em relação com o meio circundante.
Por meio dessa focalização solicita-se fazer emergir uma paisagem de qualidades
táteis e cinestésicas, de texturas diferenciadas em suas intensidades, assim como
diversificados limiares energéticos. A partir de então, redesenham-se tanto o
território corpóreo sentido pelo experimentador, como o espaço de projeção
da cinesfera. O espaço ao redor é modificado por meio da reverberação entre
dentro e fora somente possível pela ativação de uma qualidade porosa e vibrátil
da pele e demais membranas do corpo. A partir dessa ativação, as qualidades
vibráteis do corpo e do ambiente podem se contagiar mutuamente.
Aqui tocamos na dimensão performativa do soma. Tal metodologia
somática propõe que possamos experienciar o corpo e seus sistemas corporais
por meio do embodyment. Assim, acompanhando os processos experienciais do
corpo, sempre em atitude relacional com o ambiente, opera-se uma diminuição
na preponderância da consciência analítica do eu-indivíduo, e outra qualidade
de consciência, que Cohen chama “consciência celular” dos tecidos e/ou sistemas
experienciados, ganha força de presença. Poderíamos afirmar que o embodyment
ou a “corporalização” opera a entrada em um estado de consciência outro, um
estado de sensação por meio da captura de forças das matérias-corpo que, a
partir de então, guiam os movimentos e gestos do experimentador no espaço.
O corpo que se experimenta por meio do embodyment passa por várias etapas de
pesquisa, transitando desde o estudo e visualização de “imagens-representação”
do corpo, provenientes dos mapas (atlas) da anatomia convencional ocidental,
até chegar à experimentação de “imagens-sensação” moventes, provenientes da
vivência do experimentador-pesquisador em acompanhamento dos devires do
corpo. Nesse processo outras relações espaço-temporais entre corpo habitado e
ambiente vivido emergem em meio a uma operação de modulação das sensações
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 129

da matéria-corpo. O soma performatiza o espaço, performatiza o tempo, e


performatiza a si em meio às alteridades que vivencia. Nessa experiência
performatizante, que dá lugar ao descentramento de um eu meramente racional,
um pensamento encarnado pode eclodir.
No âmbito da pesquisa acadêmica em artes, o desenvolvimento de uma
cartografia do corpo afetivo na qual o pesquisador-artista possa acompanhar
os fluxos de um corpo nômade e relacional por meio das experimentações que
realiza no encontro consigo e com o mundo (e mundo aqui pode inclusive
significar os autores e as leituras com os quais se encontra), pode se mostrar
um caminho fértil na construção de modos outros de criação do pensamento e
realização da pesquisa.

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130 das artes e seus percursos

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______. “Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-
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Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br.
Sintonia somática e meio ambiente:
a abordagem somático-performativa de
pesquisa em Artes cênicas

Ciane Fernandes


Temos mantido que o termo sintonia é descritivo da relação obtida
na bilateralidade fluida entre corpo pessoal e ambiente vivo. Isto
significa que distanciamos o lócus da investigação epistemológica
tradicional tanto da mente como um sujeito epistemológico e a
coisa formada como um objeto epistemológico. [...] conhecimento
somático é uma fruição da sintonia. [...] o lócus do conhecimento
somático reside no corpo pessoal.
Shigenori Nagatomo, Attunement through the Body,
1992, pp. 200-201

Este texto apresenta alguns aspectos da Abordagem Somático-


Performativa, sendo desenvolvida com o Coletivo A-FETO de Dança-Teatro
da UFBA e na atividade obrigatória Laboratório de Performance (TEA794)
do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, e explorados na
Imersão Somático-Performativa, realizada no Aterro da Praia de Iracema em
Fortaleza CE, durante o evento Seminário Das Artes e seus Territórios Sensíveis.
A partir da perspectiva somático-performativa, discuto algumas questões
relativas às artes cênicas na contemporaneidade, particularmente com relação
à integração de aspectos ainda muitas vezes separados, além de estimulados
e valorizados como tais. Ainda hoje, o ensino não apenas das artes, mas de
qualquer tópico, é realizado através de um processo que enfatiza a dicotomia
entre pensamento cognitivo e experiência corpórea. E esse processo se propaga
não só nas escolas, mas em outros âmbitos da sociedade, onde é priorizado
o conteúdo em associação à expressão verbal, em detrimento da chamada
“comunicação não verbal” – denominação que por si só já implica a ausência
da única coisa que parece importar (a palavra), confirmando a exclusão do
132 das artes e seus percursos

Domínio do Movimento1 e inclusive subestimando toda a potência poética e


integradora da palavra.
Inaugurada e influenciada pelo domínio das ciências duras, a pesquisa
acadêmica ainda confirma sua tradição logocêntrica e iluminista de buscar e
demonstrar a verdade através da razão pura, num processo de planejamento
linear previsível, controlável e sem a participação efetiva dos impulsos corporais
mais variados. Quantas aulas, conferências, encontros, bancas e provas ainda
se dão com corpos sentados2 e imobilizados por intermináveis horas, enquanto
a maleabilidade física é encaixada em pequenas gavetas da agenda com aulas
corretivas de academia, ginástica, uma rápida caminhada etc. Nesse contexto
fragmentado, o corpo continua a ser treinado para um fim funcional, isto é,
aquele de facilitar e permitir a alta produtividade cognitiva exigida de um
sistema ainda “etnofalofonologocêntrico”.3
Do mesmo modo, as práticas artísticas muitas vezes são demonstrações
ou ilustrações de processos analisados ou comentados a posteriori na produção
acadêmica, a partir de teorias em sua maioria de outros campos do conhecimento,
sob a égide (do grego aigis, escudo) da interdisciplinariedade. No entanto, para
que seja realizado um diálogo justo, a partir da arte – ao invés de sobre ela ou
paralelo a ela ou usando-a como aparato demonstrativo e ilustrativo ou mesmo
como objeto de interesse e escrutinização – é necessária uma redimensionalização
onde os processos artísticos em si mesmos gerem e organizem a pesquisa, seus
percursos, afinidades e coerências.
Esta vem sendo a proposta de alguns pesquisadores que, neste milênio da
“virada prática”, após as viradas linguística, pós-estruturalista e pós-moderna
no século passado,4 vem traçando um “paradigma emergente”:5

[...] pesquisadores quantitativos não estão tão interessados no fenômeno


da prática humana (a menos, claro, que ela possa ser mensurada,

1.  LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.


2.  BAITELLO, Norval. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens. São Leopoldo:
Unisinos, 2012.
3.  MOTA, Júlio César. A poética em que o verbo se faz carne: um estudo do teatro físico a partir da
perspectiva coreológica do sistema Laban de movimento. Tese de doutorado. Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, 2006, p. 210.
4.  NELSON, Robin. Practice as Research in the Arts. Principles, Protocols, Pedagogies, Resistances.
Hampshire: Palgrave Macmillan, 2013, pp. 53-56.
5.  HASEMAN, Brad C. “Manifesto for Performative Research”. Media International Australia
Incorporating Culture and Policy. Brisbane, Queensland University of Technology, n. 118, p.
5, 2006.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 133

[...]). De modo semelhante, pesquisadores qualitativos convencionais


estabeleceram estratégias de pesquisa [...] posicionando a prática como
um objeto de estudo, não como um método de pesquisa. [...] No entanto,
em anos recentes, alguns pesquisadores tornaram-se impacientes com as
restrições metodológicas da pesquisa qualitativa e sua ênfase em resultados
escritos. Eles acreditam que essa abordagem necessariamente distorce a
comunicação da prática. Tem havido um movimento radical não apenas de
colocar a prática dentro do processo de pesquisa, mas de guiar a pesquisa
através da prática.6

Portanto, não se trata apenas de incluir a prática artística no processo


de pesquisa, ou de associar teorias e análises à obra de arte e seus processos, ou
mesmo de considerar a criação artística em si mesma como pesquisa acadêmica,
mas sim de construir todo o percurso da pesquisa por meios particulares
determinados pela prática criativa em artes. Todo processo artístico envolve
algum tipo de pesquisa, mas não necessariamente pesquisa acadêmica. Para
tanto, a criação artística precisa não apenas gerar um processo estético (por mais
interessante e inovador que este seja), ou estar associada a teorias e invenções
científicas de última geração, mas em seus próprios procedimentos estabelecer
modos específicos de criar novo conhecimento e de se relacionar com o mundo.
É obvio que esses procedimentos artísticos não estão separados das outras
disciplinas, nem isolados em algum laboratório inerte no tempo e no espaço.
Inclusive porque toda criação artística é relacional e dinâmica. No entanto,
é preciso priorizar uma área que, além de ser listada por último nas agências
de fomento, muitas vezes só é reconhecida quando associada a teorias de
outras áreas, como se apenas estas pudessem justificar e validar aquilo que não
conseguimos devido a nossa subjetividade e imprevisibilidade – características
constitutivas da criatividade.
As abordagens descritas acima por Haseman tiveram seu argumento no
International Statement on Practice Research,7 também denominado The Salisbury
Statement (The Salisbury Forum Group, 2011), em referência ao local onde se
realizou a conferência internacional de realização do estatuto, no Reino Unido,
em 2008. Apesar de incluírem várias áreas, principalmente as ciências sociais,

6.  Idem, pp. 2, 3.


7.  Estatuto Internacional da Prática-Pesquisa. Não se trata de “Pesquisa Prática” (Practical
Research), e sim da mesma ênfase dada às duas palavras, sem adjetivar nenhuma das duas.
Esse estatuto foi atualizado em 2012, pelo Estatuto Helsinki, realizado em conferência
internacional na Finlândia.
134 das artes e seus percursos

essas abordagens de Prática como Pesquisa (PaR – Practice as Research) vêm se


desenvolvendo de forma particularmente relevante nas artes, principalmente
na dança.8 Isso porque as artes são um campo eminentemente prático, e possui
formas específicas de construir conhecimento ainda não reconhecido no
mainstream científico. E esse quadro é ainda mais alarmante na dança ou nas
artes a partir do corpo, como o teatro físico, a dança-teatro, a performance, a
intervenção urbana etc. Isso porque, dentre as artes, especificamente as cênicas,
há uma proximidade maior entre o teatro e a produção de materiais escritos,
enquanto as artes do corpo por sua constituição proprioceptiva, sinestésica e
efêmera, tendem a ser distanciadas do domínio da palavra e do registro.
Nesse sentido, Haseman (2006) apresenta a Pesquisa Performativa
como uma forma de PaR, baseada nas Teorias dos Atos de Linguagem de J. L.
Austin (1962). Enquanto nas metodologias quantitativa (método científico) e
qualitativa (método múltiplo) a prática é um objeto de estudo, um adicional
extra, ou algo a ser analisado ou onde se aplica e testa determinados princípios
e/ou conceitos, na Pesquisa Performativa a prática é em si mesma um método
de pesquisa, o eixo principal e organizador. Nesse contexto, o impulso criativo
é muito mais importante para delinear o percurso da pesquisa do que hipóteses,
problemas ou questões.
Assim, a PaR vem se mostrando como um paradigma coerente e
promissor para as artes que enfatizam o corpo e seus processos como forma
de criar conhecimento. No entanto, as iniciativas de PaR nas artes do corpo,
em sua maioria, associam-na a modos contemporâneos de criação, muitas
vezes apartados de outras abordagens que já vinham desenvolvendo modos
eminentemente associativos entre pesquisa e prática por pelo menos um século.
Este é o caso do trabalho do pioneiro Rudolf Laban (1879-1958), que defendia que
o movimento corporal tem três aplicações, a que chamou de “três Rs”: Research
(pesquisa), Recreation (recreação: esporte, jogo ou performance), Rehabilitation
(reabilitação). Como nos esclarece Warren Lamb, temas recorrentes na obra de
Laban estão muito além de seu tempo, como, por exemplo:

Nós devemos sempre pensar em termos de movimento.
O estudo do movimento deve ser guiado por uma série de princípios e não
traduzido em um sistema.

8.  BARRETT, Estelle; BOLT, Barbara (orgs.). Practice as Research: Aproaches to Creative Arts
Inquiry. Londres: I. B. Tauris, 2007.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 135

A harmonia consiste no uso de contrastes e opostos.


A união corpo/mente é expressa em ritmo.9

Contemporâneos de Laban, outros pioneiros como Moshe Feldenkrais e
Mathias Alexander criaram um arcabouço eventualmente batizado de Somatics,10
com inúmeros desdobramentos até os dias de hoje. Apesar de a Educação
Somática ainda ser muito restrita a cursos de formação técnica especializada – o
que advém de seus desenvolvimentos no universo profissional e não acadêmico –,
muitas vêm sendo as iniciativas para integrar esse campo à pesquisa acadêmica.11
Particularmente, a PaR vem se mostrando como uma abordagem fértil e coerente
para essa expansão somático-acadêmica. Esse encontro não é uma associação
artificialmente produzida, e sim reintegra tendências historicamente separadas,
refletindo uma aproximação por afinidade de princípios.
Por exemplo, tanto a PaR quanto a Educação Somática têm propostas
que questionam dicotomias em prol da ênfase na mudança, característica
constituinte do movimento corporal. Além disso, ambas valorizam a
particularidade do sujeito criador, reconhecendo a especificidade de cada
um em contextos múltiplos e relacionais. Mas isso não significa um enfoque
antropocêntrico. Pelo contrário, tanto a PaR quanto a Educação Somática
compartilham princípios com a ecologia, a sustentabilidade e a coletividade.12
Isso porque a PaR – mais especificamente a Pesquisa Performativa – e a Educação
Somática são performativas não apenas no sentido inaugurado por Austin. Na
associação da PaR com a Educação Somática, não apenas fazemos coisas com
palavras, como na proposta performativa de Austin, mas somos todos e tudo
constituídos e atravessados por vibrações infinitesimais, entre matéria e energia,
como na definição de soma.13 No contexto somático, a performatividade não
é primeiramente relacionada a “como fazer coisas com palavras”,14 mas sim a
mover e ser movido pelas coisas, pessoas, palavras, lugares etc.

9.  DAVIES, Eden. Beyond Dance. Laban’s Legacy of Movement Analysis. New York: Routledge,
2006, p. 92.
10.  HANNA, Thomas. “The Field of Somatics”. Somatics, Novato, The Novato Institute for
Somatic Research and Training, v. I, n. 1, pp. 30-34, Autumn, 1976.
11.  FERNANDES, Ciane. “Quando o Todo é mais que a Soma das Partes: Somática como campo
epistemológico contemporâneo”. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 5, n. 1, pp. 9-38,
jan./abr. 2015.
12.  CLAVEL, Joanne; GINOT, Isabelle. “Por uma ecologia da somática?”. Revista Brasileira de
Estudos da Presença, v. 5, n. 1, pp. 85-100, jan./abr. 2015.
13.  HANNA, op. cit.
14.  AUSTIN, John Langshaw. How to Do Things with Words. Oxford: Clarendon Press, 1962.
136 das artes e seus percursos

Este é o Domínio do Movimento, este último compreendido não como


agitação contínua, mas como ondas entre ebulição e repouso,15 em flutuações
de ritmo:

O centro de tudo que ele [Laban] fez era que tudo muda. [...] todas estas
coisas baseadas em variação e motivação – por isso é verdadeiramente
uma teoria do movimento. Ele fala sobre uma pessoa indo de um estado
de maior estabilidade para um estado de maior mobilidade – mas é uma
questão de fluxo.16

Esse fundamento paradoxal da vida e do crescimento das formas vivas –


entre matéria e energia, estabilidade e mobilidade, repouso e ebulição – pode
ser visto em todas as nuances do que Laban chamou de Arte do Movimento –
organizada nas categorias da Eukinética (dinâmicas expressivas) e da Corêutica
(formas espaciais em rastros geométricos), associadas na Dinamosfera. A partir
dessa constituição dinâmica e relacional, a que venho chamando de “pulsões
espaciais”,17 dualidades passam a ser reciprocamente constituintes, num
continuum de gradações e transições como no Anel de Moebius.
O Anel de Moebius foi criado no século XIX pelo matemático alemão de
mesmo nome. Através de uma torção, esse anel transforma dois lados opostos
em um contínuo tridimensional sem extremidades ou distinção entre interior
e exterior. Por isso, por exemplo, em Análise Laban/Bartenieff de Movimento
(Laban/Bartenieff Movement Analysis / LMA), temos o princípio denominado de
Inner/Outer (mais interno / mais externo), indicando gradação entre diferentes
localizações de intensidades, ao invés da separação estanque entre dentro e fora.
A partir desse anel e seu princípio fundamental de torção, chegamos também à
espiral, que se move em duas direções opostas sucessivamente, “rumo ao […]
infinitamente expandido e o infinitamente contraído”.18
A torção – tanto no Anel de Moebius quanto na espiral – é fundamental
em diversas abordagens somáticas, inclusive nas Escalas Espaciais de Laban,

15.  Stir and Stillness, Laban, 1939/1984, p. 68.


16.  Irmgard Bartenieff in RUBENFELD, Llana. “Interview with Irmgard Bartenieff”. Bone, Breath
& Gesture: Practices of Embodiment. Don Hanlon Johnson, ed. Berkeley (CA): North Atlantic,
1995, p. 235.
17.  FERNANDES, “Perforgrafias: pulsões espaciais somático-performativas”. Revista A.DNZ.
Santiago: Universidad de Chile, Departamento de Danza, vol. 1, n. 1, pp. 60-71, 2014.
18.  LAWLOR, Robert. Sacred Geometry: Philosophy and Practice. Londres: Thames & Hudson,
1982, p. 73.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 137

desde os anos de 1920. Essas Escalas conectam corpo e espaço através de


dinâmicas pulsionais, isto é, variações em nossa atitude quanto aos quatro
fatores de movimento: fluxo, foco, peso e tempo. Inclusive esses fatores variam
entre gradações no Anel de Moebius: entre contido e livre (fluxo), direto e
indireto (foco), forte e leve (peso), acelerado e desacelerado (tempo). Ao longo
das Escalas, tanto quanto em movimentos no/com o espaço dinâmico, sempre
criamos Formas de Rastro (Trace-form) entre dois pontos (por exemplo, direta-
alta e atrás-embaixo) e entre duas combinações expressivas (por exemplo, leve-
indireto e acelerado-forte). É nessas transições que se constitui a natureza do
movimento, em movimento, entre presença e rastro, e vice-versa. E, segundo
desenvolvimentos das teorias de Laban, isto se aplica não só ao chamado espaço
tridimensional, mas até mesmo ao hiperespaço.19
Nas Escalas ou em fragmentos destas, Laban chamou o Anel de Moebius
de “Leminiscate” (Fig. 01):

Um estágio intermediário entre o nó e a linha com simples curva é a


lemniscate. Linhas nozadas e linhas curvadas podem formar a ponta
dos anéis lemniscates. Tais anéis não têm superfícies internas e externas
claramente distinguíveis. Eles são círculos de superfícies invertidas.
Quando se observa pessoas moverem-se neles, frequentemente parece
como se elas tivessem o desejo de abrigarem-se num plano curvo ou num
anel arcado, ou de afagá-lo. Planos, anéis, e também lemniscates podem
ser reconhecidos por suas formas de linha dupla traçadas no espaço, em
concordância, por duas partes do membro em movimento ou pelo torso.
Isto é como um “dueto” de duas partes do corpo como em duas partes de
canto. [...] Temos que mover ao longo do anel duas vezes para retornarmos
ao ponto de partida, ao mesmo tempo curvando [ou esculpindo com] o
corpo.20

19.  LALVANI, H. “An Exploration of Hyper-Space”. Movement News. New York: Laban/
Bartenieff Institute of Movement Studies, n. 6, v. 2. December, 1983, p. 7.
20.  LABAN, Rudolf. The Language of Movement: A Guidebook to Choreutics. Boston: Plays, 1976,
pp. 97-98.
138 das artes e seus percursos

Fig. 01. Relação entre corpo e espaço dinâmico criando


a forma do rastro (Trace-form) da Lemniscate ou Anel de
Moebius. Desenho de Rudolf Laban (1984, capa).

Essa torção pode ser vista também na constituição do corpo, entrelaçando


diferentes estruturas e concedendo-lhes estabilidade e permitindo mobilidade
no espaço tridimensional. Este é o caso, por exemplo, do IlioPsoas (Fig. 02) e
do Grande Dorsal (Fig. 03) – músculos responsáveis pela conexão entre o torso
e os membros através de articulações de rotação, num processo que Irmgard
Bartenieff (discípula de Laban) chamou de Ritmo Pélvico-Femoral e Ritmo
Escapulo-Umeral, respectivamente.

Fig. 02. Músculo IlioPsoas, junção dos músculos ilíaco e


psoas (Calais-Germain, 1992, p. 235).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 139

Fig. 03. Músculo Grande Dorsal (Hackney, 1998, p. 150).

Esses ritmos são fundamentais na movimentação do corpo como um


todo, isto é, mesmo que movamos apenas uma parte, todo o corpo está engajado
na ação (através de correntes de movimento, de contratensões, iniciações/
sequenciamentos, variações em volumes adaptativos, contrações e expansões),
em relação com a gravidade e o espaço. Assim, “o corpo em sua totalidade” (the
body in its wholeness, definição de soma; in Batson, 2004) está interconectado e
relaciona-se através do Anel de Moebius (Fig. 04).

Fig. 04. Alinhamento Dinâmico integrando o corpo como


um todo relacional a partir do Anel de Moebius (Hackney,
1998, p. 101).
140 das artes e seus percursos

A estrutura do corpo humano, entre cintura pélvica e escapular, bem


como a relação tridimensional entre elas, contribui para que o Anel de Moebius
seja também usado como símbolo de corpo na LMA. Portanto, as diferentes
fases do desenvolvimento neuro-muscular, chamadas de Padrões Neurológicos
Básicos (PNB), utilizam também esta figura (Fig. 05).

Fig. 05. Sete símbolos da Análise Laban/Bartenieff de Movimento para Corpo e Padrões
Neurológicos Básicos, em ordem de crescente complexidade: Corpo; Respiração Celular;
Irradiação Central; Espinhal (Cabeça-Cauda); Homólogo (Parte de Cima-Parte de Baixo);
Homolateral (Metade do Corpo); Contralateral (Lados Cruzados) (Fernandes, 2006, pp. 57-61).

A partir da obra de Laban e de Bartenieff, Peggy Hackney (discípula


de Bartenieff) desenvolveu a Integração Corporal Total através dos Bartenieff
Fundamentals™, utilizando também o Anel de Moebius no processo de
reorganização neuro-muscular (repatterning) e crescente interação pulsional
com o espaço dinâmico (Fig. 06)

Fig. 06. Integração Corporal Total


através dos Bartenieff Fundamentals™:
Relação cocriativa e dinâmica
entre Conectividade Mais Interna e
Expressividade Mais Externa (Inner
Connectivity e Outer Expressivity)
(Hackney, 1998, pp. 34-35, 156).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 141

Essa relação de continuidade no Anel de Moebius pode ser vista


também na conexão entre dança e escrita já nos primórdios da obra de Laban.
A partir dessa fundamentação em gradações ao invés de dicotomias, todo
e qualquer conceito de Laban é eminentemente dinâmico, tão efêmero e
transitório quanto o próprio movimento. As Formas de Rastro (Trace-form), por
exemplo, demonstram uma compreensão complexa do movimento humano e,
concomitantemente, da natureza da dança:

Sempre se pensou a efemeridade da dança como um defeito ou um handicap


relativamente às outras formas de arte. [...] Ao mesmo tempo que apresenta
uma sucessão de movimentos visíveis do corpo, toda dança cria um fundo
de movimento desaparecente [mouvement disparaissant] que só ele torna
possível o surgimento das formas e a sua visão “efêmera”. Neste sentido –
de uma efemeridade construída, que é própria de toda a dança –, não há
forma efêmera a não ser sobre um fundo de desaparecimento. Por outras
palavras, o desaparecimento, “o invisível”, a “não inscrição” constituem
espécies de écrans virtuais, de coreografias negras que acompanham
necessariamente qualquer sequência deliberada de movimentos dançados.
É uma coreografia do tempo, como o avesso da coreografia do movimento.21

É justamente nessa transitoriedade que reside a força da dança, não
sua fraqueza. Nessa perspectiva, a imagem (notação) ou a palavra (descrição)
não são o registro fixo de algo que necessariamente já passou. Pelo contrário,
imagens e palavras são perpetuadores e multiplicadores de pulsões espaciais em
movimento. Isso fica claro nas palavras de Robert Dunn, um dos fundadores do
Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies (New York), mentor do grupo que
logo após seu workshop iria formar o que veio a se denominar Judson Dance
Theater, marco dos primórdios da dança pós-moderna norte-americana:

A ideia de Laban era muito secundariamente a de fazer uma Tanzschrift
[escrita de dança] [...] um modo de registrar. A ideia de Laban era a de
fazer uma Schrifttanz [dança de escrita], usar inscrições gráficas – escritas –
e então gerar atividades. Notação gráfica é um modo de inventar a dança.22

21.  GIL, José. Movimento total: O corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’Água, 2001, p. 202.
22.  Robert Dunn apud Sally Banes, “Choreographic Methods of the Judson Dance Theater”. In:
DILLS, Ann; ALBRIGHT, Ann Cooper (orgs). Moving History / Dancing Cultures. A Dance
History Reader. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2001, p. 351.
142 das artes e seus percursos

Aspectos interartísticos tanto da arte da performance quanto da dança


improvisação do Judson Dance Theater estão intimamente ligados ao Tanz-Ton-
Wort-Form (Dança-Tom-Palavra-Forma) que Laban desenvolveu no início do
século passado,23 além de ele e seus alunos terem participado das manifestações
Dada em Zurique.24 Desdobramentos recentes das teorias de Laban vêm
pesquisando suas aplicações em programas interativos de computação gráfica
e vídeo, animação em 3D, associando notação e mídias digitais:25 “Laban está
imergindo com tecnologia”.26 Portanto, a dança de escrita (Schrifttanz) no contexto
de Laban e seus desdobramentos extrapolam o encadeamento puramente racional
de ideias, e estão em sintonia com a proposta inovadora e flexível da Pesquisa
Performativa. Associar Laban e PaR é no mínimo coerente, considerando o
desenvolvimento de uma obra que tem repercussões na contemporaneidade.
Apesar de suas pesquisas e extensos escritos que revolucionaram as artes
do corpo, em especial a dança, Laban muitas vezes ainda é apartado de estudos
e práticas atuais. Por exemplo, mesmo tendo sido o primeiro a estabelecer os
princípios da tanztheater ou dança-teatro, e tendo sido mestre do coreógrafo
Kurt Jooss (professor de Pina Bausch), Laban muitas vezes não é associado
à dança-teatro contemporânea, a qual é equivocadamente atribuída a Kurt
Jooss.27 Isso se deve muito provavelmente à ruptura histórica e geográfica da
dança na Europa durante o período nazista, apesar de que pouco a pouco se
reconhece que Laban não teve nenhum envolvimento com o regime, e seu
trabalho gradualmente voltou a ter reconhecimento na Alemanha,28 além de
em outros países europeus. Mesmo na Inglaterra, onde desenvolveu grande
parte de seu trabalho, suas teorias muitas vezes ainda são vistas com ressalva
e marginalizadas, por exemplo, de práticas somáticas que se pretendem atuais,
mas não citam as fontes históricas de muitos de seus termos e princípios.

23.  Laban and Doerr, Das choreographische Theater: die erste vollstaendige Ausgabe des Labanschen
Werkes. Norderstedt: Books on Demand, 2004.
24.  Prevots, “Zurich Dada and Dance: Formative Ferment”. Dance Research Journal, pp. 3-8,
Spring/Summer, 1985.
25.  Preston-Dunlop, 2005.
26.  Jackie Hand apud Ciane Fernandes, “Quando o Todo é mais que a Soma das Partes: Somática
como campo epistemológico contemporâneo”, cit., pp. 46-47.
27.  SCHMIDT, J. “Learning what Moves People”. In: SCHMIDT, J.; FISCHER, E-E.; REGITZ,
H.; GINOT, I.; BILSKI-COHEN, R.; LECHNER, G. Tanztheater Today: Thirty Years of German
Dance History. Seelze/Hannover: Kallmeyersche, 2000, pp. 6-15.
28.  SERVOS, Norbert. “Entrevista”. Salvador, ago. 2013; HARDT, Yvonne. “Corpo político:
Dança expressionista e protesto. Palestra”. Conexão Dança Alemanha-Bahia. Escola de Dança
da UFBA, Programa de Pós-graduação/GP Corponectivos em Dança. 13 a 18 de agosto de
2013.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 143

Alguns exemplos do uso do Anel de Moebius em teorias contemporâneas


incluem, por exemplo, Jacques Lacan (1966), Sylvie Fortin (2003) e Elizabeth
Grosz (1994), entre outros. A articulação filosófica de Dietmar Kamper
demonstra a atualidade da obra de Laban:

O corpo humano é um local de relação entre paixão e ação, entre impressão


e expressão, entre percepção e movimento. É uma tela de projeção para
obsessões imaginárias e o instrumento próximo às fantasias pressionando
para serem encarnadas e realizadas. O corpo oscila; ele não é inteiramente
um campo, não inteiramente um meio. Ele pode ser descrito e ele pode falar.
Ele flutua entre sintoma e símbolo. A oscilação provavelmente descreve a
figura oito de um Anel de Moebius. Ela nunca é inteiramente visível.29

Essa relação gradual e recíproca entre interno e externo, crescente


contração e expansão, é ainda melhor demonstrada no desdobramento
espiralado do Anel de Moebius (Fig. 07).

Fig. 07. “Espiral”. Desenho de M. C. Escher (in Ernst, 1996, p. 98).

29.  KAMPER, Dietmar. “Incorporation and Mimesis: Primordial Patterns of Imagination”. In:
HARTEN, Jürgen; ROSS, David A. (orgs.). Binationale: German Art of the Late Eighties,
American Art of the Late Eighties. Köln: DuMont Buchverlag, 1988, p. 46.
144 das artes e seus percursos

A espiral vem também sendo usada na pesquisa pós-positivista em dança,


como nos esclarece Penelope Hanstein: “Iniciar pesquisa é um processo cíclico
e improvisacional que eventualmente espiraliza para dentro, rumo ao propósito
específico da pesquisa, o qual não é diferente do conceito artístico para um
trabalho de dança”.30 (Fig. 08). Apesar de não mencionar a PaR, os exemplos de
Hanstein certamente constituem numa integração entre prática e teoria a partir
do corpo em movimento (Fig. 09).

Fig. 08. “O processo criativo, imaginativo e improvisacional de iniciar pesquisa: vendo o que é e
o que pode ser” (Fraleigh e Hanstein, 1999, p. 29).
Fig. 09. Modelo curricular em forma de DNA entrelaçando conhecer e fazer em estética de
dança (Christina Hong-Joe apud Fraleigh e Hanstein, 1999, p. 76).

30.  FRALEIGH, Sondra Horton; HANSTEIN, Penelope (orgs.). Researching Dance: Evolving
Modes of Inquiry. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 1999, p. 28.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 145

De fato, espirais não apenas constituem a estrutura funcional e sensível do


corpo humano, desde a genética celular até complexos movimentos no espaço,
mas também as moléculas orgânicas que compõem todos os sistemas vivos,
além de caracterizar a progressão espacial do crescimento das plantas31 e da
expansão dos universos. Essa constituição compartilhada associa multiplicidade
e singularidade, diferença e autenticidade, transgredindo a excessiva ênfase
contemporânea em apenas um aspecto (multiplicidade, diferença).
Essa ênfase na multiplicidade – e todos seus parentes pós-estruturalistas
e pós-modernos, como o descentramento, a fragmentação e o simulacro –
vem associada à negação da autenticidade, o que por si só já implica alguma
exclusão e não uma multiplicidade realmente aberta e politicamente correta.
E essa exclusão da autenticidade é muito particular, histórica e esteticamente,
caracterizando uma atitude arraigada ao invés de adaptável e flexível, como se
propõem as teorias excludentes.
Isso é particularmente relevante se considerarmos que uma das principais
alunas de Laban foi Mary Wigman – colaboradora no desenvolvimento de suas
teorias da Eukinética dos fatores de movimento descritos anteriormente –, a
qual foi professora de Mary Starks Whitehouse, criadora do método somático
denominado de Movimento Autêntico (Authentic Movement).32 Poderíamos
então prever que o estudo das qualidades dinâmicas, com ênfase na atitude
interna do dançarino, levaria a um suposto movimento puro, originário de um
interior isolado e ontologicamente anterior à expressão e à relação com o meio.
No entanto, este não é caso, pois autêntico nesse contexto significa exatamente
aquela transitoriedade do movimento, a experiência presente do acontecimento
em constante (des)aparecimento, aquilo que une dança e performance.
Mais uma vez, a herança do trauma nazista repercute em equívocos
até hoje. A partir daquele contexto, autenticidade passou a significar
ser genética e culturalmente puro e superior. Já no pós-estruturalismo,
autenticidade passou a ser oposta a outros aspectos valorizados, como a
hibridez, a reprodutibilidade, e a inoriginalidade proposital,33 enquanto teorias
e abordagens de profundidade do sujeito (Jung, Steiner e Breton) deram lugar a
sujeitos de intensidades despersonalizadas (Deleuze) e ao antiantropocentrismo

31.  Mathern, 1989.


32.  PALLARO, Patrizia (org.). Authentic Movement: Essays by Mary Starks Whitehouse, Janet Adler
and Joan Chodorow. Londres: Jessica Kingsley Publishers, 1999.
33.  BALSOM, Erika. “Against the Novelty of New Media: The Resuscitation of the Authentic”.
In: KHOLEIF, Omar (org.). You Are Here. Art After the Internet. Manchester: Cornerhouse,
2014, p. 67.
146 das artes e seus percursos

(realistas).34 Autenticidade passou a ser associada a um preenchimento de


significado e a um estado absoluto de ser, oposto a tudo que é novo, instável
e incerto mas também reproduzível, o que pouco a pouco vem se associando à
novidade dos bens de consumo de massa e oposto à sustentabilidade.
Temos gradualmente testemunhado uma mudança na compreensão
da autenticidade e suas implicações. A cópia deixou de ser algo valorizado
como transmissão de conhecimento ou proliferação de multiplicidades, e
passou a remeter à mecanização e padronização generalizadas, com a perda de
uma identidade pessoal fundada na senso-percepção em meio ao excesso de
informação e proliferação de modelos ideais e artificiais de corpo, comportamento
e relacionamentos. Assim, a autenticidade tornou-se uma alternativa ao status
quo consumista, reassumindo um caráter dinâmico e ecológico mediante a
rigidez e coerção do “reproduzível”. Nesse contexto, vemos tendências como
as do slow cinema ou da slow food, bem como as de obras de arte a partir de
objetos antigos como provas de histórias únicas, e obras cênicas que lidam com
violência e traumas – experiências reais que permanecem marcadas em nossos
corpos como rastros vivos.
Ou seja, neste milênio, temos experimentado uma gradual mudança
de paradigma não só com relação à pesquisa, que passou a priorizar a prática
performativa, isto é, a experiência sensível, mas também com relação às noções
de autenticidade e centramento. Estas passaram a ganhar uma ênfase relacional
e dinâmica, implicando a sintonia entre ser e meio, pulsão e espaço, natureza
e cultura, somática e performatividade, num continuum de espaçotempo
transgressor, conectando micro e macropolítica:

Precisamos que os artistas nos guiem através de respostas sensuais,


cinestésicas, pela topografia, nos levem a uma arqueologia e ressurreição
da história social baseada na terra, nos tragam múltiplas leituras de lugares
que signifiquem coisas diferentes para pessoas diferentes e em tempos
diferentes. […] Para retornar à noção de lugar, a arte não pode ser uma
invenção centralizadora e enraizadora a menos que o próprio artista
seja centrado e enraizado. Isto não significa dizer que os alienados, os
desorientados, os nômades (por exemplo, a maioria de nós) não possa fazer
arte. Mas algum lugar portátil deve repousar em nossas almas.35

34.  Idem, p. 69.


35.  LIPPARD, Lucy R. “Looking Around: Where We Are, Where We Could Be”. In: LACY,
Suzanne (org.). Maping the Terrain: New Genre Public Art. Washington: Bay Press, 1995, p. 128.
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É nesse contexto que se inserem as explorações somático-performativas


do Laboratório de Performance do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal da Bahia, em associação ao Coletivo A-FETO
de Dança-Teatro da UFBA, que existe desde 1998 sob minha direção.36 Essas
explorações, compreendidas e vivenciadas como processos integrados de ensino,
pesquisa e extensão, têm acontecido não apenas nos encontros em sala de aula,
mas em performances em ambientes abertos, tanto natural quanto urbano. E
foram também realizadas na Imersão Somático-Performativa realizada no Aterro
da Praia de Iracema em Fortaleza CE, durante o evento Seminário Das Artes
e Seus Territórios Sensíveis. Além da autora e da Profa. Dra. Patrícia de Lima
Caetano (UFC), participaram da imersão em Fortaleza, em 06 de dezembro de
2014, os alunos/performers Ana Cecília de Andrade Teixeira, Cínthia Lago de
Farias, Jan Stephenson Pinheiro, Janaína Martins Bento, Juliana Holanda, Ítalo
Rafael de Oliveira Campos, Mateus de Sousa Gomes, Patrícia de Assis Lopes
de Andrade, e Thiago Torres. Na ocasião, sendo guiados para perceber suas
próprias pulsões, muitas vezes de olhos fechados e sem nenhum direcionamento
a priori em termos de forma ou finalização, participantes improvisaram em
criações variadas, muitas vezes com aproximações a torções e espirais (Figuras
10 a 12), inclusive desenhando-as na areia como Formas de Rastro (Fig. 13).

