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AGRUPAMENTO DE ESCOLAS N.

º 1 DE MARCO DE CANAVESES
ESCOLA SECUNDÁRIA DE MARCO DE CANAVESES
ANO LETIVO: 2023/2024

11.º ANO

FILOSOFIA
DISCIPLINA DA COMPONENTE DA FORMAÇÃO GERAL
ENSINO SECUNDÁRIO

DOCENTE: José Carlos de Sousa Rodrigues


O CONHECIMENTO E A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ARGUMENTAÇÃO, REALIDADE E VERDADE

INTRODUÇÃO

A argumentação é fundamental para a atividade filosófica, que procura uma


visão integrada do real, uma compreensão da realidade no seu todo, dedicando-
-se por isso à busca da “verdade”.
Mas a busca da “verdade” não é exclusiva da filosofia. As várias ciências,
também elas, procuram o conhecimento da realidade, apesar de o fazerem de uma
forma sectorial: por exemplo, a biologia procura perceber e explicar o funcionamento
dos seres vivos, a física procura compreender a natureza e os seus fenómenos – o
espaço, o tempo e as suas relações, etc.
Com efeito, encontramos diferentes discursos sobre a mesma realidade – o
discurso filosófico, o discurso científico, o discurso político, o discurso religioso, o
discurso artístico, etc. – e a cada um deles corresponde uma interpretação do ser ou
da realidade que pretende ser verdadeira. Mas os discursos são sempre
contextualizados e os contextos são diversos, alterando-se ao longo dos tempos. Daí
que a própria noção de verdade, diferentemente do que muitos pensadores defendiam,
possui, atualmente, um estatuto dinâmico e “biodegradável”, uma vez que já não é vista
como uma evidência proveniente do real que se impõe em absoluto, mas sim o fruto de
uma construção complexa do espírito humano a partir de uma relação em constante
diálogo com o real que recorre à perceção, à memória, à lógica e à reflexão crítica.
Dizer que a verdade é dinâmica e “biodegradável” é o mesmo que dizer que toda a
verdade existe em determinadas condições e limites de existência. Poderá ser
absolutamente verdadeira nessas condições e nesses limites, mas morrerá fora
dessas condições e desses limites – as verdades “não biodegradáveis” (absolutas) são
ilusórias e mentirosas na sua pretensão de transcenderem (superarem) as condições
mortais da existência. Hoje, por exemplo, no domínio das ciências ditas “exatas”
propõe-se uma conceção de verdade que é completamente diferente daquela que
vigorou durante séculos.
As teorias e leis científicas são consideradas como bons modelos explicativos
do real, mas provisórios (não absolutos, fechados ou definitivos).
Um dos exemplos mais significativos do nosso tempo foi a descoberta de uma
partícula subatómica que passou a ser designada por BOSÃO de HIGGS, a que os
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jornalistas resolveram chamar “partícula de Deus”, cuja existência já estava há muito
prevista – desde 1964 – pelo físico britânico Peter Higgs, prémio Nobel da Física em
2013 – mas que até há poucos anos não tinha ainda sido demonstrada.
Antes dele, Isaac Newton descobrira que a gravidade é a força de atração que
existe entre todas as partículas com massa e Albert Einstein demonstrara a equivalência
entre massa e energia, mas nada disto serviu para responder a duas questões: o que é,
afinal, a massa e de onde é que ela provém? Enquanto esta partícula subatómica não
fosse detetada, os cientistas não conseguiriam explicar a existência da própria matéria
e das forças que a unem à luz do modelo de compreensão de que dispunham da
matéria (o modelo standard que num determinado momento é aceite como aquele que
mais se aproxima, em termos explicativos, da realidade e da verdade). Por outras
palavras, com o Bosão de Higgs passou a ser menos difícil de explicar porque é que
existem “coisas” no Universo. A existência dessa partícula apenas foi oficialmente
anunciada pelo Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN) a 4 de julho de 2012.
De entre os vários discursos sobre a realidade, a filosofia (a partir da qual
nasceu a matemática, a física, a biologia, etc.) sempre se evidenciou como a procura da
“verdade” a partir de problemas ou questões radicais (profundas). Contudo, a
diversidade de filosofias e de sistemas filosóficos – como evidencia a sua própria
história – parece realçar uma “fraqueza” da filosofia: devido à diversidade das suas
teorias (ou correntes filosóficas) sobre as mesmas realidades/problemas/situações, ao
contrário das várias teorias científicas, ela não é capaz de, pelo menos aparentemente,
reunir um consenso (acordo comum).
A filosofia do conhecimento de Sócrates e Platão (filosofia socrático-
platónica), por exemplo, acreditava que o ser humano seria capaz de encontrar,
relativamente à realidade, uma verdade única, absoluta, universal, perfeita e imutável
(objetiva, indiscutível, consensual e permanente) e, por isso, como vimos no 10.º ano,
criticava fortemente a retórica sofista, por esta dar espaço ao subjetivismo e ao
relativismo (subjetividade e relatividade do conhecimento e, consequentemente, da
“verdade”).
Mas poderá a filosofia desvelar (desvendar) a verdade única e imutável? Será a
realidade una (uma só), absoluta? Como explicar, então, a diversidade dos sistemas
filosóficos (teorias explicativas/perspetivas) que com o decorrer dos tempos foram
surgindo?

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A este propósito, da relação da filosofia com a “verdade” e a realidade,
atentemos num pequeno excerto da obra do filósofo e escritor Antero de Quental,
Tendências gerais da Filosofia na segunda Metade do Século XX:

Iludem-se, então, os que procuram a verdade na filosofia?


Sim e não!
Iludem-se, por certo, aqueles que procuram na filosofia a verdade total e definitiva,
a fórmula completa, nítida e inalterável da lei suprema das coisas, esse segredo
transcendental e inacessível, que, uma vez conhecido, se tal fosse possível equivaleria a
nada saber, uma vez que uma filosofia definitiva, feita e assente de uma vez por todas
e para todo o sempre em verdades absolutas, implicaria a paralisação, do pensamento
humano, produzindo isso apenas vertigem e ilusão!
Por analogia, a verdade é como o sol. O sol, visto através do nevoeiro, é ainda o
sol, e as propriedades físicas e químicas da sua luz, diminuídas e alteradas, são, todavia,
as propriedades fundamentais da luz solar. Se nunca o pudéssemos ver senão através
desse meio ofuscante (o nevoeiro), poderíamos, ainda assim, estudá-lo e conhecê-lo. É
assim que cada esboço, cada tentativa de definição da verdade filosófica contém em
si a indicação preciosa de alguma propriedade fundamental da verdade absoluta.
E é por isso que a cada período histórico corresponde uma determinada
filosofia, resultante, precisamente, de uma incessante busca da verdade.

Antero de Quental, Tendências gerais da Filosofia na segunda Metade do Século XX, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, p. 54. (adaptado)

No seguimento do que acabámos de ler, podemos afirmar que, atualmente, a


razão humana deixou de ser entendida como detentora (proprietária) da verdade
absoluta, mas sim como faculdade plural e versátil que procura estar o mais
próximo possível daquilo a que chamamos “verdades”. A
diversidade/multiplicidade dos discursos (diferentes versões ou teorias explicativas e
interpretativas da realidade), quer estejamos a falar de sistemas filosóficos, quer
estejamos a referir-nos ao conhecimento científico, à religião ou à política, reflete a
riqueza de perspetivas e leituras que podemos fazer da realidade. Emerge, assim,
uma nova conceção da racionalidade – uma racionalidade (argumentativa) que não
se fecha dogmaticamente (cegamente, acriticamente) numa única visão ou conceção
da realidade e da verdade, mas sim em diferentes visões e conceções que muitas
vezes se completam ou complementam.

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Muito embora a argumentação pressuponha a existência de diferentes teses e
também a possibilidade da contradição, não quer isto dizer que, com este novo modelo
de racionalidade (aberto) se caia num relativismo puro (radical) ou que se negue o
esforço de universalidade (acordo comum/consenso) dos nossos conhecimentos
acerca do real. Pelo contrário, isso significa o reconhecimento do pluralismo próprio
da racionalidade, isto é, o reconhecimento de que se pode interpretar, descrever
(dizer) e conhecer o real de diferentes maneiras (várias “verdades” possíveis).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. A busca da verdade é exclusiva da filosofia? Justifique.

2. Esclareça a noção de “verdade biodegradável” ou de “biodegradabilidade da


verdade”.

3. Explicite, à luz da filosofia socrático-platónica, a relação entre realidade e


verdade.

4. Como é entendida atualmente a razão humana e qual a nova conceção da


racionalidade que lhe está associada?

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“A LIBERDADE DE OPINIÃO É UMA FARSA”
(A MENOS QUE A INFORMAÇÃO FACTUAL ESTEJA GARANTIDA)

O texto (adaptado) que se segue é da autoria do jornalista contemporâneo Paulo


Pena (nascido em Lisboa em 1975), com um longo percurso nos grandes títulos
nacionais. Ao longo da sua carreira foi repórter e editor da revista Visão, grande repórter
do jornal Público e do Diário de Notícias. Lançou três livros de não ficção, um deles
dedicado ao tema das notícias falsas, intitulado Fábrica de Mentiras – uma viagem ao
mundo das fake news. Atualmente integra o consórcio (parceria, associação) internacional
de jornalistas de investigação Investigate Europe, que também fundou.
Paulo Pena defende que os jornalistas “não devem utilizar muito as redes
sociais”, por se tratar de meios opacos (há quem diga que 50 por cento dos 2,7 mil
milhões de contas do Facebook são falsas), sujeitos a manipulação, e alerta para a
importância da autocrítica no jornalismo. A propósito dos grandes desafios da
profissão, o jornalista diz ainda que os media “não podem limitar-se a transmitir tudo os
que os políticos dizem” (ou que querem que se diga que eles disseram), na medida em
que estão a dar voz a máscaras e a tirar a voz a pessoas e a jornais que querem
divulgar/publicar a verdade, e que a seleção criteriosa (exigente, prudente,
ponderada) de informação é um elemento natural da profissão que nunca deveria
ser esquecido, independentemente das eventuais pressões resultantes da vontade de
poder e dos interesses dos políticos. Para que se produza informação confiável e não
de qualquer maneira, não se sabendo se é verdadeira ou se é falsa, é preciso que se
estimule nas redações (dos jornais, das televisões, etc.) as funções de verificação e de
revisão de texto (ou de conteúdo), pois, só assim se produzirá “histórias verdadeiras”
nas quais as pessoas confiam.

Atentemos, pois, no texto seguinte:

Hoje, o que vou contar talvez seja só uma piada. Eu ouvi-a muitas vezes a
jornalistas mais velhos que a partilharam comigo, por isso a quero contar.
Sempre que um jornalista entrava pela primeira vez numa redação norte-
americana, a primeira lição prática que os editores lhe davam (tipo praxe) era esta: “Se a
tua mãe te disse que és muito bonito, confirma isso com outras fontes.”
Mudem a frase como quiserem: “Se a tua melhor amiga te diz que a Terra é plana,
confirma isso com outras fontes”. Por aí adiante. O truque está no método. E o método,
bem sei, tem umas palavras gregas coladas, que é apenas uma forma de lhes vestir a

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gravidade que elas merecem, como se fosse aquele uniforme de fato e gravata que
esperamos ver usado por quem diz coisas sérias na TV. Epistemologia (filosofia do
conhecimento), ou ceticismo (corrente filosófica que nega qualquer possibilidade de
conhecimento) ou teoria do conhecimento são os nomes que damos a uma das mais
comuns e importantes necessidades da nossa vida: saber o que é verdade.
Lembrem-se do jovem jornalista que teve de duvidar das simpáticas palavras da
sua mãe. O que conhecemos (somos bonitos, sem dúvida) é uma construção (mental)
que fazemos, simplesmente. Temos dados e informação e com isso concluímos alguma
coisa. Por isso, é tão importante duvidarmos. Sabermos se essa informação é verdadeira
ou faz sentido. Qualquer surfista que queira apanhar uma onda de 30 metros na Nazaré
tem de saber, antes, se ela pode aparecer e quando. Não lhe basta confiar na opinião de
alguém que tem um pressentimento. Isto vale para tudo o que fazemos: nas nossas
amizades (a minha amiga não veio aos meus anos porque preferiu ir aos anos de outra
pessoa), nos nossos amores (alguém viu a minha namorada de mão dada com outra
pessoa), na nossa vida comum (as vacinas ligam-nos à rede 5G), etc. Todos os exemplos
que dei devem fazer-nos parar para pensar, para saber mais antes de acreditarmos
que são verdadeiros. Posso garantir-vos que o (exemplo) do 5G é mentira, mas
desconfio que os outros também o sejam, pelo menos até que consigamos provas reais
de que são verdade.
E não, não se trata de uma “questão de opinião”. Uma filósofa de quem gosto
muito, Hannah Arendt (1906-1975), escreveu que a liberdade de opinião é uma farsa,
a menos que a informação factual esteja garantida e que os factos, eles próprios,
não estejam em questão. Há um outro filósofo menos reconhecido, talvez por ser um
personagem de ficção, inventado por Italo Calvino, que é o senhor Palomar, e que tem
esta regra: só dê uma opinião depois de morder a própria língua três vezes. Se, mesmo
assim, achar que vale a pena opinar, apesar da dor na língua, então faça-o.
Pelo que vejo no Youtube, no Facebook, no Instragam, a regra do senhor Palomar
não vingou (não venceu) – toda a gente tem opiniões instantâneas sobre tudo o que
corre pelos feeds naquele momento. Isto não é liberdade de opinião porque as
opiniões demoram tempo a formar-se (eu ainda não sei se os elogios da minha mãe
são verdadeiros e já recolho informação sobre isso há décadas).
Ter boas opiniões é o que nos permite escolher: o que vestir, conforme a
meteorologia; o que pensar de políticos racistas, machistas, negacionistas das alterações
climáticas; até o que imaginar para o futuro e como procurar a felicidade. Para tudo isso
precisamos de tempo. A informação de que dependem as nossas opiniões tem de ser

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testada. Devemos falar com pessoas, ler mais do que um título do jornal – ler mais do
que um jornal, aliás – duvidar e procurar respostas para as nossas dúvidas. É isto
que nos permite conhecer mais e melhor. E é disto que precisamos para dar ao mundo
aquilo que parece, em certos dias, tão escasso: sabedoria.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Por que motivo, o jornalista Paulo Pena diz que os media “não podem limitar-se
a transmitir tudo os que os políticos dizem.”?

2. Segundo este mesmo jornalista, o que é necessário para que se produza


informação confiável e não de qualquer maneira?

3. Comente a seguinte afirmação: A informação de que dependem as nossas


opiniões tem de ser testada.

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O QUE É O CONHECIMENTO?

No 10.º ano aprendemos que a filosofia é a atividade de procura de


conhecimento. Não um conhecimento qualquer, mas um conhecimento que resulta de
uma investigação que, a partir da experiência e da razão, formula um conjunto de
questões problemáticas na tentativa de encontrar uma explicação ou um sentido
para compreender o mundo e a condição humana.
O termo conhecimento entende-se como o conjunto de informações adquiridas
pelo sujeito sobre a realidade a fim de delas poder vir a colher algum uso . Envolve,
portanto, a compreensão do que é próprio de algo (ser ou objeto).
Diz-se que a filosofia (ou teoria do conhecimento ou ainda gnosiologia) é a
disciplina que estuda o conhecimento, mas constatamos que nem todo o
conhecimento é filosófico, ou, pelo menos, a aplicação desta palavra pode ter
diferentes sentidos. Se, porventura, disser que sei cozinhar, que conheço muitas
pessoas, que sei que os metais dilatam com o calor ou que domino um determinado jogo
no telemóvel ou no computador, refiro-me a diferentes tipos ou formas de
conhecimento, mas nenhum deles é filosófico.
Dizer que sei cozinhar ou que domino um certo jogo no telemóvel ou no
computador, é um tipo de conhecimento que se direciona para a capacidade de
realizar algo, ou seja, está relacionado com as aptidões que alguém tem sobre algo,
assim como saber falar, saber escrever, saber conduzir, etc.
Mas, não seria possível saber jogar um determinado jogo se ele não existisse,
não seria possível conhecer uma ou mais praias de Portugal se não houvesse costa
marítima no nosso país, não seria possível saber a data da Implantação da
República se tal não tivesse acontecido, ou se não fosse objeto de estudo e de
relato. Mesmo que não se conhecesse estes factos, eles iriam continuar a existir, mas
não seriam objeto de conhecimento.
Sem sujeito, não existiria ninguém para conhecer; sem objeto, nada existiria
para ser conhecido.

A QUE TIPO DE CONHECIMENTO SE DEDICA A FILOSOFIA?

À filosofia, mais do que um conhecimento prático (por exemplo, saber ler,


escrever, cozinhar, etc.) ou por contacto (por exemplo, conhecer algumas praias de
Portugal), interessa o conhecimento proposicional (por exemplo, saber que a

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Implantação da República foi em 1910 ou que 2+2=4), dado que se aplica à explicação
de algo, assente em proposições suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas. É este
tipo de conhecimento que exprime as nossas ideias sobre a realidade e a conceção
do mundo, e que pode ser transmitido entre as pessoas. É também aquele que,
estando ligado a juízos, suscita o problema da condição da verdade.
De que forma aquilo que pensamos ser verdadeiro o é realmente?
Que garantia poderemos ter em relação àquilo que conhecemos ou afirmamos
conhecer?
Haverá limites para o conhecimento?
Certamente, diremos que sabemos que estamos aqui, nesta sala, que estamos na
aula de filosofia e que estamos a ler este texto… Mas que garantia temos para dizer
que isto é real e que constitui efetivamente uma verdade?
Afirmar: “Estou na aula de filosofia” expressa um tipo de conhecimento
proposicional, mas em que medida é que sei que a proposição: “Estou na aula de
filosofia” é verdadeira?
Afinal, que relação existe entre aquilo que dizemos ser verdade e aquilo que
verdadeiramente o é?
A este propósito, debrucemo-nos sobre o seguinte texto, que nos relata uma
história bastante bizarra, mas, infelizmente, real:

A CERTEZA FATAL DE HOY

Garry Hoy, um brilhante advogado da prestigiada firma canadiana de advogados


Holden Day Wilson, com sede no 24.º andar de umas das torres mais altas de Toronto,
recebeu, dia 9 de julho de 1993, um grupo de advogados estagiários, guiando-os numa
visita pelo escritório. De modo a tranquilizar os estagiários com medo das alturas, decidiu
provar que a fachada de vidro que revestia a torre era totalmente segura atirando-se com
força contra ela. Mas, perante a surpresa e choque de todos, o enorme vidro cedeu! Hoy
e o vidro foram projetados para o exterior do prédio, entrando em queda livre, e,
fatalmente, o advogado acabou por morrer.
O curioso é que Hoy já tinha feito o mesmo antes e tudo correra como o esperado.
Tinha, portanto, boas razões para acreditar que não corria qualquer risco. Além disso,
confiava nas exigentes regras de construção, que obrigavam ao uso de materiais
resistentes e a inspeções rigorosas. Só que nem isso impediu que, daquela vez, aquela
parte do vidro se soltasse da estrutura.

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Qual foi a causa da morte de Hoy? Aparentemente foi o facto de o vidro não
estar bem preso. Mas se ele soubesse que o vidro não estava bem preso, não ousaria
atirar-se contra ele e, portanto, não morreria. Hoy morreu, afinal, porque tinha crenças
falsas, acerca da segurança do vidro, ou seja, morreu por desconhecimento.
Pensava que sabia que a fachada era firme, mas estava enganado: não sabia. Como se
vê, pensar que se sabe sem se saber pode ser fatal. E há muitas outras coisas que
erradamente pensamos saber. Como podemos, então, estar certos de que sabemos
seja o que for?

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Numa primeira abordagem, defina conhecimento.

2. Identifique e explicite o tipo de conhecimento a que se dedica a filosofia.

3. De acordo com o texto, qual foi a causa da morte de Hoy?

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DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA ATIVIDADE COGNOSCITIVA
(ESTRUTURA DO ATO DE CONHECER)

OS PROBLEMAS DO CONHECIMENTO

Vamos iniciar agora o estudo de alguns problemas inerentes (ligados) ao processo


de conhecimento – problemas gnosiológicos. A gnosiologia (filosofia ou teoria do
conhecimento), termo de origem grega que deriva da junção das palavras gnose
(conhecimento) e logia (estudo), é uma disciplina filosófica que estuda o
conhecimento – daí que também possamos dizer que os problemas relacionados com o
conhecimento são problemas gnosiológicos. Os estudos gnosiológicos, ao
debruçarem-se sobre o conhecimento, incidem sobre as relações existentes entre o
sujeito e o objeto, procurando esclarecer e analisar criticamente os problemas que
essas relações suscitam, nomeadamente os problemas relativos à origem, à natureza,
à possibilidade e aos limites do conhecimento.

Eis, pois, algumas questões colocadas no âmbito da gnosiologia (filosofia ou


teoria do conhecimento):

- O que é o conhecimento?

- Que tipos de conhecimento existem?

- Quais as fontes de conhecimento?

- Qual a origem do conhecimento?

- Será que o conhecimento é possível?

- Qual o fundamento do conhecimento?

Mas, neste contexto do fenómeno do conhecimento ou do ato de conhecer,


devemos começar por perguntar: o que é o sujeito? E o que é o objeto? Para
respondermos a estas questões, devemos fazer uma análise do conhecimento como
fenómeno, ou, melhor dizendo, uma análise fenomenológica do conhecimento, a qual
deu origem a uma disciplina denominada fenomenologia, associada, principalmente, ao
pensamento do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938).
Assim, importa, desde já, saber em que consiste a fenomenologia (disciplina que
estuda o fenómeno/processo do conhecimento).

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O objetivo da fenomenologia consiste, precisamente, em estudar e descrever a
estrutura geral dos fenómenos, ou seja, daquilo que existe, daquilo que acontece,
daquilo que aparece, daquilo que se mostra, daquilo que nos é dado, antes de qualquer
pressuposto, pondo de parte quaisquer teorias, crenças ou ideias prévias (preconceitos,
pré-juízos) – neste âmbito, fenómeno é tudo aquilo que se apresenta à nossa
consciência).
Assim, a fenomenologia coloca-se “antes” de toda a crença e de todo o juízo
para explorar simplesmente o que é dado (o que existe) apenas enquanto é
puramente dado, sem mais..
Nesta linha de abordagem, a fenomenologia do conhecimento, que consiste,
como o próprio nome indica, numa descrição do fenómeno do conhecimento, pondo
em relevo os elementos que intervêm neste processo, não é uma descrição da génese
(origem) do conhecimento ou das suas causas, mas sim uma descrição “pura”, na
medida em que o seu propósito é evidenciar o que significa ser objeto, o que
significa ser sujeito e que tipo de relações estes dois elementos (sujeito e objeto)
estabelecem entre si.
O conhecimento é aquilo que acontece quando um sujeito apreende
(interioriza, capta, assimila) um objeto. Para que haja conhecimento, é necessária a
existência de dois elementos fundamentais: o sujeito – que é aquele que conhece
(sujeito cognoscente) – e o objeto – aquilo que é conhecido (objeto cognoscível). Sem a
presença de um destes elementos, o conhecimento é impossível.
A fenomenologia do conhecimento não estabelece qualquer relação de
superioridade entre o sujeito e o objeto, limitando-se apenas a reconhecer a sua
mútua necessidade no ato de conhecer.
Vejamos, pois, através da leitura do texto que se segue, os aspetos/momentos
fundamentais que nos são revelados pela descrição fenomenológica do
conhecimento (relação entre sujeito e objeto):

DESCRIÇÃO FENOMENOLÓGICA DO CONHECIMENTO (RELAÇÃO SUJEITO-


OBJETO)

1. Em todo o conhecimento, um sujeito (“cognoscente” ou, se pudéssemos


empregar o termo, “conhecedor”) e um objeto (“cognoscível”, ou seja, passível de ser
conhecido) encontram-se face a face. A relação que existe entre os dois é o próprio
conhecimento.

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2. Apesar de existir entre estes dois termos ou elementos uma relação de
oposição, esta (oposição) não pode ser suprimida (anulada), uma vez que sujeito e
objeto serão sempre transcendentes relativamente um ao outro. O sujeito só é
sujeito em relação a um objeto e o objeto só é objeto em relação a um sujeito. Cada
um deles apenas é o que é pela sua relação com o outro. Daí que a sua relação seja
uma correlação (condicionam-se reciprocamente).

3. A relação constitutiva do conhecimento é dupla, mas não é reversível. O


facto de desempenhar o papel de sujeito em relação a um objeto é diferente do facto de
desempenhar o papel de objeto em relação a um sujeito. No interior da correlação,
sujeito e objeto não são, portanto, intermutáveis (não podem trocar de papel, função
ou posição entre eles) pois a sua função é essencialmente diferente.

4. A função do sujeito consiste em apreender (interiorizar/captar/conhecer) o


objeto; a do objeto em poder ser apreendido (interiorizado/captado/conhecido) pelo
sujeito e em sê-lo efetivamente.

5. Considerada do lado do sujeito, esta “apreensão” pode ser descrita como uma
saída do sujeito para fora da sua própria esfera e como uma incursão na esfera do
objeto. O sujeito apreende as determinações (características/propriedades) do objeto
e, ao apreendê-las, interioriza-as, fá-las entrar na sua própria esfera.

6. O sujeito não pode captar as propriedades do objeto senão fora de si


mesmo, pois a oposição do sujeito e do objeto não desaparece na união que o ato
de conhecimento estabelece entre eles; antes permanece indestrutível. A
consciência desta oposição é um aspeto essencial da consciência do sujeito face
ao objeto. O objeto, mesmo quando é apreendido, permanece, para o sujeito, como algo
que lhe é exterior; é sempre o “objectum”, quer dizer, o que está diante dele. O sujeito
não pode captar o objeto sem sair de si (sem se transcender); mas não pode ter
consciência do que é apreendido, sem reentrar em si, sem se reencontrar consigo
mesmo, na sua própria esfera. O conhecimento realiza-se, pois, por assim dizer, em
três tempos: o sujeito sai de si, está fora de si e regressa novamente a si (com as
propriedades do objeto).

7. O facto de o sujeito sair de si para apreender o objeto não muda nada neste
(no objeto). As características do objeto, se bem que sejam apreendidas e como que
“introduzidas” na esfera do sujeito, não são, contudo, deslocadas. Apreender o
objeto não significa fazê-lo entrar no sujeito, mas sim reproduzir neste as
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determinações (propriedades/características) do objeto numa construção mental que
terá um conteúdo idêntico ao do objeto (caso este seja adequadamente apreendido pelo
sujeito). Esta construção operada no conhecimento é a “imagem” do objeto. O
objeto não é modificado pelo sujeito, mas sim o sujeito pelo objeto. Apenas no
sujeito alguma coisa se transforma pelo ato de conhecimento. No objeto nada de novo é
criado; mas no sujeito nasce a consciência do objeto, com o seu conteúdo, com as
suas características, com as suas propriedades e a sua imagem.

Nicolai Hartmann (1945), Les Principes d’une Metaphysique de la Connaissance, vol. I, Paris,
Aubier-Montaigne, pp. 87-88

Resumindo, o sujeito e o objeto não se confundem, “são originariamente


separados um do outro, transcendentes em relação ao outro”. Existe, pois, entre eles,
uma relação de oposição.
Mas, apesar de opostos, precisam um do outro para serem considerados
sujeito e objeto. Com efeito, “cada um deles apenas é o que é pela sua relação com o
outro”, o que significa que a sua relação constitui uma correlação.
Embora correlacionados não podem trocar de papéis ou de funções (relação de
irreversibilidade de papéis ou de funções). O papel do sujeito é o de apreender o
objeto; o do objeto é o de poder ser apreendido pelo sujeito e de o ser efetivamente.
Dado que sujeito e objeto têm funções diferentes, o resultado do conhecimento
não será igual para ambos. De facto, o sujeito, saindo de si para captar as
propriedades ou as características do objeto, é modificado por este, ao passo que o
objeto não é modificado pelo sujeito.
Uma vez que, neste processo, o sujeito apreende a imagem, as propriedades ou
as características do objeto, então, podemos considerar o conhecimento como a
relação entre o sujeito e o objeto que se traduz numa representação mental do objeto
por parte do sujeito.

TIPOS DE CONHECIMENTO

Todo o conhecimento pode ser considerado uma construção (mental) levada a


cabo por um certo sujeito num determinado contexto, pois, cada sujeito tem as suas
experiências, vivências, reflexões, que constituem modos de pensar, de sentir, de agir
e de conhecer diferentes dos de outros sujeitos – daí podermos dizer que todo o ato de

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conhecimento é inseparável de um contexto. A relação entre sujeito e objeto ocorre
sempre dentro de um contexto (contexto pessoal, social, cultural).
O sujeito interage com o real, intervém na definição do objeto, integrando-o na
sua visão do mundo, uma vez que o conhecimento (representação mental) é sempre
resultado de uma abordagem seletiva, interpretativa e construtiva (por parte do
sujeito). Além disso, o próprio modo (subjetividade) como o sujeito se relaciona com o
objeto não é uniforme, o que nos leva a afirmar a existência de diferentes tipos de
conhecimento (perante a mesma realidade ou objeto, pode haver diferentes
conhecimentos e perceções por parte de quem os apreende e perceciona – a isto
chamamos subjetividade).
Enquanto ser-no-mundo, o ser humano encontra-se condenado à experiência.
Aliás, viver é estar sujeito a uma pluralidade de experiências. Assim, a experiência,
em certo sentido, pode ser definida do seguinte modo:

“A apreensão, por parte de um sujeito, de uma realidade, de uma forma de ser, de


um modo de fazer, de uma maneira de viver, etc., constituindo, em muitos casos, um
modo de conhecer algo imediatamente antes de todo o juízo que se formula sobre aquilo
que é apreendido.”

Ferrater Mora, 1994, Dicionário de Filosofia, vol. 2, Barcelona, Editorial Ariel, S. A., p. 1181.

Esta noção de “experiência” permite-nos diferenciar o conhecimento ligado de


modo direto e imediato à experiência do conhecimento baseado em juízos ou
proposições – uma coisa é que Álvaro saiba nadar (saber-fazer – saber prático); outra
coisa é que Álvaro saiba que nadar faz bem à saúde (saber-que – saber teórico).
No primeiro caso, o objeto do conhecimento é uma atividade (prática) no
segundo caso, o objeto de conhecimento é a proposição (teórica) segundo a qual
“nadar faz bem à saúde”.
O primeiro caso é do domínio do saber-fazer (prático); o segundo caso é do
âmbito do saber-que (teórico).
Também se considera existir o conhecimento por contacto – sempre que
alguém, por exemplo, conhece uma ilha (uma realidade concreta), na medida em que a
visitou.

Em síntese, há, então, a considerar TRÊS TIPOS DE CONHECIMENTO:

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1. CONHECIMENTO POR APTIDÃO ou SABER PRÁTICO (saber-fazer) – é o
conhecimento prático ou conhecimento de atividades, ligado à capacidade, aptidão
(habilidade) ou competência para fazer alguma coisa.

Exemplos: saber cozinhar; saber conduzir; saber dançar; saber consertar calçado;
saber tratar de uma horta; etc.

2. CONHECIMENTO PROPOSICIONAL ou TEÓRICO (saber-que) – é o


conhecimento que tem por objeto proposições ou pensamentos verdadeiros (proposições
verdadeiras), de verdades de factos.

Exemplos: saber que 3+53=56; que a Lua gira em torno da Terra; que Vasco da
Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia; que os ovos têm proteínas; etc.

NOTA: O saber-que também se designa por conhecimento factual, podendo


ser expresso com outras locuções: por exemplo, “sei onde” (“Sei onde está o livro”); “sei
quando” (“Sei quando Portugal joga com a Espanha”); “sei quem” (“Sei quem escreveu
Os Maias”), etc.

3. CONHECIMENTO DIRETO ou POR CONTACTO – é o conhecimento direto


de alguma realidade: pessoas, lugares, coisas, etc. (realidades concretas).

Exemplos: conhecer o presidente dos EUA – isto é, conhecê-lo mesmo,


pessoalmente, e não simplesmente conhecê-lo por ouvir falar dele ou vê-lo nos meios de
comunicação social; conhecer Veneza – ou seja, ter visitado esta cidade.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que é a gnosiologia?

2. Em que consiste a fenomenologia do conhecimento?

3. Apresente os aspetos/momentos fundamentais que integram a


descrição fenomenológica do conhecimento (a relação entre o sujeito e o objeto).

4. Explicite o sentido da seguinte afirmação: “Todo o ato de conhecimento é


inseparável de um contexto.”

5. Defina experiência.

6. Distinga conhecimento ligado de modo direto e imediato à experiência


de conhecimento baseado em juízos ou proposições.

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7. Distinga os tipos de conhecimento estudados e dê um exemplo para cada
um.

DEFINIÇÃO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO


(DE SÓCRATES E DE PLATÃO)

CONHECIMENTO E JUSTIFICAÇÃO

Quando afirmamos conhecer algo, o que conhecemos nós? Poderemos afirmar


com rigor que conhecemos? Certamente, já nos aconteceu ler um livro, ver um filme ou
ouvir uma música em momentos distintos da nossa vida e reconhecer que algo mudou.
Será isso o que podemos chamar conhecimento? Se sim, de onde vem? Quais as suas
fontes? Que garantias temos de que aquilo que julgamos saber é verdadeiro
conhecimento?
Da antiguidade até aos nossos dias, vários filósofos colocaram estas interrogações
apresentando teorias distintas, muitas vezes antagónicas (opostas), sobre o problema do
conhecimento. Mas se existem tantas visões do mundo, tantos modos de entender a
realidade, e se nós mesmos podemos mudar a forma como olhamos para as coisas, o
que é, afinal, o conhecimento? E poderá o conhecimento ser universalmente verdadeiro?
É o que iremos procurar saber…
Debrucemo-nos, então, sobre a definição tradicional de conhecimento: o tipo de
conhecimento que aqui vamos ter em conta é somente o saber-que ou conhecimento
proposicional (saber teórico).
As proposições (afirmações/enunciados ou negações acerca de uma determinada
coisa ou realidade) como sabemos, podem ser verdadeiras ou falsas. Mas só as
proposições verdadeiras é que permitem que se estabeleça uma relação adequada
entre o sujeito cognoscente (que conhece) e a realidade. Em todo o conhecimento
proposicional verifica-se uma relação entre um sujeito e um objeto, sendo esta relação
considerada uma crença. Neste sentido, podemos definir a crença como a atitude de
adesão (aceitação, convicção) a uma determinada proposição (afirmação/enunciado),
tomando-a (aceitando-a) como verdadeira.
Sendo assim, saber é, em primeiro lugar, acreditar naquilo que se sabe. Não
faria sentido dizer: “Eu sei que a Revolução Industrial começou na Inglaterra, mas não
acredito nisso”.
O conhecimento parte, assim, de uma convicção do sujeito relativamente ao
objeto. Como tal, a crença é uma condição necessária do conhecimento. Contudo,

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também se pode acreditar em falsidades. Daí que as crenças possam ser verdadeiras
ou falsas.
O conhecimento da verdade, ao invés do conhecimento de coisas, tem um
contrário, que é o erro. Podemos crer tanto no falso como no verdadeiro. Sabemos que
sobre muitos assuntos há opiniões diversas e incompatíveis sustentadas por diferentes
pessoas; algumas das crenças, por conseguinte, poderão ser erróneas (indutoras de
erro). Ora, visto que sucede que as crenças erróneas são sustentadas frequentes vezes
com tanta energia como as verdadeiras, torna-se um problema bem difícil o de como
distingui-las das verdadeiras.
Então, podemos perguntar: o que entendemos por verdade e falsidade?
Há três pontos a observar na busca da natureza da verdade:
1. A teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, ou seja, a
falsidade.
2. O verdadeiro e o falso são, de facto, propriedades das crenças e das
proposições.
3. O verdadeiro e o falso de qualquer crença dependem de algo exterior à crença.
Exemplo: se creio que Carlos I veio a falecer na prisão, creio veridicamente, em virtude de
um facto histórico, que há dois séculos e meio tal situação se desenrolou. Se creio que
Carlos I faleceu na sua cama, terei, então, uma crença falsa.

O exposto alerta-nos, por um lado, para o facto de as crenças poderem ser


verdadeiras ou falsas e, por outro, para o facto de o verdadeiro e o falso de qualquer
crença dependerem de algo exterior à própria crença – saber que Lisboa é a capital
de Portugal é acreditar que Lisboa é a capital de Portugal, tratando-se de uma crença
verdadeira. Todavia, se alguém acreditar que Paris é a capital de Portugal, então possui
uma crença falsa.
Ora, uma crença falsa não corresponde, em rigor, a qualquer conhecimento,
ainda que aquele que a possui julgue deter o conhecimento.
Como tal, a crença, embora sendo uma condição necessária para o
conhecimento, não é uma condição suficiente (não basta). Para haver conhecimento é
necessário não só que uma pessoa acredite em algo, como também que isso seja
verdadeiro. Não basta, portanto, a crença, uma vez que, para além da crença, a
verdade é, igualmente, uma condição necessária do conhecimento.
Mas o conhecimento não se reduz à mera crença verdadeira – suponhamos
que alguém ignorante em matéria futebolística possui uma crença verdadeira acerca de

19
um resultado de um jogo que vai ser disputado entre dois clubes que lhe são totalmente
desconhecidos. Essa pessoa, embora acerte, de facto, no resultado do encontro não
dispõe de qualquer justificação racional para acreditar em tal desfecho. Para que a
crença fique totalmente justificada é necessário esperar pelo fim do desafio.
Ninguém possui conhecimento se não justificar absolutamente (completamente) a
sua crença. Torna-se necessário dispor de provas, razões ou evidências para justificar
essa crença. Por conseguinte, a justificação é também uma condição necessária do
conhecimento.
Que condições são, então, requeridas para que haja conhecimento? Vejamos:

CONDIÇÕES DO CONHECIMENTO

1.ª – CRENÇA.

2.ª – VERDADE.

3.ª – JUSTIFICAÇÃO.

A definição clássica ou tradicional de conhecimento inclui, então, três


componentes (daí podermos dizer que se trata de uma definição tripartida) – a crença, a
verdade e a justificação (como condição do verdadeiro conhecimento). É no diálogo
entre Sócrates e Teeteto, escrito pelo filósofo Platão, que encontramos de forma
explícita esta definição – o conhecimento é uma crença verdadeira justificada:

SÓCRATES – Amigo, se a opinião verdadeira e o saber fossem o mesmo, nem


mesmo o juiz mais competente poderia emitir uma opinião correta sem saber. E, contudo,
neste momento, cada uma delas parece ser diferente.

TEETETO – Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e que
ouvi alguém dizer: que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e
que a opinião carente de explicação se encontra à margem do saber. E aquilo de
que não há explicação não é suscetível de se saber, sendo, pelo contrário, apenas
cognoscível (passível de ser conhecido) aquilo de que há explicação (justificação).

Platão, Teeteto ou Da Ciência, 2.ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 300-302 (adaptado)

Questionado por Sócrates acerca da melhor definição de saber (conhecimento),


Teeteto responde que o saber equivale à opinião verdadeira, ou seja, o saber (ou
conhecimento) identifica-se com a opinião ou crença verdadeira.

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Ora, esta identificação (entre o saber e a opinião ou crença verdadeira) é posta
em causa por Sócrates, que afirma existir uma arte suscetível (capaz) de revelar que a
crença ou opinião verdadeira não é conhecimento – trata-se da arte dos retóricos
(sofistas), os quais persuadem (convencem) e levam as pessoas a ter as opiniões que
eles querem e a acreditar no que eles querem. Mediante a eloquência persuasiva
(retórica), fazem nascer (e instalam) essas crenças ou opiniões nas pessoas, sem que
na realidade ensinem o que quer que seja (a quem os escuta), dando-lhes a ilusão do
contrário.
Acontece, inclusive, que os juízes são persuadidos (convencidos) e, apoiados
apenas no ouvir dizer, julgam acerca de determinados factos, formam deles opiniões
que consideram verdadeiras e pronunciam sentenças que consideram corretas, sem,
todavia, disporem de ciência ou conhecimento em relação a esses factos – daí que a
opinião verdadeira e o saber não sejam, afinal, a mesma coisa.
Teeteto afirma, em seguida, ter ouvido alguém dizer que “o saber é opinião
verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião carente de explicação se
encontra à margem do saber” – isto significa que a crença justificada, isto é,
acompanhada de explicações ou razões – equivale ao conhecimento, ao passo que a
crença que não é justificada, ou seja, que é desprovida de explicações (justificações),
se encontra excluída do conhecimento.
Sendo assim, são incognoscíveis (não podem conhecer-se) as coisas acerca das
quais não dispomos de explicação, sendo apenas cognoscíveis (que podem conhecer-
se) aquelas que é possível explicar.
Todas as três condições referidas – crença, verdade e justificação – são
necessárias para que haja conhecimento. Consideradas isoladamente, nenhuma delas
é suficiente.
Em suma, se alguém tiver uma crença acerca de algo, se essa crença for
verdadeira e esse dispuser de boas razões para acreditar nisso, então dispõe de
todas as condições necessárias e suficientes para ter conhecimento.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite a noção de crença no âmbito do conhecimento.

2. Enuncie os pontos/requisitos a observar na busca da natureza da verdade.

3. Distinga crença verdadeira de crença falsa. Exemplifique.

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4. Em que medida se pode afirmar que a opinião verdadeira dos juízes e o saber
não são a mesma coisa?

5. Explicite o conteúdo da seguinte afirmação:


“A crença, embora sendo uma condição necessária para o conhecimento não é
uma condição suficiente”.
6. Apresente a definição clássica ou tradicional de conhecimento?

CRÍTICAS À DEFINIÇÃO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO

Num artigo publicado na revista Analysis, em 1963, Edmund Gettier (1927-2021),


filósofo norte-americano, contestou a definição tradicional de conhecimento,
apresentando contra exemplos que revelam a possibilidade de termos uma crença
verdadeira justificada sem que tal crença equivalha a um efetivo conhecimento, ou
seja, ainda que se verifiquem as três condições – CRENÇA, VERDADE E
JUSTIFICAÇÃO – o sujeito pode não ser detentor (possuidor) do conhecimento. Por
outras palavras, é possível que alguém não possua conhecimento, mesmo que
sejam realizadas as três condições: crença, verdade e justificação.
Vejamos um exemplo:

No café, a televisão vai transmitindo um desafio de futebol entre Portugal e o Brasil.


Liliana, que não está a ver o jogo, porque está a estudar para o exame de filosofia, ouve,
a certa altura, um aplauso bastante ruidoso e acredita que a seleção portuguesa acabou
de marcar um golo. A sua crença é verdadeira: de facto, Cristiano Ronaldo inaugurou o
marcador para a equipa lusa. Além de verdadeira, a crença está justificada: o aplauso que
se ouve fornece boas razões para Liliana pensar que Portugal já ganha.
Todavia, no café não se encontra ninguém, exceto dois indivíduos brasileiros que
ficaram silenciosos durante a ocorrência. Os aplausos tiveram, afinal, origem num bar ali
perto, onde não há televisão e onde está a decorrer um concurso de caraoque. Por mera
coincidência, o “cantor” em causa acabou a sua atuação, que seria fortemente aplaudida,
no mesmo momento em que Ronaldo marcou.
Assim, Liliana tem uma crença verdadeira justificada. Mas não se pode afirmar que
isso seja conhecimento. Com efeito, a razão que a leva a pensar que Portugal marcou
um golo (os aplausos vindos do bar no âmbito de um concurso de caraoque) não é uma
razão que esteja ligada a esse golo. Temos, assim, uma crença verdadeira justificada,
mas desadequada.

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Este exemplo mostra-nos que, embora alguém tenha uma justificação razoável
para acreditar em algo verdadeiro, tal crença não é necessariamente conhecimento.
Pode haver crenças verdadeiras justificadas acidentalmente, por acaso, ou por
mera coincidência. Neste exemplo, a relação da justificação com a crença
verdadeira não é adequada, sendo a verdade da crença apenas o resultado da sorte,
do acaso ou da mera coincidência.
Face à contestação avançada por Gettier, parece, pois, que definir
“conhecimento” como sendo uma crença verdadeira justificada não é apresentar
uma definição com todas as CONDIÇÕES SUFICIENTES.
Pegando no exemplo acima dado, para que a crença de Liliana a respeito do
golo de Portugal estivesse justificada, tal crença devia ter sido causada por esse
evento e não pelo concurso de caraoque. Como não o foi, a crença não está
(realmente) justificada (está desadequada).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Refira qual o principal aspeto da crítica de Edmund Gettier à definição


tradicional de verdade.

2. Leia o texto e responda às questões que lhe seguem:

“Henry está a ver televisão numa tarde de junho. Assiste à final de Ténis
masculina de Wimbledon e, na televisão, Carlos Alcaraz vence Novak Djokovic; o
resultado é de dois a zero e match point para Carlos Alcaraz no terceiro set. Carlos
Alcaraz ganha o ponto. Henry crê justificadamente que:

a) Acabei de ver Carlos Alcaraz ganhar a final de Wimbledon deste ano.


E infere (conclui) sensatamente que:

b) Carlos Alcaraz é o campeão de Wimbledon deste ano.

No entanto, as câmaras que estavam em Wimbledon deixaram, na realidade de


funcionar, e a televisão está a passar uma gravação da competição do ano passado. Mas,
enquanto isto acontece, Carlos Alcaraz está prestes a repetir a estrondosa vitória do ano
passado. Portanto, a crença b) de Henry é verdadeira, ele tem decerto justificação para
nela crer. Contudo (sabendo o que sabemos), dificilmente aceitaríamos que Henry
conhece b)”.

Jonathan Dancy, Epistemologia Contemporânea, Lisboa, Edições 70, pp. 41-42 (adaptado)

23
2.1 Refira quais os elementos do texto que correspondem à crença verdadeira
e quais correspondem à justificação que Henry possui.

2.2 Depois de indicar as circunstâncias referidas no texto que fazem com que
este exemplo apoie a contestação de Gettier à definição tradicional de conhecimento,
esclareça em que medida se pode afirmar que Henry não conhece b).

POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO
(DOGMATISMO vs. CETICISMO)

Perguntar pela possibilidade do conhecimento equivale a perguntar se o sujeito


apreende (conhece) efetivamente o objeto.
Não parece sensato afirmar que o conhecimento não é possível. Afinal, todos
sabemos alguma coisa acerca do mundo e de nós próprios. Parece estranho pôr-se em
dúvida certas crenças, como as seguintes: “Os leões são animais carnívoros”, “O Brasil é
um país da América do Sul” ou “O coração é um órgão que bombeia o sangue”.
Haverá, claro, afirmações mais duvidosas, tais como: “Existem extraterrestres” ou
“A alma subsiste para além da morte do corpo”, mas o que importa é que estamos certos
de muitas coisas e isso também é indispensável para a nossa sobrevivência.
Porém, questionamo-nos:
Será que sabemos mesmo alguma coisa?
Será que teremos alguma vez um conjunto de crenças verdadeiras acerca das
coisas em geral?
Será que podemos conhecer umas coisas e outras não? Ou será que o
conhecimento não é possível?
O dogmatismo é uma perspetiva filosófica que considera que o conhecimento é
possível. Já o ceticismo, na sua forma radical, nega tal possibilidade.
Analisemos, então, estas duas perspetivas ou teorias acerca da possibilidade (ou
impossibilidade) do conhecimento.

DOGMATISMO

O dogmatismo, quando encarado como a atitude própria do realismo ingénuo


(teoria filosófica que considera que o sujeito, no ato de conhecer, capta um objeto, que lhe
é exterior e independente, tal e qual como ele é), entende que as coisas são exatamente

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como as captamos, ou seja, considera o conhecimento como um espelho fiel do real
e, portanto, nem sequer põe o problema de saber se o sujeito apreende ou não o
objeto. Neste sentido, o dogmatismo a que aqui se faz referência (dogmatismo
ingénuo) não coloca em dúvida a possibilidade do conhecimento, acreditando que
os objetos nos são dados diretamente e de um modo absoluto, tal como são em si
mesmos.
Assim, o dogmático é aquele que, depositando confiança na razão, considera
que é possível chegar à certeza e à verdade, entendendo-se aqui “certeza” como
sendo a consciência de que se possui a verdade, associada a uma adesão sem reservas
a isso que se julga ser verdadeiro.
Na Idade Moderna (séc. XVII), alguns filósofos manifestaram uma forte confiança
na razão humana, dando origem a uma espécie de movimento ou corrente filosófica, ao
qual se chamou otimismo racionalista, que se alicerçou (baseou/fundou) na ideia de que
é possível alcançar a verdade unicamente por via do exercício desta mesma razão
ou entendimento. Filósofos como Descartes (1596 – 1650), Leibniz (1646 – 1716) e
Espinosa (1632 – 1677) foram considerados dogmáticos e foram apontados como os
principais representantes deste otimismo racionalista.

CETICISMO

Ao contrário do dogmatismo, o ceticismo é uma corrente filosófica que afirma não


ser possível ao sujeito apreender, de um modo efetivo ou de um modo rigoroso, o
objeto.
Embora não possamos falar de uma escola cética na antiguidade, mas sim de
várias correntes, considera-se Pirro de Élis (365 – 275 a. C.) o fundador do ceticismo
radical (ou absoluto). Segundo Pirro, é impossível ao sujeito apreender o objeto, não
sendo, por conseguinte, possível qualquer conhecimento. O cético pirrónico nega que
haja justificações suficientes para as nossas crenças (trata-se de uma espécie de
negacionismo).
O filósofo Sexto Empírico (séculos II-III d. C.), também cético pirrónico, compilou
(organizou) as diversas abordagens do ceticismo, tendo-nos apresentado os argumentos
que conduzem à dúvida e que levavam os céticos à suspensão do juízo, isto é, a um
estado de neutralidade em que nada se afirma e nada se nega.
Sinteticamente, eis alguns argumentos:

ARGUMENTOS PARA A SUSPENSÃO DO JUÍZO


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1.º Argumento – a existência, relativamente ao mesmo objeto, de sensações e
perceções diferentes e até incompatíveis, para diferentes pessoas ou
circunstâncias diversas, não havendo, assim, a possibilidade de distinguir o que é
verdadeiro do que é falso.
Exemplo: um barco parece pequeno e imóvel quando visto ao longe, mas parece
grande e em movimento se visto ao perto.

