Você está na página 1de 14

OS SENTIDOS DO SENTIDO: LÍNGUA, LINGUAGEM E A INTERPRETAÇÃO

POR UMA PERSPECTIVA ENUNCIATIVA.

Daremos início por uma pergunta que nos parece ser fundamental e pertinente
aqui: o que é interpretar? E podemos nos perguntar ainda: o que é interpretação? De fato,
estas questões nos colocam a refletir sobre o interpretar e a interpretação por um viés
muito complexo e abrangente, pois abre um caminho para considerações tão distintas e
elaboradas quanto se pode imaginar. E mesmo querendo que assim o fosse, as respostas
para essas e outras perguntas que surgirão neste percurso não se darão de uma única vez.
Satisfatório seria apenas dizer que interpretar é entender/compreender algo ou um
acontecimento qualquer e que, com isso, a interpretação seria este entendimento e esta
compreensão.
É um aspecto basilar da existência humana a busca por explicações, pelo
entendimento e pela compreensão dos fenômenos mundanos e não mundanos. Não é de
hoje que o Homem se prende a questões cada vez mais profundas sobre sua existência,
suas relações com a natureza, e até mesmo com outros Homens. As explicações para os
eventos terrestres, para os fenômenos naturais e acontecimentos humanos partem de
lugares constituídos pelas disparidades dos lugares do saber e nos levam à produção e
circulação de conhecimentos científicos e/ou não científicos. Afinal, a pedra fundamental
para a compreensão de nossa existência poderia ser a pergunta: “qual o sentido da vida?”,
e poderíamos desenvolver esta pergunta questionando: “o que significa viver?”.
Métodos e mais métodos foram produzidos e ainda serão construídos para se
alcançar uma satisfação tal que nos permita responder tudo aquilo que elevamos ao lugar
da dúvida, do lugar do desconhecido, da não-compreensão. Parece ser algo inerente ao
ser humano que o desconhecido gere certa estranheza e que, para que o “estranho” deixe
de ser “estranho”, as dúvidas e as angústias devam ser sanadas atribuindo sentidos àquilo
que se nos apresenta aos “olhos” pela primeira vez. E talvez, por esta necessidade de não
ser “pego de surpresa” que o Homem busca, por vezes, “lançar” as tendências da
existência do inexistente, da visibilidade do invisível. Busca dizer do que “não é”, mas,
que “poderá ser”, ou, dizer do que “não existe”, mas que “poderá existir”. Suas dúvidas
e angústias são lançadas para uma futuridade como que se fosse um livramento da
preocupação de uma batalha contra o “invencível”. Afinal, como dizer daquilo que não é
se de fato ainda não é? Ou, como dizer daquilo que não existe se de fato ainda não existe?
Enunciar sobre aquilo que não está mesmo não estando, não sendo e não existindo parece
ser prática consoladora, necessidade inerente, tentativa desesperada de se responder
aquilo que ainda não se perguntou.
Olhando por este ângulo, parece-nos que a interpretação se volta sempre ao
passado, sempre ao que já aconteceu se prendendo necessariamente à história, sem levar
em conta que a própria interpretação é a futuridade de um presente que tem em si as
marcas de um passado inevitável para sua constituição enquanto presente. Ou seja, não
há presente sem passado, assim como, não há futuro sem o presente e o passado que o
constitui enquanto o agora. Com isso poderíamos nos perguntar porque o tempo só “anda”
para o futuro, para frente e nunca volta. Perguntado assim estaríamos nos enganando e
negando o privilégio que a própria língua dá aos seres humanos. Enquanto não há, por
mais que se tente, uma maneira de retardar o tempo, de voltar ao passado por uma
máquina precisamente elaborada, talvez, e digo talvez, o único modo que o Homem tem
de voltar ao passado, de reviver o que já foi vivido, de redizer o que já foi dito e de se
corrigir para não “errar” novamente é pela língua, pela linguagem.
Assim como se observa que aquele que se coloca a revisitar seu passado individual
buscando reconhecer seus “erros” e “acertos”, tentando “identificar” no traçado de sua
vida as “causas” específicas para um “efeito” inesperado no presente, coloca em tensão o
tempo crônico do aqui agora com um antes (ir)retornável fisicamente, se observa,
também, que este retorno retrospectivo é puramente introspectivo, reflexivo e mental,
que coloca uma relação de tensão entre pensamento e linguagem, entre um passado sem
retorno e um futuro desconhecido.
Mas ainda nos perguntamos: o que é essa interpretação da qual falamos? É um
mecanismo? Uma prática, um gesto, um método, um instrumento que nos permitem
considerar e compreender a produção dos sentidos seja na linguagem, nas artes (plásticas,
visuais etc.), na própria vida individual? E interpretar? Interpretar seria assim, praticar,
colocar em questão um método, realizar um gesto, um ato, utilizar um instrumento para
chegar a estes sentidos produzidos? Este estudo não se estrutura por uma busca incessante
para todas estas respostas, pois, não é nosso objetivo escancarar de qualquer maneira os
“erros” e/ou “acertos” daqueles que já trataram sobre a interpretação, ou apresentar a
melhor ou a pior maneira de se interpretar um texto ou qualquer outra forma de
“expressão” humana. Não se pretende apresentar aqui um manual de como se interpretar,
ou de construir uma estrutura hierárquica quanto aos modos de interpretação. Entende-se,
assim, que cada teoria, ciência, produção tem seu lugar de dizer, de compreender o
mundo. Portanto, este estudo busca apresentar um lugar específico, dentre outros, de se
considerar a interpretação via uma teoria particular da linguagem, uma teoria que observa
os sentidos produzidos na e pela linguagem, no e pelo acontecimento enunciativo.

