Você está na página 1de 3

POR UMA LINGUÍSTICA CRÍTICA

Kanavillil Rajagopalan

Quando me refiro a uma linguística crítica, quero, antes de mais nada, me referir
a uma linguística voltada para questões práticas. Não é a simples aplicação da teoria
para fins práticos, mas pensar a própria teoria de forma diferente, nunca perdendo de
vista o fato de que o nosso trabalho tem que ter alguma relevância. Relevância para as
nossas vidas, para a sociedade de modo geral.
As coisas podem ser diferentes da maneira em que se encontram. É possível
mudar as coisas, ao invés de nos contentar em simplesmente descrevê-las e fazer teorias
engenhosas a respeito delas. Acreditar numa linguística crítica é acreditar que podemos
fazer diferença.
Ao perguntar quais as considerações éticas, ideológicas e políticas que subjazem
a determinadas posturas teóricas, estamos em verdade inquirindo as condições em que o
novo saber se produz e se reproduz. Estamos procurando entender, entre outras coisas,
quais os recortes que o novo saber efetua, e ao fazer isso, quais exclusões ele legítima.
Nas palavras de Fairclough (1992) a língua é abordada como ela poderia ser num
mundo ideal e paradisíaco e não como ela de fato é em nosso mundo vivido. As fazer
vista grossa às mudanças geopolíticas em curso no mundo inteiro, mudanças com
resultados concretos plenamente visíveis a olho nu, a linguística de hoje mostra sinais
de querer se enclausurar numa torre de marfim, contemplando, com saudade, o mundo
perdido de identidade fixas e delineadas uma vez por todas.
Enquanto área de estudo, a linguística é, sempre foi e sempre será uma atividade
humana, na qual participam indivíduos com seus laços sociais, seus direitos e suas
obrigações, e sobretudo seus anseios e interesses, que variam de acordo com o momento
histórico em que se encontram.
Responsabilidade do cientista, do pesquisador. Existe, ao meu ver, algo tão sério
e importante quanto o compromisso com a verdade. Trata-se da responsabilidade do
pesquisador para com a sociedade que lhe proporciona as condições necessárias de levar
adiante suas pesquisas. Trata-se da responsabilidade social do cientista (do linguista, no
caso) num sentido muito mais profundo do que uma simples questão de dívida moral
em relação aos informantes que tanto nos auxiliam em pesquisas de campo.
Nunca na história da humanidade a identidade linguística das pessoas esteve tão
sujeita como nos dias de hoje às influências estrangeiras. Volatilidade e instabilidade
tornaram-se as marcas registradas das identidades no mundo pós-moderno. Nossas vidas
estão sendo cada vez mais literalmente invadidas pelas informações advindas de fontes
de todos os tipos, algumas bem-vindas, outras nem tanto. A internet nivelou em grande
parte as desigualdades que existiam entre o centro e a periferia no que respeita ao acesso
às informações.
Estamos vivendo a era da informação. Hoje somos o que sabemos. E a
linguagem está no epicentro deste verdadeiro abalo sísmico que está em curso na
maneira de lidar com as nossas vidas e as nossas identidades. Se a identidade linguística
está em crise, isso se deve, de um lado, ao excesso de informações que nos circunda e
por outro lado, às instabilidades e contradições que caracterizam tanto a linguagem na
era da informação como as próprias relações entre os povos e as pessoas.
A língua estrangeira e a cultura que a sustenta sempre foram apresentadas como
superiores às dos discentes. As chamadas línguas francas do mundo moderno já não são
mais línguas cujas trajetórias históricas permaneceram continuas e sem influencias
externas ao longo do tempo.
Entender o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira como
parte integrante de um amplo processo de redefinição de identidades. Pois as línguas
não são meros instrumentos de comunicação, como costumar alardear os livros
introdutórios. As línguas são a própria expressão das identidades de quem delas se
apropria. Logo, quem transita entre diversos idiomas está redefinindo sua própria
identidade.
O verdadeiro propósito do ensino de línguas estrangeiras é formar indivíduos
capazes de interagir com pessoas de outras culturas e modos de pensar e agir. Significa
transformar-se em cidadãos do mundo [...] É preciso dominar a língua estrangeira, fazer
com que ela se torne parte da nossa própria personalidade, e jamais permitir que ela nos
domine.
As identidades são, todas elas, em permanente estado de transformação, de
ebulição. Elas estão sendo constantemente reconstruídas. Em qualquer momento dado,
as identidades estão sendo adaptadas e adequadas às novas circunstancias que vão
surgindo. A única forma de definir uma identidade é em oposição a outras identidades
em jogo. Ou seja, as identidades são definidas estruturalmente. Não se pode falar em
identidade fora das relações estruturais que imperem em um momento dado.
Não se trata de simplesmente das as costas àqueles que ainda ingenuamente
acreditam que as escolas devem ser encaradas como verdadeiros templos sagrados do
saber e os mestres (educadores) como autênticos sacerdotes. Embora seja de grande
relevância denunciar os falsos ídolos e os falsos profetas, é igualmente importante tirar
lições dos erros dos outros. Uma delas, a meu ver, é a percepção de eu a caça à
ideologia é um empreendimento infindável. Isso porque a ideologia e a teoria não são
opostas como fogo e água, pois são feitas da mesma matéria-prima. Aquilo que
chamamos de ideologia, com frequência, nada mais é do que uma teoria cujas
implicações nos incomodam. O contrário também procede. Nossa preferência por
determinada teoria é frequentemente teleguiada por motivos ideológicos.
Ao educador crítico cabe a tarefa de estimular a visão crítica dos alunos, de
implantar uma postura crítica, de constante questionamento das certezas que, com o
passar do tempo, adquirem a aura e a intocabilidade dos dogmas. É por este motivo que
o educador crítico atrai, via de regra, a ira daqueles que estão plenamente satisfeitos
com o status quo e interpretam qualquer forma de questionamento das regras do jogo
estabelecidas como uma grave ameaça a si e à sua situação confortável e privilegiada. O
educador crítico sempre foi e sempre será uma ameaça para os poderes constituídos.
Os linguistas que abraçam a corrente crítica parte do pressuposto inicial de que
as nossas falas são atravessas pelas conotações político-ideológicas. Vale também para
as nossas falas a respeito da própria linguagem, já que não há como sair da linguagem
para falar sobre ela de forma descompromissada.

Você também pode gostar