2.º Argumento – o facto de os objetos, pelas diversas formas como se nos


apresentam, desencadearem ilusões e aparências. Daí que os sentidos muitas
vezes nos enganem a respeito das coisas, não havendo a possibilidade de decidir
qual a verdadeira realidade dos objetos.
Exemplo: por vezes, parece-nos ver fumo quando, afinal, se trata apenas de
nevoeiro e o contrário; parece-nos que o Sol se move quando, na verdade, não se move;
parece-nos que uma vara mergulhada na água está torta, devido ao efeito da refração da
luz.

3.º Argumento – a existência de opiniões divergentes a respeito dos mais


variados assuntos, tornando impossível que nos decidamos por uma ou por outra.
Exemplo: em relação a Deus, uns afirmam que Deus existe e outros negam a sua
existência, não havendo, portanto, consenso.

4.º Argumento – o facto de nada ser compreendido por si, associado ao facto
de nada poder ser verdadeiramente compreendido com base noutra coisa leva a
que, para justificar uma crença, tenha que se recorrer a outra e assim
sucessivamente até ao infinito (regressão infinita da justificação).
Exemplo: justifico a crença de que uma bomba explodiu com outra crença: li no
jornal. Justifico esta ao pensar que o jornal não mente. Justifico esta última com a crença
de que os jornalistas são pessoas sérias, etc.

O grande problema do ceticismo radical (ou absoluto) é que ao negar toda e


qualquer possibilidade de conhecimento acaba por se anular a si próprio, porque,
ao afirmar que o conhecimento é impossível já está com isto a exprimir um
conhecimento (o conhecimento de que nada pode ser conhecido), caindo numa
contradição consigo mesmo.
Mesmo o ceticismo moderado (também chamado ceticismo mitigado), que
defende que não há verdade nem certeza mas apenas probabilidade, afirmando que
não podemos nunca ter a pretensão de que os nossos juízos sejam verdadeiros,
26
mas apenas que sejam prováveis, acaba por, também ele, entrar em contradição,
porque o conceito de probabilidade pressupõe o de verdade. Ora, como provável é
aquilo que se aproxima do verdadeiro, quem renuncia ao conceito de verdade (como
é o caso tanto dos céticos radicais como dos céticos moderados) tem, pois, de
abandonar também o conceito de probabilidade.
Já a postura cética em geral pode ser relacionada com a “douta ignorância”
(consciência e reconhecimento do sujeito da sua própria ignorância – uma ignorância
sábia), atitude filosófica adotada por Sócrates (470 – 399 a. C.), que, traduzida na
afirmação “Só sei que nada sei”, equivale a uma disposição e abertura da mente em
relação à procura da verdade – trata-se, pois, de uma ignorância que não equivale já à
ideia cética de que o conhecimento não é possível, mas sim à preparação para a
pesquisa da verdade e não de uma defesa ou de uma posição inflexível, fechada, de
que não é possível alcançá-la.
Seja como for, e independentemente das críticas que lhe são movidas, o ceticismo
adquire um papel importante no nosso desenvolvimento intelectual, na medida em que é
quando se começa por adotar uma postura cética perante determinado problema
que se procede com maior prudência na resolução de tal problema. Só desse modo
é possível o inconformismo perante as soluções apresentadas, o que nos move a
buscar novas soluções.
Quando faz parte do espírito crítico e autónomo, o ceticismo adquire um
carácter metódico. É um meio para alcançar a verdade e não uma confissão explícita
de que a não podemos encontrar. Descartes traduziu-o na sua dúvida metódica (que
iremos caracterizar mais adiante). Com a dúvida liberta-se a razão e é possível alcançar
o conhecimento. Este ceticismo metódico opõe-se ao ceticismo sistemático, que se
fica pela dúvida como um princípio definitivo (radical/absoluto).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga, de um modo geral, dogmatismo de ceticismo.

2. Sintetize os argumentos dos céticos radicais que os levam à suspensão do


juízo.
3. Esclareça o conteúdo/sentido da seguinte afirmação: “Tanto o ceticismo
radical (ou absoluto) como o ceticismo moderado (ou mitigado) anulam-se a si próprios.”

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4. Assinale a importância da postura cética no nosso desenvolvimento
intelectual.

FONTES DE CONHECIMENTO
(A PRIORI e A POSTERIORI)

O que agora se nos impõe é averiguar quais as fontes do conhecimento humano,


o que equivale a indicar algumas das formas de justificação para o conhecimento.
Quando falamos em “fontes de conhecimento”, estamos a pressupor a ideia de
que há diferentes formas de o justificar. A este nível, distinguimos o conhecimento a
priori do conhecimento a posteriori.
Ao considerarmos a multiplicidade de juízos ou proposições que formulamos,
podemos constatar que nem todos têm a mesma origem: sabemos que “o todo é maior
do que cada uma das suas partes” (por exemplo, um bolo, inteiro, é maior do que cada
uma das fatias em que se pode dividir) ou que “2+2=4” apenas pensando nisso. A fonte
destes conhecimentos é a razão ou o pensamento (a priori).
Diferentemente, sabemos que “o rio Tejo é caudaloso (abundante)” porque lhe
vemos o caudal, sabemos que “as aves cantam” porque as ouvimos cantar. A fonte
destes conhecimentos, são, respetivamente, os sentidos da visão e da audição – ou,
falando em geral, é a experiência sensível, o que resulta num conhecimento a posteriori.
Perguntar pela fonte do conhecimento equivale, neste sentido, a perguntar pela
forma como é possível conhecer a verdade de um determinado juízo ou pela
justificação que apresentamos para esse conhecimento.
Se, recorrendo apenas ao pensamento/razão/entendimento, independentemente
da experiência, sabemos que “um triângulo é um polígono de três lados”, então estamos
perante um juízo a priori. Por sua vez, sabemos que “o quadro é branco” apenas através
da experiência, estando, assim, perante um juízo a posteriori.

Vejamos o que distingue ambos os juízos:

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JUÍZOS A PRIORI – por definição, são juízos cuja verdade pode ser conhecida
independentemente de qualquer experiência, tendo, portanto, origem no pensamento ou
na razão.
Caracterizando-os, estes juízos:

a) são universais – no sentido em que não admitem qualquer exceção, sendo


verdadeiros sempre e em toda a parte;

b) são necessários – uma vez que são verdadeiros em quaisquer circunstâncias


e negá-los implicaria entrar em contradição (são forçosamente, necessariamente,
verdadeiros e não podem deixar de o ser).

JUÍZOS A POSTERIORI – por definição, são juízos cuja verdade só pode ser
conhecida através da experiência sensível (dos sentidos).

Caracterizando-os, estes juízos:

a) não são estritamente universais – porque admitem exceções, podendo não


ser verdadeiros sempre e em toda a parte (por exemplo, há quadros que são brancos mas
nem todos os quadros que existiram, existem e possam vir a existir são brancos);

b) não são necessários – são contingentes (variáveis), ou seja, são


verdadeiros, mas poderiam ser falsos, e negá-los não implica entrar em contradição (por
exemplo, “o quadro é branco” – este quadro concreto, o quadro desta sala – é um juízo a
posteriori verdadeiro, mas poderia ser falso se o quadro fosse de outra cor ou se o
substituíssem por outro de cor diferente).
Esta diferenciação ajuda-nos a compreender a distinção entre dois modos de
conhecimento – o conhecimento a priori e o conhecimento a posteriori:

CONHECIMENTO A PRIORI – baseia-se em juízos a priori, tendo a sua fonte ou


origem apenas no pensamento ou na razão. É o conhecimento teórico/racional
justificado pela razão (raciocínio “puro”) e não pela experiência.
Exemplos:
“O triângulo é um polígono de três lados.”
“A = A”

CONHECIMENTO A POSTERIORI – baseia-se em juízos a posteriori, tendo a


sua origem na experiência. É o conhecimento empírico justificado pela experiência.
Exemplos:
“O Francisco é mais alto que o António.”

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“Hoje, em Marco de Canaveses, está a chover.”

O texto que se segue, da autoria do eminente filósofo alemão Immanuel Kant


(1724 – 1804), tece considerações importantes acerca das fontes de conhecimento,
alertando-nos para a distinção entre “começar com a experiência” e “derivar da
experiência”:
“Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência;
efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de
conhecer senão os objetos que afetam os nossos sentidos e que, por um lado, originam
por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa
faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando,
assim, a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina
experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede (está antes)
em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início.
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova
que todo ele derive da experiência, pois, a informação que nos chega pela via da
experiência, através das impressões sensíveis, é processada pela razão (ou
entendimento) e, só depois disso, convertida em conhecimento.
Há, pois, pelo menos, uma questão que carece de um estudo mais atento e que
não se resolve à primeira vista, que é esta: haverá um conhecimento independente da
experiência e de todas as impressões dos sentidos? A resposta é: há, sim, e esse
conhecimento denomina-se a priori e distingue-se do empírico, cuja origem é a
posteriori, ou seja, na experiência.”

Kant, Crítica da Razão Pura, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 36-37.

O texto, como já foi dito, alerta-nos para a distinção entre “começar com a
experiência” e “derivar da experiência” – uma vez que embora todo o conhecimento
comece com a experiência, nem todo o conhecimento deriva da experiência. É sempre a
experiência que, para além de gerar representações em nós, põe “em movimento a
nossa faculdade intelectual”, permitindo-nos, assim, reconhecer que há
conhecimentos a priori, independentes dela (experiência) e das várias impressões dos
sentidos.
Ora, se afirmarmos: “O todo é maior do que cada uma das suas partes” (juízo a
priori), não estamos a dizer nada que já não esteja implícito no conceito de “todo”;
enquanto se dissermos: “A cadeira é azul” (juízo a posteriori), estamos a afirmar algo que
não está implícito no conceito de “cadeira” (porque existem cadeiras de muitas cores).
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Ora, baseados nesta distinção, há uma pergunta de inegável importância que,
inevitavelmente, o nosso raciocínio nos impõe que seja colocada: uma vez que não
derivam da experiência e são independentes dela, bem como das impressões sensíveis
que dela resultam, será que os juízos a priori nos permitem aumentar o nosso
conhecimento?
Kant dividiu os juízos em (três tipos) analíticos, sintéticos e sintéticos a priori:

JUÍZOS ANALÍTICOS – são aqueles cujo predicado está implícito


(incluído/contido) no conceito do sujeito, encontrando-se pela simples análise a
explicação desse conceito. Estes juízos são universais e necessários.
Por exemplo, quando afirmo que “O triângulo é um polígono com três lados”, eu
consigo, apenas pela própria análise do conceito “triângulo” chegar à
conclusão/conhecimento de que, efetivamente, o triângulo é um polígono com três
lados, sem precisar de recorrer a qualquer experiência – ou seja, para tal, bastou-me
usar uma faculdade a que chamamos razão ou entendimento (raciocínio puro e
lógico).
Outro exemplo pode ser o do juízo: “O todo é maior do que cada uma das suas
partes.” Ora, em relação a este juízo, tal como no anterior, no conceito de “todo” já está
implícito o predicado “maior do que cada uma das suas partes”, bastando-me, para
chegar a essa conclusão (de forma racional, lógica), analisar o próprio conteúdo da
proposição, sem ter que recorrer à experiência, pois, eu sei que, apenas por uma via
estritamente racional, a priori, por exemplo, um bolo, inteiro, é maior do que cada uma
das fatias em que poderei dividi-lo (sejam elas em que número e tamanho forem, nunca
serão, cada uma delas, maior do que o bolo como um todo). No entanto, pela sua
natureza, os juízos analíticos não contribuem para aumentar o nosso conhecimento
(nada acrescentam ao que já sabemos).

JUÍZOS SINTÉTICOS – são aqueles cujo predicado não está implícito no


conceito do sujeito. Não são estritamente universais e são contingentes (variáveis e
dependentes da experiência).
Exemplo: “Os habitantes de Goa são morenos.” – a propósito deste juízo, para
sabermos se isso é verdade ou não (que “os habitantes de Goa são morenos”)
precisamos de algo mais do que o simples conceito de “habitantes de Goa”. É, pois,
necessário recorrer à observação, à experiência, para constatarmos se “os habitantes
de Goa” são, de facto, “morenos” – como tal, os juízos sintéticos são extensivos, isto é,
ampliam o nosso conhecimento (acrescentam algo de novo).
31
JUÍZOS SINTÉTICOS A PRIORI – são juízos independentes da experiência,
que têm uma origem puramente racional – a priori – mas cujo predicado não está
implícito ou incluído no conceito do sujeito – são sintéticos.
Temos como exemplo todos os juízos da Matemática – como “3 x 5 = 15”. Assim,
poderíamos ser tentados a concluir que só existiriam dois tipos de juízos – os juízos
analíticos, que são todos eles a priori, e os juízos sintéticos, que são todos eles a
posteriori, mas Kant mostra-nos que também existem juízos sintéticos a priori – sendo a
priori, são universais e necessários; sendo sintéticos, contribuem para aumentar o
nosso conhecimento.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina os seguintes conceitos: “juízo a priori” e “juízo a posteriori”.

2. Distinga, exemplificando, “conhecimento a priori” de “conhecimento a


posteriori”.

3. Leia o texto e responda às questões que se lhe seguem:

“Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um sujeito e um predicado
(apenas considero os juízos afirmativos, pois é fácil depois a aplicação aos negativos),
esta relação é possível de dois modos: ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo
que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do conceito
A, embora em ligação com ele. No primeiro caso, chamo analítico ao juízo, no segundo
caso, chamo sintético. Portanto, os juízos são analíticos, quando a ligação do sujeito
com o predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa ligação é
pensada sem identidade deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros (os
sintéticos) poderiam denominar-se juízos explicativos; os segundos (os analíticos)
poderiam denominar-se juízos extensivos; porque naqueles (juízos analíticos ou
explicativos) o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela
análise o decompõe nos conceitos parciais, que já nele estavam pensados; ao passo
que nestes (juízos sintéticos ou extensivos), pelo contrário, se acrescenta ao conceito de
sujeito um predicado que nele não estava pensado (contido) e dele não poderia ser
extraído por qualquer decomposição/análise puramente racional.”

Kant, Crítica da Razão Pura, 2.º ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 42-43

3.1 Distinga juízos analíticos de juízos sintéticos.

32
3.2 Defina juízos sintéticos a priori, referindo as suas características e
apresentando exemplos desses mesmos juízos.

Immanuel Kant (1724 – 1804)

ANÁLISE COMPARATIVA DE DUAS TEORIAS


EXPLICATIVAS DO CONHECIMENTO

ORIGEM DO CONHECIMENTO

Acabámos de abordar a distinção entre conhecimento a priori e conhecimento a


posteriori. Vamos agora estudar as duas correntes filosóficas diretamente articuladas
com cada uma destas formas de conhecimento. Para tal, comecemos por supor que havia
um Deus que criava um mundo onde 2 + 2 = 5. Seria possível pôr em dúvida esses
conhecimentos? Será que a nossa mente pode funcionar com regras matemáticas e
princípios lógicos diferentes daqueles a que todos obedecemos? Ou serão esses
conhecimentos universais, necessários e obrigatórios em todo e qualquer mundo
possível? E se o forem, será que esses conhecimentos se adquirem (aprendem) ou, pelo
contrário, já nascem connosco (inatos)?
Qual é, de facto, a origem do conhecimento? Será que todo o nosso
conhecimento provém da experiência? Ou será que provém da razão? Ou
procederá de ambas estas fontes, mas é mais verdadeiro numa do que noutra?

O CONHECIMENTO É POSSÍVEL? DE QUE FORMA?

Pensamos que sabemos várias coisas. Mas também estamos constantemente a


descobrir que estávamos enganados sobre coisas que pensávamos saber. Será que
sabemos, sem dúvida (absolutamente), alguma coisa? Afinal, o que podemos
realmente saber? E como sabemos seja o que for? Será pelo uso das nossas
faculdades racionais, o pensamento, ou vamos antes aprendendo tudo o que
sabemos acerca do mundo pela experiência: observando, escutando, mexendo,

33
cheirando e saboreando? Os céticos (aqueles que negam toda e qualquer possibilidade
de conhecimento) desafiam-nos a levar estas questões muito a sério, pelo que iremos
confrontar duas respostas a esse desafio: o racionalismo (conhecimento a priori) de
René Descartes (1596 – 1650) e o empirismo (conhecimento a posteriori) de David
Hume (1711 – 1776).

O Racionalismo e o Empirismo dão respostas diferentes a estas questões:

RACIONALISMO vs. EMPIRISMO

Os termos “racionalismo” e “empirismo” são usados em diferentes domínios,


tendo em cada um significados específicos.

RACIONALISMO – teoria explicativa da origem do conhecimento que considera a


razão (intelecto/entendimento) a fonte principal do conhecimento. Só através da razão
é que se pode encontrar um conhecimento seguro, o qual se apoia em princípios
evidentes – ou, como diz René Descartes, princípios claros e distintos- sendo
totalmente independentes da experiência sensível. Tal conhecimento, que é a priori, é
necessário e universal.
Por exemplo, afirmar que 3 x 3 = 9 é apresentar um conhecimento com essas
características: é necessário porque tem de ser assim e não pode ser de outra
maneira (caso contrário, entraríamos em contradição e deixaria de ser lógico) e é
universal, porque é sempre verdadeiro em todos os tempos, em toda a parte e para
todos os seres humanos.
Daí que o modelo do conhecimento ou do saber nos seja dado pela matemática,
que é válida para todos e a todos obriga à sua aceitação, sob pena de entrarmos em
contradição lógica.
Isto, porém, não significa que os racionalistas neguem a existência do
conhecimento empírico (conhecimento a posteriori, que é adquirido pela via da
experiência). Reconhecem que esse conhecimento existe mas que não pode ser
considerado um conhecimento universal e necessário. As crenças e informações
que se obtêm através dos sentidos são confusas e, muitas vezes, incertas (“os
sentidos enganam”).
Se recuarmos no tempo e nos fixarmos na antiguidade clássica, a filosofia de
Platão (427 – 347 a. C.), um dos mais importantes pensadores da história da Filosofia,
representa o exemplo mais flagrante de uma perspetiva racionalista do conhecimento
34
(o idealismo platónico/teoria das ideias), uma vez que aquele admitia a existência de
dois mundos: o mundo sensível (empírico/da experiência – um mundo inferior), a que
temos acesso através dos sentidos, sendo o conhecimento que lhe corresponde
caracterizado pela mudança, pela instabilidade, pela imperfeição, pela mera
aparência e pelo engano (logro) e o mundo inteligível (racional/do intelecto – um
mundo superior), que pertence à esfera da razão, e que constitui a verdadeira
realidade, sendo formado pelas ideias (conceitos), pelo que permanece, pelo que é
imutável, pelo que é essencial, pelo que é perfeito, pelo que é verdadeiro e em
relação ao qual as coisas do mundo sensível não passam de meras cópias
(aparências).
A este propósito, atentemos no seguinte texto, que integra o livro VII da obra A
República, da autoria de Platão, denominado O Mito da Caverna (também conhecido
por Alegoria da Caverna) através do qual este filósofo pretende explicar a sua teoria (das
ideias) acerca do conhecimento. Escrito em forma de diálogo, entre Sócrates e Glauco, o
Mito da Caverna (ou Alegoria da Caverna) é também uma espécie de homenagem de
Platão ao seu mestre (Sócrates):

ALEGORIA DA CAVERNA (Fig.1)

Sócrates – Depois disto, imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à


sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa
habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se
estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados
de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e
olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões (espécie de
“algemas” no pescoço com picos); serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao
longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um
caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género de uns
tapumes que os homens dos "robertos" (pessoas que transportavam figuras, estatuetas,
réplicas de objetos das mais diversas formas e feitios) colocam diante do público, para
mostrarem as suas habilidades por cima deles.
Glauco – Estou a ver.
35
Sócrates – Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a
espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e
de madeira, de toda a espécie de labor; como é natural, dos que os transportam, uns
falam, outros seguem calados.
Glauco – Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas.
Sócrates – Semelhante a nós. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições,
eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo
fogo na parede oposta da caverna?
Glauco – Claro que não, uma vez que são forçados a manter a cabeça imóvel toda
a vida.
Sócrates – E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?
Glauco – Sem dúvida!
Sócrates – Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te
parece que eles julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam?
Glauco – É forçoso que sim.
Sócrates – E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando
algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão
que era a voz da sombra que passava?
Glauco – Por Zeus, Sócrates, é evidente que sim!
Sócrates – De qualquer modo, pessoas nessas condições não pensavam que a
realidade fosse senão a sombra dos objetos, não achas?
Glauco – Absolutamente.
Sócrates – Considera, pois, o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e
curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam
deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente,
a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o
deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Que julgas tu
que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que
agora estava mais perto da realidade e da via da verdade, voltado para objetos mais
reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem
com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e
suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe
mostravam?
Glauco – Sim, muito mais.

36
Sócrates – Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam
os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e
julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?
Glauco – Assim seria.
Sócrates – E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e
íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural
que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com
os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem
os verdadeiros objetos?
Glauco – Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
Sócrates – Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior.
Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as
imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os
próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio
céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se
fosse o Sol e o seu brilho de dia.
Glauco – Certamente!
Sócrates – Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar,
não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
Glauco – Necessariamente.
Sócrates – Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as
estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo
aquilo de que eles viam uma imitação.
Glauco – É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
Sócrates – E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do
saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se
alegraria com a mudança ocorrida consigo e lamentaria a situação dos outros?
Glauco – Com certeza.
Sócrates – E imagina ainda o seguinte: se um homem nessas condições descesse
de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar
subitamente da luz do Sol?
Glauco – Certamente que sim.
Sócrates – E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com
os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado,
antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria

37
o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que
não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima,
se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
Glauco – Matá-lo-iam, sem dúvida!
Sócrates – Meu caro Glauco, este quadro deve agora aplicar-se a tudo quanto
dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da
prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo
superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao
mundo inteligível (das ideias/conceitos), não iludirás a minha expectativa, já que é teu
desejo conhecê-la. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível (“conhecível”) é que
se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para
todos a causa de tudo o quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou
a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da
inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.

Platão, A República, Fundação Calouste Gulbenkian, 15.ª Edição, Lisboa, 2017, pp. 566-567
(adaptado)

ALEGORIA DA CAVERNA (Fig. 2)

De uma forma simples e sintética, para Platão, a caverna simbolizava o mundo


onde todos os seres humanos vivem e onde as sombras das estatuetas, figuras ou
réplicas de objetos de diferentes formas e feitios projetadas no seu interior
representam a falsidade dos sentidos, enquanto as correntes significam os
preconceitos e a opinião que aprisionam os seres humanos à ignorância e ao senso
comum.
Platão defende que o que constitui o verdadeiro conhecimento não é o que
resulta do contacto que temos com os diferentes dados da experiência sensível
(conhecimento empírico) mas sim o que reside na nossa razão, intelecto ou
38
entendimento, que são as ideias, conceitos, noções ou representações mentais que
a esses mesmos dados (da experiência sensível) se referem, uma vez que enquanto
tudo o que existe no mundo sensível (objetos) está sujeito à mudança, à degradação
e até ao desaparecimento, já tudo o que existe no mundo inteligível (ideias,
conceitos, noções ou representações mentais) não muda, permanece, subsiste, de
forma inalterável e indestrutível – por exemplo: poderão desaparecer todos os pianos
que existem no mundo enquanto objetos, mas a ideia, conceito, noção ou
representação mental de piano não desaparecerá! Logo, o verdadeiro conhecimento
não reside nas coisas/objetos (do mundo sensível) mas nas ideias, conceitos,
noções ou representações mentais das quais aqueles são meras cópias destes – daí a
razão pela qual se considera ser Platão, mais do que um racionalista, um idealista,
porque considerava que o verdadeiro conhecimento residia nas ideias, conceitos ou
representações mentais (universais) e não nas coisas materiais, sensíveis.
Voltando ao racionalismo de Descartes – chamado racionalismo moderno
(século XVII) – podemos afirmar que se trata de um racionalismo otimista, no sentido
em que considera que, partindo dos princípios evidentes da razão, e seguindo um
determinado método (processo/caminho), será possível conhecer toda a realidade.
Considera que há, assim, uma correspondência ou adequação entre a ordem do
pensamento e a ordem da realidade.
Segundo Descartes, a razão possui em si ideias inatas (que nascem com os
seres humanos). Estas ideias, sendo claras e distintas (porque, segundo este, foram
postas por Deus no espírito humano), raciocinando por dedução, permitem chegar de
forma rigorosa ao conhecimento de toda a realidade.
Podemos, assim, caracterizar o racionalismo com base nos seguintes aspetos:
- a razão é a principal fonte do conhecimento – conhecimento universal e
necessário;
- as ideias fundamentais do conhecimento são inatas (nascem connosco ou já
estão em nós);
- o conhecimento tem como modelo a matemática;
- as ideias fundamentais descobrem-se por intuição intelectual – o
conhecimento constrói-se de forma dedutiva;
- há uma correspondência entre o pensamento e a realidade;
- o sujeito impõe-se ao objeto através das noções e princípios evidentes que
traz em si.

39
EMPIRISMO – enquanto o racionalismo admite a existência de um conjunto de
ideias inatas, independentes da experiência, o empirismo é uma teoria segundo a
qual todo o nosso conhecimento provém da experiência, sendo esta, portanto, a fonte
principal do conhecimento. Temos aqui em conta sobretudo o empirismo moderno, por
vezes também chamado empirismo inglês.
Assim, segundo a corrente empirista, não existem ideias conhecimentos ou
princípios que residam no sujeito como se fosse algo inato, ou seja, como se
nascesse com ele ou já estivesse nele desde que ele existe, como se tivessem sido
colocados na razão ou no espírito humano por Deus ou por outro ser superior
qualquer.
Contrariando os racionalistas, os empiristas consideram que a razão, a mente
ou o entendimento se assemelha a uma página em branco onde, antes de qualquer
experiência, nada se encontra escrito (teoria da “tábua rasa”), podendo-se, por isso,
definir o empirismo como sendo a teoria filosófica que, opondo-se ao racionalismo,
nega a existência de conhecimentos inatos (que já tenham nascido connosco),
afirmando que todo o conhecimento deriva principalmente da experiência. É nesta
(experiência) que o conhecimento tem o seu fundamento e, naturalmente, os seus
limites.
De acordo com o filósofo John Locke (1632 – 1704), no seu Ensaio Sobre o
Entendimento Humano, a experiência – seja a experiência externa (sensações), pela
qual se captam os objetos exteriores e sensíveis, seja a experiência interna
(raciocínios), pela qual se captam as operações internas da mente – marca os limites
do conhecimento. O conhecimento encontra-se duplamente limitado pela
experiência, tanto ao nível da sua extensão (o entendimento é incapaz de ultrapassar os
limites impostos pela experiência) como da sua certeza (as certezas de que dispomos
referem-se apenas àquilo que se encontra dentro dos limites da experiência).
Importa acrescentar que, embora neguem os conhecimentos inatos, os
empiristas não negam necessariamente o conhecimento a priori (que se processa de
modo puramente racional e independentemente da experiência). Por exemplo, para David
Hume (1711 – 1776), filósofo empirista, esses conhecimentos (a priori) existem, só que
nada nos dizem acerca do mundo. Além disso, as ideias presentes em tais
conhecimentos (a priori) acabam por derivar, todas elas, da experiência.
Podemos agora caracterizar o empirismo com base nos seguintes aspetos:
- a experiência é a origem principal de todo o nosso conhecimento;

40
- todas as ideias têm uma base empírica, até as mais complexas, não
existindo ideias inatas (que tenham nascido connosco ou que já estejam em nós);
- o conhecimento do mundo obtém-se através das impressões sensoriais
(pela via dos sentidos);
- o objeto impõe-se ao sujeito.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Apresente algumas questões que se colocam acercada origem do


conhecimento.

2. Partindo de uma qualquer proposição da matemática, refira quais as


características, do conhecimento que, segundo os racionalistas, se obtém através
da razão.

3. Explique em que medida se pode afirmar que o racionalismo moderno é


otimista.
4. Distinga experiências externas de experiências internas.

5. Distinga Racionalismo de Empirismo.

41
O RACIONALISMO DE RENÉ DESCARTES

Descartes (1596 – 1650) filósofo francês racionalista, considerava ser a razão a


principal fonte do conhecimento universal e necessário.
Atribuindo um grande valor à razão, Descartes procurou também aí os
fundamentos do conhecimento. Só encontrando esses fundamentos é que seria
possível superar os argumentos dos céticos radicais, para os quais o conhecimento
não era possível.

O MÉTODO (CAMINHO/PROCESSO)

Uma vez que a razão é a origem do conhecimento universal e necessário,


então as proposições da matemática assumem um carácter evidente. Com efeito, a
sua origem é exclusivamente racional e a priori. Por isso, talvez seja possível seguir um
método inspirado na matemática para a conquista da verdade.
Vejamos quais são as regras do método de Descartes (método cartesiano),
através de um excerto da sua obra intitulada Discurso do Método:

“Em lugar daquele grande número de preceitos (regras) que constituem a lógica,
julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que eu tomasse a firme e constante
resolução de não deixar de uma só vez de os cumprir:
- o primeiro consistia em nunca aceitar coisa alguma por verdadeira (duvidando de
tudo ou pondo tudo em dúvida) sem que a conhecesse evidentemente como tal, ou seja,
evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção e não incluir nada mais nos meus
juízos senão o que se apresentasse tão claramente e tão distintamente ao meu espírito
que não tivesse hipótese de o pôr em dúvida.

42
- o segundo consistia em dividir cada uma das dificuldades que examinava em
tantas parcelas quantas fosse possível e fosse necessário, para melhor as resolver.
- o terceiro consistia em conduzir de forma ordenada os meus pensamentos,
começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a
pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais complexos.
- o quarto e último consistia em fazer sempre enumerações e revisões tão
completas e tão gerais, que ficasse com a certeza de que nada tinha omitido (esquecido).”

Descartes, Discurso do Método, Porto Editora, pp. 72-73 (adaptado)

Estas quatro regras do método – também designadas por regras da evidência,


da análise, da síntese e da enumeração/revisão, respetivamente – permitirão guiar a
razão (o bom senso), orientando devidamente as operações fundamentais do espírito
(intelecto/entendimento/razão).
Tais operações são a intuição e a dedução:

INTUIÇÃO – ato de apreensão direta e imediata de noções simples, evidentes e


indubitáveis (que não oferecem dúvidas e não implicam grande esforço de raciocínio).

DEDUÇÃO – encadeamento de intuições, envolvendo um movimento do


pensamento, desde os princípios evidentes até às consequências necessárias.

Por exemplo, intuímos facilmente que um quadrado é delimitado por quatro linhas
e que um triângulo o é apenas por três. Ora, a partir destes conhecimentos evidentes,
podemos deduzir consequências que serão logicamente necessárias (como, por
exemplo, na geometria).
A existência de uma ordem (lógica) entre os vários pensamentos reside no facto
de a sabedoria (inteligência) humana permanecer una e idêntica e, portanto, “funcionar”
de igual forma em todos os homens – daí esta possuir um carácter geral e universal –
o que permite alcançar conhecimentos verdadeiros, ou seja, conhecimentos
científicos, cujos fundamentos importa estabelecer, precisamente, a partir das raízes
da filosofia (a que Descartes chamou metafísica), a qual Descartes compara a uma
árvore:

“Assim, toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes equivalem à metafísica
(estudo do que está para além da física, do que não é físico, do que não é material, do
que não é diretamente acessível aos nossos sentidos, como, por exemplo, a existência da
alma, a origem e possibilidade do conhecimento, o funcionamento da
razão/intelecto/entendimento com os seus processos, operações, etc.), o tronco é a física

43
e os ramos que saem deste tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três
principais, a saber: a medicina, a mecânica e a moral, sendo esta (a moral) o último grau
da sabedoria, uma vez que pressupõe um inteiro conhecimento das outras ciências.
Ora, como não é das raízes, nem do tronco das árvores, que se colhem os frutos,
mas somente das extremidades dos seus ramos, a principal utilidade da filosofia depende
daquelas partes que só se podem aprender em último lugar.”

Descartes, Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores (adaptado)

A partir do texto, percebemos a importância da metafísica constitui a raiz da


filosofia (uma vez que, para Descartes, a metafísica é o que está na origem da filosofia)
e é por ela que se deve começar. Deste modo, obedecendo às regras do método,
Descartes procede a uma investigação de carácter metafísico, a fim de encontrar os
princípios fundamentais do conhecimento humano.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as
observar nunca tomar por verdadeiro algo que é falso e, sem desperdiçar inutilmente
nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o
conhecimento de tudo o que será capaz de saber.”

Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Lisboa, Edições 70, p. 24

1. Identifique e explicite os preceitos ou regras do método cartesiano.

2. Refira em que medida o método seguido por Descartes exige o exercício da


dúvida.

3. Identifique e explicite as operações fundamentais do espírito, segundo


Descartes.

4. Ao quê compara Descartes a filosofia?

5. Qual a importância que este atribui à metafísica?

44
RENÉ DESCARTES (1596 – 1650)

A DÚVIDA

A dúvida traduz um momento importante do método cartesiano. Por meio dela,


recusaremos todas as crenças sem que notemos a mínima suspeita de incerteza –
embora as verdades da Revelação (de carácter divino), por pertencerem ao domínio da fé
e do sobrenatural, não sejam sujeitas à dúvida (são dogmas de fé e, como tal, não se
questionam ou põem em causa).
A este propósito, atentemos nas palavras de Descartes:

Para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, colocar todas as coisas
em dúvida, tanto quanto se puder.
Como fomos crianças antes de sermos homens, e julgamos ora bem ora mal as
coisas que se apresentaram aos nossos sentidos, quando não tínhamos ainda o pleno
uso da nossa razão, vários juízos assim precipitados impedem-nos de atingir o
conhecimento da verdade e predispõem-nos de tal modo que nada indica,
aparentemente, que nos possamos libertar deles, se não tomarmos a decisão de duvidar,
uma vez na vida, de todas as coisas em que encontrarmos a menor suspeita de incerteza.

Descartes, Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores, p. 59

45
Instrumento por excelência da razão, a dúvida é posta ao serviço da verdade.
Descartes adota inicialmente a postura do cético (aquele que nega qualquer
possibilidade de conhecer, seja pelos sentidos seja pela razão), colocando em dúvida
todas as crenças. Segundo este filósofo, é necessário colocar tudo em causa no
processo de busca dos princípios fundamentais certos e seguros (indubitáveis). Se
alguma crença resistir à dúvida, então ela poderá ser a base ou o fundamento para as
restantes.
O texto anterior assinala a importância da dúvida perante os juízos
precipitados. Mas há outras razões para duvidar. Por que razões, então, se justifica a
dúvida?

A dúvida justifica-se através das seguintes razões:


1.ª Por causa dos preconceitos e dos juízos precipitados que formulámos na
infância.
2.ª Porque os sentidos muitas vezes nos enganam e seria uma imprudência
depositar uma confiança excessiva naqueles que nos enganaram, mesmo que por
uma só vez.
3.ª Porque alguns seres humanos se enganaram nas demonstrações
matemáticas (erros de cálculo).
4.ª Porque é possível que exista um Deus enganador ou um “Génio maligno”
que nos ilude a respeito da verdade, fazendo com que estejamos sempre
enganados, seja no tocante às verdades e às demonstrações das matemáticas, seja
no que se refere à própria existência das coisas (daí o carácter metafísico da dúvida).

A hipótese de um deus enganador parece condenar-nos a uma situação sem


saída. Essa hipótese equivale a admitir que o entendimento humano é de tal
natureza que se engana sempre, mesmo quando pensa captar a verdade.
Por um lado, não sabemos se o mundo exterior existe. Por outro lado, a admissão
da possibilidade de que “2 + 2 = 4” expresse uma proposição falsa parece não deixar
espaço à existência de qualquer crença verdadeira. Há, contudo, uma saída, como
veremos…
É também de salientar a desconfiança de Descartes em relação às informações
obtidas pelos sentidos – como os sentidos e a experiência sensível nos enganam
algumas vezes, então, convirá fazer de conta que nos enganam sempre (para,
precisamente desta forma, podermos superar esta situação/constrangimento).

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Vejamos agora uma síntese das características da dúvida cartesiana:

CARACTERÍSTICAS DA DÚVIDA CARTESIANA:

Metódica e provisória – é um meio para atingir a certeza e a verdade, não


constituindo um fim em si mesma (esta atitude seria típica dos filósofos céticos).

Hiperbólica (levada ao extremo, ao “exagero”, ao limite) – toma por falso tudo


aquilo em que note a mínima suspeita e incerteza.

Universal e radical – incide não só sobre o conhecimento em geral, como


também sobre os seus fundamentos e as suas raízes.

A dúvida é um exercício voluntário e uma suspensão do juízo. Tem uma função


catártica (de limpeza, de purga dos preconceitos ou “falsos conhecimentos” que possam
existir em nós), já que liberta o espírito do engano e dos erros que o podem perturbar
ao longo do processo de indagação (investigação) da verdade. É, pois, necessário que
a razão, num processo marcado pela autonomia, alcance princípios evidentes
(indubitáveis) e universais (válidos para todos os seres humanos).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Notei, há alguns anos já, que tendo recebido desde a mais tenra idade tantas
coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei,
tinha de deitar abaixo tudo inteiramente, por uma vez na vida, e começar, desde os
primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e duradouro nas
ciências.”

1. Indique, a partir do texto, duas razões que justificam a necessidade da


dúvida.

2. Refira, com base no texto, quais as características da dúvida cartesiana.

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O COGITO (“Penso, logo existo”)

Sendo um ato livre da vontade, a dúvida acabará por conduzir a uma verdade
incontestável (indiscutível): a afirmação da minha existência, enquanto sou um ser
que pensa e que duvida. Ainda que o “génio maligno” me engane, ele não conseguirá
nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. (Descartes,
Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria Almedina, p.119, adaptado).

O excerto que se segue, retirado da obra Princípios da Filosofia, de Descartes,


esclarece-nos precisamente acerca desta questão da dúvida relativamente à existência:

“Não poderíamos duvidar sem existir, e isso é o primeiro conhecimento certo que
se pode adquirir.
Enquanto rejeitamos deste modo tudo aquilo de que podemos duvidar, e que
fingimos mesmo que é falso, supomos facilmente que não há Deus, nem céu, nem terra, e
que não temos corpo, mas não poderíamos, igualmente, supor que não existimos
enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas: porque temos tanta repugnância
em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente ao mesmo tempo que
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pensa que, apesar das mais extravagantes suposições, não poderíamos impedir-nos de
crer que esta conclusão PENSO, LOGO EXISTO é verdadeira e, por conseguinte, a
primeira e a mais certa que se apresenta àquele que conduz os seus pensamentos de
forma ordenada (metódica).”

Descartes, Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores, p.59 (adaptado)

Daqui decorre a natureza absolutamente verdadeira da afirmação “Penso, logo


existo” (em Latim, Cogito, ergo sum), afirmação frequentemente sintetizada ou reduzida
ao simples termo “Cogito”, pois trata-se de uma afirmação evidente e indubitável, de
uma certeza inabalável, obtida por uma intuição (processo puramente racional e a priori)
que servirá de paradigma (modelo explicativo/referência) para as várias afirmações
verdadeiras que se lhe seguem.
No entanto, observa Descartes, que não há nada no “Penso, logo existo” que lhe
garanta que ele está a dizer a verdade, exceto o facto de ele ver claramente que para
pensar é preciso existir. Deste modo, pôde adotar como regra geral, a ideia de que é
verdadeiro tudo o que concebemos muito claramente e muito distintamente.
O Cogito fornece, assim, o critério de verdade, que consiste na clareza e
distinção das ideias, possibilitando alcançar, assim, um conhecimento evidente.
Mas, quando é que o conhecimento é claro e distinto? A este propósito, diz-nos
Descartes:

“Há pessoas que, em toda a sua vida, nada apreendem (conhecem) como deve ser
para bem julgarem. Porque o conhecimento sobre o qual queremos estabelecer um juízo
indubitável deve ser não somente claro mas também distinto. Chamo claro àquele
conhecimento que é presente e manifesto a um espírito atento: assim como dizemos ver
claramente os objetos quando, estando presentes de tal forma perante nós, os nossos
olhos estão dispostos a observá-los. E chamo distinto àquele que é tão preciso e
diferente de todos os outros que só compreende em si o que aparece manifestamente
àquele que o considera como deve ser.”

Descartes, Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores, p. 75. (adaptado)

Sendo assim, a clareza diz respeito à presença da ideia ao espírito e a distinção


equivale à separação de uma ideia relativamente a outras, de tal modo que a ela não
estejam associados elementos que não lhe pertençam.

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Enquanto primeira verdade, o Cogito surge-nos como crença fundacional (que
fundamenta) ou básica, pois serve de alicerce a todo o edifício (sistema) do saber,
uma vez que é daqui que tudo parte. Além disso, ele apresenta a condição da dúvida
hiperbólica (a dúvida levada ao extremo e até às suas últimas consequências), uma vez
que existir é a condição para se poder duvidar, e, ao mesmo tempo, impõe uma
exceção à universalidade dessa dúvida, pois, há pelo menos uma realidade da qual
eu não posso duvidar: a minha própria existência.
A apreensão (conhecimento) intuitiva da existência mostra-nos como esta está
intimamente ligada ao próprio pensamento, ou seja, sujeito (que existe e que pensa) e
pensamento são indissociáveis. Escreve Descartes: “O sujeito é uma coisa que
pensa” (em Latim, rés cogitans, ou seja, coisa pensante), quer dizer, “que duvida, que
afirma, que nega, que conhece, que ignora, que quer, que não quer, que imagina e
que sente.” (Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria
Almedina, p. 135., adaptado).
O pensamento refere-se, como se pode ver, a toda a atividade consciente. Além
disso, ele (pensamento) é equivalente à alma, a qual é distinta do corpo e é conhecida
antes deste e de tudo o resto, de forma bastante mais fácil, ao contrário daquilo que os
preconceitos nos costumam indicar. Assim, quer o corpo exista ou não, a alma é
distinta dele.
Em síntese, as características do Cogito (Penso, logo existo) são as seguintes:

1.ª É um princípio evidente e indubitável.

2.ª Obtém-se por intuição, de modo inteiramente racional e a priori.

3.ª Serve de modelo do conhecimento: fornece o critério de verdade.

4.ªÉ uma crença fundacional (porque é a base, o fundamento) relativamente a


todo o sistema do saber.

5.ªApresenta a condição da dúvida e impõe uma exceção à sua


universalidade.

6. ª Revela a natureza ou a essência do sujeito: o pensamento ou alma.

Mas, como ainda não afastámos a hipótese do “deus enganador”, necessitamos


de demonstrar a existência de um deus que não nos engane, ou seja, de um deus
que traga segurança e seja a garantia das verdades, afastando de vez qualquer
ameaça do ceticismo (negação de qualquer possibilidade do conhecimento).

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ATIVIDADES/QUESTÕES:

E, notando que esta verdade: Penso, logo existo, era tão firme e tão certa, julguei
que a podia aceitar, sem hesitação, para primeiro princípio da filosofia que procurava.

Descartes, Discurso do Método, Porto, Porto Editora, p. 89 (adaptado)

1. Assinale a importância do Cogito.

2. Enuncie as características do Cogito.

A EXISTÊNCIA DE DEUS

Apesar de evidente, a certeza “Penso, logo existo” é uma certeza subjetiva (do
sujeito). Torna-se, pois, necessário averiguar o que se encontra na base do pensamento
e na origem da existência do sujeito pensante. Este descobre-se como um ser
imperfeito e, portanto, conclui que possuir o saber será uma perfeição maior do que
duvidar.
Partindo das ideias que estão presentes no sujeito, verificamos que elas possuem
um conteúdo que representa alguma coisa.
Vejamos que TIPOS DE IDEIAS são essas:

ADVENTÍCIAS – Têm origem na experiência sensível. Por exemplo, ideia de


barco, de copo, de cão, de mesa, etc.

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FACTÍCIAS – São fabricadas pela imaginação. Por exemplo, ideia de centauro, de
dragão, de sereia, de extraterrestre, etc.

INATAS – São ideias constitutivas (que pertencem, que fazem parte de nós, que
“nasceram” connosco) da própria razão. Por exemplo, ideias de pensamento e de
existência, ideias matemáticas (raciocínios lógicos, puramente
formais/teóricos/racionais/intelectuais), etc.

As ideias inatas são claras e distintas (não oferecem dúvidas) e podem ser
caracterizadas como as “sementes das ciências, verdades eternas, verdadeiras e
imutáveis naturezas, essências puramente racionais e inteiramente independentes da
contribuição da perceção sensível, noções que o exercício rigoroso da dúvida metódica,
voluntária e radical, revelará na nossa alma.” (Alexandre Koyré, 1986, Considerações
sobre Descartes, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Presença, pp. 60-61, adaptado).
Entre as ideias inatas que possuímos encontra-se a ideia de um ser perfeito, um
ser omnisciente (que tudo sabe), omnipotente (que tudo pode), omnipresente (que
está em toda a parte) e sumamente bom, ideia esta que servirá de ponto de partida para
a investigação relativa à ideia de ser divino (DEUS).

Assim, Descartes “demonstra” a existência de Deus mediante três


“provas”/argumentos:

1.ª Prova – ARGUMENTO ONTOLÓGICO (de existência) – esta prova parte da


constatação de que na ideia de ser perfeito estão compreendidas todas as
perfeições, sendo a existência uma dessas perfeições. Por consequência, Deus
existe e o facto de existir é inerente (está ligado) à essência de Deus, de tal modo que
este ser não pode ser pensado como não existente. A sua existência apresenta um
carácter necessário e eterno.
Esta prova, designada por argumento ontológico (que deriva da palavra grega
“ontos” que quer dizer “ser”, “existente”), é desenvolvida a priori, isto é, sem recurso à
experiência e à causalidade, pois Deus é causa de si próprio ou causa incausada –
trata-se, pois, de uma existência absolutamente necessária e eterna que não pode
deixar de ser como é.

2.ª Prova – ARGUMENTO DA MARCA IMPRESSA – esta prova toma igualmente


como ponto de partida a ideia de ser perfeito para procurar ou ir em busca da causa
que faz com que essa mesma ideia se encontre em nós (seres pensantes), deduzindo
que tal causa não pode ser o sujeito pensante, porque, de facto, essa ideia (de ser

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perfeito) representa uma substância infinita. Nesse sentido, nem o sujeito pensante, que
é finito, nem o nada, nem qualquer outro ser imperfeito são a causa da realidade objetiva
de tal ideia. Ora, a causa da ideia de Deus não pode ser outra senão o próprio Deus,
porque, com efeito, Deus é uma realidade que possui todas as perfeições
representadas na ideia de ser perfeito. Concluindo, é ele (Deus) o próprio ser perfeito
e a causa originária da ideia de perfeição que existe em nós e que por ele em nós
foi impressa (posta em nós) – daí se chamar a esta prova argumento da marca
impressa (foi o próprio Deus que nos deu a capacidade de pensar nele e que pôs em nós
a ideia de si mesmo).

3.ª Prova – ARGUMENTO DA CAUSA DA EXISTÊNCIA DO SER PENSANTE –


esta prova baseia-se também no princípio da causalidade. O que agora se procura
saber é qual é a causa da existência do ser pensante, ou seja, o ser humano, que é
um ser finito, contingente (sujeito às mais variadas circunstâncias e aos mais variados
condicionamentos), imperfeito. Essa causa não é o sujeito que pensa. Se o fosse, com
certeza que ele daria a si próprio as perfeições das quais possui uma ideia, o que não se
verifica.
Por outro lado, e partindo do princípio de que a criação é uma ação contínua – já
que a natureza do tempo é descontínua e nada garante ao sujeito pensante que existirá
no momento a seguir – o sujeito finito apercebe-se de que não possui o poder de se
conservar no seu próprio ser (tal só aconteceria se ele fosse causa de si mesmo) e, por
isso, o criador (e conservador) do ser imperfeito e finito, assim como de toda a
realidade, é Deus. Por sua vez, sendo perfeito, Deus não necessita de ser criado por
outro ser: ele é causa sui (é causa de si mesmo).
Deste modo, sendo perfeito, Deus não é um ser enganador, pelo que nos
encontramos libertos da dimensão hiperbólica e mais corrosiva da dúvida – Deus é a
garantia da verdade objetiva das ideias claras e distintas, pois ele constitui, afinal, a
garantia de que não nos enganamos.
Sendo criador das verdades eternas, a origem do ser e o fundamento da certeza,
Deus garante a adequação (correspondência) entre o pensamento evidente e a
realidade, legitimando o valor da ciência e conferindo objetividade ao conhecimento
– Deus é o princípio do ser e do conhecimento.
Além disso, Deus é também infinito, a fonte do bem e da verdade e, embora
sendo criador do Universo, não é autor do mal, nem é responsável pelos nossos
erros (o que remete para a admissão do livre-arbítrio no ser humano).

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Uma vez “provada” a existência de Deus, Descartes irá também provar a
existência do corpo e das coisas exteriores em geral – apoiado na certeza de que
Deus não o engana, poderá, assim, superar todos os argumentos dos céticos
radicais (que negam toda e qualquer possibilidade do conhecimento).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Identifique e explicite os tipos de ideias que estão presentes no sujeito


pensante e dê um exemplo para cada uma delas.

2. Qual a função da ideia (inata) de ser perfeito?

“As sementes das ciências estão em nós: eis porque é que a tarefa cartesiana não
é vã; eis porque é que se pode e se deve tentar desembaraçar a razão de tudo o que lhe
veio do exterior, de tudo o que ela pôde adquirir e receber na vida.”

Alexandre Koyré, Considerações sobre Descartes, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Presença, p. 60

3. Explique, de acordo com o racionalismo de Descartes, qual o significado das


“sementes das ciências”.