Fig.10. Mateus de Sousa em Imersão Somático-Performativa, Aterro


da Praia de Iracema, Fortaleza CE, 06 de dezembro de 2014. Imagem
da autora.

36.  CANÁRIO, Tatiane. “15 Anos com o A-FETO Grupo de Dança-Teatro da Universidade
Federal da Bahia, 1998-2013. Entrevista com Ciane Fernandes”. Repertório Teatro & Dança,
Salvador, n. 21, pp. 149-171, 2013.2.
148 das artes e seus percursos

Fig. 11. Patrícia Caetano em Imersão Somático-Performativa, Aterro


da Praia de Iracema, Fortaleza CE, 06 de dezembro de 2014. Imagem
da autora.

Fig. 12. Cecília Andrade em Imersão Somático-Performativa, Aterro


da Praia de Iracema, Fortaleza CE, 06 de dezembro de 2014. Imagem
da autora.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 149

Fig. 13. Thiago Torres em Imersão Somático-Performativa, Aterro da


Praia de Iracema, Fortaleza CE, 06 de dezembro de 2014. Imagem da
autora com câmera subaquática acoplada.

A imersão incluiu também a realização de um registro somático-


performativo experimental, em que a autora filmou enquanto interagia com
ambiente e demais performers.37 A câmera subaquática utilizada, acoplada
à mão direita, também passou a integrar a imersão, como pulsão somático-
performativa no ambiente, sem o controle de um cameraman ou de um ponto
de vista isolado e fixo. Buscou-se, assim, integrar observador e realizador, em
busca de perspectivas múltiplas do próprio corpo, diluindo a ilusão de uma
perspectiva não participativa, e enfatizando ainda mais a integração de cada um
em si mesmo no/com o todo (Figuras 14 a 17).

37.  O vídeo somático-performativo pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=rK6r-


10X9DU.
150 das artes e seus percursos

Fig. 14. A autora em Imersão Somático-Performativa, Aterro da Praia


de Iracema, Fortaleza CE, 06 de dezembro de 2014. Imagem da
autora em movimento.

Figuras 15 e 16. Imersão Somático-Performativa, Aterro da Praia de Iracema, Fortaleza CE, 06 de


dezembro de 2014. Imagem da autora em movimento.

Procedimentos utilizados nessas explorações advêm da Arte do


Movimento e abordagens correlatas como a Análise Laban/Bartenieff de
Movimento, a dança-teatro, a performance, e o método somático do Authentic
Movement (Movimento Autêntico) – criado por Mary Whitehouse, aluna de
Wigman.38 Nessa associação de abordagens em diferentes ambientes, o soma

38.  Fernandes, “Como se move o que nos move? Variações autênticas, padrões cristal, e pesquisa
somático-performativa”. In: Movement News. Edição bilíngue inglês/português. New York:
Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies, Fall 2012, pp. 68-73.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 151

Fig. 17. A autora percorrendo de costas o caminho espiralado


desenhado na areia por Cecília Andrade. Aterro da Praia de Iracema,
Fortaleza CE, 06 de dezembro de 2014. Imagem da autora.

guia a pesquisa em movimento, diluindo a dicotomia entre conexão interna


e apresentação espetacular, dançarino ativo e espectador passivo, experiência
e registro, performance e escrita, processo e produto. A conexão somática se
dá no momento de compartilhamento público imprevisível, num processo
contínuo e espiralado de desafio e crescimento pessoal e ambiental.
Ao tentar recapitular o início do que venho chamando de Abordagem
Somático-Performativa,39 remeto-me à minha tese de doutorado sobre Pina
Bausch na New York University (NYU, 1990-1995), realizada em conjunção
com o Certificado de Analista de Movimento (Certified Movement Analist /
CMA) no Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies (LIMS) (1993-1994).
Lembro-me de levantar e mover durante a observação dos vídeos das obras
analisadas do Wupertaler Tanztheater, mesmo estando em plena sala de acesso
restrito da biblioteca do Lincoln Center (Lincoln Center Library of Performing
Arts), onde todos estavam sentados passiva e concentradamente assistindo a
vídeos inéditos de dança. Aquela necessidade de me mover enquanto realizava
a análise dos movimentos nas coreografias tornou-se o que venho chamando de
Observação Realizadora ou Realização Observadora, que praticamos em aulas,

39. Idem.
152 das artes e seus percursos

ensaios, orientações em grupo etc. O modo de apreender é sempre através do


corpo em movimento, este último compreendido como processos de contração
e expansão em ondas entre ebulição e pausa.40 Assim, a hegemonia da palavra
torna-se um espaço entre performance escritiva e escrita performativa.41
No doutorado, realizava também muitas aulas práticas, dentre elas com
o coreógrafo Douglas Dunn, um dos pioneiros da dança pós-moderna norte-
americana através do Judson Dance Theater no início dos anos 1960. Lembro
que certa vez fizeram uma pergunta a Douglas durante a aula, ele se levantou,
dançou explorando o espaço em diferentes ênfases rítmicas, e em seguida
anunciou sua resposta verbal. Essa forma de explorar e criar conhecimento,
eminentemente dinâmica e relacional, com o corpo todo, foi parte fundante
do Certificado de Analista de Movimento, no qual desenvolvi um projeto
coreográfico a partir do método de arte-terapia Movimento Autêntico em
associação com a Análise Laban/Bartenieff de Movimento, e em conjunção
com o trabalho final de cerca de cinquenta páginas, com vários motifs (desenhos
de movimentos derivados da Labanotação).
Todos esses processos práticos simultâneos, associados à experiência
direta com as obras e a companhia de Pina Bausch, tanto em New York quanto
em outras capitais europeias, e as disciplinas teóricas do doutorado, e mesmo
a exposição multicultural do contexto nova-iorquino, foram gradualmente
se amalgamando em uma tese não apenas sobre dança, mas com dança.42 No
período de escrita final da tese sobre dança-teatro contemporâneo (1994-1995),
cheguei mesmo a desfilar no carnaval porto-riquenho dançando salsa em um
grupo de “nativas” caribenhas ao longo do Central Park na quinta avenida, e
fazia aulas de canto lírico na New York University, com um repertório que incluía
Schumann, De Falla e Schubert. E foi através dessas experiências práticas de
relação com contextos em movimento que pude perceber e coreografar a tese.
Ao invés de escrevê-la linearmente, seguindo um planejamento pré-organizado,
deixei que as impressões das obras me atravessassem, tanto quanto todas aquelas
influências técnicas, estéticas e culturais distintas. Nascia ali o que hoje chamo
de Abordagem Somático-Performativa, usada principalmente no contexto da
pesquisa acadêmica em artes cênicas.

40.  Stir and Stillness, Laban, 1939/1984.


41.  Fernandes, 2010.
42 LEPECKI, André. Of The Presence of The Body: Essays on Dance and Performance Theory.
Middletown, Connecticut: Wesleyan University Press, 2004, p. 133.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 153

Na pesquisa somático-performativa, a principal questão com relação


à transdisciplinariedade é o fato de termos o soma como eixo ao longo da
performatividade, isto é, a integridade com relação a nossos impulsos de
movimento no continuum espaçotempo criativo é o que define quais conceitos
e autores são relevantes. Não estamos interessados em juntar teorias e autores
quantitativamente, mas em criar uma coerência com a experiência criativa
viva, que é de fato quem determina, seleciona e relaciona diferentes pensadores
e conceitos integrando sensibilidade e inteligência em Sabedoria Somática.43
O diálogo entre teorias e autores (interdisciplinar), numa multiplicidade
irrestrita (multidisciplinar), cuja associação gere uma terceira perspectiva
além deles (transdisciplinar), só faz “sentido” se está vinculada e resulta da
“experiência” (Bondía, 2002), aliás, da experiência criativa e somática, a partir
da corporeidade com/no ambiente. A partir de um conjunto de abordagens,
denominada como Multi-Inter-Trans ou MIT Disciplinar (Farias, 2012),
buscamos conferir um novo olhar sobre as disciplinas a partir do impulso em
movimento como propulsor e (des)organizador de modos de viver, relacionar-se
e criar, logo, pesquisar.
Nesse contexto, prática não é apenas o meio pelo qual criamos obras a
serem analisadas na pesquisa, ou processos de vida que passam a participar de
procedimentos científicos. Mas esses procedimentos passam a ser definidos pela
prática enquanto corpo vivo em sua totalidade (soma) em pulsões espaçotemporais
imprevisíveis. Muito além de dicotomias como “prática” e “pesquisa”, a “Prática
Artística como Pesquisa” incorpora o modus operandi da criação artística a partir
da corporeidade e suas intensidades como meio de estruturar e fazer pesquisa.
Isso é o que podemos ver, por exemplo, na pesquisa de mestrado de Felícia de
Castro Menezes (2012), cujo tema foi seu espetáculo Rosário, e na pesquisa
de doutorado de Márcia Virgínia de Araújo (2008), cujo tema foram os rituais
xamânicos aplicados à dança-teatro. Nos dois casos, as pulsões da obra e seus
processos geraram a organização espiralada da dissertação ou tese (Figuras 18
e 19).

43.  HARTLEY, Linda. Wisdom of the Body Moving: an Introduction to Body-Mind Centering.
Berkeley: North Atlantic Books, 1995.
154 das artes e seus percursos

Fig.18. Diagrama das direções da pesquisa de doutorado Gestos Cantados: Uma proposta
em dança-teatro a partir de princípios rituais (Araújo, 2008), em que cada capítulo reflete um
percurso (e suas implicações temáticas) entre duas direções dos rituais xamânicos.

Fig.19. Diagrama dos vários níveis temáticos – processos, técnicas, abordagens, instrumentos,
estéticas etc. – da dissertação de mestrado “Ventos que Animam a Terra: Voz e Criação na
Trajetória do Espetáculo Rosário” (Menezes, 2012).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 155

Assim, disciplinas deixam de ser perspectivas estanques, que usam o corpo


como tema ou mesmo instrumento (já que ao escrever e pensar o fazemos com
o corpo), para serem em si mesmas articuladas pela necessidade somática em
performance. Esta última não apenas relaciona teorias MIT – disciplinarmente
através da corporeidade, mas em suas espirais de crescimento irrestrito cria
novas perspectivas que diluem a dicotomia entre prática e teoria, bem como a
própria compartimentalização em disciplinas e áreas do conhecimento.
Através da sintonia somática entre corpo pessoal e ambiente vivo,44
transforma-se não apenas a relação entre sujeito e objeto, que deixa de confirmar
a dicotomia mente e corpo, controlador e controlado, para criar um ambiente
relacional e recíproco de mover e ser movido, perceber (a si mesmo e ao meio) e
agir (ao invés da simples ação-reação), em ritmos contrastantes entre ebulição
e pausa, a que podemos chamar de harmônicos (como definiu Laban). Nesses
processos de cocriação espiralada, integramos pesquisador(es) e pesquisa(s), arte
e vida, em somas dançando entre matéria e energia. Assim, transgredimos o
adestramento do corpo baseado na posição sentada para perceber e transformar
em sintonia com modos de crescimento da própria vida, onde todo aprendizado
se realiza através do e em movimento.
“Movimento, não mais ponderação, é o que traz novo conhecimento.”45

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Corpo em crise1
Julie Barnsley

Este vídeo curto, Project Videohere – Hogar Dulce Hogar, www.youtube.


com/aktionkolectiva, abriu o evento multimedia chamado La Rosa Mutilada (A
Rosa Mutilada), coordenado por mim. Aqui vemos o corpo em crise, a casa em
colapso no alto de seu corpo indefeso representa não apenas a casa da mulher,
mas o mundo à sua volta e o estado atual do corpo. A casa está em processo
de demolição. O corpo luta para manter-se, enterrado e sufocando sob as
ruínas e poeira cinza, carne e ossos fincados sob tijolos e pedras. Este trabalho
continua em uma performance ao vivo onde vemos a mesma mulher ser na
realidade uma figura frágil e frenética, nunca parada, em movimento perpétuo,
constantemente tentando preencher uma miríade de papéis: a esposa fiel, a
boa mãe, a socialite, a amante sedutora, a rainha da beleza, a administradora
eficiente, a constantemente bem-humorada. Sem tempo ou espaço para o

1. O motivo pelo qual escrevi o meu primeiro livro, uma exploração sobre como certos territórios
do corpo têm sido tradicionalmente infundamentados e subdesenvolvidos na cultura ocidental
foi a minha necessidade de entender mais a respeito dos obstáculos que eu constantemente
encontrava e sofria como uma bailarina, professora de movimento e coreógrafa. Naquele
mesmo livro, e para estabelecer ainda outro terreno necessário à expressão verbal da
experiência do movimento, também escrevi a respeito de vários experimentos de movimento
e criações coreográficas que eu dirigi em minha companhia de dança durante muitos anos de
pesquisa e prática.
Minhas criações coreográficas podem ser vistas, e meu livro, Cuerpo Como Territorio de la
Rebeldía, pode ser baixado do blog ou da página da minha companhia de dança, Aktion
Kolectiva: www.facebook.com/aktionkolectiva ou www.aktionkolectiva.com
Como continuação da pesquisa, atualmente estou escrevendo um livro que trata de como
ajudar a remediar o problema de como nos aproximarmos do corpo. Desta vez fora do domínio
de meus interesses estéticos particulares que são amplamente explorados no trabalho que
tenho feito com a companhia Aktion Kolectiva. O texto a seguir foi extraído dessa investigação
recente.
162 das artes e seus percursos

silêncio, sem possibilidade de ouvir e de se comunicar a partir de um local vital,


sem tempo ou espaço para ser consciente com ela mesma ou com os outros. O
corpo eventualmente entra em colapso. O que era bonito, natural, vital, torna-
se epilético, esquizofrênico, psicótico.
Em meu livro Cuerpo como territorio de la rebeldía, descobrimos como
as teorias que dividem o corpo e mente, e que foram adotadas pela sociedade
ocidental limitaram e castraram seriamente as possibilidades de desenvolvimento
do indivíduo. Dois exemplos expoentes são o Cristianismo, em que o corpo é
visto como pecaminoso e o pensamento Cartesiano, em que o corpo é concebido
e analisado como uma simples máquina.
Nesses dois sistemas, o corpo físico, sensual e instintivo é desprezado,
considerado como tendo um impacto negativo no desenvolvimento espiritual
e intelectual, o que, de acordo com Descartes, ocorre em uma área precisa do
cérebro, separada e autônoma do resto do corpo.
Talvez por conta dessas históricas atitudes negativas com relação ao
corpo, nós nos tornamos cientes dele apenas quando adoecemos ou quando
alguém morre, somente na ausência ou mau funcionamento refletimos sobre a
extraordinária natureza de nosso corpo e do bem-estar.
As duas ideologias continuam a ter uma enorme influência na psique
ocidental. Em meu próprio trabalho, desde o seu início, há 35 anos, eu me
conectava instintivamente a esse corpo não amado, esse corpo em crise, e me
tornei dedicada a explorar e usá-lo em minhas criações em dança. No início dos
anos 1980 era chocante confrontar e projetar esses corpos na cena de dança
de Caracas. Concertos de dança eram eventos efêmeros, polidos, enquanto a
vida real na cidade era violentamente coreográfica – viva, vibrante, altamente
cinética, emotiva, e os ritos religiosos pagãos eram igualmente voláteis e
explosivos. Entretanto, o movimento como exploração e expressão consciente
nas artes tinha um campo muito limitado de ação e alcance.
Agora, talvez possamos argumentar que dentro do pensamento pós-
moderno o corpo alcança uma nova liberação e protagonismo, não mais limitado
ou controlado por dogmas absolutos que falharam em provocar as prometidas
utopias pessoais e coletivas. Auxiliada pela revolução tecnológica, acontece
uma nova validação de subjetividade e interpretação pessoal. Uma propagação
de ficções pessoais substitui as verdades absolutas de modernidade em um
mundo que valoriza, hoje mais do que nunca, a diversidade e a pluralidade. Mas
nós realmente escapamos da manipulação tradicional de nosso corpo/mente?
Estamos usando a tecnologia para aprofundar o autoconhecimento e para nos
conectarmos mais profundamente aos outros e ao mundo? Ou estamos presos
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 163

dentro dos programas, aplicativos e menus que essencialmente nos divertem


e distraem? E os terrenos da intimidade e dos sentidos também estão sendo
manipulados em grande parte para ganhos de entretenimento e comerciais?
Podemos diferenciar entre uma subjetividade hedonística e decadente como
oposta a um sentido de ser vital, íntimo e ético?
Hoje, graças aos nossos equipamentos eletrônicos, nos conectamos tão
fácil e rapidamente a todos e a qualquer tipo de informação. Podemos ver o que
está acontecendo por todo o mundo e o momento exato de sua ocorrência. Mas
como estamos interpretando esse bombardeamento de informação audiovisual?
Já começamos a processá-las? Ou estamos simplesmente viciados em assistir à
próxima novidade que aparece nos monitores, dando, eventualmente, o mesmo
valor a tudo – absolutamente nenhum valor. A experiência audiovisual domina
a cultura. Frequentemente estreitando nossa visão ao monitor e menus à nossa
frente, um número de sentidos e receptores do corpo tornam-se redundantes.
Estamos mesmo mais conectados com a gente mesmo e com o mundo? Estamos
realmente nos aproveitando da nova tecnologia para sermos mais criativos,
inteligentes, tolerantes?
Talvez a TV seja um bom termômetro de como percebemos e projetamos
o corpo. Testemunhamos aqui a obsessão e marketing dos corpos jovens e cheios
de brilho e energia que divertem e seduzem, corpos que nunca envelhecem,
ou os corpos firmes e duros dos atuais ídolos esportivos, movendo-se como
jaguares em um mar verde, seguidos por fãs e admiradores. Ao largo dessas
áreas sedutoras, glamourosas e caras há outras cenas: pessoas comuns deitadas
pacientemente em camas de hospitais, entregando-se voluntariamente a
bisturis, esperando para serem abertas e recheadas com silicone, como porcos e
perus, numa tentativa de manterem as aparências da juventude. Igualmente, a
morte, doenças e loucura são temas de simples entretenimento. Vemos muitos
programas, de ficção e documentário, de assassinos, psicopatas e suas vítimas
indefesas, corpos mudados e perigosos em atos de crueldade, e então temos o
olho e o espelho reveladores dos reality shows, onde a banalidade se supera.
Em uma observação mais íntima, quando nos sentimos exaustos, à beira
de um colapso ou envoltos em dor, pagamos altos preços para alguém arrancar de
nosso dilema corporal. Tomar comprimidos que nos anestesiam ou na esperança
de que melhorem nossa circulação, ir a academias superlotadas e cheias de suor
para que alguém nos diga como alongar nossos corpos de maneira mecânica.
Talvez escolhamos outros tipos de drogas e estimulantes que também ajudam
a circular emoções, pensamentos e músculos que geralmente são reprimidos e
imóveis. Se tivermos sorte, deixaremos o estresse de horários artificialmente
164 das artes e seus percursos

impostos e o espaço de concreto repressor das cidades. Talvez, na natureza,


nos conectemos com outros fenômenos vivos, e quem sabe dessa maneira
acalmamos nossa respiração agitada, permitindo que o corpo se recupere, se
repare. Mas provavelmente, quando a crise tiver passado, esqueceremos mais
uma vez a natureza do corpo.
O sempre torturado, fragmentado corpo feminino, é apresentado
intensamente em minhas ficções coreográficas. Infelizmente, na vida real e
nos programas de dança formais sempre encontramos personagens similares.
Contrários à essência das práticas artísticas, que devem usar profundamente
os sensos corporais, caminhos vitais para comunicar a experiência pessoal e
coletiva, na dança convencional o ideal é sempre um virtuosismo hipercinético,
hiperflexível com uma debilidade correspondente e psique fragmentada.

Movimento como Arte, Movimento como Vida

Por causa dos enormes preconceitos em relação ao corpo no pensamento


ocidental e da predominância do conceito de divisão corpo/mente, tivemos
que esperar mais de 2000 anos, até o início do século 20, para o nascimento
da dança moderna. Aqui, pela primeira vez, a investigação e a expressão
do movimento são consideradas propósitos artísticos importantes. Todavia,
mesmo hoje, altamente influenciados pelo legado histórico do corpo em
movimento usado apenas como ferramenta para entretenimento e virtuosismo,
a educação formal para a dança frequentemente se recusa a incorporar
estratégias de exploração do corpo que poderia levar ao desenvolvimento de
uma profunda sabedoria corporal. Isso só pode ser alcançado através de um
profundo e necessário dom de ouvir, uma autoconsciência cultivada e uma
eventual auto-orientação.
Simultaneamente ao crescimento e interesse na cultura física e no
movimento oficial de dança moderna e para se contrapor ao efeito debilitante
de muitas estratégias de treinamento de dança e outras práticas corporais, surge
um outro campo de experimentação: a somática, inspirada na palavra de origem
grega soma, ou “corpo total”. Essas práticas objetivam contrapor-se aos aspectos
violentos e inconscientes de muitas práticas de movimento. Foi apenas em 1976
que Thomas Hanna, um de seus pioneiros, define a “somática” como o estudo do
eu a partir da perspectiva da “arte e ciência dos processos inter-relacionados de
consciência, funcionamento biológico e meio ambiente”. Esses estudos tiveram
como pioneiros vários indivíduos durante os últimos cem anos, cada um criando
diferentes métodos de ação e reflexão. Todos eles dando ênfase à experiência de
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 165

vida do indivíduo e igual valor às dimensões física, espiritual e psíquica de cada


corpo em particular.
Em anos recentes os princípios da educação somática e da yoga têm
sido de grande interesse para mim, não apenas como inspiração e um meio de
fornecer a muitos dançarinos novas ferramentas que os capacitem a apreciar e
se apropriar do corpo, mas também na aplicação dessas estratégias de reflexão e
prática para qualquer corpo – para todos os corpos.
Além das possibilidades e consideração de espiritualidade em termos
abstratos, metafísicos ou físicos. Atualmente estou interessada em desenvolver
práticas e teorias concretas que intensifiquem a experiência de nosso corpo/
mente e, consequentemente, nossa capacidade de percepção enquanto aplicada
a nós mesmos, aos outros e ao mundo em que vivemos. Práticas que nos
possibilitem usar de maneira mais profunda e criativa o organismo vital que é o
corpo humano.
O objetivo é criar um empoderamento e independência pessoal.
Estou convencida de que nossa conexão com o conhecimento corporal, e
seu desenvolvimento, nos liga à nossa inteligência orgânica e natural. Como
resultado, nós nos tornamos mais alertas, sensíveis e conectados a todos os
outros fenômenos naturais. Este é um fundamento verdadeiro e efetivo. Uma
perspectiva, a partir da qual desenvolvemos nosso potencial físico, emocional e
intelectual, levando-nos a uma maior autopercepção e independência pessoal,
que pode ser aplicada em qualquer caminho de nossas vidas.
Assim, Explorando o corpo conscientemente é um programa criado,
inicialmente, a partir da minha insatisfação pessoal com a educação tradicional
da dança e com os professores de dança, que se expandiu porque considero
este e outros tipos similares de programas necessários e pertinentes a todas as
instituições educacionais em todos os níveis.
Atualmente, coordeno um grupo de professores desse programa na
Unearte (Universidade Nacional de Artes em Caracas), onde é obrigatório a
todos os estudantes de graduação. Aqui, futuros pintores, artistas audiovisuais,
atores, músicos e bailarinos se juntam para explorar e investigar a experiência
do corpo. Atualmente também estou assessorando um grupo de estudantes que
decidiu aplicar os conceitos básicos desse programa em uma área popular da
cidade na pré-escola para crianças de quatro e cinco anos de idade.
Uma das metas do curso é transformar o conhecimento científico sobre o
corpo tradicionalmente apresentado, geralmente desgastado e impenetrável, em
uma forma vital e significativa. Talvez um dia todos percebamos a bela expansão
e contração dos pulmões, a pulsação do sangue correndo através das veias, a
166 das artes e seus percursos

contração e expansão do coração pulsando. Os ligamentos e tendões que ligam


os ossos, que permitem o movimento; movimento, o requisito primordial para
a vida. Podemos, no presente, visualizar os componentes e sistemas dos quais
somos feitos? Os olhos, os ouvidos, os ossos e músculos, as coisas básicas que
usamos para fazer arte? Importa-nos como elas funcionam? Por que devemos
entendê-las? Nós queremos entender?
No curso embarcamos em uma jornada de autoexploração,
experimentando na prática e analisando conscientemente muitos territórios da
experiência corporal. Frequentemente com referências a conceitos tradicionais
de anatomia e cinética entendemos de pronto que esses conceitos científicos
não são apenas dados em uma página impressa, mas a base para as ações vitais
e concretas do corpo, que faz com que nos movamos, sintamos e pensemos. O
objetivo é entender o corpo como um organismo em constante transformação
que está continuamente processando nossa vida interior e exterior, e como
esses processos determinam e afetam nossos múltiplos estados de consciência,
a miríade de sentimentos que experimentamos e a complexidade de todos os
pensamentos intelectuais e abstratos que entram em nossas mentes.

Microcosmo e Macrocosmo,
Ciência e sensibilidade, estética e ética
Vamos começar do começo.

Para estabelecer um certo contexto para o corpo, e para expandir nosso


conhecimento, observamos o universo e as primeiras formas de vida sobre a terra.
Descobrimos que cientistas, como artistas, têm imaginação fértil, inventando
ficções criativas quando confrontam o desconhecido. Às vezes desenvolvem
teorias, baseadas mais em especulação do que em fatos inquestionáveis. Também
encontramos algumas denominações poéticas, tais como neblina quente e
branca, energia preta, anões marrons, estrelas e planetas.
Supostamente, o universo começou como uma massa compacta e uma
neblina quente e branca e está em constante expansão. O planeta terra foi
formado a partir de uma mistura de poeira cósmica e a neblina que cercava
o sol (que, em si, é um foco de hidrogênio em combustão), e devido a uma
queda de temperatura, vapores na atmosfera produziram chuvas torrenciais
que eventualmente formaram os oceanos terrestres. Água é uma substância
rara no sistema solar, sem a qual a vida é inconcebível. Parece, portanto, que a
vida na Terra surgiu devido a contínuas mudanças climáticas na atmosfera, que
causaram uma reação infinita de substâncias e combinações químicas.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 167

Depois de aproximadamente 3 bilhões de anos dessas mudanças


climáticas e químicas, surge a cadeia de DNA pré-celular (o anteprojeto básico
para o organismo vivo), flutuando e se alimentando imersa na sopa química
dos primeiros oceanos. Um bilhão de anos depois a célula se desenvolveu,
proporcionando ao DNA mais proteção e maior facilidade nutricional.
As cadeias de DNA contêm cromossomos que contêm genes que
determinam cada característica do organismo em desenvolvimento. Quanto
mais complicado o organismo vivo, maior o número de cromossomos e genes.
Toda forma de vida é composta dos mesmos elementos químicos: nitrogênio,
hidrogênio, oxigênio e carbono, e cada organismo contém diferentes proporções.
E na essência de todo ser vivo existe o DNA primordial que conecta tudo a
todas as coisas.
E assim, de acordo com a ciência, nascemos do pó e da sopa química
dos primeiros oceanos e todo ser vivo possui DNA, que conosco permanece
até o momento da morte. Além disso, todas as coisas estão em constante
transformação e adaptação em relação ao ambiente. Vemos como cada
organismo se desenvolve para si mesmo e ao mesmo tempo integra e trabalha
dentro do grande ecossistema. Vemos como as plantas usam o CO2 que animais
e humanos expelem para gerar energia, e elas, em troca, expelem oxigênio que
humanos e animais precisam para sobreviver.
A cadeia de DNA determina muito de nosso comportamento, nos liga
a todos os outros fenômenos vivos e ao mesmo tempo nos fornece um senso
único de ser, dando-nos as ferramentas e habilidades essenciais para a defesa e
evolução do nosso organismo.
Cada sistema corporal humano se desenvolve com uma função específica
e, ao mesmo tempo, há a interdependência de todos os sistemas corporais e
finalmente a interdependência e a interação com o mundo. Tudo isso para
a sobrevivência básica. A vida quer vida e está constantemente buscando a
melhor maneira de processá-la.
Essa realidade biológica e digressão científica obviamente têm aplicações
ideológicas e filosóficas.
Nós devemos estar interessados em nossos corpos, tentar usá-lo
completamente e apreciá-lo, de modo que talvez consigamos começar a
reverter a apatia e resistência tradicional existente; e também nos tornarmos
mais articulados e confortáveis para falar sobre eles. Trabalhar para inserir
esses novos conceitos de corpo nas escolas e universidades é tão importante
quanto eliminar a tradicional divisão hierárquica entre o pensamento científico
e a expressão artística. Somente quando fazemos a conexão entre princípios
168 das artes e seus percursos

objetivos científicos e a experiência subjetiva e perceptiva sensorial de viver,


podemos esperar reverter a ainda predominante ideologia e dualidade do
pensamento cartesiano, em que o pensamento científico objetivo é considerado
superior à experiência dos sentidos. Isso tem sido instrumental na manutenção
do corpo como dócil e maleável, divorciado de seu poder intrínseco, indiferente
e sem ligação com problemas que deveriam dizer respeito a todos nós.
Quando fazemos as conexões entre emoções, inteligência e intuição/
instinto, alcançamos um novo conhecimento e o corpo aprende a saber como
se ajudar. Tornamo-nos menos dependentes de outros e a ética surge dos
próprios tecidos de que somos feitos, uma ética e respeito baseados na natureza,
perpetuando e desenvolvendo a força da vida interior de nossos próprios corpos.
Cultivamos um novo entendimento e conexão com nosso próprio eu, com os
outros e com o mundo à nossa volta. Aprendemos a sentir o que devemos e o
que não devemos fazer, o que é necessário para se alcançar um senso de bem-
estar.
Dessa maneira talvez possamos vir a questionar se a aparência exterior
é realmente mais importante do que o conteúdo interior. E se a crueldade e
a violência contra outros e contra a terra para ganhos individuais e prazeres
pessoais são um comportamento ético.

