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Complementação Pedagógica

Coordenação Pedagógica – IBRA

DISCIPLINA

FILOSOFIA DA LINGUAGEM
SUMÁRIO

1 A CONDIÇÃO DA FILOSOFIA E A PRIMARIEDADE DA LINGUAGEM ........... 4

Filosofia da Linguagem e sua História ............................................................ 4

Sinonímia e Antonímia .................................................................................... 8

Paronímia e Homonímia ................................................................................. 9

Polissemia ..................................................................................................... 10

Conotação e Denotação ............................................................................... 10

Relações Lógico-semânticas ........................................................................ 11

2 RELAÇÕES DISCURSIVAS OU ARGUMENTATIVAS ................................... 14

3 ANÁLISE INTENCIONAL E PRAGMÁTICA .................................................... 18

A Pragmática em geral.................................................................................. 18

4 ANÁLISE HERMENÊUTICA DA LINGUAGEM ............................................... 25

Historicidade e Linguagem ............................................................................ 25

O círculo hermenêutico ................................................................................. 27

Hermenêutica e Linguagem .......................................................................... 39

5 ESTRUTURALISMO LINGUÍSTICO E SEMIÓTICA ....................................... 41

Fundamentação Teórica do Estruturalismo Linguístico................................. 41

O curso de Sausure ...................................................................................... 44

Origens e Concepções do Estruturalismo Linguístico ................................... 44

As Dicotomias enunciadas por Saussure ...................................................... 46


Sincronia x Diacronia .................................................................................... 46
6 LINGUAGEM E PENSAMENTO ..................................................................... 47

Origens do pensamento e da língua de acordo com Vygotsky ..................... 47

Pensamento, Linguagem e desenvolvimento intelectual .............................. 47

A teoria de Piaget sobre a Linguagem e o Pensamento das crianças .......... 48

A teoria de Stern sobre o desenvolvimento da Linguagem ........................... 49

As raízes genéticas do pensamento e da linguagem .................................... 50

7 LINGUAGEM E MUNDO ................................................................................. 51

A palavra conduz a uma ideia ....................................................................... 51

As palavras não conduzem aos objetos do mundo externo .......................... 52

Há um mundo externo para além de nossas percepções? ........................... 53

8 LINGUAGEM E INTERSUBJETIVIDADE ....................................................... 55

Intersubjetividade e Interação social: contribuições de algumas perspectivas


contemporâneas ........................................................................................... 55

Cognição Social e os Vários Níveis de Intersubjetividade............................. 60

9 LINGUAGEM E FICÇÃO ................................................................................. 64

10 A QUESTÃO LINGUÍSTICA COMO MEIO DA CONSCIÊNCIA E DA AUTO


COMPREENSÃO ............................................................................................ 70

Desenvolvimento da autoconfiança linguística dos alunos ........................... 70

Desenvolvimento da tolerância cultural e linguística ..................................... 70

11 BIBLIOGRAFIA BÁSICA ................................................................................. 71


1 A CONDIÇÃO DA FILOSOFIA E A PRIMARIEDADE DA LINGUAGEM

Filosofia da linguagem é o ramo da filosofia que estuda a essência e natureza


dos fenômenos linguísticos. Ela trata, de um ponto de vista filosófico, da natureza do
significado linguístico, da referência, do uso da linguagem, do aprendizado da
linguagem, da criatividade dos falantes, da compreensão da linguagem, da
interpretação, da tradução, de aspectos linguísticos do pensamento e da experiência.
Trata também do estudo da sintaxe, da semântica, da pragmática e da referência. As
principais questões investigadas pela disciplina são:
 Como as frases compõem um todo significativo?
 O que é o significado das “partes” (palavras) das frases?
 Qual a natureza do significado?
 O que é o significado?
 O que fazemos com a linguagem?
 Como a usamos socialmente?
 Qual sua finalidade?
 Como a linguagem se relaciona com a mente do falante e do intérprete?
 Como a linguagem se relaciona com o mundo?

Os filósofos da linguagem não se ocupam muito do que significam palavras


ou frases individuais. Qualquer dicionário ou enciclopédia pode resolver o
problema do significado das palavras. O mais interessante é:
 O que significa para uma palavra ou frase significar alguma coisa por
que as expressões têm os significados que têm?
 Como uma expressão pode ter o mesmo significado de outra?
 E, principalmente: qual o significado de “significado”?1

Filosofia da Linguagem e sua História

O surgimento da linguagem é um fato fundamental na história humana. Não


seria possível a organização dos seres humanos em sociedade sem a linguagem e
vice-versa. Isso indica que a linguagem e a vida em sociedade devem ter surgido
praticamente ao mesmo tempo. É difícil determinar qual a origem da linguagem, pois
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não há muitas pistas a seguir. As primeiras explicações sobre a origem da linguagem
têm seus fundamentos na religião. Deus teria dado a Adão uma língua e a capacidade
de nomear tudo o que existe. Haveria apenas uma língua, em que cada palavra teria
apenas um significado. Mas como explicar a diversidade das línguas?

Torre de Babel
Na Bíblia, o Gênesis conta que "o mundo inteiro falava a mesma língua, com
as mesmas palavras" (Gn 11,1). Os homens resolveram, porém, criar uma cidade com
uma torre tão alta que chegaria a tocar o céu e os tornaria famosos e poderosos. Então
Deus, para castigá-los, fez com que ninguém mais se entendesse e os homens
passaram a falar línguas diferentes. Assim, os construtores da torre se dispersaram e
a obra permaneceu inacabada. A diversidade das línguas surge como forma de evitar
a centralização do poder. A cidade dessa história bíblica ficou conhecida como Babel,
que significa "confusão".

Rousseau e o “Grito da Natureza”

O filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) supôs que a linguagem


humana teria evoluído gradualmente, a partir da necessidade de exprimir os
sentimentos, até formas mais complexas e abstratas. Para Rousseau, a primeira
linguagem do homem foi o "grito da natureza", que era usado pelos primeiros homens
para implorar socorro no perigo ou como alívio de dores violentas, mas não era de uso
comum. A linguagem propriamente dita só teria começado "quando as ideias dos
homens começaram a estender-se e a multiplicar-se, e se estabeleceu entre eles uma
comunicação mais íntima, procuraram sinais mais numerosos e uma língua mais
extensa; multiplicaram as inflexões de voz e juntaram-lhes gesto.

1 Texto extraído de: www.estudantedefilosofia.com.br

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Fonte de: ontop.news

Mead e a experiência comum

Nesse processo, a comunicação se torna possível pelo fato dos indivíduos


adotarem o mesmo significado para um gesto evocando uma vivência anterior do
próprio indivíduo. Segundo Mead, quando o gesto chega a essa situação, converte-
se no que chamamos de "linguagem", ou seja, um símbolo significante que representa
certo significado.
Com o passar do tempo, esse conjunto de gestos significantes dá lugar a
formas mais elaboradas de linguagem, compondo um universo de discurso. Nesse
estágio, o sentido já não é articulado apenas tendo por base a interiorização das
expectativas de ação do outro.
Há uma sofisticação da comunicação, que se torna possível pelo fato dos
indivíduos adotarem o mesmo significado para o objeto dentro deste universo de
discurso.

“Esse universo de discurso é constituído por um grupo de indivíduos que


conduz e participa de um processo social comum de experiência e
comportamento, e no qual esses gestos ou símbolos significantes têm a
mesma significação, ou uma significação comum para todos os membros do
grupo... Um universo de discurso é simplesmente um sistema de significados
comuns ou sociais”. (Mead, G., “Mind, Self and Society”).

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Portanto, a forma como o indivíduo organiza sua experiência é determinada em
grande parte pelo universo de discurso ao qual ele pertence e conforma seu imaginário
social e as formas de simbolização de sua experiência. Mas será que os limites da
minha linguagem e da minha cultura são também os limites para pensar e significar a
realidade? Será que existem línguas mais apropriadas ao filosofar como o grego ou o
alemão, por exemplo? Ou existiriam estruturas de pensamento universais
independentes da cultura e da linguagem?

Noam Chomsky
Uma sugestiva contribuição sobre esse tema foi elaborada pelo linguista e
ativista político americano Noam Chomsky (nascido em 1928), que revolucionou a
linguística ao introduzir a relação entre o pensamento e a linguagem.
Para Chomsky, a criança disporia de pouca informação da língua para aprender
como a linguagem funciona. Ainda mais, se considerarmos que além de contarem com
poucos estímulos, os adultos, muitas vezes, não ajudam a criança em seu
aprendizado dizendo-lhes coisas sem muito sentido.
Mesmo assim, a maioria das crianças tem um domínio razoável da língua por
volta dos dois anos de idade. Se considerarmos que a linguagem é um sistema
bastante complexo com regras semânticas e sintáticas sutis e que o ambiente para o
aprendizado da língua não é suficiente, então o que torna possível o seu aprendizado?
A explicação estaria na estrutura mental geneticamente determinada, na qual estaria
fixado um conjunto de regras gerais para a utilização da linguagem, que são
universais por necessidade biológica e não por simples acidente histórico, e que
decorrem de características mentais da espécie.

Gramática Universal
Chomsky define o conjunto de princípios e regras que determinam o uso da
linguagem como "gramática universal". Trata-se de um sistema de princípios,
condições e regras que são elementos ou propriedades de todas as línguas humanas.
Esse sistema seria o resultado de um longo processo de evolução biológica, que
constituiria a essência da linguagem humana.
Esta gramática universal seria, portanto, uma estrutura anterior ao aprendizado
de qualquer gramática específica, pertencendo a um estágio inicial do cérebro. Ela
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não se identifica a nenhuma linguagem particular, mas é subjacente a todas as línguas
possíveis.
Se a linguagem é aprendida a partir da interação social e por ela condicionada
ou é produto da relação entre o ambiente e as estruturas mentais geneticamente
herdadas é algo que ainda não podemos afirmar com certeza. Tal questão permanece
guardada como um fascinante segredo sobre sua origem2.
 Diacrônica, se encarrega de estudar o significado das palavras em
determinado espaço de tempo.
A fim de conhecer as palavras apropriadas para empregá-las em determinados
discursos, recorremos à semântica, ou seja, a significação dos termos.
Para isso, alguns conceitos são basilares para o estudo das significações,
como por exemplo: Sinonímia e Antonímia; Polissemia; Conotação e Denotação.

Fonte: bibliotecamadre.com

Sinonímia e Antonímia

Os sinônimos designam as palavras que possuem significados semelhantes,


por exemplo:
 Andar e caminhar
 Usar e utilizar
 Fraco e frágil

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Do grego, a palavra sinônimo significa “semelhante nome” sendo classificados
de acordo com a semelhança que compartilham com o outro termo.
Os sinônimos perfeitos possuem significados idênticos (após e depois; léxico e
vocabulário). Já os sinônimos imperfeitos possuem significados parecidos (gordo e
obeso; córrego e riacho).
Os antônimos designam as palavras que possuem significados contrários, por
exemplo:
 Claro e escuro
 Triste e feliz
 Bom e mau

Do grego, a palavra “antônimo” significa “nome oposto, contrário”.

Paronímia e Homonímia

Homônimos são palavras que ora possuem a mesma pronúncia, (palavras


homófonas), ora possuem a mesma grafia (palavras homógrafas), entretanto,
possuem significados diferentes.
São chamados de "homônimos perfeitos", as palavras que possuem a mesma
grafia e a mesma sonoridade na pronúncia, por exemplo:
 O pelo do cachorro é curto.
 Pelo caminho da vida.
 Tenho que chegar cedo.
 Cedo meu lugar aos idosos.

Parônimos são aquelas palavras que possuem significados diferentes, porém


se assemelham na pronúncia e na escrita, por exemplo:
 Soar (produzir som) e suar (transpirar);
 Acento (sinal gráfico) e assento (local para sentar);
 Acender (dar luz) e ascender (subir).

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Polissemia

A polissemia representa a multiplicidade de significados de uma palavra. Com


o decorrer do tempo, determinado termo adquiriu um novo significado, entretanto,
ainda se relaciona com o original, por exemplo:

 A menina quebrou a perna no acidente.


 A perna da cadeira é marrom.
 Que letra ilegível!
 A letra dessa canção é muito bonita.

Conotação e Denotação

A conotação designa o sentido virtual, figurado e subjetivo da palavra,


alargando o seu campo semântico. Assim, depende do contexto.
Na maioria das vezes, a conotação é utilizada nos textos poéticos com o intuito
de produzir sensações no leitor.
A denotação designa o sentido real, literal e objetivo da palavra. Ela explora
uma linguagem mais informativa, em detrimento de uma linguagem mais poética
(conotativa).
É muito utilizada nos trabalhos acadêmicos, jornais, manuais de instruções,
dentre outros.

Exemplos:

 Ele foi um cara de pau! (Sentido conotativo)


 Não foi aquele cara que te pediu informação ontem? (Sentido denotativo)

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Fonte: clubedoportugues.com.br

 Agiu como um porco. (Sentido conotativo)


 No sítio do meu avô há um porco. (Sentido denotativo)3

Relações Lógico-semânticas

Relação de condicionalidade (se p então q) – Expressa-se pela conexão de


duas orações, uma introduzida pelo conector se ou similar (oração antecedente) e
outra por então, que geralmente vem implícita (oração consequente). O que se afirma
nesse tipo de relação é que, sendo o antecedente verdadeiro, o consequente também
o será. Exemplos:
Se aquecermos o ferro, (então) ele se derreterá. Caso faça sol, (então) iremos
à praia.

3 Texto extraído de: www.todamateria.com.br

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Relação de causalidade (p porque q) – Expressa-se pela conexão de duas
orações, uma das quais encerra a causa que acarreta a consequência contida na
outra. Tal relação pode ser veiculada sob diversas formas estruturais, como:

O torcedor ficou rouco porque gritou demais.

Consequência causa

O torcedor gritou tanto que ficou rouco.

Causa Consequência
O torcedor gritou demais; então (por isso) ficou rouco.
Como tivesse gritado demais, o torcedor ficou rouco. Por ter gritado demais
Causa

Relação de mediação – que se exprime por intermédio de duas orações, numa


das quais se explicitam o (s) meio (s) para atingir um fim expresso em outra:
Meio Fim

O jovem envidou todos os esforços para conquistar/o amor da garota dos seus
sonhos.
Embora, do ponto de vista lógico, a relação de condicionalidade (implicação)
englobe as de causalidade e de mediação, são apresentadas separadamente por
razões didáticas.
Relação de disjunção – se expressa através do conectivo ou. Esse conector,
porém, é ambíguo, correspondendo ora à forma latina aut, com valor exclusivo (isto é,
um ou outro, mas não ambos), ora à forma vel com valor inclusivo (ou seja, um ou
outro, possivelmente ambos). Exemplos:
Você vai passar o fim de semana em São Paulo ou vai descer para o litoral?
(Exclusivo)

Todos os congressistas deveriam usar crachás ou trajar camisas vermelhas.

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(Inclusivo: e/ou).

Relação de temporalidade – por meio da qual, através da conexão de duas


orações, localizam-se no tempo, relacionando-os uns aos outros, ações, eventos,
estados de coisas do “mundo real” ou a ordem em que se teve percepção ou
conhecimento deles. O relacionamento temporal pode ser de vários tipos:
 Tempo simultâneo (exato, pontual): Quando / Mal / Nem bem / Assim que
/ Logo que / No momento em que... o filme começou, ouviu-se um grito na
plateia.
 Tempo anterior/posterior: Antes que o inimigo conseguisse puxar a arma,
o soldado deferiu-lhe uma saraivada de tiros.

Depois que Maria enviuvou, ele preferiu viver na fazenda de seus pais.
 Tempo contínuo ou progressivo: Enquanto os alunos faziam os
exercícios, o professor corrigia as provas da outra turma.
À medida que os recursos iam minguando, aumentava o desespero da
população do vilarejo isolado pelas inundações.

 Relação de conformidade: Expressa-se pela conexão de duas orações em


que se mostra a conformidade do conteúdo de uma com algo asseverado na
outra:
O réu agiu conforme o advogado lhe havia determinado.