4. Apresente as provas cartesianas da existência de Deus.

5. Refira a importância de Deus no sistema filosófico cartesiano.

A TEORIA DO ERRO E AS TRÊS SUBSTÂNCIAS

Relativamente ao erro, importa sublinhar que, se é verdade que na formulação de


juízos o entendimento (razão) tem um papel fundamental, o certo é que a vontade se
torna necessária para darmos o consentimento aos juízos que o entendimento
formula. Sendo livre, é ela (vontade) quem decide dar (ou não) o assentimento
(concordância) aos juízos. Por isso, erramos quando se verifica uma precipitação da
vontade, quando usamos mal a nossa liberdade e damos o consentimento a juízos
que não são evidentes.
A este propósito, diz-nos Descartes:

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Então, de onde nascem os meus erros? Apenas e unicamente porque, como a
vontade (impulsividade) tem um campo mais vasto que o entendimento (razão), não só
não a contenho dentro dos seus limites como também ainda a estendo às coisas que não
compreendo, o que me leva, deste modo, a cair no erro, pois a vontade diverge (afasta-
se) facilmente do bom e do bem.
Ora, quando não distingo de forma clara e inequívoca o verdadeiro do falso, é
óbvio que não procedo retamente e me engano, uma vez que me abstenho de dar o meu
juízo fundado na razão sobre determinada coisa. Mas, se a afirmo ou nego, utilizando
retamente o meu livre arbítrio (liberdade), abraçando o lado da verdade, em vez de me
inclinar para o lado falso, encontrarei a verdade, porque é manifesto pela luz natural que o
conhecimento do entendimento deve sempre preceder (e sobrepor-se) à determinação da
vontade.

Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria Almedina, pp. 173 e 175 (adaptado).

Assim, segundo Descartes, podemos ter ideias claras e distintas dos atributos
(qualidades) essenciais de TRÊS TIPOS DE SUBSTÂNCIAS:

- SUBSTÂNCIA PENSANTE (res cogitans), que tem como atributos (qualidades)


essenciais o pensamento.

- SUBSTÂNCIA EXTENSA (res extensa), que tem como atributos (qualidades)


essenciais a extensão – este conceito (de extensão) refere-se aos corpos, implicando
atributos (qualidades) que nos fornecem um conhecimento claro e distinto, tais como, o
comprimento, a largura e a altura.

- SUBSTÂNCIA DIVINA (res divina), que tem todos os atributos (qualidades) de


Deus, tais como, a omnipotência, a omnisciência, a omnipresença, a suma bondade,
etc., todos eles numa perfeição infinita.

Assim, no que se refere ao ser humano, este constitui uma unidade de duas
substâncias: a unidade da alma (substância pensante) e a unidade do corpo
(substância extensa).
Já no que concerne à substância divina, todos os atributos de Deus são
atributos essenciais, uma vez que todos eles obedecem a uma perfeição infinita,
formando uma unidade, em virtude de Deus ser simples e uno, ou seja, sem partes
(indivisível).

55
ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Segundo Descartes, quando é que erramos e de onde nascem os nossos


erros?

2. Identifique e caracterize os três tipos de substâncias acerca dos quais


podemos ter, segundo Descartes, ideias claras e distintas dos seus atributos
(qualidades) essenciais.

FUNDACIONISMO DE DESCARTES
(FUNDAMENTAÇÃO RACIONALISTA DO CONHECIMENTO HUMANO)

Descartes usou um método que lhe permitiu fundar/fundamentar o


conhecimento humano. As ideias fundamentais são inatas, impondo-se à diversidade
empírica dos sentidos. O sujeito impõe-se ao objeto através das noções que traz em si
(ideias inatas). A razão, desde que devidamente orientada, é capaz de alcançar

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verdades universais, traduzidas no conhecimento claro e distinto (como, por exemplo,
as ideias da matemática).
As principais verdades, das quais se deduzirão as restantes, são:

- a existência do pensamento (alma) traduzida no Cogito (“Penso, logo existo.”);

- a existência de Deus, ser perfeito, com os atributos respetivos;

- a existência de corpos extensos em comprimento, largura e altura.

Deste modo, para Descartes, o fundamento do conhecimento é o Cogito


(penso, logo existo), enquanto crença básica ou fundacional e primeira verdade, e
outras ideias claras e distintas da razão.
Todavia, este fundamento do conhecimento depende daquilo que é o princípio de
toda a realidade: Deus, que não só não é responsável pelos nossos erros (estes
decorrem de um mau uso da liberdade – livre arbítrio – por parte dos seres humanos),
como confere objetividade a todo o conhecimento.
De um modo geral, a perspetiva de Descartes está sujeita a uma objeção
(crítica) conhecida como o CÍRCULO CARTESIANO (argumento circular), porque, por um
lado, é o facto de ser clara e distinta a ideia que temos de Deus que nos garante que
Deus existe, mas, por outro lado, é Deus (que existe e que não é enganador) que
garante a verdade e a objetividade das ideias claras e distintas (incluindo a própria
ideia de Deus como ser perfeito), a qual poderá traduzir-se nesta pergunta:
Se a confiança a depositar no intelecto apenas é garantida após termos
demonstrado a existência de um Criador perfeito (Deus) que nos dotou com o intelecto,
então como se poderá, primeiramente, provar a existência de tal Criador?
A posição parece, então, ser a de que necessitamos de confiar na nossa mente
para provarmos a existência de Deus, ainda que sem um conhecimento prévio
dessa existência não teremos, em princípio, nenhuma razão para confiarmos no
intelecto. Assim, se, por um lado, o edifício do saber assenta numa crença
fundacional como o Cogito (“Penso, logo existo.”), por outro lado, Descartes necessita
de Deus para garantir a verdade e a objetividade do conhecimento.
Ao servir-se da dúvida metódica, Descartes procurou combater o dogmatismo
do realismo ingénuo, assim como a aceitação ou submissão sem exame (sem dúvida)
a qualquer tipo de autoridade. No entanto, ao depositar uma grande confiança na
razão e ao considerar ser possível alcançar a certeza e a verdade, a sua filosofia
acaba por se enquadrar no âmbito do dogmatismo (na medida em que, como se acabou
de fazer referência, deposita toda a sua crença na razão humana como fonte e garante

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de todo o conhecimento), só que num sentido que nada tem que ver com o dogmatismo
ingénuo (que tudo aceita sem questionar) ou com a falta de exame crítico, opondo-se,
portanto, ao ceticismo de David Hume (1711-1776), filósofo que estudaremos a seguir e
que contraria a teoria ou perspetiva racionalista acerca da origem do conhecimento de
Descartes com a sua teoria denominada por empirismo.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Caracterize o fundacionismo de Descartes.

2. Enuncie as principais verdades (verdades universais) que a razão é capaz de


alcançar e das quais se deduzirão as restantes.

3. Identifique e explicite a objeção feita à perspetiva cartesiana do


conhecimento.

4. Por que motivo poderemos afirmar que a filosofia de Descartes acaba por se
enquadrar no âmbito do dogmatismo?

O EMPIRISMO DE DAVID HUME

René Descartes atribui um grande valor à razão e ao conhecimento a priori.


David Hume (1711-1776), filósofo escocês empirista, pelo contrário, privilegia o
conhecimento a posteriori, admitindo que a capacidade cognitiva do entendimento

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humano é limitada e que é na experiência que o fundamento desse mesmo
conhecimento deve ser procurado.
Assim, ao racionalismo de Descartes, para quem a razão é a fonte principal do
conhecimento, opõe-se o empirismo de David Hume, para quem o conhecimento
deriva fundamentalmente da experiência, tendo todas as crenças e ideias, até as mais
complexas, uma base empírica.

ELEMENTOS DO CONHECIMENTO

As várias perceções humanas são classificadas por Hume segundo o critério da


vivacidade e da força com que são susceptíveis de impressionar o espírito. De acordo
com este critério, as perceções que apresentam maior grau de força e vivacidade
designam-se por impressões. Nelas se incluem não apenas as sensações (auditivas,
visuais, táteis, etc.), como também as emoções e as paixões (o amor, o ódio, o desejo, a
ira, etc.), enquanto vivenciadas e presentes ao espírito. Ora, a perceção de algo
presente aos sentidos é sempre mais viva do que a sua representação mental.
As ideias ou pensamentos são, justamente, as representações mentais das
impressões sensíveis, ou seja, são as imagens enfraquecidas das impressões
sensíveis, nunca alcançado vivacidade, intensidade e força iguais às destas últimas
(das impressões sensíveis, bem entendido). Por isso que, afirmava Hume, “o mais vivo
pensamento é, ainda assim, inferior à mais baça (fraca) sensação.” (David Hume,
Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p. 23, adaptado).
Dois exemplos permitir-nos-ão compreender esta diferença: uma impressão é a
cor da flor que os olhos vêem; uma ideia é a memória dessa cor. Uma impressão é a
dor de dentes enquanto vivida; uma ideia é a lembrança dessa dor.
No que toca às diferentes ideias, Hume considera que as ideias da memória são,
por sua vez, mais fortes e vividas que as da imaginação.
Então, poderemos perguntar: que relação existe entre as impressões e as
ideias? Respondendo, podemos dizer que as ideias derivam das impressões. Não só
cada ideia deriva de determinada impressão, como não podem existir ideias das
quais não tenha havido uma impressão prévia (anterior). Assim, sendo as ideias
cópias das impressões, não existem ideias inatas, ao contrário do que defendia
Descartes.
A este propósito, debrucemo-nos sobre o seguinte texto da autoria do próprio
Hume:

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“Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias ou
perceções mais fracas são cópias das nossas impressões ou perceções mais
intensas.
Os dois argumentos seguintes serão, espero eu, suficientes para provar isto:
primeiro, ao analisarmos os nossos pensamentos ou ideias, por muito compostas e
complexas que sejam, sempre descobrimos que elas se resumem a ideias tão simples
como se fossem copiadas de uma sensação ou sentimento precedente (anterior). Mesmo
as ideias que, à primeira vista, parecem afastadas desta origem (das impressões ou
perceções), como, por exemplo, a ideia de Deus, após uma análise mais minuciosa,
descobre-se serem derivadas de sensações ou sentimentos e decompõem-se em ideias
simples; segundo, se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos
sensoriais, não é susceptível (capaz) de qualquer espécie de sensação, vemos sempre
que ele é igualmente pouco susceptível (capaz) das ideias correspondentes. Assim, um
homem cego não pode formar nenhuma noção das cores, tal como um surdo não
pode formar nenhuma noção dos sons. Mas, restitua-se (devolva-se) a cada um deles
o sentido em que é deficiente e eles não encontram qualquer dificuldade em conceber
esses objetos.”

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 25-26
(adaptado)

As impressões e as ideias podem ser divididas em simples e complexas. As


primeiras, ou seja, as simples (como, por exemplo, as que se ligam a um certo tom
verde), são as que não admitem qualquer separação ou divisão. As segundas, ou seja,
as complexas (como as que resultam de ver ou de imaginar uma maçã) são as que
podem ser divididas em partes, resultando da combinação das impressões ou das
ideias simples.
As ideias simples derivam das impressões simples, mas há muitas ideias
complexas que não resultam de impressões complexas. O critério utilizado para
distinguir uma ideia verdadeira de uma ficção (falsa) passa a ser a existência ou não
de uma impressão (sensação) que lhes corresponda – embora também as ficções
tenham por base, em última instância, as impressões, uma vez que são ideias
construídas a partir delas.
Segundo David Hume, a ideia de Deus, por exemplo, a que Descartes se referiu
como um Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, é uma ideia complexa que tem por
base ideias simples que a mente e a vontade compõem, elevando sem limite as
qualidades de bondade e sabedoria. Ora, como nenhum objeto da experiência sensível
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lhe corresponde não temos conhecimento (pela experiência) de um ser dessa
natureza.
Assim, as ideias e as impressões são os elementos do conhecimento e, por
isso, é na experiência que se encontra o fundamento (base, origem) do
conhecimento, tudo acabando por se reduzir à multiplicidade das impressões e das
ideias, bem como das relações entre elas – não há conhecimento fora dos limites
impostos pelas impressões (que resultam da experiência sensível).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Todas as perceções do espírito humano se reduzem a duas espécies – as


impressões e as ideias. A diferença entre estas reside nos graus de força e de vivacidade
com que elas afetam a mente e abrem caminho para o nosso pensamento ou
consciência.”

David Hume, Tratado da Natureza Humana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p.29

1. Caracterize as duas espécies de perceções a que alude o texto.

2. Distinga ideias e impressões simples de ideias e impressões complexas,


exemplificando.

David Hume (1711 – 1776)

TIPOS OU MODOS DE CONHECIMENTO

Para além da distinção estabelecida entre os elementos do conhecimento, Hume


distingue também dois modos ou tipos de conhecimento: o conhecimento das
relações que existem entre as ideias – relações de ideias – e o conhecimento de
facto – questões de facto.

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Tendo todas as ideias uma origem empírica (que resulta da experiência, das
impressões sensoriais ou sensíveis), não dispomos de conhecimentos a priori sobre o
mundo propriamente dito – que é, afinal, o mundo da experiência. Tal não significa que
não haja conhecimentos a priori (da razão). Simplesmente, esses conhecimentos nada
nos dizem de substancial (significativo) acerca do mundo.
Afirmar, por exemplo, que “o todo é maior do que cada uma das suas partes” ou
que “7 - 5 = 2” é produzir enunciados independentes dos factos, daquilo que
acontece, da existência ou não do “todo” e das “partes”, da existência ou não dos
números 7, 5 ou 2. Trata-se de proposições verdadeiras, referentes à relação entre as
ideias em causa. Embora estas ideias não deixem de derivar da experiência, a
relação entre elas é independente da experiência, o que equivale a dizer, que a sua
verdade não está dependente do confronto (comparação) com a experiência.
Estes conhecimentos apresentam um carácter evidente, traduzindo-se em
proposições necessárias – pois baseiam-se no princípio da não-contradição, já que
negar essas proposições implica uma contradição. Assumem estas características os
conhecimentos da lógica e da matemática.
Ora, já as características do conhecimento referente aos factos são diferentes –
afirmar que “chove” ou que “a Terra gira em redor do Sol” é apresentar enunciados
relativos a factos e cuja justificação se encontra na experiência sensível, ou seja,
nas impressões – o valor de verdade destas proposições só pode ser determinado
recorrendo à experiência.
A certeza das proposições relativas a factos não se fundamenta no princípio
da não-contradição, já que é sempre possível, ou melhor, não é logicamente
impossível, afirmar o contrário de um facto (os factos são factos e, portanto, não
estão sujeitos aos princípios lógicos, como é o caso das proposições matemáticas).
Por exemplo, se dissermos que “o Sol não vai nascer amanhã”, nada nos garante que
isso seja impossível. Assim, não é contraditório pensá-lo, ao contrário do que sucede
quando se admite que “2 + 2 = 5”.
As questões de facto traduzem-se, assim, em proposições que não são
necessárias, mas sim contingentes (variáveis).
Temos, pois, diferentes verdades nestes dois tipos de conhecimento:

Tipos de
Verdades desses conhecimentos Exemplos
conhecimento

62
São sempre
verdadeiras, em
“2 + 2 = 4”
quaisquer
Relações de ideias Necessárias “Uma casa amarela
circunstâncias.
(a priori) é colorida.”
Negá-las implica
contradição.

Poderiam ter sido “Sócrates foi um


falsas e negá-las filósofo grego.”
Questões de facto Contingentes
não implica “O calor dilata os
(a posteriori)
contradição. corpos.”

Obs.: A distinção entre relações de ideias e questões de facto é, de certa maneira, equivalente
à distinção que foi feita entre juízos analíticos e juízos sintéticos, sendo que, para David Hume, apenas
os juízos a posteriori poderiam ser considerados sintéticos.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Que a raiz cúbica de 64 é igual à metade de 10 constitui uma proposição falsa e


nunca pode conceber-se distintamente.”

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p.165

1. Caracterize o tipo de conhecimento implícito nesta afirmação,


diferenciando-o do tipo de conhecimento que não implica contradição.

CAUSALIDADE E CONEXÃO NECESSÁRIA

63
A ordem da regularidade das nossas ideias assentam em princípios que permitem
uni-las e associá-las. Os princípios de associação de ideias são os seguintes:

Princípios de associação de ideias Exemplos

Semelhança Um rosto desenhado remete-nos para o


rosto original.

Contiguidade no tempo e no espaço A lembrança de um comboio leva a pensar


na estação, nos passageiros, etc.

Causalidade (causa e efeito) A água fria posta ao lume (causa) faz


pensar na fervura (efeito) que se lhe
seguirá.

É, justamente, na relação de causa e efeito que se baseiam os nossos


raciocínios acerca dos factos. O nosso conhecimento dos factos restringe-se às
impressões atuais e às recordações de impressões passadas. Só com base nessas
impressões e recordações é que podemos justificar as nossas crenças. Uma vez
que não dispomos de impressões relativas ao que acontecerá no futuro, também
não possuímos o conhecimento dos factos futuros.
Apesar disso, há muitos factos que esperamos que se verifiquem no futuro.
Esperamos que um papel se queime se o atirarmos ao fogo ou que a roupa se molhe se a
pusermos na água. Trata-se de verdades contingentes (variáveis), relativas a questões
de facto, e que têm por base uma inferência (conclusão) causal, porque, até agora,
sempre o fogo queimou e sempre a água molhou. Logo, isso irá verificar-se também no
futuro. Queimar e molhar são efeitos cujas causas são, respetivamente, o fogo e a água.
A propósito da causalidade e da conexão necessária (relação causa-efeito),
David Hume escreveu o seguinte:

“Todos os raciocínios relativos às questões de facto parecem fundar-se na relação


de causa e efeito. Só mediante esta relação podemos ir além do testemunho da nossa
memória e dos nossos sentidos. Um homem que encontrasse um relógio ou qualquer
outra máquina numa ilha deserta concluiria que noutros tempos estiveram homens
nessa ilha. Todos os nossos raciocínios acerca dos factos são da mesma natureza. E
aqui supõe-se constantemente que existe uma conexão entre o facto presente e aquele

64
que dele é inferido (concluído/extraído). Se nada houvesse a ligá-los, a inferência
(conclusão/ligação) seria inteiramente precária (infundada/despropositada).

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa (adaptado)

Constata-se, assim, que a ideia de causa é aquela que preside às nossas


inferências (consequências/conclusões) acerca dos factos futuros. Essas inferências
têm um carácter indutivo. A indução (enquanto previsão), como sabemos, baseia-se em
casos passados e antevê (prevê/antecipa) casos ainda não observados.
Mas a relação de causa e efeito é geralmente entendida como sendo uma
conexão necessária, ou seja, acredita-se que determinado efeito se produzirá
necessariamente a partir do momento em que existe determinada causa – é como se
o fogo sempre e necessariamente queimasse e a água sempre e necessariamente
molhasse, sendo que esses efeitos não podem ocorrer sem essas causas.
Acontece, no entanto, que nós NÃO DISPOMOS DE QUALQUER IMPRESSÃO
SENSÍVEL (SENSAÇÃO) RELATIVA À IDEIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA ENTRE
FENÓMENOS, POIS, NINGUÉM VÊ OU PERCEPCIONA UMA CONEXÃO
NECESSÁRIA (APENAS PERCECIONAMOS CONJUNÇÕES CONSTANTES).
Assim, sabemos que SÓ A PARTIR DA EXPERIÊNCIA É QUE SE PODE
CONHECER A RELAÇÃO ENTRE A CAUSA E O EFEITO E QUE A ÚNICA COISA QUE
PERCECIONAMOS É QUE ENTRE DOIS FENÓMENOS, EVENTOS OU OBJETOS SE
VERIFICA UMA CONJUNÇÃO CONSTANTE (trata-se de um conhecimento a
posteriori e não a priori, uma vez que SÓ “VEMOS” AS CAUSAS DEPOIS DE
“VERMOS” OS EFEITOS). Como um deles ocorre sempre a seguir ao outro, isso
leva-nos a concluir que entre eles há uma conexão necessária, o que, segundo
Hume, É UM ERRO, uma vez que, acerca da relação causa-efeito que verificamos
existir entre os fenómenos, eventos, acontecimentos ou objetos, NÓS SÓ
PERCECIONAMOS CONJUNÇÕES CONSTANTES E NÃO CONEXÕES
NECESSÁRIAS (assentando estas em ideias ou conhecimentos que derivam de
suposições, crenças ou expetativas nossas). Senão vejamos:

“Ao olharmos, à nossa volta, para os objetos externos e ao considerarmos as


operações das causas, nunca conseguimos, num único caso, descobrir qualquer poder ou
conexão (relação) necessária e qualquer qualidade que liga o efeito à causa e transforma
um em consequência infalível da outra. Descobrimos apenas que de uma se segue
realmente o outro. O impulso de uma bola de bilhar é esperado com o movimento na
segunda. Eis tudo o que aparece aos sentidos externos.”

65
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 65-66 (adaptado).

Ora, o que a este propósito se diz dos objetos externos pode igualmente dizer-se
das operações da mente sobre o corpo. Hume apresenta uma série de argumentos que
visam provar que A IDEIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA TAMBÉM NÃO DECORRE DE
QUALQUER IMPRESSÃO SENSÍVEL, externa, mas sim de um SENTIMENTO
INTERNO, o que leva a concluir que NÃO SURGE, EM TODA A NATUREZA, UM ÚNICO
EXEMPLO DE CONEXÃO QUE POSSAMOS CONCEBER.
Por isso, o nosso conhecimento acerca dos factos futuros NÃO É UM
RIGOROSO CONHECIMENTO – trata-se apenas de SUPOSIÇÃO ou de
PROBABILIDADE, pois, esse conhecimento, assenta unicamente numa EXPETATIVA.
É claro que tal não significa que não estejamos certos de que o fogo queimará ou
de que a água molhará. Contudo, esta certeza tem apenas um FUNDAMENTO
PSICOLÓGICO: o HÁBITO ou o COSTUME, pois, é o hábito de ver um facto a suceder
a outro que nos leva à crença de que sempre assim sucederá – o HÁBITO é, de
resto, um guia imprescindível da vida prática, mas NÃO CONSTITUI UM PRINCÍPIO
RACIONAL.
Diz-nos Hume:

“O costume (o hábito) é, pois, o grande guia da vida humana. Este princípio faz-
nos esperar para o futuro uma série de eventos semelhantes àqueles que
apareceram no passado. Sem a influência do costume seríamos plenamente ignorantes
em toda a questão de facto para além do que está imediatamente presente à memória e
aos sentidos. Nunca saberíamos como ajustar os meios aos fins ou empregara as nossas
capacidades naturais na produção de qualquer efeito.”

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 49-50 (adaptado).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Suponhamos que uma pessoa, embora dotada das mais fortes faculdades da
razão e da reflexão, é trazida subitamente para este mundo; observaria, de facto,
imediatamente uma contínua sucessão de objetos e um evento seguindo-se a outro, mas
nada mais seria capaz de descobrir. Não conseguiria, a princípio, mediante qualquer
raciocínio, alcançar a ideia de causa e efeito, visto que os poderes particulares, pelos
quais todas as operações naturais são executadas, nunca aparecem aos sentidos; nem é

66
justo concluir, unicamente porque um evento, num caso, precede outro, que o primeiro é,
pois, causa e o segundo é o efeito. A sua conjunção (ligação) pode ser arbitrária e casual.
Pode não haver motivo para inferir a existência de um a partir do aparecimento do outro.”

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 46-47 (adaptado).

1. Refira, tendo em conta a suposição avançada no texto, de que modo a pessoa


em causa poderia chegar a “inferir” a existência de um evento a partir do
aparecimento de outro.

2. Segundo a perspetiva de David Hume, como deve ser entendida


(explicada/fundamentada) a relação de causa e efeito?

67
O EU, O MUNDO E DEUS

A inferência causal (noção ou ideia da relação entre uma causa e um efeito)


apenas se pode aceitar quando é estabelecida entre impressões. Segundo, David
Hume, não é legítimo passar das impressões para algo de que nunca tenhamos tido
qualquer impressão, já que nos devemos limitar à experiência. As três substâncias
que Descartes concebera clara e distintamente – o eu (sustância ou coisa pensante) o
mundo (a realidade exterior) e Deus (substância divina) – deixam de fazer parte do
horizonte do nosso conhecimento.
No que se refere à existência de Deus, Hume diz-nos que não podemos
concebê-lo nem como existente nem como não existente, concluindo que, mesmo
que quiséssemos reconhecer a sua existência, Deus não se trata de um ser cuja
existência esteja à partida demonstrada. Como tal, o argumento ontológico
cartesiano (que dá como provada existência de Deus) é, desde logo, excluído. Também
as provas de existência de Deus, baseadas no princípio da causalidade, uma vez que
partem das impressões para chegar a Deus, são criticadas por Hume, pois, segundo
este, DEUS NÃO É OBJETO DE QUALQUER IMPRESSÃO (sensível).
Concluindo, segundo David Hume, A IDEIA DE DEUS RESULTA DE UMA
CONSTRUÇÃO MENTAL nossa (dos seres humanos) em que se elevam, sem limite, as
qualidades da bondade e sabedoria, parecendo POUCO SENSATO recorrer a Deus
(como o fez Descartes) para explicar a existência do mundo exterior e para garantir a
objetividade do conhecimento.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Refira, a partir do excerto, de que modo David Hume encara o problema da


existência de Deus.

68
O FUNDACIONISMO DE DAVID HUME
(FUNDAMENTAÇÃO EMPIRISTA DO CONHECIMENTO HUMANO)

O empirismo de Hume traduz-se nas seguintes consequências: fenomenismo e


ceticismo.

FENOMENISMO – dado que só conhecemos as percepções, a realidade (pelo


menos aquela a que acedemos) acaba por se reduzir aos fenómenos, ou seja, àquilo
que aparece ou àquilo que se mostra aos nossos sentidos. Não encontramos qualquer
princípio ou fundamento susceptível de conferir unidade e conexão às percepções e que
delas se diferencie (nem uma realidade exterior nem uma substância pensante).

CETICISMO (metafisicamente radical e cognitivamente moderado) – como a


realidade a que temos acesso se reduz às perceções, a crença na existência de algo para
lá dos fenómenos carece de fundamento. Além disso, a capacidade cognitiva do
entendimento do humano limita-se ao âmbito do provável.

Assim, o ceticismo de Hume revela um duplo aspeto:

- É um cepticismo radical relativamente às teorias metafísicas que procuram


ultrapassar o âmbito da experiência e da observação, o que Hume considera
inaceitável.

- É um ceticismo moderado (mitigado), uma vez que reconhece as limitações


das nossas capacidades cognitivas e a nossa propensão para o erro.

Hume afasta-se de um ceticismo radical destrutivo ou pirrónico (do filósofo Pirro,


fundador do ceticismo), pois, se duvidássemos de tudo, se abandonássemos a crença
na realidade do mundo exterior e no princípio da causalidade (mesmo que este não
tenha um valor objetivo), cairíamos numa hesitação constante e a vida prática
tornava-se insuportável. Também as ciências não se poderiam desenvolver, já que
elas assentam nas relações causais que estabelecemos entre os fenómenos.
Em que medida, portanto, Hume é um fundacionista (do conhecimento, neste
caso)? Justamente porque encontra na experiência o fundamento do conhecimento.
E quais serão, então, para ele, as crenças básicas?
O texto seguinte, referindo-se ao empirismo em geral, ajuda a esclarecer este
aspeto:

69
“Para os empiristas, as fundações do conhecimento são fornecidas pela
experiência. A minha crença de que está um furador vermelho em cima da minha
secretária é justificada pela minha crença básica de que estou a ter a experiência de uma
forma vermelha no meu campo de visão, não necessitando esta crença (básica) de
qualquer justificação adicional. Pode acontecer que eu esteja enganado quanto ao furador
– podia estar a alucinar – mas não posso estar enganado quanto ao facto de estar a ter
essa experiência. É a minha experiência de ver vermelho que justifica a minha
crença de que estou a ver vermelho, o que, por sua vez, justifica (alegadamente) a
minha crença de que está um furador vermelho em cima da minha secretária. Esta
explicação da justificação é plausível se pensarmos no modo como procuraríamos
justificar as nossas crenças se nos pedissem para o fazer. Teríamos que dizer: eu
acredito que está um objeto vermelho em cima da secretária porque me parece que estou
a ver uma forma de cor vermelha ali. Neste caso, estou a apelar a uma das minhas
crenças básicas para a justificação, isto é, a minha crença de que estou a ter um certo
tipo de experiência.”

Dan O’Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Lisboa, Gradiva, p. 127.

As crenças básicas para um empirista são, pois, as crenças de que se está a


ter estas ou aquelas experiências. A suportar tais crenças estão as impressões dos
sentidos. A crença de que se está a ter determinada experiência permite evitar a
regressão infinita da justificação. No caso de David Hume, será difícil encontrar
outras crenças básicas para lá dessas.
O modo como o filósofo conclui a sua Investigação sobre o Entendimento Humano
é suficientemente esclarecedor da sua postura relativamente à possibilidade do
conhecimento humano, que assenta sobretudo na experiência.

“Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadidos destes princípios, que


conclusão poderemos tirar? Se pegarmos num volume de teologia (estudo sobre Deus)
ou de metafísica (estudo sobre a moral), por exemplo, perguntemos: Contém ele algum
raciocínio experimental relativo a questões de facto? Não! Contém ele algum raciocínio
experimental relativo à existência? Não! Então, lançai-o às chamas, porque só pode
conter sofisma (falácia) e ilusão!”

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p. 156. (adaptado)

ATIVIDADES/QUESTÕES:

70
1. Aponte as consequências do empirismo de Hume no que se refere à
possibilidade do nosso conhecimento do real.

2. Caracterize o ceticismo de Hume.

3. Explique, mediante um exemplo, o fundacionismo de Hume.


ANÁLISE COMPARATIVA DAS TEORIAS DE DESCARTES E HUME
(DIFERENÇAS EXISTENTES ENTRE O RACIONALISMO DE DESCARTES E O EMPIRISMO DE HUME)

PONTOS FUNDAMENTAIS DESCARTES (RACIONALISTA) HUME (EMPIRISTA)

A razão é a fonte principal do A experiência é a fonte principal


conhecimento – racionalismo. de conhecimento e todas as
Devidamente guiada pelo ideias têm uma origem empírica –
método, a razão poderá alcançar empirismo. Deste modo, também
ORIGEM DO CONHECIMENTO
princípios evidentes, claros e as ideias que conduzem às
distintos, independentes da proposições evidentes e
experiência. necessárias (relações de ideias),
derivam, em última análise, da
experiência.

Para além das ideias factícias e Não existem ideias inatas. Todas
adventícias, existem ideias as ideias (simples ou complexas)
OPERAÇÕES DA MENTE E inatas. A partir destas últimas, é derivam das impressões
possível obter o conhecimento, (sensíveis). As operações da
IDEIAS
mediante as operações mente baseiam-se nos princípios
fundamentais da mente: a de associação de ideias: a
intuição e a dedução. semelhança, a contiguidade no
tempo e no espaço e a
causalidade. Sublinha-se o papel
do raciocínio indutivo.

Usando a dúvida, Descartes A realidade a que temos acesso


adotou um ceticismo metódico. reduz-se à esfera das perceções.
Mas, uma vez que depositava A capacidade cognitiva do
inteira confiança na razão, poderá entendimento humano limita-se
POSSIBILIDADE DO
ser enquadrado, no que diz ao âmbito do provável – daí o
CONHECIMENTO respeito à origem e possibilidade ceticismo mitigado. Nada
do conhecimento, no âmbito do podemos conhecer para lá do
dogmatismo (visto acreditar âmbito da experiência – daí o
devotamente na razão). ceticismo metafísico.

Podemos ter ideias claras e Não encontramos qualquer


distintas dos atributos essenciais princípio que confira unidade e
de três tipos de substâncias: conexão às perceções. Não
- a substância pensante; temos impressões:
PERSPETIVAS METAFÍSICAS
- a substância extensa; - do eu pensante;
- a substância divina. - de uma realidade exterior;
- de Deus.
O fundamento do conhecimento O fundamento do conhecimento
encontra-se na razão: é o cogito encontra-se na experiência, mais
(penso, logo existo) enquanto propriamente nas impressões
crença básica ou fundacional e dos sentidos. É a crença básica
71
FUNDAMENTAÇÃO DO primeira verdade, e outras ideias de que se está ter uma
CONHECIMENTO claras e distintas da razão. determinada experiência que
Todavia, este fundamento do justifica as outras crenças obtidas
conhecimento depende daquele através delas.
que é o princípio de toda a
realidade: Deus.

Terminamos esta exposição com dois pequenos excertos: um de René Descartes


e outro de David Hume, que nos permitem notar o contraste essencial existente entre
estas duas perspetivas filosóficas no âmbito da problemática do conhecimento
(origem, possibilidade e fundamentação):

“Conheceremos, primeiramente, que somos, enquanto a nossa natureza é pensar,


e que há um Deus de que dependemos. Depois de ter considerado os seus atributos,
poderemos investigar a verdade de todas as outras coisas, porque Ele é a sua causa.”

René Descartes, Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores, p. 89 (adaptado)

“Se prosseguirmos a nossa investigação para além das aparências dos objetos dos
sentidos, receio que a maior parte das nossas conclusões venham a estar cheias de
ceticismo e incerteza. Nada está mais de acordo com esta filosofia do que um modesto
ceticismo até certo ponto, e uma confissão leal de ignorância em assuntos que excedem
toda a capacidade humana.”

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 730-731 (adaptado)

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Estabeleça uma comparação entre as teorias de Descartes e de Hume no


que se refere à origem, processo e possibilidade de conhecimento.

2. Elabore um comentário às afirmações de Descartes e de Hume, que se


seguem, tendo em conta a fundamentação do conhecimento proposta por estes dois
filósofos:

“Assim, só resta que ela (a ideia de Deus) me seja inata, do mesmo modo como
também me é inata a ideia de mim próprio.”

René Descartes, Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores, p. 162 (adaptado)

“Todas as nossas ideias ou perceções mais fracas são cópias das nossas
impressões ou perceções mais intensas.”

72
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p. 25. (adaptado)

O ESTATUTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO


CONHECIMENTO VULGAR (SENSO COMUM)
E CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A CIÊNCIA


(FILOSOFIA DA CIÊNCIA ou EPISTEMOLOGIA)

Em cada objeto produzido pelo ser humano encontramos a marca da ciência. Uma
simples esferográfica ou um telemóvel têm, com toda a certeza, uma história associada a
uma determinada tecnologia mais ou menos sofisticada de produção, a qual seria
impossível sem a investigação e o progresso científicos.
Aliada à técnica e à tecnologia, a ciência trouxe, ao longo dos tempos, inúmeras
vantagens, comodidades e confortos, sem os quais dificilmente nos imaginaríamos.
Sabemos que, graças ao labor/trabalho de grandes figuras da ciência como Pasteur,
Fleming, Marie Curie, Edison, Turing, Marconi, Bell, Tesla, entre tantos outros,
podemos combater doenças, comunicar e aceder à Internet pelo telemóvel, computador
ou tablet, conduzir automóveis elétricos, e até planear uma viagem a Marte.
O sucesso das suas aplicações permitiu que a ciência alcançasse um estatuto
superior ao de outras formas de conhecimento. A maioria das pessoas valoriza a
ciência e o conhecimento científico sob a crença de que são fiáveis e seguros, os
melhores que alguma vez poderíamos conseguir (a esta fé na ciência chamamos
positivismo ou cientismo). Da ciência espera-se explicações para quase tudo, desde
os fenómenos e problemas mais simples aos mais complexos.
No entanto, o desenvolvimento da investigação científica e da tecnologia
também trouxe a debate inúmeras questões que nos obrigam a refletir sobre o valor, os
riscos e os limites da própria ciência.
Como atividade inquiridora (que indaga, que investiga, que procura, que
questiona) por excelência, a filosofia não poderia deixar de se interrogar sobre estas
questões. A ciência – o conhecimento científico e os resultados da sua aplicação –
constitui o tema sobre o qual nos iremos debruçar ao longo das próximas páginas.
73
A área da filosofia que se ocupa do estudo das questões relativas à prática e ao
conhecimento científico é a filosofia da ciência, também designada por epistemologia.
A consulta de dicionários filosóficos ajuda-nos a explicitar o tipo de estudo a que nos
referimos.
Eis, pois, algumas definições de filosofia da ciência ou epistemologia:

1.“Estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas
ciências, destinado a determinar a sua origem lógica, o seu valor e a sua
importância objetiva.”
(André Lalande)

2.“Investigação de problemas que surgem da reflexão sobre a ciência e a


prática científica.”
(Simon Blackburn)

3.“Estudo sistemático (organizado) da natureza da ciência, especialmente dos


seus métodos, conceitos e pressuposições.”
(Dagobert D. Nunes)

A partir do século XX, a filosofia da ciência assume um lugar de destaque no


panorama filosófico. Filósofos como Rudolph Carnap (1891-1970), alemão, um dos
maiores representantes do empirismo científico, concentrou-se nas relações entre a
lógica e a matemática, levantando uma série de questões, no âmbito da filosofia da
ciência, sobre vários problemas, de entre os quais se destacam os de teste e significado
das hipóteses científicas; Karl Popper (1902-1994), filósofo e professor austro-
britânico, amplamente considerado um dos maiores filósofos da ciência do século XX e
conhecido pela sua rejeição das visões indutivistas clássicas sobre o método científico em
favor do falsificacionismo; Willard Quine (1908-2000), considerado um dos mais
influentes matemáticos, filósofos e lógicos norte-americanos do século XX, entre outros,
procuraram definir os princípios lógicos que permitem justificar as teorias científicas
e garantir a validade do conhecimento científico. Outros, como Thomas Kuhn (1922-
1996), norte-americano, notável físico, historiador e filósofo da ciência, cujo trabalho
incidiu sobre a história da ciência e a filosofia da ciência, tornando-se um marco no
estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico, e Paul Feyerabend (1924-
1994), filósofo e epistemólogo austríaco, criticou a racionalidade ocidental e a
pretensão da ciência em ser objetiva, considerando que é na retórica e na propaganda
que devemos encontrar o sucesso dos cientistas. Pela atenção que prestou às outras

74
culturas e civilizações, é considerado "um democrata do saber". Cada um à sua maneira,
chamaram a atenção para a importância do contexto histórico e sociológico em que
a atividade científica se desenvolve.
Eis as principais questões de que se ocupa a filosofia da ciência/epistemologia:
- O que é a ciência?
- Como podemos reconhecer um conhecimento científico?
- O que distingue uma boa teoria de uma má teoria científica?
- O que distingue a investigação nas ciências como a biologia e a física da
investigação desenvolvida em disciplinas como a história e a sociologia?
- Poderá haver uma ciência unificada (única) capaz de abranger as diferentes
ciências particulares?
- Qual deve ser o método a adotar em ciência?
- Qual o papel da observação e da experimentação na construção e obtenção
do conhecimento científico?
- Qual o critério a adotar na validação das teorias científicas?
- Como progride a ciência?
- Qual o papel da atividade científica no processo de evolução da ciência?
- Será que o conhecimento científico é objetivo?
- O que significa o conceito de “objetividade científica”?
- O contexto social e cultural tem alguma influência sobre a atividade
científica?

ATIVIDADES/QUESTÕES:

A autoridade da ciência é frequentemente evocada em diferentes áreas da nossa


sociedade. A expressão “comprovado cientificamente”, tantas vezes utilizadas nos
slogans publicitários, no sentido de obter a adesão do público relativamente a
determinados produtos, é, a este propósito, um exemplo do valor que a produção
científica tem vindo a assumir.

1. Apresente um exemplo (ou, se quiser, mais que um) que ilustre o valor que
geralmente é atribuído à ciência, dando, assim, azo a um comentário pessoal acerca
do papel que a ciência assume na sociedade atual.

75
“Nem todas as invenções científicas têm sido benéficas para os seres humanos
– é óbvio que esses desenvolvimentos têm sido usados tanto para destruir como para
melhorar a vida humana. Contudo, seria difícil negar o sucesso da manipulação da
natureza que a ciência tornou possível. A ciência produziu resultados, ao passo que a
bruxaria, a magia, a superstição e a mera tradição não têm mostrado, comparativamente,
grande coisa a seu favor.”

Nigel Warburton (1988), Elementos Básicos de Filosofia, Lisboa, Gradiva, p. 166.

2. Procure identificar alguns exemplos da história que permitam ilustrar os


malefícios para a humanidade decorrentes de invenções científicas.

3. Defina filosofia da ciência (epistemologia) e enunciealgumas das


questões/problemas sobre os quais esta se debruça.

76
A ESPECIFICIDADE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
DISTINÇÃO ENTRE SENSO COMUM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A questão “O que é a ciência?” é a primeira da lista das questões que


enunciámos para a filosofia da ciência.
Para responder a esta questão, podemos partir da comparação entre a ciência e
outros tipos de saber ou conhecimentos e assim indicar o que ela tem de
específico.
Richard Feynman (1919-1988), reconhecido cientista norte-americano do século
XX, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Física em 1965, conta-nos, no primeiro
capítulo da sua obra Como Nasce um Cientista, o seguinte:

“Um amigo meu, que é artista, assume às vezes atitudes de que discordo. Por
exemplo, pega numa flor e diz: «Vê só como é bela!» E eu concordo. Mas, depois,
acrescenta ele: «Eu, que sou artista, consigo apreciar a beleza de uma flor, enquanto tu,
que és cientista, desmancha-la toda, e isso é triste.»
Ora, isto dá-me a ideia de que ele não regula bem!
Em primeiro lugar, a beleza que ele vê é acessível a todos – inclusive a mim,
segundo creio. Embora talvez não possua o seu requinte estético, julgo ser capaz de
apreciar a beleza de uma flor. Mas, simultaneamente, vejo na flor muito mais do que ele:
consigo imaginar as células no seu interior, que têm, igualmente a sua beleza, já que esta
não existe só na escala do centímetro, mas também em porções muito menores (às quais
acedemos através de um microscópio, entre outros instrumentos).
Há ações complicadas das células e outros processos. Por exemplo, o facto de se
ter verificado uma evolução nas cores das flores, de forma a atraírem os insetos para as
polinizar, é muito interessante porque significa que os insetos conseguem ver as cores.
Daí somos levados a perguntar se o sentido estético existe também nas formas de vida
inferiores. Assim, o conhecimento científico, associado ao entusiasmo, ao mistério e ao
respeito por uma flor, torna possível toda uma espécie de perguntas interessantes.”

Richard Feynman, Nem sempre a Brincar, Sr. Feynman, Lisboa, Gradiva, p. 11 (adaptado)

77
O texto apresenta-nos uma perspetiva da ciência por contraste com a arte e
com a maneira habitual que o ser humano tem de perceber os objetos e os factos
do mundo que habita. Mostra-nos como a realidade (de um objeto, de uma flor, etc.)
pode ser explorada e compreendida de modos tão diferentes. Ao relatar-nos este
episódio, Feynman parece querer dizer-nos que o cientista é um ser como outro
qualquer, capaz de perceber a beleza de uma flor, e que, ao mesmo tempo, ele é
capaz de ver muito mais para lá do que a nossa perceção imediata nos pode dar a
conhecer.
Comecemos, pois, por admitir a existência de diferentes níveis de conhecimento
que formamos acerca da realidade. O primeiro nível de conhecimento, que é comum a
todos os seres humanos, designa-se por senso comum ou conhecimento vulgar.
Este tipo de conhecimento é diferente daquele tipo de conhecimento que é capaz
de “ver muito mais”, ou seja, distingue-se do conhecimento científico. Vejamos, então,
que tipo de conhecimento é este:

O SENSO COMUM (CONHECIMENTO VULGAR)

O senso comum (ou conhecimento vulgar) é um tipo de conhecimento


essencialmente prático, na medida em que é com base nele que nos orientamos na
nossa vida quotidiana. Por exemplo, é com base no senso comum (ou conhecimento
vulgar) que sabemos que no verão a temperatura é, por norma, mais elevada e que
os dias são maiores, ou que o pólen das flores pode estimular as alergias ou ainda
que o café pode tirar o sono.
Este tipo de conhecimento é formado essencialmente a partir da apreensão
sensorial espontânea e imediata que fazemos da realidade. Ao contrário do
conhecimento científico, o senso comum (ou conhecimento vulgar) não é
aprofundado, nem decorre de investigações planificadas e apoiadas em testes e
resultados experimentais, desenvolvidos dentro ou fora do laboratório. Por isso, é não
disciplinar (não é um conhecimento organizado) e é ametódico (não possui um método
específico e rigoroso).
Ao nível do senso comum não perguntamos por que razão as temperaturas no
verão são mais elevadas e os dias maiores ou como pode o café tirar o sono. Já o
cientista indaga (investiga) sobre estes assuntos e aprofunda-os de maneira a poder
explicar, descrever e até prever este tipo de fenómenos.

78
Porque se baseia nas impressões imediatas que formamos dos objetos e
acontecimentos, e também porque não há grandes preocupações de o justificar, o senso
comum é um tipo de conhecimento superficial e pouco ou nada aprofundado.
No entanto, é com base neste tipo de conhecimento que avaliamos,
analisamos e resolvemos os problemas do dia-a-dia. Ele surge espontaneamente no
suceder quotidiano da vida em sociedade, podendo ser definido como o conjunto de
crenças, hábitos e opiniões subjetivas, suposições, pressentimentos, preconceitos
e ideias feitas que se traduzem num conhecimento superficial (não rigoroso, não
aprofundado) e, por vezes, erróneo da realidade.
Existem alguns exemplos, que se prolongaram durante séculos, de aparências
que todos juravam ser “evidências”, imperando aqui o saber do senso comum (ou
conhecimento vulgar). Muitos dos que começaram a duvidar dessas evidências foram
ridicularizados e/ou severamente punidos (nomeadamente, no tempo da Inquisição).
Assim, durante séculos pensou-se que:
- a Terra era plana – era aparentemente evidente que a Terra era plana, porque
todos podiam facilmente verificá-lo. Não aceitar isto significaria admitir que em
determinado ponto da Terra viveriam, absurdamente, pessoas de cabeça para baixo…
- o Sol é que se movimentava em torno da Terra (Geocentrismo ou Teoria
Geocêntrica – a Terra no centro) – como podemos verificar todos os dias, o Sol, de
manhã, “levanta-se”, durante o dia, “movimenta-se”, e, à noite, “põe-se”. Galileu, entre
outros, precisamente por propor a o Heliocentrismo ou Teoria Heliocêntrica (o Sol no
centro do sistema), viu-se forçado a jurar em público que a sua teoria estava errada e
a comprometer-se com o abandono (abjuração) das suas investigações acerca das
órbitas terrestres.
Estes exemplos dão-nos conta de muitas das evidências que, afinal, não o são,
isto é, que vieram a ser contrariadas e postas de lado. Nestes dois exemplos a fonte de
conhecimento que está presente é a experiência sensorial (dos sentidos), isto é a
experiência associada aos nossos órgãos sensoriais ou sensitivos (neste caso, a
visão como sentido de orientação e, consequentemente, a sensação de imobilidade da
Terra e de movimento do Sol).
De facto, relacionamo-nos com o mundo que nos rodeia, antes de mais, através
dos sentidos. São eles que nos permitem diversos tipos de experiências que,
acumuladas, constituem um primeiro nível de conhecimento da realidade exterior: o
conhecimento vulgar ou senso comum.

79
O senso comum (ou conhecimento vulgar) é, assim, aquele tipo de
conhecimento básico, que, como o próprio nome indica, é comum a todos os seres
humanos, através do qual nos orientamos na nossa vida quotidiana.
Eis, então, as principais caraterísticas senso comum (ou conhecimento vulgar):
- Espontâneo e imediato;
- Superficial (não aprofundado);
- Assistemático (desorganizado);
- Dogmático (não põe em causa as evidências ou aquilo que aparentemente é
real);
- Acrítico (não crítico);
- Sensitivo (baseia-se naquilo que chega pela via dos sentidos, nas aparências);
- Subjetivo (não objectivo, ou seja, varia de sujeito para sujeito);
- Ametódico (não tem qualquer método de abordagem da realidade).

Por tudo isto dizemos que o senso comum (ou conhecimento vulgar) se trata do
primeiro nível do conhecimento de que o ser humano dispõe, constituindo este, por um
lado, resposta para as mais diversas situações práticas da vida e, por outro, estimula
a construção de outros tipos de conhecimento mais elevados e mais elaborados,
como é o caso do conhecimento científico.
Acerca desta articulação entre senso comum (ou conhecimento vulgar) e
conhecimento científico e da forma como este se desenvolve, temos duas
perspetivas filosófico-epistemológicas, cujos principais representantes são os
filósofos da ciência (ou epistemólogos) Karl Popper (a quem já se fez referência logo
no início desta matéria sobre a ciência) e Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo,
químico e poeta francês cujo pensamento está focado principalmente nas questões
referentes à filosofia da ciência – apresenta o que viria a ser conhecido como a
“Filosofia do Não”, segundo a qual a experiência nova diz não à experiência antiga.
Um e outro (Popper e Bachelard) visam, cada um à sua maneira, responder às
seguintes questões:

- Qual a relação existente entre o senso comum e a ciência?


- A ciência nasce e desenvolve-se numa lógica de continuidade relativamente
ao senso comum ou, pelo contrário, entra em rutura com este para poder constituir-
se num outro tipo de conhecimento?

O CONHECIMENTO CIENTÍFICO

80
O conhecimento científico resulta de uma leitura dos fenómenos diferente
daquela que o senso comum (ou conhecimento vulgar) nos proporciona. E, neste
sentido, o conhecimento científico representa também um nível mais aprofundado do
conhecimento que podemos ter acerca da realidade.
Ao contrário do conhecimento vulgar, o conhecimento científico baseia-se em
pesquisas e em investigações apoiadas em procedimentos (métodos) coerentes e
consistentes relativamente a um conjunto de pressupostos teóricos que são adotados
pelos cientistas; faz-se acompanhar, na maioria dos casos (sobretudo nas ciências
experimentais), de instrumentos de medida; implica a construção de conceitos e
teorias e o recurso a uma linguagem própria, procurando descrever, explicar e
prever os fenómenos e as suas relações, e apontando as leis que lhes são inerentes.
Quanto à linguagem, é possível encontrar alguns exemplos de termos que são
comuns ao universo do senso comum e do conhecimento científico, mas cujo
significado é radicalmente distinto (por exemplo, o termo “energia”). No senso comum
predomina a linguagem natural, aquela que utilizamos no dia-a-dia; já a linguagem que
é utilizada pelas ciências é específica e rigorosa, recorre a conceitos técnicos, a
símbolos e, na generalidade, à linguagem matemática.
O conhecimento científico representa, então, um nível de conhecimento mais
rigoroso do real do que senso comum (ou conhecimento vulgar) e distingue-se deste
na medida em que é mais profundo; mais racional; desconfia dos sentidos (porque,
por vezes, os sentidos enganam); manifesta-se através de uma atitude crítica; resulta
de uma atitude ativa; transforma as qualidades em quantidades (através de
instrumentos de medida, como, por exemplo, os termómetros para medir as temperaturas
em graus); é objetivo; estabelece relações de causalidade entre os fenómenos
observados; é metódico (ordenado) e é sistemático (organizado).
A crítica ou a rutura que o conhecimento científico estabelece com o senso
comum (ou conhecimento vulgar) resulta de uma atitude diferente face ao real – daí
que, apesar de alguns termos serem comuns aos dois universos do conhecimento
(conhecimento vulgar e conhecimento científico), o seu significado seja radicalmente
distinto (por exemplo, novamente, o termo “energia”).
Foi, portanto, de uma atitude problematizadora, crítica e planeada que nasceu
aquilo que designamos por ciência.
Mas, então, devemos perguntar:
Quando é que nasceu a ciência?
Qual tem sido a sua evolução?