Fazendo as Conexões
Fisiologia e espiritualidade

Nossos sentidos existem, inicialmente, para informar e nos permitir


processar e transformar elementos necessários à nossa sobrevivência. Para
nos mover em direção a objetos que vão nos nutrir e para longe de ambientes
prejudiciais. As emoções, sentimentos e percepções que experimentamos são
estados conscientemente palpáveis que nos ocorrem, gerados por mudanças
químicas e físicas que o corpo experimenta quando detecta mudanças dentro
de si ou a partir do exterior.
Emoções, sentimentos, ideias e ações são respostas naturais do corpo a
todo estímulo interno e externo, ferramentas que nos permitem viver e estar no
mundo, processar acontecimentos, nos comunicarmos com outros e com o meio
ambiente, resolver problemas e seguir em frente.
O estado físico e químico do corpo está, portanto, entrelaçado aos nossos
estados de mudança de consciência e vice-versa. Um diabético ou um viciado
em drogas rapidamente verificará essa teoria. Se muito ou pouco açúcar (que
fornece energia) entra na corrente sanguínea do diabético, suas células não
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 169

receberão a química necessária que precisam para prover energia para otimizar
o funcionamento do corpo. Sinais de alerta serão enviados ao cérebro e isso
o afetará em diversos níveis; emocionalmente ele se sentirá irritado, ansioso,
até mesmo furioso, fisicamente ele pode perder a coordenação e a energia,
e mentalmente seus pensamentos se fixarão em imagens e ideias negativas
provocadas por um corpo à beira do colapso e o senso de impotência que isso
acarreta.
Essa equação também funciona inversamente. Se conscientemente
criamos condições em que estamos emocional, física e mentalmente contentes,
o estado fisiológico do corpo melhorará. Com um corpo relaxado, sem qualquer
ameaça, os músculos terão um tônus natural e o coração baterá calmo e
regularmente, o oxigênio que se respira entra no sangue e então nos tecidos
do corpo, sem qualquer problema, e depois os processos eletroquímicos e os
sistemas corporais também trabalharão otimizados. Nesse estado, a mensagem
que chega ao nosso consciente é de que tudo está bem, nossos sentidos
estarão mais abertos e uma grande quantidade de informações será recebida
do ambiente e transformada em imagens e ideias que poderemos comunicar
e compartilhar com outros. Não sentir medo ou repressão provavelmente fará
com que nos aventuremos a nos expressar integralmente e um sentimento de
conforto e tranquilidade permeará o corpo. Tudo isso promove mais abertura
física, relaxamento e pensamentos mais criativos e benignos.
Da mesma forma, se estou em uma situação em que sinto medo ou
hostilidade, eu provavelmente me retrairei e me recolherei dentro de mim
mesmo, meu corpo ficará rígido e meus músculos tensos e contraídos. O oxigênio
agora entrará no meu corpo com mais dificuldade e os processos fisiológicos
estarão sob pressão, a pressão sanguínea e a tensão aumentarão, exercendo,
assim, pressão extra sobre o coração. A tensão nos músculos também bloqueará a
comunicação dos estímulos neurais dentro do corpo; tudo isso enviará mensagens
de alarme para o cérebro. Eu posso ficar cansado, incomodado, nervoso e sentir
a necessidade de fugir. Provavelmente, sentimentos de impotência, ansiedade,
raiva e paranoia acompanharão esse estado físico e químico em particular.
Também podemos aprender com os processos biológicos de homeostasia.
Mesmo durante o sono o corpo está se ajustando, reparando e regulando,
para que, ao acordarmos, funcionemos de forma otimizada. O conhecimento
intrínseco e fundamental contido no DNA mantém o corpo funcionando cada
segundo de nossas vidas, frequentemente em níveis inconscientes. Mesmo
quando maltratamos nosso corpo, o que fazemos com frequência, a inteligência
orgânica trabalhará para seu reparo.
170 das artes e seus percursos

O corpo/mente é nossa primeira realidade. Estamos no mundo por causa


disso. Os processos biológicos e nossos estados de consciência são interligados
em manifestações dessa realidade. Quando órgãos vitais param de funcionar,
estamos mortos – sem mente, sem consciência. Não existe corpo sem cérebro,
assim como nenhum corpo está em funcionamento sem um cérebro.
A parte inferior do cérebro, por exemplo, está envolvida em modelos
básicos de movimento. Se eles forem mal desenvolvidos o cérebro superior terá
que ajudar a resolver o problema. Dessa forma, o cérebro superior perderá energia
para os processos mais sofisticados e complexos de que é capaz. Programas gerais
de educação ignoram e negligenciam essa realidade.
Aos cinco anos de idade, eles nos fecharão em nossas carteiras de metal
e nos encorajarão a desenvolver a mente, ênfase nas capacidades matemáticas,
lógicas e até mesmo abstratas da mente. Bilhões de anos de evolução para
desenvolver os sentidos sofisticados que temos, e agora, durante pelo menos
uma década, e exatamente quando nossos corpos estão se desenvolvendo, nos
farão sentar, presos a nossas carteiras.
Entendendo e desenvolvendo mais profundamente nossa percepção
sensorial e faculdades cinéticas, não apenas aprimora nossa capacidade prática
de resolver tarefas mundanas e problemas de sobrevivência básica, mas também
aprofunda nossa percepção, apreciação e possibilidades de ação no mundo.
Podemos usar nossos olhos para não cairmos em um buraco, uma ação
prática em um modo de sobrevivência básica; observar um trabalho de arte
ou mesmo criá-lo nós mesmos, o que é uma experiência intelectual, sensual,
estética e conceitual. Com o movimento é igual: podemos nos mover para
nos aproximarmos ou nos afastarmos das coisas, fazer gestos para expressar
e comunicar emoções e ideias para alguém ou dançar ou fazer movimentos
abstratos e, assim como qualquer outra forma de arte, expressar nossa própria
essência e espiritualidade.
Entender e desenvolver possibilidades de movimento e diferentes
modos de percepção do nosso corpo deveria ser uma parte essencial da
educação em todo estágio de nosso desenvolvimento e, sem dúvida, em todos
os momentos de nossas vidas. Quando a capacidade motora e os sentidos
estão compromissados, não estamos integralmente no mundo e a vitalidade,
inteligência e eficiência geral do corpo estão enfraquecidas, privando-nos de
energia em tudo que tentamos fazer. Assim, nós nos tornamos mais facilmente
frustrados e nos sentimos impotentes em lidar com as inevitáveis tarefas e
problemas da vida.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 171

Reflexões na consciência
Ser ou não ser

Sobre saber que eu sei… e sobre por que nada fazemos a respeito do corpo
em crise. O homem é a única espécie que supostamente sabe como observar
e refletir a seu próprio respeito enquanto vive. O cérebro levou milhões de
anos para alcançar esse nível altamente complexo. Antropólogos ainda se
questionam sobre quando exatamente no processo evolutivo o neocórtex
– a parte do cérebro com as funções cerebrais mais complexas e sofisticadas,
incluindo a auto-observação – começou a se desenvolver. Quando nos
transformamos de homo erectus para homo sapiens. As últimas teorias dizem
que o cérebro expandiu para adquirir essa nova autopercepção durante um
período de mudanças climáticas muito intensas e rápidas. Certamente, se nos
referirmos à nossa própria experiência, veremos que em tempos de grande crise,
instintivamente nos tornamos mais capazes para a sobrevivência e podemos
resolver problemas mais rápida e efetivamente do que o fazemos geralmente.
O elemento de aprendizado consciente é um dos fatores-chave do
curso. Quando nos tornamos conscientes da terrível injustiça a que o corpo foi
submetido ao longo da história, é difícil entender por que o próprio corpo, que
parece estar sempre buscando otimizar suas possibilidades, tem sido tão dócil e
facilmente manipulado.
É difícil não perguntar: por que historicamente não houve uma rebelião
mais generalizada contra essa repressão e abuso de seus poderes naturais? E por
que, ainda hoje, se o corpo/mente é mais capaz do que qualquer outra espécie
de observar e corrigir a si mesmo, não prestamos mais atenção nisso? Por que
nós – provavelmente – cuidamos muito mais de nossos carros e casas do que de
nossos corpos?
Em parte, nossa própria biologia nos dá uma certa resposta... Vejamos:
Por motivos de sobrevivência, nosso corpo sabe como mentir para
si mesmo. Nossa consciência pode ignorar e bloquear certos sinais que o
corpo produz; por exemplo, quando experimentamos excessiva dor física ou
emocional, o cérebro pode focar automaticamente em outro alvo, real ou
imaginário, permitindo assim que certos impulsos e informações permaneçam
fora do alcance da percepção. Desse modo uma pessoa tem uma habilidade
maior de resistir e lutar contra grandes adversidades. Um maravilhoso atributo
do sistema nervoso para ajudar o corpo em sua luta pela sobrevivência!
Infelizmente, em nossa cultura – nossa educação e tradições – esta
habilidade natural do corpo, que existe para beneficiar nossa saúde mental
172 das artes e seus percursos

e física, foi manipulada. Voluntariamente e sem pensar, agora usamos essa


habilidade para suprimir muitas das emoções, sentimentos e conhecimento
corporais que, se ouvidos, poderiam nos guiar a experimentar a vida de uma
forma mais profunda.
Educados para ignorar e evitar alguns dos sentimentos mais
desconfortáveis, nos acostumamos a suprimir muitos sinais corporais e
adotar facilmente a visão culturalmente condicionada de nossos corpos, que
é orientada para o conforto e prazeres superficiais. Gradualmente, muitas das
ligações nervosas fornecedoras de informações vitais começam a se fechar e
perdemos algo de nosso conhecimento orgânico. Perdemos nossa habilidade
de ouvir e nos conectarmos inteligentemente ao nosso próprio corpo, e com
isso, a possibilidade de aprender a ajudar a nós mesmos. E assim nos tornamos
mais frágeis e dependentes das ideias e ações alheias e, sem sabermos por que,
provavelmente comecemos a sentir que está faltando alguma coisa em nossas
vidas.
Agora, contrariamente à natureza inata do corpo que está sempre tentando
se curar (lembrem-se da homeostasia), adquirimos no Ocidente muitos hábitos
que na verdade trabalham contra esses processos de autocura. Às vezes, nos
ensinam a nos engajarmos em várias atividades, a produzir e consumir muitas
coisas, sem levar em conta ou sendo sensíveis às dificuldades que isso causa ao
corpo. Sempre podemos atingir um ponto de colapso ou cair doentes por conta
do excesso de trabalho. Novamente, o jeito de o corpo falar nos diz para parar
e ouvir, para descansar. Devemos aprender a estar integralmente com nossos
corpos antes de pensar em fazer tantas coisas com ele.
O corpo é cheio de recursos e sempre superará muitos obstáculos para
nós, mesmo em um nível inconsciente (homeostasia), mas ao nos aplicarmos
consciente e voluntariamente ao aprofundamento de nosso conhecimento desse
corpo, podemos aprimorar nossa compreensão dele e de seu funcionamento.
Podemos melhorar e alterar alguns dos processos que ocorrem no corpo.
Dessa forma, podemos diminuir certos níveis de estresse e exaustão que são tão
comuns entre nós.
Para existir e evoluir o corpo está em constante diálogo com a informação
gerada dentro e fora de si mesmo. Na ETBC fazemos um esforço especial para
ficarmos mais atentos às respostas de nossos corpos com relação à informação
recebida por eles, criando novos mapas mentais relativos aos processos de
sentidos e movimento e de autopercepção. Explorar e apreciar conscientemente
esses processos nos permitem viver mais totalmente em nossos corpos e,
portanto, participar mais integralmente do mundo.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 173

Autoconectando-nos profundamente, podemos também sentir as


conexões biológicas (DNA) e emocionais verdadeiras que nos ligam ao restante
do mundo natural. E talvez possamos ajudar a diminuir os estados de alienação
e fragmentação tão predominantes em nosso mundo contemporâneo.
Artistas sempre se conectam e trabalham com os sentidos do corpo,
de maneira muito profunda e consciente. Pintores com o sentido visual,
músicos como o sentido auditivo e bailarinos com o movimento. Objetivando
e comunicando o conhecimento dos sentidos conscientemente através dos
trabalhos de arte, eles têm inspirado a humanidade através dos séculos. A ideia
agora é avaliar e encontrar novas maneiras de trazer a sensibilidade artística
mais decididamente para a educação geral e acabar com a fictícia e debilitante
divisão dos territórios científico e artístico. Quem sabe dessa maneira as artes
comecem a ressoar mais amplamente na cultura geral e não apenas para uma
elite educada.
Hoje em dia, a sociedade continua a promover e encorajar valores que
fazem do ganho material e do conforto individual prioridades. Um efeito disso
é que o investimento em entretenimento supera em muito o investimento
em projetos artísticos mais sérios. Vemos como em todo o mundo as questões
econômicas e não as humanistas sempre determinam as políticas de governo
e ações individuais. Assim, sempre se fecham os olhos para crimes contra a
humanidade e a destruição de recursos naturais.
Entendendo e usando mais completamente nosso próprio corpo,
não apenas começamos a nos empoderar para todas as tarefas da vida, mas
descobriremos novos significados e conexões que afetam nossa maneira de ver o
mundo. Refletir sobre a natureza pessoal nos leva a considerar mais profunda e
construtivamente a natureza dos outros e o mundo em geral.
Como uma forma de terminar este artigo, gostaria que imaginássemos que
estamos, na verdade, participando por um momento de uma sessão na ETBC.
Entramos no espaço de trabalho hoje e encontramos um esqueleto em tamanho
natural no centro da sala, nós caminhamos à sua volta, o tocamos e observamos.
Alguém trouxe uns pulmões feitos artesanalmente e os colocou dentro da caixa
torácica do esqueleto e outro alguém trouxe uma lâmina de alumínio para
representar o diafragma. Isso causa certa diversão, algumas pessoas checam seus
livros de anatomia para terem certeza de que os pulmões estão colocados onde
deveriam. Andamos ao redor do espaço agora, a tarefa é apenas respirar, mãos
na caixa torácica, sentindo-a inflar e murchar a cada inspiração e expiração.
Agora, ficamos parados e fechamos os olhos. Estamos percebendo e sentindo
nossa própria respiração. O que eu ouço? Posso sentir onde e quando o ar
174 das artes e seus percursos

entra pelo nariz ou pela boca? Posso visualizar a rota que ele faz até alcançar
os pulmões? Quando eu inalo sinto mais do que os pulmões expandindo-se
embaixo das costelas? Talvez eu também sinta algum movimento nos órgãos
da parte de baixo do abdômen, ou talvez não haja sentimento ou expansão
visível na verdade, mas então outras imagens chegam a minha mente. Não há
julgamento, nenhuma obrigação de fazer isto ou aquilo de uma certa forma, há
apenas tarefas e cada corpo vai encontrar sua própria maneira e também seu
próprio jeito de tornar o momento consciente. A tarefa agora é chegar ao chão
em três estágios, ainda com os olhos fechados, ainda conscientes da respiração.
Tenho que abaixar o corpo lentamente. Como farei isso? Que movimentos eu
faço para chegar lá? É mais fácil descer quando inspiro ou quando expiro? Agora
estou no chão. A tarefa é relaxar, liberar todas as tensões. Onde sinto meu
corpo mais tenso? Eu ajusto minha posição, a respiração também ajuda a liberar
a tensão. Eu me vejo ouvindo os sons fora do meu corpo, o som abafado da
cidade, um alarme de carro. Eu volto à minha própria respiração. Pedem-me
para que eu me vire sobre minha própria barriga. Então, como me sinto agora,
respirando de barriga para baixo e não deitado de costas.
Após aproximadamente trinta minutos de tarefas guiadas com o
corpo, pegamos nosso diário e simplesmente escrevemos sobre a experiência.
Poeticamente, de maneira prática, metafórica, sob qualquer ângulo que venha
à mente... uma mente informada pela experiência de incorporar o conceito do
dia. E então, talvez falemos sobre experiência em pequenos grupos ou todos nós
juntos. Se alguém quiser compartilhar alguns pensamentos sobre o que acabou
de acontecer, pode fazê-lo.
Depois de uma breve pausa, agora vamos nos reunir para continuar o
estudo do principal foco do dia: oxigênio e o sistema respiratório. Dessa vez, a
partir de um ponto de vista científico informado, podemos nos referir a livros,
vídeos ou cartazes. Alguém pode ter preparado uma exposição detalhada. No
final dessa parte da aula, um dos músicos fala sobre sua experiência de usar o ar
para cantar, ela se oferece para nos guiar em alguns exercícios vocais na próxima
aula. Eu peço a outro grupo para pesquisar e trazer material sobre como o corpo
emite sons. A fisiologia e a prática de vocalização serão parte da próxima sessão.
Aqui vemos como as teorias científicas se transformam em uma realidade
vividamente vital e conscientemente explorada, e como o simples ato de respirar
pode se tornar o ponto de partida para o movimento criativo e a exploração
vocal e pode igualmente provocar e articular escritos científicos ou poéticos.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 175

Referências bibliográficas

BARNSLEY, Julie. Cuerpo como Territorio de la Rebeldía. Caracas: Unearte, 2013.


COHEN, Bonnie Bainbridge. Sensing, Feeling and Action. Northampton, Ma.:
Contact Editions, 1993.
FITT, Sally Sevey. Dance Kinesiology. New York: Schirmer Books Schirmer,
Cengage Learning, 1993.
KAPIT, Wynn; MACEY, Robert I.; MEISAMI, Esmail. The Physiology Coloring
Book. San Francisco: Benjamin Cummings, 2000.
ROCA, Núria; SERRANO, Marta. La célula: El origen de la vida. Barcelona:
Parramon Ediciones, 1995.

Videography

Hogar Dulce Hogar. Aktion Kolectiva, Physical Theatre /Dance Company, 2000.


YouTube/Aktion Kolectiva.
Tramar uma metodologia de
pesquisa indisciplinar

Hélène Doyon e Jean-Pierre Demers


Tradução: Fabrice Thibault-Roy

Tomamos aqui a oportunidade de apresentar o desenvolvimento de nossa


metodologia de pesquisa indisciplinar permitindo distinguir uma série de ações
necessárias à resolução de nossas expectativas no contexto de nossas atividades
de pesquisa criação. Desde o término de nossos estudos no Nova Scotia College
of Art and Design,1 no seio de Doyon/Demers, começamos a trabalhar sem
ateliê, sem disciplina fixa, nem preocupação disciplinar e, desde então, aderimos
regularmente à noção de desartista [“Un-Artist”] de Kaprow (1993/2003).
Todavia, é apenas em 1994 que nossa identidade de artista indisciplinar é
oficializada em uma publicação.2 Beneficiando-nos de um ponto de partida em
artes visuais e midiáticas, integramos assim a indisciplinaridade de nossa prática
e de nosso processo de criação à nossa metodologia de pesquisa instaurando
uma aproximação entre as metodologias como a hermenêutica (Gadamer,
1996/1960), a heurística (Craig, 1978, e Moustakas, 1990) e a poiética (Valéry
1937/1944, Passeron, 1996, e Conte, 2002, 2014),3 o mesmo para o pensamento

1. Bachelor of Fine Arts, NSCAD, Halifax, 1986 e 1987.


2. Anexo acompanhando o projeto de arte sonora Rappel Répondeur (418) 692-4196. (1994).
Québec, QC : Avatar.
3. GADAMER, H.-G. Vérité et Méthode: les grandes lignes d’une herméneutique philosophique.
Paris: Seuil, 1996/1960; CRAIG, P. E. The Heart of the Teacher, A Heuristic Study of the Inner
World of Teaching. Boston: Boston University, 1978; MOUSTAKAS, C. E. Heuristic Research:
Design, Methodology, and Applications. Newbury Park: Sage Publications, 1990; VALERY, P.
(1937/1944). “Première leçon du cours de poétique. Leçon inaugurale du cours de poétique
du Collège de France”. Variété V, Nrf, Gallimard, pp. 295-322. Disponível no endereço: http://
classiques.uqac.ca/classiques/Valery_paul/varietes/Lecon_1_esthetique_Var_V/cours_de_
poetique.pdf; PASSERON, R. La naissance d’Icare. Éléments de poïétique générale. Saint-
Germain-en-Laye et Valenciennes, France: Presses Universitaires de Valenciennes, 1996 ;
CONTE, R. “Édito”, Revue Plastik Arts/Sciences numéro 1 [archive], 2002. Site de Plastik.
Disponível no endereço: http://art-science.univ-paris1.fr/plastik/; La poïétique de Paul Valéry,
178 das artes e seus percursos

atual (Schutz, 1987)4 e a autopoiética no sentido de Luhmann (1984/1995).5


Tudo isso, sob o olhar de uma prática determinada pelas artes, as ciências e a
vida.

A pesquisa criação

O Conselho de pesquisas em ciências humanas (CRSH) define a pesquisa


criação como sendo um “approach to research that combines creative and
academic research practices, and supports the development of knowledge
and innovation through artistic expression, scholarly investigation, and
experimentation”. Além disso, o Conselho precisa não apenas que um “creation
process is situated within the research activity”, mas também que a pesquisa
criação “cannot be limited to the interpretation or analysis of a creator’s work,
conventional works of technological development, or work that focuses on the
creation of curricula”.6 Dito de outra forma, a pesquisa criação concerne
à produção de obras e de conhecimentos em correlação um com o outro.
Outrossim, acentuando que o processo de criação faz parte integrante da
atividade de pesquisa, o CRSH confirma que não se podem distinguir pesquisa
e criação opondo teoria e prática, isto é, assimilando a produção de discurso
apenas à pesquisa e a prática, apenas à criação. É, deveras, a reunião de dois
sistemas e as transformações que ela carrega de uma parte e de outra que
caracteriza singularmente a pesquisa criação.
De toda forma, toda pesquisa inscrita na inovação ou na descoberta
serve-se de condutas criativas na pesquisa de um novo algorítimo, de uma nova
lei científica, ou ainda, de uma nova maneira de fazer a obra. De sorte que na
pesquisa criação, as condutas criativas inscrevem-se naturalmente ao mesmo
tempo na pesquisa científica e na produção de obras artísticas. Contudo, a
especificidade do processo de criação desenvolve-se aqui em uma relação arte e
ciência, na qual os dois ramos de saberes recondicionam-se mutuamente com o
ambiente metodológico, para assim adquirir novos pontos de vista, novos know

26 maio 2014. Disponível no endereço: http://www.wikicreation.fr/upload/Richard_conte_


fr.pdf.
4.  “Pensée courante” no original. SCHUTZ, A. Le Chercheur et le quotidien. Phénoménologie des
sciences sociales. Paris: Meridiens Klincksiek, 1987.
5. LUHMANN, N. Social Systems. Stanford, CA: Stanford University Press, 1984/1995.
6. O CRSH é o mais importante órgão subsidiador no Canadá responsável por financiar a
pesquisa criação em colaboração com o Conselho das artes do Canadá. Ver: Définitions. [Data
de modificação: junho de 2014; consultado em outubro de 2014] http://www.sshrc-crsh.
gc.ca/funding-financement/programs-programmes/definitions-eng.aspx#a25.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 179

how e novos conhecimentos. Isso significa que artistas como nós experimentam
o in situ, o in socius e tantas matérias primas, tangíveis, compósitas ou abstratas,
como práticas artísticas em uma relação arte e vida. Eles observam, e se auto-
observam, teorizam seu processo de criação, utilizam a ciência como material,
definem sua abordagem metodológica e, ocasionalmente, até escolhem seu
público. De maneira geral, visto que há cada vez mais artistas detentores de
doutorados ou, em última instância, diplomas de estudos superiores, as formas
que tomam atualmente os processos de criação, as metodologias e as práticas
artísticas alimentam-se igualmente tanto dos domínios científicos quanto dos
domínios artísticos. Encontramos, portanto, as Bioart, Genetic Art e Artificial
Life Art ao lado dos Art & Mathematics, Space Art e Telecommunications Art
nas compilações de práticas artísticas inovadoras efetuadas, por exemplo, por
Stephen Wilson em Information Arts (2002) e em Art + Science Now (2010).
Entretanto, o artista pesquisador também reivindica um parentesco com os
pesquisadores práticos das ciências sociais e humanas, visto que tanto de uma
parte quanto de outra demanda-se gerar saberes oriundos da prática bem como
da teoria.
De fato, nossa metodologia de pesquisa indisciplinar instaura-se entre
a autorracionalização de nossos processos de criação e de valores conceituais
correspondentes à pesquisa universitária. Mas o que é feito dessas auto-
observações traduzidas em valor universitário? Se não é, justamente, racionalizar
a capacidade de iniciar uma problematização de primeira orientação, sem
forma efetiva, depois de traçar, por observação e distinção, as operações de
distanciamento e aproximação levando à realidade de uma obra. Também,
dentre os ganhos dessa autorracionalização, é importante destacar sua
contribuição tanto ao conhecimento do trabalho do artista pelo e para o artista,
quanto à produção de saberes universitários, notadamente, buscando responder
à questão: “Como se cria?”. Dessa feita, esses processos de auto-observação e
autorracionalização aplicam-se entre outros ao nosso hábito de realizar o que
não é a partir do que é.
Ademais, a auto-observação das operações constituintes de nosso
processo de criação contribui à nossa autodefinição enquanto artistas
indisciplinares. Entretanto, quem diz autodefinição diz também estrutura de
recepção necessária à sua reprodução7 no tempo. Essa estrutura de recepção

7. Neste texto reprodução é utilizado em seu sentido didático: “O fato de perpetuar, de perpetuar-
se, por uma produção análoga. A reprodução do saber, dos modelos ideológicos.” Le Petit Robert
(2014).
180 das artes e seus percursos

goza, certamente, suas condições de existência no seio da democracia cultural


atual, a qual sustenta a democratização de acesso às práticas artísticas e sua
pluralização, no mesmo momento em que a ciência também democratiza as
práticas científicas e que as novas disciplinas são frequentemente constituídas
de duas disciplinas ou mais, como é o caso, por exemplo, para a bioquímica, a
etnomusicologia, a psicossociologia da comunicação ou a biologia molecular.8

Indisciplinares

A indisciplinaridade em questão emana deste nosso processo de criação, no


qual, para realizar um projeto, não se cessa de tramar diversos conhecimentos
correntes e conhecimentos disciplinares como se atam diversas interações na
construção de um dia. Ela traduz-se também, por nós, como mencionado na
introdução, no fato de não ter disciplina fixa, nem preocupação disciplinar,
como a preocupação de desenvolver uma especialização. Efetivamente, nossas
preocupações de artistas pesquisadores situam-se nos diferentes campos de
atividades, sejam elas produtivas ou não, com a intenção de explorar os modos
de inscrição sistêmicos – mais do que as fidelidades disciplinares. Efetivamente,
essa abordagem indisciplinar quer-se similar ao processo de distinção e de seleção
de nossas atualizações incessantes a fim de realinhar-nos na vida cotidiana.
Ademais, a intenção de partida na elaboração de nossos projetos não é disciplinar
mas contextual e o que resulta dela, quando visível, não é necessariamente,
ao menos em um primeiro momento, o aparecimento de um produto artístico
reconhecível.
Essa abordagem indisciplinar não se posiciona contra a disciplina,
seja determinada por técnicas e materiais utilizados ou como um corpo de
conhecimentos. Entretanto, visto que os problemas encontrados no processo de
criação não são sempre disciplinares, é-nos necessário adquirir os conhecimentos
não disciplinares, o que, exclusivamente, ocorre através de nossas experiências
cotidianas, a exemplo de todo indivíduo que, na concretização de sua jornada,
integra relações simpáticas e antipáticas com uma multitude de campos de

8. Este último exemplo é interessante visto que a biologia molecular foi criada em resposta a
inovações na descoberta da estrura do DNA, um problema de pesquisa complexa. É apenas na
recolha das competências e dos conhecimentos de geneticistas, de físicos, de bacteriologistas,
de zoólogos, de botânicos e de cientistas da computação que podem ser resolvidos os problemas
(Sewell, “Some Reflections on the Golden Age of Interdisciplinary Social Psychology”. Annual
Review of Sociology, vol. 15, p. 14, August 1989). Não se trata aqui, portanto, de responder a
um problema disciplinar.
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conhecimentos os quais lhe são mais ou menos estranhos. Podemos também


afirmar que o duo de artistas indisciplinar que somos integra relações simpáticas
e antipáticas com uma multitude de campos de conhecimentos mais ou menos
estranhos, a fim de realizar uma obra. Disto, malgrado nossa distância crítica do
sistema de arte dominante, tal ponto sempre foi acolhedor para nosso trabalho,
até receber-nos nisto que consideramos como uma disciplina de recepção, isto
é, as artes visuais e midiáticas. Ao mesmo tempo presentes e ausentes de nosso
processo de criação, nossas aquisições em artes visuais e midiáticas operam nele
sob o mesmo status que as outras competências disciplinares e não disciplinares
à medida em que se mostram pertinentes a alguns projetos.
Essa maneira indisciplinar de reunir conhecimentos, para construir uma
unidade expressa em uma obra ou até mesmo em um texto, apoia-se em uma
reformulação contínua daquilo que é o si próprio e daquilo que é o ambiente,
aqui e ali, ao redor e parte alguma, de tal forma que no movimento interno
da disciplina como no movimento do espaçamento entre as disciplinas, mas
também em seu cruzamento. Consequentemente, a indisciplinaridade aumenta
a interação e a interdisciplinaridade a partir das quais é possível desenvolver
combinações de ideias, métodos ou processos que permitem a transformação
e a novidade. Seguramente o entendimento interdisciplinar, reagrupando,
geralmente, especialistas de diversas disciplinas, demonstra, inegavelmente,
que o conjunto assim formado gera características que seus componentes não
têm e ainda mais. Para além disso, a interdisciplinaridade, tal qual definida em
Paris desde 1972 pelo OCDE, comprova-se um “fenômeno de organização” por
um lado em fase com nossa participação junto a equipes interdisciplinares e, de
outra parte, em fase com as condutas criativas individuais.

Interdisciplinary: An adjective describing the interaction among two


or more different disciplines. This interaction may range from simple
communication of ideas to the mutual integration of organising concepts,
methodology, procedures, epistemology, terminology, data, and organisation of
research and education[, thereto].9

O reconhecimento dessas diversas condições de empréstimo, de


associação e de troca, indo da simples comunicação à integração mútua em parte
ou em totalidade de ideias, de métodos ou de processo entre duas disciplinas ou

9. OECD. Interdisciplinarity: Problems of Teaching and Research in Universities. Paris: Organization


for Economic Cooperation and Development, 1972, pp. 23-24.
182 das artes e seus percursos

mais, nos é adequado conforme o bom senso. Não resta menos disto em nosso
procedimento indisciplinar, de que a interdisciplinaridade é parte integrante,
terá sido necessário aguardar 1999 para encontrar uma definição oficial que
correspondesse, mesmo que um pouco, à nossa realidade. É nesse momento que
the Inter-Arts Office of the Canada Council for the Arts definia as práticas não
disciplinares sob o título de “novas práticas”:

Categoria aberta às práticas que não se amparam em uma dada disciplina


e que exploram aspectos outros que aqueles (forma, estética, técnica) que
regem tradicionalmente a produção de obras de arte. […] essa categoria
é acessível aos projetos que não têm necessariamente por resultado um
produto artístico reconhecível no sentido tradicional.10

A partir de então, essa categoria “novas práticas” desapareceu e até


muito recentemente um programa sensivelmente similar implicava a atitude
indisciplinar nisto que ele chama de “práticas interartes” suportando “as
atividades artísticas de exploração e de integração acarretando formas híbridas
situando-se fora das disciplinas existantes do Conselho das artes”.11 Ora, em 3
de junho de 2015, o Conselho das Artes do Canadá anunciava um novo modelo
de financiamento. “Daqui a 2017, seis novos programas não orientados em
cima das disciplinas substituirão os 147 programas atuais.”12 Essa nova posição
do Conselho, cuja aplicação fica no entanto a estabelecer, denota o interesse
que representa atualmente as abordagens não disciplinarias e, sendo assim,
intensifica a pertinência do desenvolvimento dessa metodologia.

Processo de criação: da poética à poiética

Todas as artes admitiam, antigamente, ser submetidas, segundo sua natureza,


a algumas formas ou modos obrigatórios que se impunham a todas as obras
do mesmo gênero e que podiam e deviam ser aprendidos, como se faz com
a sintaxe de uma língua. […] Havia-se reconhecido, desde muito cedo,
que existia em cada uma das artes práticas a recomendar, observâncias, e

10. SCHRYER, C. Rapport final — Examen du Programme d’aide aux œuvres interdisciplinaires et de
performance. Ottawa: Bureau Inter-arts, Conseil des Arts du Canada, 1999. O negrito é nosso.
11. Ver: http://canadacouncil.ca/inter-arts-office/find-a-grant/grants/inter-arts-office-grants-to-
artists.
12. Ver: http://canadacouncil.ca/council/news-room/news/2015/new-funding-model. The publi-
cation of detailed programs is planned for fall 2015.
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restrições favoráveis ao melhor sucesso do desenho do artista, e que era de


seu interesse conhecer e respeitar.13

O que queremos ilustrar com essa citação refere-se certamente à poética,


isto é, às restrições, regras e práticas que eram impostas relativamente à criação
de poemas, mas, também, relativamente à criação de todas as obras de arte, como
lembra-nos Valéry. Que haja parâmetros predeterminados, os quais o artista
deva levar em conta nos processos que conduzam à obra, isso, geralmente, lhe
facilita o trabalho. Aliás, trabalhar para fazer efeito de arte sem balizas não é
uma tarefa simples.
Seja como for, este fazer, diante de restrições, adapta-se muito bem,
apesar de tudo. Refletindo-o, Valéry observa seu processo de criação o qual ele
associa a um trabalho isento do dom de Deus, ou seja, ao trabalho do artista que
ele nomeará, a partir de então, a poiética. É o termo que lhe convirá melhor para
designar o fazer, o poïen, do qual ele intenciona ocupar-se, isto é, “aquele que
termina nesse […] gênero de obras o qual se conveniou chamar obras do espírito”
(p. 10). Esses “poemas […] dirigem-se exclusivamente ao que faz nascer o que
lhes fez nascer a si mesmos” (p. 19). Dessa feita, Valéry reconhece como trabalho
“todos esses atos de fé, todos esses atos de escolha, todas essas transações
mentais […], as possibilidades enfileiradas, as longas amostras de elementos
favoráveis […], a prudência e a imprudência, o método e seu contrário; o acaso
sob mil formas” (pp. 15 e 24) que surgem no encaminhamento da criação.
Sabemos bem que se pode apenas esperar aquilo que ignoramos, isto é,
a indicação em parte ou em totalidade de uma resolução de problema e que
se pode, apesar de tudo, receber o que não esperamos de fato, em um puro
momento de desinteresse. Nada impede que nosso processo de criação progrida
das generalidades ao fortalecimento dos pontos de ancoragem que se quer
vizinhos ou similares às nossas antecipações. Este trabalho procede a partir de
uma problematização proposta (a encomenda) ou de uma autoproblematização
(a motivação), após o quê, muitas possibilidades manifestam-se no equilíbrio
de um sistema no qual todos os elementos não têm que ser semelhantes ou
encadeados, mas eles têm a contribuir à realização de um mesmo projeto.
De fato, isso se traduz para nós no fato de manter, o mais próximo de uma
primeira orientação, uma reprodução de indicações sensíveis em ligação com
uma questão, uma temática ou uma problemática. Assim, ativam-se operações
de aproximação e de distanciamento, pelas quais negamos por eliminação disto

13. VALÉRY, op. cit., 1937/1944, p. 7.


184 das artes e seus percursos

e daquilo e optamos pela atualização de seleções daquilo que nos é pertinente,


segundo a situação. É preciso dizer que tais operações tiram vantagem das
experiências vividas por si mesmo ou por outros que viveram situações
semelhantes. Como Schutz (1987) menciona:

Toda interpretação desse mundo é baseada em um reserva de experiências


prévias, as nossas próprias ou aquelas que nos foram transmitidas por nossos
pais ou nossos professores; tais experiências, sob a forma de “conhecimentos
disponíveis”, funcionam, assim, como esquema de referência.14

É dizer que esses “conhecimentos disponíveis” são regularmente


selecionados para que surja a improvável resolução. Dito de outra forma,
elaborando, assim, os conjuntos de saberes disciplinares, não disciplinares,
artísticos e não artísticos, da mesma maneira que negociamos diferentes
interações no dia a dia, observamos a todo instante o que nos é acessível a fim
de selecionar, entre os estímulos do meio ambiente, uma distinção que pode
corresponder a nossas antecipações e propiciar um rictus de satisfação.
Mesmo que não figure na maioria dos dicionários em francês e em inglês,15
a poiética é definida em seu sentido atual no Grand dictionnaire terminologique do
Office québécois de la langue française como sendo “um estudo científico e filosófico
das condutas criativas subjacentes à produção de obras artísticas ou literárias”.
Nota-se nessa definição, aliás, que a poiética “interessa-se notadamente ao
papel do acaso, ao papel da reflexão, à influência do meio cultural bem como
às técnicas e materiais utilizados” (2003).16 Ora, nesse dicionário não é feita,
de forma alguma, menção ao fato de a poiética também ser uma metodologia
“de todas as pesquisas”. No entanto, Passeron (1996), que, depois de Valéry,
é quem está mais avançado na definição de poiética, a considera como uma

14. SCHUTZ, A. Le Chercheur et le quotidien. Phénoménologie des sciences sociales. Paris: Meridiens
Klincksiek, 1987, p. 12.
15. A poiética não se encontra no dicionário Le petit Robert (2014) nem no site do Centro nacional
de recursos textuais e lexicais (CNRTL, 2012). Entretanto, o Dictionnaire de français Larousse
(2012) lhe propõe, contudo, a etimologia (sem o trema, em francês): “poiética, adjetivo
(grego poiêtikos). Diz-se, em Aristóteles, daquilo que é à obra na atividade artesanal de quem
produz um objeto material (em oposição à teórica).” Nos mais importantes dicionários da
língua inglesa, tais quais Meriem-Webster, Canadian Oxford e Collins, a palavra poiesis ganha
o sentido amplo de produção e criação. Poietic figura em sua definição como adjetivo, mas não
como substantivo, e isto, mesmo se os especialistas do assunto a utilizam da mesma forma que
heuristics ou hermeneutics.
16. “Poïétique” (OQLF, 2003), on-line: http://www.granddictionnaire.com/ficheOqlf.aspx?Id_
Fiche=8360266.
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“antropologia da criação, cobrindo todos os domínios nos quais o homem faz-se


construtor. Não somente o domínio das artes.” Ironicamente, ele acrescenta:
“O que colocará, provavelmente, alguns praticantes das ciências ou da política
diante da evidência (vertiginosa?) de que eles são criadores” (p. 7). Defendendo,
assim, a poiética como ciência das condutas criativas, ele acrescenta: “a poiética
tem um objeto preciso, ela não tem métodos próprios” (p. 75). Dessa forma,
criar é também criarem-se métodos, maneiras de fazer, e outros artifícios e
procedimentos. Propondo-se como metodologia “de todas as pesquisas”, sejam
estas filosófica, biológica ou artística, a poiética reúne nesse ponto, e, em outros,
a abordagem heurística “baseada na descoberta e valorizando a individualidade,
a confiança, a intuição, a liberdade e a criatividade”.17
Em sua passagem à modernidade, a heurística veio responder não mais
à questão da definição das ferramentas e técnicas que lhe seriam próprias,
porém, antes à questão de saber, mais fundamentalmente, “como descobre-se”.
Semelhantemente, em seu processo de modernização, a hermenêutica vem a,
essencialmente, questionar-se sobre “como compreende-se”, da mesma maneira
que abandonando a ordem da poética normativa, a abordagem poiética busca,
desde então, responder à questão “como cria-se”. A similaridade dessas questões
traz nela mesma a similaridade das metodologias. Já que toda pesquisa, digna
de tal nome, supõe momentos de compreensão, momentos de descoberta e
momentos de criação e invenção.18 Poder-se-ia crer que é em face dos resultados
pesquisados que escolher-se-á uma a despeito de outra, entretanto, parece-
nos que essas metodologias são antes escolhidas em função dos domínios ou
campos disciplinares de recepção – isto é, no seio dos quais elas desenvolveram-
se e nos quais elas adquiriram sua distinção. E, é justamente porque algumas
metodologias são integradas e evoluem no seio de algumas disciplinas em vez de
num outro lugar, que o uso da expressão “metodologia indisciplinar” adquire a
sua pertinência. A metodologia de que aqui se fala se desenvolve em pertinência
com cada projeto.