Relação de modo: Por meio da qual se expressa, numa das orações, o modo
como se realizou a ação ou evento contido na outra. Exemplo:
Sem levantar a cabeça, a criança ouvia as reprimendas da mãe
Como se fosse um raio, o cavaleiro disparou pela campina afora.

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Fonte: institutonetclaroembratel.org.br

2 RELAÇÕES DISCURSIVAS OU ARGUMENTATIVAS

Conjunção – efetuada por meio de operadores como é, também, não só..., mas
também, tanto... como, além de, além disso, ainda, nem (=e não), quando ligam
enunciados que constituem argumentos para uma mesma conclusão.
Exemplos:

João é, sem dúvida, o melhor candidato. Tem boa formação e apresenta um


consistente programa administrativo.
Além disso, revela pleno conhecimento dos problemas da população. Ressalte-
se, ainda, que não faz promessas demagógicas.
A reunião foi um fracasso. Não se chegou a nenhuma conclusão importante,
nem (=e não) se discutiu o problema central.

Disjunção argumentativa – Trata-se aqui da disjunção de enunciados que


possuem orientações discursivas diferentes e resultam de dois atos de fala distintos,
em que o segundo procura provocar o leitor/ouvinte para leva-lo a modificar sua
opinião ou, simplesmente, aceitar a opinião expressa pelo primeiro:
Todo voto é útil. Ou não foi útil o voto dado ao rinoceronte “Cacareco” nas
eleições municipais, há alguns anos atrás?
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Contrajunção – Através da qual se contrapõem enunciados de orientações
argumentativas diferentes, devendo prevalecer a do enunciado introduzido pelo
operador: mas (porém, contudo, todavia, etc.). Exemplo: Tinha todos os requisitos
para ser um homem feliz. Mas vivia só e deprimido.
Quando se utiliza o operador embora (ainda que, apesar de (que) etc.),
prevalece a orientação argumentativa do enunciado não introduzido pelo operador.

Exemplos:
Embora desconfiasse do amigo, nada deixava transparecer.
O calor continuava insuportável, apesar da chuva que caiu o dia todo.
 Explicação ou justificativa – quando se encadeia sobre um primeiro
ato de fala, outro ato que justifica ou explica o anterior:

Não vá ainda, que tenho uma coisa importante para lhe dizer. (Justificativa)
Deve ter faltado energia por muito tempo, pois a geladeira está totalmente
descongelada. (Explicação)

 Comprovação – em que, através de um novo ato de fala, acrescenta-se


uma possível comprovação da asserção apresentada no primeiro:
Encontrei seu namorado na festa, tanto que ele estava de tênis Adidas.

 Conclusão – em que, por meio de operadores como: portanto, logo, por


conseguinte, pois etc., introduz-se um enunciado de valor conclusivo em
relação a dois (ou mais) atos de fala anteriores que contêm as premissas,
uma das quais, geralmente, permanece implícita, por tratar-se de algo que
é voz geral, de consenso em dada cultura, ou, então, verdade
universalmente aceita.
Toda a equipe jogou desentrosada. Portanto (logo) o novo atacante não poderia
mesmo ter mostrado o seu bom futebol.
João é um indivíduo perigoso. Portanto, fique longe dele.

 Comparação – expressa-se por meio dos operadores (tanto, tal)... como


(quanto), mais... (do) que, menos... (do) que, estabelecendo entre um

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termo comparante e um termo comparado, uma relação de inferioridade,
superioridade ou igualdade. A relação comparativa possui um caráter
eminentemente argumentativo: a comparação se faz tendo em vista dada
conclusão a favor ou contra a qual se pretende argumentar. Assim, se a uma
pergunta como: “Devemos chamar Pedro para tirar a mala de cima do
armário?”, se obtivesse como resposta:

“João é tão alto quanto Pedro”


A resposta seria desfavorável a Pedro (embora não negando a sua altura) e
favorável a João. Se, por outro lado, a resposta fosse:

“Pedro é tão alto como João”


Haveria inversão da orientação argumentativa, agora favorável a Pedro.

Fonte: infoenem.com.br

 Generalização/extensão – em que o segundo enunciado exprime uma


generalização do fato contido no primeiro, ou uma amplificação da ideia
nele expressa:

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Maria está atrasada. Aliás / Também / É verdade que..., ela nunca chega na
hora.
Tive prazer em conhece-la. De fato / Realmente..., estou encantado.
Pedro está de novo sem dinheiro. Bem / Aliás / Mas..., é o que acontece com
todo estudante que vive de mesada.
 Especificação/exemplificação – em que o segundo enunciado
particulariza e/ou exemplifica uma declaração de ordem mais geral
apresenta no primeiro:
Muitos de nossos colegas estão no exterior. Pierre, por exemplo, está na
França.
Nos países do Terceiro Mundo, como a Bolívia e o Brasil, falta saneamento
básico em muitas regiões.

 Contraste – na qual o segundo enunciado apresenta uma declaração


que contrasta com a do primeiro, produzindo um efeito retórico:

Gosto muito de esporte. Mas luta-livre, faça-me o favor!

Os ricos ficam cada vez mais ricos, ao passo que os pobres se tornam cada
vez mais pobres.

 Correção/Redefinição – Quando, através de um segundo enunciado,


se corrige, suspende ou redefine o conteúdo do primeiro, se atenua ou
reforça o comprometimento com a verdade do que nele foi veiculado ou,
ainda, se questiona a própria legitimidade de sua enunciação:

 Irei à sua festa. Isto é, se você me convidar.

 Eu não agiria deste modo. Se você quer saber a minha opinião. Meus
parabéns! Ou não devo cumprimenta-la por isso?
 Pedro chega hoje. Ou melhor, acredito que chegue, não tenho certeza.
 Ele não é muito esperto. De fato (Pelo contrário), parece-me bastante
estúpido. Prometo ir ao encontro. Isto é (Ou melhor), vou tentar.
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3 ANÁLISE INTENCIONAL E PRAGMÁTICA

A Pragmática em geral

A pragmática, como se conhece hoje, começou com a ‘Teoria dos Atos de Fala’
desenvolvida por John Langshaw Austin. Diferente do que pode se pensar, Austin
construiu sua teoria a partir de ferrenha crítica a Wittgenstein que, através de seus
adeptos, anunciava que “o significado é o seu uso” (Austin, 1990, p.89). Para Austin,
filósofo de Oxford, era inaceitável a tese de Wittgenstein, oriundo de Cambridge, da
impossibilidade de classificar e sistematizar o uso da linguagem. Para Austin, era
necessária e possível uma definição sistemática dos usos linguísticos que,
certamente, não se restringem às descrições ou às declarações de um fato.

Por mais tempo que o necessário, os filósofos acreditaram que o papel de


uma declaração era tão-somente o de descrever um estado de coisas, ou
declarar um fato, o que deveria fazer de modo verdadeiro ou falso. Os
gramáticos, na realidade, indicaram com frequência que nem todas as
sentenças são (usadas para fazer) declarações, há tradicionalmente, além
das declarações (dos gramáticos), perguntas e exclamações, e sentenças
que expressam ordens, desejo ou concessões (Austin, 1990, p.21)

Para Austin (1990) usar a linguagem é realizar uma ação. A partir da análise da
teoria dos jogos de linguagem, que salienta a importância das condições de uso da
linguagem, exposta por Wittgenstein (2008), que também, sob este aspecto, pode ser
considerado um dos iniciadores da pragmática (Dascal, 2006, p. 51), Austin (1990)
conclui que determinadas sentenças são, na verdade, ações. Toda ação que é
realizada através do dizer é chamada de ato de fala.
Criticando a posição de vários linguistas e filósofos que davam grande
importância à função descritiva da linguagem, sendo, portanto, sujeita às condições
de verdade e verificabilidade, Austin distingue os usos das sentenças em
“constatativos” e “performativos”, conforme descrevam fatos ou realizem (to
perform) algo. São exemplos de “constatativos” os usos da linguagem que tenham
como objetivo descrever ou relatar estados de coisas como: “João está brincando no
quintal” (Marcondes, 2005, p.17). Já os “performativos” devem atender a
determinadas condições, como: não descrever, relatar ou constatar; não ser
“verdadeiro” ou “falso”; ser, no todo ou em parte, a realização de uma ação (Austin,

18
1990, p. 24). Austin, ao exemplificar os performativos, demonstra que ao
proferir as sentenças não se está descrevendo o ato e sim o realizando.

Exemplos: “Aceito, esta mulher como minha legítima esposa” – do modo


que é proferido no decurso de uma cerimônia de casamento.
“Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth” – quando proferido ao
quebrar-se a garrafa contra o casco do navio.
“Lego a meu irmão este relógio” – tal como ocorre em um testamento. “Aposto
cem cruzados como vai chover amanhã”. (Austin, 1990, p. 24)

Como dito, os performativos por expressarem ações não se sujeitam aos


critérios de “verdade” e “falsidade”, contudo, como toda ação, podem ser bem ou mal
- sucedidas, ao que Austin chamará de “condições de felicidade” em sua II
Conferência (Austin, 1990, p.29).

Além do proferimento das palavras chamadas performativas, muitas outras


coisas em geral têm que ocorrer de modo adequado para podermos dizer que
realizamos, com êxito, a nossa ação. Quais são essas coisas esperamos
descobrir pela observação e classificação dos tipos de caso em que algo “sai
errado” e nos quais o ato – isto é, casar, apostar, fazer um legado, batizar,
etc. – redunda, pelo o menos em parte, em fracassar. Em tais casos não
devemos dizer de modo geral que o proferimento seja falso, mas malogrado.
Por esta razão chamamos a doutrina das “coisas que podem ser ou resultar
malogradas”, por ocasião de tal proferimento, de doutrina das “infelicidades”
(Austin, 1990, p. 30).

Fonte: portugues.com.br

19
Assim, para que um ato de fala performativo possa se constituir em uma ação
“feliz” ele deve satisfazer a algumas condições, que podem ser agrupadas em dois
tipos, às que se referem às convenções (as enunciações devem responder a
determinadas convenções ou serão nulas. Exemplo: um casamento realizado perante
o capitão do navio e não perante a um padre não é válido) e às que dizem respeito à
intenção (as enunciações devem ser sinceras e exprimir a reta intenção ou
configurarão um “abuso”) (Penco, 2006, p. 156). Como se pode inferir, não respeitar
as convenções é mais grave do que ser “insincero”, ou seja, praticar um ato de fala
contrário à intenção. Embora os dois determinem que o performativo seja malogrado,
no caso de desrespeitar-se uma convenção, como se casando perante o capitão do
navio, o ato de “casar” é nulo ou sem efeito. Já o casamento realizado em atenção às
convenções, mas sem a intenção de realizar o ato, como no caso de coação de um
dos nubentes, o ato de “casar” será concretizado, não será nulo, ainda que possa ser
desfeito em momento posterior em razão da coação. Como só se desfaz o que foi
consumado, conclui-se que o desrespeito a uma convenção determina a não produção
de efeitos do ato, sendo mais grave, enquanto o desrespeito à intenção, não impede a
efetivação do ato, mesmo que depois este possa ser desfeito (Austin, 1990, p. 32).
Após distinguir os proferimentos performativos dos constatativos e concluir que
os atos performativos possuem uma dimensão constatativa e vice e versa, pode-se
falar então que usar a linguagem é uma ação que contém elementos constatativos e
performativos, devendo a teoria do ato de fala performativo ser estendida para toda a
linguagem, como uma teoria geral da ação (Austin, 1990, p.122), em que o “ato de
fala” é a unidade básica de significação (Marcondes, 2005, p. 18).
Os atos de fala têm diferentes dimensões, podendo os atos serem
locucionários (ato “de” dizer algo), ilocucionários, que são o núcleo dos atos de fala
e tem como aspecto a força ilocucionária, consistente no uso performativo
propriamente dito (que realiza uma ação ao ser dito) e perlocucionário (em que há
intenção de provocar nos ouvintes certos efeitos). Nem todos os atos de fala possuem
as três dimensões, isso porque depende da força ilocucionária que está ligada às
interações sociais que se estabelecem entre os sujeitos falantes, que podem ser de
cooperação, de determinação, de autoridade e etc.

20
Em geral, o ato locucionário como o ato ilocucionário é apenas uma
abstração: todo ato linguístico genuíno é ambas as coisas de uma só vez
(Austin, 1990, p.121). O efeito equivale a tornar compreensível o significado
e a força da locução. Assim, a realização de um ato ilocucionário envolve
assegurar sua apreensão. O ato ilocucionário “tem efeito” de certas maneiras,
o que se distingue de produzir consequências no sentido de provocar estado
de coisas de maneira “normal”, isto é, mudanças de no curso normal dos
acontecimentos (Austin, 1990).

O ato locucionário ou locutório para Austin é definido fundamentalmente pelos


aspectos fonéticos, sintáticos e semânticos. Já os atos ilocucionários, tidos como
centrais na teoria dos atos de fala, serão caracterizados pelas forças ilocucionárias
que consistem no performativo propriamente dito. Quando digo “Aposto cem cruzados
que vai chover amanhã”, não estou descrevendo algo, nem declarando uma intenção
e sim realizando uma ação: a aposta. Portanto, “apostar” é um performativo e, quando
profiro a sentença, a força do meu ato é a da aposta. O estudo das classes de “força
ilocucionária” é o tema da última Conferência de Quando dizer é fazer.
Deixando de lado a ideia de elaborar uma lista de verbos performativos
explícitos, Austin reconhece que sua teoria precisa é de uma lista das forças
ilocucionárias de um proferimento (Austin, 1990, p.123), o que ele faz determinando
cinco classes de proferimentos em função de sua força ilocucionária.

Os primeiros, veriditivos, caracterizam-se por dar um veredicto, como o nome


sugere, por um corpo de jurados, por um árbitro, ou por um desempatador.
(...) constituem essencialmente o estabelecimento de algo – fato ou valor – a
respeito do qual, por diferentes razões, é difícil estar seguro. Os segundos,
os exercitivos, consistem no exercício de poderes, direitos ou influências. Por
exemplo: designar, votar, ordenar, instar, aconselhar, avisar e etc. Os
terceiros, os comissivos, caracterizam-se por prometer ou de alguma forma
assumir algo, comprometem a pessoa a fazer algo, incluem também
declarações ou anúncios de intenção, que não constituem promessa (...) os
quartos, comportamentais, constituem um grupo muito heterogêneo, e têm a
ver com atitudes e comportamento social. Exemplos são: pedir desculpas,
felicitar, elogiar, dar os pesamos, maldizer e desafiar. Os quintos, os
expositivos, são difíceis de definir. Eles esclarecem o modo como nossos
proferimentos se encaixam no curso de uma argumentação ou conversa (...).
Exemplos são: “contesto”, “argumento”, “concedo”, “exemplifico”, “suponho”,
“postulo” (Austin, 1990. p. 123-124)

No fim de suas conferências, Austin esclarece que apresentou um programa,


em que disse o que deve ser feito ao invés de fazê-lo (Austin, 1990, p.132). Tal
programa serviu de ponto de partida para outros filósofos, dentre eles John R. Searle,
que além de ter desenvolvido uma classificação alternativa de atos ilocucionários,

21
reelaborou o conjunto de componentes da força ilocucionária. Searle ainda definiu os
“atos de fala indiretos”, como sendo os que sem pedir diretamente que se realize a
ação, os atos linguísticos indiretos sugerem isto implícita e indiretamente. São
exemplos de atos de fala indiretos as perguntas: “Sabe que horas são?”, “Pode
passar-me o sal?”. São perguntas que, embora tenham força de uma pergunta,
desempenham a função de ordens ou pedidos, não sendo satisfatórias as respostas
diretas como “sim” ou “não” (Penco, 2006, p. 160).
Austin (1990, p. 69) esclarece que a linguagem não é clara, o que reforça a
necessidade de instrumentos extralinguísticos para conferir sentido ao enunciado:

As formas primitivas ou primárias dos proferimentos conservam, neste


sentido, a “ambiguidade”, ou “equivoco”, ou o “caráter vago” da linguagem
primitiva. Tais formas não tornam explícita a força exata do proferimento. (...)
A linguagem em si, e nos seus estágios, não é precisa, nem explícita, no
sentido que demos a esta palavra (Austin, 1990, p. 69).