81
Podemos demarcar (distinguir) diferentes momentos que evidenciam a evolução
da ciência: nos seus primórdios, a ciência não se distinguia da filosofia. De facto, se
entendermos a ciência antiga como Aristóteles a definia, isto é, como um
conhecimento das coisas pelas suas causas, então os filósofos pré-socráticos e outros
que os sucederam eram também cientistas, pois procuravam as causas primeiras (as
origens) dos fenómenos naturais. Os filósofos produziam discursos teóricos sobre a
natureza e deduziam conclusões a partir de princípios, premissas e definições –
aqui, a ciência encontrava-se ainda no seu estado teórico.
Para sermos precisos, a ciência moderna nasce no século XVI e XVII com Galileu
e com Newton. É nesta fase que a ciência se autonomiza relativamente à filosofia e se
torna “no conhecimento que procura formular mediante linguagens rigorosas e
apropriadas – tanto quanto possível, com o auxílio da linguagem matemática – leis por
meio das quais se regem os fenómenos.”
Assim a ciência moderna está associada aos desenvolvimentos da física
clássica, a qual entende o mundo como uma enorme máquina (mecanicismo) sujeita
a relações de causalidade que podem ser expressas em leis que exprimem a
regularidade (invariância) e repetibilidade dos factos. Essas leis devem explicar
matematicamente as relações constantes entre os fenómenos testados por
verificações experimentais e prever a ocorrência de novos fenómenos.
A matematização, a verificação experimental, a lei científica, a ideia de ordem,
a noção de determinismo são dominantes neste estado de evolução da ciência.
Desde o início, a ciência sempre procurou constituir-se como um conjunto de
conhecimentos e procedimentos sistematizados e organizados, tendo em vista a
produção de leis e teorias capazes de descrever, explicar e prever os fenómenos.
A ciência que muitos designam de pós-moderna está associada ao surgimento da
teoria da relatividade de Einstein (físico teórico alemão que desenvolveu a teoria da
relatividade geral, um dos pilares da física moderna ao lado da mecânica quântica) e aos
avanços da Física Quântica (também conhecida como mecânica quântica, é uma
grande área de estudo que se dedica em analisar e descrever o comportamento dos
sistemas físicos de dimensões reduzidas, próximos dos tamanhos de moléculas, átomos
e partículas subatómicas. Por meio da Física Quântica, foi possível compreender os
mecanismos dos fenómenos radioativos, da emissão e absorção de luz pelos átomos, da
produção de raios X, do efeito fotoelétrico, das propriedades elétricas dos semicondutores
etc.), e, mais particularmente, aos trabalhos de Heisenberg (físico teórico alemão que
recebeu o Nobel da Física, em 1932, pela criação da mecânica quântica (por oposição à

82
mecânica clássica) cujas aplicações levaram à descoberta, entre outras, das formas
alotrópicas do hidrogénio – a alotropia foi uma denominação atribuída ao fenómeno em
que um mesmo elemento químico pode originar duas ou mais substâncias simples
diferentes (os carbonos, o enxofre, o oxigénio, entre outros, são alótropos); Heisenberg
propõe que, num nível quântico, quanto menor for a incerteza na medida da posição de
uma partícula, maior será a incerteza do seu movimento linear e vice-versa, ou seja,
o Princípio da Incerteza de Heisenberg diz que não é possível determinar
simultaneamente com a mesma precisão a velocidade e a posição de um eletrão de
determinado átomo, e Bohr (físico dinamarquês cujos trabalhos contribuíram
decisivamente para a compreensão da estrutura atómica e da física quântica). Assim, a
ciência pós-moderna está marcada pelas ideias de relatividade, incerteza,
indeterminismo e probabilidade, contrariamente ao tipo de ciência que lhe antecede,
que se baseava em princípios ou ideias de certeza, precisão e determinação
(determinismo).
Apesar de já ter sido apresentado um conjunto de características específicas do
conhecimento científico, com o propósito de o distinguir do senso comum (ou
conhecimento vulgar), no quadro que se segue apresenta-se uma caracterização, de
uma forma mais esquemática, desse mesmo conhecimento:

CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Procura ser objetivo. Tem em atenção o facto, excluindo as


apreciações subjetivas (de cada
sujeito).

Resulta de um método específico. Tal método apoia-se, no caso das


ciências empíricas, na verificação e no
controlo experimentais.

Resulta da formulação de hipóteses. As hipóteses procuram ordenar a


diversidade empírica.

É constituído por um conjunto de teorias. As teorias são hipóteses já


estabelecidas e comprovadas.

Procura leis. As leis exprimem a invariância


(permanência) e a repetibilidade dos
factos; muitas vezes, este

83
conhecimento exprime os factos em
termos estatísticos e probabilísticos.

É preditivo (faz previsões). Prevê a ocorrência de novos


fenómenos.

É revisível (faz revisões constantes). Encontra-se sujeito a correções e a


alterações.

É provisório (não é definitivo). Mantém-se como aceitável até surgir


outra teoria mais eficaz e mais
próxima da verdade.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga o Senso comum (ou conhecimento vulgar) do Conhecimento


científico.

2. Como se definia, segundo Aristóteles, a ciência antiga e em que estado se


encontrava?

3. Caraterize a ciência moderna quanto à sua forma de abordagem e


interpretação do mundo/fenómenos.

4. A que ideias está ligada a designada ciência pós-moderna?

84
SENSO COMUM E CIÊNCIA: CONTINUIDADE OU RUTURA?

Karl Popper, considera o senso comum (ou conhecimento vulgar) o ponto de


partida para qualquer conhecimento mais aprofundado do real – seja o científico,
seja o filosófico ou qualquer outro (de tipo racional) – no entanto, alerta para o facto de
ser preciso corrigir, reformular, isto é, criticar toda a informação que se “processa” ao
nível do senso comum.
Se o senso comum (ou conhecimento vulgar) nos conduz, por vezes, ao erro,
então devemos olhá-lo com desconfiança e atenção. Sendo o conhecimento mais
imediato que podemos retirar da realidade, ele (senso comum) será, assim, e na
perspetiva do epistemólogo (filósofo da ciência) Karl Popper, o ponto de partida para
qualquer conhecimento mais aprofundado do real – o conhecimento científico, o
filosófico ou, numa palavra, o racional. Mas o facto de se constituir como ponto de
partida não significa que não tenhamos de o corrigir, de o reformular, numa palavra, de
o criticar.
Ainda segundo Karl Popper, a ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos
devem partir do senso comum.
Mas, como poderá ser o senso comum um ponto de partida seguro se é um
tipo de conhecimento que se baseia essencialmente nos instintos ou opiniões da
maioria das pessoas que ora são adequados ou verdadeiros ora são inadequados
ou falsos? Como pode uma coisa tão vaga e insegura como o senso comum
fornecer-nos um ponto de partida?
A resposta de Popper a estas perguntas é a seguinte:

85
“A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso
comum. Não por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão «senso
comum» que estou aqui a usar é muito vaga e mutável, simplesmente porque denota uma
coisa vaga e mutável – os instintos ou opiniões de muitas pessoas, às vezes adequados
ou verdadeiros e às vezes inadequados ou falsos.
Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como
o senso comum? A minha resposta é: porque não queremos nem tentamos construir um
sistema seguro sobre esses «alicerces». Qualquer das nossas muitas suposições de
senso comum da qual partamos pode ser contestada e criticada a qualquer tempo;
frequentemente, tal suposição é criticada com êxito e rejeitada (por exemplo, a teoria de
que a Terra é plana). Em tal caso, o senso comum é modificado pela correção ou é
transcendido e substituído por uma teoria que, por menor ou maior período de tempo,
pode parecer a certas pessoas como mais ou menos “maluca”. Seja como for, toda a
ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido. A minha primeira tese é, pois, que
o nosso ponto de partida é o senso comum e o nosso grande instrumento para
progredir é a crítica.”

Popper, KARL, Conhecimento Objetivo, Belo Horizonte, Editora da Universidade de S. Paulo e


Itatiaia Limitada, p. 42 (adaptado)

Enquanto Karl Popper admite que o senso comum (ou conhecimento vulgar) é
um ponto de partida, ainda que inseguro, para outro tipo de conhecimento mais
aprofundado do real, bastando para tal ser criticado, um outro epistemólogo (filósofo da
ciência), Gaston Bachelard, não o admite como tal, considerando-o (o senso comum) um
obstáculo epistemológico, ou seja, algo que, por si, impede a produção de
conhecimento científico. Por conseguinte, não basta criticar e corrigir o
conhecimento vulgar, é preciso romper totalmente com ele.
Diz-nos Bachelard:
“A ciência, tanto na sua necessidade de realização como no seu princípio, opõe-se
absolutamente à opinião (do senso comum). Se lhe acontece, num aspeto particular,
legitimar (dar crédito) a opinião, é por outras razões diferentes daquelas que
fundamentam a opinião; de tal maneira que a opinião não tem de direito qualquer razão. A
opinião pensa mal; aliás, ela nem sequer pensa: ela traduz necessidades em
conhecimentos e, designando os objetos pela sua utilidade, interdita-se (impede-se) de os
conhecer. Nada se pode fundar sobre a opinião: é necessário primeiro destruí-la. Ela é o
primeiro obstáculo a superar.”

86
Bachelard, GASTON, La Formation de L’Esprit Scientifique, Paris, J. Vrin, p. 14 (adaptado)

Quer entendamos o senso comum (ou conhecimento vulgar) como ponto de


partida (embora inseguro e suscetível de ser criticado), quer como obstáculo
epistemológico ou obstáculo ao progresso do conhecimento científico (que obriga o
conhecimento científico a estabelecer uma espécie de corte ou rutura com ele), o certo é
que este primeiro nível de conhecimento é superficial e, portanto, distingue-se
radicalmente do conhecimento científico.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga a perspetiva de Karl Popper da de Gaston Bachelard relativamente


à forma como a ciência (conhecimento científico) evolui face ao senso comum
(conhecimento vulgar).

CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS

Do que foi descrito anteriormente, podemos definir o conhecimento científico


como um tipo de conhecimento aprofundado e especializado em diferentes
domínios, desde o mundo físico e natural ao humano e social, que constrói
explicações dos fenómenos, tendo por base uma organização teórica e um método.
Tradicionalmente, consideram-se dois tipos fundamentais de ciências: as
formais (teóricas) e as empíricas (aplicadas). Enquanto as ciências empíricas se
ocupam dos factos e acontecimentos que ocorrem no mundo e que podemos
conhecer através da experiência, as formais ocupam-se de símbolos e das relações
que se podem estabelecer entre eles, não precisando de recorrer à experiência para
obter resultados.
Neste sentido, as ciências empíricas lidam com proposições do tipo “O ponto de
ebulição do etanol (álcool etílico) é de 78°C”, que são justificadas com base na
observação e na experimentação (são a posteriori); as ciências formais recorrem a
outro tipo de proposições, de índole puramente racional, como, por exemplo, “A raiz
quadrada de 64 é 8”, que são independentes da experiência (são a priori).

CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS

FORMAIS: estudam conceitos, estruturas e processos puramente


lógicos, abstratos e simbólicos. Ex: Lógica, Matemática,...

87
NATURAIS: estudam factos e Ex: Biologia, Química,
acontecimentos característicos da Física, Astronomia, …
natureza.
EMPÍRICAS
SOCIAIS E HUMANAS: estudam Ex: Sociologia, Filosofia,
factos e acontecimentos Psicologia, História,
característicos da vida social e Economia, …
humana.

Apesar de podermos distinguir as diversas ciências em função do seu objeto e


método de estudo, a verdade é que há muitas situações em que elas cooperam entre si.
Por outro lado, os trabalhos desenvolvidos no âmbito das ciências naturais
implicam habitualmente o recurso à linguagem matemática, por ser o tipo de linguagem
que permite quantificar, medir e traduzir os fenómenos naturais.
Já no caso das ciências sociais e humanas, nem sempre os fenómenos em
estudo, que se inscrevem nestas, são facilmente convertidos em linguagem matemática,
nem os resultados da investigação científica permitem definir leis universais.
ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Considere as seguintes proposições e explique a que tipos de ciências


(formais ou empíricas) elas se reportam:

a) A nicotina reduz o apetite.

b) Se P. então Q.

c) A utilização excessiva de Internet aumenta o risco de comportamentos


agressivos nos adultos.

88
CIÊNCIA E CONSTRUÇÃO
(O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO/DISTINÇÃO DA CIÊNCIA)

VALIDADE E VERIFICABILIDADE DAS HIPÓTESES

Se uma das características do conhecimento científico é o seu carácter


metódico, condição que o distingue do conhecimento vulgar (senso comum),
analisemos agora qual é o método que permite DEMARCAR (distinguir) a ciência de
outros modos de conhecer o real. Veremos, neste sentido, qual a especificidade
metodológica da ciência.
O método em ciência corresponde ao conjunto de procedimentos, orientados
por um conjunto de regras, que estabelecem a ordem das operações a realizar com
vista a atingir um determinado resultado.
A escolha de um método está dependente do tipo de objeto do qual se pretende
obter um conhecimento aprofundado: os métodos variam em função do objeto de
estudo.
Será o método a adotar que permitirá distinguir aquilo que é conhecimento
científico do que não o é, ou seja, do que não pode ser considerado como tal. Isto
permite responder ao PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO face aos outros tipos de conhecimento, que consiste na procura do critério

89
de cientificidade, capaz de discernir(distinguir) aquilo que é científico daquilo que não
é científico.
Neste sentido, trataremos, na presente rubrica, de responder às seguintes
questões:
- Quais são os procedimentos (o método, o processo) que o cientista deve
adotar para obter resultados científicos?
- Como podemos reconhecer uma teoria científica?
- Qual o critério a adotar na validação das teorias científicas?
- Será que o método é suficiente para garantir a cientificidade do
conhecimento?

Veremos, de seguida, duas conceções ou perspetivas epistemológicas (da


evolução do conhecimento científico) que correspondem a dois modelos metodológicos
de referência – o indutivo e o conjetural (ou hipotético-dedutivo) – e os critérios de
validação das hipóteses científicas – o critério de verificabilidade e o de
falsificabilidade – propostos pelas diferentes conceções filosóficas ou perspectivas
epistemológicas(a indutivista e a conjeturalista) que inspiram cada um desses
modelos (o indutivismo e o conjeturalismo).

A CONCEÇÃO INDUTIVISTA DO MÉTODO CIENTÍFICO

Segundo a conceção indutivista do método científico, o modelo epistemológico


(ou processo pelo qual se orienta e produz o conhecimento científico) é o INDUTIVISMO,
salientando a importância da indução para a ciência, quer ao nível das descobertas
científicas, quer ao nível da justificação das teorias.
Francis Bacon (1561-1626) foi um dos filósofos que mais chamou a atenção para
o papel que a indução e a experimentação têm na construção do conhecimento.
Segundo Bacon, o método indutivo era o único método capaz de servir a ciência. Ele
considerava que o conhecimento científico se devia fundar na indução e na
experimentação e não na matemática e na especulação (estudo teórico). A indução é,
para Bacon, o único caminho para o progresso da ciência.
Nesta mesma linha revitalizadora do papel da indução, encontram-se, para além
de Francis Bacon, outros autores, na sua grande maioria empiristas, como John Locke,
David Hume e Stuart Mill, que valorizaram a experiência sensível como a base do
conhecimento.

90
De um modo geral, a visão indutivista do método científico considera que a
atividade científica obedece a uma lógica de procedimentos em que se parte da
observação dos fenómenos, passando-se à formulação de hipóteses e à realização
de testes experimentais para, depois, se propor novas teorias e leis científicas
(OBSERVAÇÃO →FORMULAÇÃO DE HIPÓTESES →EXPERIMENTAÇÃO→LEI).

Vejamos, pois, as operações fundamentais implícitas nas etapas do método


indutivo:

OPERAÇÕES FUNDAMENTAIS DO MÉTODO INDUTIVO

1. OBSERVAÇÃO DOS FENÓMENOS:

- O cientista observa os factos ou fenómenos e regista-os de forma sistematizada


(organizada) para procurar encontrar as suas causas.

- A observação é neutra, objetiva e imparcial – o cientista não se deixa influenciar


por quaisquer factos, ideias, teorias ou expectativas.

- A observação e o registo devem ser repetidos várias vezes. Tudo é definido com
rigor e método, de modo a proporcionar a medição, a análise e a leitura precisas do
maior número de casos possível.

- A observação precede (antecede) a teoria.

Exemplos:
Observo que o metal X (por exemplo, o cobre) conduz electricidade.
Observo que o metal Y (por exemplo, o ouro) conduz electricidade.

2. DESCOBERTA DA RELAÇÃO ENTRE OS FENÓMENOS:

- Por intermédio da comparação e classificação dos casos observados, o


investigador procura aproximar os factos para descobrir a relação existente entre eles.
Assim, ele parte para a formulação de hipóteses, explicações acerca dos fenómenos e
das suas relações.

Exemplo:
Verifico a relação entre os metais X (cobre) e Y (ouro).

91
3. GENERALIZAÇÃO DA RELAÇÃO:

- Recorrendo ao raciocínio indutivo, o cientista generaliza a relação encontrada


entre os factos semelhantes, traduzindo-os em leis que expressam as relações
constantes entre esses factos.

- Na prática, a hipótese explicativa enunciada terá de ser testada através da


experimentação e, confirmando-se o que ela propõe, pode passar a LEI científica.

- Na base deste procedimento está a indução: o cientista, depois de observar


experimentalmente novos casos em que se verifica o mesmo tipo de relação entre os
fenómenos que a hipótese previa, pode, então, concluir da sua legitimidade, ou seja,
pode validar um determinado enunciado que assume o estatuto de teoria ou lei.

Exemplo:
Todos os metais conduzem eletricidade.

Em resumo, na visão indutivista do método científico, o cientista parte da


OBSERVAÇÃO dos fenómenos para elaborar as teorias, depois, analisa
cuidadosamente os seus registos e, finalmente, vai à procura das relações entre os
dados recolhidos.
A EXPERIMENTAÇÃO é fundamental para que se possa verificar e confirmar
se as relações estabelecidas são aplicáveis a todo o tipo de fenómenos
semelhantes (isto é, nas mesmas condições e da mesma natureza), mesmo sem que
tenham sido observados um por um. O RACIOCÍNIO INDUTIVO é a chave para a
descoberta e justificação das teorias científicas.
Relativamente ao papel assumido pelo indutivismo no contexto do
desenvolvimento das ciências, Manuel Maria Carrilho, na sua obra A Filosofia das
Ciências (1994), escreveu o seguinte:
“O extraordinário desenvolvimento da ciência moderna levou, entretanto, à
identificação da indução como a chave do seu sucesso, dando, assim, origem a uma das
mais fortes conceções da filosofia das ciências – o indutivismo, ou seja, a ideia de que a
descoberta e a justificação das causas dos fenómenos e, portanto, o respetivo
estabelecimento das leis, se faz através, e só através, da utilização dos processos
indutivos.
São três os enunciados do indutivismo:
1. O próprio princípio da indução, que estabelece que há uma forma de, a partir
da acumulação de factos singulares, inferir enunciados universais, de tal modo que
92
de enunciados verdadeiros que descrevem observações e experiências é possível
inferir (extrair) leis;
2. O princípio da acumulação, que considera o conhecimento científico como o
resultado de factos bem estabelecidos, a que progressivamente se acrescentaram
outros sem que os primeiros se alterem;
3. O princípio de confirmação, que articula a plausibilidade
(pertinência/probabilidade/possibilidade) das leis com o número de instâncias a que o
fenómeno a que se refere a lei foi submetido.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“O método científico é um assunto importante não só para os cientistas como


também para os filósofos da ciência.”

1. Concorda com a afirmação? Justifique a sua resposta.

2. Descreva as etapas do método indutivo.

O CRITÉRIO DA VERIFICABILIDADE

Ao descrever o método indutivo dissemos que pela experimentação o cientista


procura testar, confrontar com a experiência aquilo que uma dada hipótese propõe.
Verificar o que uma dada hipótese propõe torna-se, por isso, o passo necessário para
assegurar os resultados da investigação.
Mas será que isto é suficiente para garantir que aquela hipótese se trata de
facto de uma (boa) hipótese ou teoria científica?
Uma das questões centrais da reflexão epistemológica (ou da filosofia da ciência)
dos últimos tempos incide precisamente sobre qual o critério que permite demarcar
(distinguir) o conhecimento científico de outros tipos de conhecimento – trata-se,
afinal, do chamado problema da demarcação (da distinção) da ciência. Os filósofos
neopositivistas (filósofos que defenderam a supremacia do conhecimento científico
face às demais áreas do saber) assumiram esta questão como uma das suas principais
preocupações e consideraram a verificação empírica (pela experiência) o critério para

93
distinguir o que é científico do que não o é. De acordo com o critério de
verificabilidade, uma teoria só será científica se for possível verificar aquilo que ela
propõe empiricamente, isto é, através da experiência.
Considera-se que uma proposição é empiricamente verificável (pela
experiência) se for possível determinar, através da observação, o valor de verdade
dessa proposição.
Assim, por exemplo, a proposição “Há cisnes negros”, porque pode ser
verificada pela observação, possui carácter científico, já a proposição “Há anjos
negros”, não pode ser considerada científica porque o que ela afirma não é passível
de ser verificado empiricamente (visto não se ter qualquer conhecimento ou
constatação da existência de seres de tal natureza).
Mas será que as teorias e as leis propostas pelos cientistas podem realmente ser
verificadas?
Considere-se o exemplo seguinte:
Há corvos negros.
Esta proposição é verificável: podemos verificar aquilo que ela afirma de cada vez
que se vê um corvo. Se o corvo for negro, a proposição é verdadeira.
Considere-se, agora, este outro exemplo:
Todos os corvos são negros.
Aquilo que se afirma nesta proposição não pode ser estritamente (com precisão,
com exatidão, com rigor, com absoluta certeza) verificado de forma universal, pois é
impossível saber a cor de todos os corvos que existiram (no passado), que existem (no
presente) e que existirão (no futuro).

Face a este problema – chamado problema da indução – alguns filósofos


neopositivistas (adeptos da ciência e do método científico como a única forma de
explicar objetivamente a realidade e as relações entre os fenómenos) afirmam que basta
que os enunciados (afirmações acerca da realidade) sejam empiricamente
confirmáveis para se lhes poder atribuir estatuto científico. Por outras palavras, basta
atestar que a proposição “Todos os corvos são negros” é (com forte probabilidade)
verdadeira, para que ela possa ser considerada científica. Se todos e cada um dos
corvos observados até ao momento forem negros, o enunciado “Todos os corvos são
negros” confirma-se, e isso é suficiente para que seja reconhecido como um enunciado
científico.

94
ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite, recorrendo a exemplos, o critério da verificabilidade.

CRÍTICAS AO INDUTIVISMO

O indutivismo (processo ou movimento da inteligência que procede do particular


para o geral como forma de alcançar conhecimentos de carácter universal) tem sido alvo
de inúmeras críticas. Merecem desta que duas dessas críticas. A primeira coloca-se ao
nível da importância atribuída à observação, enquanto ponto de partida para a
investigação científica. A segunda coloca-se ao nível do procedimento utilizado (o
indutivo) para a obtenção de proposições gerais (como as leis científicas) a partir de
proposições particulares (como os casos observados).

1.ª - A OBSERVAÇÃO NÃO É PONTO DE PARTIDA DO MÉTODO CIENTÍFICO


E, AINDA QUE O CIENTISTA RECORRA À OBSERVAÇÃO, ELA NÃO É
TOTALMENTE NEUTRA E ISENTA – ao contrário do que a perspectiva indutivista supõe,
a observação dos fenómenos nunca é completamente neutra e imparcial. Ela ocorre
num determinado contexto. Tal como o nosso conhecimento e as nossas expectativas

95
afetam a observação que fazemos das coisas, também a observação do cientista é
afetada pelos pressupostos teóricos, pelas teorias, pelos conceitos e pelas
expectativas que desenvolve face à investigação.

A este propósito, o filósofo e epistemólogo Nigel Warburton (1962–), filósofo


britânico, na sua obra Elementos Básicos de Filosofia (1998), diz-nos o seguinte:

O tipo de enunciado observacional efetivamente feito em ciência, como, por


exemplo, «a estrutura molecular da substância foi afetada pelo calor», pressupõe teorias
bastante elaboradas. A teoria vem sempre primeiro: a perspetiva simples do método
científico está completamente enganada ao supor que a observação imparcial precede
sempre a teoria. O que vemos depende do que sabemos e as palavras que escolhemos
para descrever pressupõem sempre uma teoria sobre a natureza do que vemos. Estes
são dois factos incontornáveis acerca da natureza da observação que enfraquecem a
noção de uma observação objetiva, sem preconceitos, neutra.

2.ª - O RACIOCÍNIO INDUTIVO NÃO CONFERE O RIGOR LÓGICO


NECESSÁRIO ÀS TEORIAS CIENTÍFICAS – a indução constitui, em termos lógicos,
uma operação que obriga a um salto do conhecido (de proposições particulares) para o
desconhecido (para proposições gerais). Relembremos que não é possível, em termos
lógicos, garantir a validade dos argumentos indutivos unicamente pela forma que
apresentam. Como podemos, então, justificar a indução?
Como já foi referido, este problema foi levantado por David Hume, tendo ficado
conhecido como o problema da indução.
Para David Hume, todo o conhecimento tem origem na experiência e para
conhecermos os fenómenos que encontramos na natureza recorremos à indução.
Apercebemo-nos de que existe uma regularidade no modo como os fenómenos
ocorrem, como se obedecessem a um princípio de uniformidade.
Este princípio não constitui uma verdade necessária (a priori), pois não pode
ser justificado pelo pensamento (não há nada que nos impeça de racionalmente o
negarmos), e também não pode ser provado empiricamente (decorre do hábito):
depois da repetição de casos semelhantes, o espírito é levado, por hábito, a associar ao
aparecimento de um determinado acontecimento outro acontecimento que habitualmente
o acompanha e a acreditar na sua existência (David Hume).
Não é, pois, segundo Hume, possível provar empiricamente a existência de
uma relação necessária de causa e efeito entre os fenómenos (segundo este filósofo,

96
nós apenas vemos conjunções constantes e não conexões necessárias entre os
fenómenos). Neste sentido, a generalização indutiva nada mais será que uma mera
crença ou expectativa de que os factos se repitam daquele modo.
Se o princípio da uniformidade da natureza decorre do hábito, nenhum raciocínio
que nele se baseie pode garantir rigorosamente a verdade da sua conclusão.
Exemplo:
A couve portuguesa é rica em cálcio.
Os brócolos são ricos em cálcio.
A couve lombarda é rica em cálcio.
Logo, todos os legumes são ricos em cálcio.

Esta generalização indutiva, parecendo estar correta, não invalida a hipótese de


alguns legumes não serem ricos em cálcio. Isto porque, embora repetidamente se
verifique que a maioria dos legumes é rica em cálcio, tal não significa que todos os
legumes existentes contenham cálcio, pelo menos em quantidades significativas. Mesmo
que todos os legumes contenham cálcio, em rigor, isso não seria suficiente para
garantir a legitimidade do argumento.

Se aceitarmos os argumentos de David Hume, isto é, se aquilo que as inferências


(conclusões) indutivas propõem não é empiricamente verificável, então também não será
possível justificar, com rigor, aquilo que é proposto numa teoria ou lei científica que
decorra da generalização indutiva – o rigor e a verdade do conhecimento científico
ficam, deste modo, comprometidos.
David Hume ficou perturbado por não poder encontrar na regularidade com que
os fenómenos naturais se manifestavam a base segura que poderia justificar os
enunciados universais da ciência, como as leis e as teorias. O princípio supremo do
empirismo (todo o conhecimento deriva da experiência), não dava cobertura aos
enunciados gerais que constituem as leis, as hipóteses e as teorias das ciências, pois
a experiência apenas nos dá conta de uma sucessão de singularidades (ou de casos
particulares) que, por estarmos habituados a vê-las associadas, formam em nós a
convicção (“crença”) de estarmos perante o correspondente de uma lei geral que
exprime uma conexão (relação) necessária de fenómenos.
Apesar de Hume manter as bases empíricas da teoria do conhecimento, não
iludiu o problema da impossibilidade de justificar empiricamente um enunciado que
pretende exprimir uma conexão necessária entre fenómenos. Trata-se de um
raciocínio falacioso que, como Karl Popper observou, não possui qualquer “razão
positiva” que lhe confira legitimidade, pois parte “do conhecido para o
97
desconhecido, ou daquilo de que se teve experiência para aquilo de que não se tem
experiência”, ou seja, não podemos a partir de proposições sobre fenómenos
particulares que observamos produzir enunciados universais que exprimem leis ou
teorias científicas da natureza.
David Hume acaba por, desta forma, apontar para o carácter ilusório do
indutivismo. E, apesar de admitir que o conhecimento científico se constrói por
indução, reconhece que esta não serve para justificar esse conhecimento.
Como podemos, então, garantir a cientificidade do conhecimento?
O filósofo da ciência Karl Popper, crítico da visão indutivista do método
científico, procurou ultrapassar o problema da justificação da indução, propondo
outro método – o MÉTODO DAS CONJETURAS E REFUTAÇÕES – e outro critério de
cientificidade – o CRITÉRIO DA FALSIFICABILIDADE.
Na verdade, Popper não resolve o problema da indução, apenas o afasta para
segundo plano, uma vez que nos mostra que ele não tem o peso que Hume lhe atribuiu
no que toca à questão da legitimidade do conhecimento científico. Contudo, as questões
de fundo levantadas por Hume continuam a ser uma referência no seio dos debates
filosóficos e científicos da atualidade e, talvez por isso, o problema da indução seja
muitas vezes designado por problema de Hume.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Refira, de forma breve e sucinta, em que consiste o problema da indução.

“Segundo uma conceção amplamente aceite – a ser contestada aqui – as ciências


empíricas caracterizam-se pelo facto de empregarem os chamados «métodos indutivos».
De acordo com essa conceção, a lógica da investigação científica identifica-se com a
lógica indutiva, isto é, com a análise lógica dos métodos indutivos.
É comum chamar-se «indutiva» a uma inferência que deriva de enunciados
singulares ou particulares, tais como descrições dos resultados de observações ou
experiências concretas, para enunciados universais, tais como hipóteses e teorias. Ora,
está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, que a inferência de enunciados
universais a partir de enunciados singulares, independentemente do quão numerosos
sejam estes, esteja por si mesma justificada; com efeito, qualquer conclusão colhida
desse modo sempre pode revelar-se falsa: independentemente de quantos casos de
cisnes brancos possamos observar isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes
são brancos.”
98
Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica, São Paulo, Cultrix, pp. 27-28 (adaptado)

2. A partir do texto, clarifique a crítica de Popper ao indutivismo.

A CONCEÇÃO DE CIÊNCIA DE POPPER – O MÉTODO CONJETURAL

Karl Popper considera que a especificidade metodológica da ciência não pode


assentar na indução. O filósofo demarca (distingue/separa) a ciência de outras formas
de conhecimento, propondo uma alternativa à visão indutivista do método científico
e rejeitando o critério da verificabilidade e da confirmação das hipóteses e teorias
científicas tal como é proposto pelo positivismo lógico (perspetiva que apenas
considerava científico o conhecimento que se baseasse na experiência).

A CONCEÇÃO EPISTEMOLÓGICA de Karl Popper (duas teses principais):

- A construção do conhecimento científico faz-se através de CONJETURAS


(formulação de hipóteses, de suposições teóricas, de sugestões explicativas) e
REFUTAÇÕES (contestações, rejeições, objeções).

99
- O critério que garante a cientificidade das teorias é o da sua
FALSIFICABILIDADE.
Segundo Popper, a ciência obedece a um processo de construção criativa de
hipóteses – CONJETURAS – para responder a PROBLEMAS. Ao contrário do que é
proposto na conceção indutivista do método científico, a observação não é o ponto de
partida para o cientista, nem as teorias resultam de inferências indutivas. A ciência
parte de problemas (ou de factos-problemas) e as teorias começam por ser hipóteses
explicativas e criativas – CONJETURAS – que terão de ser submetidas a testes
rigorosos, tendo em vista a sua refutação ou rejeição
(PROBLEMA→HIPÓTESE/CONJETURA →TESTES/REFUTAÇÃO).
Popper explica-nos como, no seu entender, se desenvolve a atividade científica:

Afirmo que não partimos de observações, mas sempre de problemas – seja de problemas
práticos ou de uma teoria que se encontra em dificuldades. Ao abordarmos um problema,
podemos começar a trabalhar nele de duas maneiras: podemos prosseguir tentando, em primeiro
lugar, supor ou conjeturar uma solução para o problema e, depois, podemos tentar criticar a nossa
suposição, que, normalmente, é bem mais fraca. Às vezes, a nossa suposição ou conjetura pode
suportar por certo tempo a nossa crítica e os nossos testes experimentais, mas, regra geral, logo
descobriremos que as nossas conjeturas podem ser refutadas (rejeitadas), que não resolvem o
nosso problema ou que só o resolvem em parte. Para além disso, verificamos que mesmo as
melhores soluções – aquelas que são capazes de resistir às críticas mais rigorosas das mentes
mais brilhantes e engenhosas – logo dão origem a novas dificuldades e problemas. Portanto,
podemos dizer que o crescimento do conhecimento (científico) avança de velhos para novos
problemas mediante conjeturas e refutações.

Karl Popper (1974), Conocimiento Objetivo, Madrid, Editorial TECNOS, p. 238 (adaptado).

Popper lançou as bases daquele que hoje é designado por método hipotético-
dedutivo ou método conjetural. Vejamos, através do quadro seguinte, as três etapas
(fundamentais) deste método:

ETAPAS DO MÉTODO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO (CONJETURAL)

“FACTO-PROBLEMA” FORMULAÇÃO DA HIPÓTESE OU CONJETURA


A PARTIR DE UM “FACTO PROBLEMA”
Exemplo: constata-se que algumas crianças,
mesmo quando bem alimentadas e sem problemas O ponto de partida da investigação científica são os

do foro genético diagnosticado, revelam um problemas ou factos-problemas. Um facto-problema

crescimento abaixo da média. é um problema que surge, em geral, de conflitos


decorrentes das nossas expectativas ou teorias já

100
Procura-se explicar a razão pela qual estas existentes.
crianças revelam um baixo crescimento.

↓ 1 – A formulação da hipótese – corresponde a um


1 – Formulação da hipótese ou conjetura momento criativo da atividade científica associado
Exemplo: à intuição e à imaginação que não surge
Hipótese 1 – A presença em excesso da hormona indutivamente da observação mas sim de um
X no organismo impede o crescimento. raciocínio abdutivo (criativo).Uma hipótese é uma
explicação provisória de um dado fenómeno que
exige comprovação, correspondendo, assim, a uma
↓ antecipação dos factos comprováveis a posteriori e
que se expressa num enunciado antecipado sobre
as relações existentes entre dois ou mais
fenómenos.

2 – Dedução das Consequências 2 – Dedução das Consequências – depois de a


Exemplo: hipótese ter sido formulada, são deduzidas as suas
Dedução das consequências da hipótese 1 – Se principais consequências. Ou seja, na prática, o
a hipótese 1 for verdadeira, a redução ou inibição da cientista procura prever o que pode acontecer se a
produção da hormona X promoverá o crescimento. sua hipótese ou conjetura for verdadeira.

3 – Experimentação 3 – Experimentação – agora será necessário
Exemplo: descobrir se as previsões estão ou não corretas, ou
Experiências realizadas com ratinhos revelam que, seja, a hipótese será testada, confrontada com a
nos grupos em que a hormona X foi administrada experiência e os resultados poderão ou não mostrar
em doses sucessivamente superiores, os ratinhos o “sucesso” da conjetura proposta.
apresentaram um crescimento algo lento e pouco Se for validada pela experiência, a hipótese será
significativo, mesmo quando bem alimentados; já considerada como credível e passará a ser
nos grupos que não sofreram essa administração, o reconhecida na comunidade científica – teoria
seu crescimento foi normal. Este resultado validou a corroborada (confirmada).
hipótese. Caso contrário, teríamos de a reformular Se não for validada, terá que ser abandonada ou
ou apresentar uma nova hipótese. reformulada – teoria refutada.

Um dos pontos da conceção popperiana (de Popper) do método científico reside


nas condições exigidas para garantir a validade das hipóteses ou conjeturas: é preciso
criticá-las, tentar refutá-las, isto é, procurar os seus pontos fracos, submetê-las a
testes rigorosos, proceder a várias tentativas de falsificabilização (e não de
falsificação, como aparece erradamente escrito em muitas produções literárias ditas de
“carácter filosófico” – ensaios, artigos e apontamentos filosóficos, manuais escolares,
etc.). Só assim é possível o desenvolvimento do conhecimento científico: avançar de
velhos problemas para novos problemas, por meio de conjeturas e refutações.

101
Veremos, de seguida, a importância que o critério de falsificabilidade assume na
filosofia da ciência desenvolvida por este epistemólogo (filósofo da ciência).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Acredito que a teoria sempre vem primeiro, pelo menos alguma teoria ou
expectativa rudimentar; que ela sempre precede as observações, cujo papel fundamental,
assim como o dos testes experimentais, é mostrar que algumas das nossas teorias são
falsificabilizáveis (refutáveis) e estimular-nos a produzir outras melhores.”

Karl Popper (1974), Conocimiento Objetivo, Madrid, Editorial TECNOS, pp. 237-238.

1. Caracterize o método hipotético-dedutivo ou método conjetural.

2. Imagine que quer investigar as causas do insucesso escolar dos alunos.


Exponha o seu plano experimental.

O CRITÉRIO DA FALSIFICABILIDADE (OU TESTE DE “RESISTÊNCIA”)

Popper rejeita o critério da verificabilidade, associado à confirmação das teorias


científicas, tal como este havia sido definido pelas correntes positivista e neopositivista
(que derivaram do positivismo lógico, mais tarde chamado de empirismo lógico e também
conhecido como neopositivismo, foi um movimento da filosofia ocidental cuja tese central
foi o princípio da verificação no contexto da ciência) e argumenta que as teorias
científicas não são empiricamente verificáveis.
102
Não é a verificação empírica de uma dada hipótese que permitirá garantir a sua
validade, uma vez que para que ela venha a ser considerada credível é preciso
procurar refutá-la, isto é, falsificabilizá-la. Por isso Popper propõe o critério da
falsificabilidade, que se traduz no seguinte enunciado: uma hipótese será científica se,
e só se, for falsificabilizável.
A confrontação da hipótese com a experiência é importante, não para
confirmá-la, mas para permitir testar a RESISTÊNCIA que esta tem face às
tentativas empreendidas para a enfraquecer, refutar, negar, numa palavra,
falsificabilizar (contrariar). Nesta medida, Popper entende o teste experimental como a
procura de fenómenos que possam infirmar, ou seja, refutar a hipótese. Uma teoria
científica é válida enquanto for resistindo à tentativa de a falsificabilizar
empiricamente e é tanto mais forte quanto mais resistir.
O enunciado “Todos os cisnes são brancos” é um enunciado científico porque
é empiricamente falsificabilizável – para o falsificabilizar bastaria encontrar um cisne
de outra cor. A atitude do cientista deve ser a de procurar cisnes de outra cor (para o
falsificabilizar, contrariar) e não a de procurar mais cisnes brancos (para o confirmar).
Claro está que seo cientista encontrar algum cisne de outra cor que não a branca terá que
abandonar e/ou reformular o enunciado – tal significa que o enunciado não resistiu à
falsificabilização e foi, efetivamente, falsificabilizado (refutado).
Javier Echeverría (1948–), conceituado epistemólogo (filósofo da ciência) espanhol,
a este propósito, diz-nos o seguinte:
“Uma teoria só será científica se puder ser falsificabilizada (contrariada) por meio
da experiência (no caso das teorias empíricas) ou por meio do seu carácter internamente
contraditório (no caso das teorias lógicas e matemáticas).
Aquilo que não versa sobre a experiência e que não é falsificabilizável por ela pode
perfeitamente ter sentido, mas não é científico. Popper não acusou a religião, a poesia
ou a arte de ausência de sentido, como fizeram os filósofos positivistas lógicos. O que
acontece é que, entre os enunciados, por exemplo, “no dia 13 de maio, surgirá no Céu,
bailando, uma bola de fogo” e “o cometa Halley aparecerá no ano de 2026”, o primeiro
não é falsificabilizável e o segundo sim, porque só o segundo é um enunciado científico.
Se é verdade que um enunciado universal do tipo “todos os homens são mortais”
nunca poderá ser comprovado experimentalmente, por muito que sejam os casos
singulares em que, com efeito, se certifique que morreu um certo indivíduo singular
também é, ao mesmo tempo, verdade que para refutar esse mesmo enunciado através da
experiência, seria necessário mostrar que determinado homem não morreu, o que faz

103
com que o enunciado universal em causa seja plenamente aceitável em termos
científicos, mais concretamente no contexto de uma disciplina científica como a Biologia.”

Javier Echeverría (2003), Introdução à Metodologia da Ciência, Coimbra, Almedina, p. 97 (adaptado)

Uma teoria que não é falsificabilizável nada diz de significativo sobre os


factos. Quanto mais uma teoria é falsificabilizável, mais possibilidades o cientista
tem de descobrir falhas na sua investigação e de propor uma melhor explicação
para um dado facto ou problema – isto significa, na prática, mais possibilidades de a
ciência progredir.
O critério da falsificabilidade permite a Popper responder ao problema da
demarcação (distinção) da ciência: as teorias científicas são diferentes das não-
científicas ou das pseudociências (falsas ciências ou não-ciências), na medida em que
são falsificabilizáveis – um enunciado como “Deus existe” não pode ser
falsificabilizado, pois não podemos apresentar provas de que Deus não existe, mas,
por outro lado, ao não termos a evidência pela experiência de que Deus existe, não
podemos considerar um enunciado desta natureza científico (a questão da existência
ou não existência de Deus não é objeto de estudo científico).
Ao contrário, é possível falsificabilizar o enunciado “Todos os cisnes são
brancos” ou “Todos os mamíferos têm o corpo coberto de pelos”, pois, basta apenas
a existência de um caso, de um cisne de outra cor ou de um mamífero sem pelos, para
invalidar os enunciados.
Popper alerta-nos para o facto de haver casos de teorias que se propuseram
como científicas, mas que na realidade, na sua perspetiva de epistemólogo (filósofo da
ciência), não são verdadeiramente científicas, fazendo, assim, parte daquilo a que
podemos chamar “pseudociência” (falsa ciência ou não-ciência).
Popper expõe ainda a sua perspetiva acerca daquilo que distingue a atitude
verificacionista da atitude falsificacionista, ou seja, a diferença que existe entre
verificação e falsificabilização e, para que consigamos perceber melhor esta distinção,
vamos debruçar-nos sobre mais um texto da sua autoria:
“Um homem empurra uma criança para a água, com a intenção de a afogar, e outro
homem sacrifica a vida numa tentativa de salvar a criança. Cada um destes casos, de
comportamentos radicalmente diferentes, pode ser facilmente explicado à luz da
psicanálise. Segundo Freud (1856-1959), médico neurologista e psiquiatra criador da
psicanálise, tanto um homem como outro, adotaram comportamentos que se traduzem na
seguinte explicação: ambos os homens sofriam de sentimentos de inferioridade,

104
apenas diferindo neles a forma como cada um lidou com o problema – enquanto no
primeiro esses sentimentos produziram a necessidade de provar a si mesmo que era
capaz de ter a coragem de cometer um crime, no segundo produziram a
necessidade de provar a si mesmo que era capaz de ter a audácia de arriscar a sua
própria vida.
Não consigo pensar em nenhum caso concebível de comportamento humano que
não pudesse ser interpretado em termos quer de uma quer de outra maneira e que não
pudesse ser exigido ou requerido por cada uma delas, como “verificação”.
Ora, a atitude verificacionista da ciência é, de certo modo, algo como isto: de um
modo ideal, a ciência tem que considerar todos os enunciados como verdadeiros,
pelo menos aqueles que nós já tenhamos verificado, uma vez que não os
conhecemos todos.
Já a atitude falsificacionista é diferente: consiste em arriscarem-se hipóteses
explicativas (“arriscar” no sentido em que essas hipóteses afirmam tanto que
facilmente se podem revelar como falsas) e em dar o seu melhor para as criticar,
esperando detetar e eliminar candidatos defeituosos ao estatutode teoria
explicativa de carácter científico.”
Karl Popper (1991), A Demarcação entre Ciência e Metafísica, in M. M. Carrilho (org.),
Epistemologia: Posições e Críticas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 221, 249 e 250 (adaptado).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite a resposta de Popper face ao problema da demarcação.


2. Tendo em conta o critério da falsificabilidade, explique, segundo Popper, se
algum dos seguintes enunciados poderá ser científico:

a) Todas as panteras são negras.


b) Os anjos são imortais.
c) As sereias existem.
3. Distinga os critérios da verificabilidade e da falsificabilidade, apresentando
exemplos de enunciados para ilustrar a sua resposta.

105
CRÍTICAS A POPPER – CRÍTICAS AO FALSIFICACIONISMO

Karl Popper, considerado um dos filósofos da ciência mais importantes do último


século, apresenta uma conceção inovadora no que diz respeito ao método científico e à
justificação das teorias científicas, isto é, ao modo como elas devem ser validadas. No
entanto, a sua filosofia não está isenta de críticas.
Vejamos, resumidamente, duas críticas movidas a Popper:

106
1.ª CRÍTICA - O processo de refutação ou falsificabilização não é o
procedimento mais comum entre os cientistas – alguns autores defendem que a
atitude falsificacionista não corresponde exatamente àquela que os cientistas
demonstram na atividade científica. Geralmente, os cientistas procuram confirmar,
em vez de infirmar (negar, contrariar, falsificabilizar), aquilo que as teorias científicas
propõem e, mesmo que dada observação implique a rejeição de uma previsão, isso
não os demove (não os desmotiva) de investigar no mesmo sentido, em vez de a
abandonarem por completo.
Não bastará, portanto, uma observação falsificacionista para que a investigação
termine e se abandone uma teoria. Por outro lado, é expectável que o cientista se
concentre mais nas previsões bem-sucedidas do que naquelas que são um
fracasso. Estas previsões são fundamentais para o progresso da ciência.
A este propósito, atentemos no conteúdo do texto seguinte:

“Os cientistas não são muito influenciáveis. Não abandonam uma teoria apenas
porque os factos a contradizem. Normalmente «inventam» qualquer hipótese auxiliar para
explicar o que chamam de mera anomalia ou, se não conseguem explicar a anomalia,
ignoram-na e dirigem a sua atenção para outros problemas. É de notar que os cientistas
falam de anomalias como de casos rebeldes e não de refutações. É claro que a história
da ciência apresenta-nos múltiplos relatos de teorias alegadamente destruídas por
experiências cruciais (decisivas, importantes). Mas, esses relatos são forjados
(“inventados”, “construídos artificialmente”) muito depois de as teorias terem sido
abandonadas. Se Popper tivesse alguma vez perguntado a uma série de cientistas
newotinianos em que condições experimentais eles abandonariam a teoria de Newton,
pelo menos alguns deles teriam ficado desorientados.”

Lakatos (1998), História da Ciência e Suas Reconstruções Racionais, Lisboa, Edições 70, pp. 15-18
(adaptado)

2.ª CRÍTICA - Considerando a história da ciência, não parece que ela possa
evoluir por um processo assente nas refutações (rejeições) – também ao nível da
história da ciência encontramos episódios que parecem pôr em causa a perspetiva
falsificacionista e a ideia de que a ciência progride por meio de conjeturas
(suposições) e refutações (rejeições). Copérnico, Galileu ou Newton, por exemplo, não
abandonaram as suas teorias na presença de factos que aparentemente as poderiam
falsificabilizar.

107
Nigel Warburton, no âmbito desta crítica, diz-nos o seguinte:

“O falsificacionismo, com as suas pretensas refutações, não dá adequadamente


conta de muitos dos desenvolvimentos mais significativos da história da ciência. A
revolução copernicana, traduzida na ideia de que o Sol estava no centro do Universo e
de que a Terra e os outros planetas o orbitavam, ilustra o facto de a presença de
casos aparentemente falsificacionistas não ter conduzido as grandes figuras da ciência à
rejeição das suas hipóteses, as quais se agarraram ainda mais às suas teorias perante os
dados apresentados em contrário. A alteração do modelo científico da natureza do
Universo não ocorreu, pois, segundo um processo de conjeturas seguido de refutações,
mas somente após vários séculos de desenvolvimento da Física, até ao dia em que a
teoria pôde ser adequadamente testada em função da observação.
Da mesma forma, a teoria da gravitação de Isaac Newton (1642-1727) foi
aparentemente falsificabilizada (contrariada e rejeitada) por observações da órbita lunar,
realizadas pouco depois da apresentação pública da sua teoria, levando a que só muito
mais tarde se mostrasse que estas observações tinham sido enganadoras. No entanto,
apesar desta refutação aparente, Newton e outros cientistas mantiveram-se fiéis à teoria
da gravitação, o que teve, como se constata, efeitos benéficos para o desenvolvimento da
ciência.”

Nigel Warburton (1998), Elementos Básicos de Filosofia, Lisboa, Gradiva, pp. 184-185 (adaptado).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Exponha, resumidamente, as duas principais críticas movidas a Popper.

2. Tendo em conta o texto de Lakatos, explique por que razão o autor refere que
alguns cientistas newtonianos teriam ficado desorientados com a pergunta de
Popper.

3. A partir dos exemplos apresentados no texto de Warburton, esclareça a crítica


que, nesse contexto, é dirigida ao falsificacionismo de Popper.

A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A QUESTÃO DA OBJETIVIDADE


A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA

108
A história da ciência mostra-nos um conjunto de leis, teorias e modelos
científicos sucessivamente revistos ou rejeitados e substituídos por outros mais
eficazes, mais aptos a explicar os fenómenos (a realidade).