17.  CRAIG, P. E. The Heart of the Teacher, A Heuristic Study of the Inner World of Teaching. Boston:
Boston University, 1978, p. 1.
18.  Ela supõe também momento de planificação e de método (como eu me atenho à questão,
seguindo objetivos visados), mas não abandonaremos este aspecto na totalidade deste texto.
186 das artes e seus percursos

Processo de criação: da poiética à autopoiética

Para retornar à poiética valeriana, Conte (2014) sinaliza que ela concerne,
de fato, à autocompreensão pelo artista de seu processo de criação. E que, assim,
pela reflexão e a escrita, o estudo de seu processo de criação é reintroduzido
em seu próprio procedimento de criação:

Sabe-se que ele fez o prefácio da edição dos Carnets de Léonard; que ele
admirou em Poe, Wagner e Mallarmé mas também em Delacroix e Degas, a
capacidade de alimentar pela reflexão e escrita o processo de sua própria
criação. Os Cahiers de Valéry, seriam, a esse respeito, uma autopoiética
estendida a todos os domínios do pensamento. Sem jamais ser um diário
privado, eles são uma análise do espírito em ação.19

Respeitando a autopoiética como sendo um procedimento metodológico


propício ao desenvolvimento do artista, Conte não hesita em precisar que ela
pode também cair no “narcisismo, na descrição procedimental, na esperteza
e em tantas outras armadilhas” (p. 11) e, dessa feita, “minando” as bases. É,
portanto, essencial, a esse respeito, estreitar nossas observações. De modo que
os sistemas autorreferentes que nos interessam mantêm-se na distinção de fatos
e na indicação de potencial em relação àquilo que é observado pelo observador.
E, nesse sentido, Luhmann faz observar que a autorreferência “designates every
operation that refers to something beyond itself and through this back to itself. Pure
selfreference that does not take this detour through what is external to itself would
amount to a tautology”.20 Situamos essa acepção em contato com a definição da
observação que ele propõe em Art as a Social System (2000):

The activity of observing establishes a distinction in a space that remains


unmarked, the space from which the observer executes the distinction. The
observer must employ a distinction in order to generate the difference between
unmarked and marked space, and between himself and what he indicates. The
whole point of this distinction (its intention) is to mark something as distinct from
something else.21

19.  CONTE, R. La poïétique de Paul Valéry, p. 10, 26 maio 2014. Disponível no endereço: http://
www.wikicreation.fr/upload/Richard_conte_fr.pdf. Os negritos são nossos.
20.  LUHMANN, N. Ecological Communication. Chicago: The University of Chicago Press;
Cambridge: Polity Press, 1989, p. 145.
21. LUHMANN, N. Art as a Social System. Stanford, CA: Stanford University Press, 2000, p. 54.
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De fato, é em uma abordagem pós-ontológica e no objetivo de propor


uma alternativa à complexidade do conhecimento na modernidade avançada
que, inspirada pela cibernética em von Foerster (1962 e 1981) e na autopoiética
do vivo em Maturana e Varela,22 Luhmann elabora sua obra maior, Social
Systems (1984/1995), sobre a base de três principais sistemas autopoiéticos, seja
aquele da vida, aquele da consciência e aquele da comunicação. Ao passo que
os sistemas autopoiéticos do vivo reproduzem a vida, os sistemas sociais, assim
como os sistemas psíquicos, reproduzem o sentido de duas maneiras que se
estabelecem em uma. Por um lado, os sistemas psíquicos reproduzem o sentido
pelo viés da consciência, ao passo que os sistemas sociais reproduzem o sentido
pelo viés da comunicação. Por definição, essa reprodução do sentido não é dada
em si, Luhmann (1984/1995) explica:

O fenômeno do senso aparece em forma de um excedente de referências


para outras posibilidades de experiências e acções. Uma coisa se acha na sua
mira, no centro da intenção, e uma outra está marginalmente indicada.23 

Porque ele nasce da relação entre o que é agora e o que é potencial,


esse fenômeno apoia-se, assim, em “both these [two] presents [which] reciprocally
polarize themselves as the difference between change and duration” (p. 79). Nesta
lógica, é o presente como permanência [as duration] que tem lugar de segurança e
permite “return to the starting point and choose another path” (p. 60). Esse processo
de realinhamento que toma lugar tanto na vida de todos os dias quanto nas
nossas condutas criativas opera a repotenciação do sentido como do não sentido.
É assim que comparamos nossas condutas criativas a um sistema
de permanência e de mudança, ou seja, a operações de distanciamento e
aproximação próprias aos sistemas de autoprodução “operacionalmente
fechados” que, de alguma forma, protegem e reproduzem sua entidade ao mais
próximo de uma primeira orientação, e isto muito embora sejam compatíveis
com seu ambiente e abertos à novidade. Para além disto, o fato que a distinção e
a seleção necessárias à reprodução de nossas antecipações dependem não apenas
de condições internas, porém ainda, de vários ambientes e acontecimentos nos

22.  VON FOERSTER, H.; ZOPF, G. (dir.) Principles of Self-Organization. New York: Pergamon,
1962; Observing Systems: Selected Papers of Heinz von Foerster. Seaside, CA: Intersystems
Publications, 1981; MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. Autopoiesis and Cognition: The
Realization of the Living. Boston: Boston Studies in the Philosophy of Science; Dordecht: D.
Reidel Publishing Co, 1973/1980.
23. LUHMANN, N. Social Systems. Stanford, CA: Stanford University Press, 1984/1995, p. 60.
188 das artes e seus percursos

quais se revelam as distinções indispensáveis à manutenção da autopoiética, no


final das contas, isso tem o efeito de manter nossa antecipação no tempo e de
criar reservas de potencialidades. Isto é, o que foi posto de lado: ideias, conceitos,
encadeamentos afastados ou esquecidos. “An autopoietic system is a system with a
changing structure that follows a course of change that is continuously being selected
through its interaction in the medium in which it realized its autopoiesis”.24 De sorte
que, na falta de ambiente e de referências adequadas, restam as referências
das reservas, das quais algumas podem ser revisadas a fim de manter alguns
processos de observação, de encadeamento e de seleção. Resumindo, que se
trate da autopoiética artística (Conte), da autopoiética da vida (Maturana
e Varela) ou da autopoiética da consciência e da comunicação (Luhmann),
ordinariamente, afiliar-se-á à afirmação segundo a qual “An autopoietic system
reproduces both its reproduction and the conditions for its reproduction” (Luhmann,
2000, p. 50).

Metodologia indisciplinar

Na sequência desse exercício de racionalização de nossas condutas


criativas, suas operações, processos e sistemas, podemos assim concluir que se
revela natural que esses conhecimentos provenientes da autorracionalização
constituem os fundamentos de nossa metodologia indisciplinar. A estrutura de
tal metodologia organiza-se seguindo algumas séries de operações compostas,
às vezes, de espera, de observação, de indicação, de integração e, às vezes, de
realinhamento (ver o quadro abaixo).
Cada uma dessas operações cognitivas, ou sua equivalência, encontra-se
em nosso processo de criação bem como em algumas metodologias conhecidas
que são análogas, complementares, ou mais ou menos de natureza semelhante
àquela do nosso processo. Dessa forma, a mentalidade atual, a hermenêutica,
a heurística, a poiética, e, mais particularmente, a autopoiética dos sistemas
produtores de sentido de Luhmann são partes integrantes de nossa metodologia
de pesquisa criação indisciplinar. Ligados aos objetivos de compreensão, de
descoberta, de criação ou de invenção inerentes a toda metodologia, propomos
esse quadro de operações modulares. Ou seja, operações móveis das quais se
dispõe segundo a necessidade na racionalização do processo de criação e de uma
metodologia indisciplinar.

24. Maturana, como citado por Luhmann, 1984/1995, p. 220.


claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 189

Quadro das operações potenciais

espera
observação
encadeamento
reflexão
distinção
indicação
seleção
integração
realinhamento
distanciamento e aproximação
repotencialização do não sentido
potencialização do sentido
autoprodução
reprodução

À evidência, as interações consecutivas às operações de nossa


metodologia indisciplinar pressupõem uma ordenação específica de seleções, de
ideias, de imagens ou de relações significantes na manutenção das expectativas.
Vista na perspectiva de uma produção de sentido entre o que é atual e o que é
potencial, entre o que é familiar e eventual ou entre o que é descontextualizado
e o recontextualizado, essa organização das operações tira vantagem também
do conceito de tipicalidade. Com esse conceito Schutz (1987) conduz-nos ao
âmago do pensamento atual no qual se revela a intersubjetividade do cotidiano,
visto que “vivemos nele como homens entre outros homens, sofrendo as
mesmas influências e trabalhando como eles, compreendendo os outros e
sendo compreendidos por eles” (pp. 15-16). Dessa feita, face aos problemas
que encontramos no cotidiano, beneficiamo-nos de “saberes disponíveis”
preexistentes,25 em relação a circunstâncias similares em sua tipicalidade do já
visto, já sabido.26
Da mesma forma, ligada com a produção de sentido inerente à capacidade
autopoiética dos sistemas sociais e dos sistemas psíquicos, nossa metodologia
indisciplinar organiza-se, conforme expressamos anteriormente, em uma
produção de sentido originária da auto-observação de nosso processo de criação.

25. “Déjà-là” no original.


26. “Déjà-vu” e “déjà-su” no original.
190 das artes e seus percursos

Faz-se necessário lembrar, esse procedimento de auto-observação reintroduz


distinções do sentido e da motivação em nosso procedimento de criação. É,
portanto, nessa paisagem composta, entre outros, dos sistemas autopoiéticos
luhmannianos e da tipicalidade do pensamento atual schutziana que nós nos
autorizamos a acrescentar três microssistemas autopoiéticos que são ambientes
uns dos outros, a saber, uma autopoiética estética, de socialidade e de criação.
Para cada um deles a produção de sentido depende do interesse de reiterar uma
conduta, que seja estética, social ou criativa. Nas circunstâncias em que a rede
metodológica pode mudar e, consequentemente, as operações, vale o mesmo da
distinção de nossos microssistemas autopoiéticos.

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terminologique. Disponível no endereço: http://www.granddictionnaire.com.

Dicionários da língua inglesa

CANADIAN Oxford Dictionary, 2012.


COLLINS Dictioinary, 2015. Disponível no endereço: http://www.
collinsdictionary.com/dictionary/english/poiesis?showCookiePolicy=true.
MERIEM-Webster Dictionary, 2015. Disponível no endereço: http://www.
merriam-webster.com/dictionary/-poiesis.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 193

Obras de diversas naturezas por Doyon/Demers.


Pesquisas performativas e seus
diálogos possíveis

Walmeri Ribeiro

There is a technic to be learned,


a gramar of the art of living and working in the world.
Jonh Andrew Rice, 1936

Em busca de nomear e validar práticas de criação em artes no âmbito


acadêmico, termos como Practice as research, Pratice-based research, Pratice-led
research, Research through practice, Performance as research, Arts-based, Artistic
research passam, desde meados da década de 90, a compor as discussões em
torno das metodologias e métodos de pesquisa e criação em artes.
Ben Spatz (2011), em seu livro “What a Body Can Do: Technique as
Knowledge, Practice as Research”, aponta que esses termos, que estão sendo
discutidos sobretudo em países da Europa, Estados Unidos e Austrália,
nomeiam não apenas as metodologias de pesquisa, mas um pensamento em
torno da estruturação dos cursos, das pesquisas desenvolvidas e das produções
resultantes dessas pesquisas, nos principais cursos de Pós-Graduação na área de
artes, ressaltando o papel do Reino Unido e da Austrália no desenvolvimento
desse pensamento.
Embora não apontado com ênfase pelo autor, não podemos deixar de fora
dessa discussão as contribuições do Canadá e, tampouco, podemos não apontar
as proposições metodológicas realizadas no Brasil. Embora em nosso país, o tema
tenha começado a ser discutido recentemente, sabemos que nossas pesquisas
há muito já apresentam a prática como metodologia de pesquisa|criação, bem
como o reconhecimento da criação artística como conhecimento e “resultado”
de pesquisa, para além meramente do texto escrito.
Das discussões apontadas por Spatz, em torno dessas nomenclaturas,
a principal é a distinção entre pratice + research e practice=research. Para o
196 das artes e seus percursos

autor, PaR (Pratice as Research) não é constituída por uma adição entre prática
e pesquisa, mas sim a prática é igual a pesquisa.1
O pesquisador australiano Brad Haseman lançou em 2006 o manifesto
intitulado “A Manifesto for Performative Research”. Nesse manifesto, ao fazer
uma diferenciação entre uma pesquisa qualitativa e quantitativa, o autor propõe
que o diferencial de uma pesquisa performativa é que estas partem de uma
prática que leva às questões da pesquisa e desta resultam outras possibilidades
de apresentação dos resultados de pesquisa. Pois, para Haseman, as pesquisas
performativas são experienciais e, portanto, podem nos levar a novas formas
artísticas tanto para a criação quanto para a exibição.
No entanto, para além de pensarmos as PaR(s) apenas como uma validação
metodológica da prática artística como pesquisa, parece-nos importante refletir
sobre os pensamentos que baseiam essas proposições e seus desdobramentos,
não com o intuito de criar métodos ou metodologias aplicáveis, como nos alerta
Annette Arlander em seu texto “On Methods of Artistic Research” (2014),
mas sim de olhar a potencialidade das pesquisas performativas para além das
investigações e criações somente no campo das artes performativas.
Nessa publicação, escrita como uma forma de reflexão sobre o Seminário
Internacional Das Artes e Seus Territórios Sensíveis, mas também uma
apresentação das questões e proposições que balizaram a própria concepção e
realização do seminário, proponho uma discussão em torno dessas possibilidades,
iniciando com uma reflexão sobre o conceito de performance e a potencialização
gerada por este se associado a pesquisas de base transdisciplinar, como, por
exemplo, entre as artes, as ciências e a tecnologia.

Numa atmosfera de “desentendimento sofisticado”

Marvin Carlson na introdução de seu livro Performance: uma introdução


crítica, de 1996 e publicado no Brasil em 2010, ao apresentar o termo
“performance” cita o posicionamento de Strine, Long e Hopkins (1990), num
estudo em que os autores dizem que a “performance se tornou esse conceito
desenvolvido numa atmosfera de “desentendimento sofisticado”.2

1. SPATZ, Ben. What a Body Can Do: Technique as Knowledge, Practice as Research. Londres:
Routledge, 2011, p. 233.
2. CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010, pp. 11/12.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 197

No entanto, se essa atmosfera de “desentendimento sofisticado”, por um


lado, nos conduz a um terreno movediço de investigação, o que requer cautela
no emprego do conceito. Por outro, contribui para a amplitude e a expansão
do campo da performance para muito além dos territórios delimitados das artes
performativas, como o teatro, a dança e a própria performance art.
Construindo a tríade, que permeia esse terreno movediço, fruto
dessa atmosfera de um “desentendimento sofisticado”, estão os conceitos de
performatividade e performativo.
Bastante conhecidas pelos artistas e pesquisadores da performance, estão
as proposições de Richard Schechner. Com as mudanças culturais do final do
século XX, o diretor e pesquisador americano propôs que a performance deveria
ser consolidada como uma área de estudos independente das ciências humanas
(sociologia, antropologia etc), e buscou, com sua equipe da New York University,
aproximar os estudos da performance (Performance studies) de diferentes
domínios, entre eles o comportamento cotidiano e os modos de engajamento
social. Nesse momento, voltando à origem do termo performativo proposto por
Austin sobre os atos de fala, na década de 50, Schechner incluiria no campo
de estudos da performance tanto ações cênicas quanto a vida cotidiana. Para o
autor, performance é o resultado das ações de ser, comportar-se, fazer e mostrar
o fazer. Já performatividade seria ao mesmo tempo uma ferramenta teórica e um
ponto de vista analítico diante do potencial performativo da realidade social.
As proposições de Schechner, embora fundamente a principal referência
acadêmica em Performance Studies ainda hoje, receberam vários contrapontos
por estudiosos e artistas como RoseLee Goldberg, Jorge Glusberg, Renato Cohen.
Erika-Fisher Lichte, o próprio Marwin Carlson, entre outros, propunham, e
propõem, uma reflexão sobre a performance a partir da relações dialógicas com
outras linguagens artísticas, sobretudo o teatro, artes visuais, as artes sonoras,
ampliando a discussão acerca do que nomeiam como performativo.
Assim, se por um lado a noção gerada em torno do conceito de Performance,
incluindo neste performatividade e performativo, nos aproxima do estudos dos
rituais, do comportamento cotidiano e dos modos de engajamento social, ou
seja, dos campos dos estudos culturais, esse mesmo conceito nos aproxima
também dos estudos em teatro, dança, artes visuais, artes sonoras, audiovisual e
performance art, ou seja, do campo de estudos tidos como da Arte.
Embora algumas dessas discussões permaneçam ainda hoje, essas
separações e defesas nos parecem uma discussão menor diante do contexto e
das possíveis contribuições do campo de estudos da performance para a pesquisa
e criação em artes. E esta foi uma das questões que alicerçou nosso pensamento
198 das artes e seus percursos

composicional do seminário, convocando para a reflexão pesquisadores|artistas


que exploram os desdobramentos e potencializações que os estudos em
performance agregam à pesquisa em artes, à arte contemporânea e, sobretudo,
à vida contemporânea.
Ainda segundo Carlson, “Os teóricos e praticantes da arte performática
têm, por sua vez, se tornado conscientes desses desenvolvimentos e encontrado
neles novas fontes de estímulo, inspiração e insight”.3
Contudo, pensar o conceito performance, no contexto contemporâneo
das artes, nos leva para muito além do compreender esse conceito como
parte de um determinado território da arte (as artes performativas) ou “como
criações desenvolvidas a partir do próprio corpo do artista, das suas experiências
e autobiografia”,4 mas sim compreender, ou questionar, O QUE e COMO
desse corpo imbricado no tempo e no espaço poderão emergir questões de
pesquisa e criação.
Pois, o corpo como um sistema dinâmico e auto-organizativo, permeado
incessantemente pelo fluxo de informações que se dá na relação entre corpo-
ambiente-tempo, atua propondo possibilidades de ação, descobrindo caminhos,
apontando soluções a partir de experiências que se dão no campo sensorial
e cognitivo, potencializando assim uma emergência poética que conduz a
impulsos criativos.
Essa discussão, que se encontra sob diferentes aspectos em alguns
textos publicados neste livro e apresentados no Seminário Das Artes e Seus
Territórios Sensíveis (2014), nos parece potencializadora para uma reflexão
acerca da Performance as Research (PaR) como um todo, não apenas para as
artes performativas.
Nesse sentido a atmosfera de “desentendimento sofisticado” na qual o
conceito de performance foi sendo delineado ao longo do tempo possibilitou essa
amplitude de pensamentos, camadas e proposições. Ao expandir as fronteiras
dos territórios artísticos, borrando-as em alguns momentos e em outros
propondo rupturas paradigmáticas, a performance propôs e propõe o fazer, o
criar, o experimentar, a partir da relação da arte com a vida e seus engajamentos
sociais, políticos e estéticos.
Afinal, como disse Jonh Andrew Rice (1936), criador do Black Mountain
College, “There is a technic to be learned, a gramar of the art of living and
working in the world”. Um pensamento que balizou a concepção e a formação

3. Idem, p. 12.
4. Idem.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 199

de professores e alunos desse importante “experimento interdisciplinar”, como


foi nomeado na exposição realizada no Hamburger Bahnhof museum| Berlim,
em 2015.
Segundo a pesquisadora Annette Jael Lehmann (2015), artes visuais,
teatro, música, literatura, arquitetura, matemática, física, química, geografia e
história compunham o curriculum proposto e eram incorporados ao dia a dia
dos estudantes e professores do Black Mountain College. Um experimento em
arte e ciência, no qual a vida cotidiana e seus afazeres diários eram permeados
e permeavam as experimentações, num fluxo constante de diálogo entre vida,
arte e suas ações sociais. Um experimento muito além do ensino de disciplinas
ou da busca por métodos, mas sim se propunha experiência.
Uma experiência que não visava a nomeações, terminologias, mas que
nos deixou um grande ensinamento da potencialidade da arte se pensada junto
com questões politicas, sociais, ambientais do cotidiano. Uma arte pensada em
diálogo constante com a ciência, com a tecnologia, com a natureza, com a vida.

Referências bibliográficas

ARLANDER, Annette. “On Methods of Artistic Research”. In: Torbjörn Lind


(ed.) Method – Process – Reporting Artistic Research Yearbook 2014, Swedish
Research Council 2014, pp. 26-39.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
HASEMAN, Brad. “A Manifesto for Performative Research”, Media International
Austraulia Incorporating Culture and Policy, theme issue “Practice-led Research”,
n. 118, pp. 98-106, 2006.
LEHMANN, Annette Jael. “Pedagogical Practices and Models of Creativity at
Black Mountain College”. In: BLUME, Eugen et al. Black Mountain College:
an Interdisciplinary Experiment 1933-1957. Berlim: Spector Books, 2015.
SPATZ, Ben. What a Body Can Do: Technique as Knowledge, Practice as Research.
Londres: Routledge, 2011.
Deixe que o lugar determine
Jorge Menna Barreto

Em 1997, em meu trabalho de conclusão de curso na graduação em Artes


Plásticas na UFRGS, Porto Alegre, apresentei uma série de esculturas em gesso
que se chamava Encon(fron)tros. Consistia em moldes feitos a partir do corpo,
pensada para ocupar a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes.
Foi por ocasião desse projeto que entrei em contato pela primeira vez com a
palavra site-specific, dita pela amiga e artista Elaine Tedesco ao comentar que
minha proposta respondia àquele espaço. A expressão criou raiz e há dezessete
anos dedico-me a pensar e praticar o conceito.
A indagação que aparece logo de início é: O que está contido nessa
palavra que a faz durar tanto tempo em minhas práticas e reflexões? Uma
resposta possível tem se construído a partir da leitura do livro Raízes do Brazil de
Sérgio Buarque de Holanda, 1936. Logo no primeiro parágrafo, o autor provoca:

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território,


dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas
a sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato
dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes
nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando
em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável
e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos
construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos
novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que
representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa
preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro
clima e de outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto
poderá alcançar êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos
202 das artes e seus percursos

podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de


que somos herdeiros.1

Nessas poucas linhas, Buarque de Holanda sintetiza o trauma marcante


da colonização e o impacto que isso gera no modo como nos relacionamos com
a terra que nos abriga. Vivemos em uma paisagem, mas respondemos a outra, o
que resulta em uma ruína dramática do sentimento de pertencimento.
Obras de arte que são determinadas pelo espaço que habitam começaram
a surgir na cena ocidental no final da década de 1960. Nos Estados Unidos, são
adjetivadas de site-specific, expressão que caracteriza algo que foi realizado a
partir das especificidades de uma localidade ou situação. Curiosamente, o termo
não foi cunhado no meio artístico. Pelo contrário, é uma expressão da língua
inglesa usada em diversas áreas, da arquitetura à administração. Embora sua
utilização no contexto atual da arte a aproxime mais de uma suposta categoria,
nosso esforço neste artigo será defendê-la enquanto metodologia. Em reflexão
escrita sobre a construção da obra Spiral Jetty, 1970, Robert Smithson descreve
esse modo de pensar:

At that point, I was still not sure what shape my work of art would take. I
thought of making an island, with the help of boats and barges, but in the end I
would let the site determine what I would build.2

A primeira frase aponta para o sentimento de incerteza do artista, típico
de momentos de questionamento profundo, que também provoca rachaduras
em uma postura afirmativa. A segunda, inicialmente, nos coloca quais eram os
planos que tinha em mente: construir uma ilha. No entanto, a vírgula propõe
uma reversão metodológica radical. O artista não mais pensaria o lugar como um
suporte neutro para realizar a sua ideia, mas deixaria que o lugar determinasse
o que ele iria construir. É nesse exato momento que Smithson identifica uma
voz no local e estabelece uma posição que é de escuta, construindo um estado
colaborativo entre lugar, obra e artista. O que frequentemente resulta desse

1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.
31.
2. “Naquele ponto, eu ainda não tinha certeza de qual forma meu trabalho de arte assumiria. Eu
havia pensado em fazer uma ilha com a ajuda de barcos, mas no final eu deixaria que o lugar
determinasse o que eu iria construir”. STILES, Kristine; SELZ, Peter. Theories and Documents
of Contemporary Art: A sourcebook of Artist’s Writings. Berkeley: University of California Press,
1996, p. 531.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 203

tipo de abordagem de um determinado lugar são práticas que revertem o


pensamento colonizador, singularizando espaços a partir do reconhecimento de
suas especificidades.

Sucos específicos

Desde 2010, tenho me interessado pelas questões da agricultura,


produtos orgânicos e alimentação. Inicialmente motivado por razões pessoais,
fui surpreendido ao encontrar vários textos sobre agroecologia em inglês que
mencionavam os termos site-specific e context-specific para definir a sua forma de
atuação. Embora já soubesse que a expressão não é um jargão da arte na língua
inglesa (diferente do português!), achei curioso que um interesse até então
desconectado de minha prática artística pudesse compartilhar uma mesma
forma de endereçamento. Foi esse achado que deu origem à pesquisa de pós-
doutorado em andamento, chamada Site-specific e Agroecologia.3 Nela, tenho me
dedicado a analisar os usos da terra a partir da arte e da agricultura, focando no
alimento como elemento central para entender a complexa relação sociedade-
ambiente. Apresento aqui dois estudos de caso que fazem parte dessa pesquisa:

1. Ilha de Anhatomirim

No início de 2014, fui convidado para participar de um projeto chamado


Ações Curatoriais que aconteceu em Florianópolis, iniciativa de três curadoras:
Beatriz Lemos, Kamilla Nunes e Marta Mestre.4 A ideia era realizar uma obra
site-specific na ilha de Anhatomirim, local que abrigaria o evento de finalização
do projeto no dia 8 de junho de 2014. Preparando minha proposição, visitei
a ilha uma semana antes com Jefferson Mota, estudante de agronomia e
pesquisador de matinhos comestíveis. Em apenas uma hora, identificamos
27 espécies de PANC (plantas alimentícias não convencionais), que crescem
espontaneamente no local.
Minha proposição foi confeccionar duzentas garrafinhas de 50ml com
uma bebida feita à base de frutas e folhas verdes (green smoothies), que também
incluísse cinco dos matos comestíveis que crescem na ilha: tansagem, dente-de-

3. A pesquisa iniciou-se em março de 2014, com término previsto para abril de 2015. Com apoio
do Programa PNPD-CAPES, acontece no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
UDESC, Florianópolis, SC. Tutoria da Professora Doutora Regina Melim.
4. Mais sobre o projeto: http://acoescuratoriais.wix.com/florianopolis#!acoescuratoriais/
mainPage.
204 das artes e seus percursos

leão, tropearaba, falsa-serralha e aroeira. As garrafas seriam distribuídas para o


público do evento, convidado assim a tomar a ilha. Foram realizados cinco tipos
de rótulos, um para cada plantinha, desenhados pelo artista Bil Lühmann. Em
uma referência à palavra site-specific, com tom jocoso, a obra ganhou o nome de
Suco Específico.

Garrafinhas de Suco Específico (Ilha de Anhatomirim), 2014.

2. Café Educativo: Paladar Cego

Ainda no ano de 2014, pude aprofundar o pensamento iniciado no Ações


Curatoriais ao ser convidado para participar do projeto School of Missing Studies
dos artistas holandeses Bik Van Der Pol na Bienal de São Paulo. Em resposta,
planejei uma ação que se desdobrasse em dois momentos: 1. uma oficina de dois
dias com agrônomos, agricultores e nutricionistas para discutir a relação entre
alimento, ambiente e sociedade; 2. venda de Sucos Específicos no restaurante do
prédio da Fundação Bienal de São Paulo. Conforme o texto de apresentação do
projeto,

E se reimaginássemos nosso sistema digestório, expandindo o desenho


para incluir não só nosso trato digestivo, mas também o impacto de nossa
alimentação sobre o meio ambiente e sobre cada célula de nosso corpo?
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 205

Café Educativo: Paladar Cego consiste em dois momentos: uma oficina


sobre ativismo alimentar e a produção de sucos verdes [green smoothies] a
serem vendidos no restaurante da Bienal. A oficina debaterá a ideia de como
nossos hábitos alimentares definem nossa paisagem interna e externa, com
isso levantando uma discussão sobre agroecologia, locavorismo [prática
de comer apenas alimentos locais], veganismo e site-specificity. As bebidas
verdes serão feitas de frutas e folhas verdes locais, inspiradas pelos matinhos
comestíveis que crescem espontaneamente no Parque Ibirapuera.5

Ao realizar a pesquisa das PANC no Parque Ibirapuera, foi interessante


notar quais tipos de alimentos têm visibilidade em espaços públicos atualmente
e o que é considerado seguro para ser vendido, de acordo com a legislação.

Alimentos encontrados no Parque Ibirapuera, São Paulo.

Os dois casos propostos podem ser entendidos enquanto ações de ativismo


alimentar, propondo uma maneira de nos relacionarmos com o alimento e com
o lugar que vai na contramão da globalização na qual está inserida a indústria
alimentícia. Ao investir em uma relação intensiva com o local, o sentido duplo
da palavra tomar – um líquido ou um território – se desdobra também na ideia
de retomada da noção de lugar e pertencimento, entendendo o alimento como
sendo um importante mediador da nossa relação com a terra.

5. Programação: http://www.31bienal.org.br/pt/events/1849.
206 das artes e seus percursos

Let the site determine what I would eat6

A maçã é um alimento globalizado. Podemos encontrá-la nos


supermercados do mundo todo. No Brasil, de norte a sul, independente do
clima. Assim é o mamão, a banana, o arroz, a soja, o milho. Cerca de 90% do
alimento mundial vem de apenas vinte espécies de plantas. Nosso paladar foi
homogeneizado e hoje ignoramos as até 30 mil espécies de plantas comestíveis
que habitam o nosso planeta.
A monotonia alimentar que vivemos tem graves impactos na saúde
humana e planetária. Para produzir a tal maçã em solo brasileiro, muito distante
das condições climáticas nas quais a fruta seria “espontânea”, é necessário forçar
a terra com maquinário pesado e uso de diversos pesticidas, criando assim um
alimento de péssima qualidade nutricional e com graves impactos ambientais.
Comemos aqui como se estivéssemos lá.
A provocação “permitir que o lugar determine o que comer” desprograma
o paladar colonizado e reconhece a vocação de uma determinada localidade. As
PANC, a partir da dádiva daquilo que é espontâneo, sussurram esse sentido
em cada fresta de calçada, cada praça pública, cada rachadura no concreto.
São o oposto das prejudiciais monoculturas, que promovem o achatamento
das especificidades locais em prol de hábitos de consumo cegos em relação à
biodiversidade planetária. Ao enxergar e aderir ao alimento local, ativamos o
potencial escultórico do paladar, imaginando que aquilo que comemos também
molda as formas de cultivo, definindo assim a paisagem e o clima no qual
vivemos. Ou seja, entenda-se o ato de comer como intervenção ambiental.

Referências bibliográficas

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
STILES, Kristine; SELZ, Peter. Theories and Documents of Contemporary Art: A
Sourcebook of Artist’s Writings. Berkeley: University of California Press, 1996.