Da Língua e da Linguagem: algumas reflexões

Quando buscamos empreender um estudo desse tipo, que se dê na área da


Linguística, constituído num diálogo, por vezes aberto e por vezes restrito, com outras
áreas do conhecimento como a Filosofia, por exemplo, sentimos imensa necessidade de
dizer o que é a língua, seus aspectos e sua pertinência sendo que o mesmo ocorre com a
linguagem. Em se tratando do par língua e linguagem, muito já se disse e com toda certeza
muito se dirá pois, são estes elementos que a todo tempo apresenta ao ser e à sua
racionalidade desafios de ordens tão distintas quanto se pode imaginar. Apesar de muito
se conhecer e de saber que muito ainda há que se descobrir, língua e linguagem não são
de fato elementos estranhos aos seres humanos. A faculdade da linguagem articulada e
simbólica é inerente ao Homem de maneira geral; e a faculdade de realizar combinatórias
com aquilo que a língua nos “fornece”, é também inerente ao ser humano. Língua e
linguagem formam assim uma relação tal que as consideramos como inerentes ao ser
humano como único meio possível de significar o mundo, ou que o mundo tem para ser
significado.
E como muitos já estudaram, ainda estudarão, discutiram e ainda discutirão sobre
os aspectos do par língua e linguagem, conosco não será diferente. Sentimos também essa
necessidade intrínseca de saber mais sobre isso ou, de pelo menos “falar” sobre o assunto.
Mas, qual o interesse nisso? Qual o interesse em se estudar, discutir e “falar” sobre a
linguagem? Ou melhor:
Por que estudar a linguagem? Há muitas respostas possíveis. Ao lançar
foco sobre algumas, não quero, logicamente, ignorar outras e questionar
sua legitimidade. Pode-se, por exemplo, simplesmente ficar fascinado
pelos elementos da linguagem em si e querer descobrir sua ordem e seus
arranjos, sua origem na história ou no indivíduo ou a maneira como são
usados no pensamento, na ciência, na arte ou no intercâmbio social
normal. Uma das razões para se estudar a linguagem – e para mim,
pessoalmente, a que mais me motiva – é que é tentador se considerar a
linguagem ‘o espelho da mente’, valendo-me de uma expressão
tradicional (CHOMSKY, 2009, p. 11-12).
É de fato interessante observarmos o que nos diz um linguista (e também filósofo)
do “tamanho” de Noam Chomsky quando responde à pergunta feita por ele a ele mesmo.
E quando este diz que “há muitas respostas possíveis”, não temos como discordar deste
fato. São tantas as respostas quanto possíveis e, tomando uma como centro das
observações devemos tomar o importante cuidado para não “ignorar” ou “desconsiderar”
as outras. Afinal, assim como não somos os “donos da verdade”, do mesmo modo, não
somos os “donos da língua e da linguagem”. De maneira genérica podemos crer que todos
falam, todos “têm” linguagem, todos “têm” uma língua, mesmo que tão distintas e
dispersas pelo globo, as línguas são de e para todos1.
Há aqueles que se interessam por um viés mais gramatical, funcional da
linguagem, nos modos de combinatória das palavras e dos elementos lexicais, sua ordem,
seus arranjos etc.; por outro lado há os que estudam sua história, sua constituição
enquanto “centro” da comunicação humana, onde surgiu, quem a “inventou” (se é que
seja possível alguém ter inventado a linguagem já que esta se faz como que inerente ao
próprio Homem); há ainda aqueles que buscam definir a “função” da linguagem em seus
aspectos comunicacionais, conversacionais e também sociais/culturais. Se verificarmos
na história dos estudos e das tentativas de sanar as curiosidades, encontraremos filósofos,
cientistas, literatos, tradutores etc., que tomarão o par língua e linguagem como um
conjunto de nomes que incidem sobre os objetos e sobre aquilo que se tem como abstrato
de maneira geral, ou, de maneira secundária, como um meio de circulação do
conhecimento produzido, de certa maneira pode ser também a “expressão da alma” ou
um modo de se manter a relação entre os povos que falam línguas diferentes.
Contudo, nos chama a atenção aquilo que o linguista/filósofo considera ser o
aspecto mais tentador de se estudar a linguagem, tomando-a, como diz, por um caminho
“tradicional”, como “o espelho da mente”. O ser humano se expressa no mundo por
modos e maneiras diversas, e não apenas se expressa, se coloca como ser existente 2, se
“faz” presente diante de outros semelhantes, se posiciona e relaciona. Seja pela pintura,
pela música, pelos monumentos/estátuas, pela escrita/literatura/ciência, pela dança, pelo
teatro, pela guerra etc., o Homem se marca e marca seu lugar, se expressa e expressa sua
essência, sua permanência, sua própria existência. Considerando aquilo que dissemos
acima que o par língua e linguagem pode ser tomado, por alguns, como a “expressão da