Alguns dos exemplos mais marcantes da história da ciência podem ser dados a
partir das diferentes conceções desenvolvidas sobre o Universo. Iniciado por Aristóteles
(384-322 a. C.), filósofo grego, durante o período clássico na Grécia antiga, discípulo de
Platão e professor de Alexandre, o Grande, fundador da do Liceu (Academia de
estudos/”Universidade”), foi um dos pensadores com maior influência na cultura ocidental,
elaborando um sistema filosófico que abordou praticamente todos os assuntos existentes,
como a geometria, física, metafísica, botânica, zoologia, astronomia, medicina, psicologia,
ética, drama, poesia, retórica, matemática e principalmente lógica, e mais tarde
desenvolvido por Ptolomeu (séc. I, 100), cientista grego reconhecido pelos seus
trabalhos em matemática, astronomia, geografia, cartografia e filosofia, o denominado
modelo geocêntrico (a Terra no centro do universo e imóvel) prevaleceu durante
séculos, tendo sido substituído em 1514 pelo modelo heliocêntrico (o Sol no centro do
sistema e imóvel) de Copérnico (1473-1543), astrónomo e matemático polaco que
desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar. Também este modelo veio mais
tarde a ser aperfeiçoado por Kepler (1571-1630), importante astrónomo, astrólogo e
matemático alemão, e Galileu (1564-1642), astrónomo, físico e engenheiro italiano,
sendo, com frequência, referenciado como "pai da astronomia observacional", "pai da
física moderna", "pai do método científico" e "pai da ciência moderna", e depois ainda por
Newton (1643-1727), matemático, físico, astrónomo, teólogo e pensador inglês,
amplamente reconhecido como um dos cientistas mais influentes de todos os tempos e
figura-chave na Revolução Científica, formulou as três leis do movimento que levaram à
descoberta da lei da gravitação universal.
No século XX, a teoria da relatividade, de Einstein (1879-1955), físico teórico
alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física
moderna ao lado da mecânica quântica, introduziu novas perspetivas do espaço, do
tempo e da gravidade que não tinham sido ainda exploradas e que obrigam a uma
revisão dos princípios da física newtoniana. Com efeito, das conceções antigas até às
modernas, encontramos a Terra sob condições muito diferentes daquela que hoje
conhecemos, graças a Hubble (1889-1953), importante astrofísico norte-americano,
tendo sido o responsável pela descoberta dos corpos celestes e pela determinação das
distâncias entre várias galáxias, e que a apresenta (a Terra) como um simples planeta de
uma galáxia entre muitas galáxias.

109
- O facto de quase todas as teorias da história da ciência terem sido
substituídas constituirá um indício de que as que atualmente vigoram serão
também um dia dadas como falsas e inadequadas?
- Como poderemos estar certos de que a ciência nos oferece um conjunto de
conhecimentos verdadeiros?
- Para onde nos leva o conhecimento científico?
- Como poderemos ter a certeza de que a ciência evolui no sentido da
verdade?

Para responder a estas questões teremos em conta duas conceções diferentes


do processo de construção e evolução da ciência e da racionalidade científica:
- A primeira, do filósofo Karl Popper, autor que acabámos de abordar a propósito
do método e dos critérios de validação das teorias científicas, que defende o valor
da ciência enquanto conhecimento que resulta de um processo progressivo de
construção de conjeturas e refutações.
- A segunda, de Thomas Kuhn, que destaca o papel que a história, a sociedade
e o modo de ver e de fazer ciência num determinado contexto têm sobre a própria
atividade científica.

O PROGRESSO DA CIÊNCIA, SEGUNDO KARL POPPER

Para Popper, a verdade – entendida como correspondência das proposições


científicas à realidade dos factos – é a meta para a qual a ciência avança. O
progresso científico deve, por isso, ser entendido como o desenvolvimento da ciência
em direção a um fim que, podendo não ser alcançável, não deixa de ser pressuposto.
Como vimos, Popper propõe como critério de cientificidade a falsificabilidade
das teorias. Este critério pressupõe que a todo o momento as teorias possam ser
refutadas (contestadas, rejeitadas). Neste sentido, nenhuma teoria, é completamente
definitiva e verdadeira, mesmo aquela que é corroborada (validada/aceite pela
comunidade científica).

A ciência avança por meio de tentativas e erros, isto é:

1. Parte de problemas (P1);

2. Propõe hipóteses e conjeturas ou novas teorias-tentativas (TT) de


explicações do mundo que são provisórias;

3. Vai eliminando erros (EE), submetendo as teorias à refutação;


110
4. Conduz, neste processo, à descoberta de novos problemas (P2), e assim
por diante.

Podemos sintetizar assim: P1 →TT→EE→P2,…

A evolução da ciência é comparável à evolução das espécies. À luz da


conceção da evolução das espécies de Charles Darwin, assim como as espécies que
melhor respondem aos desafios que o ambiente e a natureza propõem são as que
mais probabilidades têm de sobreviver, também no processo de construção da
ciência as hipóteses sofrem uma espécie de processo de “seleção natural”: as
teorias mais fortes (as que resistem às várias tentativas de refutação) são as melhores,
isto é, as que oferecem uma (boa) explicação dos factos. As teorias menos aptas (as
que não resistem aos testes experimentais) são eliminadas e dadas como erros. Estes
erros obrigam o cientista a procurar novas explicações dos factos ou problemas.
Segundo, Popper, será a CRÍTICA, como critério racional de progresso
científico, que permitirá a eliminação dos erros e, consequentemente, o avanço da
ciência em direção à “verdade”.
Diz-nos Popper:
“Não existe nenhum critério de verdade, nem mesmo quando tivermos alcançado a
verdade podemos estar seguros disso.
Existe um critério racional de progresso científico na busca da verdade e, por
conseguinte, um critério do progresso científico.
Mas, o que se entende, então, por critério racional de progresso científico na
busca da verdade, do progresso nas nossas hipóteses, nas nossas conjeturas?
Quando é que uma hipótese científica é preferível a uma outra hipótese?
A resposta é: A CIÊNCIA É UMA ATIVIDADE CRÍTICA. Nós testamos criticamente
as nossas hipóteses. Criticamo-las com o propósito de detetar erros e na esperança de,
ao eliminarmos os erros, nos aproximarmos da verdade.
Consideramos que uma dada hipótese (por exemplo, uma hipótese nova) é
preferível a uma outra quando satisfaz os três requisitos seguintes:
1.º A nova hipótese deve explicar todos aqueles aspetos que a hipótese
anterior havia conseguido explicar com êxito – este constitui o primeiro ponto e o
mais importante.
2.º A nova hipótese deve evitar, ao menos, alguma das falhas da hipótese
anterior, ou seja, deve, se possível, resistir a alguns dos exames críticos a que a
outra hipótese não resistiu.

111
3.º Deve explicar, se possível, os aspetos que a antiga hipótese não pôde
esclarecer ou prever.
É este, pois, o CRITÉRIO DO PROGRESSO CIENTÍFICO.
Este critério evolutivo pode ser considerado simultaneamente um CRITÉRIO DE
APROXIMAÇÃO DA VERDADE. Isto porque se uma hipótese satisfaz o critério do
progresso e, consequentemente, suporta as verificações críticas pelo menos tão
eficazmente quanto a hipótese que a precedeu (anterior), não consideraremos tal facto
como mera casualidade; e se resistir ao exame crítico de forma ainda mais eficaz,
admitimos então que se aproxima mais da verdade do que a sua antecessora.
O objetivo da ciência é, por conseguinte, a verdade: a ciência é a busca da
verdade. E muito embora nunca possamos saber se alcançámos esse objetivo, podemos,
mesmo assim, dispor de razões válidas que nos permitam supor estarmos mais próximo
do nosso objetivo, isto é, da verdade ou, pelo menos, como diz Einstein, que nos
encontramos no bom caminho.”

Karl Popper (1992), Em Busca de Um Mundo Melhor, Lisboa, Editorial Fragmentos, pp. 48-49.

Tendo por base a crítica, o cientista encontra falhas ou erros nas teorias já
existentes e empenha-se na procura de novas respostas. Esta procura de novas
tentativas de solução para os problemas, decorrente da ELIMINAÇÃO DOS ERROS,
impede que a ciência paralise ou se fixe a qualquer tipo de dogma (“verdade
absoluta” que se aceita como tal e não se põe em causa).
Só com uma ATITUDE CRÍTICA (contrária à atitude dogmática) será possível ao
cientista avançar. O seu objetivo é encontrar a verdade, ainda que essa tarefa
corresponda apenas a uma APROXIMAÇÃO DA VERDADE por intermédio de teorias
cada vez melhores.
Segundo Popper, a ciência nunca poderá afirmar-se como detentora
(possuidora) da verdade, porque AS TEORIAS SÃO SEMPRE FALSIFICABILIZÁVEIS,
mesmo no caso das teorias corroboradas (confirmadas e aceites pela comunidade
científica), há sempre a hipótese de virem a ser refutadas (infirmadas, negadas,
rejeitadas). Por isso, podemos mostrar apenas que dada teoria é verosímil (provável,
admissível, possível). Popper identifica esta verosimilhança (probabilidade) com o grau
com que uma teoria capta a verdade: uma teoria T é mais verosímil do que uma teoria
rival T´ apenas no caso de T implicar mais verdades e menos falsidades do que T´
(Simon Blackburn).

112
Uma vez que a CIÊNCIA É CONJETURAL, visto que se baseia na formulação de
suposições, ou melhor, de hipóteses, e progride, avança em termos de conhecimento,
precisamente, graças à superação destas, numa lógica de substituição de umas
hipóteses por outras, mais fortes, mais resistentes, mais consistentes (mais próximas
da verdade), ela (ciência) não atinge a verdade, apenas se aproxima dela.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. A partir da análise do texto de Popper (na página anterior), explicite o papel


que a crítica assume na conceção deste epistemólogo acerca da evolução do
conhecimento científico.

2. Esclareça a razão pela qual, segundo Popper, deveremos escolher o


conceito de verosimilhança em vez do de verdade.

A CONCEÇÃO DE CIÊNCIA DE THOMAS KUHN

113
Thomas Kuhn (1922-1996), físico, historiador e filósofo da ciência norte-
americano, tendo o seu trabalho incidido sobre história da ciência e filosofia da ciência,
tornando-se um marco no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico,
publicou uma obra essencial para a filosofia das ciências – A Estrutura das Revoluções
Científicas – na qual destaca a importância do papel da história da ciência na
construção da própria ciência. Para o filósofo, a evolução da ciência depende
essencialmente do trabalho dos cientistas e, portanto, o processo de produção da
ciência torna-se o ponto central da sua reflexão epistemológica.
Ao contrário da tradição positivista, Kuhn não vê o cientista como um
investigador neutro, nem as teorias como construções resultantes da análise de
factos em bruto depois de submetidos à experimentação e à matematização.
Segundo Kuhn, o cientista não é um sujeito neutro nem isolado, mas condicionado
e contextualizado. A construção de teorias científicas está sempre dependente de
um conjunto de factos, de crenças e conhecimentos, regras, técnicas e valores
compartilhados e aceites pela maioria dos cientistas, isto é, A PRODUÇÃO
CIENTÍFICA DEPENDE DE UM PARADIGMA (modelo explicativo) na descoberta de
resolução de problemas, no interior da comunidade científica.
Para compreender a evolução da ciência, Kuhn estuda as ETAPAS DO SEU
DESENVOLVIMENTO E INTERROGA-SE SOBRE O MODO COMO OCORREM AS
MUDANÇAS DE PARADIGMAS (modelos explicativos).
É no interior da própria comunidade científica e analisando o modo de operar
dos cientistas que Kuhn encontra resposta para esta questão: como ocorrem as
mudanças de paradigmas (modelos/referências)?
Em traços gerais, Kuhn reivindica (exige), antes do mais, que se considere a
ciência uma atividade institucionalmente integrada, dado que é nas COMUNIDADES
CIENTÍFICAS, e só nelas, que se faz ciência. O que ele procura mostrar é como a
ciência trabalha, como o seu trabalho se traduz sobretudo numa atividade de solução
de puzzles. E isto consiste em, com base num paradigma (modelo, referência) que toda
a comunidade aceita, proceder a aplicações e à resolução de problemas previstos ou
previsíveis no âmbito desse mesmo paradigma – é a isto que Kuhn chama CIÊNCIA
NORMAL, regime que os cientistas fazem todo o possível por manter. SÓ QUANDO O
PARADIGMA ADOTADO NÃO SUPORTA MAIS O CONFRONTO COM UM EXCESSO
DE ANOMALIAS É QUE ELES SE DISPÕEM A PROCURAR OU A CONSIDERAR
OUTRO PARADIGMA. É nesta situação que a ciência muda de regime tornando-se
CIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA, procurando, então sair da crise repondo o regime anterior

114
ou propor um novo quadro paradigmático ou modelo explicativo, dando, assim,
origem a uma REVOLUÇÃO CIENTÍFICA.
A teoria que o novo paradigma (modelo explicativo) fornece é não só mais ampla
do que a teoria anterior (uma vez que não só explica o que ela já explicava como
também o que ela não explicava) como introduz um abismo entre ambas dado que
recorta (define, explica) de outro modo o mundo dos fenómenos, impõe novos
métodos e introduz novos problemas e soluções.
Entre este e o antigo paradigma cava-se um fosso incomensurável
(incompatível), o que significa que há conflito entre os paradigmas quanto aos
problemas que se pretende resolver.
É a ocorrência de anomalias que pode alterar as condições da atividade
científica e provocar uma CRISE e uma revolução científica, situação que culmina na
eleição de um NOVO PARADIGMA.
Vejamos detalhadamente como isto pode acontecer: as ANOMALIAS são
problemas ou enigmas que os cientistas não conseguem resolver a partir de
pressupostos teóricos fundamentais de um paradigma. Nos períodos normais de
atividade científica – designada fase da CIÊNCIA NORMAL – os enigmas resolvem-se
como puzzles. Cada peça, mais cedo ou mais tarde, encaixa no devido lugar. Acontece
que, por vezes, algumas peças parecem não encaixar – quando isto sucede, estamos
perante uma ANOMALIA. Nessa altura, ao contrário do que se poderia pensar, os
cientistas não abandonam o paradigma ou as teorias vigentes e tudo fazem para resolver
aquela anomalia. Por outras palavras, antes de se avançar para um novo paradigma,
tenta-se a assimilação do novo facto (PROBLEMA).
Diz-nos o próprio Kuhn, na sua obra intitulada A Estrutura das Revoluções
Científicas (1996):
A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o
reconhecimento de que, de algum modo, a natureza violou as “regras” que governam a
ciência normal (aquela que se encontra estabelecida). Segue-se, então, uma exploração
mais ou menos ampla da área onde ocorreu a anomalia. Este trabalho só termina quando
a teoria do paradigma for ajustada de modo a que o anómalo se tenha convertido no
esperado. A assimilação de um novo tipo de facto exige mais do que um ajustamento
aditivo da teoria, e até que se tenha completado tal ajustamento – até que o cientista
tenha aprendido a ver a natureza de um modo diferente – o novo facto não será
considerado ainda um facto científico.

115
Como vemos, Thomas Kuhn tem uma visão diferente da de Karl Popper no
que diz respeito à atitude do cientista: PERANTE NOVOS FACTOS OU
PROBLEMAS, O INVESTIGADOR NÃO TEM COMO PREOCUPAÇÃO PRIMEIRA
TENTAR FALSIFICABILIZAR AS SUAS TEORIAS, mas sim PROCURAR
ENCONTRAR UMA FORMA DE RESOLVER OS PROBLEMAS QUE SURGEM,
MANTENDO AS TEORIAS VIGENTES.
Assim, é em condições muito especiais, isto é, quando já não é possível
responder às exigências dos factos e as anomalias se vão acumulando, que a
ciência entra em período de CRISE.
A atividade científica vive um PERÍODO INSTÁVEL, de escolha e debate sobre
a manutenção do paradigma vigente (em vigor) e sobre a eventual adoção de
melhores teorias, novos conceitos e princípios, procurando-se, assim, definir os
alicerces de um NOVO PARADIGMA, que permita explicar aquilo que não é mais
explicável à luz do PARADIGMA ANTERIOR – período de CIÊNCIA
EXTRAORDINÁRIA. Findo o debate, OU SE MANTÉM O PARADIGMA VIGENTE OU
SE OPERA UMA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA, que impõe a MUDANÇA e a ADOÇÃO do
NOVO PARADIGMA.
Continuando a debruçar-nos sobre a obra A Estrutura das Revoluções Científicas
(1996), de Thomas Kuhn, podemos ler o seguinte:

A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma, do qual pode


sair uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo
obtido através da extensão do velho paradigma, mas antes uma reconstrução da área de
estudos a partir de novos fundamentos, uma reconstrução que altera algumas das
generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos dos seus
métodos e aplicações. É certo que durante o período de transição haverá uma
grande sobreposição, embora nunca completa, entre os problemas que podem ser
resolvidos pelo antigo e pelo novo paradigma. Mas haverá também uma diferença
substancial nos modos de solucionar os problemas. Uma vez completada a transição,
os cientistas terão modificado a sua conceção da área de estudos, dos seus métodos e
dos seus objetivos.

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA (Thomas Kuhn)

CIÊNCIA NORMAL – fase da atividade científica que ocorre no âmbito de um dado


paradigma aceite pela comunidade científica. Consiste essencialmente na resolução de
116
enigmas (“quebra-cabeças” ou “construção de um puzzle”) de acordo com a aplicação dos
princípios, regras e conceitos do paradigma vigente (em vigor).

ANOMALIAS – enigmas persistentes, factos-problema a que o paradigma não é


capaz de responder.

CRISE – fase de tomada de consciência da insuficiência do paradigma vigente


para explicar todos os factos ou anomalias. Vive-se um clima de insatisfação e
insegurança.

CIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA – fase de questionamento dos pressupostos e


fundamentos do paradigma vigente. Gera-se o debate sobre a manutenção do
paradigma (velho) ou a escolha de um novo paradigma.

REVOLUÇÃO CIENTÍFICA – fase de mudança e aceitação de um novo


paradigma pela comunidade científica.

NOVO PARADIGMA – conjunto de crenças, regras, técnicas e valores


compartilhados e aceites por uma comunidade científica e que orientam a sua atividade.
Corresponde a um modo de fazer ciência, de perceber, abordar e resolver problemas, que
se institui no seio dessa comunidade, tendo o estatuto de novo modelo ou referência.

Analisando a atividade científica, Kuhn destaca dois momentos fundamentais


de progresso no interior da ciência:

1. CIÊNCIA NORMAL – neste período, o cientista, sem se desviar do paradigma


de referência, faz um estudo cada vez mais específico e aprofundado dos
fenómenos. A resolução de novos enigmas significa a possibilidade de validar novos
resultados sem pôr em causa as teorias do paradigma vigente.

2. CIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA – neste período, ocorrem novas descobertas


que obrigam a mudanças revolucionárias (REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS) que

117
proporcionam as MUDANÇAS DE PARADIGMAS, porque não se ajustam ao
paradigma anterior.

Todavia, será necessário conhecer mais alguns detalhes da conceção kuhniana


de ciência para compreender a sua posição relativamente à questão do PROGRESSO
DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO.
Assim:
a) A mudança de um paradigma para outro não é cumulativa (amontoada),
antes corresponde a um modo qualitativamente diferente de olhar o real.

b) A verdade das teorias científicas está sempre dependente do paradigma


em que se inserem: AQUILO QUE É VERDADEIRO NUM PARADIGMA PODE NÃO O
SER NOUTRO.

c) Os paradigmas são incomensuráveis, isto é, são incomparáveis e


incompatíveis entre si. Não podemos comparar objetivamente aquilo que cada
paradigma defende, pois CORRESPONDEM A FORMAS TOTALMENTE DIFERENTES
DE EXPLICAR E PREVER OS FENÓMENOS.
A incomensurabilidade (“incomparabilidade”) dos paradigmas traz consigo uma
interpretação diferente daquilo que pode ser o progresso da ciência. Em Kuhn, o
progresso científico não pode ser entendido como um processo contínuo e
cumulativo de teorias ou paradigmas cada vez melhores em direção a uma meta ou
fim – se não podemos afirmar que um paradigma é melhor que o seu antecessor, então
também não podemos afirmar que, ao ocorrer uma mudança de paradigma, haverá
uma evolução da ciência para melhor.
Por outras palavras, não podemos dizer que o novo paradigma descreve
melhor a realidade do que o seu antecessor; portanto, também não podemos dizer
que a ciência progride de forma cumulativa e contínua ao substituir um paradigma
pelo outro. AS MUDANÇAS DE PARADIGMAS NÃO IMPLICAM A APROXIMAÇÃO À
VERDADE.
O progresso da ciência terá, então, que ser compreendido de uma forma
completamente diferente a partir da conceção de Kuhn.
A ideia de que a ciência é o único meio para alcançar a verdade definitiva
sobre o mundo real é, segundo Kuhn, uma IDEIA ERRADA, uma vez que corresponde
a uma forma ingénua de perspetivar a ciência (cientismo ingénuo) que supõe o
progresso da ciência como uma corrida indefinida em direção a um FIM (a verdade).

118
Kuhn não concorda com esta visão do progresso da ciência (que aponta para
um fim último, perfeito, que se traduz no alcance e na posse da verdade) – A VERDADE
NÃO É A META PARA A QUAL SE ORIENTA A CIÊNCIA, mas sim relativa a cada
paradigma, só podendo ser compreendida dentro dos LIMITES que cada paradigma
impõe.

d) A escolha de um novo paradigma é marcada por fatores de ordem


histórica, sociológica e psicológica.
Quando a comunidade científica tem de escolher entre dois PARADIGMAS
RIVAIS, ela entra em debate. Nestas circunstâncias, a atividade do cientista não se
reduz à resolução de enigmas, ao recurso à lógica e à experimentação, mas está
também dependente da ARGUMENTAÇÃO.
O papel que a argumentação tem no processo de construção do conhecimento
científico foi amplamente analisado por Kuhn na sua obra A Tensão Essencial. Nela
encontramos definidos os critérios a partir dos quais, regra geral, os cientistas
escolhem determinadas teorias e abandonam outras.

e) A escolha entre TEORIAS RIVAIS obedece a CRITÉRIOS OBJETIVOS e


SUBJETIVOS.
Os critérios objetivos são partilhados por toda a comunidade científica, sendo
dependentes de fatores objetivos, isto é, princípios, regras e até valores comummente
adotados.
Já os critérios subjetivos são individuais, dependentes de fatores subjetivos,
relativos ao que individualmente cada cientista sente e pensa – de acordo com a sua
história de vida e a sua personalidade – em relação à teoria que elege.
Assim, no trabalho de escolha e de justificação de uma teoria, as ideias de
exatidão, consistência, alcance, simplicidade e fecundidade constituem critérios
objetivos ou padronizados empregues por todos os cientistas na avaliação e
escolha das diferentes teorias.

O quadro seguinte apresenta uma breve explicação de cada um destes princípios


ou critérios objetivos que presidem à escolha das teorias:

PRINCÍPIOS OU CRITÉRIOS OBJETIVOS DE ESCOLHA DE TEORIAS

Característica segundo a qual uma teoria é capaz de fazer


previsões corretas: quanto mais exata for uma teoria,

119
EXATIDÃO mais perto ela está do que é possível observar ou dos
resultados da experimentação.

Ausência de contradições internas e compatibilidade da


CONSISTÊNCIA teoria com outras teorias aceites dentro do paradigma
(modelo explicativo) vigente.

ALCANCE Abrangência da teoria relativamente à diversidade de


fenómenos que é capaz de explicar.

Sobriedade e simplicidade na forma como a teoria explica


os fenómenos – uma teoria será simples se não
SIMPLICIDADE
depender de muitas leis para explicar os fenómenos
observados.

Capacidade da teoria para impulsionar a investigação


FECUNDIDADE
científica em direcção a novas descobertas.

Estes princípios indicam as propriedades ou características que as teorias


devem ter para serem escolhidas. Todavia, em situações concretas de escolha,
QUANDO DUAS TEORIAS COMPETEM ENTRE SI, NEM SEMPRE A COMUNICAÇÃO
ENTRE CIENTISTAS É FÁCIL. Em defesa de uma teoria, é possível que uns valorizem
mais determinados critérios do que outros e isso reflete-se na ARGUMENTAÇÃO que
desenvolvem.
Diz-nos Thomas Kuhn:
Quando os cientistas têm de escolher entre teorias rivais, dois homens
(cientistas), mesmo comprometidos com a mesma lista de critérios para essa escolha,
podem, contudo, chegar a conclusões diferentes. Quer dizer, há que lidar com
características que variam de um cientista para outro sem, no entanto, pôr em
causa o respeito de cada um deles pelas regras que tornam científica a ciência.
Assim, toda a escolha individual entre teorias rivais depende de uma mistura
de fatores objetivos e subjetivos, de critérios partilhados e individuais.

Thomas Kuhn (1989), A Tensão Essencial, Lisboa, Edições 70, p. 388 (adaptado)

120
Segundo Kuhn, só é possível compreender a ciência tendo em conta o
CONTEXTO em que ela se desenvolve, isto é, tendo em conta os VALORES E AS
CONVICÇÕES DA COMUNIDADE CIENTÍFICA, a qual é, naturalmente, constituída por
indivíduos.
A chamada de atenção para a presença de FATORES SUBJETIVOS na escolha
das teorias constitui um dos aspetos mais desconcertantes e geradores de debate
entre os epistemólogos (filósofos da ciência) a partir de Kuhn – afinal, A IDEIA DE
CIÊNCIA COMO CONHECIMENTO OBJETIVO, CERTO E INDUBITÁVEL DA
REALIDADE É POSTA EM CAUSA.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga, segundo Kuhn, Ciência Normal de Ciência Extraordinária.

2. Descreva as condições em que se dão as crises na ciência.

3. Compare as posições de Popper e Kuhn relativamente ao processo de


escolha e avaliação das teorias científicas.

4. Explique por que razão os critérios objetivos são insuficientes para


explicar a forma como se dá a escolha das teorias científicas, segundo Kuhn.

121
CRÍTICAS À CONCEÇÃO DE CIÊNCIA DE KUHN
(“RELATIVISTA” E “IRRACIONAL”)

A ideia de incomensurabilidade (incomparabilidade) dos paradigmas (modelos


explicativos) foi um dos aspetos mais criticados da conceção da ciência de Kuhn.
Como vimos, o facto de os paradigmas serem incomensuráveis implica a
impossibilidade de os comparar e avaliar objetivamente. Cada paradigma representa
um modo totalmente diferente de encarar os problemas e propor soluções. Dois
paradigmas rivais são modos distintos de entender e explicar as mesmas coisas,
não havendo, portanto, qualquer hipótese de partilha, cooperação ou diálogo. À
custa desta posição, alguns críticos acusam Kuhn de ser relativista.
Uma outra crítica feita a Kuhn incide sobre o critério que alguns autores
apelidam de “irracional”, utilizado para justificar a adoção de um novo paradigma.
Criticam o facto de a adesão a um novo paradigma ocorrer por conversão (quase
religiosa) de todos os cientistas – como se se tratasse de uma questão de fé – ao novo
paradigma. Ora, este processo traduz a ideia de que a atividade científica é
irracional e, consequentemente, levanta entraves (obstáculos) à questão do valor da
ciência.
Segundo Imre Lakatos (1922-1974), filósofo húngaro da matemática e da ciência,
Kuhn não propõe uma explicação racional das revoluções científicas e das
mudanças de paradigmas, e, ao considerar que os paradigmas são
incomensuráveis (incomparáveis), todo o processo de adesão a um novo paradigma

122
obriga a comunidade científica a desistir (sem qualquer tipo de contestação ou posição
crítica) do velho paradigma e a aderir a uma nova racionalidade (aceitando-a sem a
comparar com a anterior). Deste modo, não sendo possível encontrar um critério
racional que justifique a mudança, resta-nos considerar, segundo Lakatos, que ela
ocorre por “fé” no novo paradigma, como se de uma espécie de conversão mística ou
viragem religiosa se tratasse – daí a irracionalidade que se associa, como crítica, à
conceção de ciência proposta por Thomas Kuhn.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“Para Popper, a mudança científica é racional ou, pelo menos, racionalmente


reconstituível. Para Kuhn, a mudança científica de um paradigma para outro é uma
conversão mística que não é, nem pode ser, governada por regras da razão, e que cabe
mais na esfera da psicologia social (uma vez que “crise” é um conceito psicológico; um
pânico contagioso) ou da religião (já que a mudança de paradigma é uma espécie de
viragem religiosa) do que na esfera científica propriamente dita.”

ImreLakatos (1999), Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica,


Lisboa, Edições 70, p. 11 (adaptado).

1. Explicite a crítica que a partir do texto se pode apresentar à epistemologia


de Kuhn.

2. Exponha as perspetivas de Popper e de Kuhn quanto à ideia de progresso


científico.

123
A QUESTÃO DA OBJETIVIDADE CIENTÍFICA
FATORES QUE INTERFEREM NA ATIVIDADE DO CIENTISTA

Tradicionalmente, associa-se o conhecimento científico ao conhecimento


rigoroso e objetivo dos factos. Uma teoria será objetiva se for capaz de explicar os
fenómenos de forma isenta, isto é, independentemente de quem a formulou ou do
número de testes que a possam pôr à prova.

Mas, será a ciência realmente capaz de descrever objetivamente os factos?

O que garante a objetividade do conhecimento científico?


Antes de mais, atentemos no seguinte exemplo:

O João é um rapaz muito habituado a levantar pesos e a carregar objetos, pois,


para além de frequentar o ginásio, ajuda o pai na atividade de transportes e mudanças; já
a Maria é uma rapariga que passa a maior parte do seu tempo sentada à secretária, uma
vez que é contabilista. Um destes dias foi necessário substituir um dos computadores do
escritório onde a Maria trabalha. Ora, esta, para não perder muito tempo, resolveu, ela
mesma, levar o computador avariado ao gabinete do especialista em informática que fica
mais ou menos a vinte quilómetros do seu local de trabalho, mas, logo desistiu porque o
achou muito “pesado”. Como o João e a Maria são irmãos, esta pediu-lhe que fosse ele a

124
carregar o computador, pelo menos até ao carro, o que ele fez sem dificuldade, pois até o
achou “leve”.

Como podemos depreender do exemplo acima dado, a informação “pesado” ou


“leve” depende mais do sujeito que a afirma do que do objeto acerca do qual essa
afirmação se faz, ou seja, as proposições “O computador é pesado” ou “O computador é
leve” dão-nos mais informações sobre as características do sujeito (ser mais ou
menos forte; ter mais ou menos força) do que sobre as características do objeto. Por
isso as proposições “O computador é pesado” ou “O computador é leve” são subjetivas:
se para um sujeito o computador é “pesado”, para outro pode ser “leve”.
A proposição “O computador pesa 10 quilos” é objetiva, pois dá-nos informações
do objeto e não do sujeito – o computador pesa 10 quilos independentemente de
todos os sujeitos e pesa o mesmo para todos os sujeitos.
Para atingir o conhecimento objetivo, o cientista teria de se abstrair da sua
própria subjetividade, isto é, da sua forma pessoal de entender o objeto, da sua
afetividade, dos seus valores, dos seus interesses, das suas crenças ideológicas e
políticas, dos seus gostos, etc.

O conhecimento objetivo é aquele que se refere exclusivamente ao objeto de


estudo, independentemente do sujeito que realizou a investigação. Por isso, a
repetição de uma mesma experiência científica, sob determinadas condições, deve
proporcionar os mesmos resultados.
Ao nível da prática científica (nas ciências empíricas), o recurso a instrumentos
de medida é habitualmente considerado uma arma poderosa de conhecimento de
carácter objetivo. Sem os atuais telescópios não seria possível saber que a nossa Via
Láctea é apenas uma de milhões de galáxias existentes e que o Sol é apenas uma estrela
normal, como tantas outras. Sem o microscópio, não seria possível compreender a vida
de milhares de microorganismos, como as bactérias ou os vírus.
Os instrumentos de observação e medida permitem quantificar e exprimir
grandezas. E isso é determinante para conseguir a ambicionada descrição objetiva e
rigorosa do mundo que habitamos.
No entanto, se tivermos em conta a história das ciências, facilmente constatamos
uma sucessão de instrumentos que, por serem menos rigorosos, foram substituídos por
outros mais sensíveis e complexos, permitindo o avanço de pesquisas científicas. Da
luneta de Galileu ao telescópio atual, sucederam-se séculos de descobertas e escusado
será fazer referência à evolução que os instrumentos de observação, análise,

125
diagnóstico e terapia no contexto da medicina sofreram, uma vez que se trata de uma
evidência que está à vista de todos.
Por outro lado, o recurso a instrumentos e técnicas de medição tem levantado
outro tipo de constrangimentos e novas questões de ordem metodológica, uma vez
que a objetividade não parece ser assegurada pela criação de instrumentos de
medida – as interferências e os efeitos que eles podem ter na observação fazem com
que a questão da objetividade se torne um problema no interior da própria ciência.
Atentemos no conteúdo do texto que se segue:

Nos primeiros tempos da física quântica, era costume dizer-se que no domínio do
infinitamente pequeno, o físico se encontrava, em certa medida, na mesma situação de
um homem que quisesse estudar uma ave noturna desconhecida. Para esse estudo, teria
duas possibilidades: ou apontava um projetor para a ave e podia então
descrever a sua morfologia, mas não o seu comportamento, pois, o animal
encandeado, manter-se-ia imóvel, ou não utilizava o projetor e, embora pudesse,
observar na semiobscuridade parte significativa do seu comportamento, já não
podia descrever a sua morfologia. Na escala atómica, o problema parece idêntico: se
quisermos observar um corpúsculo (partícula), teremos de alvejá-lo com luz (com fotões).
O corpúsculo sofre um impacto tal que modifica o seu “comportamento” e, portanto,
qualquer operação de medição de um sistema microfísico provoca automaticamente uma
alteração desse sistema.

Sven Ortoli e Jean-Pierre Pharabod (1986), Introdução à Física Quântica,


Lisboa, Publicações D. Quixote (adaptado)

Assim, e como já foi afirmado, a objetividade parece não estar assegurada, em


muitas circunstâncias, pela criação de instrumentos de medida, uma vez que os
efeitos (interferências, impactos, condicionamentos) que eles podem ter na observação
dos fenómenos – tal como são descritos no texto acima dado – mostram de forma
clara que a objetividade acaba por ser posta em causa, o que constitui um problema
no interior da própria ciência.
Para além disto, é também necessário olhar para fora da ciência, isto é, é
preciso reconhecer a sua dimensão social, já que ela também faz parte da
sociedade.
Nas sociedades atuais, a investigação científica depende de instituições
políticas e económicas para sobreviver. Isto significa que os recursos económicos
são disponibilizados em função dos objetivos e interesses dos grupos que a

126
financiam e das prioridades que, em termos políticos, por exemplo, possam ser
definidas no seio das diferentes nações (opções de natureza cultural, ideológica,
política, económica, etc.).
Apesar de pretenderem atingir o conhecimento objetivo, os cientistas são
naturalmente influenciados por inúmeros fatores, tradicionalmente excluídos do
domínio da objetividade.
Vejamos dois desses fatores no quadro que se segue:

FATORES QUE INFLUENCIAM A ATIVIDADE DO CIENTISTA

CULTURAIS E IDEÓLÓGICOS POLÍTICOS E ECONÓMICOS

O interesse que o cientista demonstra por A investigação científica está dependente de


determinados factos, em vez de outros, financiamento: determinadas investigações
pode ser o resultado da sua cultura, da podem ser patrocinadas porque interessam
sua ideologia, da sua forma de ser e de e outras não (tal depende de também de
conceber o mundo (o cientista não é neutro). opções/decisões políticas).

Admitir que estes factores (ideológicos, culturais, políticos e económicos, entre


outros) condicionam a atividade do cientista é admitir que este se move num
determinado contexto histórico e cultural, pelo que a sua atividade é situada e
interessada (comprometida), ou seja, dá-se sempre num contexto e numa conjuntura
(histórica, cultural, ideológica, política, económica, etc.) relativamente aos quais o
cientista não permanece alheio e completamente neutro (indiferente, isento). Todavia,
enquanto elemento de uma comunidade (científica) que partilha regras e se orienta
por metodologias muito próprias e bem definidas, o cientista tem necessariamente
incorporada a “objetividade” no seu sistema de valores ou princípios de ação.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite o conceito (significado) de objetividade científica.

2. Identifique as limitações que o uso de instrumentos de medida coloca à


ambicionada objetividade científica.

127
3. Refira os fatores que influenciam a atividade do cientista e que podem
comprometer a sua objetividade.

AS RESPOSTAS DE POPPER E KUHN AO PROBLEMA DA OBJETIVIDADE DO


CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Do que dissemos anteriormente, podemos agora colocar o problema da


objetividade do conhecimento científico da seguinte maneira:
Será que a ciência representa uma leitura objetiva dos factos, já que obedece
a determinadas regras, aplica métodos de pesquisa e critérios racionais de escolha
e validação de teorias?
Ou será que a ciência é apenas uma leitura que reflete aquilo que os
cientistas, integrados numa comunidade científica, pensam, acreditam e defendem
(os seus valores, as suas crenças, etc.)?
Vamos agora responder a este problema a partir das conceções de ciência de
Popper e Kuhn: para Popper, o cientista não é um observador indiferente ou
descomprometido com o mundo. O investigador é um sujeito ativo, criativo e
crítico, mas comprometido com ideias, valores e princípios que funcionam como um
quadro teórico de referência no seu trabalho. No entanto, independentemente de o
cientista ser um criador engenhoso de conjeturas (hipóteses explicativas, sugestões de

128
resposta, explicações hipotéticas), as teorias científicas, sendo corroboradas
(validadas, confirmadas), correspondem a uma leitura objetiva da realidade.
Relembremos que para Popper é o carácter falsificável das teorias que permite
demarcar (distinguir) as teorias científicas das que não são científicas e que as
melhores teorias são aquelas que resistem a várias tentativas de refutação ou
rejeição (e que, ainda assim, não deixam de ser falsificabilizáveis).
Segundo Popper, quando afirmamos que uma teoria é objetiva significa que
aquilo que ela propõe é, de facto, uma explicação dos fenómenos que pode ser
confrontada com a experiência, submetida a testes por qualquer cientista, em
qualquer parte do mundo – ELA É FALSIFICÁBILIZÁVEL E TESTÁVEL
UNIVERSALMENTE. Para além disso, uma teoria não tem sexo, não defende
qualquer partido político nem professa qualquer religião.
Neste sentido, para Popper, O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CORRESPONDE
A UMA LEITURA OBJETIVA (e bem sofisticada) DOS FENÓMENOS,
INDEPENDENTEMENTE DE QUEM A PRODUZ E DO CONTEXTO EM QUE É
PRODUZIDA. E, ainda que não seja a última (a mais perfeita ou a mais completa) leitura
da realidade, ela é a melhor possível (naquele momento e naquelas circunstâncias).
Já Thomas Kuhn apresenta uma resposta diferente para este problema ou
questão da objetividade do conhecimento científico, afirmando que NÃO
COMPREENDE OU NÃO CONSEGUE CONCEBER O CONHECIMENTO CIENTÍFICO
INDEPENDENTE DE QUEM O PRODUZ E DO CONTEXTO EM QUE É PRODUZIDO.
Pelo contrário, destaca o papel que os cientistas, inseridos na comunidade científica,
partilhando os mesmos valores e crenças, têm sobre a construção do conhecimento.
Assim, segundo Kuhn, a ciência e o conhecimento que dela resulta só podem
ser compreendidos em função do paradigma (modelo explicativo vigente) que orienta
a própria atividade científica.
O critério falsificacionista (que,segundo Popper, permite demarcar, distinguir, ou
diferenciar, as teorias científicas das que não o são) é completamente rejeitado por
Kuhn.
Segundo este epistemólogo (filósofo da ciência), O CIENTISTA NÃO PÕE EM
CAUSA O PARADIGMA, NEM AS TEORIAS, A NÃO SER, APENAS, NUM PERÍODO
DE CRISE, QUANDO SE ENCONTRAM ESGOTADAS TODAS AS POSSIBILIDADES
DE O PARADIGMA RESPONDER A ANOMALIAS PERSISTENTES.
Para Kuhn, no processo de mudança de paradigma interferem fatores
históricos, sociológicos e psicológicos, obrigando, essa mudança, ao exercício de

129
uma argumentação consistente, uma vez que os cientistas procuram convencer os
seus pares (“colegas” da comunidade científica da qual fazem parte) da razoabilidade,
pertinência e plausibilidade das suas teorias. Este processo de escolha (mais do que
objetivo) é INTERSUBJETIVO (entre sujeitos, entre pares) e nele (processo de escolha)
os cientistas usam CRITÉRIOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS DE JUSTIFICAÇÃO.
A mudança de paradigma não significa, para Kuhn, que a ciência evolui em
busca da verdade certa, absoluta e definitiva, exclusivamente alcançável através do
rigor científico. A incomensurabilidade (incomparabilidade) dos paradigmas põe em
causa a possibilidade da ciência aspirar ao conhecimento objetivo, uma vez que O
CONHECIMENTO E A VERDADE SÃO SEMPRE RELATIVOS (relativos a um dado
paradigma/modelo).

Através do quadro que a seguir se apresenta, mostra-se uma síntese das


perspetivas ou conceções de Karl Popper e de Thomas Kuhn relativamente ao
problema da objetividade do conhecimento científico, o qual se traduz nesta pergunta:
O CONHECIMENTO CIENTÍFICO É OBJETIVO?
Vejamos:

O PROBLEMA DA OBJETIVIDADE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

KARL POPPER THOMAS KUHN

- O conhecimento científico não se - O conhecimento científico é dependente


confunde com o sujeito que o produz, ou do sujeito que está integrado numa
seja, é independente do sujeito e do comunidade científica (intersubjetividade).
contexto (objetividade).

- A validação das teorias obedece ao - A escolha e a avaliação das teorias


critério da falsificabilidade, a qual garante a dependem de fatores objetivos e
cientificidade das mesmas. subjetivos.

- O conteúdo das teorias ou conjeturas, - A verdade é relativa ao paradigma vigente


obedecendo a princípios lógicos, garante o e só pode ser entendida dentro dos limites
rigor e a objetividade com que o que esse mesmo paradigma impõe.
conhecimento científico descreve e explica
a realidade.

130
- A verdade é definida no interior de cada
- A ciência é conjetural e tem como meta a
paradigma. Com a mudança de paradigma,
verdade (como correspondência aos
não podemos dizer que nos aproximamos
factos), mas não atinge a verdade; apenas
da verdade.
se aproxima da verdade.

Apesar de responderem ao problema da objetividade de modos distintos, tanto


Popper como Kuhn compreendem que a ciência não é o tipo de conhecimento
absolutamente certo e indubitável. Segundo Popper, a ciência evolui
progressivamente em direção à verdade, através da eliminação de erros ou da
refutação de teorias, aproximando-se daquela (verdade). Já para Kuhn, a ciência
evolui dentro de cada paradigma (modelo explicativo) e também nas mudanças de
paradigma que as revoluções científicas permitem, sem, no entanto, podermos
dizer que se aproxima da verdade.

As contribuições de Popper e de Kuhn permitem-nos, assim, repensar as noções


tradicionalmente associadas à racionalidade científica: “objetividade”,
“neutralidade”, “verdade indubitável, necessária e universal” e “demonstração”.

As correntes tradicionais (positivista e neopositivista) atribuíram à ciência


moderna o estatuto de conhecimento verdadeiro e objetivo, considerando que a
matéria do trabalho científico – os factos – é susceptível de uma descrição exata e de
uma explicação rigorosa, como se de um conhecimento superior e infalível se
tratasse. A objetividade científica é, nesta perspetiva, assegurada pelo rigor da
medição e do cálculo (matematização) e a verdade a que a ciência chega é certa e
absoluta (algo que, de resto, era muito típico do iluminismo, contexto cultural em que
aquela – ciência moderna – emergiu).
A imagem do cientista como um ser puramente racional, isolado e acima do
mundo, perfeitamente objetivo e imparcial nas suas conclusões, preenchia os
contornos da racionalidade científica e demarcava-a (distinguia-a) de outras
atividades racionais. Esta imagem fez da ciência o modelo cultural por excelência,
colocando-a num patamar de tal maneira elevado que deu origem ao chamado mito do
cientismo, uma espécie de nova religião, com a sua ideologia própria. O cientismo
leva o grande público a depositar na ciência toda a sua confiança e esperança,
mesmo sem compreender muitas das suas teorias, como se de uma questão de fé
se tratasse.
131
Com a evolução da ciência moderna para a chamada ciência pós-moderna,
associada a teoria da relatividade de Einstein e ao princípio da incerteza de
Heisenberg, ocorre o esgotamento da tal conceção positivista e neopositivista da
ciência e, consequentemente, abandona-se o modelo de conhecimento certo,
absolutamente objetivo e verdadeiro.
Assim, novos modos de entender a ciência conduziram a uma redefinição da
racionalidade científica e das suas principais noções, tais como:

- A objetividade passa a ser entendida como intersubjetividade (as teorias


científicas estão dependentes da aceitação dos sujeitos/pares constituintes de uma
comunidade científica);

- O cientista não apresenta uma racionalidade pura e neutra (a sua


racionalidade é condicionada e relativa à sua circunstância histórica, cultural, social,
ideológica, política, económica e psicológica);

- Não existe uma verdade absolutamente certa, universal e necessária


(existem apenas verdades dependentes dos diferentes quadros paradigmáticos em que
são produzidas e teorias mais ou menos verosímeis – susceptíveis de serem verdadeiras
– e mais ou menos plausíveis – pertinentes, aceitáveis);
- O conhecimento científico passa a ser um dos modos possíveis, entre
outros, de ler e interpretar o real (constituindo não um reflexo do real mas uma
interpretação e leitura do mesmo, sempre sujeito ao risco do erro, sendo que esse mesmo
risco é inerente a todas as leituras e interpretações que existem da realidade e não
apenas às da ciência).

ATIVIDADES/QUESTÕES:

“O paradigma cria a nossa realidade e desistir dele quando somos confrontados


com problemas ou anomalias é desistir de fazer ciência.”

Thomas Kuhn (1989), A Tensão Essencial, Lisboa, Edições 70, p. 388 (adaptado)

1. Tendo em conta a perspetiva kuhniana da evolução da ciência, explicite o


conteúdo do excerto acima dado.

2. Compare as perspetivas de Popper e Kuhn quanto à questão ou problema


da objetividade do conhecimento científico.

132
A DIMENSÃO ESTÉTICA
ANÁLISE E COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
(FILOSOFIA DA ARTE)

INTRODUÇÃO

133
Desde os mais noturnos e remotos tempos, uma das mais importantes dimensões
da ação humana se foi afirmando: a dimensão estética ou, em termos mais comuns, a
arte…
Nas profundezas das grutas de Altamira ou de Lascaux, no recôndito das florestas
tropicais, na imensidão do deserto do Sahara, nos vales do Côa, gravados ou pintados
nas rochas, ficaram os primeiros traços dessa dimensão.
Ligada às questões primárias da sobrevivência, as pinturas rupestres tinham uma
intenção mágica (e um consequente efeito psicológico) de proporcionar boas caçadas que
garantissem alimento e, ao mesmo tempo, em jeito de ritual, de agradar aos espíritos e
aos deuses – a arte foi, desde esse momento, criação e transfiguração.
A arte é criação, mas essa atitude criadora não está nos materiais escolhidos, no
misturar das tintas (quando se está a pintar), nas pancadas do martelo sobre o cisel
(quando se está a talhar madeira) ou sobre o buril (quando se está a esculpir pedra), na
agilidade dos dedos (quando se está a manejar um determinado instrumento musical,
como, por exemplo, uma guitarra ou um piano) ou no correr da caneta (quando se está a
escrever um poema) – já que isto é, apenas, o domínio de uma técnica, de uma
habilidade ou destreza motora.
Assim, a criação, a atividade criadora do artista, consiste e deriva da sua
inspiração, do seu dom, do seu génio. É claro que o trabalho de criação (“inspiração”)
é, também, um trabalho técnico, de escolher, de emendar, de aperfeiçoar, de colocar um
traço, uma nota, uma imagem ou uma palavra certa no lugar certo e no momento
adequado (“transpiração”), mas, a criação é, principalmente, algo que vem de dentro,
do interior de cada um, e que, portanto, não se vê diretamente (embora se veja,
depois, na obra realizada, no produto final).
Como nem os próprios artistas sabem explicar este fenómeno (o dom, o génio, a
capacidade criadora e inventiva), a criação permanece, para nós, como um verdadeiro
mistério e daí a pergunta: “O que é que existirá em alguns de nós que nos permite
criar, realizar uma obra de arte e, por conseguinte, ser artistas?” Poderemos não ter
uma resposta para esta pergunta intrigante, mas uma coisa sabemos: sem este dom,
que possibilita criar, a arte não existiria.
A frase: “Deus quer, o homem sonha a obra nasce.” que faz parte do poema
Mar Português, que integra a segunda parte da obra Mensagem, de Fernando Pessoa
(1888-1935), poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo,
inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político
português, embora tenha um outro propósito que não o de explicar propriamente o dom e

134
o génio do artista, também poderá ser aqui usada como “explicação” para essas
qualidades misteriosas que o homem possui para se expressar, manifestar, representar,
criar, recriar e transfigurar através das múltiplas formas de arte que desenvolve.
Deste modo, e em última análise, a arte representa uma forma ou um meio de
expressão, um modo “sui generis” (único, original) que o artista encontra para traduzir,
expressar ou mostrar aquilo que vê, ouve, sente, imagina, sonha ou experimenta de
qualquer outra forma. Ora, é, precisamente, neste modo pessoal de se expressar que
reside a criatividade do artista e, consequentemente, a originalidade da obra de arte.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Qual era a intenção inicial que estava subjacente às primeiras “obras de


arte” de que temos conhecimento?

2. Em que consiste e deriva a criação ou capacidade criadora do artista?

O ESTÉTICO E O NÃO ESTÉTICO

A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Imaginemos que a Rita e o Carlos passam em frente a uma galeria de arte. A Rita
olha para a montra e, de repente, detém-se encantada a olhar para um quadro do século
XVIII que representa várias pessoas a passear num jardim (por exemplo, a pintura que se
se apresenta, intitulada TheMall in St. James Park, de Thomas Gainsborough, de 1783).