Fonte: letrasnaoencontradas.com

A contribuição de Austin e de seus sucessores, como Searle, para os estudos


da pragmática é inquestionável, vez que o filósofo desenvolveu a partir da teoria do
“segundo” Wittgenstein sobre “jogos de linguagem” o importante conceito de “atos de
fala” e a classificação da força ilocucionária dos atos performativos, superando então
a ideia da linguagem como descrição e afirmando que a linguagem é um meio de agir
sobre o ouvinte e sobre o mundo. Desta maneira, enquanto a Linguística se preocupa

22
em explicar o sistema ou o conhecimento, a Pragmática busca compreender a
produção e a interpretação completa dos enunciados, analisando o uso da linguagem
em geral (Forin, 2002, p. 185). Forin diz que “o estudo do uso é absolutamente
necessário, pois há palavras e frases cuja interpretação só pode ocorrer na situação
concreta da fala”. Este estudo do uso da linguagem e sua estrutura são conhecidos
como pragmática (Forin, 2002, p. 167).
Muitas vezes o texto ou o enunciado verbal não é diretamente compreensível
através dos métodos clássicos de interpretação, como a busca do significado de cada
uma das palavras ou mesmo da relação entre elas, sendo necessária a verificação do
contexto e do uso das palavras, como propagava Wittgenstein ao falar dos “jogos de
linguagem”. Com Austin, verificou-se ainda que os enunciados têm natureza
performativa e que ao falar, o sujeito realiza uma ação. De tudo isso, percebeu-se a
importância do desenvolvimento de um método, de uma teoria ou de uma forma de
compreensão que não se restringisse ao que é literalmente dito e ao exclusivamente
linguístico. Tornou-se decisiva a inclusão da análise de fatores extralinguísticos que
configuram o ato comunicativo (Vidal, 1999, p. 22). Com esta inclusão passou-se a
falar de uma perspectiva pragmática, cujo objeto de estudo ainda é controverso na
doutrina.
Koch (2008, p.30) para explicar que o sentido de um texto não está no texto,
mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação recorre à “metáfora do
iceberg”:

Como este, todo texto possui apenas uma pequena superfície exposta e uma
imensa área imersa subjacente. Para se chegar às profundezas do implícito
e dele extrair um sentido, faz-se necessário o recurso aos vários sistemas de
conhecimento e a ativação de processos e estratégias cognitivas e
interacionais (Koch, 2008, p.30).

Dascal (2006) busca uma definição para a pragmática, bem como as diferenças
desta para a semântica. Todavia, embora com o reconhecimento das distinções,
reconhece e afirma a existência de uma relação de interdependência entre a
pragmática e a semântica7. Para o Autor, a pragmática possui um “domínio, específico
e bem definido, de objetos a serem investigados: as intenções comunicativas” (2006,
p. 44).
Criticando a inclusão de fenômenos diversos e variados no campo da
pragmática, Dascal (2006, p.8) busca estabelecer um critério distintivo. Nesse
23
desiderato Carnap apud Dascal (2006, p.29) estabelece um modelo residual, nome
dado por Dascal, para a definição do domínio da pragmática, dizendo que enquanto a
semântica e a sintaxe são disciplinas teóricas, a pragmática é “tão somente uma
disciplina empírica”, que não possui método próprio e faz uso, em vez disso, “dos
resultados de diferentes ramos da ciência (principalmente da ciência social, mas
também da física, da biologia e da psicologia) ”. Para ele a pragmática é uma disciplina
que lida com os fenômenos linguísticos com que as outras disciplinas linguísticas
(principalmente a semântica) não têm obrigação de lidar.
Uma vez encontradas as características sintáticas de uma linguagem através
da pragmática, podemos desviar nossa atenção dos usuários da língua e voltarmos
os nossos olhos para as características semânticas e sintáticas. (Canarp apud Dascal,
2006, p. 29)
Dascal (2006, p. 30) rejeitando este modelo, por ele mesmo nomeado como
residual, vez que a pragmática é definida como tudo o que não é tratado pela
semântica e pela sintaxe, busca o desenvolvimento de uma teoria mais sólida do
objeto e dos métodos da pragmática, que não se confunda com objetos de outras
disciplinas, especialmente, a semântica e a sintaxe. Nesta busca, utiliza como ponto
de partida, “os resíduos de outras teorias” (Dascal, 2006, p. 31).
Segundo Dascal (2006, p.31), toda teoria pragmática do século XX é uma
tentativa de reciclar o “rico material que Frege descartou em sua cesta de lixo”.
Frege apud Dascal (2006, p. 31) diz que a semântica está interessada
exclusivamente nos aspectos do significado relativos à verdade das sentenças.
Assim, um enunciado tem sentido porque expressa uma proposição que pode ser
avaliada como sendo verdadeira ou falsa. Para ele existem aspectos do
“significado” que, não sendo relevantes para a verdade de um enunciado, não são
de interesse da teoria semântica. São três tipos de sentença que contêm
fenômenos do significado que Frege considera irrelevantes para a preocupação
semântica com a verdade:

Sentenças que não levantam a questão da verdade (ordens, pedidos,


promessas e etc.); (b) sentenças que exprimem mais que “pensamentos”
(sentenças cuja finalidade é excitar os sentimentos ou a imaginação do
ouvinte, assim como insinuações e expectativas); (c) sentenças que não são
suficientes por si só, para expressar um “pensamento” (demonstrativos,
pronomes, advérbios de tempo e etc.).

24
Com o tempo, cada um destes aspectos do significado foi objeto paradigmático
da pragmática, sendo que cada uma destas escolhas pressupõe um modelo residual
de definição, pois caracteriza a pragmática como a que estuda aspectos do significado
que estão fora do domínio da semântica. E, em cada uma destas escolhas, utiliza-se
de seu próprio critério “positivo”, segundo o qual se define um fenômeno como
pragmático (Dascal, 2006, p.31).
Todavia, todos os critérios cogitados, são dados como insuficientes para
estabelecer-se um conjunto coerente de aspectos que possam ser distintos de uma
teoria semântica, isso porque mesmo a teoria semântica necessita de aspectos
contextuais sem que isso a torne pragmática.4

4 ANÁLISE HERMENÊUTICA DA LINGUAGEM

Historicidade e Linguagem

Contrapondo-se à negação da história representada pelo cientificismo


positivista e neopositivista, existe uma linha de filósofos que parte de Nietzsche e
passa por Heidegger e pelos existencialistas, afirmando a historicidade do homem e
do seu conhecimento.

Fonte: novaresistencia.org

4 Texto extraído de: www.maxwell.vrac.puc-rio.br

25
Essa postura anticientífica e historicista é tipicamente qualificada como a
filosofia continental, em oposição à filosofia analítica de matriz tipicamente anglo-
saxã. Porém, por mais que essa divisão persista até os dias de hoje, sendo
caracterizáveis diferenças fundamentais na formação típica dos filósofos e dos estilos
de discurso envolvidos no labor filosófico, as linhas de força que inspiram esses
grandes modelos passaram a se encontrar com bastante frequência, especialmente
no período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Um dos maiores responsáveis por essa convergência foi Wittgenstein, que é
um dos filósofos da linguagem mais lidos pela tradição continental, especialmente
porque ele propôs em suas obras póstumas conceitos linguísticos que se
contrapunham à filosofia analítica tradicional e que abriram espaço para uma espécie
de historicização da linguagem. Em vez de se preocupar apenas com a formalização
da linguagem e da garantia de rigor e precisão necessários para uma linguagem
científica, Wittgenstein foi o grande responsável pelo nascimento de uma filosofia da
linguagem ordinária, em que a busca não era a de estabelecer uma linguagem
purificada, mas de compreender o modo como as linguagens naturais efetivamente
funcionam.
O principal conceito que ele desenvolveu foi o de jogo de linguagem,
rompendo com a noção cientificista de que a perfeição linguística estava no rigor e na
precisão, e afirmando existência de uma pluralidade de jogos linguísticos, cada qual
com suas regras e elementos. Segundo Warat, contrapondo-se à ideia de que a
linguagem natural era inadequada ao conhecimento, Wittgenstein passou a defender
que faltava ao neopositivismo lógico uma compreensão filosófica adequada dos
mecanismos que regem as linguagens ordinárias: enquanto estes estudos se
limitavam aos planos sintáticos e semânticos, uma compreensão das linguagens
ordinárias dependia de uma análise pragmática.
Essa virada pragmática gera uma abertura para além do cientificismo e da
lógica, mas ainda não é uma abertura historicista, pois “a análise pragmática da
filosofia da linguagem ordinária não se estendeu aos fatores sócio-políticos”,
ignorando a necessária inserção histórica da linguagem. Porém, a generalização do
conceito de jogo construiu uma ponte entre a filosofia da linguagem e a o historicismo
continental, na medida em que ela possibilita a percepção das relações sociais como
interações linguísticas, mas sem recair no cientificismo logicista do neopositivismo.

26
A partir desse giro pragmático, a filosofia da linguagem passou a desenvolver
instrumentos para uma compreensão linguística de problemas históricos, que
gradualmente passaram a integrar o instrumental teórico dos filósofos continentais.
Por exemplo, a reflexão sobre o nível pragmático da linguagem permitiu uma conexão
das preocupações linguísticas com a crítica da ideologia da Escola de Frankfurt, cujos
desenvolvimentos de matriz linguístico estão na base da influente teoria da ação
comunicativa de Habermas. Habermas, por sua vez, deve bastante às investigações
de Apel, cuja obra tenta articular uma combinação entre a filosofia analítica e a
hermenêutica.
Inspiração pragmática também tem a arqueologia proposta por Foucault, indo
além do estruturalismo (que tinha influências da teoria da linguagem, mas mantinha-
se em um nível predominantemente semântico) para investigar na origem dos
discursos as relações entre o saber e o poder. O desconstrutivismo de Derrida
também ressalta o papel da linguagem, pois somente pode ser desconstruído aquilo
que foi construído histórica e linguisticamente. Mesmo a teoria dos sistemas de
Luhmann, na qual ainda há uma presença maior de um cientificismo, define as
relações sociais como interações linguísticas.
Assim, nas décadas de 50 e 60, ocorre no campo de domínio da filosofia
continental uma espécie de universalização do fenômeno linguístico, com um uso cada
vez mais ampliado de conceitos ligados à filosofia da linguagem. Essa mesma
tendência se opera também no campo do direito, em que a teoria da argumentação
de Perelman tenta restaurar a dignidade da retórica, que havia sido posta de lado no
ambiente cientificista da modernidade. Na mesma época, Viehweg chamava atenção
para o caráter tópico do pensamento jurídico, que não se deixa descrever nos quadros
de um sistema de conceitos semanticamente definidos. Posteriormente, outras
vertentes linguísticas ganharam força, como a teoria da argumentação de Alexy e as
teorias hermenêuticas de Dworkin.

O círculo hermenêutico

No campo da hermenêutica, o maior protagonista nessa aproximação entre


historicidade e linguagem foi Hans-Georg Gadamer, que operou uma espécie de
releitura linguística dos conceitos hermenêuticos propostos por Heidegger no campo

27
da ontologia. Assim, mesmo que se tenha inspirado explicitamente na hermenêutica
da facticidade heideggeriana, foi de Gadamer o grande esforço no sentido de levar
essa renovada preocupação hermenêutica ao campo da interpretação dos objetos
culturais, dedicando-se ele especialmente a investigar o modo como interpretamos as
obras de arte.
Mas por que a arte, e não os textos jurídicos ou bíblicos, que também fazem
parte da preocupação de Gadamer? Em primeiro lugar, porque tanto faz, na medida
em que Gadamer propôs uma universalização do fenômeno hermenêutico que
permitiria estudar a sua ocorrência em qualquer dos seus âmbitos, pois “a
compreensão deve ser entendida como parte da ocorrência de sentido, em que se
formula e se realiza o sentido de todo enunciado, tanto dos da arte como dos de
qualquer outro gênero de tradição”. Então, tratava-se de uma nova universalidade:
depois da universalidade da razão, a universalidade da interpretação, inspirada tanto
por Heidegger quanto pelo giro linguístico.

Fonte: queconceito.com.br

Em segundo lugar, por um motivo estratégico: parece mais aceitável


reconhecer o relativismo na interpretação das obras de arte que em outras áreas
hermenêuticas, pois estamos já condicionados a não exigir da estética a definição
dos cânones objetivos que normalmente se exige das disciplinas dogmáticas como
o direito e a teologia. Então, se a interpretação das obras de arte não pode
28
ser submetida a uma metodologia predeterminada (como Gadamer intui e tenta
mostrar), por que esse método seria possível em outras áreas? Afinal, de contas,
como pode uma pessoa defender consistentemente a subjetividade da
interpretação artística e a objetividade da interpretação jurídica?
Assim, explorar o sentido da interpretação dentro de uma área em que o
relativismo já era consolidado possibilitava a construção de um discurso que não
precisaria bater-se contra as sólidas paredes dos nossos preconceitos dogmáticos.
E depois de elaborada uma concepção hermenêutica nesse âmbito em que o
pensamento é mais livre, parece mais fácil extrapolar o campo artístico mediante a
aplicação a outros espaços dos conceitos ali construídos. Assim, Gadamer inicia
sua obra principal analisando a compreensão da verdade na obra de arte, passa
pela avaliação das peculiaridades da literatura (o que o traz para mais próximo dos
textos verbais), para somente depois estender essa análise à compreensão nas
ciências do espírito.
E como Gadamer descreve a compreensão de uma obra de arte? Em
primeiro lugar, ele retoma a ideia de que, quando recebemos uma informação nova,
avaliamos esse dado com base nas nossas pré-compreensões. Segundo
Gadamer, toda atribuição de sentido tem como base as percepções valorativas dos
indivíduos, e essas percepções são uma mistura de algumas crenças individuais
com muitas crenças socialmente compartilhadas, que formam o pano de fundo de
toda interpretação. Com base nessas compreensões, projetamos um sentido para
todo o texto ou situação analisada, projeção esta que pode ser confirmada ou não
pelo aprofundamento do processo de compreensão. Segundo Gadamer:

“Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar.


Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete projeta um
sentido para o texto como um todo. O sentido inicial só se manifesta
porque ele está lendo o texto com certas expectativas em relação ao seu
sentido. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente
no desenvolvimento dessa projeção, a qual tem que ir sendo
constantemente revisada, com base nos sentidos que emergem à medida
que se vai penetrando no significado do texto”.