1
Toma-se nesse início esta questão como geral, mas, ao aprofundarmos nas questões sociais que envolvem
a língua e a linguagem veremos que mesmo que todos “falem”, o par língua e linguagem por vezes pode
gerar sentidos de exclusão e de resistência em seu funcionamento chegando a ser, de certo modo, um meio
de afirmação de pertencimento, de se mostrar ao ser apagado pelo “Outro”, de se significar diferentemente
do modo como é “significado”. Veremos isso melhor quando tratarmos do funcionamento do “político na
linguagem” via o ponto de vista desenvolvido por Guimarães (2002/2018).
2
Mesmo podendo parecer ser, não nos valemos aqui do lugar do existencialismo e/ou de uma ontologia
essencialista. São termos da língua empregados de modo genérico.
alma”, ou se focarmos nossa atenção no que diz Chomsky (2009) que a linguagem é de
certo modo “o espelho da mente”, poderíamos seguir no caminho de dizer que a língua é
a expressão do pensamento ou que “a boca diz aquilo que o coração sente”. De todo modo,
não importa neste ponto, se é a mente, a alma, o pensamento ou o coração, o par língua e
linguagem é próprio do ser humano e é tão volátil quanto se pode imaginar. E por isso,
talvez seja este o principal motivo, aguça tanto a nossa curiosidade e necessidade de
controle, por ser ao mesmo tempo algo que podemos manipular – a língua enquanto um
conjunto de elementos nomeados e organizados – e algo que não temos controle algum
sobre – a linguagem que se produz por maneiras tão distintas que nos permite apenas
observações, mas não permite manipulações.
É realmente algo muito difícil imaginar a dissociação entre Homem e linguagem,
pois, historicamente:
A linguagem é provavelmente a marca mais notória da cultura. As
trocas simbólicas permitem a comunicação, geram relações sociais,
mantêm ou interrompem essas relações, possibilitam o pensamento
abstrato e os conceitos. (...). Sem linguagem, não há acesso à realidade.
Sem linguagem, não há pensamento (ARAÚJO, 2004, p. 9).
Partindo disso, continua a autora:
Poder referir-se a algo que não se encontra mais aí, nomear, designar é
parte essencial do comportamento humano. A simples manipulação de
um instrumento vem acompanhada de certa intenção, expressa pelo uso
de signos linguísticos e não linguísticos. Pensamento é sempre
pensamento acerca de alguma coisa e, por isso mesmo, consiste em
linguagem, que não é um mero subproduto do pensamento. É na e pela
linguagem que se pode não somente expressar ideias e conceitos, mas
significar como um comportamento a ser compreendido, isto é, como
comportamento que provoca relações e reações (Idem, p. 9) [grifo em
itálico nosso].
E talvez seja isso mesmo a linguagem, uma marca que se expressa com maior
notoriedade nas culturas existentes. É graças ao par língua e linguagem que as relações
inter-humanas, as trocas simbólicas e que os pensamentos, por mais obscuros que sejam,
se iniciam e se encerram, circulam e transmitem conhecimentos e, por último, se tornam
presentes na realidade, se materializam seja por meios sonoros ou pela graphē3. É pela
linguagem que nos referimos a algo que não está mais aí, que está aí e que podemos dizer
que estará aí. É graças à linguagem que podemos nomear, significar, expressar o
pensamento, conceitos, ideias, “provocar relações e reações”. É somente na e pela
linguagem que podemos não apenas referir, mas “falar” acerca de algo, de um estado de