Por sua vez, o Carlos não sente nada de especial, mas acaba por ficar também a
observar o quadro, interessado apenas no modo como as pessoas se vestiam na época
em que o quadro foi pintado. Dir-se-ia que a Rita e o Carlos tiveram experiências de

135
tipo diferente ao observar o mesmo objeto (quadro): ela teve uma experiência
estética, ao passo que ele não. Mas porquê? Onde está a diferença?
O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804), amplamente considerado como
o principal filósofo da era moderna, operando, na epistemologia, uma síntese entre o
racionalismo e o empirismo, sustentou que a diferença está no facto de a experiência
estética ser caracterizada por um sentimento de prazer. Só que isso não chega:
muitos alunos sentem prazer quando recebem uma boa nota no teste de Filosofia, por
exemplo, e nem por isso diríamos que essa é uma experiência estética! Por isso, Kant
acrescenta que este tipo de prazer não é um prazer qualquer, mas um prazer de tipo
especial – trata-se de um prazer estético (também designado por gozo estético), que se
distingue por ser um prazer gratuito, desinteressado.
Mas o que significa isso? Kant esclarece que o prazer é gratuito e
desinteressado quando nada mais interessa a não ser a mera contemplação/fruição
da coerência e harmonia das formas observadas (no caso de uma pintura ou de uma
escultura). Assim, quando apreciamos algo que nos parece belo, nesse momento, não
temos em vista qualquer outro objetivo além do prazer da contemplação da própria
beleza – sentimo-nos arrebatados, conquistados, “capturados” e não estamos
interessados noutra coisa ou em satisfazer qualquer necessidade de carácter material ou
prático – tudo o que conta na experiência estética é o próprio prazer de a ter (gozo
estético). No exemplo dado, isso aconteceu com a Rita e não com o Carlos.
Porém, esta caracterização da experiência estética tem levantado dúvidas por
dois motivos:

- em primeiro lugar, há exemplos de experiências ditas estéticas cujo prazer


parece não ser desinteressado, se nela estiver envolvido o conhecimento de
determinados aspetos – por exemplo, na cidade de Washington, há uma gigantesca
obra de arte da autoria da artista norte-americana de descendência chinesa, Maya Lin
(1959-), que consiste num enorme muro com milhares de nomes. Ora, essa obra,
certamente não causaria o mesmo efeito estético que tem causado nas pessoas
que ali se deslocam, se elas não soubessem que aqueles milhares de nomes são de
soldados americanos mortos na Guerra do Vietname – ou o domínio de determinada
informação relacionada com a obra que se está a apreciar – por exemplo, o facto de
sabermos que estamos diante de uma valiosa obra de Picasso (1881-1973), famoso
pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo espanhol, pode influenciar ou
condicionar o modo como abordamos/apreciamos/valorizamos esteticamente essa
mesma obra;

136
- em segundo lugar, tem de haver algo sem ser o próprio prazer que explique
por que razão as mesmas coisas umas vezes nos proporcionam prazer estético e
outras vezes não; por exemplo, por que razão hoje já não ligamos a determinada
música que noutros tempos nos deu tanto prazer ouvir?

ATITUDE ESTÉTICA

Alguns filósofos, com destaque para o filósofo americano contemporâneo Jerome


Stolnitz (1925-), que é talvez o mais acérrimo defensor da atitude estética, pensam que
só podemos responder adequadamente a esta pergunta se deixarmos de pensar no
prazer sentido e passarmos a pensar na maneira como encaramos as coisas, isto é,
na atitude que adotamos em relação a elas.
Neste contexto, a nossa atitude, que podemos definir como uma disposição para
encarar as coisas de um certo modo, tanto pode ter um caráter prático/utilitário como
um caráter estético, pelo que podemos olhar para as coisas de perspetivas
diferentes e com intuitos diferentes. Se encararmos um dado objeto ou situação de um
ponto de vista prático, iremos prestar atenção a certos aspetos (a sua utilidade, solidez,
etc.), mas se, pelo contrário, adotarmos uma atitude estética, a nossa atenção irá ser
diferente, centrando-se em aspetos que antes nos passavam despercebidos (a harmonia,
a coerência, a pureza das suas formas, etc.). Consoante o tipo de atitude, assim é o
tipo de atenção e consoante o tipo de atenção assim dirigimos o nosso olhar para
aspetos diferentes.
De acordo com esta distinção, a atitude estética diferencia-se da atitude prática
por se basear numa atenção desinteressada, isto é, numa atenção desprendida de
quaisquer interesses de caráter prático/utilitário/material. Note-se que aqui já não se
trata do prazer (que é um sentimento), mas antes de um modo especial de atenção
(que não é um sentimento mas um tipo de perceção, o qual, neste contexto, se traduz
pela apreensão dos objetos por meio dos sentidos).
Esta ideia levanta, contudo, alguns problemas:
Será que há mesmo diferentes tipos de atenção?
A Beatriz pode prestar atenção a certas caraterísticas de um dado automóvel (por
exemplo, às suas formas e cores) e o João prestar atenção a outras (por exemplo, o som
produzido pelo seu motor ou à potência que o mesmo possui). Só que isso não mostra
que há diferentes tipos de atenção, pois prestar atenção a coisas diferentes não
significa que haja diferentes tipos de atenção. Além disso, os defensores da atitude
estética não conseguem explicar por que razão temos tendência a adotar essa
137
atitude em relação a certas coisas (obras de arte, por exemplo) e não em relação a
outras (contentores do lixo, por exemplo).

PROPRIEDADES ESTÉTICAS

A melhor explicação para isso, argumentam outros, é admitir que há certas


caraterísticas, propriedades ou qualidades dos próprios objetos – as propriedades
estéticas – que provocam em nós certo tipo de experiências que podem ser
consideradas mais psicológicas ou internas do que outras (as experiências estéticas).
Assim, e quase todos os filósofos anteriores ao século XVIII defendiam alguma versão
desta ideia, tudo depende das propriedades que os objetos têm e não da nossa
atitude – o próprio prazer que sentimos é causado pelas caraterísticas dos objetos.
São os objetos que têm, eles próprios, a capacidade de causar em nós experiências
estéticas. Mas, então, quais são exatamente essas propriedades? Os defensores
desta ideia apontam como propriedades estéticas “coisas” como a harmonia, o
equilíbrio, a delicadeza, a graciosidade, entre outras, colocando, assim, no centro da
experiência estética os objetos e os seus atributos.
O problema é que quando olhamos para uma pintura, por exemplo, tudo o que
vemos é linhas direitas ou curvas, formas quadradas ou redondas, manchas verdes
ou azuis, madeira, tela pintada e coisas do género; não vemos elegância, delicadeza
ou graciosidade. Quanto às primeiras (linhas direitas ou curvas, formas quadradas ou
redondas, manchas verdes ou azuis, madeira, tela pintada e coisas do género), uma vez
que são propriedades meramente físicas, qualquer pessoa consegue observá-las, já
quanto às segundas (elegância, delicadeza ou graciosidade), uma vez que são
propriedades estéticas, nem todos conseguem observá-las ou captá-las…
Assim, a questão é inevitável: como podemos garantir que tais propriedades
(estéticas) existem mesmo nos objetos?

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Como se distingue, segundo Kant, o estético do não estético?

2. O que é, também segundo Kant, um prazer desinteressado?

3. Como se distingue a atitude estética da atitude prática?

138
4. Dê exemplos de propriedades estéticas e de propriedades não estéticas.

5. Será que tudo pode ser encarado esteticamente? Justifique e dê exemplos


elucidativos.

JUÍZOS ESTÉTICOS

Todos fazemos frequentemente juízos estéticos e juízos não estéticos. Por


exemplo, quando afirmo que “Londres é uma cidade bonita” estou a fazer um juízo
estético, e quando afirmo que “Londres é uma das maiores cidades da Europa” não estou
a fazer um juízo estético (estou a fazer um juízo de facto, através de uma
proposição/afirmação que pode ser verdadeira ou falsa).
O quadro que se segue contém alguns exemplos de juízos estéticos e de juízos
não estéticos.

JUÍZOS ESTÉTICOS JUÍZOS NÃO ESTÉTICOS

Londres é uma cidade Londres não é uma cidade Londres é uma das maiores
bonita. bonita. cidades da Europa.

139
O quadro Mona Lisa é O quadro Mona Lisa é feio. O quadro Mona Lisa tem mais
belo. de quinhentos anos.

O romance Os Maias é O romance Os Maias é um O romance Os Maias foi


uma obra-prima de romance vulgar. escrito por Eça de Queirós.
invulgar estética literária.

Aquela música é Aquela música é irritante. Aquela música tem doze


agradável. minutos de duração.

A paisagem do vale do A paisagem do vale do A paisagem do vale do Douro


Douro é deslumbrante. Douro é assustadora. tem muitas vinhas.

Centremo-nos, pois, nos juízos estéticos acerca da beleza (que são os juízos
estéticos mais comuns), como é o caso de “Londres é uma cidade bonita”. Não é difícil
encontrar pessoas que discordem e que achem que Londres não é bonita ou até mesmo
que é feia. Quem tem razão? Afinal, Londres é uma cidade bonita ou não?
Estas questões obrigam-nos a colocar uma outra, mais profunda e mais filosófica,
que é a seguinte:

ONDE ESTÁ A BELEZA?

Há quem defenda que a beleza não está nas coisas, mas antes naquilo que as
próprias pessoas sentem quando observam/contemplam/apreciam essas mesmas coisas
– por exemplo, Alberto Caeiro (pseudónimo de Fernando Pessoa) coloca-se nesta
perspetiva através dos versos do poema O Guardador de Rebanhos: “A beleza é o nome
de qualquer coisa que não existe (e) que eu dou às coisas em troca do agrado que
elas me dão.”
Ao invés, outros acreditam que a beleza está nas próprias coisas e que elas são
bonitas ou não independentemente do que cada um sente ao observá-las. Estas são,
pois, as duas principais respostas para um problema filosófico que pode ser
formulado assim: A BELEZA ESTÁ NAS COISAS (OBJETOS/OBJETIVISMO) OU NA
PERSPETIVA DE QUEM AS VÊ (SUJEITO/SUBJETIVISMO)? Este é o problema da
justificação dos juízos estéticos: o que está em causa é se nos baseamos nos
nossos sentimentos para justificar tais juízos ou se, pelo contrário, justificamos

140
esses juízos apontando para as características ou propriedades que se encontram
nas próprias coisas. Formulada de outro modo, a questão é: OS JUÍZOS ESTÉTICOS
TÊM UM CARÁCTER OBJETIVO (residem no objeto) OU SUBJETIVO (residem no
sujeito)?
Esta problemática leva-nos à necessidade de fazer uma distinção entre
subjetivismo e objetivismo, ou melhor, entre subjetivistas e objetivistas.

SUBJETIVISTAS E OBJETIVISTAS ESTÉTICOS

Chama-se subjetivistas àqueles que respondem que apenas conta o que cada
sujeito sente. Assim, quando perguntamos a um subjetivista: “Por que razão dizes que
aquele objeto é bonito?”, ele responde: “Digo que aquele objeto é bonito porque eu sinto
prazer ao olhar para ele.” – a justificação dos juízos estéticos tem aqui um caráter
subjectivo (porque parte do sujeito).
Por sua vez, chama-se objetivistas àqueles que respondem que tudo o que
conta são as caraterísticas dos próprios objetos: afirmamos que um objeto é bonito
ou feio porque tem certas propriedades que o tornam realmente bonito ou que o
tornam realmente feio. Assim, se perguntarmos a um objetivista: “Por que razão dizes
que aquela flor é bonita?”, ele responderá algo deste género: “A flor é bonita devido às
suas cores intensas e invulgares, à forma elegante do seu caule e à disposição
harmoniosa das suas pétalas.” O objetivista justifica o que diz apontando para certas
caraterísticas da flor: as suas cores, as suas formas e a relação entre as suas partes.
Acredita, pois, que a beleza está na própria flor, mesmo que algumas pessoas sejam
insensíveis a isso e não sejam capazes de detetar a beleza que está diante dos seus
olhos – a justificação dos juízos estéticos tem aqui um caráter objetivo.

SUBJETIVISMO ESTÉTICO RADICAL (“Gostos não se discutem!”)

A perspetiva que parece mais atraente aos olhos do senso comum é o


subjetivismo. É até muito frequente ouvirmos dizer que “a beleza é subjetiva.” E é
também isso que muitas pessoas exprimem ao dizerem que os juízos estéticos, ao
contrário dos não estéticos, são uma questão de gosto, acrescentando,
seguidamente, que “os gostos não se discutem!” Estamos, assim, perante um
subjetivismo levado ao extremo a que podemos chamar subjetivismo radical e que
tem como justificação o seguinte: se sujeitos diferentes gostam de coisas diferentes,
então cada um sabe do que gosta e do que não gosta – “só eu sei se gosto ou não

141
da cidade de Londres e, portanto, como só eu posso saber, os meus juízos
estéticos nunca podem estar errados!” Sendo assim, se nos basearmos neste
pressuposto, qualquer discussão sobre a beleza acaba por ser disparatada e,
consequentemente, inútil, pois não se vê o que possa haver aí para discutir. Não faz
simplesmente sentido discutir sobre o que não pode estar errado, tal como não faria
sentido as pessoas discutirem sobre se eu sinto agora uma dor de dentes ou não.
A posição: “Eu, e mais ninguém, é que sei!” – é uma posição que corta a
discussão pela raiz. Trata-se, pois, como, de resto, já foi dito, de uma forma radical de
subjetivismo.

CRÍTICAS AO SUBJETIVISMO ESTÉTICO RADICAL (“Será mesmo que os


gostos não se discutem?”)

Mas o problema principal provocado pelo subjetivismo radical é que nos coloca
permanentemente a discutir os gostos uns dos outros, questionando se certas coisas
são bonitas ou não e a discordar de juízos estéticos emitidos por outros, por exemplo:
- a Rita diz que a música do Toy é bonita ao que o João responde que ela está
enganada e que nem sequer sabe o que é música;
- o João diz que os filmes do Harry Potter são emocionantes, mas a Rita diz que
não passam de meras histórias para entreter crianças;
- a Rita diz que o romance Os Maias, de Eça de Queirós, é uma obra-prima, mas o
João diz que qualquer livro de terror é bem melhor.
Tais discordâncias só vêm contrariar, na prática, a ideia de que os gostos não
se discutem, ou seja, vêm demonstrar que, afinal, os gostos até se discutem.
Além disso, se a beleza for apenas uma questão de gosto pessoal, individual,
subjetivo, porque razão há tanta gente a gostar mais de Sintra (e disposta a deslocar-se
de longe só para a visitar) do que da Amadora, que fica mesmo ao lado (e a que poucos
se deslocam para esse fim)? Será uma simples coincidência haver tanta gente a
gostar mais de Sintra do que da Amadora?
Pensemos também nos juízos que apresentámos atrás (na tabela inicial) a
propósito desta problemática, e façamos algumas comparações: será que o juízo
estético “Londres é uma cidade bonita” suscita menos discussão do que o juízo
não estético “Londres é uma das maiores cidades da Europa”? Ou que o juízo
estético “Os Maias é um romance vulgar” suscita menos discussão do que o não
estético “O romance Os Maias foi escrito por Eça de Queirós”?

142
Na verdade, poucas pessoas pediriam àquele que afirma que “O romance Os
Maias foi escrito por Eça de Queirós” uma justificação do seu juízo. Pelo contrário, se
alguém afirmar que “Os Maias é um romance vulgar”, irá certamente deparar-se com
muitas pessoas a exigir que justifique o que diz e a ter que defender a sua opinião
perante tantas vozes discordantes. Ora, isto só vem demonstrar que, ao contrário do que
parece, é mais frequente e até mais razoável discutir juízos de gosto do que juízos
de facto, pois, o que se verifica é que, mesmo que os juízos estéticos sejam uma
questão de gosto (subjetivo, pessoal), na prática não procedemos como se os
gostos não se discutissem, ou seja, discutimo-los efetiva e constantemente.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Formule o problema da justificação do juízo estético.

2. Distinga subjetivsmo estético de objetivismo estético.

3. Caracterize o subjetivismo estético radical.

4. Explicite o conteúdo da frase: “A beleza é o nome de qualquer coisa que não


existe (e) que eu dou às coisas em troca do agrado que elas me dão.”
Alberto Caeiro (adaptado)

5. “Gostos não se discutem!” Concorda ou não com este ponto de vista?


Justifique a sua resposta.

SUBJETIVISMO ESTÉTICO

As ideias associadas ao subjetivismo estético radical são de tal maneira


extremistas que praticamente nenhum filósofo as defende. Daí existirem formas mais
moderadas de subjetivismo estético.
Os filósofos David Hume e Immanuel Kant são subjetivistas, mas procuram
evitar os problemas apontados ao subjetivismo radical. Recusam, em particular, a ideia
radical de que cada um gosta do que gosta e não há discussão possível. Se assim
fosse, todo e qualquer debate sobre questões estéticas ou sobre o valor estético das
obras de arte seria disparatado e irracional, como se viu. Mas nem Hume nem Kant
podem aceitar tal coisa, uma vez que eles próprios contribuem para a discussão das

143
questões estéticas. Por isso, ambos defendem ser possível encontrar critérios
comuns de apreciação e avaliação das obras de arte.
Mas se os juízos estéticos se baseiam nos sentimentos, preferências ou gostos
pessoais, como contrariar a conclusão de que não há discussão possível? Como
encontrar critérios comuns de apreciação e avaliação de juízos que têm um caráter
subjetivo (relativos a cada sujeito)?

DAVID HUME E O PADRÃO DO GOSTO

David Hume acredita que tudo o que sabemos acerca do mundo tem origem
na observação cuidadosa das coisas. Ora, diz ele, se verificarmos o que se passa com
as pessoas em matéria de gostos, acabamos por verificar que:

1. Há um enorme desacordo e uma enorme diversidade de gostos entre


pessoas e culturas. Mesmo quando parecem concordar em aspetos gerais, as pessoas
acabam por discordar sobre casos particulares. Na opinião de Hume, os desacordos
e a diversidade de gostos só podem ser adequadamente explicados se admitirmos que
o sentimento é a base do juízo estético: as pessoas falam normalmente do que
sentem, quando apreciam uma paisagem, uma canção ou uma pintura. Isto faz de Hume
um subjetivista.

2. Apesar dos desacordos entre os diferentes sujeitos, verifica-se que há, em


diferentes épocas e lugares, uma tendência para as pessoas acharem certas coisas
mais agradáveis do que outras. Contudo, a tendência para, ao longo do tempo,
acharmos umas coisas mais agradáveis do que outras, só se explica se houver certos
princípios comuns que, em parte, determinam a formação do gosto. Esses princípios
comuns são aquilo a que Hume chama o padrão do gosto, ou seja, o conjunto de
princípios baseados na observação do que em países e épocas diferentes tem sido
universalmente aceite como agradável. O padrão do gosto também pode ser definido
como o gosto que perdura ao longo dos tempos.
Ora, se os gostos seguem certos critérios, então não são completamente
arbitrários (fruto do acaso, aleatórios), o que não é, na opinião de David Hume,
incompatível com o facto de os juízos estéticos serem subjetivos. Assim, a opinião
daquele que acha que a Amadora é mais bonita do que Sintra não tem o mesmo valor
que a opinião daquele que acha que Sintra é mais bonita do que a Amadora, pois, tem-se
verificado um grande consenso de que Sintra é mais bonita do que a Amadora. Quem
disser o contrário é porque não segue o padrão do gosto, mostrando que o seu gosto
144
não é suficientemente refinado e esclarecido. Basta ver que sempre houve muita
gente a querer visitar Sintra, ao passo que isso nunca aconteceu em relação à Amadora.
Ao contrário do que pensavam os subjetivistas radicais, Hume considera que os
gostos não são indiscutíveis e que nem todos valem o mesmo.
Note-se que o padrão do gosto não é o que está na moda num dado sítio ou o
que a maioria das pessoas gosta num dado momento, mas sim aquilo que perdura
nas preferências de pessoas de diferentes épocas e países, que passa no “teste do
tempo”, mostrando que certas coisas estão feitas de modo a agradarem mais do
que outras – por exemplo, há grandes êxitos musicais que, passado pouco tempo já
ninguém liga, ao contrário da música de Beethoven, dos Beatles, dos Pink Floyd, dos
U2, Imagine Dragons ou dos Coldplay, que continua a ser ouvida e apreciada. Por aqui
se vê que os sentidos e as mentes das pessoas funcionam de maneira semelhante,
dando origem a uma espécie de gosto comum a que se pode chamar padrão. Dando
outro exemplo, é natural que o som agudo produzido pela fricção do giz no quadro
provoque na maioria das pessoas uma sensação desagradável. Em sentido oposto, há
certos sons, odores, formas e cores que provocam na maior parte de nós sensações
agradáveis.
Como explicar, então, as divergências de gostos? Hume diz que as pessoas
têm hábitos diferentes, próprios de certas idades, épocas e países, o que faz com
que, precisamente por terem esses hábitos, fiquem impedidas de alargarem os seus
horizontes de modo a reconhecer o padrão do gosto – é o que se passa quando as
pessoas se limitam a “ir atrás das modas”.
Mas também há diversidade porque nem todos têm a sensibilidade igualmente
desenvolvida e o gosto igualmente treinado – é que, os gostos também se aprendem e
cultivam.
Embora funcione de modo semelhante em todas as pessoas, a sensibilidade
pode ser mais ou menos refinada. Assim, aquelas pessoas que têm uma sensibilidade
mais refinada, têm também aquilo a que se chama a delicadeza do gosto e, portanto,
estão mais aptas a reconhecer o padrão do gosto. Os críticos de arte e os
especialistas são, em princípio, os que têm o gosto mais requintado (delicado), pelo
que os seus juízos devem prevalecer (porque o gosto também cultiva).
Contudo, Hume admite que mesmo os especialistas na mesma área discordam
em relação a certas obras, o que, na sua opinião, só reforça a ideia de que os juízos
estéticos são subjetivos. No entanto, como existem critérios que são de tal forma

145
aceites por uma maioria esmagadora de pessoas, somos forçados a admitir que
existe de facto um padrão de gosto.

IMMANUEL KANT E A UNIVERSALIDADE DOS JUÍZOS ESTÉTICOS

Kant propôs uma forma diferente de subjetivismo moderado: este, ao contrário


de Hume, não parte de quaisquer observações acerca daquilo de que as pessoas
costumam gostar – centra-se antes no modo como os juízos estéticos se formam e
na sua finalidade.
Kant estabelece uma distinção entre juízos estéticos e juízos de conhecimento
(ou de facto):
- os juízos estéticos são juízos de gosto e o seu caráter é subjetivo;

- os juízos de conhecimento (ou juízos de facto) procuram descrever ou


caraterizar os objetos e são objetivos.
Por exemplo, se eu disser “esta mesa é bonita”, estou a produzir um juízo
estético; se eu disser “esta mesa é de metal”, estou a produzir um juízo de
conhecimento (ou de facto). Se a descrição se aplica de facto ao objeto descrito, então
o juízo é verdadeiro. Caso contrário, é falso. Já quando produzimos um juízo de gosto
relativamente a um determinado objeto (“a mesa é bela”) não pretendemos descrever
esse objeto mas sim exprimir o sentimento de prazer ou de agrado que temos ao
percecioná-lo. Por isso os juízos estéticos são juízos de gosto (subjetivos) e não
juízos de conhecimento (objetivos).
Mas, coloca-se a questão: como evita Kant o subjetivismo radical? A sua
resposta é a seguinte: apesar de serem subjetivos, os juízos estéticos são
universais.
Com Isto Kant quer dizer que, idealmente, todos deviam ter o mesmo tipo de
sentimento ao percecionar as mesmas coisas e o que leva as pessoas a divergirem
nos seus sentimentos é o facto de as condições de apreciação variarem: uns
observam o mesmo objeto sob luz intensa e outros sob luz fraca; uns observam-no
cansados e outros bem despertos; uns observam-no de um ângulo e outros de um outro
ângulo; uns observam-no bem-dispostos e outros observam-no mal dispostos; uns
observam-no quando estão com pressa e outros observam-no com vagar, e assim por
diante. Assim, diz-nos Kant, se as condições fossem exatamente as mesmas não
haveria divergência de gostos, pois as nossas faculdades, incluindo a faculdade do
gosto, funcionam de forma idêntica em todos.

146
DUAS OBJEÇÕES (CRÍTICAS) AO SUBJETIVISMO

As objeções ao subjetivismo radical são tão fortes que, tal como já foi afirmado
neste capítulo, praticamente nenhum filósofo defende essa perspetiva. Aliás, temos que
admitir que se o subjetivismo radical vingasse, não existiriam críticos de arte nem as
obras de arte seriam alvo de qualquer tipo de avaliação ou crítica, pois, seria tudo tão
subjetivo que não haveria sequer troca de impressões, de opiniões, de pontos de
vista DIFERENTES, ficando cada sujeito fechado em si mesmo e, por conseguinte,
naquilo que entenderia ser o seu gosto pessoal.

Eis duas objeções ao subjetivismo em geral:

- a primeira objeção é que, se o subjetivista tiver razão, sempre que proferimos


juízos estéticos, limitamo-nos a falar de nós próprios e não das coisas (esta é a
objeção de que se o subjetivismo for verdadeiro, então, os juízos serão
autobiográficos). Isto porque, de acordo com o subjetivista, dizer “X é belo” é a mesma
coisa que dizer “Gosto de X” e nada mais. Assim, limitamo-nos a falar das nossas
preferências e gostos pessoais acerca de X e não propriamente de X. Nesse sentido,
quando Rafaela diz que Londres é uma cidade bonita e Rodrigo diz que Londres não é
uma cidade bonita, não estão a falar da mesma coisa, pois, ao contrário do que parece,
cada um está a falar das suas preferências, ou seja, de si próprio (e não propriamente
de Londres). Ora, isto não é muito aceitável.

- a segunda objeção é que tanto David Hume como Immanuel Kant têm de
recorrer a algo diferente do que sentimos para explicar porque razão os gostos não
são arbitrários, isto é, não são ao acaso e, por conseguinte, não são assim tão
variáveis de sujeito para sujeito (esta é a objeção de que o subjetivismo não explica
o que precisa de ser explicado, ou seja, por que razão gostamos do que
gostamos?). Hume responde dizendo que é o PADRÃO DO GOSTO e Kant responde
dizendo que é a UNIVERSALIDADE DOS JUÍZOS ESTÉTICOS.
No fundo, tanto um como outro defendem a ideia de que as nossas
capacidades acabam, de certo modo, por funcionar de maneira semelhante em todos
nós. Mas não seria mais simples admitir que os próprios objetos têm certas
caraterísticas capazes de despertar prazer quando os observamos? Por que razão
se exclui que o prazer que sentimos é causado pela beleza que está nos próprios
objetos? Ora, não basta dizer que sentimos prazer quando apreciamos certas
coisas; é preciso explicar também por que razão sentimos esse prazer, ou seja, POR
QUE RAZÃO GOSTAMOS DO QUE GOSTAMOS? E é precisamente isto que, de acordo

147
com os seus críticos, os subjetivistas (mesmo os mais moderados) deixam por
explicar…

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga subjetivismo moderado de subjetivismo radical.

2. O que é o padrão do gosto?

3. O que é a delicadeza (ou requinte) do gosto?

4. Como distingue Kant os juízos estéticos dos juízos de conhecimento?

5. Como evita Kant o subjetivismo radical?

6. Será que existe mau e bom gosto? Justifique e dê exemplos.

OBJETIVISMO ESTÉTICO

Os objetivistas argumentam que têm uma solução simples para os problemas


que acabámos de apontar ao subjetivismo. Qual?

É BELO PORQUE GOSTO OU GOSTO PORQUE É BELO?

Se uma coisa nos parece bonita, é perfeitamente natural que gostemos de a


apreciar, defendem os objetivistas. Contudo, o que carateriza o subjetivismo não é a
tese de que gostamos do que é belo. Não é preciso ser subjetivista para se concordar
com isso. O que carateriza o subjetivismo é a tese mais forte de que ao dizermos “X é
belo” estamos apenas dizer que “Gostamos de X” – assim, a beleza é apenas uma
questão de gosto e o gosto reside no sujeito, não no objeto. Ou dito de outro modo, é
o sentimento do sujeito que determina se uma coisa é bela ou não.

148
Ora, defender que um dado objeto é belo porque gosto dele (subjetivismo) é
muito diferente de defender que gosto dele porque é belo (objetivismo).
Assim, esta “luta” entre subjetivistas e objetivistas pode resumir-se a estes dois
exemplos/afirmações:

1. A paisagem do vale do Douro é bela porque gosto dela.

2. Gosto da paisagem do vale do Douro porque é bela.

Em ambas as afirmações se fala do gosto, mas uma e outra afirmam coisas


diferentes.
Os subjetivistas defendem que a afirmação correta é: “A paisagem do vale do
Douro é bela porque gosto dela”, pondo a tónica no sujeito (do latim, subjectum), ao
passo que os objetivistas defendem que a afirmação correta é: “Gosto da paisagem do
vale do Douro porque é bela”, pondo a tónica no objeto (do latim, objectum).
Os objetivistas alegam que do facto de gostarmos de uma coisa não se segue,
forçosamente, que ela seja bela (só porque gostamos dela) – gostar de algo e esse
algo ser belo só porque gostamos dele são coisas diferentes, isto é, uma coisa é
gostar de algo e outra coisa é esse algo ser belo. Só assim se compreende que,
quando dizemos que algo é belo, não estejamos simplesmente a falar de nós próprios,
pois não são os nossos sentimentos ou preferências pessoais que estão em causa
– é a própria beleza das coisas que está em causa. O facto de gostarmos de algo
acaba, assim, por não servir para explicar grande coisa, até porque os subjetivistas
teriam ainda que explicar porque razão gostamos de certas coisas e não de outras.
Será que é por acaso? Será que é porque calha?
GOSTO PORQUE É BELO (OBJETIVISMO ESTÉTICO)

O objetivista considera que não pode ser por acaso que gostamos de umas
coisas e de outras não. A razão de gostarmos de certas coisas é, segundo o objetivista
bastante simples: gostamos delas precisamente por serem belas. Afirmar que certas
coisas são belas é reconhecer nelas certas caraterísticas que nos levam a sentir
prazer ao observá-las. Ao observar algo não temos prazer só porque “calha”, mas
porque algo nas coisas nos fez ter prazer.
Se a beleza das coisas dependesse, como diz o subjetivista, do prazer que
sentimos ao percecioná-las, então aquelas só passariam a ser belas depois de
começarmos a gostar delas.
Por exemplo, a canção Fix you, dos Coldplay, foi gravada em 2005, mas a
Carolina só ontem a ouviu e sentiu prazer nisso, achando-a uma música muito bonita.

149
Ora, se os subjectivistas tivessem razão, seria correto a Carolina dizer que até ontem
aquela música não era bonita. E se o Rui deixar de gostar de ouvir a canção Bad Liar, dos
Imagine Dragons, que ainda há pouco tempo lhe dava tanto prazer ouvir, isso significa
que, para ele, a canção deixou de ser de ser bonita? Como as pessoas estão
constantemente a gostar e a deixar de gostar das mesmas coisas, segue-se que
essas mesmas coisas estão constantemente a ser bonitas e a deixar de o ser? Mas
isto não é lá muito razoável, dirá o objetivista.
Nem sequer serve de muito dizer que há um padrão do gosto (como disse David
Hume) ou que a faculdade do gosto funciona de modo muito semelhante em todas as
pessoas (como afirmou Kant), pois voltaríamos ao mesmo problema: como se explica a
existência do padrão do gosto e o que significa isso de o gosto funcionar de forma
semelhante em todos nós?
A resposta/explicação do objetivista é, novamente, a seguinte: nada poderia
explicar tal coisa a não ser o facto de os objetos terem propriedades que nos fazem
gostar deles, ou seja, a beleza está nos próprios objetos, portanto, é objetiva.

A BELEZA É COISA QUE SE VEJA?

Uma das objeções ao objetivismo é a seguinte: se a beleza está nas próprias


coisas, por que razão as pessoas discordam na apreciação de certos objetos? Uma
primeira resposta dos objetivistas a isto é que há muitos casos em que as
divergências não são assim tão grandes (por exemplo, quase todas as pessoas
concordam que o vale do Douro é bonito) e que divergências de opinião até na ciência
existem (por exemplo, há cientistas que dizem ser muito provável haver extraterrestres e
outros que dizem ser muito improvável). Mas, para os críticos do objetivismo, esta não
é uma resposta inteiramente satisfatória, argumentando que há muitos casos de
juízos científicos em relação aos quais praticamente todos os cientistas estão de
acordo ou em que o grau de consenso é muito elevado, algo que já não se verifica
em relação aos juízos estéticos, visto que, aqui, o consenso (acordo comum) está
muito longe de existir.
Uma outra objeção ao objetivismo é sublinhar que as propriedades que tornam
um dado objeto belo (as propriedades estéticas), embora resultem de propriedades
físicas, não são físicas – as propriedades físicas (também chamadas propriedades de
primeira ordem) de um quadro são, por exemplo, ser feito de tecido ou papel, ter um
ou dois metros de largura, ter manchas brancas ou vermelhas, ter linhas curvas ou
retas, ser pintado a óleo ou a aguarela, etc. Já as propriedades estéticas (também

150
chamadas propriedades de segunda ordem), que contribuem para a beleza de um
quadro, são de outro tipo, como, por exemplo, a harmonia e a elegância (das cores e
das formas), o vigor (das pinceladas), etc. – a ideia é a de que, como a beleza não se
identifica diretamente com as propriedades físicas (embora resulte delas), detetá-las
exige, muitas vezes, uma informação prévia e uma observação cuidada por parte de
quem se detém a apreciar uma obra de arte, o que acentua a importância do papel
do sujeito nesta experiência (subjetiva).
Assim, defendem, os subjetivistas, tal como só um médico é capaz de, graças a
um treino especializado e a uma observação atenta, olhar para uma radiografia dos
pulmões e detetar a presença de lesões recentes, também só alguém que teve formação
adequada na área artística será capaz de interpretar, explicar e criticar uma obra de arte.
Consequentemente, tal como há situações em que o próprio médico aponta para as
manchas que aparecem na radiografia, dizendo-nos que está ali uma infeção e nós não
vemos senão manchas indefinidas, também há situações em que a beleza numa obra de
arte/objeto estético não é imediatamente observável, mesmo que ela até esteja lá à vista,
necessitando, pois, da sensibilidade/formação/capacidade crítica e interpretativa do
sujeito que sobre ela se debruça.
Mas os objetivistas contrapõem dizendo que esta comparação não é correta,
pois, segundo eles, os próprios especialistas em arte (os estetas, os que perseguem a
beleza) divergem muitas vezes nas suas opiniões/apreciações/críticas, bem como
os próprios médicos, que também podem divergir quanto a determinadas
observações e diagnósticos, chegando mesmo a pedir com alguma frequência
pareceres de outros médicos e a recorrer a outros métodos de observação
complementares (por exemplo, não raras vezes, os médicos divergem quanto à correta
interpretação de uma radiografia dos pulmões e, por isso, não raras vezes, também,
pedem uma terceira opinião e recorrem a outro tipo de análises). Assim, concluem os
objetivistas, tal como a existência das doenças, eventualmente detetadas num
determinado exame, análise ou outra forma qualquer de diagnóstico, não depende
da opinião do médico, também a beleza de um determinado objeto estético não
depende da opinião de cada um, ou seja, a resposta do objetivista é que o facto de
não ser fácil detetar a beleza nas coisas, não significa que ela não esteja
efetivamente lá (caso sejam mesmo belas), tal como acontece com a deteção de
algumas doenças.

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ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explique a diferença que existe entre “Gosto disto porque é belo.” e “Isto é
belo porque gosto disto.”

2. Que razões apresentam os objetivistas para concluir que a beleza é objetiva?

3. O que são as propriedades estéticas? Dê exemplos.

4. Como explicam os objetivistas os desacordos sobre questões estéticas?

5. “A beleza está nas coisas belas, só que algumas pessoas não a conseguem ver
lá.” Concorda ou não com a afirmação? Justifique.

O QUE É A ARTE?

APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
(O PROBLEMA DA DEFINIÇÃO DE ARTE)

À primeira vista, poderá parecer uma perda de tempo perguntar o que é a arte e
darmo-nos ao trabalho de filosofar acerca das obras de arte, pois quase todos nós
somos perfeitamente capazes de dar exemplos claros de coisas que são arte e de outras
que não o são.
Eis uma pequena lista de coisas que todos concordamos serem arte e de outras
que todos reconhecemos não o serem:
- A escultura O Beijo, de Rodin, é arte. Mas a cadeira em que o Guilherme se
senta na sala de aula não é arte.
152
- O quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, é arte. Mas a fotografia que o Duarte
tirou para o cartão de estudante não é.
- O Palácio da Bolsa do Porto é arte. Mas os lavatórios públicos do mesmo
palácio não são arte.
- A obra Os Lusíadas, de Luís de Camões, é arte. Mas as cartas de amor do João
para a Rita não são arte.
- O Requiem (sinfonia), de Mozart, é arte. Mas o toque da sirene do quartel dos
Bombeiros Voluntários não é arte.
- O quadro O Ensaio de Dança, de Edgar Degas, é arte. Mas o esquema que o
senhor António fez num papel para explicar ao filho como pode ir de Marco de
Canaveses ao Porto pela estrada nacional não é arte.

Mas será que esta lista mostra não haver grandes problemas com a compreensão
da noção de arte? A noção de arte aplica-se a um conjunto muito vasto e
diversificado de coisas: pinturas, esculturas, edifícios (arquitetura), peças musicais e
canções, peças de dança e de teatro, filmes, obras literárias, fotografias, etc. Se tivermos
isto em mente, talvez os exemplos acima dados ainda não consigam dar-nos uma ideia
suficientemente precisa do que é e do que não é arte…
Ao refletirmos sobre alguns dos objetos que estão expostos nas mais conceituadas
Galerias de Arte do mundo, somos levados a perguntar: mas isto é arte? É que se nelas,
há, por exemplo, uma cadeira Zig Zag, de Gerrit Rietveld, que faz parte de conhecidas
coleções de arte contemporânea, uma foto da cantora Patti Smith, tirada por Robert
Mapplethorpe, exibida em museus e galerias de arte, e até um urinol invertido, intitulado
Fonte, de Marcel Duchamp, que são consideradas arte, porque não hão-de também ser
arte a cadeira onde o Guilherme se senta, a fotografia do Duarte e os lavatórios do
Norte Shopping?
Qual é, afinal, a diferença?
O que têm em comum todas as obras de arte que nos permite afirmar que são
mesmo obras de arte e, ao mesmo tempo, distingui-las do que não é arte?
Ao fazermos estas perguntas, estamos a questionar a própria noção de arte. E é
para responder a tais perguntas que precisamos de uma boa definição de arte! Vários
filósofos têm enfrentado o problema, apresentando definições explícitas de arte, mas,
definir explicitamente a arte implica identificar as condições necessárias para algo
ser arte (as caraterísticas que são exclusivas à arte, que identificam o que é a arte e que

153
são comuns a tudo o que é considerado arte) e as condições suficientes para algo ser
arte (as caraterísticas que só o que é arte tem).
Assim, para que cheguemos com sucesso a uma definição de arte, impõe-se que
articulemos, precisamente, o problema da definição da arte com a tarefa de
explicitação das ideias que defendem, cada uma a seu modo, que a arte é imitação,
que a arte é expressão e que a arte é forma, o que nos remete para o que se passou a
designar por teorias essencialistas da arte.
Porém, antes da abordagem dessas teorias, atentemos numa breve
CLASSIFICAÇÃO DAS ARTES:
- Artes visuais (inclui todas as artes que dependem ou estão sujeitas às nossas
perceções visuais) – pintura, escultura, desenho, fotografia, tapeçaria, cerâmica…
- Arte sonora – a música, o canto…
- Literatura – a poesia e o romance são os mais importantes.
- Artes mistas (artes que combinam diferentes meios) – cinema, ópera, teatro,
dança…
- Arquitetura – esta é uma arte à parte que combina o aspeto visual (design), a
história (a época e o contexto cultural), a economia (relação custo-benefício relacionada
com níveis de conforto, de qualidade de vida e de bem-estar), a geografia/paisagem
(enquadramento harmonioso no local, tendo em conta o contexto geográfico e climático;
por exemplo, o Douro) e o ambiente/ecologia (impacto ambiental, aproveitamento dos
recursos naturais e sustentabilidade).

Obs.: as artes também se podem dividir entre as performativas (as que se destinam a ser,
geralmente, executadas em público), como a música, o cinema, o teatro, a dança, e as não performativas
(que, por norma, não são executadas em público, salvo algumas exceções), como a pintura, a escultura, o
romance e a arquitetura.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Dê exemplos de objetos ou acontecimentos que são considerados arte.

2. Dê exemplos de objetos ou acontecimentos que não são considerados


arte.

3. Dê exemplos de objetos ou acontecimentos cuja classificação é


duvidosa/polémica.

4. Um “belo” pôr do Sol poderá ser considerado arte? Justifique.

154
Fonte, de Marcel Duchamp, 1917

TEORIAS ESSENCIALISTAS DA ARTE


(A ARTE COMO IMITAÇÃO, COMO REPRESENTAÇÃO, COMO EXPRESSÃO E COMO FORMA)

TEORIA DA ARTE COMO IMITAÇÃO

Os filósofos gregos Platão (427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.) foram dos
primeiros a pensar sobre a natureza da arte e ambos defendiam que a arte é imitação
ou mimese (palavra portuguesa que tem origem na palavra grega mimesis, que, numa
primeira análise, significa imitação, mas que, em rigor, se aproxima mais do que hoje
entendemos por representação).

155
Platão pensava que toda a arte é imitação e que, por ser imitação, era digna de
censura, pois, este filósofo acreditava que as imitações, ao substituírem o modelo original
(a realidade) por meras cópias, inevitavelmente, acabavam por nos afastar da realidade,
da verdade e, consequentemente, do conhecimento.
Aristóteles, contudo, pensava que as pessoas podiam aprender com as imitações
(podiam aprender, por exemplo, a lidar melhor com as emoções) e, em vez de censurar a
arte, tentou antes classificar e caracterizar os diferentes tipos de imitação. A ideia de
Aristóteles era mostrar que diferentes artes imitam coisas diferentes ou de maneiras
diferentes: a poesia e o teatro imitam ações humanas, só que a poesia fá-lo por meio da
descrição narrativa e o teatro por meio de atores; já a dança imita a ação humana por
meio do gesto, ao passo que a música o faz por meio do som. Seja o que for e de que
maneira for, todas as artes têm em comum o imitar algo.
Esta ideia foi aceite durante séculos, tanto que os próprios artistas procuravam
sempre imitar algo quando criavam as suas obras. A arte era encarada como um reflexo
da natureza e a melhor imitação era normalmente mais digna de admiração.
Esta teoria, apesar de muito antiga, continua a ser muito popular (basta lembrar
que quando, por exemplo, alguém declara que um dado quadro não merece ser
considerado arte por nem sequer se perceber acerca do que é, essa pessoa está
implicitamente a dizer que, para ser arte, o quadro deveria, de algum modo, imitar algo.
A tese que caracteriza a teoria da arte como imitação é a seguinte: tudo o que é
arte imita algo.
Como se pode verificar, não se trata de uma definição da arte, pois não se
apresenta as condições necessárias e suficientes para X ser arte; apenas se afirma
que tudo o que é arte imita algo, mas não que tudo o que imita algo é arte. Como
seria de esperar, tanto Platão como Aristóteles sabiam perfeitamente que há imitações
que não são arte: um homem que imita um macaco não está, desse modo, a fazer arte.
Não é, pois, suficiente haver imitação para haver arte. Mas isso não impede os
defensores desta teoria de insistirem que a imitação é uma característica necessária
da arte: se não houver imitação não há arte.
Mas será que a imitação é mesmo uma condição necessária da arte?

CRÍTICAS/OBJEÇÕES À TEORIA DA ARTE COMO IMITAÇÃO

A melhor maneira de nos certificarmos se uma dada característica é mesmo uma


condição necessária de alguma coisa é ver se conseguimos encontrar contra-exemplos
claros. Neste caso, temos de ver se há exemplos que contrariam a ideia de que tudo

156
o que é arte imita algo. Para isso, basta encontrar um objeto que não imite seja o
que for e que seja classificado como arte.
Ora, não é preciso procurar muito para encontrar, não apenas um, mas vários
exemplos que contrariam a teoria de que a arte é imitação. A não ser que recusemos o
estatuto de arte a muitos quadros e esculturas exibidas em museus e galerias,
dificilmente poderemos concordar que a imitação é necessária à arte. Milhares de
obras de arte abstrata e de peças de música instrumental, as quais não imitam seja o que
for, refutam (contrariam) a tese de que toda a arte imita algo. Se a imitação fosse uma
condição necessária para algo ser arte, então, uma obra tão conhecida como Fonte, de
Marcel Duchamp, não seria arte, pois não imita um urinol: é um urinol. Mas isso
contraria o que parece estar firmemente estabelecido.
A teoria da imitação só pareceu boa durante tanto tempo porque os próprios
artistas a aceitaram como verdadeira durante séculos, criando obras que procuravam, de
facto, imitar algo. Daí que não fosse fácil encontrar contra-exemplos que toda a gente
aceitasse até ao momento em que os artistas começaram a deixar de se preocupar com
imitações.

TEORIA DA ARTE COMO REPRESENTAÇÃO

Alguns filósofos pensam, contudo, que a teoria da imitação pode ser


aperfeiçoada para resistir a contra-exemplos como os anteriores. Assim, em vez de
imitação, seria mais correto falar antes de representação, uma vez que a imitação é
apenas um modo de representação: apesar de todas as imitações serem
representações, nem todas as representações são imitações. Por exemplo, a palavra
“gato”, a imagem de um dragão azul e a estrela de três pontas representam,
respetivamente, um gato qualquer, a instituição desportiva Futebol Clube do Porto e a
marca de automóveis Mercedes, mas nenhum deles imita tais coisas, isto é, são
representações que não são imitações. A tese reformulada passa, então, a ser a
seguinte: tudo o que é arte representa algo.
Dado que o conceito de representação é mais abrangente que o de imitação, é
possível aplicar o conceito de arte a coisas que a teoria da imitação excluía,
nomeadamente, as obras de música instrumental e pinturas de arte abstrata que não
imitam seja o que for. O artista Wassily Kandinsky (artista plástico russo, professor da
Bauhaus e introdutor da abstração no campo das artes visuais. Apesar da origem russa,
adquiriu a nacionalidade alemã autor das primeiras pinturas abstratas), dizia que as
manchas, linhas e cores dos seus quadros representavam coisas como a morte, a dor

157
e a vida, apesar de não imitarem coisa nenhuma. E até se pode argumentar que uma
obra como Fonte (o famoso urinol em porcelana), de Marcel Duchamp, representa algo,
legitimando a ideia de que qualquer objeto pode ser arte.

CRÍTICAS/OBJEÇÕES À TEORIA DA REPRESENTAÇÃO

Ainda assim, esta nova versão da teoria da imitação, que aponta mais para a
representação, não parece imune a contra-exemplos, pois continua a haver pinturas
abstratas que dificilmente se consegue mostrar que representam algo. Há pinturas
monocromáticas (com a tela totalmente pintada com uma só cor), por exemplo, muitas
das pinturas Yves Klein (artista francês e é considerado uma figura importante da arte
europeia após a Segunda Guerra Mundial), e outras pinturas abstratas geométricas que
são concebidas para provocarem em nós um certo tipo de experiências visuais, como é o
caso dos jogos de cores e formas da OpArt (arte ótica), por exemplo, as obras de
Vasarely (pintor e escultor húngaro radicado na França considerado o "pai da OP ART"),
que procuram simplesmente estimular a nossa perceção visual. Obras como estas nada
representam, de acordo com os seus próprios autores. O mesmo se pode dizer de
alguma música instrumental, como a chamada música minimal repetitiva, por exemplo,
Drumming de Steve Reich (considerado um dos mais importantes compositores da
música minimalista e da música modalista), muita da qual pretende apenas criar certos
efeitos auditivamente interessantes no ouvinte. Há também importantes obras de
arquitetura, como a Casa da Cascata do conhecido arquiteto Frank Lloyd Wright (cujas
fotos mais conhecidas são da autoria do fotógrafo Harold Corsini), que ninguém diria
representar algo. Parece, pois, que a teoria da representação acaba por não incluir
tudo o que desejaríamos que incluísse para se tornar aceitável.
Porém, é verdade que muita arte imita e/ou representa algo.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. A teoria da imitação apresenta uma definição de arte? Justifique.

2. Explicite a diferença entre imitação e representação. Dê exemplos.


3. Dê um exemplo, diferente dos apresentados, de uma coisa que represente
mas não imite algo.

4. “Se a imitação fosse importante na arte, então a fotografia seria a mais


importante das artes.” Concorda com a afirmação? Justifique.

158
5. Sabendo nós que os dragões não existem, será correto afirmar que o
desenho de um dragão imita mesmo um dragão? Justifique.

TEORIA EXPRESSIVISTA
(A ARTE COMO EXPRESSÃO)

O verdadeiro artista é uma pessoa que, debatendo-se com o problema de expressar uma
certa emoção, diz: quero tornar isto claro!
R. G. Collingwood

Vimos que a teoria da imitação encarava a arte como um reflexo da natureza.