29
Dessa forma, o entendimento do texto envolve um constante projetar de
sentidos, com base nas pré-compreensões do intérprete. Entretanto, ao mesmo tempo
em que uma ideia somente pode ser compreendida por meio das pré-compreensões
que uma pessoa já possui, toda informação recebida contribui para a mudança do
conjunto das pré-compreensões. Assim, embora sirvam como base necessária para o
entendimento, as pré-compreensões vão-se transformando a cada passo.
Para entender essa teoria, é útil apelarmos para o exemplo de um filme que
tenha um bom roteiro. Ficam excluídos, desde logo, os filmes em que já se sabe o
final antes de começar a sessão, mas não porque este projetar do final do filme nos
leve para longe da hermenêutica (pelo contrário, trata-se de um exercício
hermenêutico baseado nas nossas pré-compreensões sobre o cinema comercial e
seus produtos), e sim porque o exemplo se torna mais esclarecedor ao lidar com
exercícios hermenêuticos mais complexos.
Quantas vezes entendemos o significado de uma cena que acontece no início
do filme apenas quando chegamos ao final da história? Quantas vezes saímos do
cinema relembrando os episódios iniciais e revendo o modo como eles deveriam ser
interpretados? Isso acontece porque cada cena particular somente pode ser entendida
dentro do contexto da obra completa. Todavia, a obra completa é formada pela
sequência dos episódios particulares.
Logo que começamos a assistir um filme, formamos uma série de expectativas
com relação ao significado de cada cena que nos é apresentada. Essas projeções de
sentido, esses projetos de interpretação, resultam da avaliação do roteiro a partir de
nossas pré-compreensões. Todavia, a cada nova informação recebida, essas
projeções de sentido vão sendo alteradas, o que implica uma modificação gradual no
sentido que atribuímos ao filme. Além disso, cada vez que se modifica a nossa
projeção de sentido sobre o filme, mudam também os significados que atribuímos às
cenas anteriores.
Como observou Gadamer, “esse constante processo de reprojetar constitui o
movimento do compreender e do interpretar”. Nesse processo de vai-e-vem, a nossa
compreensão sobre a obra vai sendo alterada, pois temos necessidade de integrar as
novas cenas em um contexto coerente; além disso, a nossa compreensão de cada
cena particular vai sendo modificada à medida que muda nossa compreensão sobre
o filme como um todo. Dessa forma, tal como cada cena não pode ser compreendida

30
fora do conjunto da obra, o filme não pode ser entendido senão a partir da
compreensão de cada cena particular e das relações entre elas.
Essa conexão circular entre o entendimento do todo e o das partes é tão
aplicável ao cinema quanto ao direito ou a qualquer outro objeto de conhecimento. Na
medida em que tentamos harmonizar as informações que recebemos com as que já
tínhamos, as nossas visões sobre o mundo são enriquecidas e as nossas pré-
compreensões tornadas mais complexas e refinadas. Entretanto, como o conjunto das
nossas pré-compreensões forma a base na qual podemos ancorar os novos
conhecimentos, a nossa capacidade de compreender é limitada pela extensão e
profundidade das nossas pré-compreensões. Em outras palavras, nós temos um
horizonte de compreensão, que envolve todos os nossos conhecimentos e funciona
como um limite para a nossa capacidade de compreender coisas novas. À medida que
nossas pré-compreensões são enriquecidas, esse horizonte é ampliado e nos
tornamos capazes de compreender novos tipos de informações.

Fonte: info.plataformadoletramento.org.br

No momento em que recebemos uma informação nova (Exemplo: a cena inicial


de um filme) não somos capazes de perceber todas as suas implicações. Um
estudante que descobre a existência na Constituição de uma norma jurídica que exige
o tratamento igualitário das pessoas que se encontrem em situações idênticas entra

31
em contato com uma informação nova, que aumenta o seu conjunto de
conhecimentos. Entretanto, o significado dessa informação se amplia na medida em
que o estudante percebe as implicações morais dessa norma, as dificuldades para a
sua aplicação na prática, a sua presença no direito internacional e a sua especial
constância em decisões judiciais.
‘Percebe’, na verdade, é uma palavra ruim, pois indica uma espécie de
passividade cognitiva, como se as relações entre a norma e os seus variados
contextos fossem simplesmente apreendidas por meio de uma observação inerte.
Porém, tais relações precisam ser ativamente traçadas, para que a pessoa se torne
consciente das variadas implicações de uma informação dentro do seu horizonte de
conhecimentos. E, na medida em que relacionamos essas informações com aquelas
que já tínhamos, passamos a conhecer melhor todas elas.
O resultado desse processo, contudo, é sempre provisório, pois os significados
do todo e das partes são continuamente modificados sempre que lidamos com uma
nova informação. Dessa forma, passamos do particular para o contexto e do contexto
para o particular de uma forma cíclica e contínua, motivo pelo qual o processo merece
o nome círculo hermenêutico. Assim, uma metáfora mais adequada para descrever a
compreensão seria a imagem da espiral, pois, a cada volta, em vez de retornarmos ao
mesmo lugar, avançamos para níveis maiores de complexidade. Trata-se, pois, de um
processo infinito, sendo impossível afirmar que, em um dado momento, teremos
chegado à conclusão definitiva.
Porém, a figura da espiral também é enganadora, pois ela sugere que a
interpretação evolui na medida em que ela se torna mais profunda (se a espiral desce)
ou melhor (se a espiral sobe), o que sugere um movimento rumo a um sentido
determinado de perfeição. Porém, isso nos afastaria das críticas com que Nietzsche
atacou a ideia de que o conhecimento é melhor tanto quanto mais profundo, crença
essa que é arraigada na modernidade. Por isso mesmo, a metáfora usada por
Gadamer é a dos círculos, afirmando ele que “a tarefa é ampliar, em círculos
concêntricos, a unidade do sentido compreendido”. Então, o processo não é infinito
porque ele se movimenta rumo a uma verdade inalcançável em sua perfeição, mas
porque as conexões de sentido se tornam mais amplas e densas, e não mais
profundas. Para usar uma metáfora botânica de Deleuze e Guattari, esse processo
dá-se de uma forma rizomática (que apela para metáforas de ampliação,

32
interconexão e redes), e não axial (que utiliza metáforas de profundidade e
proximidade maior com o verdadeiro).
Assim, é quase certo que a interpretação que fazemos das partes iniciais de
um livro será modificada várias vezes até que cheguemos ao final da história. Não
porque nos acercamos de uma verdade imanente ao texto, mas porque elaboramos
uma densa concordância das partes singulares com o todo, que é o único critério
hermeneuticamente válido para constatar a justeza da compreensão. Além disso, a
cada vez que relemos um livro, novos aspectos abrem-se à nossa compreensão e a
ideia que formamos na segunda leitura será sempre diversa da primeira interpretação.
Dessa forma, as nossas interpretações sobre as partes vão sendo modificadas à
medida que muda a nossa compreensão do todo, num processo infinito e reflexivo.
Colocada a questão nesses termos, Gadamer permite uma radicalização do
projeto de uma hermenêutica unitária. Schleiermacher tentou unificar as
hermenêuticas teológica e literária, mas excluiu de suas preocupações a jurídica, por
esta ser fundamentalmente determinada pelo problema dogmático da aplicação. Essa
aplicação, que não exigia uma reprodução do pensamento do autor, mas uma espécie
de extrapolação desse sentido, não encontrava lugar na busca de uma hermenêutica
científica. Seguindo uma inspiração semelhante, Emilio Betti buscou diferenciar a
interpretação em três tipos (cognitiva, reprodutiva e normativa), mas com o objetivo
de estabelecer os métodos adequados para a interpretação normativa, típica de
disciplinas dogmáticas como o direito e a teologia.
Assim, enquanto Shleiermacher tentou aproximar a hermenêutica bíblica da
literária para garantir o seu caráter cognitivo, Betti tentou definir critérios para uma
aplicação adequada das normas, que não poderia ser identificada com uma
interpretação voltada apenas à cognição do sentido do texto. Gadamer, por sua vez,
opõe-se a ambas essas perspectivas, pois ele tenta mostrar que o processo de
compreensão não admite uma tal diferenciação entre interpretação e aplicação, pois
essas são faces de um mesmo processo unitário, na medida em que o processo
circular da compreensão dá-se de forma que elementos ligados à aplicação concreta
e à definição abstrata do sentido influenciam-se reciprocamente.
E uma das riquezas da teoria de Gadamer é justamente a de integrar num
mesmo processo todos os elementos relevantes para a produção do sentido, o que
ressalta a impossibilidade de cindir preocupações cognitivas (ligadas ao

33
sentido verdadeiro) de preocupações dogmáticas (ligadas à aplicação correta).
Assim, a inspiração gadameriana nos leva a evitar tanto a negação do aspecto
cognitivo da hermenêutica jurídica quanto as tentativas de mantê-la isolada das
outras disciplinas interpretativas. Com isso, abre-se um novo espaço para a
articulação entre interpretação jurídica e verdade.

Hermenêutica e Verdade

Verdade e método é o nome do principal livro de Gadamer, no qual ele lançou


as bases da sua teoria hermenêutica. Para um leitor desavisado, o título pode sugerir
que a obra esclarecerá os métodos capazes de conduzir ao conhecimento verdadeiro.
Porém, o objetivo de Gadamer é justamente o oposto, mostrar como o processo de
compreensão não pode ser reduzido à aplicação de métodos predeterminados. Para
ele, a hermenêutica não é nem envolve um método dogmático de interpretação, mas
um estilo que organiza o modo humano de atribuir sentidos para o mundo.

Fonte: conceitos.com

Com isso, Gadamer segue na trilha de Heidegger, reafirmando a ruptura


com a tradição hermenêutica que liga verdade e método, cuja expressão maior foi
o historicismo de Dilthey, que apresentou a hermenêutica como um método que
possibilitaria a superação da distância histórica e temporal, para a leitura da história
como um texto. Nesse tipo de historicismo, Gadamer identifica uma
34
ingenuidade que consiste em que, evitando esse refletir sobre seus próprios
pressupostos e confiando em sua metodologia, o pensador “acaba por esquecer
sua própria historicidade”. Assim, a base da teoria gadameriana é a tese de que
“um pensar verdadeiramente histórico deve pensar também sua própria
historicidade”.
Portanto, o objetivo de Gadamer não era o de oferecer um método
interpretativo capaz de revelar o significado do objeto, mas esclarecer o modo
como os homens conferem sentidos a sua própria atividade. Por isso mesmo é que
ele afirma que o sentido da obra de arte é produzido em uma espécie de jogo que
coloca em relação o intérprete e a obra. E apenas nesse jogo é que os textos
ganham sentido, pois “somente na sua compreensão se produz a transformação
do rastro de sentido morto em sentido vivo”. Então, não há um significado
escondido a ser descoberto, mas um sentido a ser produzido em um jogo
hermenêutico que coloca o intérprete frente à obra interpretada. Nem mesmo o
sentido originalmente intencionado pelo autor deve ser entendido como o sentido
verdadeiro a ser buscado, pois a interpretação não deve ser entendida, como
propunha Schleiermacher, apenas como uma reprodução da produção original de
sentido pelo artista.
Então, se o milagre da compreensão é possível, não é porque existe um
sentido imanente à obra, mas pelo fato de que a produção de sentidos pelo
intérprete não é uma atividade arbitrária, pois não se pode atribuir aos textos um
sentido qualquer. Por isso mesmo é que a ideia de jogo ganha espaço, na medida
em que ela indica uma certa ordem (porque todo jogo tem as suas regras), mas
uma ordem que não é método unificado, porque todo jogo é uma abertura para as
diversas formas de jogar.
Assim, por mais que seja necessário haver critérios de produção de sentido,
eles não podem ser reduzidos a um método interpretativo, como deixa clara a
radical experiência da interpretação das obras de arte: o sentido de uma escultura
não é unívoco nem imutável, o que não quer dizer que seja inexistente. Porém, ele
somente existe como resultado da interação entre o intérprete e uma obra que não
fala por si mesma. Portanto, o significado de uma obra de arte não é simplesmente
atribuído (como se ele derivasse apenas da subjetividade do

35
intérprete) nem descoberto (como se ele derivasse apenas da objetividade da
obra), mas produzido pelo contato do homem com a obra.
E o contato com essa obra nos coloca frente à radical distância ontológica que
temos frente ao Outro. Assim, em vez de acentuar o papel hermenêutico de reduzir as
distâncias históricas, Gadamer acentuou o fato de que a distância está em toda
comunicação, pois ela também se mostra na simultaneidade, pois está ligada ao
momento hermenêutico em que nos encontramos com o Outro. O problema da
hermenêutica é justamente a compreensão desse Outro, que “rompe a centralidade
do meu eu, à medida que me dá a entender algo”. E é justamente nessa abertura para
o outro que ele identifica o problema fundamental da hermenêutica.
E como é possível compreender o Outro contido na obra de arte? É na resposta
a essa pergunta que a hermenêutica gadameriana se define, pois ele afirma que “a
tarefa da hermenêutica é esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma
comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum”. Se é
possível falar que as obras têm um significado, isso não pode ser feito senão em um
sentido figurado, pois o sentido não está nas próprias obras, mas é produzido no
processo de sua interpretação, inclusive pelo seu próprio autor.
Esse deslocamento do lugar do sentido fez com que a teoria de Gadamer fosse
percebida por alguns autores como a defesa de uma espécie de niilismo, que negava
a possibilidade da relação entre interpretação e verdade. Porém, essa é uma
percepção equivocada, pois o que Gadamer faz não é anular a pretensão de
veracidade das interpretações, mas torná-la relativa a uma determinada tradição.
Gadamer acentua que o iluminismo pretendeu ancorar a objetividade do
conhecimento em uma racionalidade universal, capaz de esclarecer a verdade. A
aplicação dessa mentalidade à hermenêutica conduziu à tendência cientificizante, que
via no método a garantia da correspondência objetiva entre o sentido imanente ao
texto e o resultado da interpretação. Porém, Gadamer rejeita essa universalidade na
medida em que ela é baseada em um esquecimento da própria historicidade.
E, por meio da afirmação radical de uma autocompreensão histórica, Gadamer
redescreve a trajetória do Iluminismo, conferindo-lhe um novo significado. A
mentalidade moderna articulou um ataque à tradição medieval, afirmando uma
racionalidade individual cujo caráter universal lhe confere uma validade para além de
todas as tradições. O que marca a reforma protestante é que ela não propôs uma

36
tradição alternativa de interpretação da Bíblia, mas a negação da própria necessidade
de uma tradição hermenêutica. Radicalizando essa posição, os pensadores
Iluministas, como Kant, Rousseau ou Hobbes, não se viam como portadores dos
valores de sua cultura, mas como esclarecedores dos valores universalmente válidos
porque racionais. Nesse contexto, a primazia do método era a garantia de uma
verdade fundada na racionalidade e não em uma tradição.
Após séculos de tentativas de criar um lugar para além da tradição, percebe-se
que o que se criou foi justamente uma nova tradição: uma nova autocompreensão,
uma nova forma hegemônica de conferir significado à própria existência e ação
humanas. É claro que toda tradição se coloca como detentora da verdade universal,
e não se espera que uma religião deixe de afirmar que os seus dogmas, e somente
eles, são objetiva e universalmente válidos. A tradição, seja ela religiosa, cultural ou
epistemológica, nunca se posta como tal, pois ela não tem um caráter reflexivo com
relação à própria historicidade. E, nesse ponto, a tradição iluminista não se diferencia
da católica nem da islâmica nem da medieval.

Fonte: projectmentoring.com

Essa autoconsciência de que a modernidade é uma nova tradição, conduz a


um pensamento renovado sobre o sentido da hermenêutica e sobre o papel da
tradição na produção de conhecimento. Se mesmo nós, que vivemos dentro da
tradição moderna, não podemos sair de dentro da nossa própria cultura, então as
37
pretensões de veracidade não podem ser planteadas em nível universal, mas apenas
em nível cultural. Por isso mesmo, o pertencimento a uma tradição é a condição
necessária para uma compreensão que nunca pode se pretender universal sem
passar os seus próprios limites.
Toda verdade é contextual, toda interpretação é contextual, toda compreensão
é contextual. Todo discurso é interno e, nessa medida, ele pode ter uma validade
objetiva na medida em que ele se coaduna com os critérios de veracidade da tradição
que define o jogo interpretativo que o intérprete joga. E joga sem decidir jogar, pois
ninguém escolhe pertencer à tradição em que está inserido, na medida em que nossa
subjetividade é constituída especialmente dentro da sociedade em que somos
educados — e ninguém escolhe ser educado em uma determinada tradição.
Então, Gadamer não se contrapõe à objetividade da interpretação, mas apenas
a sua universalidade. A verdade universal e imutável não encontra espaço no
pensamento hermenêutico, embora a verdade seja um conceito operativo dentro de
toda tradição interpretativa, pois é com base nela que avaliamos a validade objetiva
de uma determinada interpretação. E daí vem a ênfase de Gadamer na afirmação de
que “a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se
aproximaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo do que um
processo que tem como pressuposição estar dentro de um acontecer tradicional”.
Portanto, é possível falar em uma interpretação verdadeira, mas apenas no sentido de
que ela é adequada aos cânones de uma determinada tradição cultural.
E uma parte relevante dessas tradições hermenêuticas é justamente o conjunto
das regras de interpretação vigentes, estejam elas reunidas ou não de modo
sistemático. Com isso, torna-se claro que o que Gadamer nega não é a necessidade
do método, pois “nenhum pesquisador produtivo pode duvidar de que a pureza
metodológica é indispensável à ciência”. O discurso metodológico linear pode até ser
o modo específico de a ciência falar sobre o mundo, mas esse discurso é mudo sobre
o processo de invenção dos novos métodos. Assim, o cientista não reflete sobre a
legitimidade dos métodos que ele próprio usa nem os modos de sua constituição, e é
nesse ponto que a hermenêutica tem o que dizer, pois ela coloca a autocompreensão
(inclusive do cientista) no centro das atenções. Portanto, a questão da hermenêutica
não é negar a validade dos métodos interpretativos, mas compreendê-los
historicamente como expressões de uma tradição. Não se trata, pois, de oferecer

38
uma metodologia interpretativa que supere as existentes, mas de compreender
adequadamente como essas metodologias operam no processo de compreensão,
contribuindo para que o intérprete não se aliene de sua própria subjetividade e
historicidade.