3
Breve referência ao que diz Benveniste (2014).
coisas no mundo. Podemos encontrar dificuldades em responder a uma pergunta simples
como “por que a linguagem existe?”, mas, mais complicado ainda seria responder: “e se
não existisse a linguagem?”.
Contudo, deixemos de lado, por um breve instante, as introspecções e reflexões
filosóficas acerca da língua e da linguagem, e passemos a observar tratamentos, ao menos,
um tanto mais “sólidos” e consolidados sobre o assunto.
Uma questão que não nos toma muito tempo, pois não se faz necessário de certo
modo nos prender tanto a isso, é o fato de que o homem fala”; inevitavelmente o homem
“fala”, e fala dos mais diversos modos, das mais diversas maneiras. O homem está sempre
a falar, e o início da história da “fala humana” é de envergadura tamanha que se dobra e
desdobra em especulações imagináveis e inimagináveis, transita entre o simbólico e o
sensível, entre os achismos e a certeza enfim, entre a filosofia e a ciência (ALVARES,
2022).
E disso podemos afirmar que “Falamos porque nos é natural falar” e tomando
aqui por consideração aquilo que Benveniste (2005) diz em “Problemas de Linguística
Geral I”4, “Falamos com outros que falam, essa é a realidade humana”. Ao tomar a
linguagem como caminho para as relações inter-humanas pode-se pensar inclusive que se
hoje há sociedade, se hoje há civilizações, é porque há linguagem, é porque o homem
fala, os homens falam uns com os outros. Caminho este que não se faz como um
instrumento ou como algo criado e desenvolvido pelo homem para suprir uma
necessidade inerente ao próprio ser. E isso pelo fato de que:
Na realidade, a comparação da linguagem com um instrumento, e é
preciso realmente que seja com um instrumento material para que a
comparação seja pelo menos inteligível, deve encher-nos de
desconfiança, como toda noção simplista a respeito da linguagem. Falar
de instrumento, é pôr em oposição o homem e a natureza. A picareta, a
flecha, a roda, não estão na natureza. São fabricações. A linguagem está
na natureza do homem, que não a fabricou. Inclinamo-nos sempre para
a imaginação ingênua de um período original, em que um homem
completo descobriria um semelhante igualmente completo e, entre eles,
pouco a pouco, se elaboraria a linguagem. Isso é pura ficção. Não
atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca
inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e
procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que
encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a
linguagem ensina a própria definição do homem (BENVENISTE, 2005,
p. 285)5.