Platão chegou mesmo a brincar com a ideia, dizendo que mais valia os artistas andarem

159
com uma espécie de espelho e colocá-lo diante das coisas do que perder tempo a pintá-
las. A arte estava, pois, centrada nos objetos e devia captar corretamente as suas
caraterísticas resumindo-se a uma mera cópia ou reprodução fiel da realidade.
Ora, esta forma de ver as coisas começou a ser posta em causa nos finais do
século XVIII, com o início do movimento romântico (Romantismo). Poetas, pintores,
escritores e músicos começaram a utilizar a arte como forma de expressão das
suas experiências individuais. Em vez de mostrarem a natureza que os rodeava,
estavam mais interessados em exprimir nas suas obras o seu universo interior. A arte
tornou-se um veículo para exprimir emoções, deixando de ser um espelho da natureza
para se tornar uma forma de exteriorização das vivências internas do artista. Os
artistas deixaram de representar objetos ou acontecimentos e passaram a exprimir
estados de alma (sentimentos ou emoções) – por exemplo, a pintura de uma flor não
pretende representar a flor, mas antes exprimir o sentimento do artista perante a flor. Os
românticos defendiam que a tentativa de descrever objetivamente a natureza é tarefa da
ciência, que parecia estar a ter bastante sucesso na altura. Ao invés, o interesse da arte
reside no interior e não no exterior do sujeito. Segundo os românticos, esta
caraterística (o interesse pelo interior) confere mais valor à arte porque consegue
mostrar uma realidade que escapa à ciência: o nosso universo emocional. A noção
romântica da arte como expressão de emoções ou sentimentos tornou-se
amplamente aceite e continua a ser partilhada por muitas pessoas, senão mesmo
pela maioria. Esta perspetiva está bem patente quando alguém afirma que uma dada
canção não é arte, alegando não haver nela qualquer emoção; ou quando se diz que um
dado poema não tem qualquer interesse artístico por não conseguir transmitir-nos seja o
que for; ou ainda quando se diz que um dado quadro não tem interesse por não ter
“chama”.
Há diferentes versões da teoria expressivista, sendo as mais conhecidas a do
romancista e ensaísta russo Tolstoi (1828-1910) e a do filósofo britânico Collingwood
(1889-1943). Vejamos, em traços largos, cada uma delas:
TOLSTOI: A ARTE COMO TRANSMISSÃO DE EMOÇÕES

Tolstoi defende que a arte surge quando alguém recorre a certas “indicações,
manifestações ou produções externas” (das mais variadas maneiras) para exprimir
sentimentos que quer partilhar com outras pessoas, unindo-se desse modo a elas.
Isto significa que não há arte se não houver expressão de sentimentos ou se tais
sentimentos não contagiarem outras pessoas. Tolstoi defende, portanto, que a arte é
uma forma de comunicação ou de transmissão de sentimentos: o artista (emissor)
160
comunica ao público (recetor) o que realmente sente no ato de criação (mensagem),
de modo que os mesmos sentimentos sejam, por meio da obra (veículo de
transmissão), partilhados por todos. Para que haja verdadeira comunicação, os
sentimentos do artista, não só têm de ser autênticos (sinceros, convictos, fortes),
como os que o público sente têm de ser os mesmos que o artista sentiu.
É certo que há formas de comunicação que não são arte como, por exemplo, uma
notícia de jornal. A diferença é que na arte se expressam sentimentos e não outra
coisa qualquer, constituindo isso um meio de unir as pessoas (através desses
sentimentos). E também é verdade que há casos de expressão de sentimentos que não
são arte: por exemplo, quando alguém chora de tristeza está a exprimir sentimentos, de
forma espontânea, e não a fazer arte. Daí que Tolstoi acrescente que não se trata
simplesmente de exprimir sentimentos, mas da expressão intencional e clarificadora
desses mesmos sentimentos (normalmente, uma pessoa quando chora de tristeza, está
a exprimir sentimentos mas não de forma intencional ou artificial).

A expressão, segundo Tolstoi, envolve, então, os seguintes aspetos:

1. O artista tem de sentir algo, caso contrário, não há sentimento algum para
exprimir;

2. O público tem de sentir algo, e esse sentimento tem de ser o mesmo que o
artista sentiu, caso contrário, não há verdadeira comunicação de sentimentos;

3. Tem de haver autenticidade da parte do artista, pois não há verdadeira


expressão se os sentimentos do artista não forem autênticos (os que ele realmente
sentiu);

4. O artista tem de ter a intenção de provocar sentimentos particulares, isto é,


sentimentos que só o artista começou por ter e não sentimentos gerais, como a tristeza
ou a alegria, pois a criação artística não é algo que acontece por acaso nem comunica
generalidades;

5. O artista deve procurar clarificar os sentimentos expressos, trabalhando-os para


encontrar a forma adequada de os transmitir, em vez de os apresentar de forma confusa e
tal qual lhe surgem. É isto que torna a arte eficaz, dando-lhe o poder de contagiar as
pessoas de forma a uni-las nos mesmos sentimentos.

COLLINGWOOD: A ARTE COMO EXPRESSÃO IMAGINATIVA

Collingwood também considera que a arte é expressão de sentimentos. Só que,


para este filósofo da arte, o artista começa por nem sequer ter uma ideia precisa do

161
que sente. Assim, a função da arte é clarificar, através da sua expressão,
sentimentos indefinidos do artista, que ele começa por nem sequer saber
identificar. Para isso, o artista recorre à imaginação, procurando fazer luz sobre
sentimentos que lhe surgem em estado bruto – isto é, de forma confusa e imprecisa.
Precisamente porque os sentimentos começam por ser confusos e imprecisos é que
exigem ser clarificados.
Ora, a clarificação de sentimentos é algo que se encontra apenas na
verdadeira arte, a que Collingwood chama “arte propriamente dita” ou “arte
autêntica” para a distinguir dos ofícios que são atividades como o artesanato ou as artes
meramente decorativas, propagandísticas ou de mero entretenimento. A falsa arte, como
o mero entretenimento e o artesanato (muitas vezes confundidos com a verdadeira
arte), não visa a clarificação de estados emocionais individuais do artista. Isto
porque, ao passo que o artista não obedece a qualquer plano definido, pois começa
por nem sequer ter bem consciência de que sentimentos se trata (já que surgem de
forma espontânea e intuitiva), o mero artesão e o entertainer limitam-se a executar um
plano preestabelecido. Quer isto dizer que o verdadeiro artista, recorrendo à sua
imaginação criativa, nunca sabe de antemão onde o pode levar tal processo de
clarificação, processo este que pode nem sequer resultar na produção de obras de
arte/objetos estéticos (pinturas, esculturas, peças musicais, poemas, etc.).
Normalmente, essa experiência imaginativa do artista materializa-se em
pinturas, esculturas, músicas, etc., mas também pode existir apenas na mente do
artista, sem se manifestar ou clarificar. Isto significa que o processo criativo não é
algo essencialmente manual ou corporal (técnico), mas mental (genial). Envolver-se
nesse processo é tomar gradualmente consciência dos sentimentos que estão a ser
expressos, o que tanto vale para o criador (emissor) como para o observador (recetor).
Sendo assim, apreciar uma obra de arte não é algo meramente passivo. O próprio
observador participa nessa experiência imaginativa de clarificação emocional.
Podemos agora ver que tanto a versão de Tolstoi como a de Collingwood
convergem no seguinte:
A arte é expressão clarificadora de emoções.
Desta vez, estamos perante uma definição explícita de arte, que se poderia
formular desta forma: X é arte se, e somente se, expressar emoções de forma
clarificadora. Mas será esta uma boa definição?

CRÍTICAS/OBJEÇÕES ÀS TEORIAS EXPRESSIVISTAS

162
Ambas as versões da teoria expressivista partilham a ideia de que para haver
arte o artista tem de sentir o que exprime. Ora, isto significa que, por exemplo, os
atores de uma peça de teatro ou de um filme não estão a fazer arte, pois é muito
improvável que sintam todos os sentimentos que procuram exprimir:um ator que
representa o papel de alguém triste não tem, ele próprio, de estar triste. E algo
semelhante se poderia dizer de obras de arte coletivas, como, por exemplo,na
execução de uma obra musical para orquestra, na qual podem intervir mais de uma
centena de executantes.Parece, pois, muitíssimo improvávelque todos os artistas
sintam tristeza quando criam obras consideradas tristes e alegria quando criam
obras consideradas alegres. Exigir tal coisa implicaria excluir do domínio da arte
numerosas obras que são geralmente aceites/classificadas como arte.
Além disso, dado que muitas vezes não sabemos realmente o que o artista
pensou ou sentiu – é frequentemente o caso de artistas desaparecidos há séculos e
também de autores anónimos – também não poderíamos dizer se as suas criações
são verdadeiras obras de arte, o que é difícil de aceitar.
Outra dificuldade das teorias expressivistas é que elas levam a excluir do
âmbito da arte grandes obras destinadas sobretudo a divertir, como algumas
comédias, entre as quais se encontram várias obras de Shakespeare, de Molière e os
filmes de Charlie Chaplin – de acordo com esta posição, tanto Tolstoi como
Collingwoodrejeitaram algumas obras conhecidas aceites pela maioria das pessoas
como obras de arte, dizendo que não tinham valor, como foi o caso de algumasobras
de Beethoven, considerando-as demasiado efusivas ouexpansivas.
Há ainda a ideia de que o artista clarifica emoções, a qual parece ser
contrariada por muitos artistas reconhecidos, os quais afirmam que procuram nas
suas obras transmitir sentimentos em estado bruto, seguindo o primeiro impulso e
sem qualquer tipo de trabalho de clarificação.
Não há dúvida de que a teoria expressivista realça a nossa profunda ligação
emocional à arte e a ideia generalizada de quepara se compreender a arte tem de se
ser uma pessoa sensível, mas, ainda assim, convirá lembrar que, como última objeção
que aqui se deixa relativamente à teoria expressivista da arte ou da arte como
expressão, apesar de haver muita arte expressiva, também há muita que não o é.
No âmbito desta problemática da arte como expressão de sentimentos, podemos, por
exemplo, questionar se a poesia é expressão de emoções e, adensando ainda mais
complexidade da questão, atentar no genial poema que segue, da autoria de Fernando Pessoa:

Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
163
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa, 27/11/1930

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explique em que contexto surgiu a teoria expressivista da arte (ou da arte


como expressão).

2. O que defendem os partidários das teorias expressivistas da arte?

3. Em que consiste a clarificação de emoções?

4. O que distingue, de acordo com Collingwood, a falsa arte da verdadeira arte?


5. Apresente de modo sucinto as críticas/objecções feitas às teorias
expressivistas.

TEORIA FORMALISTA
(A ARTE COMO FORMA)

Podemos, então, dispensar de uma vez por todas a ideia de semelhança com a natureza,
da correção e incorreção como um teste, e considerar apenas se os elementos emocionais
inerentes à forma natural foram adequadamente descobertos.
Roger Fry

O início do século XX foi um período de grande revolução nas artes,


principalmente na pintura. Foi a altura em que surgiu a arte moderna. A pintura

164
moderna chega a opor-se radicalmente à ideia de representação (no sentido de
imitação, reprodução ou cópia fiel). Representar o mundo exterior era uma coisa que a
fotografia fazia perfeitamente, pelo que alguns pintores acharam que deviam procurar
novos caminhos e abandonar a representação. Um dos caminhos foi explorar as
possibilidades de composição, através da organização puramente visual de cores, linhas
e formas. A pintura abstrata começou a impor-se e com ela também a ideia da “pintura
pela pintura”, daí resultando um conjunto de obras completamente diferente do que era
habitual (os quadros de Wassily Kandinsky, servem de exemplo).
Foi neste contexto que Clive Bell (1881-1964), um conhecido crítico e filósofo da
arte, veio defender a chamada teoria formalista da arte, a que, por vezes, também se
chama “teoria de Bell-Fry”, uma vez que, além de CliveBell, o seu amigo, pintor e crítico
de arte Roger Fry (1866-1934, foi outro dos seus principais defensores. Na verdade,
ainda antes de Clive Bell, já o crítico musical austríaco EduardHanslick (1825-1904)
tinha defendido algo semelhante, mas apenas em relação à música (pode até recuar-se a
Kant, que, ao defender que a experiência estética se centra apenas na forma dos objetos,
lançou as bases do formalismo). Foi, contudo, no tempo de Clive Bell que a teoria
formalista da arte alcançou grande sucesso e veio a ser defendida por outros filósofos,
assim como por muitíssimos críticos de arte.
Quando o crítico de arte diz que determinado quadro revela uma grande unidade e
sentido de equilíbrio, ou quando o crítico musical elogia uma canção por conter uma
melodia simples, sóbria e elegante, tanto um como outro estão a destacar as
propriedades formais das referidas obras. Hanslick, por exemplo, insistia que a
música não tem sequer o poder de exprimir emoções, apesar de ter o poder de despertar
emoções nos ouvintes, o que são coisas muito diferentes. Tudo o que podemos encontrar
na música é o desenvolvimento de certas ideias musicais relativas à melodia, à harmonia,
ao ritmo e aos timbres sonoros. O conteúdo da música é, diz Hanslick, estritamente
musical: são “formas sonoras em movimento”. Por isso é inútil procurar na música
qualquer mensagem ou qualquer ideia não musical.
Daí que, nesta perspetiva (formalista)a apreciação musical se centre
exclusivamente no jogo entre as propriedades formais das obras e que procurar
algo mais do que isso é encará-las, não como objetos estéticos, mas como
curiosidades históricas, sociológicas, etc.

CLIVE BELL E A EMOÇÃO ESTÉTICA

165
Clive Bell centra-se mais no caso da pintura, embora a ideia principal da arte
como forma se mantenha dentro daquilo que são as linhas gerais da teoria formalista.
Procura, contudo, esclarecer a relação especial que, na sua opinião, existe entre as
propriedades formais das obras de arte e a emoção que elas despertam em quem
as aprecia. Nesse sentido, este filósofo da arte considera que sabemos que estamos
perante uma obra de arte quando sentimos uma emoção peculiar (muito própria,
muito especial). Quer dizer, tudo começa com a experiência pessoal de alguém perante
algo que é arte: essa experiência é uma emoção estética.
Ao falar de emoção, Clive Bell, parece estar a aproximar-se da teoria
expressivista, que concebe a arte como expressão, mas não é assim – em primeiro lugar,
porque está a falar da emoção de quem (o recetor/espetador) está diante da obra de
arte, o que não significa que a própria arte exprima tal emoção; em segundo lugar, porque
essa emoção é única no seu género, pois, não se trata de algo como a alegria, a
esperança, a euforia ou outras emoções deste tipo, mas sim de uma emoção que só
a temos quando estamos perante uma obra de arte (emoção estética). Só que não
haveria qualquer emoção estética se não houvesse na própria obra de arte alguma
caraterística responsável por tal emoção – a questão está, pois, em saber que
caraterística é essa.
Clive Bell diz que para sentir emoção estética é preciso sensibilidade, mas que
também é preciso inteligência para detetar a caraterística da obra de arte que
desperta tal emoção – a caraterística que desperta em nós a emoção estética é
comum a todas as obras de arte e só nelas existe. Assim, identificar essa
caraterística é o mesmo que identificar a essência das obras de arte, pelo que ela é,
simultaneamente, condição necessária e suficiente da arte. Mas, insistindo na pergunta,
que caraterística é essa, afinal?
A resposta é: a caraterística que a obra de arte deve ter para despertar em nós
a emoção estética é a forma significante.
FORMA SIGNIFICANTE

Quando se está a falar de forma significante não se está a falar de uma forma
qualquer, uma vez que, precisamente, para a forma ser significante tem de se
destacar por si mesma. Se pensarmos na pintura, por exemplo, a forma é entendida
como a combinação de linhas e cores; na música, a forma é uma certa organização dos
sons; na dança a forma é a composição das figuras e movimentos…
Segundo esta perspetiva, um objeto tem forma significante quando é a própria
forma que nos chama à atenção e desperta o nosso interesse – um exemplo

166
esclarecedor deste aspeto é a escultura Pássaro no Espaço (da qual se apresenta
imagem mais à frente) do mais célebre escultor romeno e um dos principais nomes da
vanguarda moderna Constantin Brâncuși (1876-1957). Assim, se alterássemos aforma,
o objeto deixaria de ser digno de atenção e perderia o seu significado enquanto
objeto de apreciação (objeto estético).
Muitos objetos produzidos pelos seres humanos têm uma finalidade, e a sua forma
depende dessa finalidade: por exemplo, a forma de uma faca depende do facto de ela
servir para cortar. Já as obras de arte são criadas apenas com o único intuito de
exibir a sua forma, deixando-nos encantados… Por isso, as obras de arte, e só elas,
têm forma significante. Daí a definição: a arte é forma significante ou,
alternativamente, X é arte se, e só se, tiver forma significante.
Note-se que, na opinião do formalista, a pintura pode até representar as coisas
exteriores, mas ele defende que não é isso que faz dela arte.
Analisar esteticamente um quadro é, pensam os formalistas, realçar a
disposição das formas na tela, bem como a relação entre as linhas e a utilização
das cores, de modo a verificar se tudo isso se combina numa forma significante.
Mesmo que o quadro represente algo, o que representa é esteticamente irrelevante.
Aliás, quaisquer outras finalidades, além da simples exibição da sua forma são
irrelevantes. É por isso que, por exemplo, mesmo aqueles que não são religiosos estão
em condições de apreciar esteticamente música religiosa, pois, independentemente dos
fins da obra, o que interessa é a sua forma – que uma obra tenha fins religiosos, morais,
políticos ou outro é irrelevante para o formalista.
Esta teoria parece ter uma enorme vantagem em relação às anteriores: pode
incluir todo o tipo de obras de arte, inclusivamente obras que exemplifiquem
formas de arte ainda por inventar. Desde que provoque emoções estéticas,
qualquer objeto é arte, ficando assim ultrapassado o caráter restritivo das teorias
anteriores (da arte como representação e da arte como expressão).
CRÍTICAS/OBJEÇÕES À TEORIA FORMALISTA DE CLIVE BELL

A teoria formalista enfrenta, todavia, sérios problemas. O primeiro é que há


objetos de arte que não se distinguem visualmente de outros que não são arte. Por
exemplo, não vemos qualquer diferença entre a forma do objeto estético intitulado Fonte,
de Marcel Duchamp, e os outros urinóis visualmente indistinguíveis que ficaram na fábrica
onde aquela peça foi adquirida pelo artista. Se admitirmos que o que faz um objeto ser
arte é a sua forma, então todos esses urinóis deveriam ser também objetos de arte. Mas
não são. A ideia é a seguinte: se são visualmente indistinguíveis, então não se
167
distinguem pela sua forma; mas, se não se distinguem pela forma, não se compreende
por que razão uma é arte e a outra não.
Outra dificuldade reside em explicar exatamente em que consiste a forma
significante. Como sabemos que um objeto tem forma significante ou não? O
formalista responde dizendo que sabemos isso (que um objeto tem forma significante)
porque temos emoções estéticas quando o observamos. Mas se lhe perguntarmos o
que é uma emoção estética, ele responde que é o tipo de emoção provocado pela
forma significante (do objeto no sujeito). O que se está a dizer é que um objeto tem
forma significante porque temos emoções estéticas (conferindo-lhe a categoria de
objeto estético) e temos emoções estéticas porque o objeto tem forma significante
– ora, como vemos, esta resposta é circular (os críticos dizem mesmo que estamos
perante a falácia da circularidade),o que acaba por deixar tudo na mesma, ou seja, não
esclarece nem acrescenta nada de novo no âmbito desta problemática.
Tentando evitar esta circularidade, Clive Bell diz que identificar a forma
significante é uma questão de sensibilidade. Qualquer pessoa sensível percebe
quando um objeto tem forma significante. Uma pessoa sensível sabe-o porque
sente emoção estética perante tais objetos e as pessoas que não reconhecem a
forma significante são insensíveis, sugere Clive Bell. Mas esta resposta também não é
esclarecedora, pois é mais uma fuga às dificuldades do que um argumento. Podemos
mesmo dizer que isto é encarar a forma significante e a emoção estética como algo
misterioso a que poucos têm acesso, como se a capacidade de fruição das obras de
arte estivesse apenas ao alcance de meia dúzia de eleitos ou privilegiados, o que fez com
que muitos críticos considerassem esta perspetiva da forma significante (do objeto) e
da sensibilidade/emoção estética (do sujeito) elitista.
Assim, a noção de forma significante acaba por revelar-se imprecisa e frágil
quanto à sua fundamentação e consistência.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Por que razão Clive Bell diz que a apreciação estética não é apenas uma
questão de sensibilidade?
2. O que é, de acordo com Clive Bell, a forma significante?
3. Por que razão a representação é, na opinião dos formalistas, esteticamente
irrelevante?
4. Expliquea objeção da circularidade apontada à teoria formalista de Clive
Bell.
168
5. Na sua opinião, um conteúdo de um romance (ou de um filme) é irrelevante
para o seu valor estético, apenas importando a sua forma ou não? Justifique.

Pássaro no Espaço (1923)


Constantin Brâncuși

Nota: na obra Pássaro no Espaço, o propósito do seu autor (Constantin Brâncuși) não era o de representar
um pássaro em particular, mas capturar a essência do voo. Por este motivo, removeu as asas e outras partes do
corpo, alongou esse mesmo corpo e reduziu a cabeça e o bico sob um plano oval inclinado.

TEORIAS NÃO ESSENCIALISTAS DA ARTE


(A TEORIA INSTITUCIONAL E A TEORIA HISTÓRICA)

ANTI-ESSENCIALISMO – “ARTE” COMO CONCEITO ABERTO

O século XX trouxe mudanças radicais na arte, sendo “Fonte”, de Marcel


Duchamp, uma das mais célebres obras a protagonizar estas ruturas com o passado:
um urinol vulgar recolhido por Duchamp, virado ao contrário e com uma assinatura “R.
Mutt” que não corresponde a ninguém. Com o passar do tempo e do escândalo inicial das
propostas, e com a aceitação dos objetos mais imprevisíveis como arte, as inovações

169
chegaram mais recentemente a exemplos como um tubarão verdadeiro conservado em
formol (de Damien Hirst) ou uma cama por fazer (de Tracey Emin).
Uma das reações dos filósofos da arte a esta expansão sem barreiras do que se
toma por arte foi considerar que O CONCEITO DE ARTE SIMPLESMENTE NÃO TEM
UMA ESSÊNCIA (uma definição única/universal). Apesar de ser possível detetar
algumas semelhanças entre a arte do passado e a do presente, essas semelhanças
não são universais, não são as mesmas a estarem presentes em todas as obras
contemporâneas (e nalgumas obras como “Fonte” parece não haver realmente nada de
comum com a arte anterior).
Esta posição foi proposta principalmente por Morris Weitz (1916-1981), que,
influenciado pela ideia de semelhança de família de Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
explica que a razão pela qual as várias definições de arte têm falhado tem a ver com
o facto de não haver condições necessárias e suficientes para que algo seja arte,
uma vez que as semelhanças na arte se verificam entre uma obra e outra num aspeto,
mas entre esta e uma terceira noutro aspeto, e assim sucessivamente. O resultado é que
pode haver semelhanças, mas não há uma semelhança única, que torne possível
uma definição essencialista (única) de arte. Assim, em vez de termos uma tal lista de
condições que, se um objeto as satisfizer, garantem que ele é arte (desde uma catedral
gótica a um urinol invertido ou a um tubarão conservado num recipiente ou ainda uma
cama por fazer) temos um CONCEITO ABERTO, que está em constante mutação, até
porque alguns artistas vêem como um dos objetivos das suas obras precisamente o
pôr em causa o conceito de arte da sua época.
Desta perspetiva, parece que nenhuma teoria de arte pode ser bem-sucedida hoje
em dia, pois, se, num dia, um filósofo ou teórico da arte pode apresentar ao público uma
nova definição de arte que, no seu entender, consegue finalmente abranger toda a arte,
no dia seguinte, um artista também pode começar a trabalhar numa obra destinada a ser
uma espécie de contra-exemplo (oposição) ao que o teórico defende ser definidor de toda
a arte, e essa obra acabar por ser exibida numa galeria de arte, deitando por terra aquela
definição.
Conceitos deste tipo funcionam, não pela satisfação de definições essencialistas
(únicas), mas por decisões dos agentes envolvidos na produção e apreciação da arte,
baseadas em algumas semelhanças entre o que uma nova obra é, ou tem como sentido,
e o que são, ou o sentido que têm, outras obras que já incluímos no conceito aberto de
arte (e a decisão não tem, obviamente, de ser sempre de aceitação, embora costume ser,
mesmo no caso de obras completamente desconcertantes).

170
TEORIA INSTITUCIONAL

A posição anterior parece ser uma espécie de desistência de procurar uma


definição de arte universal e essencialista que nos permitiria responder com segurança às
perguntas “o que é a arte?” e “mas será isto realmente arte?” No entanto, George
Dickie (1926-), baseado no trabalho do crítico e filósofo da arte Arthur Danto (1924-
2013), defende que a conclusão de que é impossível encontrar uma definição de arte
não é uma fatalidade, ou seja, não pode ser dada como definitiva. Danto tinha
chamado a atenção para a importância daquilo a que chamou um “mundo da arte”.
Trata-se de uma designação para a instituição formada por uma extensa rede que
inclui todas as pessoas que criam, estudam, apreciam, comentam, explicam,
conservam, apresentam, avaliam ou estão ligadas, por mais fino que seja o fio, a
obras de arte. O facto de um determinado urinol ser atualmente tomado como arte,
quando há dois séculos, o mesmíssimo objeto certamente não o seria, não reside tanto
nas suas caraterísticas físicas e percetíveis, mas mais no facto de que agora há uma
teoria da arte à luz da qual isso pode ser visto como arte. SÃO AS IDEIAS ACERCA DA
ARTE POR PARTE DAS PESSOAS QUE PARTICIPAM NO MUNDO DA ARTE EM
CADA ÉPOCA QUE JUSTIFICAM A ACEITAÇÃO DE OBRAS RADICALMENTE
INOVADORAS COMO ARTE.
Nessa base, George Dickie propõe uma definição de arte que põe a tónica,
não nas qualidades das obras, mas no contexto convencional ou institucional
(resultante de uma espécie de acordo comum, entre sujeitos de uma determinada
comunidade/sociedade/instituição/cultura) que rodeia essas obras, e na relação que os
seus autores pretendem estabelecer entre o que criam e o mundo da arte: uma obra
de arte no sentido classificativo é um artefacto com um conjunto de aspetos ao qual
foi conferido, por uma pessoa ou pessoas atuando em nome de uma certa
instituição social (o “mundo da arte”), o estatuto de candidato para ser apreciado.
George Dickie esclarece que a definição visa explicar como é que certos
objetos são classificados como arte, não emitindo qualquer consideração acerca do
valor ou sucesso deles enquanto arte. Tudo o que diz é que os artefactos (produções)
que satisfazem a definição são arte (e, como quase tudo, podem ser geniais, péssimos,
interessantes, desinteressantes, etc., enquanto arte).
Podemos esclarecer a definição de arte vendo como ela se assemelha às de
batismo ou de casamento: nada de visível se altera na criança após o batismo, nem nos
noivos quando se tornam casados (tal como no caso de um urinol que alguém apresente
171
para ser arte). No entanto, muito mudou em termos de estatuto, de relação desses
indivíduos com a sua comunidade, e as mudanças tornam-se uma realidade em virtude
do estatuto ser conferido por uma pessoa (neste exemplo, um padre) que é membro de
uma instituição (como o artista também o é) e executa um conjunto de procedimentos que
a comunidade religiosa reconhece como válidos se executados por uma tal pessoa (como
no caso da arte, o “mundo da arte”).
Na sequência de diversas críticas que lhe foram movidas, George Dickie procedeu
a alterações e acrescentos às suas teorias, mas esta continua a ser considerada a versão
mais original e mais clara da sua definição de arte.

CRÍTICAS/OBJEÇÕES À TEORIA INSTITUCIONAL

Embora proposta para englobar os mais inesperados objetos no conceito de arte, a


teoria ou definição institucional suscita várias críticas/objeções:

ARTE ADVENTÍCIA – ARTISTAS QUE NÃO SABEM QUE O SÃO

Não é raro ocorrer que pessoas que não têm rigorosamente nenhuma relação com
o mundo da arte produzam, por passatempo ou por outra razão não relacionada com
esse mundo, artefactos que, uma vez descobertos por membros desse mundo, são
aceites como obra de arte de pleno direito, sejam ela tradicionais ou inovadoras; aliás,
não têm sequer noção da história da arte para saberem se aquilo que fazem é
tradicional ou inovador.
Por exemplo, em alguns hospitais psiquiátricos, houve médicos que colecionaram
obras dos seus pacientes, a maioria dos quais não eram nem tinham sido artistas, e que
conseguiram que essa arte criada fora do “mundo da arte” entrasse nele (o que a
definição exclui). Cita-se frequentemente o exemplo de Alfred Wallis, um marinheiro
inglês reformado com alguns problemas psiquiátricos que, nos anos 20/30 (do séc. XX),
pintava paisagens e navios com tinta de parede em pedaços de cartão e que, em 1928,
foi “descoberto” por dois pintores – a partir daí, as suas “obras” foram expostas e
grandemente apreciadas como arte pura, em bruto. Mas Wallis, que tinha começado a
pintar aos 70 anos, depois da morte da sua esposa, não tinha qualquer conhecimento
de história da pintura, nem de técnicas ou de estilos e não parecia considerar o que
pintava como arte e muito menos como algo para outras pessoas verem e
apreciarem. Aliás, há sinais (baseados em relatórios médicos) de que ele concebia o ato
de pintar como uma espécie de ritual que lhe permitia imaginar-se no passado.

172
CIRCULARIDADE DA DEFINIÇÃO DE ARTE

Uma objeção óbvia, de que o próprio George Dickie estava consciente, é a de que
a sua definição é circular: define o conceito de “arte” usando esse mesmo conceito
na noção de “mundo da arte”. Deste modo, parece que quem não sabe o que é arte
não é ajudado em nada pela definição, uma vez que, para a entender, teria de ter já
conhecimento do que é arte para perceber o que é o “mundo da arte”. Dickie
reconhece esta circularidade mas nega que a definição não seja por isso informativa,
uma vez que, na sua perspetiva, ela esclarece objetivamente as condições em que de
facto certas entidades/artefactos/objetos se tornam arte. Assim, para ele, a definição
de arte seria um círculo virtuoso, e não vicioso. No entanto, muitos dos críticos
permanecem não convencidos deste ponto e põem em causa a suposta informação
e virtude da circularidade da informação, insistindo que ela nada (ou quase nada)
informa quem procura saber o que é arte.

ARBITRARIEDADE DE CRITÉRIOS (qualquer artefacto pode ser arte?)

Esta é uma das críticas mais sólidas e mais sofisticadas que foram movidas à
teoria ou definição institucional, argumentando da seguinte forma: SEGUNDO A
TEORIA INSTITUCIONAL, QUALQUER ARTEFACTO (peça ou objeto
construído/produzido pelo ser humano) PODE SER ARTE. No entanto, tem para isso de
ser proposta para apreciação por um membro do “mundo da arte”. Daí coloca-se a
questão: dado um certo artefacto A, como decide esse membro (do “mundo da arte”)
que ele deve ser proposto como arte, “transformando-o” assim efetivamente em
arte? Parece pouco sensato responder algo como: “porque lhe apetece!” Muito
mais aceitável seria responder que “o representante do mundo da arte vê em A
certas propriedades que o destacam e que merecem apreciação”. Só que esta
resposta sensata é fatal para a definição de arte e, consequentemente, a definição de
objeto estético, porque leva à conclusão de que o mundo da arte confere esse
estatuto por algumas razões, em função de certos critérios que alguns artefactos
satisfazem mas outros não. Mas, então, a verdade é que A é arte porque satisfaz
esses critérios, sendo por isso que o artista e o “mundo da arte” o candidata para
apreciação, em vez de despachar a questão e propor todos os artefactos alguma
vez existentes ou futuros, tornando-os arte quase que magicamente. Isto subverte
(adultera/destrói) toda a teoria institucional, e volta a colocar-nos no caminho da
descoberta da essência da arte, o que se traduz, afinal, nesta simples e irritante pergunta:
“o que é a arte?”
173
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite a definição de arte veiculada pela teoria institucional.

2. Apresente, de modo sucinto, cada uma das objeções feitas à teoria


(definição) institucional da arte.

A TEORIA HISTÓRICA
TEORIA HISTÓRICO-INTENCIONAL

Na contínua busca de uma definição de arte mais resistente a objeções, uma


proposta recente e importante, avançada pelo filósofo americano contemporâneo Jerrold
Levinson, é a teoria (ou definição) histórico-intencional.
Esta teoria aceita que é impossível encontrar um conjunto de propriedades
comuns a toda e a qualquer obra de arte. A ideia é deixar de centrar a busca da
essência nas propriedades visíveis ou audíveis das obras, para a centrar em certos

174
aspetos que têm a ver com a intenção do artista para com a obra e o seu público, e
com a relação dela com a história da arte que a precedeu.
Assim, define-se arte do seguinte modo: algo que é uma obra de arte se e
apenas se é um objeto acerca do qual uma pessoa que seja proprietária dele tem a
intenção não passageira (duradoura) de que ele seja visto como uma obra de arte,
isto é, visto de qualquer modo (ou modos) como foram ou são vistas as obras de arte
anteriores.
A condição do direito de propriedade significa apenas que o autor tem de ser
dono do objeto, ou, no mínimo, estar autorizado a usá-lo pelo proprietário. A ideia é
eliminar a possibilidade de tudo poder transformar-se em arte pela mera afirmação
proferida por um artista, por mais consagrado que seja, de que a partir desse
momento, tal objeto é arte (sua).
Exige-se também que haja, da parte do artista, uma intenção duradoura acerca
da relação entre a obra que criou e a arte do passado. Em particular, ele deve
trabalhar a obra com a intenção séria de que ela seja vista, encarada e considerada
pelo público como o foram as obras de arte do passado (e isso inclui tanto a intenção
de continuidade com as obras clássicas como a de criar uma obra de arte
revolucionária, para ser encarada como as obras revolucionárias o foram no
passado).
Por fim, é preciso esclarecer a questão da relação da obra proposta com os
modos de apreciar as outras obras da história de arte.
Houve e há uma grande diversidade de modos ou formas de contemplar a
arte: podemos focar a atenção nas cores, no detalhe, na estrutura formal, ou nos efeitos
expressivos, na capacidade de representar a realidade, reconhecer um enquadramento
histórico e as características de um estilo; ver obras como objetos que proporcionam
prazer, manifestações da beleza, modos de desafiar as convenções, de exprimir as
emoções e a criatividade humana, e até como fatores de combate político ou formas de
relação com o divino. Um autor cria uma obra de arte se o fizer com uma intenção
duradoura de que ela seja considerada pelo menos uma destas formas, entre
muitas outras. Isto permite abranger o Parténon, em Atenas, a Sinfonia “Júpiter” de
Mozart, mas também a “Fonte” de Duchamp ou uma peça de teatro experimental.

OBJEÇÕES À TEORIA HISTÓRICO-INTENCIONAL

O DIREITO DE PROPRIEDADE

175
A definição de Levinson está exposta a vários contraexemplos a esta condição:
por exemplo, se um autor utilizar materiais que acredita sincera, mas erradamente
serem sua propriedade (por exemplo, um pintor comprou vários itens semelhantes, e,
por distração sua ou do vendedor, não pagou um ou dois deles), as pinturas em que
usou esses materiais não são por isso obras de arte? É uma conclusão bizarra, tal
como é concluir que, se depois de acabadas as pinturas, alguém der pelo engano e os
itens forem devidamente pagos, esse facto transforma-as em obras de arte.

INTENCIONALIDADE

Há situações que, embora sejam raras na realidade, mesmo que nunca tivessem
sucedido, a simples possibilidade de as concebermos serviria de contraexemplo a esta
condição. O caso real mais conhecido é o do escritor Franz Kafka (1883-1924), escritor
boémio de língua alemã, autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um
dos escritores mais influentes do século XX, que deixou instruções para que, quando
morresse, os manuscritos de O Processo e O Castelo fossem destruídos.
Aparentemente, Kafka não teve a intenção de que eles fossem vistos como arte,
mas sim a intenção de que não fossem vistos de modo algum. Como sucede
frequentemente com estes pedidos, alguém reconheceu valor nos manuscritos e,
contrariando a intenção/vontade expressa do autor, publicou as obras, que são
consideradas obras cimeiras da literatura do século XX.

O PROBLEMA DA “PRIMEIRA ARTE”

Definir algo em função de algo anterior pode conduzir a problemas. Neste caso, o
problema surge se remontarmos mentalmente ao momento do surgimento dos
primeiros artefactos que mereceriam ser classificados como arte. Em rigor, esse
surgimento é inexplicável pela definição, e segundo ela, a arte não poderia ter
começado a existir. Com efeito, os primeiros artistas (em culturas não comunicantes
entre si, supõe-se) não podiam contar com um passado de modos de ver obras de
arte em cuja continuidade a sua arte se inseriria, pois eles são os pioneiros da
prática da arte. Parecemos, assim, levados a concluir que só propriedades não-
históricas da “primeira arte” (isto é, que fogem à definição de Levinson) podem
justificar o próprio aparecimento da arte.

EXCESSO DE INCLUSIVIDADE

176
Finalmente, temos a objeção de que há práticas que continuam a dar
seguimento a uma certa tradição de ver algo como arte, mas que ninguém
reconhece como arte. É o caso do retrato em pintura, em que um dos
objetivos/intenções (mesmo que muitas vezes não o mais importante) é ver, nesse
mesmo retrato em pintura, a imagem da pessoa retratada. Ora, se esse é um dos
muitos modos legítimos de ver retratos, seguir-se-á que tirar fotografias do tipo
passe ou de outro tipo com a intenção de encontrar a semelhança entre a fotografia
e a pessoa, e assim usando um modo de ser visto que faz parte do reportório da
arte, poderia também ser produzir arte.

O que é a arte?
(síntese)

TEORIA DA ARTE COMO IMITAÇÃO/REPRESENTAÇÃO–a arte consiste na imitação da natureza bela ou


na reprodução de comportamentos humanos, conceitos ou ideais belos, bons e justos.

TEORIA DA ARTE COMO EXPRESSÃO(EXPRESSIVISTA) – uma obra de arte é uma emoção transformada
em ideia na mente do artista e que ele projeta num objeto.

TEORIA DA ARTE COMO FORMA(FORMALISTA) – um objeto é uma obra de arte se possuir uma forma que
possa ser apreciada esteticamente.

TEORIA INSTITUCIONAL DA ARTE – uma obra de arte é um artefacto com um conjunto de aspetos ao qual
foi conferido, por uma pessoa ou por várias pessoas (atuando em nome de uma instituição, o “mundo da arte”) o
estatuto de candidato para ser apreciado.

TEORIA HISTÓRICO-INTENCIONAL – uma obra de arte é um objeto acerca do qual o seu proprietário tem
intenção duradoura de que ele seja visto como é tipicamente vista a arte.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite a definição de arte veiculada pela teoria histórico-intencional.

2. Apresente, de modo sucinto, cada uma das objeções feitas à teoria


(definição) histórico-intencional da arte.

A DIMENSÃO RELIGIOSA
ANÁLISE E COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
FILOSOFIA DA RELIGIÃO

INTRODUÇÃO

177
A religião, mais concretamente, a experiência religiosa ou atitude religiosa, tal
como a ciência e a arte, constitui um dos aspetos fundamentais da civilização humana e,
como tal, independentemente de sermos crentes ou não-crentes ou nem uma coisa nem
outra (teístas, ateus ou agnósticos), trata-se de um fenómeno humano incontornável
(que não podemos desconsiderar ou ignorar), porque é um facto de que ele existe e ajuda
a definir o ser humano como ser espiritual e racional, mesmo que possamos considerar
a fé como algo pertencente à esfera do irracional, como, de resto, já tivemos
oportunidade de verificar, embora não de forma muito aprofundada, aquando da nossa
abordagem introdutória às origens do pensamento racional, feita logo nas primeiras aulas
de Filosofia do 10.º ano, através dos mitos, nos quais notámos, independentemente de
considerarmos mais ou menos bizarras, mais ou menos ingénuas, mais ou menos
disparatadas as explicações (narrativas míticas) que destes surgiram acerca dos mais
variados aspetos relativos ao mundo/universo/cosmos e ao homem, existir já um
pensamento lógico, isto é, um pensamento com sentido.
Assim, a religião é um fenómeno universal e transversal a todos os seres
humanos, a todos os tempos e a todos os lugares, que corresponde não apenas à
necessidade natural do ser humano de explicar o mundo/universo/cosmos, mas
também à necessidade espiritual de encontrar um sentido para a sua existência.
Para tal, o universo e a vida humana são geralmente concebidos como criação de um
ou vários deuses e a vida terrena como algo cujo fim representa uma transição para
um plano superior, transcendente, habitualmente identificado com a felicidade
eterna, como recompensa (entrada no “Paraíso”), geralmente acompanhado pela
crença numa alternativa punitiva (condenação ao “Inferno”).
Em última análise, falar de religião e de experiência religiosa é, com efeito, aludir
a uma pluralidade de aspetos que nos obriga a “puxar” pelas nossas aptidões reflexivas
e críticas por forma a evitarmos cair em posturas fechadas, preconceituosas,
dogmáticas e redutoras.

A RELIGIÃO E O SENTIDO DA EXISTÊNCIA (REFLEXÃO PRÉVIA)

Antes de abordarmos o problema da existência de Deus e o conceito (ou


conceitos) de Deus, uma vez que dimensão religiosa ou experiência da
transcendência se inscreve no contexto da ação humana (na medida em que se trata de
mais uma forma que o ser humano desenvolve para lidar com a sua existência no

178
mundo e que deriva da necessidade que este sente de acreditar que existe “algo” ou
“alguém” transcendente, isto é, que pertence a uma outra esfera ou dimensão que não
lhe é acessível, nem empiricamente nem racionalmente, que o ultrapassa, que o criou
e criou o mundo, que comanda o seu destino, que dá sentido à sua vida e que lhe
garante a continuidade da sua existência para além da morte (“vida eterna”,
“verdadeira vida”, etc.), devemos abordar o problema da nossa própria existência e do
impacto que a esta mesma dimensão religiosa ou experiência da transcendência
ou ainda, simplesmente, a fé, tem no sentido que atribuímos à nossa própria
existência – porque, afinal, tudo isto depende muito do posicionamento ou da
perspetiva a partir da qual queiramos abordar o problema – a maioria das pessoas
pergunta: sem Deus, nós existiríamos? Mas, a pergunta também poderá ser feita ao
contrário: e, sem nós, Deus existiria?
O homem, pela reflexão que começou a fazer sobre a sua vida, sobre as suas
experiências e vivências e sobre tudo o que o rodeia, rapidamente se apercebeu que,
para além de estar num mundo que, só por si, o deixava perplexo, espantado, admirado,
maravilhado e atemorizado (a natureza com os seus fenómenos, tantas vezes,
misteriosos, assustadores e intrigantes), constatou que era um ser diferente dos outros
animais, que para além de um corpo, tem uma dimensão interior, imaterial a que
chamou espírito, alma, energia, etc., e que, ao mesmo tempo, como todos os seres vivos
ou até mais do que a maioria deles, era um ser frágil (basta pensar, por exemplo, nos
cuidados de que um recém-nascido humano precisa para sobreviver) e finito –
constatação esta que o deixou, entre outros sentimentos, deprimido e angustiado. Ora,
esta consciência de si e da sua condição precária no mundo, como ser que sabe que
existe e que vai deixar de existir; que sabe que, a qualquer momento, por qualquer
motivo, pode ver-se confrontado com o infortúnio, com a tragédia, com a doença e,
consequentemente, com a morte, levou o homem não apenas à angústia, mas também,
apesar da sua impotência para se subtrair (fugir, escapar) a essa condição, à “recusa”
(inconformismo) em aceitar que a sua existência se resume apenas a uma fugaz (curta)
passagem pelo mundo (vida terrena) e à crença (fé) numa outra dimensão existencial,
para além desta, de uma outra vida, entrando aqui, como resposta a toda esta série de
“males”, a atitude religiosa.
Assim, a partir de certa altura (que, obviamente, não é possível delimitar com
precisão no tempo, porque foi algo progressivo), o homem passou a acreditar que não é,
simplesmente, mais um ser que vive e que morre, que a sua vida não se resume a
uma mera passagem por este mundo e que, mais do que isso, tem um sentido.

179
Na realidade, desde que começou a pensar, a refletir sobre a sua vida e sobre a
sua morte, o homem ficou com a convicção de que não pertence a este mundo e que
a sua existência tem origem e se projeta numa outra dimensão, completamente
distinta da que possui enquanto ser terreno.
Ora, é precisamente esta convicção/crença, mais do domínio do irracional do
que do racional, que faz com que o homem ascenda a um “patamar” (espiritual) que já
não é humano e entre na esfera do sobrenatural, de relação (mística) com o divino,
que se traduz na crença na existência de uma ou mais que uma entidades divinas, nas
quais ele deposita confiança e, consequentemente, encontra a sensação de paz, de
tranquilidade, de segurança e de esperança. Numa palavra: a religião acaba por
conferir sentido tanto à sua vida como à sua morte (na medida em que, sem essa
convicção/crença, tudo lhe parece absurdo/vazio de sentido).
Esta atitude religiosa, de ligação (religião deriva da palavra latina religare, que
significa, precisamente, ligação) a um (ou mais que um) ser transcendente, fundada na
fé e projetada na esperança numa outra vida, começou, primeiramente, por manifestar-se
com nitidez nos cultos que, desde muito cedo, os homens prestavam aos seus mortos
e, mais tarde, nos sacrifícios, nos rituais, nas cerimónias fúnebres, etc. – não só como
gesto de respeito por aqueles que morriam (“partiam” para uma outra vida/existência),
mas também como sintoma de respeito, de temor pela própria morte e ainda,
fundamentalmente, como já foi dito, como sinal de fé e de esperança numa outra vida (a
morte era entendida, em muitas civilizações, como regresso às origens, como novo
nascimento ou ainda como transição para outra dimensão existencial).
No fundo, acreditar numa ou em várias divindades, que estão acima de todas as
coisas e que pertencem a um mundo sobrenatural e transcendente, mas que tudo veem
e tudo controlam, é uma forma de o homem se sentir, para além de vigiado e
controlado (função normativa da religião, a qual começou com os mitos), pois acredita
que os seus atos serão alvo de recompensa ou de castigo, consoante sejam eles
considerados “bons” ou “maus” à luz da moral e da ética instituídas, mais seguro e
mais protegido num mundo tantas vezes hostil (adverso) e num universo
assustadoramente gigantesco (repleto de planetas, estrelas, galáxias, meteoritos e sabe-
se lá mais o quê…).
Esta atitude (religiosa) acaba, também, por assumir uma função explicativa
relativamente à origem e desenvolvimento de muitos aspetos considerados
importantes, que têm a ver consigo, com a sua vida, com o seu destino e com tudo
o que acontece à sua volta, nomeadamente, dos fenómenos naturais e outros de

180
maior complexidade (função explicativa da religião, que também começou com os mitos)
– o que, por outras vias, não conseguiria, pois, mesmo progredindo muito em termos
científicos, o homem continua sem encontrar respostas concretas no que respeita à
sua origem, ao sentido da sua vida e ao seu desenlace (desfecho, final), ou seja, à
sua morte (a qual, ainda hoje, é para muitas pessoas ainda um tabu), já para não falar na
grande incógnita sobre o que virá a seguir, para além dela.
– Quem sou?
– De onde venho?
– Para onde vou?
– Qual o sentido da (minha) vida?
Eis algumas das questões que, desde muito cedo, o homem se colocou a si próprio
e que, ainda hoje, se mantêm sem uma resposta clara, objetiva, pronta, definitiva…
Assim, precisamente por procurar respostas para questões como estas, é que o
homem recorre à religião, procurando noutra esfera ou noutra dimensão aquilo que
não encontra na sua esfera, no ambiente das coisas com as quais lida no seu dia-a-dia,
no seu mundo material, físico e terreno.
Podemos mesmo atrever-nos a dizer que o homem, dada a sua condição,
“necessita”, pois, de acreditar em algo que dê sentido à sua vida e lhe preencha o
vazio que a ausência desse mesmo sentido instala no seu espírito inquieto,
angustiado, sobressaltado…
Ora, atribuir sentido à vida é, numa perspetiva religiosa, dizer: “Vivo, porque
alguém, superior a mim, quis que eu vivesse, quis que eu tivesse um papel, um
lugar e uma função nesta vida e neste mundo, onde tudo o que existe não existe
por acaso.” Que é o mesmo que dizer: “Não existo por acaso e toda a minha
existência não será em vão, nem se esgota aqui.”
Acreditar, ter fé, adotar uma postura religiosa, embora resulte de
condicionantes psicológicas e socioculturais, às quais ninguém está imune, uma vez que
todos nós nascemos num determinado contexto (familiar, social, histórico e cultural),
acaba também por ser uma atitude pessoal, que cada um de nós pode ou não adotar,
pode ou não dar seguimento, já que só cada um de nós, individualmente, através de
uma análise da sua vida e das suas experiências pessoais, pode encontrar motivos
ou razões (ainda que não racionalmente fundamentadas, como já foi referido quando se
disse que a atitude religiosa pertence ao domínio do irracional e, portanto, não se pode
justificar ou demonstrar por A+B, como se de uma equação matemática se tratasse) para
dizer: “Eu acredito em Deus, porque, ao longo da minha vida, através da minha

181
experiência pessoal, encontrei motivos para acreditar que existe alguém que está
acima de mim, que me criou e que me acompanha em todos os passos que dou;
alguém que, principalmente quando atravesso momentos difíceis, me dá força para
«dar a volta por cima», não me deixando cair; alguém que eu nunca vi, mas que sei
que existe e que, por isso, recorro a ele, conto com ele, falo com ele e só através
dele encontro paz, tranquilidade, calma, conforto, esperança e até mesmo
felicidade.”
Posto isto, a religião pode ou não interessar-nos pode ou não dar sentido à vida de
cada um de nós – já que acreditar num ser transcendente é uma decisão pessoal, de
cada um, que ninguém pode impor a ninguém – mas, seja como for, não podemos
ignorar nem permanecer indiferentes à importância e ao impacto que este
fenómeno (religioso), exclusivamente humano, tem na vida de milhões e milhões de
pessoas, de civilizações e nações ao longo dos tempos – isto é algo incontornável.
E, para terminar esta reflexão, prévia, inicial, podemos dizer: o homem, sem a
atitude religiosa, poderia ser outro (não se sabe se “melhor” ou “pior”, se é que as
coisas se podem colocar nestes termos), mas não seria o mesmo – poderia ser outro,
mas não o mesmo!

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explique, com base no texto, a origem da atitude religiosa.

2. Caracterize a atitude religiosa.

3. Na sua opinião (livre e sem constrangimentos), fará sentido o ser humano


acreditar num ser que lhe é transcendente nos termos a que o texto faz referência ou
não? Justifique.