Hermenêutica e Linguagem

A filosofia tradicional sempre foi consciente de que a linguagem nos prega


peças e buscou a verdade fora da linguagem. Gadamer, porém, sob clara influência
da Filosofia da Linguagem, tenta definir a compreensão como um processo linguístico,
pois “a linguagem é o meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o
entendimento sobre a coisa”. Não existe, portanto, a possibilidade de uma
compreensão imediata das coisas, pois toda compreensão é mediada pela linguagem.
Nesse ponto, o pensamento gadameriano se aproxima da ontologia de Heidegger,
que determina que o homem é sempre um ser-no-mundo. Não existe o homem em
si, a essência humana atemporal, mas apenas uma humanidade que se dá dentro do
mundo. Mas esse mundo em que o homem vive, justamente por sua compreensão auto
reflexiva, não é composto apenas por um conjunto de objetos empíricos, mas por uma
rede de significados: e os significados somente têm lugar dentro da linguagem. Então,
“não somente o mundo é mundo apenas na medida em que vem à linguagem, mas a
linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o
mundo”.
Assim, não é certo que a linguagem represente a realidade (no sentido de ela
oferecer uma descrição linguística de fatos extralinguísticos), mas nós representamos
o real em linguagem (ou seja, moldamos um mundo para nós, que não é composto de
fatos, mas de interpretações). Portanto, a realidade humana e uma realidade
fundamentalmente linguística, pois nós habitamos a interpretação de mundo que
chamamos de Realidade. Assim, a linguagem “é a interpretação prévia pluri
abrangente do mundo, e por isso insubstituível. Antes de todo pensar crítico, filosófico-
interventivo, o mundo já sempre se nos apresenta numa interpretação feita pela
linguagem”.
Nessa medida, a hermenêutica é incompatível com a crença científica
fundamental de que a verdade se dá por uma espécie de correspondência entre uma

39
frase e o próprio ser do mundo, correspondência essa que pode ser medida
objetivamente na medida em que estabelecemos um espaço de observação neutra da
realidade. Então, a verdade de um enunciado não se mede por uma espécie de
adequação entre o dito e o fato (cuja correspondência o método tenta garantir), mas
pela conexão de sentido entre os nossos enunciados e a tradição cultural de onde
falamos.

Fonte: papodeprimata.com.br

Não há, portanto, um lugar neutro da fala. Nesse sentido, Gadamer afirma que,
mesmo quando conseguimos superar os preconceitos e barreiras de nossa
experiência e nos introduzimos em mundos linguísticos diferentes, nunca
abandonamos nosso próprio mundo. “Como viajantes, sempre voltamos para casa
com novas experiências. Como perambulantes, que jamais irão voltar para casa,
também não podemos esquecer totalmente”. Então, somos como o Marco Polo de
Calvino, que diz algo de Veneza sempre que descreve alguma cidade a Kublai Khan.
Saber desse condicionamento, porém, não nos livra dele. Um certo marxismo propôs
a ideia de que o homem, consciente de que seu pensamento é ideologicamente
condicionado pela história, poderia livrar-se dessa ideologia e conquistar uma verdade
objetiva. Porém, nunca podemos deixar o mundo que habitamos, pois, a nossa
condição é justamente a de habitar o mundo simbólico em que vivemos.

40
Porém, se a consciência do condicionamento não a cancela, ela pode ter uma
função terapêutica. Ao menos parece ser essa a intuição de Freud, que inaugura a
psicanálise como um discurso auto compreensivo e circular, que nos ajuda a
compreender nossos próprios condicionamentos e a conviver com eles. Nesse ponto,
psicanálise e hermenêutica se encontram: a produção de sentidos, derivada de uma
autocompreensão, não nos liberta do círculo de condicionamentos que molda nossa
subjetividade, mas possibilita uma relação mais transparente com eles.5

5 ESTRUTURALISMO LINGUÍSTICO E SEMIÓTICA

Fundamentação Teórica do Estruturalismo Linguístico

Os intelectuais da época não ficaram indiferentes ao mundo que os circundava.


Na França, poderiam ser encontrados os mais brilhantes pensadores do século XX.
Paris mais parecia à capital intelectual da Europa. Estavam em pleno ativismo político
figuras como Sartre, Althusser, Foucault, Deleuze, Pêcheux, Lacan, Lévi-Strauss,
Barthes, Derrida, Bourdieu, Todorov, Benveniste e Castoriadis, para não citar outros.
Debatiam sobre todos os assuntos, principalmente os que gravitavam em torno do
estruturalismo e do marxismo. “Duas grades de leitura sem as quais é impossível
entender os caminhos percorridos pela análise do discurso francesa”.
De todos os países europeus, a França foi aquela em que o estruturalismo teve
maior ressonância, um fenômeno que culminou no final dos anos 1960, num momento
em que vários movimentos de contestação política chegaram a colocar em crise uma
série de valores estabelecidos, naquele país. As duas guerras mundiais fizeram ruir
os valores e tradições que apoiavam o mundo moderno. As teses iluministas, aos
poucos, foram deixadas de lado. A razão humana havia produzido uma era de
catástrofes.
O progresso tecnológico serviu para o extermínio de milhares de pessoas e
devastar a natureza. O otimismo das Luzes foi substituído pelo medo e pela
insegurança do pós-guerra. Como Hobsbawm explica, “não era a crise de uma forma
de organizar sociedades, mas de todas as formas tudo que era sólido parecia “se
desmanchava no ar”“. Foi uma crise das crenças e supostos sobre os quais se apoiava
a sociedade moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra

41
os Antigos, no início do século XVIII, uma crise das teorias racionalistas e humanistas
abraçadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo comunismo.
Naqueles anos, ficou evidente a necessidade de se fazer rupturas com dezenas
de conceitos, até então, inquestionáveis. “O movimento de maio de 68 e as novas
interrogações que surgiram de súbito no âmbito das ciências humanas foram decisivos
para subverter o paradigma então reinante”. No final dos anos 1960, começam a
aparecer às primeiras fissuras na hegemonia do estruturalismo. O ideal de
cientificidade requeria de qualquer disciplina uma primorosa delimitação do objeto, a
ponto de evidenciar suas leis de invariância. Saussure precisou encontrar na
heteroclicidade da linguagem, algo sistêmico e homogêneo. O famoso “corte
saussuriano” veio solucionar esse impasse.
A oposição langue e parole constituiu a primeira “bifurcação” de seu construto
teórico. Essa é a primeira bifurcação que se encontra quando se procura estabelecer
a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossíveis de trilhar ao
mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente. Pode-se, a rigor, conservar o
nome de Linguística para cada uma dessas duas disciplinas e falar de uma Linguística
da fala. Será, porém, necessário, não confundi-la com a linguística propriamente dita,
aquela cujo objeto é a língua. Segundo Saussure: O estudo da linguagem comporta,
portanto, duas partes: um, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua
essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra,
secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive
à fonação e a psicofísica. Os estruturalistas consideram a língua como um sistema de
relações ou mais precisamente como um conjunto de sistemas ligado uns aos outros,
cujos elementos (fonemas, morfemas, palavras, etc.).

(...) primeiro por conceber a linguagem como um instrumento de interação


social, e segundo por buscar no contexto discursivo a motivação para os fatos
da língua. Para esses estudiosos a estrutura gramatical depende do uso que
se faz da língua, ou seja, a estrutura é motivada pela situação comunicativa.
Nesse sentido, a estrutura é uma variável dependente, pois os usos da língua,
ao longo do tempo, é que dão forma ao sistema. (OLIVEIRA, 2006, p. 98).

Com o corte da língua e fala e os conceitos de sistema e sincronia, Saussure


elimina da linguística científica a fonologia, o enunciado, o referente, o sujeito, a cultura
e a história. Essas “exclusões” vão ser incluídas no debate linguístico por volta dos
anos 1950, por vários estudiosos, que vão ficar conhecidos como estruturalistas.

42
“Embora reconhecendo o valor da revolução linguística provocada por Saussure, logo
se descobriram os limites dessa dicotomia pelas consequências advindas da exclusão
da fala do campo dos estudos linguísticos”. O conceito clássico de estrutura é o
seguinte: “um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma que
toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação dos
outros elementos e relações”. Como se percebe, é um conceito muito próximo ao de
sistema. Há certa vulgata no uso frequentemente indiferenciado dos termos sistema e
estrutura.

Fonte: encrypted-tbn0.gstatic.com

Entretanto, eles não recobrem necessariamente os mesmos dados, mesmo se


eles são indissociavelmente ligados do ponto de vista teórico. É fato que a afirmação
do conceito de sistema remete frequentemente àquele de estrutura, tanto que existe
de um a outro uma dinâmica de mútua remissão. É preciso lembrar aqui que na teoria
linguística, a circulação do conceito de sistema precede o emprego do conceito de
estrutura. O método saussuriano encontrou no antropólogo francês Lévi-Strauss o seu
mais contundente divulgador. Foi a partir de então que o método originalmente
linguístico se estendeu para outras disciplinas, de modo que hoje, não dá mais para
se falar de um único estruturalista.

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(“...) Chamamos estruturalismos os esforços de aplicação (ou de elaboração)
de métodos originalmente concebidos em linguística, e que atingem hoje qualquer um
dos campos das ciências humanas” (LEPARGNEUR, 1973, p. 4).
Assim, o estruturalismo é a modalidade de pensar e um método de análise
praticado nas ciências do século XX, especialmente nas áreas das humanidades.

O curso de Sausure

Ferdinand de Saussure é geralmente visto como o iniciador do estruturalismo,


especificamente em seu livro de1916 'Curso de Linguística Geral'. Ainda que Saussure
fosse, assim como seus contemporâneos, interessado em linguísticas históricas,
desenvolveu no Curso uma teoria mais geral de (estudo dos signos).
Essa abordagem se concentrava em examinar como os elementos da
semiologia linguagem se relacionavam no presente ('sincronicamente' ao invés de
'diacronicamente'). Assim ele focou não no uso da linguagem (o falar, ou a parole),
mas no sistema subjacente de linguagem (idioma, ou a langue) do qual qualquer
expressão particular era manifestação. Enfim, ele argumentou que sinais linguísticos
eram compostos por duas partes, um 'significante' (o padrão sonoro da palavra, seja
sua projeção mental - como quando silenciosamente recitamos linhas de um poema
para nós mesmos - ou sua realização física como parte do ato de falar) e um
'significado' (o conceito ou o que aquela palavra quer dizer). Era totalmente diferente
das abordagens anteriores à linguagem, que se focavam no relacionamento entre
palavras e as coisas que elas denominavam no mundo.
Concentrando-se na constituição interna dos sinais ao invés da sua relação
com os objetos no mundo, Saussure fez da anatomia, estrutura da linguagem, algo
que pode ser analisado e estudado.

Origens e Concepções do Estruturalismo Linguístico

O estruturalismo linguístico nasceu quando Ferdinand de Saussure pretendeu


atingir leis gerais do funcionamento de uma língua. O estruturalismo etnológico nasceu
quando Claude Lévi-Strauss pretendeu atingir as leis gerais do funcionamento de
certas estruturas culturais, especificamente aquelas que regem os sistemas de
parentesco ou as que regem a produção dos mitos em culturas arcaicas. Para Barthes,

44
o objetivo da atividade estruturalista: “é reconstituir um objeto, de modo a manifestar
nessa reconstituição as regras de funcionamento (as funções) desse objeto”. O
estruturalista toma a estrutura pelo real. Recompondo o objeto para fazer aparecer
suas funções, pensa, na verdade, estar encontrando as funções do real a que a
estrutura pertence. Já para Lepargneur, o trabalho do estruturalista consiste em
“descobrir, por trás das aparências, além da organização aparente do objeto,
estruturas inteligíveis que expliquem certo funcionamento, e isso num campo que se
relaciona com a atividade humana”.
De acordo com Gregolin(2004, p.21) o estruturalismo chega à França em
consequência do encontro de Roman Jakobson com Lévi-Strauss nos EUA. “A partir
deles, deu-se a chegada das ideias estruturalistas na França, no início dos anos 1950”.
O estruturalismo é uma abordagem que veio tornar um dos métodos mais
extensamente utilizados para analisar a língua, e a sociedade na segunda metade
deum dos pioneiros do pensamento estruturalista foi Saussure, ao formular uma
abordagem da Linguística onde a língua se apresenta como um sistema estruturado.
Esta linha a ser chamada de Semiótica, através de autores como Roland Barthes.
Também se apoiando no caminho aberto por Saussure e aplicando-o ao estudo dos
mitos, Lévi-Strauss apresenta-se como o grande nome associado à antropologia
estrutural.
Entretanto, "estruturalismo" não se refere a uma "escola" claramente definida
de autores, embora o trabalho de Ferdinand de Saussure seja geralmente considerado
um ponto de partida.
O estruturalismo é mais bem visto como uma abordagem geral com muitas
variações diferentes. Como em qualquer movimento cultural, as influências e os
desenvolvimentos são complexos. (...) a língua não é um conglomerado de elementos
heterogêneos; é um sistema articulado, onde tudo está ligado, onde tudo é solidário e
onde cada elemento tira seu valor de sua posição estrutural (SAUSSURE apud
LEROY, 1971, p. 91).
Quando se refere à posição estrutural, fala-se da língua culta, que precisa ser
bem administrada, no qual Saussure organiza a linguística verificando a importância
da língua e da fala.

45
As Dicotomias enunciadas por Saussure

Língua x Fala

Saussure também efetua, em sua teorização, uma separação entre língua e


fala. Para ele, a língua é um sistema de valores que se opõem uns aos outros e que
está depositado como produto social na mente de cada falante de uma comunidade,
possui homogeneidade e por isto é o objeto da linguística propriamente dita. Diferente
da fala que é um ato individual e estão sujeitos a fatores externos, muitos desses não
linguísticos e, portanto, não passíveis de análise.

Fonte: rioeduca.net

Sincronia x Diacronia

Ferdinand de Saussure enfatizou uma visão sincrônica, um estudo descritivo


da linguística em contraste à visão diacrônica do estudo da linguística histórica,
estudo da mudança dos signos no eixo das sucessões históricas, a forma como o
estudo das línguas era tradicionalmente realizada no século XIX. Com tal visão
sincrônica, Saussure procurou entender a estrutura da linguagem como um
sistema em funcionamento em um dado ponto do tempo (recorte sincrônico).

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Sintagma x Paradigma
O sintagma, definido por Saussure como “a combinação de formas mínimas
numa unidade linguística superior”, e surge a partir da linearidade do signo, ou seja,
ele exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo, pois um
termo só passa a ter valor a partir do momento em que ele se contrasta com outro
elemento. Já o paradigma é, como o próprio autor define, um "banco de reservas" da
língua fazendo com que suas unidades se oponham, pois, uma exclui a outra. Pois, o
signo linguístico constitui-se numa combinação de significante e significado, como se
fossem dois lados de uma moeda.1

6 LINGUAGEM E PENSAMENTO

Origens do pensamento e da língua de acordo com Vygotsky

Assim como no reino animal, para o ser humano pensamento e linguagem têm
origens diferentes. Inicialmente o pensamento não é verbal e a linguagem não é
intelectual. Suas trajetórias de desenvolvimento, entretanto, não são paralelas – elas
cruzam-se. Em dado momento, a cerca de dois anos de idade, as curvas de
desenvolvimento do pensamento e da linguagem, até então separadas, encontram-se
para, a partir de aí dar início a uma nova forma de comportamento. É a partir deste
ponto que o pensamento começa a se tornar verbal e a linguagem racional.
Inicialmente a criança aparenta usar linguagem apenas para interação superficial em
seu convívio, mas, a partir de certo ponto, está linguagem penetra no subconsciente
para se constituir na estrutura do pensamento da criança.