4
Ver em Comunicação animal e linguagem humana (1952).
5
Problemas de Linguística Geral I: da subjetividade na linguagem (1958).
Não encontramos respostas viáveis para a pergunta da possível inexistência da
linguagem, contudo, sabe-se que não encontraremos também respostas plausíveis para a
pergunta sobre o início da linguagem humana ou quem a inventou. Podemos apenas
supor, pressupor, mas nunca afirmar com ano, dia e local do surgimento da linguagem.
Ela, a linguagem, como já dito, é algo natural ao Homem, é inerente ao ser humano que,
para alguns, é algo inato à sua existência biológica e/ou cognitiva.
Mas é fato ainda interessante a afirmação de que mesmo que tentemos volver o
mais distante possível no tempo nunca encontraremos o homem “inventando” a
linguagem. Tem-se assim, em Benveniste (2005) que: a linguagem é algo natural, inerente
ao homem, nunca inventada e, que o homem fala porque é natural a ele falar, por possuir
a linguagem. Pode-se ainda sustentar que foi e é pela linguagem que o homem pôde
ordenar e organizar a sociedade – por falar um com o outro –; foi e é pela linguagem que
os homens puderam e ainda podem coordenar esforços e funções para construir e produzir
as grandes fortalezas do passado e as grandes cidades do presente; foi e é pela linguagem
que o homem contou e ainda conta a sua história e se faz homem, se faz humano.
Logo acima grifamos em itálico, na citação que trouxemos do livro de Araújo
(2004) o termo signo. Não é um termo novo na produção do conhecimento e nem mesmo
algo que seja inevitável quando se fala em língua e linguagem. Contudo, foi, ao observar
o signo linguístico que Saussure (2008) traçou, em seu Curso de Linguística Geral, as
linhas gerais que direcionaram a Linguística para se constituir enquanto uma ciência
independente e não mais como uma disciplina abordada por outras áreas já consolidadas
do saber. Saussure (idem) nos mostrou que a língua se constitui num sistema estruturado
de signos linguísticos que se formam na relação entre “significante” e “significado” e que
cada signo tem seu valor dentro deste sistema, diga-se de passagem, “fechado”, numa
relação opositiva com os demais signos. Ainda, apresentou aos estudiosos da linguagem
que o signo linguístico é social e arbitrário enquanto que a fala é individual, a famosa
distinção dicotômica entre langue e parole.
Muito já se falou sobre tal distinção; muitas críticas e discussões já se fizeram
presentes nos círculos intelectuais e científicos a respeito da linguagem. Mas devemos a
ele, Saussure, inclusive à sua iniciativa em desconsiderar a parole em detrimento da
langue, a possibilidade de hoje termos avançado tanto quanto avançamos nos estudos do
par língua e linguagem. Devemos a ele a possibilidade de tratar a Linguística enquanto
ciência independente e não mais como disciplina secundária. Mas este não é um trabalho
direcionado a realizar uma defesa do que Saussure fez, não é para isso que estamos aqui.
Estamos aqui de fato para tratar, em um primeiro momento, sobre o par língua e
linguagem e, não há como falar sobre isso sem trazer aqui aquele que é considerado o
“pai” da ciência linguística que se consolida no início do século XX.
Logo no início de seu Curso, Saussure (2008) diz que esta ciência constituída a
partir da observação “em torno dos fatos da língua” passou, antes da organização do CLG,
por três fases antes de se reconhecer o seu verdadeiro objeto. Tendo dito isso, leva-nos
diretamente, na introdução da obra, a reconhecer que o estudo da língua começou pela
Gramática, um estudo “inaugurado pelos gregos” e que teve sua continuidade pelos
franceses. A gramática do modo como a vê Saussure é um tipo de estudo da língua que
se baseia na lógica, “desprovido de qualquer visão científica” e sem se interessar pela
própria língua. Visa mais a formulação de regras e normas como maneira de identificação
das formas “corretas e incorretas”, ou melhor, da distinção destas formas (SAUSSURE,
2008, p. 7).
Sobre a gramática muito há o que se dizer, desde sua criação a partir do momento
que surge a escrita6 pela qual o Homem pôde “dominar” o “indominável”, ou seja,
manipular de certo modo a linguagem no lugar da língua, até às críticas quanto às suas
diretrizes pedagógicas e totalizantes, além de incontestáveis, que busca ensinar o “falar
bem” e o “escrever bem”, ou seja, busca dar uma visão total de uma língua e ensinar o
bom uso dessa língua em todas as suas formas; e até aos modelos mais recentes que
buscam o ensino da gramática fora de suas “linhas” normativas (que busca também evitar
a confusão de que gramática é a língua), e busca o ensino de suas regras e nomenclaturas
a partir do funcionamento social da língua, ou seja, a partir de fatos de linguagem
materializados e não mais “virtuais”.
Depois, diz Saussure (idem), aparece a “Filologia” que se preocupa com o estudo
e a interpretação de textos antigos e que visa, antes de mais nada “[...] fixar, interpretar,
comentar os textos” (Idem, p. 7) não tendo a língua como seu único e principal objeto,
interessando-se, também, pela história da literatura, história dos costumes e das
instituições tendo como método a crítica. Cabe aqui uma citação antes de terminarmos
com a Filologia:
Se aborda questões linguísticas, fá-lo sobretudo para comparar textos
de diferentes épocas, determinar a língua peculiar de cada autor,
decifrar e explicar inscrições redigidas numa língua arcaica ou obscura.
Sem dúvida, essas pesquisas prepararam a Linguística histórica. (...);