6. Em português: “Eu deixaria o lugar determinar o que eu iria comer”, propondo assim uma
ressignificação da frase “I would let the site determine what I would build”, de Robert Smithson,
mencionada no texto acima.
Telebiosfera. Abrigo sensível
Carlos Augusto Moreira da Nóbrega (Guto Nóbrega)

1. Introdução

“Arte, hibridação e biotelemática” é uma pesquisa prático-teórica com


inserção no campo da arte em seu entrecruzamento com a ciência e as novas
tecnologias da informação/comunicação. Sua base teórica fundamenta-se nos
conceitos analisados e desenvolvidos durante doutoramento do autor1 cuja
pesquisa investigou e teceu uma nova rede epistemológica para as inter-relações
do complexo “artista-objeto de arte-observador”, tendo em vista as possibilidades
contemporâneas de experimentação estética através do dialogo entre arte
e tecnologia. Segundo a tese, tais inter-relações poderiam ser entendidas
sob a ótica de um “campo integrativo” cujos vetores operam forças (formais,
funcionais e afetivas) oriundas dos demais componentes desse complexo e suas
redes. Tal modelo, de natureza essencialmente orgânica, expande conceitos de
campo apontados por Roy Ascott (1966; 1967; 1980) e incorpora teorias do
vivo derivadas de autores como Humberto Maturana e Francisco Varela (1980),
George Canguilhem (1992), Mae Wan Ho (1993) e Fritz-Abert Popp (1986)
para pensar a arte como um organismo estético emergente da relação entre
sistemas naturais e artificiais.
Buscando um aprofundamento das questões analisadas na tese, a atual
pesquisa dirige seu foco aos processos de invenção de sistemas artificiais quando
estes têm por objetivo a construção de uma experiência estética. Tais sistemas,
oriundos da prática artística, são abordados nesta pesquisa sob a perspectiva

1. NÓBREGA, C. Art and Technology: Coherence, Connectedness, and the Integrative Field. 2009.
297 f. Tese de doutorado em Artes Interativas. Planetary Collegium, School of Art and Media,
University of Plymouth, Plymouth – UK, 2009.
208 das artes e seus percursos

de “objetos técnicos”, segundo a matriz teórica de Gilbert Simondon (1989)


e a noção de individuação, concretização e ressonância desenvolvida por ele.
Com base nesse contexto, o presente estudo pretende desdobrar e aprimorar
o conceito de “hiperorganismo” (Nóbrega, 2009), que poderia ser definido da
seguinte forma:

Hiperorganismos poderiam ser pensados como parte de uma linhagem


de objetos técnicos, conforme as teorias de Simondon (1989), os quais
haveriam incorporado em seus processos de individuação uma dimensão
expandida pelas redes telemáticas de informação. Um hiperorganismo
não deve ser considerado uma unidade em si, mas uma espécie de nó
de uma trama, um ponto de ligação. Apesar de sua existência física, o
hiperorganismo não deve ser concebido uma totalidade determinada,
mas sim uma condição, um estado de vir a ser definido pelo seu caráter
relacional, sempre em rede com outros seres, artificiais e/ou naturais no
mundo.2

Voltada para a prática artística, a presente pesquisa se articula no


experimentalismo com sistemas técnicos. Esta investigação encontra ressonância
nas teorias do teórico Vilém Flusser (2002) e sua visão da tecnologia como um
aparelho cuja programação deve ser transformada (hackeada) pelo artista a fim
de liberdade criativa. De modo a quebrar a programabilidade controlada dos
sistemas técnicos, este estudo aposta na complexidade natural dos organismos
vivos como modelo, buscando seus (im)prováveis acoplamentos com o aparelho.
Tendo a natureza como base, a pesquisa foca numa visão não reducionista da
mesma, de forma a expandir o universo conceitual que a define, permitindo
dessa maneira a emergência de novas sensibilidades.

2. Motivações conceituais

Vilém Flusser sugere o experimentalismo como intervenção emancipadora


nos processos de invenção com a máquina (aparelho) indicando que o ato
criador deverá “[...] injetar intenções humanas em seu programa [...] para
forçá-lo a produzir algo impossível de se ver antecipadamente, algo improvável,
algo informativo, [...]”.3 Com base nesse enunciado as seguintes perguntas

2. Idem.
3. Tradução livre do original: to inject human intentions into the apparatus program, […] to force
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 209

foram formuladas: Como ser experimental com os aparelhos e seus sistemas


codificados e codificantes? De que maneiras poderemos intervir na essência dos
objetos técnicos, sua tecnicidade, de forma a fazer emergir dos processos de
criação o improvável?
O filósofo Gilbert Simondon traz alguma luz a essas questões. Para
Simondon o objeto técnico se encontra entre a forma mais abstrata – a ideia, o
esquema, conceitos – e a forma mais concreta – o objeto natural (o organismo
natural, o ser vivo). Através de um processo de “individuação”4 o objeto
técnico tende a sua forma mais concreta. Cabe aqui notar que a forma mais
concreta não corresponde a um produto final acabado, mas a uma instância
avançada de um processo de convergência contínua. Em outras palavras,
quanto mais concreto um objeto técnico se torna, mais suas unidades internas
convergem num processo de operação coerente, compartilhando funções,
tornando-se de alguma maneira mais sofisticado. Esse tipo de convergência
é encontrado na natureza, otimizado nos organismos vivos onde todos os
elementos funcionais são “sobredeterminados em si”.5

Com base no exposto, nós nos orientamos pela ideia de que apenas quando
tais sistemas técnicos são percebidos em seu processo de devir (individuação),
sua essência, sua tecnicidade, vem a ser amplamente revelada. Partindo desse
princípio o presente trabalho investiga modos de concretização/individuação
de objetos técnicos através dos processos de criação artística (prática) e suas
reverberações conceituais (teoria). Tal articulação se mostra estratégica aos
processos de experimentação poética com tecnologias, seu pensamento crítico
e justifica dessa maneira pesquisas como a presente.
Tais pressupostos orientam a criação do projeto “Telebiosfera”, plataforma
para experimentos em hibridação de organismos naturais (plantas) e artificiais
em contexto telemático. Trataremos a seguir dos principais norteadores deste
projeto que encontra suporte teórico-prático no NANO – Núcleo de Arte e
Novos Organismos – EBA/PPGAV/UFRJ.

the apparatus to produce something impossible to see in advance, something improbable, something
informative, […]. FLUSSER, V. Towards a Philosophy of Photography. Germany: European
Photography, 1986, p. 58.
4. SIMONDON, G. On the Mode of Existence of Technical Objects. English translation of Du mode
d’existence des objets techniques. London: University of Western Ontario, 1980.
5. Idem.
210 das artes e seus percursos

3. Breve histórico

O núcleo laboratorial NANO – Núcleo de Arte e Novos Organismos –


EBA/PPGAV/UFRJ foi criado em 2010 pelo autor, artista-pesquisador Prof. Dr.
Carlos (Guto) Nóbrega, e atualmente é coordenado pelo mesmo e pela Profa.
Dra. Maria Luisa Fragoso. O laboratório tem por fim prover base instrumental
para experimentações prático-teóricas no campo delineado por esse projeto,
objetivando, sobretudo, tornar-se um nó articulador de visibilidade e inserção
artístico-acadêmica dos projetos nele desenvolvidos. O laboratório tem como
referência modelos já aprovados internacionalmente – Artists-in-Labs – Jill
Scott, SymbióticA – Oron Catts, Interface Culture – Christa Sommerer) – e
preza pelo caráter transdisciplinar de seus métodos e objetos com finalidade a
desenvolver e disseminar o conhecimento em rede. No ano de 2011, o núcleo
laboratorial NANO foi convidado a participar de dois projetos de pesquisa e
desenvolvimento de interface realizados em colaboração com universidades
no Brasil e no exterior. O projeto “Laboratorium Mapa D2”, idealizado e
coordenado pela Profa. Dra. Ivani Santana, da Universidade Federal da Bahia,
e o projeto “Ecotelemedia”, idealizado pelo Dr. Kjell Yngve Petersen da IT
University of Copenhagen, Dinamarca, tiveram em comum o foco na articulação
de processos colaborativos com base em redes telemáticas para pesquisa de
performances assistidas pelas tecnologias da informação e comunicação, assim
como o desenvolvimento de sistemas híbridos (plantas e organismos artificiais)
para experimentações à distância. Desde 2010 o núcleo realiza o laboratório
aberto “Hiperorgânicos”6 focado na experimentação com sistemas interativos
telemáticos. Através de metodologia dialógica e processual, o laboratório integra
práticas artísticas com ênfase na hibridação, robótica, música e visualização de
dados, tendo como base o conceito de rede, a conectividade e a visualização
desse campo interativo.
Os eventos acima relatados contribuem para a base prática, teórica,
transdisciplinar e colaborativa na qual o presente projeto se articula. Através de
apoios concedidos pela FAPERJ, CAPES, bolsas PIBIC, PIBIAC e outras fontes
de incentivo, o NANO tem desenvolvido uma consistente rede epistemológica
e de visibilidade para experimentações que permitem nosso grupo de pesquisa

6. O laboratório aberto “Hiperorgânicos” parte de uma configuração básica sustentada por um


servidor central de fluxos de dados articulado em protocolo OSC (open sound protocol). Tal
servidor permite que informações numéricas referentes aos processos desenvolvidos durante
o laboratório sejam enviadas e recebidas pelos diversos pontos da rede e usadas em processos
diversos.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 211

no CNPq e seus demais colaboradores investigarem um campo de fundamental


importância para as questões contemporâneas do conhecimento. Campo esse
que reflete não só problematizações no específico terreno da arte, mas que se
ramifica por domínios em áreas sociais, econômicas, científicas e políticas. A
hibridação e a telemática, teorizada e, acima de tudo, experienciada através
da prática artística, tornam-se ferramentas para o saber e modelo para futuros
possíveis. É nesse sentido que o presente projeto e a criação do sistema
“Telebiosfera” preveem a sua contribuição.

4. Telebiosfera

Os caminhos abertos pela arte telemática (Ascott, 1966,1967) têm


apontado para a necessidade de investigações prático-teóricas no uso das
redes como fomentadoras de um espaço transdisciplinar e híbrido em sua
natureza. Partimos dessa premissa e investimos na construção de sistemas
que exploram os limites das redes de informação para criar ambientes
(sistemas) interconectados em que ecologias de natureza híbrida entre
organismos naturais e artificiais possam emergir. Partindo dessa premissa,
o sistema “Telebiosfera” investe no desenvolvimento de terrários imersivos
interconectados remotamente com base em sensores, plantas, áudio, vídeo
e o uso da internet. O projeto aposta nesse processo de invenção cuja
poética resulta da delicada simbiose entre plantas e máquinas. Os sistemas
criados a partir dessa visão são plataformas que alimentam novos campos
de conhecimento ao mesmo tempo que trazem visibilidade às poéticas
e estratégias criativas de novos processos. Essa é a razão maior desse
investimento intelectual e prático.

4.1 Conceito

“Telebiosfera” é um projeto de arte focado na construção de um ambiente


híbrido (composto de elementos naturais e artificiais) no qual é possível uma
experiência telemática, biocomunicativa entre ecossistemas remotamente
localizados. Cada terrário de nosso sistema está encapsulado em um domo, que
denominamos “Telebiosfera”, de forma a criar um micro ambiente híbrido e
permitir uma experiência imersiva e intimista para o visitante. Exploramos esse
espaço sob o conceito “abrigos sensíveis”. “Telebiosfera” traz como principal
interface uma planta. Através da interação com a planta, sons, imagens são
produzidos e trocados entre os dois ambientes.
212 das artes e seus percursos

“Telebiosfera” reúne o conhecimento adquirido nos últimos trabalhos


desenvolvidos pelo artista pesquisador, focados em robótica, visão artificial,
hibridação e telemática, para compor um sistema cujo maior objetivo é permitir
ao observador, como um dos agentes do sistema, uma experiência, sensorial,
com base na comunicação entre duas biosferas remotas. Através da mediação
de câmeras, microprojetores, interface híbrida de interação e a transferência
de dados climáticos de um local remoto a outro, “Telebiosfera” busca criar um
microambiente telemático através do qual seja possível ao visitante a experiência
de uma natureza aumentada, gerada com base na hibridação entre organismos
naturais e artificiais. Trata-se de um trabalho de arte que dialoga diretamente
com a noção de presença, natureza, conectividade, hibridação, experiência,
conhecimento, entre outros conceitos pertinentes aos discursos contemporâneos
da arte. Ideias que desejamos tornar visíveis através desses experimentos.

4.2 Funcionamento

Cada módulo é capacitado para receber e transmitir dados e imagens


do seu microecossistema (terrário, sistema artificial, visitante) em tempo real
dialogando assim com seu par remoto. Ao visitante será possível experienciar
esses dados na forma de imagens (com base em kinetic), sons interativos
(modulados pelos sensores), assim como através da simulação das condições
ambientais de um terrário no outro (temperatura, luz, umidade etc.).

4.2.1 Sistema

A principal interface de interação entre as duas telebiosferas é um


sistema híbrido composto de uma planta e um organismo artificial para leitura
de respostas galvânicas vegetais, monitoramento de umidade, luz, temperatura
e CO2. A base do sistema em dois domos geodésicos (outras estruturas para
o ambiente estão sendo testadas) para projeção 180 graus equipado com
dispositivo de climatização customizado, interface de interação orgânica com
base em resposta galvânica vegetais, sensores de temperatura, umidade, sistema
de projeção, áudio e captura de imagem.

4.2.2 Domo e sistema de projeção

Em princípio o domo foi pensado com base em uma estrutura geodésica.


No entanto, estamos estudando outras formas leves, de fácil manuseio e
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 213

transporte. Para o sistema de projeção tomamos por base a pesquisa de Paul


Bourke,7 professor associado da University of Western Austrália. Bourke
desenvolve desde 2003 pesquisa sobre projeção em domos estruturados em
espelhos esféricos (ver Fig. 1). Entre as vantagens principais estão o baixo custo,
fácil manutenção, menor distorção com relação às lentes olho de peixe. Devido
ao caráter experimental de nosso domo, acreditamos que o sistema de projeção
em espelhos esféricos contribuirá para uma maior versatilidade na composição
do sistema.

Fig. 1: Modelo iDome de Paul Bourke

4.2.3 Captura de imagens

Originalmente o projeto foi pensado com uso de imagens capturadas


através do Kinect da Microsoft. A razão principal dessa tecnologia foi explorar
recursos de mapeamento 3D de imagem, o que nos permite fazer uma leitura
tridimensional do esqueleto humano e transmitir esses dados em tempo real via
rede. Desejamos que a transmissão desses dados seja possível através de redes de
baixo desempenho, facilitando dessa forma o uso de tecnologia celular para uso
remoto do sistema. Ao invés de bitmaps serão enviadas coordenadas numéricas
geradas pelo Kinect. Através desse processo, avatares e demais abstrações
poderão ser construídos com base em tais informações gerando um corpo digital
do usuário através da projeção no domo. Nossa intenção é explorar imagens
efêmeras, de alta performance interativa, porém com resolução adequada às
condições precárias de rede.

7. Cf: http://paulbourke.net/dome/arrangement.pdf.
214 das artes e seus percursos

4.2.4 Climatizador

O climatizador é um dispositivo ainda a ser desenvolvido, consistindo de


três recursos básicos, podendo ser acrescidos outros durante o projeto. São eles:
aquecedor controlado com base em lâmpadas infravermelhas, umidificador de
ar, refrigerador de ar customizado com base em cerâmica peltier. Cada um desses
dispositivos receberá comandos telemáticos através dos sensores localizados no
ambiente remoto. Com base nos dados recebidos via rede o climatizador simulará
as condições do ecossistema remoto de acordo com as variáveis recebidas dos
sensores. O climatizador estará sujeito também às interações do visitante na
Telebiosfera remota, de forma que alterações climáticas poderão ser percebidas
em uma Telebiosfera quando um visitante interagir no interior da outra.

4.2.5 Áudio e vídeo

O sistema de áudio utilizará paths em Pd8 com base em osciladores de


baixa frequência. Essa programação em Pd responde diretamente às variações
de dados da rede via protocolo OSC.9 Isso permite que variáveis produzidas pela
interação do visitante em um dos domos sejam recebidas no outro domo e vice-
versa. Dessa maneira, ao se interagir com a interface híbrida (planta + medidor
de resposta galvânica) em um dos domos, o domo remoto receberá os dados e
poderá, por exemplo, traduzir tais dados em modulações sonoras no ambiente.
A outra forma de retorno às interações do visitante na telebiosfera ocorrerá
através de imagens. Como informado anteriormente, cada telebiosfera possui
um Kinect para captura de movimentos. Os dados produzidos por esse sistema
serão transmitidos via streaming e projetados na forma de imagens na telebiosfera
remota, permitindo ao visitante uma experiência visual correspondente.

4.2.6 Interface interativa híbrida

A interface de interação entre os ambientes dos dois domos tem por base
um sistema híbrido. Na base desse sistema encontra-se uma planta (ou grupo)
cujos sinais eletrofisiológicos são monitorados por um circuito customizado

8. Pure Data (Pd) é uma linguagem de programação de código aberto, com interface visual
desenvolvida por Miller Puckette na década de 90, para criação de música em computadores.
9. Open Sound Control é um protocolo para comunicação entre computadores e outras
fontes de dados numéricos através do uso otimizado de estruturas de redes (Cf. http://
opensoundcontrol.org/introduction-osc).
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 215

para leitura de resposta galvânica, adaptado para medir variações de resistência


elétrica na superfície de folhas vegetais. A alma desse dispositivo é um circuito
wheatstone bridge, cuja configuração eletrônica é definida por uma ponte de
resistores em equilíbrio, sendo que um deles é substituído pela folha de uma
planta. Quando a condutividade elétrica dessa folha varia, a ponte se desequilibra
gerando um output que é amplificado e aplicado na entrada analógica de um
microcontrolador arduino para análise e processamento de dados para posterior
envio aos demais estágios do sistema.

5. Objetivos gerais

Este projeto tem como objetivo desenvolver plataforma prático-teórica


para a investigação de hiperorganismos com foco na hibridação de sistemas
artificiais e naturais e a telemática. Busca possibilitar a observação prática de
novas ecologias no curso dessas experimentações, assim como experimentar
estados de consciência a partir de processos imersivos em tais ambientes de
características cibernéticas. Tem como meta proporcionar base investigativa
para pesquisadores interessados nesse campo.

6. Metodologia

O projeto aqui proposto utiliza metodologia de cunho prático-teórico


voltada para a análise de discurso, prática em laboratório-estúdio focado na
experimentação, captação e análise de dados. Trata-se sobretudo de pesquisa
empírica com base em investigação em primeira pessoa, focada nos fenômenos
naturais e síntese orgânica, em busca de novos modelos para criação artística.
O método conta com três dispositivos de análise: prática laboratorial (oficinas
e testes); seminários (SET – Seminário Exploratório Transdisciplinar); Diálogos
Transdisciplinares, evento no qual criadores das mais diversas áreas são
convidados a apresentar suas ideias na forma de um diálogo com outro criador
e o público e o “Hiperorgânicos”, laboratório aberto para testes de processos,
conectividade e visualização de dados onde as telebiosferas serão testadas.

7. Estado da arte do projeto

No primeiro semestre de 2014 foi realizada uma oficina imersiva de dez


dias tendo por base o conceito “Abrigos Sensíveis”. A oficina, organizada e
realizada pelos laboratórios LAMO – FAU/UFRJ (arquitetura) e NANO – EBA/
216 das artes e seus percursos

UFRJ, contou com a presença de diversos professores e profissionais convidados,


cujo propósito foi orientar cinco grupos de estudantes para o desenvolvimento
de espaços interativos habitáveis na forma de protótipos. O mote das oficinas
foi o potencial caráter afetivo que o ambiente apresenta na sua relação com o
indivíduo. Como recurso de pesquisa foram usadas tecnologias de corte a laser,
impressão 3d, sensores e atuadores microcontrolados. Nesse contexto surgiu a
primeira ideia para a construção do domo na forma de estrutura “tensegrity”10
(ver Fig. 2). Posterior a esse primeiro estudo feito por um dos grupos da oficina a
ideia evoluiu para a construção de um domo em forma geodésica. Optamos por
um formato de ¼ de esfera composto de pentágonos e hexágonos encaixados
de maneira a criar uma superfície projetiva de cerca de 180 graus. Foram
utilizados madeira, tecido, encaixes de metal e parafuso para a estrutura que se
autossustentava em sua base. O projeto visava a uma área projetiva para uso
do sistema de projeção refletida em espelho convexo. O estudo e a construção
desse domo ocuparam o primeiro semestre de 2014 e tiveram como meta a sua
apresentação e testes durante o “Hiperorgânicos” daquele ano, que teve como
foco temático também o conceito “Abrigos Sensíveis”.

Fig. 2: A imagem mostra no primeiro quadro um protótipo para estrutura interativa em


tensegrity criado durante o workshop. No segundo quadro vemos a estrutura montada em
formato 1:1, apresentada durante o evento Hiperorgânicos.

10. Estruturas de integridade tensional, autoequilibradas e pré-tensionadas por um princípio


de relação estrutural que privilegia comportamentos tensionais contínuos distribuídos em
detrimento de descontínuos, localizados e comprimidos.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 217

7.1 Testes, ajustes e desafios

O sistema apresentado no “Hiperorgânicos” foi composto de um domo,


um espelho convexo, uma base com terrário, um Kinect e dois “hiperbots”11
(ver Fig. 3). A colaboração com a doutoranda Barbara Castro, pesquisadora em
visualizacão de dados com uso de Kinect e Processing,12 permitiu a elaboração
de uma primeira interface gráfica para a “Telebiosfera”. Foi possível mapear o
corpo humano na forma de um esqueleto de pontos quando este se posicionava
em frente ao terrário na entrada do domo (ver Fig. 4). Ao mapa de pontos
do esqueleto foram atribuídas partículas coloridas que interagem entre si de
acordo com movimentos do visitante. Essas partículas apresentavam mudanças
nas cores determinadas pela interação do usuário com as plantas. Quanto
maior a interação e a resposta eletrofisiológica das plantas, maior o diâmetro
das partículas e sua dinâmica, criando com isso um feedback visual em tempo
real. Essa visualização de dados foi projetada na superfície do domo com auxílio
do espelho convexo posicionado bem aos pés do terrário.

Fig. 3: O primeiro quadro apresenta o domo montado com o terrário em primeiro plano.
No segundo quadro podemos ver os “hiperbots” conectados às plantas.

11. Hiperbots são criaturas robóticas criadas pelo autor, que combinam em sua funcionalidade
sensores de luz, umidade, temperatura e resposta galvânica. São o coração do terrário, visto
que todo o fluxo de dados oriundos das plantas e seu ambiente são gerenciados por eles.
12. Programa de código aberto construído inicialmente por Casey Rears e Benjamin Fry do MIT,
voltado ao ambiente das artes visuais, especialmente para que não programadores pudessem
iniciar na programação.
218 das artes e seus percursos

Fig. 4: Teste de calibragem do Kinect com esqueleto em primeiro plano. Na segunda imagem
teste com partículas.

Outro recurso implementado no sistema foi uma superfície interativa


que atuou sobre o comportamento de um dos pentágonos formadores do domo.
Ao invés de fixo o pentágono foi criado com partes móveis, acionadas por um
motor que respondia ao fluxo de dados presente no sistema. Como pode ser
visto nas imagens seguintes (ver Fig. 5), a superfície do pentágono foi dividida
em partes triangulares que por sua vez foram conectadas às hastes que ativavam
um movimento axial de expansão e retração. Esse movimento, que operava na
frequência de uma onda senoidal, seria afetado pela interação com as plantas,
causando a abertura de um dos pentágonos na direção do usuário. Tivemos
alguns problemas com os motores utilizados que não se adequaram totalmente
ao propósito do sistema. Estamos testando uso de servo-mecanismos num
segundo protótipo. Ressaltamos o benefício dos recursos de impressão 3D
e corte a laser que permitiram um avanço considerável na prototipagem do
sistema, acelerando o processo de testes, experimentações e especulações por
parte da equipe.

Fig. 5: Dispositivo eletromecânico, interativo, para abertura de um dos pentágonos do sistema.


claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 219

Durante o “Hiperorgânicos” também foi implementada uma primeira


interface sonora para a “Telebiosfera”. A sonificação do sistema utilizou o
fluxo de dados provenientes das plantas para ativar diversos osciladores
arranjados na forma de paths criados com o programa MAX/MSP. Esse
recurso foi orientado por um de nossos convidados internacionais do
Hiperorgânicos, o artista Augustine Leudar, pesquisador do Sonic Art
Research Centre da Queen’s University em Belfast – UK. Augustine
Leudar desenvolve pesquisa em sonificação de eletrofisiologia vegetal tendo
por diversas vezes visitado a Amazônia para pesquisa de campo. Foi um
privilégio para nosso grupo contar com a presença desse artista-pesquisador
que nos orientou na programação de uma primeira estrutura sonora para
nosso projeto.

Conclusão

Apesar dos recursos de rede durante o Hiperorgânicos, não foi possível


testar a transmissão de imagem para um segundo domo, ou receber imagens
remotas na “Telebiosfera”. Estamos trabalhando exatamente nesta etapa no
momento da escrita do presente artigo. No entanto, a transmissão e captura
de dados com base no servidor externo têm nos permitido otimizar recursos
de hardware e software para o sistema de maneira a garantir a realização
de nossas metas. Estamos explorando outras formas para o domo integrado
ao terrário, mais modular, mais leve e de fácil transporte. O conceito de
abrigo sensível tem orientado a vertente poética deste projeto que extrapola
a tecnicidade implícita de seu sistema em busca de uma experiência
poética, sensível. No decorrer de nossas pesquisas vislumbramos o recurso
de uma “Telebiosfera” móvel, um vestível capaz de se comunicar com as
“Telebiosferas” fixas. Apesar de não estar previsto originalmente no projeto
aprovado pelo CNPq, entendemos que este recurso deriva diretamente do
projeto e o complementa. A relação natureza, homem, máquina está no
cerne de nosso trabalho e as diversas propostas artísticas que constelam este
universo só vêm a contribuir para expansão desse campo de investigação.
Esperamos que esta plataforma permita a seus executores, assim como
à rede de colaboradores envolvidos, um modelo conectivo, integrado,
expansível, que, acima de tudo, nos aproxime de uma sensibilidade por vezes
negligenciada nos ambientes telemáticos que, em potencial, permitiriam a
amplificação de nossas conexões sensíveis.
220 das artes e seus percursos

Reconhecimento

Gostaríamos de agradecer ao CNPq o apoio a este projeto através de


edital Universal, sem o qual esta pesquisa seria inviável.

Referências bibliográficas

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Visionary Theories of Art, Technology, and Consciousness. Berkeley: University of
California Press, 2003; Cybernetica: Journal of the International Association for
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1, pp. 51-52, 1980.
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FLUSSER, V. Towards a Philosophy of Photography. Germany: European
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MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. Autopoiesis and Cognition: the Realization
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SIMONDON, G. On the Mode of Existence of Technical Objects. English
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Western Ontario, 1980.
______. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier: Editions
Montaigne. 1989.
S.H.A.S.T. : processo investigativo em
biotelemática como prática artística

Maria Luiza P. G. Fragoso

Apresentação

Os temas abordados neste artigo fazem parte de um conjunto de palestras


e oficinas desenvolvidas por mim e pela equipe do Núcleo de Arte e Novos
Organismos (NANO) nos anos 2013 e 2014. Os projetos de pesquisa citados e
processos metodológicos aplicados foram alvos de investigação em recente estágio
pós-doutoral realizado por mim na ECA-USP nesse mesmo período. A importância
que atribuo a esses temas está diretamente relacionada com a prática acadêmica
e a produção artística decorrentes dos processos de criação e da sistematização
e expansão do conhecimento em arte e tecnologia. Primeiramente, entendo
que o fazer artístico dentro da academia já traz em si uma sistematização de
conhecimentos, e que este, somado à produção criativa e à inovação tecnológica
e poética decorrentes desse fazer, resulta em produção de mais conhecimento. A
natureza da obra artística como expressão e comunicação de um saber já intui
o compartilhar da produção, seja qual for a linguagem explorada, levando a
uma exposição desse conhecimento para além dos limites do espaço acadêmico
(galerias, museus, centros culturais etc.). Essa versatilidade pode contribuir
e ao mesmo tempo prejudicar o artista/pesquisador no reconhecimento de
seu trabalho acadêmico, quando este é avaliado por parâmetros ou modelos
das ciências naturais, ciências sociais, dentre outras. São muitos os artigos
publicados por arte educadores sobre contradições epistemológicas entre as artes
e as ciências, seja qual for o nível escolar. Não pretendo elaborar sobre esse
problema neste artigo, mas sim contribuir para a discussão com duas fontes de
referência. Primeiro ilustrar a essência de fazer ciência com algumas ideias do
físico e matemático Richard P. Feynman,1 influenciada pelos estímulos de seu

1. ROBBINS, Jeffrey (org.). The Pleasure of Finding Things Out. The Best Short Works of Richard
Feynman. New York: Basic Books, 1999.
222 das artes e seus percursos

pai e baseada num amor profundo pela ciência. Em segundo, compartilhar de


outro tipo de amor num livro recentemente editado sob o título Technobiophilia,
por Sue Thomas.2 Feynman vai nos ajudar a sustentar algumas das estratégias
metodológicas aplicadas na pesquisa e produção atual em Arte e Tecnologia, em
que arte e ciência se encontram. Thomas nos leva a refletir sobre o campo da
interseção entre natureza e ciberespaço, mais especificamente o que nominamos
de biotelemática, por onde caminham a produção artística e as pesquisas de
nossa equipe do NANO.3 Espero assim não tornar esta leitura repetitiva e dar
um passo à frente, com minha contribuição, na reflexão sobre metodologias e
processos de criação, inclusive em arte. Para ilustrar os processos metodológicos
serão utilizados como estudo de caso os projetos artísticos S.H.A.S.T.. Inicio,
portanto, minha explanação com a apresentação dos projetos de modo a poder
dialogar com as referências citadas a partir da experiência dos mesmos.
O S.H.A.S.T. (Sistema Habitacional para Abelhas Sem Teto)4 foi
criado dentro do contexto do NANO com o objetivo de pesquisar, projetar e
desenvolver processos artísticos compostos por objetos de naturezas híbridas,
que tenham como recursos: sistemas computacionais e eletrônicos; conceitos e
modelos das ciências naturais; e conhecimentos e processos artísticos criativos
na concepção das ações performáticas e das instalações computacionais
interativas. O tema do projeto está relacionado com questões de ecologia
humana e equilíbrio agroecológico, passando pelo problema da sustentabilidade
urbana. A opção pela parceria com abelhas se deu pela preocupação de âmbito
mundial com o desaparecimento das mesmas e a importância que têm na cadeia
natural da sobrevivência de inúmeras espécies animais e vegetais, inclusive a
humana. A produção desta categorizada como arte interativa, ou instalação
computacional interativa em telemática. S.H.A.S.T. é composto de três
módulos, ou seja, um tríptico telemático, onde os módulos estão interligados/
conectados pelo servidor do laboratório do NANO. O esquema a seguir (Fig.
01) demonstra a composição de módulos:

2. THOMAS, Sue. Technobiophilia – Nature and Cyberspace. New York: Bloomsbury Academic,
2013.
3. Núcleo de Arte e Novos Organismos, criado em 2010 dentro da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, atua no Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais, linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares.
4. Projeto S.H.A.S.T. tem o apoio de edital APQ1 FAPERJ-2013/2014.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 223

Fig.01 – Esquema do tríptico S.H.A.S.T.

Cada módulo possui uma função específica no contexto do objeto híbrido,


ou hiperorgânico5. Módulo 1 é composto por uma caixa de madeira estilo
Langstroth que tem como componentes: 1 tampa, 1 melgueira ou sobreninho, 1
ninho, 1 fundo e os quadros caixilhos do ninho e melgueira.6 Foi incluída uma
segunda melgueira com uma tela separadora para instalar os equipamentos de
monitoramento.

5. Hiperorgânico, termo cunhado pelo artista pesquisador Guto Nóbrega, também coordenador
do NANO.
6. A manutenção das medidas padrões para nosso módulo foi essencial para que este possa
ser adaptado à melgueiras de diferentes apicultores. Isto porque o projeto visa não apenas a
criar uma obra interativa mas sim um sistema que pode ser distribuído e compartilhado entre
apicultores ou amadores amantes das abelhas.
224 das artes e seus percursos

Fig. 2 e 3 - caixas estilo Langstroth adaptada para o S.H.A.S.T.

O Módulo 1 é, portanto, uma colmeia em atividade, acrescida de uma


segunda melgueira onde ficam instalados os sensores e microprocessadores de
transmissão de dados para o servidor (Fig. 2). O protótipo desenvolvido está
instalado num apiário em propriedade rural certificada orgânica no município
de Barra do Piraí (RJ). O conjunto é atualmente alimentado por energia
cabeada, mas o projeto inclui estudos para que possa ser equipado com sistema
de transmissão de dados alimentado por energia solar.
O Módulo 2 é uma colmeia vazia, ainda seguindo alguns parâmetros do
estilo Langstroth, e será utilizada para capturar enxames em locais urbanos. Esse
módulo está atualmente em fase de construção e deve atender não apenas às
exigências da instrução normativa n. 46 de 06 de outubro de 2011, do manejo
de apicultura orgânica, mas também propor um design inovador para que se
tornem objetos interativos poéticos distribuídos a voluntários em diferentes
locais urbanos.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 225

Fig. 4 Esquema eletrônico interno Mod. 1 Fig. 5 Imagem dos componentes fixados no
interior da caixa.

O Módulo 3 é o módulo expositivo, simulador do processo completo,


exibidor do sistema como um todo. Pela proposta em desenvolvimento, é um
espaço imersivo, físico e/ou virtual, onde o design se aplica na construção
espacial, na visualização de dados e no sistema interativo (adaptação de atuadores
diversos) para recriar o ambiente da colmeia a partir dos dados capturados
pelos sensores localizados nos Módulos 1 e 2. Um protótipo foi desenvolvido ao
final de 2014 (Fig. 6) e exibido durante o CAC.4 – exposição “Computer Art
& Design for All”7 e na exposição “EmMeio.5” durante o #13.ART Encontro
Internacional de Arte e Tecnologia8. A proposta é um espaço imersivo composto
por inúmeros atuadores que respondem aos estímulos das abelhas.

Fig. 6 Protótipo de Módulo 3 – Foto de Barbara Castro.

7.  CAC.4 Congresso Internacional de Arte Computacional – Exposição sob o título “Arte
Computacional & Design para todos ”realizado no Prédio da Reitoria da UFRJ, Rio de Janeiro,
pelo NANO em parceria com LAMO 3D (FAU/UFRJ), Planetary Colleguim (University
of Plumouth, UK), Artshare (PT), e apoio da CAPES, CNPq, FAPERJ, EBA/CLA/UFRJ e
Reitoria da UFRJ, 1-3 setembro 2014.
8. Exposição “EmMeio.5” realizada durante o #13.ART Encontro Internacional de Arte e
Tecnologia, Museu Nacional da República, Brasília (DF), 2014.
226 das artes e seus percursos

Nesse caso, a pesquisa em arte incorpora noções da biologia, da eletrônica,


da computação, da arquitetura e do design. Por um lado, direcionamos parte
do processo de investigação para a capacitação na prática da apicultura;
levantamento de resultados de pesquisas publicadas sobre o desaparecimento
das abelhas e a relação desse fenômeno com o uso de agrotóxicos nas lavouras;
levantamento de produtores orgânicos no estado do Rio de Janeiro, possíveis
parceiros na recepção dos enxames capturados; e a instalação de uma colmeia
num local de fácil acesso para a inclusão dos equipamentos de monitoramento.
Por outro lado, o trabalho exigiu a colaboração de pessoas com conhecimento
em eletrônica e programação computacional para o estudo de equipamentos
adequados aos objetivos e constituição do sistema desejado. A equipe formada
por alunos, técnicos e professores esteve focada na experimentação de sensores e
atuadores adaptáveis ao monitoramento de movimento de pequenos elementos
(abelhas) em ambientes sem iluminação, além de temperatura, umidade e a
própria luminosidade.
Uma vez concebidos e construídos os módulos 1 e 3, a experimentação
revelou um sem número de possibilidades que abrem o leque de opções
para se pensar sobre os aspectos estéticos/poéticos do projeto. Pela via da
arquitetura, o tema discutido é o da construção de abrigos sensíveis, um dos
pontos de intersecção com o projeto Telebiosfera. Já pelo olhar do design, tanto
a visualização/expressão dos dados coletados, quanto os produtos projetados
(caixa de captura, ambiente imersivo) são fundamentais para o objetivo da
proposta interativa com as abelhas/enxames e com os espaços expositivos.