Pensamento, Linguagem e desenvolvimento intelectual

De acordo com Vygotsky, todas as atividades cognitivas básicas do indivíduo


ocorrem de acordo com sua história social e acabam se constituindo no produto do
desenvolvimento histórico-social de sua comunidade. Portanto, as habilidades
cognitivas e as formas de estruturar o pensamento do indivíduo não são determinadas
por fatores congênitos. São, isto sim, resultado das atividades praticadas de acordo
com os hábitos sociais da cultura em que o indivíduo se desenvolve.

1 Texto extraído de: www.recantodasletras.com.br

47
Consequentemente, a história da sociedade na qual a criança se desenvolve e a
história pessoal desta criança são fatores cruciais que vão determinar sua forma de
pensar. Neste processo de desenvolvimento cognitivo, a linguagem tem papel crucial
na determinação de como a criança vai aprender a pensar, uma vez que formas
avançadas de pensamento são transmitidas à criança através de palavras.
Para Vygotsky, um claro entendimento das relações entre pensamento e língua
é necessário para que se entenda o processo de desenvolvimento intelectual.
Linguagem não é apenas uma expressão do conhecimento adquirido pela criança.
Existe uma inter-relação fundamental entre pensamento e linguagem, um
proporcionando recursos ao outro. Desta forma a linguagem tem um papel essencial
na formação do pensamento e do caráter do indivíduo.

A teoria de Piaget sobre a Linguagem e o Pensamento das crianças

A psicologia deve muito a Jean Piaget. Não é exagero dizer-se que ele
revolucionou o estudo da linguagem e do pensamento infantis, pois desenvolveu o
método clínico de investigação das ideias das crianças que posteriormente tem sido
generalizadamente utilizado. Foi o primeiro a estudar sistematicamente a percepção
e a lógica infantis; além disso, trouxe ao seu objeto de estudo uma nova abordagem
de amplitude e arrojo invulgares. Em lugar de enumerar as deficiências do raciocínio
infantil quando comparado com o dos adultos, Piaget centrou a atenção nas
características distintivas do pensamento das crianças, quer dizer, centrou o estudo
mais sobre o que as crianças têm do que sobre o que lhes falta. Por esta abordagem
positiva demonstrou que a diferença entre o pensamento das crianças e dos adultos
era mais qualitativa do que quantitativa.
Segundo Piaget, o elo que liga todas as características específicas da lógica
infantil é o egocentrismo do pensamento das crianças. Ele reporta todas as outras
características que descobriu, quais sejam, o realismo intelectual, o sincretismo e a
dificuldade de compreender as relações, a este traço nuclear e descreve o
egocentrismo como ocupando uma posição intermédia, genética, estrutural e
funcionalmente, entre o pensamento autístico e o pensamento orientado.
A ideia de polaridade do pensamento orientado e não orientado tomada de
empréstimo à psicanálise. Diz Piaget:

48
O pensamento orientado é consciente, isto é, prossegue objetivos presentes
no espírito de quem pensa. É inteligente, isto é, encontra-se adaptado a
realidade e esforça-se por influenciá-la. É suscetível de verdade e erro... e
pode ser comunicado através da linguagem. O pensamento autístico é
subconsciente, isto é, os objetivos que prossegue e os problemas que põe a
si próprio não se encontram presentes na consciência. Não se encontra
adaptado à realidade externa, antes cria para si próprio uma realidade de
imaginação ou sonhos. Tende, não a estabelecer verdades, mas a
recompensar desejos e permanece estritamente individual e incomunicável
enquanto tal, por meio da linguagem, visto que opera primordialmente por
meio de imagens e, para ser comunicado, tem que recorrer a métodos
indiretos, evocando, por meio de símbolos e mitos, os sentimentos que o
guiam.

Fonte: senhoradesirius.files.wordpress.com

A teoria de Stern sobre o desenvolvimento da Linguagem

A parte do sistema de Wilhelm Stern que é mais conhecida e que tem vindo a
ganhar terreno com o passar dos anos, é a sua concepção intelectualista sobre o
desenvolvimento da linguagem na criança. Contudo, é esta mesma concepção que
mais claramente revela as limitações e as incoerências do personalismo filosófico e
psicológico de Stern, os seus fundamentos idealistas e a sua ausência de validade
científica.
É o próprio Stern quem descreve o seu ponto de vista como “personalista-
genético”. Ele estabelece uma distinção entre três raízes da linguagem: a tendência

49
expressiva, a tendência social e a tendência “intencional”. Enquanto as duas primeiras
estão também subjacentes aos rudimentos de linguagem observados nos animais, a
terceira é especificamente humana. Stern define intencionalidade neste sentido como
uma orientação para um certo conteúdo, ou significado. “Em determinado estádio do
seu desenvolvimento psíquico”, afirma ele, “o homem adquire a capacidade de
significar algo proferindo palavras, de se referir a algo objetivo”. Em substância, tais
atos intencionais são já atos de pensamento; o seu surgimento denota uma
intelectualização e uma objetificação do discurso.

As raízes genéticas do pensamento e da linguagem

O fato mais importante posto a nu pelo estudo genético do pensamento e a


linguagem é o fato de a relação entre ambas passar por muitas alterações; os
progressos no pensamento e na linguagem não seguem trajetórias paralelas: as suas
curvas de desenvolvimento cruzam-se repetidas vezes, podem aproximar-se e correr
lado a lado, podem até fundir-se por momentos, mas acabam por se afastar de novo.
Isto aplica-se tanto ao desenvolvimento filogenético como ao ontogenético.
Ontogeneticamente, a relação entre a gênese o pensamento e a da linguagem
é muito mais intrincada e obscura; mas também aqui poderemos distinguir duas linhas
de evolução distintas, resultantes de duas raízes genéticas diferentes.
A existência de uma fase pré-linguística do desenvolvimento do pensamento
na infância só recentemente foi corroborada por provas objetivas.
Costumava-se dizer que a linguagem era o início da hominização
(Menschwerden); talvez sim, mas antes da linguagem, há o pensamento implicado
na utilização de utensílios, isto é, a compreensão das conexões mecânicas e a
idealização de meios mecânicos com fins mecânicos, ou, para ser ainda mais
breve, antes de surgir a linguagem, a ação torna-se subjetivamente significativa –
por outras palavras, torna-se conscientemente finalista.
A raiz pré-intelectual da linguagem no desenvolvimento da criança há muito que
são conhecidas. O papaguear das crianças, o seu choro e inclusivamente as suas
primeiras palavras são muito claramente estádios do desenvolvimento da linguagem
que nada têm a ver com o desenvolvimento do pensamento.

50
O problema do pensamento e linguagem estende-se, portanto, para além dos
limites da ciência natural e torna-se no problema focal da psicologia humana histórica,
ou seja, da psicologia social.2

7 LINGUAGEM E MUNDO

A palavra conduz a uma ideia

Hume vê na linguagem e no uso dos termos, assim como o viram John Locke
e George Berkeley, a fonte dos problemas que tanto afligem o acalorado debate
filosófico. Na introdução de sua obra capital, o Tratado da natureza humana, o filósofo
aponta para as necessidades da ciência de seu tempo, ciência esta que parece não
ser capaz de produzir conclusões certas, dado que, em seu interior, nada há que não
seja passível de discussão. As implicações desta miserável posição em que se
encontra é o surgimento de um “preconceito comum contra todo tipo de raciocínio
metafísico” (HUME, 2001, p. 20). Uma possível solução deste problema estaria, de
fato, ligada à análise da linguagem utilizada nos raciocínios metafísicos.
É preciso inicialmente que se saiba distinguir palavra e significado. Palavra não
é senão um veículo, que pode ou não trazer em si um significado. Disto já podemos
concluir que uma palavra pode ser usada sem um significado preciso. Mas, qual seria
sua significação? Tal como em Locke, uma palavra indica uma ideia (LOCKE, 1999).
Um termo, para Hume, cujo significado é válido, está imediatamente vinculado a uma
ideia. Mas não a uma ideia geral, como pretendeu Locke (ideia geral esta que seria
separada, pela faculdade de abstração da mente, das circunstâncias que a
particularizariam como ideia singular), e sim a uma ideia particular. Como visto
algumas linhas acima, uma ideia corresponde imediatamente a uma impressão. As
palavras, assim sendo, estão indiretamente (por meio das ideias) ligadas à
experiência, visto que correspondem, em última instância, a uma impressão que
suscetível de verificação segundo os preceitos do método experimental de raciocínio
seguido por Hume.
Se acaso um termo filosófico, como o termo substância, por exemplo, não está
imediatamente ligado a uma ideia, como de fato não está, ele deve ser eliminado do

2 Texto extraído de: www.academia.edu


51
discurso filosófico, e isso, em vista do próprio progresso das ciências. É deste modo
que Hume pretende trazer mais inteligibilidade à discussão:

“Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo


empregado sem nenhum significado ou ideia – o que é muito frequente –
devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta
ideia”? (HUME, 1992, p. 71). Em suma: para que o uso de uma palavra seja
legítimo, é necessário que haja uma ideia vinculada a esta palavra, ideia esta
que corresponderia em último caso a uma impressão.

Fonte: cobizz.com.br

As palavras não conduzem aos objetos do mundo externo

Hume parece ser suficientemente claro quando diz que uma palavra
corresponde a uma ideia, que por sua vez remeteria a uma impressão. Pode-se
concluir daí que as palavras, de acordo com essa perspectiva de pensamento, não
podem alcançar o mundo externo, não podem designar as coisas elas mesmas. Se
as palavras nomeiam as coisas reais, fazem-no somente enquanto estas são
objetos das percepções da mente humana.
Em Locke, diferentemente, há uma espécie de remissão indireta da
linguagem às coisas do mundo externo. Tadié discorre sobre o tema: “o elo entre
a linguagem e as ideias não é totalmente independente do mundo: embora as
palavras estejam ligadas às ideias, elas não estão separadas das coisas” (TADIÉ,
2005, p. 183). Locke fundamenta a linguagem apoiando-a sobre duas realidades
distintas: a realidade subjetiva das ideias de nossa mente, e a realidade objetiva

52
das ideias enquanto imagens das coisas externas. É isso que Tadié chama de
dualidade da linguagem: as palavras de faço uso são signos de minhas ideias, mas
estas não estão separadas do mundo objetivo que elas representam. As palavras,
assim sendo, falariam do mundo físico, mesmo que por uma via indireta, as ideias.
Por que a linguagem, segundo Hume, logra chegar até as impressões, mas
para por aí, não podendo alcançar nada para além do conjunto das percepções da
mente, não sendo capaz de designar nada que não seja impressões? Porventura,
não seria o caso de perguntarmos, primeiro, se esse mundo físico realmente
existe? Eis que o problema da realidade do mundo externo adentra a discussão.

Há um mundo externo para além de nossas percepções?

A problemática do mundo externo pode ser resumida, grosso modo, pela


seguinte questão: existe de fato um mundo de objetos físicos duradouros para além
da mente humana, mundo este que seria captado pelos sentidos e se nos
apresentaria como percepções?
O problema remonta ao século XVII, e surge como uma exigência da dúvida
metódica cartesiana, como aponta Martinez (MARTÌNEZ, 1992). Com efeito,
Descartes vê-se obrigado a negar temporariamente a existência do mundo físico,
uma vez constatada a possibilidade da existência de um gênio maligno que poderia
estar a enganá-lo (DESCARTES, 2004). John Locke construiu seu sistema
empirista a partir do pressuposto de que tal mundo não só existiria como também
seria a causa imediata das ideias da mente humana (LOCKE, 1999). Berkeley,
outro filósofo da corrente empirista de pensamento, ao contrário, não aceitou esse
ponto, pois acreditava que não havia evidências suficientes para sustentar que este
mundo realmente existia (BERKELEY, 1992).
Hume assume uma posição distinta a de ambos os filósofos. É um tanto
quanto sem propósito, diz, termos a ambição de responder sobre a existência do
mundo objetivo. Esse problema parece não suscetível de solução, uma vez que
sua resposta dependeria da possibilidade de verificação dessas existências
externas, o que a partir dos princípios do método experimental a observação e a
experimentação, não seriam possíveis. Visto que as percepções do entendimento

53
são as únicas realidades passíveis de observação e experimentação (lembrando
que se chegar à certeza unicamente naquelas matérias suscetíveis de serem
experimentadas e observadas), os hipotéticos objetos físicos do mundo externo
não podem, de modo algum, ser verificados.
Em virtude desta mesma restrição que o filósofo não pode sustentar, assim
como o fez Locke, que as impressões remontariam imediatamente aos objetos do
mundo externo. Hume chegará mesmo a criticar os sistemas de filosofia tais como o
de Locke, que pressupõem a dupla-existência. Não há razão, dirá, para acreditar que
nossos sentidos produziriam está noção, de que há um objeto exterior e uma
percepção da mente causada por ele. Hume, com efeito, vê-se impossibilitado de
transpor o conjunto das percepções da mente, e, por isso, não pode verificar se há
uma existência para além destas. Se a experiência é único ponto sobre o qual a
discussão de qualquer matéria deve se apoiar, não é legítimo que nos conduzamos
para além de nossa percepção para averiguar se realmente existem tais objetos, pois
o mundo não nos está dado. Hume defronta-se como uma limitação do próprio
método que propôs seguir. As coisas somente existem para o intelecto como
percepções, não como coisas elas mesmas.
Somente está limitação de caráter metodológico já bastaria para tornar a
busca pelos objetos do mundo externo ilegitimável. O filósofo indica ainda uma
limitação da própria natureza humana: não podemos responder positiva ou
negativamente acerca da existência desse mundo, pois “a natureza não deixou isso
à sua [do filósofo] escolha; sem dúvida, avaliou que se tratava de uma questão
demasiadamente importante para ser confiada a nossos raciocínios e especulações
incertos”. (HUME, 2001, p. 220). Por conseguinte, não é legítimo que sobre este
ponto sejam levantadas questões. Estando esses objetos presentes ou não os
sentidos, não deixamos de supô-los como existentes um instante sequer. Mais
profícuo seria se buscássemos em nossa própria natureza as causas que nos
impelem a crer nestes objetos, pois, do mesmo modo que não nos é dado conhecê-
los, não somos capazes de evitar tal crença.3

3 Texto extraído de: www.websiteseguro.com


54
8 LINGUAGEM E INTERSUBJETIVIDADE

Intersubjetividade é a relação entre sujeito e sujeito e/ou sujeito e objeto. O


relacionamento entre indivíduos no ambiente localiza-se no campo da ação, ou na
liberdade de ação, o que implica a negociação com o outro.
Segundo Martin Buber (1878 - 1965), é a capacidade do ser humano de se
relacionar com o seu semelhante.

Fonte: i.ytimg.com

O ser humano possui a capacidade de inter-relacionamento com seu


semelhante, ou seja, a intersubjetividade. O relacionamento acontece entre o Eu e
o Tu, e denomina-se relacionamento Eu-Tu.
A inter-relação envolve o diálogo, o encontro e a responsabilidade, entre dois
sujeitos e/ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto. Intersubjetividade, é
umas das áreas que envolve a vida do ser humano, e por isso precisa ser refletida
e analisada pela filosofia, em especial pela Antropologia Filosófica.