6
Um tipo de tecnologia da qual falaremos brevemente adiante, mas que se torna elemento e funcionalidade
fundamental para a evolução dos estudos linguísticos.
mas nesse domínio a crítica filológica é falha num particular: apega-se
muito servilmente à língua escrita e esquece a língua falada; aliás, a
Antiguidade grega e latina a absorve quase completamente
(SAUSSURE, 2008, p. 7-8).
Já num último período o “mestre” de Genebra diz que este se inicia quando foi
observado que as línguas “podiam ser comparadas entre si”. É, assim, o início do
comparatismo linguístico, com um estudo de “Gramática comparada” e de relações que
“unem o sânscrito ao germânico, ao grego, ao latim” feito por Franz Bopp. Foi por meio
deste estudo que se chegou ao ponto de se declarar a “existência” de uma língua-mãe, o
“indo-europeu” assinalando que todas aquelas línguas pertencem a uma única família,
não sendo tal mérito direcionado a Bopp unicamente.
Não vem ao caso aqui a importância de discutir estas questões mais que a
importância de apenas coloca-las aos olhos novamente – aliás, muito já se discutiu sobre
isso e muito ainda será discutido, sem dúvidas – mas, por sua importância, deve ser citado.
Se por um período o par língua e linguagem foi considerado por pontos de vista que
circulam os lugares da filosofia como um “meio”, ou pelas ciências naturais/biológicas
tomando língua e linguagem como um “órgão” humano e assim pelos olhares atentos da
“evolução/desenvolvimento”, ou via uma extensa comparação histórica entre as línguas,
Saussure tomou a língua pela própria língua. Observou seus aspectos, suas características,
seu funcionamento ao se dar no interior de um “sistema” fechado, permitindo assim a
evolução não das línguas, mas, dos estudos linguísticos.
E por isso podemos dizer aqui que os estudos sobre a língua e a linguagem não se
conformam, não se prendem e não se limitam a um único ponto de vista:
[...] essência do homem, espelho da alma, dom divino, meio de
comunicação, condição de sociabilidade, marca de pertencimento a
uma cultura, característica biológica da espécie, instinto, expressão
estética, a linguagem é isso tudo e muito mais, a linguagem transcende
tudo (FLORES e ÁVILA OTHERO, 2022, p. 11)
E tal transcendência não se dá como aquela que se busca conhecer na e pela
filosofia. Quando se diz que a linguagem transcende tudo é na direção de que sua
importância é tamanha que faz com que tanto a filosofia, o direito, a antropologia, a
sociologia e todas as outras áreas do conhecimento pertencentes às ciências humanas se
interessem por ela. E não apenas os campos do saber das humanidades, como também,
das matemáticas, das ciências biológicas, médicas, químicas etc., afinal, se algo é dito, se
diz pela linguagem. Vejamos então, mais um pouco de como a linguagem pode ser
considerada:
A linguagem pode ser caracterizada em suas dimensões de signo
(significação, simbolização e semiotização), de proposição enquanto
forma de descrever e/ou representar um estado de coisa (relação entre
significado, referência e valor de verdade), de ato de fala que demanda
um certo tipo de comportamento e um uso em situação (linguagem
como forma de comportamento e valor ilocucionário dos atos de fala),
de discurso, entendido como efetivação do dizer e do dito (lugar de
constituição do sujeito e das formas linguísticas com valor e força
social, política, bem como do entendimento mútuo) (ARAÚJO, 2004,
p. 10-11).
O que devemos observar com isso é que em cada um destes modos de se
caracterizar a linguagem e seus estudos, os problemas quanto a referência e o significado
constituem-se por uma visada particular e quando não, peculiar. Contudo, mesmo
passando agora à uma abordagem, mesmo que breve, quanto à questão da escrita, o par
língua e linguagem não deixará de estar em foco. Por isso, algumas especificidades sobre
isso serão trazidas neste lugar.

Da língua, linguagem e da escrita

Se falar de língua e linguagem num pequeno espaço e num curto período de tempo
não se faz suficiente, é justamente pelo fato de que o “problema” da língua e da linguagem
não se encerra numa definição geral e absoluta válida e aceita para e por todos. Traçar os
caminhos, elaborar os fundamentos básicos e estabelecer os princípios gerais que
governam a relação entre o Homem e a língua/linguagem e entre as palavras e o mundo
circundante formam, talvez, o corpo de tarefas mais desafiador para o próprio ser humano.
Não à toa que lembramos aqui Benveniste (2014)7 quando este nos diz que:
Tal como eu a compreendo, a linguística geral é a linguística que se
interroga sobre si mesma, sobre sua definição, sobre seu objeto, sobre
seu estatuto e sobre seus métodos. Trata-se, portanto, de uma
interrogação incessante, que se desenvolve, que se renova, na
medida em que a experiência do linguista se aprofunda e seu olhar
se amplia. Falar de ‘linguística’ é falar da língua’ (BENVENISTE,
2014, p. 90) (Grifo em negrito nosso).
E não à toa, quanto mais aprofundamos nosso olhar ao que se chama linguística e
quanto mais este olhar se amplia, as interrogações continuam surgindo. E não apenas
surgindo, se tornam cada vez mais complexas ao passo que as respostas às interrogações
seguem por direções tão distintas. Se antes de tudo “Falar de ‘linguística’ é falar da
língua” e tomando a linguística como algo que não se prende apenas a interrogações
externas, mas também como algo que “se interroga sobre si mesma, sobre sua definição,