Sobre processos investigativos como prática artística

Uma vez apresentado o projeto em andamento no NANO, passo agora


à discussão desses processos investigativos tendo como referência as estratégias
metodológicas aplicadas pelo nosso Núcleo de pesquisas num diálogo com ideias
do cientista Richard P. Feynman e da designer Sue Thomas.
O Núcleo de Arte e Novos Organismos, criado em 2010, possui um
grupo interdisciplinar, abrangendo discentes, docentes e pesquisadores de
diversas unidades acadêmicas e programas de pós-graduação9, com os quais

9. Escola de Belas Artes, Escola de Comunicação, Escola de Música, Escola Politécnica e


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, SMT- Sinais, Telecomunicações e Multimídia da
Coppe, Sonic Arts Research Centre (SARC) da Queen’s University Belfast, o Laboratório de
Creaciones Intermedia na Faculdade de Belas Artes em San Carlos, Valência – Espanha, a
UFBA, UNB, UFJF, UFG, UFRB, USP, UNESP, UDESC, UFSM, dentre outros.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 227

desenvolve um trabalho de caráter artístico/investigativo/acadêmico em arte e


tecnologia.

O tripé conceitual que permeia as pesquisas do NANO é estruturado sobre


os eixos investigativos: arte, hibridação e biotelemática. Os conceitos que
articulam esse tripé são motivados pela necessidade de se pensar a arte e o
design em seu entrecruzamento com a ciência e as tecnologias da informação/
comunicação, em especial naquilo que concerne novas possibilidades de
conectividade entre organismos naturais e artificiais (questão inerente às
inter-relações homem-máquina) e o potencial telemático dessas possíveis
interconexões, suportado pelas redes de comunicação contemporâneas.
Os projetos desenvolvidos pelos artistas/pesquisadores focam possíveis
inter-relações entre artes visuais, design, tecnologia, ciência e natureza,
investindo numa forma experiencial, demonstrativa e dialógica para
abordar questões sobre arte, processos compartilhados e conectividade.10

Como propostas metodológicas o NANO adotou as seguintes estratégias:

•  Sistema Laboratorial – espaço laboratorial adequado para viabilizar


testes para as experimentações; local de trabalho coletivo; ponto de
referência para colaboradores e pesquisadores; organização e sistematização
do trabalho prático.
•  Sistema de Integração Acadêmica – promoção e articulação entre
grupos de pesquisas, profissionais e instituições de áreas de interesse que
possam colaborar com os projetos. Exs: Série Diálogos Transdisciplinares –
espaço para encontros onde se privilegia a troca de conhecimentos teóricos
e práticos, com base em diálogos abertos ao público. Série SET – Seminário
Exploratório Transdisciplinar – seminário aberto ao público que visa abrir
espaço para a apresentação de projetos de pesquisa em andamento.
•  Sistema de Integração Artística/Cultural – organização e participação
em projetos colaborativos, presenciais e remotos, com o apoio de editais
e prêmios, em articulação com universidades, centros culturais etc.. Ex:
evento Hiperorgânicos, em 2014 quinta edição. Ainda em 2014, CAC.4
Computer Art Congress – Computer Art for All (http://cac4.eba.

10. FRAGOSO, M. Luiza; NÓBREGA, Carlos A. da; DIAS, Filipe de O. “‘Entranhas’:


acoplamentos sensíveis tecnológicos para performances”. Anais do 1o Simpósio Interdesigners.
Bauru, Unesp, 2014, pp. 257-264.
228 das artes e seus percursos

ufrj.br) para divulgar e integrar pesquisas na área de arte e tecnologia


internacionalmente.
•  Atividades Acadêmicas Práticas – que aplicam metodologia coerente
com a proposta conceitual da linha de pesquisa: criação de poéticas
interdisciplinares. Ex: Grupo A.C.H.o – performance e intervenção
ciber urbana (www.antonietachegouhoje.blogspot.com); consultorias e
orientação em residências artísticas. Ex. NUVEM – Estação Rural de Arte e
Tecnologia, Mauá, RJ 2012 e 2013 (http://www.nuvem.tk/); ciclo de oficinas,
incluíndo SET – Experiências Tecno-Sinestésicas, atividade realizada durante
o SIIMI – Simpósio Internacional de Inovação em Mídias Interativa/
UFG/2014, e Fabricação Digital e Desenho Paramétrico, junto ao Laboratório
de Modelos 3d e Fabricação Digital da FAU/UFRJ (LAMO3d)/, cuja
temática principal aborda a questão dos abrigos sensíveis.11

Jeffrey Robbins, em 1999, publicou uma coletânea de palestras/aulas


proferidas pelo cientista Richard Feynman com o intuito de levar ao público
leigo o pensamento do mesmo. Em suas palestras, Feynman descreve suas teorias
de forma bastante lúdica e ilustrada, o que favorece a compreensão de aspectos
e conceitos importantes no campo da física. O que mais me impressionou na
leitura de suas aulas e palestras foi a devoção do cientista à ciência, o amor
pela investigação e pelo desejo de conhecer a vida e o mundo, amor este que
compartilho inclusive na sua forma simbólica. Foram justamente o estímulo à
curiosidade e as formas com que Feynman provocava seus alunos e público que
me levaram a incorporar suas ideias a este artigo. Iniciarei pela sua definição de
ciência.
Segundo Feynman, existiu em nosso planeta uma evolução da vida até
chegar ao estágio de animais evoluídos/inteligentes, (não apenas humanos), ou
seja, capazes de aprender com a própria experiência. Evoluíram rapidamente
até que um animal pôde aprender a partir da experiência de outro animal.
Surge o problema da transmissão dessa experiência, bem como a relação entre
tempo e aprendizagem para que a informação não se perdesse de uma geração
para outra. Cientistas chamaram esse fenômeno de time-binding, a capacidade
humana de transmitir informação e conhecimento entre as gerações a um ritmo
acelerado. Essas ligações estão hoje associadas a mecanismos e processos, como
a educação, a publicação, as regras sociais, infraestrutura que constrange e guia
o comportamento humano, histórias e linguagem, símbolos etc. No entanto,

11. Idem.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 229

nada garante que esses mecanismos estejam transmitindo verdades, ideias


favoráveis às espécies, e sim formando estranhas crenças e preconceitos. Para
Feynman, foi por esse motivo que surgiu a ciência, para desconfiar do passado e
retomar a necessidade da experimentação.

E isto é Ciência: o resultado da descoberta de que vale a pena enquanto


reverificação pela nova experiência direta, e não necessariamente confiar
na experiência do passado. [...] Existe a beleza e as maravilhas do mundo
que são descobertas através dos resultados dessas novas experiências.12

Outra qualidade da Ciência levantada por Feynman é que

[...] ensina o valor do pensamento racional, bem como a importância da


liberdade de pensamento; os resultados positivos que derivam de duvidar
que todas as lições são verdadeiras.
De fato, posso definir ciência de outra maneira: Ciência é a crença na
ignorância dos especialistas.13

Feynman acredita que vivemos numa era anticientífica em que a


avalanche de informações providas pelos meios de comunicação inclusive livros
acaba por criar uma tirania intelectual no nome da ciência, mas que não é
ciência. Devemos diferenciar a ciência das formas e procedimentos utilizados
para desenvolver essa ciência, que muitas vezes estão calcadas em seguir
modelos, formas, e não passam de pseudociências. O resultado dessas imitações
pseudocientíficas é a produção de especialistas. A essência da Ciência é o
benefício da dúvida. É preciso duvidar, investigar, experimentar. “Science does
not teach it; experience teaches it.”
Para complementar o pensamento de Feynman, uma citação de uma
entrevista para o programa Horizon da BBC Television em 1981.

12. Tradução livre da autora: And that is what science is: the result of the discovery that is worth-while
rechecking by the new direct experience, and not necessarily trusting the race experience from the
past. […] There is the beauty and the wonder of the world that is discovered through the results of
these new experiences. ROBBINS, Jeffrey (org.). The Pleasure of Finding Things Out. The Best
Short Works of Richard Feynman. New York: Basic Books, 1999, p. 185.
13. Tradução livre da autora: […] it teaches the value of rational thought, as well as the importance
of freedom of thought; the positive results that come from doubting that the lessons are all true. As a
matter of fact, I can also define Science another way: Science is the belief in the ignorance of experts.
Idem, pp. 186, 187.
230 das artes e seus percursos

Eu tenho um amigo que é um artista e ele às vezes é tomado por um ponto


de vista que eu não concordo muito bem. Ele segura uma flor e diz: “olha
como é bonita” e eu concordo, eu acho. E ele diz: “Veja você, eu como
um artista posso ver como é bonita, mas você como cientista, oh, separa
tudo isso que se transforma numa coisa maçante”. [...] Primeiro de tudo, a
beleza que ele vê está disponível para outras pessoas e para mim também,
eu acredito, embora eu possa não ser tão refinado esteticamente como
ele é; mas eu posso apreciar a beleza de uma flor. Ao mesmo tempo eu
vejo muito mais sobre a flor que ele vê. Posso imaginar as células, as ações
complicadas dentro dela que também têm uma beleza. O que quero dizer
é que não há apenas beleza nesta dimensão de um centímetro, também
há beleza em uma dimensão menor, na estrutura interior. Os processos
também são interessantes, como o fato de que as cores das flores evoluíram
a fim de atrair os insetos para polinizar – significa que os insetos podem
ver as cores. Soma-se uma pergunta: Será que este senso estético também
existe nas formas da flor? Por que é estético? Vários são os tipos de questões
interessantes que mostram que o conhecimento da ciência só soma para a
excitação, mistério e a admiração de uma flor. Ele só acrescenta; eu não
entendo como ele subtrai.14

Há décadas que as artes se libertaram da representação e da aparência


das coisas e trabalham com conceitos e processos. Tenho como referência o
trabalho de Roy Ascott, artista pioneiro das artes na rede internet, que trata
do aparecimento da imagem e das formas na arte em contraponto à aparência:
“a estética da aparência cede seu lugar à estética da aparição”. (Ascott, 338)
Os processos artísticos são experimentos que em alguns casos, como os projetos

14 Tradução livre da autora: I have a friend who’s an artist and he’s sometimes taken a view, which
I don’t agree with very well. He’ll hold up a flower and say, “look how beautiful it is”, and I’ll agree,
I think. And he says – “you see, I as an artist can see how beautiful this is, but you as a scientist,
oh, take this all apart and it becomes a dull thing.” And I think tat he’s kind of nutty. First of all, the
beauty that he sees is available to other people and to me, too, I believe, although I might no be quite
as refined aesthetically as he is; but I can appreciate the beauty of a flower. At the same time I see
much more about the flower than he sees. I can imagine the cells in there, the complicated actions
inside which also have a beauty. I mean it’s not just beauty at this dimension of one centimetre; there
is also beauty at a smaller dimension, the inner structure. Also the process, the fact that the colours
in the flower evolved in order to attract insects to pollinate it is interesting – it means that insects can
see the colour. It adds a question: Does this aesthetic sense also exist in the flower’s forms? Why is
it aesthetic? All kinds of interesting questions, which show that science knowledge, only adds to the
excitement and mystery and the awe of a flower. It only adds; I don’t understand how it subtracts.
Idem, p. 2.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 231

do NANO, buscam nos modelos científicos e na estruturação de pensamentos


lógicos a aparição de padrões ou a quebra de padrões. São processos intuitivos,
muitas vezes coletivos, desenvolvidos a partir de práticas e poéticas artísticas.
Com o advento da tecnologia digital, da mecatrônica e da cultura do DIY
facilitada pelo comércio de componentes eletrônicos, artistas se debruçam
cada vez mais sobre a aparição de universos sensíveis oriundos das estruturas
interiores, tornando visível o que era invisível, perceptível o que foi ignorado.
Estamos buscando a beleza interior para apreciar os mistérios que a ciência é
capaz de desvelar.
Como um cientista, o artista contemporâneo se apropria do benefício da
dúvida e se dedica a uma produção em que a liberdade de expressão é fundamental.
Questiona os paradigmas estéticos herdados do modernismo e vai além de uma
questão pós-moderna. Tudo é possível, tudo deve ser vivido. A experimentação
é o laboratório da vida e a aproximação com a ciência não se estabelece pelos
modelos ou pelos temas, mas principalmente pelos princípios. Assim como os
cientistas, acredito que buscamos saber o máximo que podemos sobre o mundo
em que vivemos, e para isso exploramos linguagens, espaços, tempos e ideias.
Podemos nos concentrar na cultura do homem, bem como na natureza, ou
mesmo na comunhão destes, pelo olhar do homem sobre a natureza. Quando
o artista se imbui do espírito científico e transforma seu processo investigativo
num grande questionamento, formando suas perguntas e trabalhando na busca
por soluções, o trabalho se revela, aparece e sugere novas dúvidas/possibilidades.
As grandes obras são como longos caminhos traçados ao longo de vidas. As
poéticas se revelam na coerência dos processos e seus percursos.

Eu não sinto medo por não saber das coisas, por estar perdido em um
universo misterioso, sem ter qualquer finalidade, que é a forma como ele
realmente é até onde posso afirmar.15

Esse universo misterioso é a fonte de motivação e de inspiração para o


espírito investigativo e curioso de artistas e cientistas. Mesmo que o rigor das
investigações, códigos, ética e procedimentos se diferenciem, a interseção entre
tipos de conhecimento amplia ainda mais as possibilidades sobre os mistérios a
investigar. Uma dessas interseções é o processo intuitivo. Ainda contextualizando
os processos artísticos contemporâneos, partindo das propostas desenvolvidas no

15. Tradução livre da autora: I don’t feel frightened by not knowing things, by being lost in a mysterious
universe without having any purpose, which is the way it really is so far as I can tell. Idem, p. 25.
232 das artes e seus percursos

NANO, relacionamos o processo intuitivo do artista e do cientista com o que


Jorge Albuquerque Vieira denomina de “emparelhamento condicional” dentro da
premissa de que arte também é um tipo de conhecimento, com o qual se aplicam.

[...] emparelhamentos que nós criamos ou admitimos satisfazendo a certas


restrições, certos cuidados, certas normas. Você vai ver que, em termos de
teoria do conhecimento, quando eu quero conhecer algo, eu me emparelho
com este algo dentro de certas circunstâncias, de certas condições.16

A associação intuitiva decorrente de práticas de investigação e de


processos criativos se manifesta de várias maneiras como os emparelhamentos
que se formam e muitas vezes se parecem com pontes que cruzam universos de
conhecimentos específicos em áreas diversas para encontrar suas relações afins.
Esses emparelhamentos estão na essência da interdisciplinaridade.

Emparelhamentos intuitivos

Sue Thomas dedica seu livro Technobiophilia – Nature and Cyberspace a


todos os usuários da internet e amantes da natureza. Procura demonstrar que o
mundo natural está se “tecendo” pela internet desde o seu início. Começa com
observações sobre como a linguagem em computadores e no ciberespaço está
saturada com imagens da natureza: campos, redes, caminhos, vírus, bugs, mouse,
dentre muitos outros. A autora se pergunta o porquê dessa relação da natureza
com o ciberespaço. Seria devido à capacidade que a natureza tem de “nos aliviar
o stress, restaurar a atenção e concentração?”.17
Richard Louv cunhou a expressão “transtorno de déficit de natureza”
e sugere “o quanto mais high-tech nossas vidas se tornam, mais natureza
precisamos para conseguir equilíbrio natural”.18 No entanto, Thomas nos
afirma ao longo de seu livro, que não é necessário desligar nossas máquinas
e sair de casa, mas que atualmente aquilo que desejamos do mundo natural
também pode ser encontrado no ciberespaço. São apresentados vários

16. VIEIRA, Jorge A. “Teoria do conhecimento e arte”, Palestra proferida durante o XIX
Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - ANPPOM,
ocorrido em agosto de 2009 na cidade de Curitiba, sediado pelo DEARTES – UFPR.
17. THOMAS, Sue. Technobiophilia – Nature and Cyberspace. New York: Bloomsbury Academic,
2013, p. 3.
18. LOUV, Richard. The Nature Principle: Reconnecting with Life in a Virtual Age. Workman
Publishing. Kindle Edition, 2012, p. 5.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 233

exemplos que não considero necessário citar aqui já que iniciamos o artigo
com dois exemplos produzidos no nosso laboratório. Optamos por sistematizar
os conceitos que a autora nos oferece e relacioná-los com os experimentos
descritos anteriormente.

•  Internet – é hardware, uma coleção de cabos, máquinas, sinais de


satélites, o corpo físico do ciberespaço. Metáfora: trilhos ou pistas de
uma rodovia.
•  Web – é software, criado por programação que gera texto, imagem, sons
e funcionalidades. Metáfora: parte do trânsito que circula na rodovia.
•  Ciberespaço – termo cunhado por William Gibson, nem internet, nem web,
está todo na mente. É um pensamento, um ecossistema, imaginação coletiva.
•  Biophilia – termo cunhado por Edward O. Wilson, é compreendido
como o desejo de se afiliar a outras formas de vida numa busca perpétua
por novos lugares e novas vidas, pode ser geneticamente impulsionado.
•  Technobiophilia - a tendência inata para se concentrar em processos de
vida e similares à vida como eles aparecem no contexto da tecnologia.

Seu primeiro capítulo tem como título “um lugar tão novo que ainda não
tem nome”. Acredito que esse lugar é onde a conjunção entre natural e artificial
se encontra e se recria. Essa concepção de lugar está muito próxima das propostas
conceituais promovidas pelos projetos do NANO citados no início do artigo por
diversos aspectos, inclusive no que se refere ao emparelhamento de interesses entre
arte e ciência na exploração de questões sobre a integração entre organismos vivos
e sistemas inteligentes. Thomas oferece um grande leque de abordagens sobre esse
lugar híbrido, como pesquisas realizadas por psicólogos ambientalistas; o papel
da cultura californiana do vale do silício com seus encontros acampamentos; a
metáfora do ciberespaço como um complexo ecossistema de redes aplicado ao
conceito de biofilia; e a vida selvagem do ciberespaço. S.H.A.S.T. procura recriar
o lugar da colmeia, ao mesmo tempo que constrói um espaço entre lugares para
que haja uma conexão entre seres vivos via internet. Essa conexão pode acontecer
entre abelhas, quem saberia dizer se é possível ou não? Não interessa comprovar
mas sim especular de forma sistemática.

Notas conclusivas

Os projetos de pesquisa citados ainda estão em andamento. Já é possível


receber feedback suficiente para se saber que ambas as propostas são viáveis e
234 das artes e seus percursos

prometem oferecer uma experiência marcante ao público. As afinidades com a


pesquisa científica estão evidentes e as estratégias metodológicas aplicadas nos
processos de investigação e compartilhamento dos procedimentos metodológicos
aplicados no NANO contribuem de forma decisiva para a viabilidade das obras.
Considero fundamental o reconhecimento do caráter investigativo científico
da pesquisa em arte e tecnologia e ao mesmo tempo as especificidades da
área pela sua natureza artística. Insisto nos aspectos referentes à interseção
entre arte, ciência e tecnologia como um caminho de inovação e produção de
conhecimento de relevante contribuição para as três áreas, e espero que essa
conjugação se torne cada vez mais natural no ambiente acadêmico.

Referências bibliográficas

ASCOTT, Roy. Telematic Embrace. Los Angeles: University of California, 2003.


___________. “Cultivando o hipercórtex”. In: DOMINGUES, Diana (org.).
Arte no século XXI: Humanização das tecnologias. São Paulo: Editora Unesp,
1997.
FRAGOSO, M. Luiza. “Tecnologia e arte: a estranha conjunção entre ‘estar
vivo’ e subitamente ‘estar morto’”. Palíndromo, v. 4, pp. 59-67, 2011.
______; NÓBREGA, Carlos A. da; DIAS, Filipe de O. “‘Entranhas’:
acoplamentos sensíveis tecnológicos para performances”. Anais do 1o Simpósio
Interdesigners. Bauru, Unesp, 2014, pp. 257-264.
LOUV, Richard. The Nature Principle: Reconnecting with Life in a Virtual Age.
Workman Publishing. Kindle Edition, 2012.
ROBBINS, Jeffrey (org.). The Pleasure of Finding Things Out. The Best Short
Works of Richard Feynman. New York: Basic Books, 1999.
THOMAS, Sue. Technobiophilia – Nature and Cyberspace. New York: Bloomsbury
Academic, 2013.
VIEIRA, Jorge A. “Teoria do conhecimento e arte”. Palestra proferida durante
o XIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música - ANPPOM, ocorrido em agosto de 2009 na cidade de Curitiba, sediado
pelo DEARTES – UFPR.
Reinvenção da vida com sistemas
enativos afetivos por pesquisas de Arte e
Tecnociência dos “Novos Leonardos”
Diana Domingues

Ask not what the Sciences can do for the Arts…


Ask what the Arts can do for the Sciences. 
Roy Ascott

Arte e Tecnociência como território transdisciplinar para experimentação


artística do “radical digital”

O ensaio apresenta ação transdisciplinar que enfrenta desafios com


tecnologias criativas e inovação para a reengenharia da vida. São pesquisas
do LART e dos “Novos Leonardos” em Arte e Tecnociência, que colocam
artistas, cientistas e humanistas num saber coletivo em práticas colaborativas
transdisciplinares, numa tentativa de sintetizar a figura emblemática do gênio.
Em práticas colaborativas anti e transdisciplinares, num clima de botton up,
pesquisadores marcados pela reciprocidade, generosidade e colaboração
tentam eliminar as barreiras entre disciplinas, “borderless” e movidos pela
paixão, curiosidade e liberdade de criar,1 sem medo de errar, todos investigam
problemas comuns, tornando todas as ciências uma única e nova ciência.2
O projeto do LART, Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência, dialoga
com o domínio da eScience,3 e propõe “níveis de realidade criativa” sob o tema

1. MOSS, Frank. The Sorcerers and their Apprentices: How the Digital Magicians of the MIT
Media Lab Are Creating the Innovative Technologies That Will Transform Our Lives. PUB
Random House: GROUP, 2011.
2. LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: Editora Unesp, 2000.
3. http://www.fapesp.br/en/8437, http://www.comunitexto.com.br/escience-tecnologias-
revolucionam-a-ciencia/#.VSFASfnF9xw, http://agencia.fapesp.br/escience_e_tema_de_
seminario_organizado_pela_fapesp_e_pela_microsoft_research/17246/. Idem, op. cit.
236 das artes e seus percursos

central da reengenharia da vida, em três eixos: reengenharia do sensório;


reengenharia da natureza e reengenharia da cultura, o que é descrito no decorrer
do texto.
A base teórica que fundamenta os laboratórios de criação está centrada
em sistemas enativos afetivos para gerar sistemas embarcados que propiciem a
enação organismos/ambiente numa “transformação do vivo”, tecnologicamente
entrelaçado ao ecossistema. Esses fundamentos filosóficos e estéticos de natureza
enacionista reforçam uma ecological perception, uma percepção orobórica de
ordem enativa afetiva com a naturalização das tecnologias (Gibson, Noé,
Varela, Couchot, Poissant, Krueger, Domingues). Os sistemas enativos afetivos
permitem captar o élan vital do afeto (no sentido spinoziano), pela intensidade
das experiências em trocas existenciais, para além das representações e
metáforas artísticas anteriores. Pelos dados do biológico, incluído nas trocas
com o sistema, surgem os living maps, os biograms, numa arte do acontecimento
em que a interatividade é ampliada pela enação e afetividade. Nossos sistemas
se inserem no campo da Bioart  and Health, mais especificamente da mhealth
com tecnologias da mobilidade, locatividade e ubiquidade, usando sensores
fisiológicos e visualização de dados para o sensório expandido com captura,
transmissão e processamento de sinais vitais. Na ciência da imagem, as pesquisas
colaboram para um “novo abstracionismo”.
Percepção expandida e suplementada em sinestesias, biodiversidade
e desafios para o ecossistema, paisagens enfermas e luta contra a dengue,
mobilização e comportamento em reality mining (Pentland), softwares sociais,
locatividade e geo-referenciamento, visualização de dados e paisagens enativas
afetivas e imersivas são alguns dos cenários para estéticas tecnológicas com
inovações disruptivas que reinventam os modos de viver. Exemplos são
discutidos nesse ensaio como manifestações artísticas do radical digital.4
A referência central para Arte e Tecnociência segue proposta de Roger
Malina sobre a capacidade de artistas e cientistas em configurar um território de
experimentação artística, voltado a questões ardentes que ameaçam o planeta e
respondem aos desafios da sociedade. Essas ideias foram apresentadas no Brasil,
em setembro de 2009, na Conferência5 Making Science Intimate, pelo Diretor
do Laboratório de Astrofísica da NASA, assinalando o papel da LEONARDO

4. MALINA, Roger. “Leonardo olhando para frente: Fazendo a história e escrevendo a história”.
In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São
Paulo: Editora Unesp, 2009.
5. Disponível em: http://pt.slideshare.net/rmaliina/roger-malina-for-diana-dominguez-09.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 237

Network: Artists and Scientists collaborating on the burning issues of our time.
Em Conferência, via Skype, no auditório da UnB do Centro Internacional
de Física da Matéria Condensada, pôde-se dar ao público a oportunidade de
discutir essas questões com Malina, presidente das Organizações Leonardo.
Naquele dia, o cientista, inclusive, anunciou, ao vivo, lá do Laboratório da
NASA, terem descoberto vida fora do planeta Terra! Em sua palestra e discussões
com os artistas e cientistas brasileiros assinalou entre outras modalidades
de Arte e Tecnociência:6 Climate Art, New Corporality, Immersion in Extreme
Environments, Embedded in Peta-Data Sets, NanoArts, Hacker and Ubiquotous
micro science and culture. São abordagens sobre formas contemporâneas de arte,
fundidas ao ambiente científico que chegam a inventos tecnológicos de impacto
para a inovação em ciência e tecnologia e modificam a cena cultural digital.
O cientista também, em seu texto “Leonardo olhando para frente: fazendo a
história e escrevendo a história”, publicado na antologia, sob minha organização
aqui no Brasil, para celebrar os quarenta anos das Organizações Leonardo, assim
se manifesta:

As artes, ciências e tecnologias representam diferentes modos de ser e


agir no mundo. Muitas pessoas, através de sua prática criativa, escolhem
entrelaçar essas diferentes abordagens. Há quarenta anos, as Organizações
Leonardo têm tido o privilégio de testemunhar e ajudar a documentar o
nascimento de novas formas de práticas criativas e inovadoras. Em especial
nos últimos dez anos, uma nova geração de artistas, alfabetizados científica
e tecnicamente, os “novos Leonardos”, têm criado formas contemporâneas
de arte e, nesse processo, fazendo novas invenções técnicas e, em alguns
casos, descobertas científicas.7

6. Roger Malina pronunciou em 17 de setembro de 2009 a conferencia por Skype com tradução
de Flavia Saretta. A palestra fez parte do lançamento da antologia publicada pela EDUNESP,
em comemoração aos quarenta anos do Leonardo Journal.  DOMINGUES, Diana (Org.).
Arte, Ciência e Tecnologia: Passado, presente e desafios. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 
DOMINGUES, Diana ; LUCENA, Tiago ; HAMDAM, Camila ; SARETTA, Flávia . Skype
Conference: Science as a territory for Artistic Experimentation – Roger Malina – Leonardo
OLAST - coord. geral: Diana Domingues. 2009.
7. MALINA, Roger. “Leonardo olhando para frente: Fazendo a história e escrevendo a história”,
cit. Leonardo é uma Organização fundada em 1967 por Frank Malina em Paris, França. Seu
primeiro projeto foi o lançamento do Leonardo Journal, o primeiro periódico internacional
de impacto no campo das novas tecnologias, ciências e artes interdisciplinares. Todos os
quarenta anos do periódico podem ser encontrados on-line. A organização opera através de
duas organizações sem fins lucrativos; ISAST em São Francisco e OLATS em Paris, França.
As organizações são responsáveis pelo Leonardo Journal e a Série de Livros Leonardo no
238 das artes e seus percursos

Formas contemporâneas de arte, aliadas ao ambiente científico em


projetos que estão além da cultura “digital” já estabelecida, configuram o
“radical digital”. A Arte das Mídias, com mais de três décadas, assentada na
criatividade, que se baseia nos inventos da arte por computador, da arte das
interfaces, e de todo o aparato tecnológico oferecido no mercado, alimenta
a cultura do entretenimento, a arte interativa, entre outras modalidades
criativas com tecnologias. Mas a Arte e Tecnociência fazem surgir variáveis do
uso criativo da interatividade, da navegação na rede, das plataformas sociais
e comunicação ubíqua com tecnologias móveis, para lidarem com problemas
da sociedade e inventos da cultura digital em situações extremas. Atendem
questões de natureza científica, social, estética, por aproximações e abordagens
resultantes da soma de saberes e competências dos Novos Leonardos em seus
domínios diversos.
É nesse contexto que no século XXI estão aparecendo, ainda em número
reduzido, mas com produção significativa, Laboratórios e Grupos de pesquisa
ligados a Instituições e dedicados à Arte e Tecnociência. Já foi traçado um
panorama de artistas trabalhando nessas fronteiras com desafios da estética
do século XXI que cobre a experimentação em campos como a biologia,
ecologia, pesquisas em saúde, física, geologia, robótica, informática, com
especial foco em telecomunicações e interatividade com sensores fisiológicos,
ampliado recentemente pelas tecnologias da mobilidade. Autores enfatizam
o posicionamento crítico desses artistas nas investigações, assumindo uma
posição culturalmente crítica, como o fez Stephen Wilson, em seu recente
livro Art+Science Now, 2011. O compêndio registra a pesquisa científica
e inovação tecnológica de alta carga estética produzida no final do início do
século 21.
A epistemologia transdisciplinar na transversalidade das ações artísticas
e práticas culturais e científicas renovadas foca na história, princípios, teorias
e práticas da arte e da ciência que se alimentam reciprocamente. Em várias
épocas, historiadores, críticos, pesquisadores, artistas, cientistas e curadores
identificaram modalidades de produção e o processo regenerado de fazer e
teorizar arte e ciência pela soma de conhecimentos em ambientes marcados
pela complexidade de seus tópicos de investigação, em atitude multidisciplinar
e interdisciplinar. Entretanto, mais recentemente, com o surgimento do
digital, o funcionamento de instituições, espaços de exibição, conservação,

MIT Press, e organizam premiações, workshops, residências para artistas e outros projetos.
Informações adicionais e sua história podem ser encontradas em http://www.leonardo.info.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 239

bem como ações em pesquisa, educação, entretenimento, saúde, indústria e


economia (Domingues, 2009) se ampliaram em propostas integradas, bastante
inovadoras, atendendo a problemas comuns e pelo trânsito de conhecimentos
para atenderem a propostas mais pontuais.
No radical digital, segundo Malina, as produções estão atentas às questões
ardentes da sociedade: artistas e cientistas voltam-se a tipos de projetos que
colocam a arte no território íntimo da ciência, lidando com riscos e desafios
para a humanidade que “criou uma civilização insustentável”.
Mas no que consiste esse radicalismo digital? E quais os tipos de pesquisas
são de interesse dos artistas e dos cientistas? (idem, p. 3).
Temos que diferenciar o radicalismo digital da criatividade digital, que
já é de domínio coletivo, invadindo casas, escolas, ruas, em atitudes do artista
bricoleur, que se torna personagem de nosso cotidiano digital, desde a infância.
Práticas de mash-up (Domingues, 2009a) alimentam os apps, instagrams, facebook
e tantos outros ambientes de criatividade disseminada, prolongando-se num
artesanato digital de acesso e comunicação popular.
O radical digital em propostas desafiadoras e inovadoras lida com
questões da sociedade em direções antropológicas, que busca responder a
modos de vida que incorpora os inventos científicos para encarar problemas da
saúde, biodiversidade, educação em seus clamores, necessidades e experiências
sensíveis. Para os artistas que lidam com as tecnologias criativas é, portanto,
chegado o momento de ir além da criatividade, de certa forma inócua, e encarar
a responsabilidade de responder a problemas da humanidade, e junto com
cientistas, humanistas, enfrentar desafios e riscos que ameaçam o planeta, numa
soma de áreas e domínios, coincidindo com a proposta da eScience.8 Passa-se
das tecnologias criativas para as tecnologias disruptivas, quando chegamos a
inovações tecnológicas que se valem dos inventos existentes, ampliando-os em
sua capacidade de reinventar os modos de viver (ver o conceito no decorrer do
texto, Domingues, 2014).
Nesses lugares, disciplinas tradicionais que atuavam separadas, como
neurologia, fisioterapia, robótica, artes, ciência da computação, psicologia,
moda, entre outras, convergem e transitam por um caminho em encruzilhadas
criativas e de auto-organização ritmadas pelo poder de inventar de cientistas,
humanistas e artistas.
Não há lógica que resista à capacidade e paixão criadora de pessoas
inventivas de todas as áreas, que num caos aparente se lançam em inventos

8. Idem, op. cit. 2.


240 das artes e seus percursos

tecnológicos. Instituições, segundo Moss, ficam fortalecidas pelos indivíduos e


por inventos na ciência que se voltam à indústria e à sociedade e nos fazem
acreditar nas tecnologias com otimismo para o futuro.
Assim, propor pesquisas em Arte e Tecnociência, que excedem a
Artemídia, implica abraçar a epistemologia da ciência da complexidade, em
propostas regidas por questões advindas de outras disciplinas e com problemas
comuns que se alimentam reciprocamente. São identificadas questões mais
vastas, com o artista inserido no ambiente científico, identificando problemas
e modalidades de produção num processo regenerado de teorizar e fazer arte
mutuamente entrelaçada com a ciência pela soma de conhecimentos. O
trânsito de disciplinas e a urgência de eliminar as barreiras entre os tipos de
conhecimento levam a imediatamente integrar questões comuns para responder
às questões complexas da vida.
O território da liberdade da arte se coloca como o lugar para essas práticas,
onde especialistas de várias áreas, em ambiente sem hierarquias, facilitam a
emergência de estruturas cognitivas, procedimentos de trabalho, entre as
comunidades de interesse, com métodos que misturam racionalidade, intuição e
emoção. Problemas comuns são abordados e dissolvem as restrições no domínio
de cada disciplina para resultar em uma migração de conceitos e atividades
híbridas de todas as áreas. Discussões se submetem à imprevisibilidade, olhando
para o mesmo objeto, com saberes diversos e lideranças compartilhadas, visando
a resultados comuns.