Intersubjetividade e Interação social: contribuições de algumas


perspectivas contemporâneas

Os Diferentes Sensos de eu e de outro

Stern dedicou-se a investigar a existência de uma vida subjetiva em bebês,


buscando compreender como estes vivenciam a si mesmos e aos outros, criando

55
desde cedo um mundo interpessoal. Neste contexto, o autor formulou sua hipótese de
uma experiência subjetiva de bebês, tentando articular as contribuições de dois
campos distintos e por muito tempo separados: o das pesquisas experimentais sobre
bebês e suas potencialidades, e o das inferências clínicas acerca da experiência
subjetiva infantil.
Ao longo do desenvolvimento, o bebê pode experimentar mudanças
significativas com relação às suas experiências subjetivas de eu e de outro. Segundo
o autor12, tais experiências subjetivas consistem em diferentes "sensos de eu". Ele
propõe que a ideia de senso de eu pode ser compreendida como uma forma de
organização que pode inicialmente existir em formas pré-verbais, sem o envolvimento
de consciência, mas que mais tarde será verbalmente identificada por "eu".
Gradativamente, conforme novos comportamentos e capacidades vão sendo
conquistados pelo bebê, seu repertório vai sendo reorganizado no sentido de formar
outras experiências subjetivas organizadoras em relação ao eu e ao outro. É neste
contexto que o autor argumenta que se dá o surgimento e desenvolvimento de novos
sensos de eu.
Stern alerta para o fato de que os diferentes sensos de eu ao longo do
desenvolvimento infantil não correspondem a fases que se superam ou que são
mutuamente excludentes e sim, que coexistem como ativas por toda a vida humana.
Neste sentido, descreve os seguintes sensos de eu: senso de eu emergente, senso
de eu nuclear, senso de eu subjetivo e senso de eu verbal.
O senso de eu emergente é descrito como presente inicialmente no período
que vai do nascimento até os dois meses de idade do bebê, em que não há uma
confusão eu-outro ou um estado de indiferenciação. Para o autor, o bebê parece estar
ativamente formando um senso de eu, vivenciando diferentes oportunidades de
experiência, que ainda são sentidas como separadas e não relacionadas, havendo
necessidade da realização de uma integração. Quando ocorre um encadeamento
lógico entre suas experiências, ou ainda, quando elas passam a ser assimiladas ou
conectadas de alguma forma, o bebê começa a ter a emergência de uma organização,
que nada mais é, segundo Stern, do que uma forma de aprendizagem. Neste sentido,
no período de zero a dois meses, os bebês não são passivos, mas estão intensamente
engajados em experiências sensoriais que constituem oportunidades de
aprendizagem importantes. Com isso, ocorre uma busca ativa e gradual de ordenação
dos elementos de suas experiências relacionadas tanto ao eu quanto ao outro. Estas

56
últimas, quando integradas, irão conduzir a uma organização subjetiva nova,
denominada senso de eu nuclear.
O senso de eu nuclear é descrito por Stern como estando presente inicialmente
no período de dois a seis meses de vida do bebê. Para ele, em contraste com algumas
perspectivas que consideram o bebê em um estado de indiferenciação eu-outro, neste
período o bebê experimenta o seu corpo como uma entidade física, separada,
intencional e dotada de vida afetiva e história própria. Além disso, os bebês estão
ativamente envolvidos com a criação de um mundo interpessoal ao se mostrarem
interessados e engajados em interações sociais.
Neste sentido, os bebês possuem a experiência subjetiva de se sentirem
separados fisicamente de suas mães, ambos como agentes diferentes e com
experiências afetivas distintas. As experiências subjetivas organizadoras de um senso
de eu nuclear referem-se à auto agência (sentir-se como autor de suas ações e não-
autor das ações alheias, controle de suas ações e expectativa de consequências
acerca das mesmas); auto coerência (senso de ser um todo físico, não fragmentado
e como ponto de ação integrada, movendo-se ou imóvel); auto afetividade (vivenciar
qualidades internas afetivas com base em suas experiências) e auto história (senso
de continuidade de si, apesar das mudanças que possam ocorrer, além de
identificação de regularidades no curso de eventos).
Tais experiências subjetivas organizadoras são resultantes do contato do bebê
com o outro. Neste período, diante da presença deste último é comum o bebê se
engajar em algumas atividades, como o brincar de "esconde-esconde" ou "eu vou te
pegar". Durante estas atividades, são vários os estados experimentados pelo bebê:
excitação, suspense, alegria, prazer, medo, dentre outros. Em ciclos repetitivos, as
características e modulações destas brincadeiras dirigidas pelo outro ao bebê
oferecem a este último, experiências particulares de intensidade de afeto que podem
ser reguladas pelo parceiro. Assim, a partir da mediação interativa com o outro, o bebê
pode ter a sua atenção, curiosidade e engajamento cognitivo regulados, o que significa
considerar que suas auto experiências são dependentes deste contato social.

57
Fonte: jardimdadescoberta.com

Entre os sete e nove meses de idade, Stern aponta que algo novo parece
acontecer. Os bebês parecem "descobrir" que suas experiências subjetivas
particulares podem ser compartilhadas com o outro, seja em termos de
intencionalidade (querer algo) ou afetividade (sentir algo), embora ainda sem um
envolvimento de consciência. Para que isso seja possível, o autor ressalta que os
bebês precisam realizar uma conquista cognitiva importante: a ideia de que, assim
como eles, outras pessoas possuem mentes distintas e separadas. O eu e o outro
deixam de ser puramente sentidos como entidades físicas distintas (nucleares) para
incluir estados mentais subjetivos. Assim, ambos podem ser compreendidos como
tendo afetos e intenções que orientam seus comportamentos.
Surge, portanto, uma nova forma de organização denominada senso de eu
subjetivo, com base na qual o bebê encontra oportunidade de relacionar-se
intersubjetivamente, ou seja, apresentar intersubjetividade. Stern pontua que somente
neste período a intersubjetividade faz-se possível, entendendo-a como uma
capacidade para interpretar, combinar, comparar e sintonizar com os estados mentais
de outra pessoa. Ao perceber que os outros podem ter uma mente distinta da sua,
mas com estados mentais potencialmente semelhantes aos seus, o bebê pode atingir
a possibilidade de comunicar isto sem palavras, compartilhando suas experiências
subjetivas por meio de gestos, postura ou expressões faciais.
A ideia de um relacionar-se intersubjetivo de Stern aproxima-se da ideia de
intersubjetividade secundária proposta por Trevarthen e Hubley na medida em que as

58
experiências subjetivas a serem compartilhadas envolvem um contexto triádico
relacionado a um evento, pessoa ou objeto. Ao não implicar necessariamente a
participação da linguagem, este novo senso de eu apoia-se em algumas competências
específicas como compartilhar o foco de atenção, compartilhar intenções e estados
afetivos, dentre outras.
Mais tarde, em torno dos quinze a dezoito meses de idade, o bebê começa a
experimentar uma nova forma de organização subjetiva. Trata-se do senso de eu
verbal. Este último é caracterizado por uma mudança importante: o bebê passa a
comunicar toda a sua bagagem de experiências e conhecimentos acumulados ao
longo de seu desenvolvimento de uma maneira mais objetivada, ou seja, através do
uso da linguagem. Deste modo, a partir do desenvolvimento da capacidade de
representação por símbolos, significados agora podem ser comunicados, negociados
e compartilhados de outra maneira. Neste cenário, o brinquedo simbólico, a
capacidade de tomar o eu como objeto de reflexão e a possibilidade de realizar
narrativas pessoais tornam-se possíveis, marcando uma forma de relacionar-se com
o outro e com a cultura a partir de uma natureza verbal.
É interessante notar que Stern apresenta em suas formulações teóricas a
ideia de que, desde períodos precoces do desenvolvimento infantil, o bebê está
longe de se ver envolvido em um processo de indiscriminação e indissociação eu-
outro. Para ilustrar seus argumentos, o autor se utiliza inclusive das contribuições
da literatura acerca das competências iniciais de recém-nascidos. Com base neste
repertório de potencialidades precoces, o autor destaca a importância da
sensibilidade e engajamento humanos em trocas sociais, por meio das quais o
bebê gradativamente vai realizando conquistas cognitivas e afetivas, capazes de
conduzi-lo a novas e mais complexas formas de organização subjetiva eu-mundo.
Apesar destas considerações, Stern distancia-se em parte dos argumentos de
Trevarthen não somente ao considerar que os bebês não apresentam consciência
e intencionalidade inatas, como também que os mesmos só são capazes de
apresentar intersubjetividade bem mais tardiamente (por volta dos nove meses),
cujas características corresponderiam à intersubjetividade secundária.

59
Cognição Social e os Vários Níveis de Intersubjetividade

Rochat e Striano buscaram considerar as contribuições de vários estudos


acerca das competências iniciais infantis, argumentando que os bebês humanos são
criaturas sociais desde seu nascimento. Ao pensarem no processo de
desenvolvimento das habilidades sociais infantis, os autores partem da pressuposição
básica de que a criança precisa apresentar comportamentos que minimamente
esbocem a emergência e o desenvolvimento da compreensão de pessoas, e não
somente o desenvolvimento de seu conhecimento sobre o mundo físico. Quando esta
pressuposição é assumida, tem-se como consequência a ideia de que pessoas são
mais complexas do que objetos, e que o desenvolvimento de um conhecimento social
deverá estar baseado em processos específicos que refletem tal complexidade.
Estes autores argumentam que a noção de alguns princípios físicos (por
exemplo: o fato de um objeto ter massa, ocupar lugar no espaço e não poder estar em
dois lugares ao mesmo tempo) já parece estar presente nos primórdios do
desenvolvimento infantil, apesar de bebês com idades variando entre dois a quatro
meses de vida apresentarem limitações sobre suas possibilidades de atuação e
exploração de objetos por conta de uma gama ainda muito restrita de capacidades
como olhar, sugar, chorar, tocar e ouvir.
Para Rochat e Striano este conhecimento de natureza física envolve uma
obediência a leis, organização e regularidades, não encontrando necessariamente
correspondência com um conhecimento de natureza social. Assim, a compreensão
de pessoas (conhecimento do mundo social) envolve um processo mais sofisticado
se comparado ao conhecimento sobre o mundo físico. Os modos desenvolvidos
pelo bebê para adquirir um conhecimento sobre pessoas não se reduzem aos
mesmos utilizados para alcançar um conhecimento sobre o mundo físico. Este
processo especial que envolve a busca pelo conhecimento ou entendimento acerca
do mundo social recebe o nome de cognição social.
A cognição social envolve a compreensão de um universo privado acerca do
outro; uma sensibilidade em perceber, identificar e até responder a emoções, afetos,
intenções e comportamentos. Estes autores ressaltam que a forma como as crianças
desenvolvem uma compreensão social não se restringe apenas à observação isolada
do comportamento de outras pessoas ou mantendo-se à parte das trocas sociais
estabelecidas por elas. Essa cognição social desenvolve-se através do engajamento

60
em trocas sociais, onde experiências podem ser compartilhadas através de
reciprocidade.

Fonte: ver.pt.com

Deste modo, a cognição social está relacionada a um processo mais amplo


através do qual indivíduos, a partir de interações sociais e reciprocidade, desenvolvem
habilidades de monitorar, controlar e predizer o comportamento de seus parceiros
sociais. Com base nestes argumentos, tais autores consideram que é justamente a
intersubjetividade que capta o sentido de experiência compartilhada que emerge da
reciprocidade, concebendo-a como uma capacidade a partir da qual experiências
internas ou mentais podem ser percebidas como passíveis de serem compartilhadas.
A noção de intersubjetividade parece pressupor ainda a ideia de uma diferenciação
entre o self e o outro, onde atividades de comparar ou projetar experiências privadas
sobre as experimentadas por terceiros tornam-se possíveis. Pode-se, a partir desta
pressuposição, realizar a seguinte indagação: De que maneira os bebês começam a
relacionar sua experiência privada à experiência privada de outras pessoas?
De acordo com os argumentos de Rochat e Striano, este início da cognição
social seria possível a partir da intersubjetividade. Ao considerarem a possibilidade de
uma vida subjetiva presente em bebês desde a mais tenra idade, os autores apontam
que a intersubjetividade é justamente aquilo que emerge e se desenvolve a partir das

61
primeiras trocas sociais, onde sentimentos, afetos e emoções podem ser
compartilhados.
Seguindo este raciocínio, as interações com pessoas passam a ser vistas como
o modo pelo qual a intersubjetividade se desenvolve, já que é através destas trocas
sociais que estados internos ou mentais de um parceiro podem ser comunicados,
compartilhados e "ecoados" nos dos outros, especialmente quando há um
engajamento conjunto do foco de atenção sobre uma pessoa, objeto ou evento
específico no ambiente. São justamente as repercussões ("ecos") destes estados
comunicados pelo parceiro que tornam possível ao bebê confrontar e relacionar as
experiências que possui de seu mundo privado com as do mundo alheio.
O bebê parece, então, desde muito cedo, ser um participante ativo de um
processo de comunicação inicialmente facilitado por jogos de interação face-a-face
com sua mãe. Durante as suas primeiras semanas de vida, o bebê já pode apresentar
uma forma primitiva de intersubjetividade, apoiada inicialmente em um repertório ainda
limitado e restrito de atividades, como o olhar e o tocar. É ao longo do processo de
desenvolvimento da criança que a intersubjetividade vai assumindo formas cada vez
mais complexas em interações, uma vez que a bagagem de competências do bebê
vai se ampliando, passando a incluir a capacidade de focalizar a atenção ao outro, aos
objetos e eventos presentes no meio.
Com esses pressupostos, Rochat e Striano apresentam vários níveis de
intersubjetividade e condutas associadas, os quais denominam respectivamente como
período atencional, período contemplativo e período intencional.
O período atencional corresponde às seis primeiras semanas vividas pelo bebê
após seu nascimento, havendo a manifestação de uma sensibilidade inata para
estímulos sociais e certa sintonia social, mas sem características explícitas de
intersubjetividade. Embora possam apresentar indícios de uma diferenciação ainda
rudimentar e limitada entre o self e o ambiente, bebês neste período não apresentam
evidências explícitas de consciência de si e de outros.
O período contemplativo está presente a partir do segundo mês de vida,
momento em que os primeiros sinais de experiência compartilhada começam a ser
esboçados. Neste período pode ser caracterizada uma intersubjetividade primária, tal
como Trevarthen e Hubley9 definiram, onde o bebê, ao interagir com a mãe, começa
a apresentar indícios de uma capacidade de orientar sua atenção para o rosto dela e
atender às suas solicitações. Tais atividades observadas inicialmente em um contexto

62
didático de interações precoces ilustram a chamada "revolução do segundo mês" na
qual se dá a emergência de um senso de experiência compartilhada (identificada aqui
como sendo o próprio conceito de intersubjetividade) e o início de uma reciprocidade
mais explícita com outros, configurando uma transição importante no desenvolvimento
cognitivo social. Este momento caracteriza ainda o surgimento de um tipo de sorriso
diferente daquele com qualidades reflexas exibido por recém-nascidos. Trata-se do
sorriso social, cuja fonte de desencadeamento ou motivação é externa ao bebê e
passa a ser dirigido por ele a pessoas ou eventos específicos no ambiente.
A intersubjetividade primária, que se apresenta inicialmente em um contexto
didático, sofre mudanças gradativas no decorrer do desenvolvimento do bebê, de
modo que em torno dos quatro meses de vida começam a surgir as primeiras condutas
que irão contribuir para a futura emergência de uma intersubjetividade secundária,
havendo maior participação em jogos e trocas mediadas por objetos.
Com relação ao início do período intencional, este transcorre a partir dos nove
meses de idade e pode ser caracterizado por uma maior sofisticação da capacidade
do bebê em interagir de maneira recíproca com seus parceiros e compartilhar com
eles suas experiências. As interações triádicas (pessoa-pessoa-objeto) ganham
destaque, uma vez que o bebê apresenta capacidade de dirigir seu foco de atenção
para pessoas e objetos, podendo coordenar ou monitorar o foco de atenção de seus
parceiros em relação a estes últimos.
O desenvolvimento da intersubjetividade parece ser importante para o
surgimento gradativo de uma compreensão acerca das intenções e crenças que
orientam comportamentos de outras pessoas, permitindo que estes últimos possam
ser monitorados ou preditos em algum nível. Neste sentido, a capacidade da criança
em se colocar na perspectiva do outro e predizer qual seria sua ação, sentimento ou
reação possivelmente experimentados em determinada situação constitui uma tarefa
necessária para a aquisição de uma teoria da mente, a qual se torna mais explícita a
partir dos três anos de idade.4