7
Últimas aula no Collège de France, Capítulo I “Semiologia”, primeira aula de 1968.
sobre seu objeto, sobre seu estatuto e sobre seus métodos”, isso se dá justamente pela
“natureza do discurso que se produz sobre ela” (BENVENISTE, 2014).
Antes de continuarmos, contudo, é necessário fazer aqui uma distinção, não
apenas de nomenclatura e/ou de teoria/conceito, mas de funcionamento entre os
elementos que compõem o par língua e linguagem. Assim como observamos rapidamente
ao citarmos Saussure (2008), a língua é um sistema formado e estruturado por signos
linguísticos com valores opositivos entre si no interior desse mesmo sistema, e
caracterizado por uma relação entre um significante e um significado. Ainda, o signo
linguístico apresenta um aspecto social e arbitrário, ou seja, a relação entre conceito e
imagem acústica é uma relação arbitrária8. Por outro lado, há no CLG uma relação
dicotômica entre língua e fala pela qual a fala apresenta um caráter individual e também
social.
A língua é, de certo modo, a possibilidade de se dizer algo, ou seja, a língua é um
sistema formado por elementos que compõem o léxico da própria língua e que permite a
articulação combinatória destes mesmos elementos para se dizer algo. É nessa direção
que língua e linguagem, ao mesmo tempo que se aproximam, se distanciam enquanto
aspectos e funcionamentos distintos. A língua é este conjunto de elementos lexicais que
se articulam e se combinam providos de possibilidade; a linguagem é a materialização
dessa possibilidade da língua, ou seja, a linguagem é o funcionamento da língua pelo
dizer, pela fala, pelo discurso, pela enunciação, e ainda, pela escrita.
Isso nos leva a tomar tanto língua quanto linguagem como que algo presente em
todas as instâncias da vida. Tomando aquilo que nos diz Bally (1967):
[...] el lenguaje natural, ese que todos hablamos, no está al servicio ni
de la razón pura ni del arte; no apunta ni a un ideal lógico ni a un ideal
literario; su función primordial y constante no es la de construir
silogismos, ni la de redondear períodos, ni la de plegarse a las leyes
del alejandrino. El lenguaje está simplemente al servicio de la vida, y
no de la vida de unos pocos, sino de la de todos y en todas sus
manifestaciones: su función es biológica y social (p. 19).
Observando o que nos diz Bally (1967) temos que a linguagem não serve a um
ideal, seja ele lógico ou literário; seja à serviço da arte ou da razão etc., mas que a
linguagem está “à serviço da vida”, e não da vida de poucos, à serviço da vida de todos,
em toda e qualquer manifestação do ser a linguagem se faz presente. A sua função é assim,
tanto biológica quanto social. E lembrando aqui aquilo que nos diz Benveniste em
Problemas de Linguística Geral II:

8
Para saber mais sobre tal relação ver Saussure (2008).
[...] bem antes de servir para comunicar a linguagem serve para viver.
Se nós colocamos que à falta de linguagem não haveria nem a
possibilidade de sociedade, nem a possibilidade de humanidade, é
precisamente porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar
(p. 222).
E isso corrobora com o que dissemos antes que se hoje temos sociedade,
civilização, humanidade, se nos organizamos como nos organizamos é porque há a
linguagem, é porque o homem fala, é porque, inclusive, o homem se significa enquanto
tal na e pela linguagem. E dessa maneira, a língua como tal é dotada de “significância”
(BENVENISTE, 2014), mas esta significância da língua é possibilidade no momento
mesmo do seu funcionamento na e pela linguagem.
Contudo, quando falamos aqui em linguagem como o lugar do funcionamento da
língua, tomamos como “meio” de seu funcionamento o discurso, a enunciação. Quando
falamos em discurso e em enunciação trazemos ao centro da discussão as propriedades
da fala e do dizer. Discurso e enunciação como falar e dizer. Isso poderia nos levar à
consideração expressa do funcionamento da língua às propriedades biológicas,
psicológicas e físicas. Falar, dizer e enunciar seriam então os “meios” basilares de
funcionamento das línguas? Estariam assim as línguas reduzidas aos fenômenos vocálicos
do discurso/enunciação? Se a língua é dotada de significância, a língua significa, e esta
significância é sempre possibilidade de significação ao passo que a língua funciona no e
pelo discurso, na e pela enunciação, o significado daquilo que se diz, se fala, se extingue
ao passo que as ondas sonoras do teor vocálico se diluem na atmosfera ou se adentram no
“corpo alvo” do ouvinte daquelas palavras soltas ao vento? Por fim, poderíamos tomar
aqui como único e exclusivo “suporte” de funcionamento da língua a fala em suas
propriedades físicas/biológicas?
Estas perguntas têm um teor mais provocativo do que teórico. Busca-se com elas
dar andamento no aspecto central que tomaremos a partir de agora que é essa relação
entre o par língua e linguagem com a escrita. Pois, com tais perguntas colocam-se em
relevo os caminhos necessários da resposta. Mas, falemos um pouco aqui sobre a palavra
que trouxemos entre aspas acima, “suporte”. O que é este “suporte” que estamos dizendo?
Em princípio o suporte da escrita poderia ser aquilo que conhecemos tão bem: o papel e
a tinta (hoje já habituados com um outro lugar de produção de escrita que toma o lugar
da escrita tradicional, o computador e seus programas de produção de textos). Suporte
vocálico/sonoro e suporte gráfico, somente com estes dois modos de considerar o
funcionamento da língua já nos daria trabalho suficiente para preencher volumes inteiros
de discussão.
Essa noção, por uma visada muito particular aqui, leva a se considerar a língua
como “letra” morta, significação à espera de ser acionada, “símbolos” presos e latentes à
espera de serem libertados para dizer ao mundo para que servem. Seria como se a língua
estivesse pronta para ser mostrada e para isso seria necessário algo que a pudesse
comportar, suportar, mostrar. O mundo seria assim o grande suporte não apenas da vida,
mas também, dos sentidos “escondidos” nas palavras sedentas por liberdade seja na voz,
no papel, nas pedras; um mundo formado por símbolos que só são símbolos se lidos pois,
sem leitor, para que serve um símbolo senão para ocupar um espaço vazio de
significância? O mundo é assim o “grande suporte” das marcas do Homem.
Podemos, assim, tomar de início que lá onde a voz termina e surge o espírito
mudo, a “letra sem corpo9” ocupa o espaço vazio da significação, vazio de seu criador,
de seu autor. Pois, é quando o “texto já não responde10”, já não “diz” como e o que deveria
dizer que encontramos a figura do autor, do “espírito” distante no tempo e no espaço e
que se instala e se revela no momento mesmo que a “letra morta” recobra a vida ao ser
apropriada pelo leitor. As marcas do mundo são inúmeras, e de maneiras diversas
simbolizam a história, o presente e nos levam a “enxergar” um futuro. Desde o início o
Homem se inscreve no mundo e “inscreve” o mundo em suas representações que
externalizam um interior pulsante e aprisionam no tempo um exterior movente. Desde a
“criação” o Homem, criado à “imagem e semelhança” de Deus, nomeia as coisas e
“marca” os animais, as plantas, o mundo de maneira geral, pelas formas da língua, pois,
no princípio, a criação se dá justamente pela língua, pela enunciação divina.
O mundo é antes de tudo criado pelo verbo, pela ordenação enunciada por Deus
para que se desse sua existência. O Homem só é homem pois Deus assim o verbalizou, o
nomeou e criou. Língua/verbo, nessa direção é criação, é produção; nomear é criar antes
de se criar de fato. Se na escrita encontramos um “espírito mudo” e a “letra morta” é
porque encontramos o fato de que quem disse pode não estar mais aí para dizer, que a
letra que nos alcança hoje é aquela “letra sem corpo”, uma letra sem a voz que outrora a
fez como representante de sua alma, como expressão de seu pensamento. Letra, espírito,
alma e pensamento, indícios de vida, morte, expressão e inscrição, de existência
inacabada que se perde no éter como palavras lançadas à sorte de uma vida curta. Mas,

9
Referência a Rancière (1995) “Políticas da Escrita”.
10
Referência a Ricoeur (2019) Teoria da Interpretação: O discurso e o Excesso de Significação.
ao tomarmos assim este caráter da escrita/língua que transita entre o poético e o filosófico,
entre o romântico e o científico, somos lançados a um labirinto de comparações, de
indecisões jogando por vezes com a escrita/língua e por vezes com o espírito/pensamento.
Observando nesta direção da relação entre a letra e o espírito, letra como a
representação gráfica da língua e o espírito enquanto um plano superior separado do
mundo material (mais ou menos na direção daquele dualismo platônico entre o mundo do
sensível e o mundo das ideias), estaríamos separando, talvez, o inseparável, ou seja,
estaríamos separando uma “forma” da língua dos seus sentidos, da sua capacidade de
significar. E não buscamos dizer com isso que as palavras “carregam” em si sua
significação; e não queremos dizer com isso que as palavras estão presas num “invólucro”
prontas para “dar a vida” ao mundo que a língua possibilita enunciar.
É de fato algo interessante a reflexão de como se faz esta “ligação” entre a língua
e a escrita. É possível afirmar que a letra escrita num pedaço de madeira ou numa folha
de papel seja a representação perfeita e fiel da letra falada por um locutor? Esta indagação
movimenta historicamente várias tentativas de se explicar tal relação. A representação da
língua falada/vocalizada na e pela escrita atesta algo de extraordinário na evolução da
civilização e comunicação humanas, principalmente da civilização ocidental.

Você também pode gostar