Hard Humanities e transdisciplinaridade: complexidade e auto-organização

É no contexto da complexidade e transdisciplinariedade que está


localizado o território das “hard humanities”, que abriga artistas, cientistas e
engenheiros trabalhando em conjunto, num acoplamento de microciência para
mudança cultural9. Nesse ambiente, as Ciências Sociais entram, sobretudo,
com pesquisas antropológicas, em que atualmente as redes sociais reforçam
abordagens antigas e protegem valores instaurados na sociedade, reativados
com tecnologias de softwares sociais em ativismo cultural. O campo de estudos
da computação ubíqua, ampliado pelas tecnologias móveis, informa diretamente
esse domínio. São propostas que afirmam a cultura digital e tratam de pesquisas
em estruturas institucionais e sociais revistas para refletir e se organizar com

9. Idem, op. cit. 3.


claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 241

formas de pensar e agir que abordam problemas sociais dessa civilização que se
tornou insustentável.10
No LART, criatividade e invenção são a tônica do ambiente de pesquisa.
Discussões sobre riscos e desafios implícitos no tema abordado em cada
projeto são sempre colocados na pauta para definir os objetos de estudo e sua
metodologia. As prioridades são sempre: Saúde, Ambiente e Bioversidade e
Educação que demandam diferentes temáticas e abordagens. Para estruturar a
ação do projeto, os participantes se tornam parte de uma rede sináptica onde
ninguém detém o saber total. Tenta-se, de forma coletiva, num time ou grupo,
num saber neuronal, sintetizar o monolítico Leonardo (Domingues, 2009): ao
indivíduo como gênio, surge a equipe como gênio (idem). Leonardo da Vinci é,
portanto, a figura emblemática dessas investigações em medicina, engenharia,
artes, inventos de todo tipo, para atender questões ardentes que abalam a
sociedade.

Laboratório de Arte e Tecnociência no Brasil: o surgimento do LART

Novos Leonardos no LART Gama é como definimos a ação que segue


proposta das Organizações Leonardo, Institute of Technology – ISAST.11 Esse
movimento internacional, ancorado no cruzamento de arte, ciência e tecnologia,
faz renascer na contemporaneidade a figura renascentista de Leonardo da Vinci,
e estimula a integração de pesquisadores em laboratórios, grupos de pesquisa,
professores e alunos que trabalham em parcerias, com o desejo e a missão de
criar e prover soluções inovadoras. São ações de alto espectro desenvolvidas
em Centros avançados como no MIT Media Lab, Instituto Santa Fé, University
of Plymouth, UCLA, University of Texas, Dallas, entre outras iniciativas de
laboratórios que abrigam ações de artistas e cientistas.
A criação do LART – Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência na
UnB-FGA – Campus Gama abriu um espaço no Brasil para práticas colaborativas
de artistas e cientistas, guiados por uma visão humanista dos avanços tecnológicos.
Fundado em abril de 2010, com minha chegada como Pesquisadora Visitante
Nacional Senior Capes, teve como consequência imediata a abertura do Grupo
de pesquisa Arte e Tecnociência no Diretório do CNPq.12 A ação se otimizou

10. MALINA, Roger. “Leonardo olhando para frente: Fazendo a história e escrevendo a história”,
cit.
11. Presidida internacionalmente pelo astrofísico Roger Malina.
12. Para consultar as linhas de Pesquisa do GRUPO ARTE E TECNOCIÊNCIA, veja: http://
dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2525421178592155.
242 das artes e seus percursos

pela estreita colaboração com o LEI – Laboratório de Engenharia e Inovação e


com a equipe de pesquisadores e alunos bolsistas das cinco Engenharias da FGA
– GAMA, numa convergência com tópicos de investigação da Engenharia de
Software, Engenharia de Energia, Engenharia Eletrônica, Engenharia Automotiva
e Engenharia Aeroespacial. As pesquisas se ampliam, sobremaneira, no domínio
da Bioarte e Saúde pelas colaborações efetivas que ocorrem com professores do
Programa de Pós-Graduação da Engenharia Biomédica, em particular com o
BioEngLab. Ressalte-se que as pesquisas em Bioarte e Saúde e seus resultados
culminaram na presença em comunidade científica e artística internacional
altamente indexada como no MIT Media Lab Câmera Culture, OCADu, SPIE,
IEEE, ISEA, UQAM, RPI, ATI, com os quais se estabelecem parcerias estendidas
para a comunidade brasileira. Pesquisadores como Ramesh Raskar do MIT
MediaLab, Louise Poissant da UQAM, Ted Krueger da RPI, Sara Diamond do
OCADU, Derrick de Kerckhove do Instituto McLuhan, Marie Hélène Tramus,
Edmond Couchot da Université Paris VIII, Louis Bec, Institut Scientifique de
Recherche Paranaturaliste, Roger Malina do ISAST, OLAST, Margaret Dolinsky,
Indianapolis University and SPIE, Caroline Cruz-Neira, ACM, SPIE, entre
outros parceiros internacionais referendam as pesquisas e participam do Grupo.
No Brasil, destaque-se a UNICAMP e a parceria com o Instituto de Computação
na liderança do Prof. Dr. Ricardo Torres do RECOD Lab.
Abraçando metodologias transdisciplinares, os pesquisadores que não
suportam mais permanecer em ambientes rígidos e se restringir a problemas
isolados de suas áreas compartilham o conhecimento de suas gavetas, prateleiras
e arquivos, buscando maior integração nos objetos de estudo. Em práticas
colaborativas anti e transdisciplinares, alteram as práticas isoladas e buscam
soluções para problemas complexos, tornando todas as ciências uma única e
nova ciência (Domingues, apud Latour). Trabalha-se num trânsito entre objetos
de estudo afins, procurando novos problemas e abordagens para o processo de
geração de conhecimento, e com o compromisso da pesquisa voltado à inovação,
abrindo-se a possibilidade de dialogar com inovação tecnológica e transferência
de tecnologias para a sociedade, e para o mercado industrializado. São projetos
específicos para a sociedade tecnologicamente dependente e que apontam para
o futuro em que a tecnologia mais do que humanizada será naturalizada,13 como
integrada ao sistema biológico.

13. Referência ao livro Arte no século XXI: a humanização das tecnologias (São Paulo: Editora
Unesp, 1997), para teorias recentes da naturalização das tecnologias relacionadas aos sistemas
enativos.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 243

O LART e a Reengenharia da Vida

O plano de ação do LART é regido por um tema central e três eixos


temáticos tendo por foco o fator humano e a naturalização das tecnologias,
com vistas à vida do planeta, sustentabilidade, corpo expandido e outros
desafios estéticos, artísticos e antropológicos com sistemas enativos afetivos.
Pesquisas filosóficas, artísticas, leis científicas levam à escrita de software e
desenvolvimento de hardware para geração de sistemas complexos que resultam
do trânsito de conhecimentos de vários especialistas.
Na direção de um digital radical, o plano de ação do LART tem como
tema central a REENGENHARIA DA VIDA com três eixos temáticos.

REENGENHARIA DA VIDA
Reengenharia dos sentidos
Reengenharia da natureza
Reengenharia da cultura

O que é o corpo agora? O que é a paisagem agora? O que é o urbano


agora? Quais comportamentos e modos de vida temos agora?
No primeiro eixo, Reengenharia dos Sentidos, propõe-se a reconfiguração
do humano, por modos de viver ampliados pelo corpo reinventado, com a
percepção expandida, e/ ou suplementada, em propostas relacionadas a teorias
enacionistas da percepção.14
O segundo eixo, Reengenharia da Natureza, trata de problemas da vida
do planeta, enfrentando riscos da biodiversidade e o combate à enfermidade da
paisagem. Projetos cuidam do ecossistema na luta contra o mosquito da Dengue
e outros se voltam à preservação de ecologias e comunidades biológicas.

14. NOË, Alva. Action in Perception. Cambridge, MA: MIT Press, 2006; VARELA et al. The
Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. New Edition. Cambridge, MA: MIT
Press, 1992; KRUEGER, Ted. Redefining Human, 2004.
244 das artes e seus percursos

No terceiro eixo, Reengenharia da Cultura, softwares sociais e ativismo


cultural se voltam a ações de alto espectro com tecnologias de rede em
plataformas que abrigam ações antropológicas e científicas.
Pelo espírito de invenção do cientista e a criatividade do artista são
atingidos “níveis de realidade”, em novas ontologias e novas epistemologias,
guiadas pelo princípio de humanização e naturalização das tecnologias num
mundo tecnologicamente dependente. Software Art, Bioart, Environmental Art,
Wearable Art, Sistemas Vivos, Vida Urbana Misturada, Mhealth são alguns dos
temas de agendas artísticas e científicas e de inovações tecnológicas de impacto,
colaborando para que as pesquisas do LART se tornem um polo de investigação
avançado no cenário nacional e internacional. Entre os tópicos de pesquisa
estão os sistemas enativos afetivos que estudam acoplamentos estruturais com
o ambiente, ou seja, por um novo tipo de presença, aquela de organismos
entrelaçados ao espaço físico e ao espaço de dados, em reciprocidades e
auto-organizações. Entre as investigações, ambientes sintéticos e evasões
em Realidade Virtual e Realidade Aumentada ampliam-se na LART CAVE
com as interfaces plurissensoriais e crossmodais de sensores fisiológicos. Para
a comunicação ubíqua e móvel, interfaces locativas, pervasivas e sencientes
exploram mapeados e traçados em geolocatividade, realidade aumentada e
misturada e móvel, visão computacional, tagueamento e geotagueidade. Para a
sensorialidade expandida são desenvolvidos sistemas embarcados com sensores
fisiológicos, processamento de sinais e data visualization. Projetos dedicados
ao clima e biodiversidade lidam com leis e fenômenos do cosmos, circuitos
miniaturizados, comunicação remota e portabilidade, redes sociais, entre outras
soluções criativas do aparato tecnológico para encarar desafios do ecossistema.

Sobre um Laboratório Vivo

Quem aguenta permanecer em um ambiente rígido, enclausurado em sua


área e disciplinas? Como evitar a associação e integração entre as áreas que os
problemas complexos requerem? O trânsito benéfico entre disciplinas e entre
objetos de estudo comuns, respondendo a novos problemas e abordagens para o
processo de geração de conhecimento é uma decorrência da pesquisa aliada ao
desenvolvimento tecnológico. Um Laboratório Vivo, conforme aponta Latour,15
responde aos estudos da antropologia da ciência.

15. LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: Editora Unesp, 2000.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 245

Essas pesquisas são realizadas em laboratórios, onde artistas, cientistas,


humanistas, movidos pela “paixão”, como afirma Frank Moss (2011),16
incorporam o papel de mágicos digitais, que se imbuem da missão de transformar a
vida pelas tecnologias. Essa é também a proposta das pesquisas de Humanização
das Tecnologias, anunciadas ainda nos anos 90.17 Trabalhar criativamente e
com o espírito de invenção, fora dos limites rígidos e ortodoxos, e se aproximar
de atidudes MIT Media Labs, para chegar a uma cultura da criatividade e da
inovação, e assim alavancar mudanças nas ciências biológicas, físicas e sociais
por uma série de inventos que se instalaram no cotidiano e transformar a vida é
a premissa do LART. Eis o desafio compartilhado com cientistas do Brasil, e de
grupos colaboradores do estrangeiro.
A atmosfera de trabalho é de aprender e ensinar, com descobertas e o
prazer de encontros e perdas, onde atuam pessoas talentosas e movidas pela
paixão e vontade de ter um futuro com a realidade reinventada. Cientistas da
computação, engenheiros, biólogos, físicos, médicos, designers, sociólogos e
outros profissionais criativos compartilham a paixão seguindo o conceito de
serendipity como laboratório de ideias, organizando-se livre e randomicamente
em busca de formas inovadoras de lidar com as tecnologias em projetos com
tecnologias criativas. Exemplos no final deste ensaio.
Como exemplo de laboratório vivo destacamos os locais de trabalho
e de ensino, do MIT Media Lab. Segundo Nicolas Negroponte, fundador do
MIT Media Lab, os locais de trabalho devem ser mais do que “laboratórios” de
cientistas, e se aproximar de estúdios e ateliers de artistas. E ainda, conforme o ex-
diretor dos Media Labs, Frank Moss, esses locais não devem ter planos rígidos de
ensino, e pelas práticas criativas devem seguir curiosidades e paixões e inventar
sonhos, mesmo para grandes Companhias, enquanto lidam com tecnologias.18
Esses locais devem ser: um misto de atelier de moda, de design e de artes com
esculturas, bichos de plástico fofinhos em lã, cores em paredes, pequenos aparatos
do dia a dia, cadeiras de roda, peças mecânicas, aparelhos velhos e novos,
instrumentos para tocar, roupas, adereços, coisas, pedaços da vida das pessoas
que (des)organizem o antes rígido ambiente de Laboratório. Como no MIT
Media Lab, encontramos ambientes propícios para invenção e criação, a exemplo
do SmartLab da East London, entre outros locais de trabalho dessa natureza.

16. MOSS, Frank. The Sorcerers and their Apprentices: How the Digital Magicians of the MIT
Media Lab Are Creating the Innovative Technologies That Will Transform Our Lives. PUB
Random House: GROUP, 2011.
17. Idem.
18. Idem.
246 das artes e seus percursos

Rumo às tecnologias disruptivas: da arte interativa à arte enativa e estéticas


afetivas em Bioarte e Saúde 19

O estado da arte das pesquisas com tecnologias criativas ruma em


direção à inovação tecnológica e inovações disruptivas. Essa direção coincide
com metas do CNPq / Ministério de Ciência e Tecnologia, que recentemente
incluiu o termo Inovação. Nesse contexto, o problema da criatividade em arte
e tecnociência está integrando os domínios do científico, do artístico e da
invenção na proposta da Reengenharia da Vida.
Tecnologia disruptiva é um termo criado por Clayton Christense, em
1995, no artigo “Disruptive Technologies: Catching the Wave”, publicado no
Harvard Business School Magazine, inscrito no mercado de negócios e no campo
da inovação tecnológica, para falar de um produto ou serviço. Uma tecnologia é
dita disruptiva quando se insere no mercado como inovação, criando um nicho
não existente ou dominando um determinado setor ao inovar, pois modifica
o uso da tecnologia existente e introduz produtos melhorados e com novas
características. A modificação, entretanto, deve ser de natureza antropológica,
pois a inovação traz consigo modos de viver diferentes dos anteriores. Exemplo
claro é a fotografia digital. Ela não somente cria outros nichos de mercado,
mas também modifica radicalmente o uso que se faz contemporaneamente
da fotografia, invento do século 19. Vejam-se abordagens de tecnologias
disruptivas no site do MIT Media Lab (http://www.media.mit.edu/about) que
defendem inovações que alteram significativamente os hábitos, costumes e a
vida do homem.
As pesquisas em Saúde e tecnologias móveis são feitas, principalmente,
com base na mobilidade proposta pela Ubicomp,20 ou seja, trazendo a
Comunicação Ubíqua, em questões específicas da ubiquidade, locatividade,
georreferencialidade nos cenários da Cibercultura (Domingues, 2008). Esses
temas revigorados por abordagens recentes em mhealth e no campo da Social
Physics e mineração da realidade, com estudos que nos trazem o conceito da
reality mining, de Alex Pentland, 2014, e da visualização de dados, em visual
analytics de Ricardo Torres e Sara Diamond, parceiros do projeto, reforçam
as inovações com dispositivos móveis. Pesquisas em expansão do sensório
por sensores fisiológicos aumentam (Domingues et al, 2014) a dimensão

19. Passa-se a falar dos campos de pesquisa do Expanded sensorium and mhealth ou Sensório
expandido e Saúde e tecnologias móveis.
20. WEISER, Mark; BROWN, J. S. Designing Calm Technology. Xerox PARC, 21. dez. 1995.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 247

comportamental das tecnologias. Nessa direção, as tecnologias são tidas como


disruptivas, pois criam um ecossistema que reinventa a vida de organismos,
ambientes e tecnologias, numa relação arte-saúde-biodiversidade. Processos
criativos tecnológicos, protótipos, novos conhecimentos e inovação radical
ou disruptiva reconfiguram, assim, as formas contemporâneas de vida e
comportamentos sociais.

Sistemas enativos afetivos e estéticas tecnológicas nas


teorias enacionistas em rituais do cotidiano

O que são sistemas enativos afetivos?


A partir de aproximações com a ciência cognitiva e teorias enacionistas
que discutem o acoplamento e mútua influência no entrelaçamento corpo/
ambiente, em situações de embodied cognition,21 nossos sistemas enativos afetivos
propiciam enações, que dialogam com a filosofia da ação de Noé, 2006, bem
como com teorias proprioceptivas de Berthoz, 2000, de como as percepções são
manipuladas por modos de lidar com esquemas corporais. Nossa investigação,
que trata de sistemas embarcados com sensores fisiológicos, levou a acrescer os
sistemas enativos do termo afetivo, passando a se chamar de sistemas enativos
afetivos. Distingue-se também da discussão de affective computing de Picard
(1997) sobre a computação vestível, pois falamos do ambiente e dos afetos no
sentido spinoziano. Os protótipos realizados configuram um aparato tecnológico
que permite a comunicação com o ambiente pela aquisição, transmissão e
processamento de sinais fisiológicos por ações que trazem dados corporais,
misturados a dados computacionais e mesclados a qualidades híbridas do mundo
físico. Nas relações proprioceptivas com o ambiente, são vividos biogramas,
em event|perception,22 como fluxos vitais de uma experiência sinestésica com
tecnologias. Trata-se de um continuum biocíbrido afetivo (bios + ciber +
híbrido) (Domingues et al., 2011) que é experimentado com um sistema que
denominamos sistema enativo afetivo. Em estéticas tecnológicas, com sensores
fisiológicos e processamento de sinais, estamos tratando, portanto, de estéticas
afetivas, e validando o conceito spinoziano de affectum. Fala-se do corpo, dos
organismos que afetam e são afetados pelo ambiente, em sua dimensão física,
temporal e espacial.

21. Varela et al, The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience, cit.
22. MASSUMI, Brian. Parables for the Virtual. Movement, Affect, Sensation. Durham, NC: Duke
University Press, 2002, p. 194.
248 das artes e seus percursos

No caso das tecnologias de expansão do sensório, tomamos, aqui, também,


a visão de Eric Shouse (2005), para que se possam entender a comunicação
afetiva e a relação do corpo com o ambiente:

AFFECT/AFFECTION. Neither word denotes a personal feeling


(sentiment in Deleuze and Guattari). L’affect (Spinoza’s affectus) is an ability
to affect and be affected. It is a prepersonal intensity corresponding to the
passage from one experiential state of the body to another and implying
an augmentation or diminution in that body’s capacity to act. L’affection
(Spinoza’s affection) is each such state considered as an encounter between
the affected body and a second, affecting, body […].23

Trata-se de um corpo spinoziano dotado da capacidade afetiva de enviar


dados em níveis sensoriais trocados com o ambiente, no caso por sinais de EOG,
EEG, SGR, e de respiração, reconhecendo como o ambiente afeta o corpo em
intensidades do calor, fluxo cardíaco, fluxo respiratório auferidos, enviando e
recebendo, trocando energias e sinais com o entorno. Usando nosso sistema
enativo afetivo ampliamos a kinestesia, ou os dados vividos por sensores de
movimento pela sisnestesia, que reconhece mais do que atos em ambientes
pela propriocepção estudada por Berthoz. Cinestesia é somada à sinestesia
e dados dos esquemas sensoriais de todo o corpo em sua totalidade. Assim,
acrescentamos aos dados de deslocamento, os dados fisiológicos de todos os
sentidos pelo processamento de sinais tais como: calor da pele, batimento
cardíaco, fluxo cardíaco, respiração, músculos em suas atividades e outros.
As ações dos humanos com sistemas enativos processando e conhecendo,
aprendendo e ensinando sobre seus afetos geram os mapas vivos (living maps),
escrevendo geografias afetivas com narrativas de corpos numa ecological
perception (Gibson, 1986). São questões que ampliam a interatividade pela
enatividade. Numa revisão de teorias da complexidade, o todo se auto-organiza
em realidades emergentes, reforçando-se a teoria de James Gibson (1986) de
ecological perception. Ao que denominamos percepção orobórica, pois o corpo está
em trocas energéticas, em feedback com o ambiente. A vida do ecossistema nas
suas relações dinâmicas entre organismos, plantas, paisagens, o espaço urbano e
seus objetos traz essas e outras questões e desafios para a arte e a reengenharia
da vida.

23. Massumi, Plateaus xvi.


claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 249

O LART ruma, portanto, para colaborar em pesquisas fundamentadas


na teoria da autopoiese e da naturalização das tecnologias.24 Organismos são
afetados nas ações com o ambiente (enações), e trocam sinais fisiológicos em
estados vitais. Na Bioarte e Saúde, estamos lidando com o conceito de corpo
normal, apto, e /ou inapto, com habilidade, capacidade e expansão sensorial
ou suplementada, por investigações biotecnológicas da reconfiguração corpo/
mente. Seguindo pressupostos de Louise Poissant, Louis Bec, Michel Bernard e
Krueger, entre outros autores que se preocupam com as interfaces como próteses
ou órteses sensoriais, propomos os sistemas enativos afetivos que reconfiguram
o sentido de presença, de compartilhamento com o ambiente. São pesquisas de
artistas e cientistas que pretendem ampliar a percepção e capacitar, para adquirir
e visualizar aspectos invisíveis do corpo como experiência em sua unidade corpo-
mente/ambiente. Busca-se verificar estados fisiológicos em corpos expandidos25
e para alguns casos de corpos que foram suplementados. Nesses casos, atendem-
se indivíduos que foram capacitados para tarefas antes impossíveis, em estados
cognitivo-emocionais ativados em suas funções por transdução de fenômenos
em processos fisiológicos tecnologicamente modificados.

Das colaborações, resultados, conceitos e contextos da


Bioarte e sistemas vivos

O interesse de estreitar o relacionamento com especialistas da comunidade


de pesquisadores de Bioarte nos levou a discussões com Ted Krueger, que se
tornou nosso consultor em 2012. Em nossas colaborações, seus pressupostos de
“redesigning human” e de “fabricar sentidos sintéticos”, como o proposto no
Laboratório de Interface Humano Computador da Faculdade de Arquitetura
do Rensselaer Polytechnic Institute, EUA, em seu projeto The Synthetic Senses
são seminais para a redefinição da percepção humana e do processo cognitivo
(Krueger, 2004, 2007).
Para gerar nossos sistemas embarcados, que permitem processos enativos
afetivos e trazer dados vitais de fenômenos naturais, intensificamos laboratórios
que culminam na fabricação de sistemas dotados de sensores fisiológicos.
Nesse sentido, combinamos a evolução da engenharia biomédica, engenharia
de software e problemas das ciências humanas ligados a aspectos da vida e

24. COUCHOT, Edmond. La Nature de l’art: Ce que les sciences cognitives nous révèlent sur le plaisir
esthétique. Paris: Éditions Hermann, 2012.
25. BERNARD, Michel. Le Corps. Paris: Éditions du Seuil, 1995.
250 das artes e seus percursos

de comportamentos, logo, da ordem dos sistemas complexos. Assim, é que a


investigação entra no domínio da BioArte e Saúde para atender os projetos em
Software Art, Environmental Art, Wearable Art, Mobile Art e Mhealth. Vamos lidar
com os modos de adquirir e processar sinais, e ainda em data visualization trazer
resultados por técnicas no campo da visual analytics. As pesquisas que se iniciam
em Visual Analytics e cuidados com a saúde26 investigam a visualização de fluxos
de dados, de alta complexidade, e podem apoiar diagnósticos e tratamentos,
treinamentos em saúde.
A pesquisa em seus desdobramentos está relacionando Arte e Saúde e
estéticas tecnológicas por um sentir de dados fisiológicos, também dialogando
com a Visual Analytics, porque é um domínio que lida com processos que registram,
analisam e transduzem enorme quantidade de informação de todo tipo de dado
minerado. Em linguagem de máquina, numa mistura de raciocínio cognitivo
e perceptual, em percepção expandida, ou por eventos perceptivos, pode
agregar dados de mapas vividos, médias fisiológicas, locatividade, velocidade,
ritmos, entre outras variáveis relacionadas a cuidados para com a saúde, tais
como o estudo do comportamento do corpo em sua fisiologia, e a previsão de
epidemiologia ou de doenças e suas condições específicas, diagnóstico clínico,
gestão e análise da condição do paciente; ferramentas de mídia social para
apoiar o trabalho clínico e comunicação de grupos sociais. Nesse sentido é que
a visual analytics pode informar o domínio da Bioart na eScience.
A presença de dispositivos sem fio, o reconhecimento e visualização de
sinais vitais e fenômenos naturais adquiridos, transmitidos e visualizados com
qualidades de sistemas enativos afetivos modificam os conceitos tradicionais de
corpo e de ecossistema. Fluxos de biofeedback por processamento de sinais da
vida e locatividade por data visualization e reality mining (Pentland, 2008 e 2014)
revelam modos de viver num arco-íris antropológico em estéticas afetivas de
microssensores em rede (Rocha, 2008) oferecendo-nos um mundo eco-locado
e de micro e macrocosmos. Oferecem formas de enfrentar o posicionamento
global e os fenômenos do cosmos, com o corpo e os sistemas vivos em diálogos
expandidos por tecnologias de acoplamento ao ambiente.

26. Projeto CNPq: Bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ 1 A, intitulado: ARTE E


TECNOCIÊNCIA e REENGENHARIA DA VIDA: Sistemas Enativos Afetivos em Bioarte
e Softwares Sociais como Inovação Tecnológica, vigência 2014-2019.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 251

Enações e afetos do sensório expandido em data visualization: Oroborus


Biocíbrido: geografismos do êxtase

Um dos temas de estudo nesse contexto é o corpo e rituais do cotidiano


em estados orobóricos, de autopoiesis por dados em trocas com o ambiente, e em
processos de data visualization que se tornam assinaturas dinâmicas como falas
dos corpos, em narrativas sensoriais de estados vitais. O trabalho de oficinas
revelando estados afetivos desses corpos envolvidos em rituais por sensorialidade,
ou por afetos do corpo em fenômenos biológicos que se tornam visíveis (data
visualization): as falas do corpo foram exploradas numa aproximação com a
cultura brasileira, o que denominamos de estados de “percepção orobórica”
(Domingues). Os resultados são trocas de energia com aparatos tecnológicos
num continuum existencial, (seamless condition), com microssensores, softwares
de visualização e processamento de sinais, em kinestesias, por notações do
movimento e sinestesias registrando os órgãos vitais em sua fisiologia.
Oficinas de rituais interativos enativos expandiram assim o conceito de
Trans-e (Domingues) para o de Êxtase (ékstasis) como o máximo de presença
do CorpoArte27 (Donato), na leitura do corpo e seus geografismos. Com os
sons de tambores (instrumento que conduz e acentua o estado de transe) tenta-
se provocar um estado de êxtase. Os participantes nesse estágio se desapegam
de seus movimentos organizados e se deixam conduzir pela ritmia indo para o
êxtase. O corpo em suas affordances, pelos sinais vitais desenha paisagens de
dados em autopoiesis. Ocorre a seamless em affective condition, sem emendas, por
forças e energias do corpo que se misturam a dados na mútua relação corpo/
ambiente e reafirma-se a ecological perception pelo sensório expandido por
sistemas enativos afetivos.
É nesse contexto que são realizadas oficinas em Bioarte e rituais, inseridas
no módulo Reengenharia do Sensório, que lida com a sensorialidade e afetos
do corpo em fenômenos biológicos que se tornam visíveis (data visualization):
as falas do corpo. São pesquisas transdisciplinares, em artes visuais, música,
artes do corpo, engenharia biomédica que retomam rituais e oferecem estados
de percepção orobórica. Ocorrem trocas de energia em visualização de dados
durante a enação corpo/ambiente/sistemas artificiais e mútuas influências

27. A professora Dr. Maria Aparecida Donato de Mattos fez pós-doutorado no LART tendo
como supervisora a Profa. Dra. Diana Domingues. Título do projeto de pesquisa: Do Corpo
Biocíbrido Ao Corpo-Sensorial: os Geografismos e a identidade do Corpo-Arte no contexto
da Cibercultura.
252 das artes e seus percursos

propiciadas pela condição sem emendas (seamless condition) com o ambiente


através de tecnologia vestível, dotada de microcircuito de sensores em conexão
wireless. Os participantes usam dispositivos como tecnologias vestíveis afetivas,
por nós denominadas de sistemas enativos afetivos. São captadas kinestesias,
por notações do movimento e sinestesias – órgãos vitais em sua fisiologia –
temperatura SGR – sensores Galvânicos – respiração, fluxo cardíaco EEG,
atividade muscular-EMG eletromiografia que transduzem dados vitais e geram
paisagens de biodata ou datalandscapes.
Assim, as oficinas oferecem experiências de rituais interativos que passam
do Trans-e (Domingues) ao “êxtase” (ékstasis) como o máximo de presença
do CorpoArte (Donato) na leitura do corpo e seus geografismos. (Vejam-se
antecedentes sobre transe e rituais na ciberinstalação Trans-e: my body, my
Blood, de Diana Domingues, que recebeu em 1999/2000 o XX Unesco Prize for
the Arts -7th Bienal de La Habana).
As oficinas iniciam com etapas de sensibilização dos corpos em pequenos
ou num grande grupo, inserindo os corpos na paisagem sonoro/ corporal/
ambiental. Procura-se gerar uma experiência coletiva que resulte em paisagem
sonora enativa (Gonçalves, 2013) monitorada e com gravação dos resultados.

Imagem: Oficinas Oncena Bienal de Havana: Imaginario Sociales, 2012


(Apoio CNPq, Itamaraty e Minc)

Numa segunda etapa, com sons de tambores (instrumento que conduz


e acentua o estado de transe) tenta-se provocar um estado de êxtase. Os
participantes nesse estágio se desapegam de seus movimentos organizados e
se deixam conduzir pela ritmia, indo para o êxtase. Nesses dois momentos os
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 253

corpos em suas sinestesias estão transmitindo sinais que por processamento de


dados em data visualization geram paisagens de um novo abstracionismo. Os
geografismos, ou seja, as marcas dos territórios de cada corpo que se projetam
nas grafias desses mesmos corpos são visualizadas em projeções por imagens
científicas dinâmicas que tornam visíveis fenômenos biológicos de sinais
do corpo em suas affordances, pela temperatura da pele, ritmos cardíacos,
respiração, atividade muscular, e outros sinais vitais que desenham paisagens
de dados. São biogeografias afetivas em autopoiesis, altamente estimuladas por
sons xamânicos, que, como a serpente oroborus, realimentam-se através de
atividade e trocas de forças com o ambiente e com tecnologias de microcircuitos
de sensores sem fio, numa seamless affective condition. Sem emendas, por forças e
energias do corpo que se misturam a dados na mútua relação corpo/ ambiente,
reafirma-se uma ecological perception do sensório expandido pelos sistemas: uma
percepção orobórica (Domingues).
Na 11a Bienal de Havana houve a participação de uma equipe de
engenheiros, responsáveis por aspectos técnicos e científicos das oficinas e
exposições, e por uma série de apresentações e minicursos voltados para os
alunos das áreas de engenharia e informática em arte, da Universidade de
Havana.28

28. Equipe LART: Arte e Tecnociência em 2012, CNPq FGA/ GAMA – Universidade de
Brasília, UnB, PVNS CAPES Brasil – Coordenação artística e científica do projeto: Profª
Dra. Diana Domingues; Profª Dra. Cida Donato – Instituto Superior de Educação do Rio
de Janeiro. Pós-doutorado CNPq no LART. Prof. Dr. Cristiano Jacques Miosso e Prof. Dr.
Adson Rocha – Programa de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica; Prof. MsC André
Gonçalves de Oliveira UNOESTE, PhD candidate IDA, MsC Carine S Turelli, Henrique de
Barba, Alexandre Almeida Barbosa, Tiago Franklin Lucena, Phd Candidate -UnB LART
– Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência FGA/GAMA, UnB-Universidade de
Brasília, Brasil.
254 das artes e seus percursos

Imagem: Oficinas Oncena Bienal de Havana: Imaginario Sociales, 2012


(Apoio CNPq, Itamaraty e Minc)
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 255

Imagem : Instalação no Gran Teatro de La Habana –


Oncena Bienal de Havana: Imaginario Sociales, 2012

(Duas telas ampliadas e projeção multimídia de vídeo documentário da


oficina e na parte superior e projeção um vídeo com visualização de dados de
situações sinestésicas geradas durante os rituais. O material editado em making
off foi mostrado sobre mobiliário antigo do teatro, registrando atividades do
grupo durante as oficinas).

Sensório expandido e narrativas afetivas em territórios sensíveis urbanos

No domínio da arte e da mhealth, ou seja, arte com tecnologias móveis


e vestíveis e narrativas afetivas que permitem a enação com o espaço urbano,
destaca-se o projeto CidadePathia.29 Insere-se no campo da Bioarte e Saúde em
estéticas afetivas explorando caminhadas com aquisição e transmissão de dados
fisiológicos de habitantes locados e em seus deslocamentos. São narrativas na

29. CidadePathia é um dos projetos integrantes do projeto Reengineering Life: Creative Technologies
for the Expanded Sensorium MIT/CNPq/UnB/Lart, em execução pelo Program MIT International
Science and Technology Initiatives, MIT-Brazil Seed Fund/CNPq, coordenado por Adson
Rocha e Diana Domingues e executado no Camera Culture Media Lab, sob coordenação do
Dr. Ramesh Raskar. Está vinculado ao projeto da Profa. Dra. Suélia Rodrigues em biomaterais
e ao de biossensores dos professores doutores, Adson Rocha e Cristiano Jacques Miosso, e ao
projeto de Arte e Tecnociência da Profa. Dra. Diana Domingues.
256 das artes e seus percursos

cidade como sistema enativo30 e podem ser transferidas no campo da saúde


ao dia a dia do diabético, por uso de palmilha específica usada para proteger
seus pés. Por locatividade e georreferenciamento, em processos de data
visualização, vão sendo traçados mapas vivos “afetivos” nas relações das pessoas
com o ambiente urbano. Ou seja, como sistema enativo afetivo, em mútuas
relações do corpo afetado pelo ambiente, e com dados fisiológicos e informações
trocadas pelo tipo de topografia e sinais que são visualizados, com a palmilha
de látex dotada de sensores, são gerados living maps em narrativas enativas
afetivas. A ontoespacialidade sensível traz variáveis fisiológicas coletadas pelo
sistema: calor, respiração, batimentos cardíacos e resistência galvânica da pele
são os principais sinais que foram explorados. A leitura dos sinais corporais
em kinestesias, por notações do movimento e sinestesias – órgãos vitais em sua
fisiologia – temperatura SGR – sensores Galvânicos – respiração, fluxo cardíaco
EEG, atividade muscular – EMG – eletromiografia transduzem dados vitais e
geram mapas afetivos como narrativas do sujeito na locatividade expressiva da
paisagem. O andar apoiado na palmilha de látex, que sente a pathia da cidade traz
a possibilidade de registrar os percursos. A palmilha usada, faz parte de pesquisas
em biomatérias aplicada a diabéticos para proteção de escoriações de seus pés.31
Ao tratar com a palmilha, na pesquisa do LART, Tiago Lucena poeticamente a
denomina “pédila”, fazendo alusão ao personagem mitológico de Hermes com
as sandálias aladas (Pédilas de Hermes).32 Confere ao ato de andar a habilidade
de transitar, rapidamente, entre os lugares e as grafias por data visualização
apontam para um novo abstracionismo – e os geografismos de territórios vividos
registram em visual analytics, imagens dinâmicas que tornam visíveis fenômenos
biológicos, e variáveis de tempo, velocidade, lugar, permitindo a identificação do
meio de transporte utilizado durante trajeto experimental com GPS. A pesquisa
de sensores33 e os processos de datavisualization34 transformam o protótipo
numa tecnologia de locatividade e ubiquidade que combina o tempo do trajeto
com as velocidades e longitudes dadas pelo sensor, podendo-se inferir o meio

30. TIKKA, Pia. Enactive Cinema: Simulatorium Eisensteinense. PhD dissertation. Helsinki:
University of Art and Design Publication Series, 2008.
31. FLEURY ROSA, Projeto Reengineering Life: Creative Technologies for the Expanded Sensorium,
2013.
32. Na mitologia grega, são as sandálias do deus Hermes. Confeccionadas com biomateriais
(ramas de mirtilo e tamareira), são descritas como belas, douradas e imortais e feitas com uma
arte sublime capaz de levar o deus Hermes com a rapidez do vento. Em grego “périla”, e em
romano “talaria”.
33. ROCHA e MIOSSO, FLEURY ROSA, LUCENA e DOMINGUES, 2013.
34. TORRES, 2013.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 257

de transporte que foi utilizado durante algum tempo. Nas caminhadas, a vida e
os sinais do corpo em suas affordances geram a CidadePathia como biogeografias
afetivas (Domingues, 2014), que mostram o páthos na relação corpo-cidade.35

CITYPATHIA
Tiago Franklin Lucena – PhD fellow CNPq at MIT Media Lab Camera Culture
SUPERVISOR Diana Domingues LART UnB, Ramesh Raskar / MIT Media Lab

35. LUCENA, 2013.


258 das artes e seus percursos

Visual analytics:
Mobilidade, locatividade, e variáveis de velocidade- acelerômetro:
Sinal do acelerômetro nos três eixos: x, y e z.
(tempo normalizado) Acervo Pessoal e
Gerado por Ricardo Torres (Unicamp)
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 259

Outra proposta da SPIE Conference tendo como chamada


o CNpq Ivan Domingues tema da Virtual Reality Reengineering
Reality expandiu pesquisa em Realidade Virtual desenvolvida na
LART CAVE, e a produção foi incluída na SPIE Conference em
San Francisco, 2013, na mesa Mover! Afetivamente Falando Sobre
Immersion e Estética. Apresentou-se o trabalho Incorporações,
visualizações e imersão com sistemas enativos, afetivos.