4 9 Texto extraído de: www.pepsic.bvsalud.org

63
Fonte: files.wordpress.com

9 LINGUAGEM E FICÇÃO

Evidentemente, a ficção não é um conceito da exclusiva propriedade da


filosofia. Pelo contrário, é na literatura quiçá onde encontramos as suas
problematizações mais interessantes – não só no exercício, sempre singular, do qual
as obras literárias dão conta, mas também na reflexão crítica que muitas vezes
acompanha essas obras na escrita dos mesmos autores. Não deve nos estranhar,
portanto, que encontremos em diversos escritores ideias que parecem dialogar com a
história da filosofia.
É o caso, por exemplo, de Juan José Saer, quem, como se a literatura estivesse
profundamente ligada ao pensamento puro, postula que a tarefa do escritor é assumir
a experiência do mundo em toda a sua complexidade, com suas indeterminações e
suas obscuridades, e tratar de forjar, a partir dessa complexidade, formas que a
atestem e a representem. Nessa medida, a poética de Saer é uma poética
fenomenológica: a literatura depende para ele de uma espécie de epojé intuitiva por
parte do escritor; o sujeito da sua escrita é o sujeito da percepção; o seu objeto, a
descrição da experiência; a sua finalidade, a denúncia de um longo erro (o erro da
verdade, tal como tende a instituir-se sob as suas figuras históricas).
64
O próprio da ficção não é para Saer a exposição de fantasias, crenças, ilusões
ou ideologias, mas um tratamento específico do mundo; não um tratamento
oposto ao trato do verdadeiro, mas um tratamento diferencial. Logo, a ficção
não é um domínio de sombras, como temia Platão e ainda hoje continuam a
temer muitos filósofos. Pelo contrário, no seu espaço, tem lugar, de uma
forma incomensurável com as formas em que isso acontece nos discursos
que se regem pela lógica do verdadeiro, o necessariamente incessante
desvelamento da realidade. Saer é preciso nisto; escreve:
“Não se escrevem ficções para esquivar, por imaturidade ou
irresponsabilidade, os rigores que exige o tratamento da ‘verdade’, mas
justamente para pôr em evidência o carácter complexo da situação, carácter
complexo que, quando aparece limitado ao verificável, implica uma redução
abusiva e um empobrecimento da realidade. Ao dar um salto até ao
inverificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento.
Não volta as costas a uma suposta realidade objetiva: muito pelo contrário,
submerge-se na sua turbulência, desdenhando a atitude ingénua que
consiste em pretender saber de antemão como está constituída essa
realidade. Não é uma claudicação perante esta ou aquela ética da verdade,
senão a procura de uma menos rudimentar” (SAER, 2004, p. 11).

Noutras palavras: a ficção pressupõe uma atitude diferencial face aos saberes
vigentes, perante as verdades instituídas, em relação às formas dominantes de
racionalidade. A ficção tende a “desmantelar as concepções do real e do verosímil que
imperam no seu tempo, e a substituí-las por outras novas” (SAER, 2004, p. 163),
fazendo proliferar uma série de mundos possíveis, isto é, colocando em variação as
representações do que tendemos a denominar o mundo real, pondo à prova a cultura,
abrindo-nos à multiplicidade incandescente da existência, sem imagens
preconcebidas de um saber, uma verdade ou uma razão a conquistar.
O que acreditamos saber não é, acaso, uma ficção privilegiada e consolidada
pelas instituições (não apenas científicas), válido apenas enquanto não seja falseado
pela nossa experiência? Com isto não quero dizer que o domínio da ficção seja o do
individual, do subjetivo ou relativo, nem o do a-histórico, do transcendente ou absoluto.
Pelo contrário, ao negar pelo seu exercício o arbitrário erigido como lei, afundando a
experiência do mundo e enriquecendo o seu conhecimento, a ficção contribui para a
atualização da mudança na história (e é quiçá a chave de qualquer progresso
possível). Como dizia Saer (2004, p. 151): “É abrindo gretas na totalidade – totalidade
que não pode ser mais que imaginária –, que a ficção destrói esse verniz convencional
que se pretende fazer passar por uma realidade unívoca”.
Essa inclusão súbita do concreto num universo encerrado na complacência do
genérico, essa irrupção da imaginação no interior do fantasiar de uma comunidade, é
o fundamento primeiro e o fim último da ficção. O domínio da ficção não é a realidade,
mas o imaginário, ou, melhor, a realidade do imaginário, pelo que talvez a ficção não
65
possa ser considerada senão como uma evasão. Porém, essa evasão pode chegar a
ser um procedimento eficaz para a confrontação dos valores instituídos que tendem a
dominar a nossa vida imaginária e, a partir desta, a nossa vida real. Em razão deste
aspecto principalíssimo da ficção, e em razão também das suas intenções, da sua
irresolução prática, da posição singular do seu autor entre os imperativos de um saber
objetivo e as turbulências da subjetividade, Saer propõe definir genericamente a ficção
como uma antropologia especulativa (2004, p. 16).
De maneira geral, poderíamos dizer que os jogos do saber e do poder ordenam,
repartem, coordenam, enquanto os jogos da ficção desequilibram, dispersam, põem
em variação. Esta peculiaridade chamou poderosamente a atenção de Foucault
durante os anos sessenta. Foucault introduz uma distinção singular entre fabulação e
ficção.
A fábula constitui o conteúdo ou matéria da literatura: o dito ou por dizer, o
enunciado, as histórias, os episódios, os acontecimentos relatados – elementos que a
literatura partilha com as formas discursivas do saber e do poder nas suas mais
diversas figuras. A ficção, pela sua parte, constitui a forma ou o regime desses relatos,
e está marcada por uma linguagem ambígua, elusiva, que abre as fábulas a variações
inusitadas, não autorizadas ou não previstas pela ordem do discurso; variações que
têm por objeto, não apenas os enunciados propriamente ditos, mas também os
agenciamentos de enunciação.
Noutras palavras, a ficção é a trama das relações estabelecidas, através do
próprio discurso, entre quem fala e aquilo do que fala – ou, melhor, é o seu campo de
variação. É sempre possível dizer coisas fabulosas, mas quando falamos realmente,
quero dizer, quando falamos no contexto da realidade cotidiana, familiar, institucional
ou social, as relações discursivas entre o sujeito da enunciação, a forma do seu
discurso e o conteúdo do que diz, se encontram em maior ou menor medida
determinadas de antemão (por procedimentos de exclusão, de controlo interno, de
rarefação). Por exemplo, é possível dizer qualquer coisa (quase qualquer coisa) num
processo judicial, mas é necessário dizê-lo segundo determinadas formas (de acordo
com um código de procedimentos, por exemplo), que fazem disso que dissemos uma
palavra pertinente para o dispositivo judicial (para além do qual estamos fora de
ordem, e já não somos ouvidos, ou somos ouvidos, mas desconsiderados, ou, pior
ainda, penalizados pelo desacato das formas). O mesmo poderia dizer-se, feitas as

66
devidas considerações, em relação ao discurso científico, religioso, acadêmico, entre
outros.

Fonte: s1.static.brasilescola.uol.com.br

No análogo do discurso que é a obra literária, pelo contrário, essa relação pode
estabelecer-se através do próprio (e singularíssimo) ato de fala que constitui a ficção:
aí não só se diz o que se diz, como se diz também donde se o diz, a que distância se
o diz e segundo que perspectiva. “A ficção não faz ver o invisível, mas faz ver como é
invisível a invisibilidade do visível”, dirá Foucault (1994a, p. 524) falando de Blanchot;
isto é, a ficção torna patente o que nos passa despercebido ao tomar a palavra, saca
à luz as condições de enunciação – e as coloca em variação.
Isso quer dizer que a ficção não se distingue pelas histórias que conta, mas
pela torsão que impõe à linguagem e pelo espaço de variação que abre ao nível da
enunciação. Daí que, desde o momento em que tem lugar, com cada palavra escrita
ou pronunciada, possa 1) comprometer a linguagem e 2) transgredir a ordem do
discurso. Em relação ao primeiro, e referindo-se especificamente à literatura, Foucault
escrevia:

“A literatura é o risco continuamente retomado e assumido para cada palavra


de uma frase literária, o risco de que essa palavra, essa frase, e todo o resto,
não obedeçam ao código. (...). No limite, é possível que nenhuma palavra da
literatura tenha exatamente o sentido que damos às mesmas palavras que
pronunciamos cotidianamente, é possível que a palavra suspenda o código
do qual foi tomada. (...) Em todo o caso, a palavra literária tem sempre o direito
soberano de suspender o código, e é a presença dessa soberania, mesmo se
não é exercida, que constitui o perigo e a grandeza de qualquer obra literária”
(Foucault, 2000, p. 159).
67
Em relação ao segundo, falando da obra de Jules Verne, Foucault
afirmaria o seguinte:

“Contra as verdades científicas e rompendo com a sua voz gelada, os


discursos da ficção remontam sem descanso até à mais alta improbabilidade.
Por cima desse murmúrio monótono no qual se enunciava o fim do mundo,
fazem brotar o ardor assimétrico da sorte, o acaso inverossímil da sem-razão
impaciente. A ficção é a negentropia do saber. Não é a ciência tornada
recreativa, mas a recriação do saber a partir do discurso uniforme da ciência”
(FOUCAULT, 1994a, p. 506).

Num mesmo movimento, portanto, a ficção se subtrai ao verdadeiro e dispersa


a linguagem. Logo, não diz simplesmente o falso, o meramente errado, o fantástico
ou o irreal. Diz mais que o verdadeiro (diz a coisa e diz a distância que separa e
aproxima a linguagem da coisa), e diz menos que a verdade (diz a coisa sem
pressupor a possibilidade de uma adequação entre as palavras e as coisas).
Nesse sentido, o exercício da ficção implica um deslocamento fundamental em
relação aos discursos que reclamam de direito à propriedade da verdade e do
verdadeiro, porque assumindo a sua diferença não denuncia apenas a injustiça desses
discursos, mas assume ao mesmo tempo o sistema da sua própria injustiça. “Os jogos
ardentes da ficção” fazem com “que o mundo não pare”, entregando-o a “uma nova
juventude”, “restituindo ao rumor da linguagem o desequilíbrio dos seus poderes
soberanos” (FOUCAULT, 1994a, p. 506). Distancia cavada no interior da própria
linguagem e nos interstícios da ordem do discurso, a palavra exposta às variações da
ficção é aquela que oscila sobre si mesma: espécie de vibração no lugar que, no seu
simulacro, é capaz de comover as estruturas e os dispositivos de que se serve para
fazer sentido (ou para fazer outras coisas que não têm uma relação direta com o
sentido).
Independentemente das fábulas que conta, independentemente dos estratos
de signos que retoma numa sociedade qualquer, pressupõe sempre esse
estranhamento em relação à ordem do discurso, esse distanciamento em relação à
linguagem. Tem lugar neles, mas ao mesmo tempo os expõe, os dispersa, os trabalha.
Foucault (1994a, p. 281) dizia:

“Não há ficção porque a linguagem se coloca à distância das coisas; a


linguagem é essa distância, a luz onde as coisas estão e a sua
inacessibilidade, o simulacro onde se dá a sua presença; e qualquer
linguagem que, em lugar de esquecer essa distância, se mantenha nela e a
mantenha nele, qualquer linguagem que fale dessa distância avançando nela,
é uma linguagem de ficção. Pode, então, atravessar qualquer prosa e
qualquer poesia, qualquer romance e qualquer reflexão, indiferentemente”.

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Por tudo isso, o conceito de ficção se torna incontornável para a definição do
trabalho inclassificável desenvolvido por Foucault, quem assumia voluntariamente que
na sua vida não escrevera outra coisa que ficções. Com isso não pretendia dizer que
sempre se mantivera fora da verdade, mas que fizera trabalhar de certo modo a ficção
na ordem do verdadeiro, tratando de induzir efeitos de verdade com um discurso que
não se adequava aos critérios do verdadeiro que imperavam no seu tempo.
Podemos constatar, de fato, que a ficção opera em alguma das obras de
Foucault como nos romances de Verne: “vozes sem corpo combatem para contar a
fábula” (FOUCAULT, 1994a, p. 507), isto é, os sujeitos da enunciação se multiplicam,
deslocando constantemente as relações entre o narrador, o discurso e a fábula. Assim,
por exemplo, na História da loucura, cada fábula tem a sua voz, cada voz dá lugar a
uma fábula nova, segundo um movimento que faz com que as personagens saiam da
fábula à que pertencem para converter-se nos relatores da fábula seguinte, como
numa espécie excêntrica desses jogos de bonecas russas (falam os médicos, os
loucos, os regulamentos, as ordens de detenção, os filósofos, os poetas, etc.).

Fonte: letronomia.blogspot.com

Por outro lado, assim como Verne ficcionava “a probabilidade neutra do


discurso científico (...) que impõe a certeza da sua verdade” (FOUCAULT, 1994a, p.
506), Foucault ficciona a história contra os dispositivos de saber que caucionam certas
formas de poder inscrevendo-as na ordem do verdadeiro. Escreve, por exemplo, uma
história do nascimento da psiquiatria que, de um ponto de vista histórico, a partir dos
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critérios que regiam o saber histórico na época, pode ser considerada parcial,
exagerada, etc. – não diz toda a verdade e diz mais que a verdade; mas eis que o livro
tem um efeito sobre o modo como as pessoas percebem a loucura e o seu tratamento.
Foucault dizia que a sua esperança era que os seus livros ganhassem a sua verdade
depois de escritos, e não antes, que a sua verdade estivesse no por vir (FOUCAULT,
1994b, p. 804). No fundo, a ficção revela os limites do nosso pensamento, fazendo
jogar a distância e a disjunção entre o real e a linguagem.5

10 A QUESTÃO LINGUÍSTICA COMO MEIO DA CONSCIÊNCIA E DA AUTO


COMPREENSÃO

Desenvolvimento da autoconfiança linguística dos alunos

O desenvolvimento da consciência linguística constitui um meio de aumentar a


autoconfiança linguística das crianças, por tornar consciente que a sua variedade
linguística de origem é tão complexa e estruturada e, portanto, tão digna como a
variedade padrão usada na escola.
Paralelamente, o domínio progressivo do português padrão que as aulas de
língua materna devem proporcionar, associado ao conhecimento das situações
sociais em que está variedade deve ser usada, tornarão o aluno mais confiante no seu
conhecimento da língua e na sua capacidade de selecionar adequadamente a
variedade que deve mobilizar em cada situação concreta.

Desenvolvimento da tolerância cultural e linguística

O desenvolvimento da consciência linguística dos alunos orientado para uma


melhor compreensão das suas variedades linguísticas de origem e para um
progressivo domínio, por todos, da variedade padrão estimulará um olhar objetivo de
cada aluno sobre a sua variedade de origem e sobre aquelas com que se confronta
dentro e fora da escola.
Esse tipo de atividade contribuirá para o desenvolvimento da tolerância cultural
e linguística das crianças e jovens, despertando eventualmente a sua curiosidade para
manifestações culturais distintas das do seu grupo de origem.

5 Texto extraído de: www.periodicos.ufes.br

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11 BIBLIOGRAFIA BÁSICA

ALSTON, W. Filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BAKHTIN, M.


Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

BENJAMIN, W. Obras escolhidas II - Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense,


1995.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

DASCAL, M. (org.). Fundamentos metodológicos da linguística. Campinas: Ed.


Da Unicamp, vol. 4, 1975.

ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991.

ROSSI-LANDI, F. A linguagem como trabalho e como mercado. São Paulo: Difer,


1985.

SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1995.

WITTGENSTEIN, L. "Investigações Filosóficas". In: Os Pensadores, vol. XLVI,


São Paulo: Editora Abril, 1975.

. Tratado Lógico Filosófico. São Paulo: Edusp, 1993.

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