Cave e Piso Cinemático para imersão e sinestesia – Imersão Enativa Afetiva


260 das artes e seus percursos

Testando piso cinemático e oscilação de movimento (b), (c)


detail das molas de diferentes tamanhos

As obras de arte do acervo de Diana Domingues, agora locadas na


LART Cave, estão sendo ampliadas enquanto aparato sensorial pelos sensores
fisiológicos. No início de nossa pesquisa em Realidade Virtual, a imersão era
obtida com trackers. Ou seja, por rastreadores para experiências interativas/
imersivas como dispositivos proprioceptivos para o movimento, mapeando os
deslocamentos e/ou gestos do participante da experiência com feedback para
navegação e posicionamento espacial e respostas das ações. São questões que
ampliam os paradigmas anteriores da Cinetic Ar, dos anos 80, em cinestesia, agora
reforçadas com tecnologias disruptivas para percepção sensorial e fisiológica.
Oferecem uma experiência mais convincente de imersão no mundo sintético
por ações no espaço físico. As imagens são visualizadas com todos os sentidos e
não apenas pelo toque do rastreador, e pela navegação, ou seja, ampliam-se as
interfaces táteis por interfaces sensórias de outra ordem. O sistema se constitui
numa tecnologia disruptiva para a percepção sensorial e medição de estados
cognitivos, em momentos de mistura do biológico com o sintético da paisagem
de dados: data landscapes, em performáticos indo de efeitos do mundo real no
sintético, durante a imersão com imagens. Simuladores, tecnologicamente,
adicionam aos deslocamentos dos trackers outras sensações: efeitos de colisões,
vibrações, trepidações, desequilíbrio. Na experiência, são também usadas
interfaces intuitivas de imersão como óculos, luvas de dados (data gloves),
dispositivos de força feedback, joysticks, entre outras interfaces imersivas de RV.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 261

Mas o que modifica a experiência é o sistema de sensores embarcados que fornece


variáveis biológicas
​​ de captura de sinais fisiológicos, tornando a experiência de
imersão mais intensa. O organismo envia e recebe dados recriando as paisagens
sintéticas em realidade virtual e redesenhando a experiência. A aplicação é
expandida além da arte e entretenimento, principalmente, em jogos e estudos
de comportamento, e é aplicada à engenharia automotiva e biomédica.
De fato, as sensações cinestésicas (movimento) podem replicar a sensação
de deslocamento no interior de um automóvel, bem como as sensações de
vibrações e movimentos verticais típicos de um veículo, diferentes velocidades,
colisões etc. Essas condições podem variar no sistema em termos de sensações
físicas e dados sintéticos fornecidos por atuadores, bem como pelo biofeedback
usando respiração, calor, batimentos cardíacos e outros sinais recolhidos pelos
nossos circuitos. A Cave também é um lugar especial para o treinamento de
engenharia aeroespacial e biomédica.
No interior da caverna de RV, configurando experiências atraentes em
paisagens de dados por narrativas afetivas, a imersão ocorre através da aquisição,
visualização e análise de dados de vários sinais fisiológicos sincronizados, para
que as paisagens respondam ao feedback imediato, de acordo com as ações dos
participantes detectadas e as respostas entrelaçadas do ambiente. Os sinais que
usamos para analisar os estados humanos incluem o sinal de eletrocardiograma
(ECG), o fluxo respiratório, o sinal de resposta galvânica da pele (GSR), pressões
plantares, o sinal de impulso e outros. Cada sinal é capturado usando uma placa
eletrônica dedicada, especificamente concebida, com dimensões reduzidas, de
modo que não interfere com os movimentos normais, de acordo com os princípios
das tecnologias transparentes. Além disso, as placas de circuitos eletrônicos são
implementadas em uma abordagem modular, assim, elas são independentes e
podem ser utilizadas em muitas combinações diferentes desejadas, e, ao mesmo
tempo, proporcionar a sincronização entre os dados recolhidos.

Paisagens enfermas: reengenharia da natureza e reengenharia da cultura

Paisagens enfermas e a relação da Arte e Saúde, no domínio da m-health, uma


abreviação para mobile health (ou saúde móvel) é a pesquisa que propomos no eixo
da Reengenharia da Natureza e da reengenharia da Cultura.
Nessa direção são investigadas questões ligadas à biosfera que despertam
um profundo nível de consciência e a responsabilidade coletiva em relação à
vida da Terra e a um ecossistema saudável. O grupo de artes, em ação com
cientistas da Eng. Biomédica tem por desafio as geografias afetivas e as paisagens
262 das artes e seus percursos

enfermas. Trata-se de conceber sistemas e plataformas sociais que permitam


ações de comunidades, bem como uma ciberinfraestrutra que abrigue enorme
quantidade de dados, com visualização geográfica, tecnologias da mobilidade e
computação ubíqua, entre outras formas com as quais a população participa de
questões ligadas ao ecossistema. Entre os desafios está o processo de combate
do mosquito da dengue no Projeto: Ecossistema Saudável e Luta Contra a
Dengue: Biodiversidade, Afetividade e Enfermidade da Paisagem em Softwares
Sociais e Visualização de Dados. A proposta atualmente pretende se expandir
em colaborações com o Prof. Dr. Andrea Caprara e seus Projetos de Ecossaúde
e abordagem Eco-Bio Social na UECE.36 Acredita-se que em mobile mobilization,
as redes sociais num existir ampliado pelas conexões móveis, minerando dados
da realidade (reality mining), e compartilhando coisas, notificando pessoas,
coletando dados do mundo37 podem colaborar para a eliminação dessa
enfermidade endêmica. São perpectivas da Arte em Reengenharia Da Cultura
com Softwares sociais em práticas culturais nas quais o “artista-ativista digital”
atua como artista-engenheiro, artista programador, software artista, designer
e engenheiro de estruturas colaborativas. A estrutura não hierárquica das
redes é usada para um Ciberartivismo cultural que adapta o aparato digital
com participação social em rede, configurando um Ciberartivismo artístico,
regulado pelos fluxos de comunicação e pelas características determinantes dos
atuadores/participantes da plataforma social na rede. O sistema considera as
relações sociais vividas a partir do aparato tecnológico, regulado pelas relações
dos membros de uma comunidade na rede e o papel do artista/ ativista, artista/
engenheiro atuando como agente do processo de produção e de ativação de
relações sociais. Tais ações se voltam, sobretudo, aos tópicos da reengenharia da
natureza: ecossistema e biodiversidade em projetos de eliminação da dengue,
como paisagens enfermas e geografias afetivas que envolvem pessoas cuidando
da vida do território brasileiro.
Essas ações retomam teorias de Walter Benjamim, que chama pela tarefa
do engenheiro como atividade artística e cultural com o desejo de mudança
social, o que configura uma atividade de engenharia social, adequando e
transformando o uso do aparato tecnológico com fins sociais, por usos criativos
de sua força produtiva que possam favorecer relações sociais. O intelectual, o
jornalista, o artista precisam agir como um engenheiro e usar criativamente

36. CAPRARA et al., Ecossaúde, uma abordagem eco-bio-social: percursos convergentes no controle
do dengue. Fortaleza: EdUECE, 2013.
37. PENTLAND, apud GREENE KATE, 2008.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 263

o aparato para ativar relações em ambientes centrados no engajamento dos


membros da comunidade. O termo “engenheiro” deve ser tomado de forma
bastante ampla, através da aplicação de conhecimento científico e técnico
para o gerenciamento, controle e uso do poder. São construídas estruturas que
ultrapassam operações formalistas, para promover o ativismo cultural desejado
por Benjamin. Sistemas operacionais e o design de interface com protocolos para
acesso livre, mecanismos de busca ou outras propriedades do aparato técnico
são usados para práticas colaborativas de ativismo cultural digital na rede, ou
ciberativismo.
O engenheiro das relações sociais, explorando o aparado tecnológico, sob
o ponto de vista de inovação, faz a “engenharia da cultura” em suas intervenções
antropológicas nos vários desafios para a sociedade nos domínios da educação,
saúde, biodiversidade, entre outros segmentos e problemas que clamam pela
ação de comunidades. A exploração do aparato tecnológico na prática cotidiana
da profissão faz com que o jornalista seja parte, tenha uma autoria colaborativa
em projetos de inovação tecnológica e social escrevendo narrativas afetivas
colaborativas em ações no cotidiano por provocar mudanças comportamentais,
em geografias redesenhadas, organizando grupos e indivíduos, reprojetando,
reengenheirando a realidade.
Práticas de laboratório buscando a implementação de ciberinfraestrutra e
circuitos miniaturizados sem fio para comunicação remota e portabilidade, várias
apps para mobile/mobilization, que são soluções criativas do aparato tecnológico
disponibilizado para indivíduos no combate à dengue e em desafios aceitos contra
a enfermidade das paisagens para um ecossistema mais saudável. Um estudo de
caso foi desenvolvido em Maringá, sob o ponto de vista de inovação, no projeto
de intervenções de jornalista em ação comunitária,38 com tecnologias móveis
(smartphones, tablets, PDAs e palms) e plataformas sociais, que fortalecem o
sentimento de pertencimento ao lugar, estimulando a mudança e comportamento
em relação ao ambiente. A arte em uma inclusão de digital radical se voltou

38. Projeto Bolsa PDJCNPq-Pós-Doutorado Júnior – Supervisora: Drª Diana Maria Gallicchio
Domingues, Bolsista: Profa. Dra. Ana Paula Machado Velho - 2013/2014 O Drama da Dengue:
jornalismo e artivismo nos softwares sociais – Universidade de Brasília (UnB), Faculdade Gama
(FGA), com atividades no Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência – LART, expert
em mhealth, Prof. Dr. Tiago Franklin Rodrigues Lucena. Data visualization: Profa. Dra. Sara
Diamond – Colaboração internacional do Ontario College of Art and Design University/Toronto
(OCADU), e parcerias nacionais com a Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
pesquisas do Prof. Dr. Ricardo Torres, do Departamento de Informática, Pesquisador PQ,
Nível 1D, e com equipe do Centro Universitário UniCesumar, de Maringá, Programa de Pós-
Graduação em Promoção da Saúde, onde foi realizado o estudo de caso.
264 das artes e seus percursos

a problema do ecossistema, da biodiversidade e da enfermidade da paisagem


com mobilização social, em ativismo e m-health (saúde móvel). A premissa
que orientou a pesquisa é a do jornalista que passa de um mero reprodutor de
notícias e produtor de conteúdos frios para se engajar junto à comunidade na
mobilização e cuidado com o espaço em que atua. O conceito é do jornalista
operativo, cunhado por Cox e Krysa (2005), e retomada por Domingues (2007),
considerando o papel das redes informáticas no ciberativismo. A pesquisadora
propõe que os sistemas operacionais e interfaces com protocolos de acesso livre,
mecanismos de busca entre outros aparatos técnicos podem ser usados para “[...]
práticas colaborativas de ativismo cultural digital na rede, ou ciberativismo. Nesses
ambientes, marcados pela reciprocidade e colaboração, consumidores se tornam
produtores, e produtores consumidores, leitores escritores e escritores leitores” (2007,
p. 8). Essas questões têm sua origem na discussão que Walter Benjamim trouxe
em meados do século passado, no texto “O autor como produtor”, produzido em
1934, em que discute o papel do jornalista como diretor da atividade artística e
cultural com o desejo de mudança social, ao comentar o trabalho de Tretiakov.
Seguindo a discussão de Cox & Krysa (2005), Domingues (2007) propõe o uso
do aparato tecnológico no sentido de uma atividade de engenharia social, para
[...] adequar e transformar o uso do aparato tecnológico com fins sociais, por usos
criativos de sua força produtiva que possam favorecer relações sociais [...] precisa agir
como um engenheiro e usar criativamente o aparato para ativar relações em ambientes
centrados no engajamento dos membros da comunidade (p. 5).
A jornalista investigou o papel dos jornalistas que não são mais meros
reprodutores de notícias. Precisam se engajar com a comunidade e se tornar
agentes operativos com vistas a contribuírem com suas ações e mais como
meros produtores de notícias. Precisam se engajar com a comunidade,
tornando-se agentes operativos com vistas a contribuírem com a transformação
do cotidiano. Essa necessidade se dá porque, no ambiente da cibercultura, os
aparatos técnicos vêm sendo usados para práticas colaborativas de ativismo
digital. Essas tecnologias vêm sendo os principais canais de incentivo às
mobilizações, permitindo que pessoas se comuniquem e exponham aquilo que
a mídia tradicional não oferece como oportunidade de mudança social. Logo,
o aparato favorece a reengenharia da cultura, um processo que redesenha a
atividade cultural a partir da tecnologia, redesenhando as s transformações
sociais. Metodologias de jornalismo antropológico e comunicação ubíqua em
saúde pública e dispositivos móveis podem atingir comunidades afetadas com
participação de experts. No estudo de caso, doutores, especialistas e orientandos
de iniciação científica, graduandos e mestrandos, apoiados em consultorias
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 265

internacionais de pesquisadores da RPI, USA e do OCADu, Canadá, com a


coordenação da Universidade de Brasília, LART – Gama e da UniCesumar,
Maringá atuaram no projeto. Aplicações em mobile mobilization e criatividade
hipermídia, documentários em foto e vídeo com aplicativos disponíveis via celular
e internet foram realizados com moradores, que se manifestaram em relação à
dengue. Registros iconográficos geraram acervo disponível configurando um
banco de dados que sustenta metodologicamente outras mobilizações.
Constatou-se que a tecnologia móvel é eficaz para aproximar os cidadãos
em mobilizações voltadas a problemas da saúde e da biodiversidade. Note-se
que a locatividade permitida pelos dispositivos favorece demarcar geografias
afetivas de paisagens doentes afetadas pelo mosquito, bem como a ação e cuidado
das pessoas, que afetivamente se envolvem no drama da dengue. Ressalte-se a
presença da tecnologia misturada ao cotidiano, ampliando sua capacidade para
se converter a tecnologia em arma para luta contra problemas da sociedade.
No caso, o objetivo proposto na pesquisa de pós-doutorado foi atingido, ao
tornar a tecnologia uma arma para o combate à dengue, drama da população, e
assim, juntos, promover um futuro com mais pessoas que cuidam das paisagens
doentes numa relação arte e saúde.39 Seguem algumas imagens do case study:

Imagem – Logomarca. mhealth e Tecnodengue

39.  Consultem-se vídeos pequenos: aplicativos móveis que definem as coordenadas geográficas
de todos os locais percorridos pelos integrantes do grupo. Os vídeos foram alocados em um
Canal no Youtube: http://www.youtube.com/channel/UCIRaxl0HRT-Uaclj1Q94rMw. O
Facebook como plataforma que tem possibilidade de dar apoio a ações de promoção da saúde.
No endereço www.midiamania.com/agencia, textos jornalísticos de cunho antropológico
estão disponíveis em produção de webjornalismo.
266 das artes e seus percursos

Placas produzidas para ação no bairro do Borba Gato – Maringá-PR, inspiradas nas propostas
dos alunos do Colégio Tomaz Edson durante ação contra a dengue.

Dos territórios sensíveis e o radical digital reinventando a vida

Finalmente cabe afirmar que para atender as demandas e os desafios


da sociedade: saúde, biodiversidade e mudanças de comportamentos sociais,
pesquisadores em práticas laboratoriais e ações na comunidade científica
e artística buscam respostas com aplicações, principalmente, na área
da Arte e Saúde em aproximações de várias áreas, sobretudo com a
Engenharia Biomédica. Trata-se da Art and Health, voltando-se ainda
a tecnologias sociais em que a Arte e a Tecnociência podem colaborar
com soluções inovadoras. É nesse contexto que nosso projeto vem crescendo
em sua natureza e que a pesquisa em sua fase atual 2014-2019 entrou para o
domínio da Bioarte e de Softwares Sociais em práticas e teorias com tecnologias
criativas, que encaram desafios e pretendem expandir-se para inovações
disruptivas. Em sua forma mais ampla, os resultados se inserem em estéticas
tecnológicas e na constante pesquisa dos artistas de pensar o sentido de
presença e a reconfiguração do humano nos modos de viver ampliados pelo
corpo reinventado, bem como em propostas relacionadas às teorias enacionistas
da percepção e a problemas da biodiversidade e à vida do planeta. Tomamos
ainda o estudo da paisagem, tendo por foco a biodiversidade e o combate à
enfermidade da paisagem, no caso, a luta contra a dengue.
É o sentir reengenheirado pelas tecnologias locativas por geotagueamento,
gerando paisagens enativas afetivas, misturas do biológico, do físico e do digital
em interpenetrações de realidade na vida urbana e paisagem misturada. Com
interfaces locativas e tecnologias móveis, bem como em ambientes de realidade
misturada e em ambientes dotados de interação expandida por interfaces
cross modais e reinvenção sensorial no campo da fisiologia corpo/mente e das
matrizes de percepção sensorial e propriocepção e sinestesia, num cruzamento
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 267

dos sentidos que alteram a fenomenologia da presença de Merleau-Ponty.


Trata-se dos sistemas enativos afetivos e do computador que “desaparece”
em tecnologias que se misturam ao ambiente, como “tecnologias calmas” e
“interfaces transparentes” (Weiser).
São dispositivos móveis e portáteis, que se tornam “objetos sencientes”
(Rheingold, 2002) e que reafirmam que o Ciberespaço está em toda parte.
“Cyberspace is everywhere” (Gibson, 2007). Ao falar de tecnologias sencientes e
pervasivas, em Smart Mobs (2002), Howard Rheingold afirma que as redes wireless
conectam dispositivos de naturezas diferentes e são causadoras da revolução da
mobilidade na vida contemporânea. São as tecnologias embarcadas (embebidas)
nas roupas, objetos, nos carros, em tudo que modificam, sobretudo a segurança
e saúde pessoal Esses antecedentes são importantes para se entender que são
tecnologias de realidade aumentada e móvel ou aplicativos de GPS, Android,
e sensores acoplados somados a vários apps (aplicativos) que transformam os
indivíduos em verdadeiros sensores humanos (Pentland, 2014); pessoas ficam
co-localizadas, co-locadas nos mundos físico e virtual, vivem em plataformas
sociais, aqui e ali, e por mineração de dados, a realidade é mineirada, a vida
e os comportamentos são rastreados e registrados. Dados do mundo físico são
integrados aos objetos materiais, fantasmagorias reinventam espaços privados
e públicos, por dados de sistemas embarcados com sensores fisiológicos, em
dispositivos móveis, sobretudo de celulares com locatividade, que permitem
se estar em todos os lugares, acionar softwares sociais e lidar com aplicativos
disseminados.
Confirma-se a premissa de Roger Malina da capacidade dos Novos
Leonardos em colaborar para formas contemporâneas de arte, fundidas
ao ambiente científico, numa perspectiva do radical digital e das hard
humanities. Como decorrência, surge uma epistemologia transdisciplinar pela
transversalidade de ações em várias ciências e disciplinas com práticas culturais
e científicas renovadas.
Assim, dos êxtases vividos nos rituais em geografismos do corpo, como
serpentes que escrevem suas grafias de falas de dados: Ouroboros Biocíbridos,
ao lado da pisada que escreve o sentir dos afetos vividos no espaço urbano: a
Pédila de Hermes, à palmilha usada na Cave e os sensores que são cases para usos
diversos em arte e tecnociência como um sistema sensorial de monitoramento
e controle capaz de medir a pressão e a força exercidas pela planta de um pé,
a cada passo dado, podem ser exemplos de como enviar dados para que o
médico seja capaz de acessar e avaliar o estado afetivo de um paciente; com a
palmilha integrada a um GPS, promovemos a visualização dos dados da pisada
268 das artes e seus percursos

e do esforço do paciente, combinado com as coordenadas georreferenciadas da


alteração sensível de um corpo. Contar suas estórias, suas narrativas afetivas,
em biogeografias, essas e outras relações de pesquisa transdisciplinar é que
levam a arte ao território da experimentação sensível. Narrativas afetivas,
contar histórias, ou promover um amplo e complexo mundo de acontecimentos
com um sistema baseado na apropriação do espaço é uma zona íntima da arte e
da ciência. Dados coletados montam mapas dinâmicos (living maps), constroem
realidades, revelam comportamentos, reescrevem variáveis dos caminhos e
mudanças climáticas, topográficas, informam hábitos, desejos, medos. Por onde
andam? Que corpos são esses? Que ambiente e calor os afetam? Contam sobre o
ecossistema, narram o virtual do ambiente urbano que se manifesta e os tocam,
os afetam em suas ações. Respostas das enações a episódios dos sistemas vivos
em seus territórios sensíveis.

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Sobre os autores

Caio Vassão
Doutor em Design pela FAUUSP (2008), pesquisa abordagens de ponta
em design e sobre as relações entre a tecnologia digital e a vida urbana. Em
especial, Vassão pesquisa técnicas de design que transitem entre as artes, a
tecnologia, a poética e a epistemologia. Docente há quinze anos em cursos de
graduação e pós-graduação, e consultor em projetos de inovação, em que utiliza
o Metadesign, sobre o qual publicou um livro em 2010. Atualmente pesquisa o
Design de Ecossistemas e sistemas de alta complexidade, em especial os sistemas
interativos e suas relações com modos emergentes de vida urbana.

Ciane Fernandes
Performer, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
da UFBA desde sua fundação, e da Escola de Teatro da UFBA; M.A. e Ph.D.
em Artes e Humanidades para Intérpretes das Artes Cênicas pela New York
University, pós-doutora pela Faculdade de Comunicação da UFBA, Analista
de Movimento (Certified Movement Analyst/C.M.A.) pelo Laban/Bartenieff
Institute of Movement Studies (New York), de onde é pesquisadora associada.
Autora de dois livros esgotados no Brasil, também publicados no exterior
(Estados Unidos e Inglaterra), além de oito revistas acadêmicas sobre educação
somática, dança-teatro e análise de/em movimento. Fundadora e diretora do
Coletivo A-FETO de Dança-Teatro da UFBA desde 1998.

Claudia Marinho
Artista e designer, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutorado em
design na Faculdade de Arquitetura, Design e Urbanismo da Universidade de
274 das artes e seus percursos

Buenos Aires. Professora do Curso de Design da UFC-CT, do PPG de Artes


da UFC (Universidade Federal do Ceará) e professora colaboradora do PPG
de Arquitetura e Urbanismo e Design da UFC. Pesquisa os processos da arte
e do design no contexto das tecnologias emergentes. Desenvolve atualmente
pesquisas relacionadas às mídias locativas e cidade, com foco na educação
patrimonial e intervenção urbana.

Diana Domingues
Pesquisadora Visitante Nacional Sênior – CAPES UnB 2010-2014.
Pesquisadora CNPq, PQ 1 A. Fundadora e Diretora do LART – Laboratório de
Pesquisa em Arte e Tecnociência. Professora colaboradora Senior do Programa
de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica (desde 2010). Pesquisadora
do Camera Culture Media LabMIT International Science and Technology
Initiatives/CNPq. Pós-doutora pelo ATI – Art & Technologies de l’Image,
Université Paris VIII e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/
SP. Ações internacionais com o OCAD, Toronto. Membro do International
Advisory Board do CIV/DDD – Centre for Innovation in Information
Visualization and Data Driven Design, York University e Toronto University.
Membro do Editorial Board da Digital Creativity, University of Plymouth,
Pesquisadora associada e Membro do International Advisory Committee for
the 2015 conference Media Art Histories 2015 _ RE-CREATE, Université
du Québec à Montréal. Membro do LEAF, Leonardo Education Art Forum,
e de outros comitês científicos e editoriais. Projetos voltados à reengenharia
da vida sob três eixos: reengenharia do sensório, reengenharia da natureza
e reengenharia da cultura. Tratam da expansão sensorial e perceptiva em
sistemas enativos afetivos e inovações tecnológicas disruptivas. Voltam-se à
sinestesia, por interfaces sensórias, mineração da realidade, e à biodiversidade
e ecossistema com softwares sociais e visualização de dados por locatividade
e sentido de presença ampliado em mapas vivos de narrativas humanas e
cuidados com paisagens enfermas em geografias afetivas. Publicou e organizou
livros seminais para a pesquisa como: Arte, ciência e tecnologia: passado, presente
e desafios, 2009, Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade, 2003
(Editora Unesp), e cerca de cem capítulos em livros e artigos em journals.
Artista com mais de cinquenta exposições individuais e mais de 130 coletivas
em Bienais como de São Paulo e Bienais do Mercosul. Exposição na House of
Culture of the World HKW, Berlin, Maison Européenne de la Photographie,
Paris, MN Belas Artes RJ, MAM e MAC SP, e em Galerias de diversos países.
Curadora de eventos internacionais. Sua obra está em muitos livros de
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 275

referência como: Bruce Wands, Digital Art, 2004, no Latin American Art in the
20th Century, de Edward Lucie-Smith, Thames and Hudson, 2003.

Éric Alliez
Professor de Filosofia e Criações Contemporâneas em Arte no
Departamento de Filosofia da Université Paris 8 e professor destacado de
Filosofia Contemporânea Francesa no Centre for Research in Modern
European Philosophy (Kingston University, Londres). Publicou, entre outros,
Les Temps Capitaux (prefácio de G. Deleuze), La Signature du monde, ou Qu’est-
ce que la philosophie de Deleuze et Guattari?, Paris, Cerf, 1993 [trad. Brasileira:
Rio de Janeiro, Editora 34, 1995]; De l’impossibilité de la phénoménologie. Sur
la philosophie française contemporaine, Paris, Vrin 1995 [trad. brasileira: Rio
de Janeiro, Editora 34, 1996]; Gilles Deleuze. Une Vie philosophique (direction
scientifique), Paris, Synthélabo, 1998 [trad. brasileira: Rio de Janeiro,
Editora 34, 2000]; Capitalism and Schizophrenia and Consensus. Of Relational
Aesthetics, Istambul, Baglam Publishing, 2010; Spheres of Action: Art and
Politics (ed. com P. Osborne.), Londres, Tate Publishing, 2013. Seus livros mais
recentes fazem uma crítica da estética numa trilogia dedicada à arte moderna e
contemporânea, como L’Œil-Cerveau. Nouvelles Histoires de La peinture moderne
(em colaboração com J.-Cl. Martin), Paris, Vrin, 2007; Défairel’ image. De l’art
contemporain (em colaboração com J.-Cl. Bonne), Dijon, Les Presses du réel,
2013. No Brasil, foi fundador e diretor do Colégio Internacional de Estudos
Filosóficos Transdisciplinares (1988-1996), bem como editor da Coleção Trans
(Editora 34).

Fabrizio Poltronieri
Artista e pesquisador, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-
SP com uma tese sobre o papel do acaso na arte computacional. Atualmente
seus esforços de pesquisa estão focados na compreensão de como os códigos
pós-históricos podem ser utilizados para a produção de conhecimento. Essa
pesquisa é realizada no Gamification Lab, da Leuphana Universität Lüuneburg,
Alemanha, em parceria com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Seus artigos têm sido publicados com frequência em livros internacionais, sendo
o mais recente um capítulo do livro Von Begriff zum Bild: Medienkultur nach
Vilém Flusser, ed. Michael Hanke and Steffi Winkler (Tectum Verlag Marburg,
2013). Fabrizio também é coeditor do livro The Permanence of the Transient:
Precariousness in Art (Cambridge Scholars, 2014).
276 das artes e seus percursos

Fred Paulino
Cientista da Computação pela UFMG, pós-graduado em Arte
Contemporânea na UEMG, vive e trabalha em Belo Horizonte. Realiza obras
em suportes diversos – desde experimentações gráficas, vídeo e intervenções
urbanas até eletrônica e programação de sistemas. Foi diretor criativo do
Estúdio Osso e um dos fundadores do Coletivo Mosquito. Ministrou oficinas
e participou de diversas mostras, exposições e festivais no Brasil e exterior,
dentre eles: TEDx Belo Horizonte (2013), ZERO1 Biennial (San Jose, Estados
Unidos), ISEA2012 (Albuquerque, Estados Unidos), Tecnofagias – 3ª Mostra
3M de Arte Digital (Instituto Tomie Ohtake – São Paulo, SP), CREAM –
International Festival for Artsand Media (Yokohama, Japão), Videobrasil
(Brasil), Arte.Mov – Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis (Brasil)
e FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (Brasil). Coordena o
projeto Gambiologia. Foi idealizador e curador das exposições Gambiólogos – A
Gambiarra nos Tempos do Digital (2010 e 2014) e é editor da Facta – Revista
de Gambiologia.

Gilbertto Prado
Artista multimídia, professor do Departamento de Artes Plásticas
da ECA-USP e coordenador do Grupo Poéticas Digitais. Tem realizado e
participado de inúmeras exposições no Brasil e no exterior. Recebeu o 9º
Prix Möbius International des Multimédias, Beijin, 2001 (Menção Especial),
Prêmio Transmídia Itaú Cultural (2002) e o 6º Prêmio Sergio Motta de Arte e
Tecnologia, (Grupo Poéticas Digitais), 2006, entre outros. Trabalha com arte
em rede e instalações interativas. Publicou em 2003 o livro Arte telemática: dos
intercâmbios pontuais aos ambientes virtuais multiusuário, pelo Itaú Cultural. www.
gilberttoprado.net, www.poeticasdigitais.net.

Guto Nóbrega
Doutor (2009) em Interactive Arts pelo programa de pós-graduação
Planetary Collegium (antigo CAiiA-STAR), University of Plymouth UK,
onde desenvolveu pesquisa sob orientação do Prof. Roy Ascott durante quatro
anos com bolsa de doutorado pleno pela CAPES. Sua pesquisa de caráter
transdisciplinar nos domínios da arte, ciência, tecnologia e natureza investiga
como a confluência desses campos (em especial nas últimas décadas) tem
informado a criação de novas experiências estéticas.
claudia marinho | patrícia caetano | walmeri ribeiro (orgs.) 277

Hélène Doyon
Professora na UQAM, onde ministra o seminário de metodologia, Le
performatif, em níveis de graduação e doutorado. Ministra ainda Espace social et
politique de l’art: Art et vie confondus, um seminário de mestrado inicialmente
desenvolvido por Jean-Pierre Demers, ex-palestrante que atualmente é
doutorando no Études et pratiques des arts program (UQAM). O trabalho da
dupla Doyon/Demers tem sido apresentado no Canadá, Europa, Brasil, Cuba e
Japão.

Jorge Menna Barreto


Formado em Artes Plásticas pela UFRGS, é mestre e doutor em Poéticas
Visuais pela ECA-USP. Atualmente, dedica-se a um pós-doutorado no
departamento de Artes Visuais da UDESC, no qual investiga relações possíveis
entre agroecologia e o site-specific. Práticas visuais e discursivas se mesclam em
sua trajetória, seja enquanto educador, tradutor, artista ou escritor.

Julie Barnsley
Dançarina britânica, coreógrafa, professora e pesquisadora em corpo/
movimento, com Bachalerado de Artes em Dança. Como dançarina trabalhou
com os neoexpressionistas Reinhild Hoffman e Gerhard Bohner na Alemanha,
Lloyd Newson (DV8) na Inglaterra e Poppo Shiraishi (Butoh) em Nova York.
Em Caracas foi membro fundadora do Danzahoy e CLADA, Centro Latino-
americano de Dança. Foi professora de coreografia e investigadora de métodos de
ensino em dança moderna e pós-moderna no IUDANZA, Instituto Universidade
de Dança. Atualmente é professora de coreografia, além de coordenadora e
principal autora do Programa de Educação Somática Consciência Explanatória
Corporal na UNEARTE, Universidade Nacional Experimental das Artes. Por
seu trabalho no Aktion Kolectiva, Barnsley, recebeu o prêmio The Critven,
Críticos da Venezuela, Municipal Dance Awards (seis vezes), Casa del Artista.
Tornou-se professora honorária da UNEARTE em 2011.

Maria Luiza Guimarães Fragoso


Artista e pesquisadora em Arte e Tecnologia pelo Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais da UFRJ, coordenadora do Núcleo de Arte e
Novos Organismos – NANO, professora do Departamento de Comunicação
Visual Design, Escola de Belas Artes/ UFRJ.
278 das artes e seus percursos

Patricia de Lima Caetano


Professora adjunta dos cursos de licenciatura e bacharelado em Dança e
professora do Programa de Pós-Graduação em Artes – PPGArtes, do Instituto
de Cultura e Arte/ICA, da Universidade Federal do Ceará/UFC. Doutora em
Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2012). Possui graduação
em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (2002) e formação
profissional em Dança Contemporânea pelo Centro de Estudos do Movimento
e Artes – Escola Angel Vianna (1999). Tem experiência na área de Artes, com
ênfase em Educação Somática, atuando principalmente nos seguintes temas:
dança contemporânea, performance, teatro físico e estudos da subjetividade/
corporeidade.

Walmeri Ribeiro
Walmeri Ribeiro é artista-pesquisadora, professora do Programa de
Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, coordenadora
do laboratório de pesquisa <BRISA LAB>, onde desenvolve a pesquisa
“Territórios Sensíveis: uma investigação performativa em Artes, Tecnociências
e Natureza”.

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