4. Apresente uma, duas ou três questões, da natureza daquelas que figuram


no texto, sobre coisas, situações, factos, suposições, especulações, etc., que o intrigam
e que gostaria de ver respondidas (aqui, neste contexto, são mais importantes as
perguntas do que propriamente “eventuais” respostas).
A PERSPETIVA PESSIMISTA DA EXISTÊNCIA HUMANA

Imaginemos que a Nádia está ansiosa para ver um filme que lhe dizem ser muito
bom e que acaba de estrear. Decide, assim, enfrentar uma enorme chuvada e autocarros
cheios de gente só para ir ao cinema. Todavia, quando finalmente chega lá, já não há
bilhetes. Todo o seu esforço foi absurdo ou em vão, ou seja, não teve sentido, uma
vez que uma atividade só tem sentido quando se constitui num meio adequado para
182
uma finalidade alcançável de valor – neste caso, o esforço de Nádia não teve sentido
porque a finalidade não foi alcançada. E o mesmo aconteceria se conseguisse bilhete
mas, ao descobrir que o filme era mau, decidisse sair antes de este acabar – neste caso,
o seu esforço também não teria sentido porque a finalidade que ela inicialmente pensava
que tinha valor, afinal, não tinha.
Será toda a nossa existência assim?
Será que andamos atarefados na nossa vida quotidiana, mas no fim não
obtemos o que queríamos?
Ou então obtemo-lo, mas isso não tem afinal qualquer interesse?
Será a nossa existência absurda, como os esforços da Nádia?
Segundo a perspetiva pessimista, a existência humana é absurda. Quando
olhamos para um formigueiro com atenção, vemos as formigas muito atarefadas: umas
procuram e transportam alimentos, outras constroem câmaras de armazenagem e outras
ainda patrulham os caminhos. É uma grande azáfama para se alimentarem e
reproduzirem. Contudo, a existência das formigas parece-nos absurda, apesar de as
formigas não se darem conta disso, evidentemente. Claro que as formigas têm de se
alimentar para sobreviver, e têm de se reproduzir para que a sua espécie não se extinga.
Contudo, as coisas talvez não fossem melhores nem piores caso as formigas não
existissem. As suas atividades só fazem sentido para as manter em existência, mas a
própria existência das formigas parece não ter sentido.
Segundo o pessimista, somos como as formigas, no que diz respeito ao absurdo
da nossa existência. Andamos muito atarefados a fazer várias coisas, mas a verdade é
que nada do que fazemos tem qualquer sentido. Caso deixemos de existir amanhã,
isso não faz qualquer diferença significativa. Apenas deixamos de existir e é tudo.
O que está em causa neste argumento é o valor genuíno da existência humana
– é óbvio que a nossa existência tem valor para nós, mas terá genuinamente valor, isto
é, terá valor em si, independentemente do que nós achamos?

ARGUMENTO DA MORTE – um dos principais argumentos a favor do


pessimismo baseia-se no facto de que, com um enorme grau de certeza, nenhum
daqueles que hoje tem mais de quinze, vinte anos no máximo, daqui a cem anos estará
vivo! O que significa que tudo o que nos esforçamos por fazer acabará por
desaparecer, mesmo que façamos coisas que persistam ao longo de muito tempo, como
acontece com as obras de alguns artistas, cientistas ou filósofos – trata-se do argumento
da morte (impossibilidade de alcançarmos as nossas finalidades).

183
Assim, a nossa situação é semelhante à da Nádia: quando chegou ao cinema e
constatou que, afinal, não havia bilhetes. É semelhante porque, tal como ela, não
alcançamos as nossas finalidades. Visamos a permanência mas acabaremos por
morrer, e tudo o que fizermos acabará também por desaparecer. É por isso que,
segundo os pessimistas, a nossa existência não tem sentido, pois, a sua finalidade
não pode ser alcançada. Se a nossa existência não fosse absurda, poderíamos
alcançar as nossas finalidades. Dado que a morte nos impede de as alcançar, a
nossa existência é absurda.

ARGUMENTO DO TÉDIO – mas os pessimistas, não se ficam por aqui e insistem


nesta perspetiva negativa apresentando um outro argumento – o argumento do tédio
(vazio de sentido) – segundo o qual o facto de alcançarmos muitas das nossas
finalidades não é razão suficiente para dar sentido à nossa existência – afinal, as
formigas também alcançam muitas das suas finalidades, mas estas são de tal modo
destituídas de valor que tanto faz se as alcançam ou não. A ideia é a de que as nossas
finalidades só parecem importantes quando não pensamos muito nelas – no caso da
Nádia, ficará satisfeita se conseguir ver o filme que queria e se o filme for realmente bom.
Contudo, perguntam os pessimistas, que importância tem isso? E adiantam: depois
de ter visto o filme, a Nádia precisará de outra finalidade, pois essa já foi alcançada.
E, claro, depois de alcançada essa outra finalidade, precisará de outra ainda – e
assim por diante, sem parar.
Ora, isto, para os pessimistas é, não apenas um tédio, mas um constante
sobressalto… Segundo estes, a nossa existência é feita de uma sucessão de
finalidades sem sentido que, mal as alcançamos, perdem o interesse – se a Nádia
fosse obrigada a ver o mesmo filme todos os dias, por toda a eternidade, seria um tédio
sem fim – isto é um sinal de que o valor que atribui ao filme não é suficiente para dar
sentido à vida – quando muito é ilusório.
O argumento do tédio defende que se as finalidades que consideramos
importantes fossem realmente importantes não dariam origem ao tédio
(desinteresse, desmotivação, fastio, vazio) quando as alcançamos – seja qual for a
finalidade que tenhamos em consideração, quando a alcançamos perde o interesse,
sendo fonte de tédio e não de realização pessoal. Logo, e ainda segundo os
defensores do pessimismo, nenhuma das finalidades a que nos entregamos nas
nossas vidas é realmente importante – dado que uma existência dedicada a
finalidades sem importância é absurda, conclui-se que a nossa existência é
absurda.

184
CRÍTICAS/OBJEÇÕES A PERSPETIVA PESSIMISTA EXISTÊNCIA HUMANA

CRÍTICA/OBJEÇÃO AO ARGUMENTO DA MORTE

A principal objeção ao argumento da morte põe em causa a ideia de que a


morte nos impede de alcançar as nossas finalidades, uma vez que nem sempre isso
acontece com todas (as finalidades). Por exemplo, se a Nádia tivesse chegado ao
cinema, comprado o bilhete e o filme fosse realmente bom, teria atingido a sua
finalidade, que era ver um bom filme – ora, isto acontece com muitas das nossas
finalidades.
Uma pessoa pode fazer desporto simplesmente pela satisfação e pela realização
que isso lhe proporciona, outra pode fazer ciência ou criar obras de arte, outra pode
dedicar-se à culinária, etc. O facto de estarmos todos mortos daqui a cem anos não
parece fazer qualquer diferença, pois a maior parte das nossas finalidades não são
projetadas para cem ou mais anos, mas sim para prazos bem mais curtos.

CRÍTICA/OBJEÇÃO AO ARGUMENTO DO TÉDIO

Os objetores ao argumento do tédio defendem que, embora se possa aceitar a


ideia de que qualquer das nossas finalidades, se fosse prolongada para sempre,
depois de atingida, seria de um tédio imenso, isso não significa que o valor que
lhes atribuímos seja ilusório – por exemplo, quando temos muita sede, atribuímos um
grande valor à água. Contudo, se fossemos obrigados a beber água continuamente por
toda a eternidade, isso seria terrível, mas isto não significa que a água não tem valor
genuíno quando temos muita sede – pelo contrário, tem valor genuíno precisamente
devido à nossa natureza humana.
Ora, é precisamente devido à nossa natureza humana (temporal e finita) que
seja o que for que prolonguemos para sempre gera um tédio imenso (se vivêssemos
para sempre e tivéssemos finalidades também elas eternas, isso sim é que seria
entediante) – como nós somos criaturas temporais e mortais, o que tem valor
genuíno para nós é o que estiver de acordo com a nossa natureza temporal e
mortal.
Assim, não se pode concluir que as nossas finalidades são todas de valor
ilusório só porque a nossa existência é feita de uma sucessão de finalidades ao
ritmo de acordo com a nossa natureza contingente e temporal.

ATIVIDADES/QUESTÕES:
185
1. Caracterize, de um modo geral, a perspetiva pessimista.

2. Apresente um dos principais argumentos a favor do pessimismo (o


argumento da morte).

3. Formule as objeções que são feitas ao argumento da morte.

4. Explicite, segundo a perspetiva pessimista, o argumento do tédio.

5. Formule as objeções que são feitas ao argumento do tédio.

6. Concorda com a perspetiva pessimista do sentido da vida? Justifique.

AS RESPOSTAS RELIGIOSAS RELATIVAS AO SENTIDO DA EXISTÊNCIA

O ARGUMENTO DO PROPÓSITO

Há quem considere que sem Deus a nossa existência estaria condenada ao


vazio e que, portanto, nada do que fizéssemos teria qualquer importância. Claro que
poderíamos tentar esquecer-nos do inevitável destino que nos espera, divertindo-nos o

186
mais possível, mas isso seria apenas uma maneira de mentir a nós mesmos. Só Deus
pode salvar-nos do vazio sem sentido.
A ideia central da teoria religiosa é a de que Deus dá sentido à nossa
existência. Deus criou-nos com um objetivo em mente e garante-nos a eternidade.
Sem Deus, a nossa existência seria exatamente como a das formigas, mas com Deus a
nossa existência ganha sentido. Deus permite que a nossa existência não seja
apenas uma sequência vazia de atividades sem sentido ou que não conduzem a
coisa alguma. Pelo contrário, a nossa existência faz parte de um plano de Deus e
nesse plano nós desempenhamos um papel ou função muito importante – daí que
não sejamos como as formigas.
Esta ideia, de que Deus dá sentido à nossa existência, está diretamente ligada a
um argumento a favor da teoria religiosa que se designa por argumento do propósito, o
qual se baseia na ideia de que Deus dá sentido à nossa existência porque lhe dá um
propósito ou finalidade de valor. Assim, a nossa existência não é despropositada,
não é um acaso sem sentido. Pelo contrário, existimos para cumprir o propósito de
valor que Deus nos atribuiu.
Por exemplo, consideremos um simples lápis. Qual é o sentido da sua existência?
O lápis existe porque os seres humanos o fizeram com o propósito de escrever. É esse
propósito que dá sentido à existência do lápis. Se os seres humanos não tivessem feito o
lápis com um propósito em mente, a sua existência não teria qualquer propósito e seria
por isso mesmo absurda.
O mesmo acontece com os seres humanos: a nossa existência tem sentido porque
fomos criados por Deus com um propósito de valor. Mas que propósito será esse?
Talvez não saibamos muito bem, mas o que conta, contudo, é que a nossa existência
tem um propósito de valor e é por isso que não é absurda.

CRÍTICAS/OBJEÇÕES AO ARGUMENTO DO PROPÓSITO

No entanto, uma objeção a este argumento do propósito põe em causa a ideia


de que basta que a existência tenha um propósito de valor para ter sentido. Por isso,
mesmo que Deus nos tenha criado com um propósito de valor, isso não garante
que a nossa existência tenha sentido.
Considere-se, por exemplo, o caso da Cátia – os pais dela conceberam-na com um
propósito de valor: ter uma pintora na família. Como adoram pintura, mas não tiveram
oportunidade de se tornar pintores, quiseram ter uma filha pintora. Mas como são muito
respeitadores e boas pessoas, não a obrigam a ser pintora (tal como Deus não nos
187
obriga a cumprir o nosso propósito), apenas a incentivam e lhe dão a conhecer a
pintura, partilhando assim com ela a paixão que têm pela pintura. Deste modo, a
existência da Cátia tem um propósito de valor, mas isso não garante que tenha
sentido, até porque talvez ela nem goste de pintura e se sinta terrivelmente entediada
com tudo o que tenha a ver com pintura.
Em conclusão, os objetores ao argumento do propósito defendem que mesmo
que Deus nos tenha criado com um propósito de valor, isso não confere, por si só,
sentido à nossa existência.

O ARGUMENTO DA ETERNIDADE

Mas, existe um outro argumento a favor da teoria religiosa, designado por


ARGUMENTO DA ETERNIDADE, que se baseia na ideia de que a nossa existência
tem sentido porque não é efémera (passageira), defendendo, precisamente, que Deus
garante a nossa existência eterna, o que, por sua vez, garante que as nossas ações e
opções não acabem no nada. Segundo os defensores deste argumento, se Deus não
garantisse a nossa existência eterna nada teria sentido porque tudo o que
fizéssemos acabaria por desaparecer.
Considere-se, por exemplo, o caso do Carlos, que treinou arduamente durante
anos para ir aos Jogos Olímpicos – todo o seu esforço terá sido em vão se,
entretanto, morrer, uma vez que, se a sua existência for interrompida, tudo o que
fez perde o sentido. O mesmo acontece com a nossa existência: caso Deus não
garantisse a nossa existência eterna, tudo o que fazemos resultaria em nada, o que
transformaria a nossa existência num completo absurdo.

CRÍTICAS/OBJEÇÕES AO ARGUMENTO DA ETERNIDADE

Este argumento da eternidade, que, como a própria designação o diz, sustenta


que a nossa existência tem sentido porque Deus nos garante a eternidade, tem como
principal objeção a ideia de que se a nossa existência tiver que ter sentido, não será
pelo facto de ser eterna que o terá, nem o perderá se não o for –
independentemente de ser eterna ou efémera (curta, passageira) – a vida precisará
de outros fatores para ser dotada de sentido.
Considere-se, por exemplo, o caso da Mariana e imaginemos que a sua existência
não tem qualquer sentido: ela levanta-se de manhã, vai para a escola, estuda, diverte-
-se com os amigos e faz toda uma série de coisas, mas considera que tudo o que faz não

188
lhe diz nada em termos de sentido – ora, se a sua existência não tem sentido, não se
vê como poderia ganhá-lo se a prolongássemos para sempre.

Imaginemos agora que a existência da Mariana tem propósito/sentido talvez porque


se dedica a atividades de valor – nesse caso, não se vê como poderá perder o sentido
da sua vida/existência só porque não é eterna; até porque grande parte das atividades
que desenvolve não visam finalidades que só possam ser alcançadas na eternidade.
Concluindo, a crítica/objeção ao argumento da eternidade é a de que uma
existência absurda e efémera não ganha sentido se deixar de ser efémera
(passageira) e passar a ser eterna e que uma existência com sentido e efémera não
perde o sentido que tem só por não ser eterna.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Caraterize, de um modo geral, a teoria religiosa do sentido da existência.

2. Explicite o argumento do propósito (que está associado à teoria religiosa do


sentido da existência) e dê exemplos (que ilustrem esse mesmo argumento).

3. Apresente as objeções feitas ao argumento do propósito.

4. Explicite o argumento da eternidade (que está associado à teoria religiosa do


sentido da existência) e dê, pelo menos, um exemplo.

5. Explicite as objeções feitas ao argumento da eternidade.

6. Concorda com a teoria religiosa do sentido da existência? Justifique.

RAZÃO E FÉ

Closer To Truth
(“MAIS PERTO DA VERDADE”)
189
"Não prometo que irei encontrar a verdade absoluta, mas prometo que vai ser
entusiasmante chegar ao limiar da verdade.” – Robert Lawrence Kuhn.

“Robert Kuhn – O que se pode aprender sobre Deus a partir da argumentação da


sua existência?
McGrath – Quem argumenta sobre Deus quer mostrar que é racional acreditar em
Deus, que a fé faz sentido, que não estamos a pendurar no armário o nosso cérebro
quando pensamos sobre Deus, que esta reflexão faz parte do grande empreendimento
humano de compreender o mundo em que vivemos.
Robert Kuhn – Alguns dizem que a fé é algo tão forte que elimina a
racionalidade.
McGrath – Não. Não concordo. Para mim, a fé e a razão andam de mãos dadas.
A fé avança para lá da razão, mas não a contradiz. Na vida real há poucas coisas que
podemos provar. A questão é sempre da probabilidade e não de prova. Por outras
palavras, a questão é saber se temos boas razões para pensar que isto ou aquilo é
correto.
Com a questão de Deus passa-se o mesmo – o que tentamos fazer é mostrar
que a sua existência faz sentido, que parecem existir boas razões para pensar isto,
embora não sejam uma prova definitiva. Se olharmos para os argumentos clássicos a
favor da existência de Deus (por exemplo, os argumentos de Tomás de Aquino), vemos
que eles não são provas no sentido moderno da palavra. Provar é o que se faz em
Matemática e em Lógica. O que Tomás de Aquino faz é argumentar, dizendo:
«Reparem, se existe Deus, então podemos compreender o movimento, a causalidade, o
bem…», ou seja, ele está a mostrar que a existência de Deus faz sentido.”

Robert Lawrence Kuhn, “Closer to Truth” – episódio 9, temporada 15, 2020 1 (adaptado).

1
Closer To Truth (Mais Perto da Verdade) é uma série de televisão pública dos
Estados Unidos da América, originalmente criada, produzida e apresentada por Robert
Lawrence Kuhn (n. 1944), intelectual público, estratega corporativo internacional e
banqueiro de investimentos. Considerado “um dos defensores mais entusiastas das
políticas de Pequim no mundo ocidental”, é um conselheiro de longa data dos líderes da
China e do governo chinês, de corporações multinacionais sobre estratégias e
transações na China e é um comentador frequente sobre política, economia,
negócios, finanças, filosofia e ciência da China.

190
Kuhn é doutorado em neurociência, recebeu um diploma de bacharel
(palestrante) em Biologia Humana pela Johns Hopkins University, em 1964, um PhD
(abreviação de “Philosophy Doctor”) em anatomia e pesquisa cerebral pela University of
California, Los Angeles Brain Research Institute, em 1968, e um Master of Science em
administração da Sloan Fellows (traduzido do inglês – o programa Sloan Fellows é um
mestrado a meio da carreira sénior em administração geral e liderança) na School of
Management, que integra a Harvard Business School, em 1980, e é autor e editor de
mais de 25 livros, tendo alcançado recordes de vendas, apenas superados pelos livros de
J. K. Rowling, (Harry Potter).
Robert Kuhn é ainda colunista (produz artigos de opinião) do China Daily, South
China Morning Post e aparece na BBC, CNN, Bloomberg, entre outros importantes canais
de divulgação de informação espalhados pelo mundo. A primeira série do programa
Closer to Truth foi para o ar em 2000 por duas temporadas, seguida por uma segunda
série exibida em 2003 por uma única temporada. A terceira série: Cosmos, Consciência,
Deus, foi lançada em 2008, com 20 temporadas completas até o momento.
Closer to Truth foi para o ar em mais de 200 países em estações de televisão
públicas e teve mais de 200.000 transmissões de programas centrados em conversas,
em direto, com importantes cientistas, filósofos, teólogos e estudiosos que
exploraram as questões mais profundas sobre Cosmos, Consciência e Significado -
a estrutura do universo, cobrindo uma gama diversificada de tópicos ou questões,
desde a causa, tamanho e natureza do universo (ou multiverso), passando pelo
mistério da consciência e da noção de livre-arbítrio, pela existência e essência de
Deus, até ao mistério da existência (ou seja, por que existe alguma coisa), tendo sido
considerada por muitos críticos e especialistas das mais diversas áreas como “uma das
mais inteligentes e informadas análises diárias sobre ciência e tecnologia,
albergando uma enorme gama de grandes escritores, ideias e publicações.”
O site Closer to Truth traz conversas extensas além das que já foram transmitidas
na TV (aproximadamente 4.000 vídeos). É o maior arquivo do mundo de entrevistas
em vídeo com os principais especialistas em filosofia da cosmologia e física,
consciência e filosofia da religião. A apresentação de Kuhn, Asking Ultimate
Questions, é a base de Closer To Truth .
O canal Closer To Truth no YouTube tem mais de 800.000 inscritos, mais de 70
milhões de visualizações totais e mais de 300 milhões de minutos de tempo de
exibição.

191
O fascínio do público relativamente aos mistérios do Cosmos, da Consciência e,
acima de tudo, de Deus, tem crescido substancialmente nos últimos anos. Os
debates têm sido intensos e, muitas vezes, atingindo proporções dramáticas. No limiar
da verdade é a épica jornada de Robert Lawrence Kuhn em busca das respostas para
as maiores questões que a humanidade enfrenta atualmente, visitando e conversando
com aqueles que pensam profundamente sobre a existência, o seu significado e
finalidade.

"Não prometo que irei encontrar a verdade absoluta, mas prometo que vai ser
entusiasmante chegar ao limiar da verdade.” – diz-nos Robert Lawrence Kuhn.

DISCUSSÃO CRÍTICA:

Se faz sentido acreditar em Deus, então, podemos concluir que devemos acreditar
em Deus?

SUGESTÃO DE RESPOSTA ABERTA:

Aceitar que faz sentido acreditar em Deus não implica que ele exista. Uma ideia pode fazer sentido
e não corresponder a nenhuma realidade existente. Devemos acreditar nas ideias verdadeiras e não
naquelas que são logicamente possíveis, mas que não sabemos se são realmente verdadeiras…

FILOSOFIA DA RELIGIÃO E TEOLOGIA

192
Para ser amplamente compreendida, e dada a sua complexidade, a experiência
religiosa tem de ser estudada, para além de disciplinas como a Sociologia, a
Antropologia, a História, a Psicologia, a Teologia, etc., principalmente pela Filosofia.
Assim, antes de mais, convirá definir o que é a Filosofia da Religião, distinguindo-
a, ao mesmo tempo, da Teologia:

“Embora a Filosofia da Religião se interesse fundamentalmente por estudar a


maneira como as pessoas que têm crenças religiosas as justificam, o seu interesse
primário não é justificar ou refutar um conjunto particular de crenças religiosas, mas
avaliar os géneros ou tipos de razões que as pessoas dadas à reflexão têm
apresentado a favor e contra as crenças religiosas.
Enquanto a Teologia é a reflexão sobre as crenças religiosas a partir de
dentro, ou seja, a partir de uma certa vivência ou tradição religiosa (um teólogo
cristão, por exemplo, reflete sobre Deus a partir da sua experiência cristã, sendo muito
comum os seus argumentos não serem eficazes junto de pessoas com outras
mundivisões religiosas), a Filosofia da Religião não é uma disciplina fundamentalmente
interior à religião, uma vez que estuda a religião de um ponto de vista abrangente e
exterior à própria religião (um filósofo baseia as suas reflexões em argumentos
racionalmente apelativos a qualquer ser humano, independentemente das suas
convicções religiosas).
À semelhança do que acontece com a Filosofia da Ciência e a Filosofia da Arte, a
Filosofia da Religião não faz parte do objeto de estudo a que se dedica, isto é,
estuda-o, analisa-o e procura explicá-lo de fora.
- Uma coisa é acreditar em Deus, outra coisa é procurar os fundamentos dessa
crença.
- Uma coisa é o estudo de Deus enquanto entidade que se supõe que existe,
outra coisa é a análise crítica da crença na existência de uma entidade a que se
chama Deus.
A Filosofia da Religião examina criticamente as crenças religiosas
fundamentais: a crença de que Deus existe, de que há vida depois da morte, de que
Deus sabe, mesmo antes de nascermos, o que iremos fazer, de que a existência do mal é
de algum modo consistente com o amor de Deus pelas suas criaturas, etc., etc..
Analisar criticamente uma crença religiosa envolve explicar a crença e
examinar as razões que têm sido apresentadas a favor e contra a crença, tendo em
vista determinar se há ou não qualquer justificação racional para afirmar que essa
crença é verdadeira ou falsa.”

193
William Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, Lisboa, Verbo, 2011, p. 17 (adaptado)

Em síntese, a Filosofia da Religião é a reflexão filosófica acerca de questões


levantadas pela vivência religiosa do ser humano, consistindo na análise crítica das
crenças mais básicas em que assentam as doutrinas religiosas, tais como a
existência de uma divindade (ou divindades), as características que possa ter essa
divindade, o conceito de vida eterna e imortalidade da alma, etc. Já a Teologia é a
reflexão das crenças religiosas a partir de uma certa vivência ou tradição religiosa.
No entanto, é muito difícil estabelecer uma fronteira clara entre Teologia e
Filosofia da Religião, pois a maioria dos teólogos também se socorre da Filosofia,
tentando usar exclusivamente a razão, para formular e propor os mais variados
argumentos e fazerem vingar as suas posições ou pontos de vista.
Pegando no último parágrafo do excerto do texto acima dado, ao examinar
criticamente uma crença religiosa, a Filosofia da Religião procura explicar tal
crença e averiguar as razões que têm sido apresentadas a favor e contra essa
crença, com o objetivo de determinar se há ou não uma justificação racional para
afirmar que essa crença é verdadeira ou falsa.
Convirá esclarecer também esclarecer que a Filosofia da Religião não se
preocupa em estudar questões empíricas, como os aspetos sociais, culturais ou
políticos relativos à religião. A sua atenção incide em conceitos fundamentais do
pensamento religioso e não em questões como “Qual a religião com mais praticantes na
Europa?” ou “Qual o livro religioso mais vendido no mundo?” ou ainda “O Hinduísmo
apresenta uma proposta para o sentido da vida mais autêntica do que, por exemplo, o
cristianismo?”, uma vez que este tipo de questões acabam, precisamente por serem de
carácter empírico, por ter respostas que não necessitam do recurso à análise filosófica.
De entre as várias questões que iremos abordar no âmbito da Filosofia da
Religião, porque exigem uma análise conceptual que apenas a Filosofia pode realizar,
tais como “Há boas razões ou provas a favor da existência de Deus?”, “Se não as
há, é, ainda assim, racional ou apropriado acreditar que Deus existe?”, “A
existência de Deus é compatível com a existência do mal?”, “Será racional acreditar
na racionalidade da alma?”, a que iremos começar por estudar é a seguinte: “Será que
Deus existe?”
Mas, antes de nos debruçarmos concretamente sobre o problema da existência
de Deus, o primeiro passo é esclarecer de que DEUS iremos falar, uma vez que
existem muitas conceções de Deus e de divindade.

194
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que significa examinar criticamente uma crença religiosa?

2. Distinga Filosofia da Religião de Teologia.

DIFERENTES IDEIAS OU CONCEÇÕES DE DEUS E DE DIVINDADE

O CONCEITO TEÍSTA DE DEUS (DEUS?! QUEM É DEUS?!)


195
Quando perguntamos se Deus existe, que definição ou que definições temos em
mente?
Existem muitas conceções de divindade. Assim, ao examinarmos criticamente
um conceito como o de Deus, o que vamos tentar fazer é distinguir as principais
conceções de Deus e decompor cada uma dessas conceções nas suas
componentes fundamentais – por exemplo, a ideia teísta de Deus é diferente da ideia
panteísta de Deus, ou seja, o panteísmo faz a identificação da divindade com o
Universo natural, isto é, Deus e o mundo são a mesma coisa; já o teísmo caracteriza
Deus como um ser único, criador do Universo, mas um ser separado deste mesmo
Universo, um ser pessoal, omnisciente, omnipotente e omnibenevolente.
Ao longo da história da humanidade, muitas foram as divindades a que os seres
humanos prestaram culto. As divindades da antiguidade egípcia eram diferentes das
divindades da antiguidade grega e romana, que, por sua vez, eram diferentes das
divindades chinesas e indianas. Todas estas religiões eram politeístas porque
prestavam culto a várias divindades.
Nas religiões monoteístas presta-se culto a uma só divindade. É o caso do
Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo (entre outras).
A este propósito, convirá esclarecer que enquanto nas religiões politeístas,
concretamente no politeísmo greco-romano, existe uma pluralidade de deuses, cada um
governando determinado aspeto ou fenómeno do mundo e da nossa vida, nas religiões
monoteístas, concretamente, na cultura ocidental, desde há muitos séculos, existe
apenas uma Divindade, ou seja, um Deus único e indivisível.
No contexto monoteísta, devemos ainda distinguir as perspetivas deístas, que
consideram que a Divindade criou o mundo e deixou de o monitorizar (supervisionar,
controlar), das perspetivas teístas, que consideram que Deus, apesar de ser um Ser
separado do Universo, continua presente na vida do Universo – foi esta ideia da
existência de um Deus teísta que percorreu a história do pensamento ocidental, estando,
pois, na base das três grandes religiões monoteístas (Cristianismo, Judaísmo e
Islamismo).
Chama-se “teísmo” à religião monoteísta que atribui a Deus determinadas
caraterísticas ou atributos (“poderes”), tais como, criador, autoexistente,
transcendente, eterno, pessoal, omnipotente, omnisciente e omnibenevolente ou
sumamente bom, entre outros. Caso uma divindade não tenha todos estes atributos –
e mais alguns para além destes – então ela não é teísta.

196
Há outras conceções de Deus, pelo que importa não confundir o teísmo com
perspetivas como o panteísmo (perspetiva religiosa que persiste desde a antiguidade,
sobretudo no Oriente – principalmente no Budismo e no Hinduísmo – aqui, Deus e o
mundo são a mesma realidade, formando uma unidade; Deus é imanente ao mundo e
não se distingue dele) e como o deísmo (perspetiva religiosa segundo a qual Deus criou
o Universo e as leis da natureza, mas não intervém no mundo).
Convém ainda notar que, no tocante à existência de Deus, há duas doutrinas
filosóficas que põem em causa o teísmo: o ateísmo (que defende que o Deus teísta
não existe – neste sentido, o ateísmo opõe-se ao teísmo) e o agnosticismo (que
defende que a razão humana é incapaz de justificar a crença de que o Deus teísta
existe ou a crença de que ele não existe – neste sentido, o agnosticismo nem afirma
nem nega a existência de Deus).
Assim, e dito de outra maneira, há inúmeras religiões e variantes delas, cada
uma seguindo uma conceção de divindade muito, ou apenas ligeiramente, diferente.
Como seria completamente impossível conhecer e debater filosoficamente cada uma
dessas conceções e cada um dos seus principais argumentos, tornou-se necessário
escolher uma noção de Deus, recaindo a nossa opção pelo debate sobre as
propriedades centrais da noção de Deus que, como já se fez referência no parágrafo
anterior, são comuns às religiões largamente maioritárias: um ser único, perfeito,
omnipotente, omnisciente e sumamente bom.
Por vezes, nesta conceção de Deus que é conhecida, como vimos já, por teísmo,
dá-se à divindade o nome de “o Deus dos filósofos”, para salientar que se trata de um
conceito “minimalista” de Deus, isto é, com um subconjunto de propriedades (já
mencionadas acima) muito mais “económico” (mais sintético ou resumido) do que aquele
em que as diferentes religiões acreditam, mas é um conceito que contém as
qualidades fundamentais mais frequentemente atribuídas a Deus e mais discutidas
pela tradição filosófica.
A ideia ou conceção teísta de Deus, que tem sido a ideia dominante de Deus na
civilização ocidental, foi sendo desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos e
filósofos. Vejamos, pois, mais em detalhe, os principais atributos de Deus, segundo
esta ideia ou conceção:

PRINCIPAIS ATRIBUTOS DE DEUS:

- Criador – criou o mundo e conserva-o na existência (criação contínua);

- Autoexistente – tem na sua própria natureza a explicação para a sua existência


– criou-se a si próprio (causa sui ou causa incausada);
197
- Transcendente – é de uma natureza superior e encontra-se separado do mundo,
sendo distinto e independente dele (transcende a realidade material);

- Eterno – tem existência temporal interminável, sem começo nem fim (nem sequer
está sujeito à lei do tempo);

- Pessoal – é uma pessoa – mas não uma pessoa humana; é um fora de série –
que pensa, que quer e que sente, e a sua relação com o ser humano é de carácter
pessoal (individual);

- Omnipotente – é todo-poderoso, ou seja, tem um poder ilimitado (embora apenas


dentro do que é possível fazer-se);

- Omnisciente – é sumamente sábio, isto é, sabe tudo (o que é possível saber-se);

- Sumamente bom – é moralmente perfeito, só deseja o bem e só faz o bem


(omnibenevolente);

Como acabámos de ver, um dos atributos (ou qualidades) essenciais de Deus,


segundo a conceção teísta, é a omnipotência. Mas este atributo parece gerar alguns
paradoxos (contradições) como aquele que é apresentado na seguinte experiência
mental, designada por PARADOXO DA PEDRA:

“Segundo este paradoxo, ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que
não a possa levantar ou não tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra, então há
algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra que criou. Por outro lado, se não pode
criar tal pedra, então há também algo que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada
que não a possa levantar. Em qualquer dos casos, há algo que Deus não pode fazer.
Logo, Deus não é omnipotente.”

William Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, Lisboa, Verbo, 2011, pp. 24-25 (adaptado)

A solução do paradoxo passa por considerar que criar uma pedra tão pesada
que Deus não a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos atributos
essenciais de Deus: a omnipotência. Se existir uma pedra tão pesada ao ponto de
Deus não ter o poder de a levantar, então Deus não é omnipotente. Por isso, se Deus
tiver o poder de criar tal pedra, terá o poder de fazer com que lhe falte um atributo que lhe
é essencial: a omnipotência.
Dizer que Deus é omnipotente significa afirmar que Deus pode fazer tudo aquilo
que não envolva uma contradição nos termos e que não seja inconsistente com
qualquer um dos seus atributos fundamentais. Deus não pode, por exemplo, fazer
com que um triângulo não tenha três ângulos ou construir uma curva reta ou uma reta
198
curva, visto isto ser logicamente impossível (envolve uma contradição nos termos), nem
pode praticar o mal, pois isso é inconsistente com a suma bondade. Deus não pode
criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar, do mesmo modo que não pode
praticar uma ação maldosa.
O problema de se saber se Deus pode ou não alterar o passado ou fazer com o
que foi não tenha sido, parece de mais difícil solução. Em todo o caso, aparentemente,
não está agora ao alcance de ninguém, nem mesmo de Deus, fazer, por exemplo, com
que D. Afonso Henriques não tivesse sido o primeiro rei de Portugal ou com que a
Segunda Guerra Mundial não tivesse acontecido.

Quer haja ou não uma solução ou, melhor dizendo, uma saída mais ou menos
razoável, mais ou menos consensual para este paradoxo, outras questões nos poderão
surgir:
- Será que Deus pode fazer com que 2+2 seja = a 5?

- Será que Deus pode praticar uma ação moralmente má?

- Será que Deus pode mudar o passado?

Estas e outras questões similares são suscitadas pela ideia teísta de Deus,
podendo ser usadas na discussão relativa ao problema da existência de Deus.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

199
1. Esclareça o conceito teísta de Deus.
2. Enuncie os atributos do Deus teísta.

3. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS COMO VERDADEIROS (V) OU


FALSOS (F):

3.1 A Filosofia da Religião examina criticamente crenças e conceitos religiosos


fundamentais.
3.2 O Deus teísta, sendo omnipotente, pode fazer coisas logicamente impossíveis.

3.3 O Deus teísta é, entre outras coisas, impessoal e imanente.

3.4 O deísmo é uma forma de politeísmo.

3.5 Os agnósticos não negam a existência de Deus, mas também não a afirmam.

4. ESTABELEÇA A CORRESPONDÊNCIA CORRETA ENTRE OS CONCEITOS DA


COLUNA A E AS AFIRMAÇÕES DA COLUNA B:

COLUNA A COLUNA B

1. Politeísmo a) Deus não intervém no mundo.

2. Teísmo b) Há diversos Deuses, sendo venerados vários.

3. Deísmo c) Deus governa o mundo e é distinto dele.

4. Panteísmo d) Deus não se distingue do mundo.

5. Agnosticismo e) Não sabemos se Deus existe ou não.

6. Ateísmo f) Deus não existe.

O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA DE DEUS

200
O JARDINEIRO INVISÍVEL

Eustáquio e Otávio observaram o jardim durante mais de duas semanas, na


segurança de um esconderijo improvisado.
“Não vimos ninguém”, disse Eustáquio, “e o jardim não se deteriorou de forma
alguma. Agora vais ter que, finalmente, admitir que estavas errado: nenhum jardineiro
cuida deste local.”
“Meu caro Eustáquio”, respondeu Otávio, “lembra-te de que afirmei que era um
jardineiro invisível.”
“Mas este jardineiro não fez nenhum ruído, nem movimentou uma única folha.
Portanto, eu concluo que não há nenhum jardineiro”, retorquiu Eustáquio.
“O jardineiro invisível”, continuou Otávio, “também é silencioso e inatingível.”
Eustáquio já estava exaltado. “Caramba! Qual a diferença entre um jardineiro
silencioso, invisível e inatingível e nenhum jardineiro?”
“Fácil”, respondeu o sereno Otávio. “Um cuida de jardins. O outro não.”

Assim como Otávio vê a mão do jardineiro na beleza do jardim, muitas pessoas


religiosas vêem a mão do jardineiro na beleza da natureza. Talvez, à primeira vista,
seja razoável supor a existência de um criador benigno e todo-poderoso desse mundo
maravilhosa e misteriosamente complexo. Mas, como Eustáquio e Otávio, temos mais do
que primeiras impressões para prosseguir. E as nossas observações contínuas parecem
expropriar (retirar, afastar), uma por uma, as características que dão vida a este Deus.
Qual é então a diferença entre esse Deus e nenhum Deus? Não será tão tolo
afirmar que ele existe quanto insistir que um jardineiro cuida do jardim que Eustáquio e
Otávio descobriram? Se Deus deve ser mais do que uma palavra ou esperança,
precisamos de algum sinal de que ele é ativo no mundo?

Julian Baggini, The Pig that Wants to be Eaten, Londres, Granta, 2005, pp. 133-135 (traduzido e
adaptado).

QUESTÃO/PROVOCAÇÃO:

O carácter fugidio (esquivo) atribuído a Deus será uma boa razão para rejeitar a
sua existência?

201
SUGESTÃO DE RESPOSTA ABERTA:

O objetivo é colocar o aluno perante o significado racional da ausência de provas acerca da


veracidade de um enunciado. O aluno pode convocar para a sua reflexão, por exemplo, a falácia da
ignorância ou o critério falsificacionista de Popper…

Como a existência de Deus não é um problema científico, a ausência de evidências não


poderá justificar nenhuma crença.

Por isso, a sugestão de resposta é: “NÃO”. Não podemos encarar o carácter fugidio ou esquivo da
divindade teísta (DEUS) como uma boa razão para negar a sua existência.

202
ARGUMENTOS A FAVOR DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Neste subcapítulo, vamos analisar os principais argumentos que foram


apresentados a favor da existência de Deus (o Deus teísta).
Ao procurarem justificar a crença de que Deus existe, os filósofos
desenvolveram argumentos que podem ser divididos em argumentos a priori
(argumentos que assentam em premissas que podem ser conhecidas independentemente
da experiência – nenhuma das suas premissas básicas é uma proposição a posteriori) e
argumentos a posteriori (argumentos que dependem de pelo menos uma premissa que
só pode ser conhecida através da experiência – pelo menos uma das suas premissas
básicas é uma proposição a posteriori).
Estes argumentos (também chamados “provas”) a favor da existência de Deus
que vamos abordar são, porventura, os três mais discutidos na história da filosofia:

- O argumento ontológico (argumento a priori, que parte simplesmente de um


conceito de Deus e é baseado na mera possibilidade de imaginarmos um ser
supremamente perfeito);

- O argumento cosmológico (argumento a posteriori, que parte do facto de o


Universo existir e é baseado na ideia da causalidade universal, bem como na
impossibilidade de uma regressão ao infinito);

- O argumento teleológico ou argumento do desígnio (argumento a posteriori,


que parte do facto de o mundo existir em ordem e finalidade e é baseado na organização
altamente complexa do universo).

Todos estes argumentos foram propostos por filósofos medievais (posteriormente


canonizados, isto é, elevados ao estatuto de Santos, pela Igreja Católica Apostólica
Romana).
Anselmo de Cantuária (1033-1109) foi o autor da primeira versão do argumento
ontológico; os outros dois argumentos, o argumento cosmológico e o argumento
teleológico (ou argumento do desígnio) devem-se a Tomás de Aquino (1225-1274),
sendo, depois de introduzidos por este, abordados por vários pensadores (filósofos e
teólogos), sob pontos de vista e perspetivas distintas.

203
ARGUMENTO ONTOLÓGICO
(ARGUMENTO A PRIORI)

Um dos argumentos a favor da existência de Deus é o argumento ontológico. A


primeira versão mais influente e uma das mais importantes deste argumento foi proposta
pelo filósofo e teólogo medieval Anselmo de Cantuária, no segundo capítulo da sua obra
Proslogion.
Antes de expormos o argumento de Anselmo, será útil perceber a distinção que o
próprio efetua entre existência na realidade e existência no entendimento (ou no
pensamento):

- O conceito de existência na realidade é o que habitualmente possuímos para


designar as coisas que efetivamente existem, independentes de nós;

- O conceito de existência no entendimento é uma coisa (ou algo) que existe no


entendimento porque pensamos nela, independentes da realidade dos factos.

Anselmo, para desenvolver esta primeira versão do argumento ontológico (a


favor da existência de Deus), baseia-se neste conceito de existência no entendimento.
A caraterística mais invulgar deste argumento resulta do facto de se basear apenas em
premissas cuja verdade (a serem verdadeiras) poderá ser conhecida a priori, ou seja,
de forma puramente lógica, puramente racional e sem recurso à experiência: a
simples análise do conceito de Deus que todos somos, supostamente, capazes de formar
nas nossas mentes, poderá demonstrar a sua existência na realidade. Dos argumentos
a favor e contra a existência de Deus, o único que é a priori (como já foi dito) é o
ontológico.
Como sabemos, um conhecimento ou um argumento é considerado a priori
quando recorre exclusivamente a premissas racionais, lógicas, não se apoiando em
qualquer informação empírica, ou seja, não se baseando em nada que derive da
experiência. Este argumento parte, assim, do conceito de Deus com o objetivo de
estabelecer a sua existência.
Ao refletir sobre o conceito de Deus, Anselmo define-o como aquele ser mais
grandioso do que qualquer outro ser que se possa pensar e pergunta-se se tal ser
poderia existir apenas no pensamento, concluindo que não, pois, segundo este, se
existisse apenas no pensamento, poderíamos pensar noutro ser mais grandioso do que
ele: um ser grandioso que existisse na realidade e não apenas no pensamento.
Logo, conclui, Deus existe.

204
Afinal, Deus é um ser perfeito. O mais perfeito que pudermos imaginar. Contudo,
como poderá o ser mais perfeito que pudermos imaginar não existir? Se não
existisse, não seria assim tão perfeito.
Não será contraditório pensar que Deus não existe? Há quem considere que
sim. Se compreendermos bem o conceito de Deus, vemos que a sua inexistência é
impossível. Do mesmo modo, se compreendermos bem o conceito de triângulo, vemos
que é impossível que não tenha três lados.
Como vemos, há dois aspetos importantes para compreender este argumento:

1. O primeiro aspeto importante do argumento ontológico é a distinção entre


existir no pensamento e existir na realidade.
Algo existe no pensamento quando é pensado por nós. Mas algumas das coisas
que existem no pensamento não existem na realidade: é o caso do Pai Natal, por
exemplo. Outras existem no pensamento e existem na realidade: é o caso de Marte, por
exemplo.

2. O segundo aspeto importante do argumento ontológico é a ideia de


grandiosidade.
Anselmo define Deus como o ser mais grandioso que o pensamento pode
pensar, ou seja, o pensamento não consegue pensar em algo mais grandioso que Deus.
Mas em que sentido é um ser ou um objeto mais grandioso do que outro qualquer? Não
está em causa a grandeza física, mas antes a superioridade. Por exemplo, qualquer
automóvel é fisicamente maior do que um ser humano, mas os seres humanos são
superiores aos automóveis. Os automóveis, por exemplo, são mais rápidos, mas os seres
humanos sabem decidir se é melhor ir depressa ou devagar.
A ideia de Anselmo é que Deus é um ser de tal modo superior, que é
inconcebível que exista outro ser que seja superior a ele – do seu ponto de vista,
“Deus existe” é uma verdade necessária, tal como “Os triângulos têm três lados”. E
Anselmo considerava que só Deus era um (ser) existente necessário: todos os outros
existentes eram (seres) contingentes (desnecessários, dispensáveis).

Podemos resumir o argumento de Anselmo da seguinte forma:

- Deus é um ser maior do que o qual nada pode ser pensado ou concebido.

- Deus existe no entendimento (visto que compreendemos o conceito de Deus).

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- Um ser que existe no entendimento e na realidade é maior do que um ser
que existe apenas no entendimento.

Assim, se Deus existe apenas no entendimento, então poderemos conceber


algo maior do que Deus, mas, a verdade é que não conseguimos conceber algo
maior do que Deus (é contraditório conseguirmos conceber um ser maior do que o qual
nada pode ser concebido – seria como tentar conceber algo que estivesse mais além do
aquilo que é infinito, pois, se o infinito é aquilo que não tem fim, não é possível conceber
algo que vá para além deste). Logo, Deus existe tanto no entendimento como na
realidade.
O argumento ontológico, de Anselmo, apesar de válido, foi sujeito a várias
críticas. Vejamos algumas delas, previamente esquematizadas:

CRÍTICAS/OBJEÇÕES AO ARGUMENTO ONTOLÓGICO – GAUNILO E KANT


(A EXISTÊNCIA NÃO É UMA PROPRIEDADE/CARACTERÍSTICA)

A primeira pessoa a reagir ao argumento de Anselmo foi o seu contemporâneo,


monge, teólogo e filósofo Gaunilo de Marmoutier (994-1083). Gaunilo defendeu que se
o argumento de Anselmo fosse bom, poderíamos provar a existência do que nos
apetecer. Dado que não podemos provar a existência do que nos apetecer, o argumento
ontológico não é bom.
Por exemplo, se o argumento ontológico fosse bom, poderíamos provar a
existência da ilha perfeita. Bastaria definir a ilha perfeita como a ilha mais grandiosa do
que qualquer outra ilha em que pudéssemos pensar. Usando um argumento parecido com
o ontológico, concluiríamos que tal ilha existe na realidade, pois se existisse apenas no
pensamento não seria a ilha mais grandiosa do que qualquer outra ilha que pudesse ser
pensada.
E, claro, podemos multiplicar os exemplos: podemos definir o amigo mais
grandioso, o país mais grandioso, o bolo de chocolate mais grandioso, etc. Mas o facto
de definirmos algo como a coisa mais grandiosa não faz com que essa coisa passe
a existir. Do mesmo modo, também não parece correto concluir que Deus existe só
porque o definimos como o ser mais grandioso.
Esta objeção de Gaunilo movida a Anselmo foi particularmente desenvolvida por
Kant que ataca a ideia de que podemos derivar a existência de uma entidade apelando
apenas ao conceito que temos dela bem como às propriedades/características que esse
conceito é suposto incluir. Segundo Kant, a existência não é um predicado ou uma

206
propriedade que possamos atribuir ou negar a algo, como o poderão ser a
omnipotência ou a omnisciência. Ora, a razão é que a existência não é uma
propriedade/característica, ou, a sê-lo, seria uma propriedade/característica de um
tipo completamente distinto daquilo a que chamamos propriedades – quando
dizemos que A tem B, estamos a empregar apenas duas propriedades, a de algo ser
um A e ter B, ou seja, não estamos a provar a sua existência. Isso é matéria para ser
apurada de outros modos, uma vez que a existência, em si, não é a mesma coisa que
as propriedades/características que as coisas reais têm, não se confundindo com
estas. A existência é sim o suporte para que as verdadeiras
propriedades/características, como ser omnisciente, grandioso, poderoso, generoso,
etc., sejam propriedades de algo (real ou imaginário).
Assim, Kant, referindo-se ao argumento ontológico, afirma que Anselmo comete
uma falha de raciocínio grave ao tentar incluir também a existência na lista das
propriedades/características (perfeitas e grandiosas) que são consideradas como
parte do conceito de Deus (o “Deus no pensamento”), uma vez que esta (a existência)
não é, em si, uma propriedade/característica, mas sim o suporte (substância) sobre a
qual essas características/propriedades deveriam recair, então não “aumentamos”
o conceito de Deus juntando-lhe ainda mais uma, a da existência (que, ainda por
cima, nem sequer uma característica é).
Assim, “o ser maior do que qualquer outro que se possa pensar” tanto pode existir
na realidade como apenas no pensamento – e pegando novamente no exemplo da ilha
perfeita de Gaunilo – por mais que imaginemos, raciocinemos e que busquemos
essa ilha na realidade, nada nos garante, na verdade, que ela exista de facto. Caso
contrário, seríamos forçados a admitir que todo e qualquer conceito de uma entidade que
consigamos imaginar no seu grau mais perfeito tem de existir.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

207
1. Exponha, sucintamente, o argumento ontológico de Anselmo de Cantuária.

2. Por que razão, segundo Anselmo, alguma coisa maior do que a qual nada
pode ser pensado existe pelo menos no intelecto?

3. Por que razão, segundo Anselmo, alguma coisa maior do que a qual nada
pode ser pensado não pode existir apenas no intelecto?

4. Formule, sucintamente, as críticas ao argumento ontológico de Anselmo (de


Gaunilo e de Kant).

5. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS COMO VERDADEIROS (V) OU


FALSOS (F):
5.1 O argumento ontológico é um argumento a priori.

5.2 Segundo Anselmo, Deus não existe no entendimento.

5.3 A existência (na realidade) constitui, para Anselmo, um dos aspetos da


grandiosidade de Deus.

5.4 Gaunilo criticou o argumento de Anselmo por este pressupor que o Universo é
perfeito.

5.5 Segundo Kant, a existência é um predicado que torna Deus grandioso.

208
ARGUMENTO COSMOLÓGICO
(ARGUMENTO A POSTERIORI)

O argumento cosmológico, que, como já foi dito atrás, é um argumento a


posteriori, remonta aos escritos de Platão (428-348 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.),
embora o fundamental no progresso deste argumento se tenha dado nos séculos XIII e
XVIII. Algumas versões do argumento cosmológico pressupõem que o Universo nem
sempre existiu e outras pressupõem que o Universo existe desde sempre – em todo o
caso, a ideia central destas versões é a de que sem Deus não se consegue explicar
adequadamente a existência do Universo. Daí questões como estas:

- De onde veio o mundo?


- Como começou a existir?
- Por que há mundo, em vez de nada?

Para dar resposta a este tipo de questões, há quem considere que Deus existe
porque de outro modo, como já foi dito acima, não conseguimos explicar a existência
do mundo…
Mas, fará sentido esta maneira de pensar ou, pelo contrário, não faz qualquer
sentido atribuir a Deus a causa/origem do Universo e de tudo o que nele existe?
Vejamos, então, duas versões do argumento cosmológico – a versão da causa
primeira e a versão da sequência de causas – bem como as críticas/objeções que
lhes são movidas.

VERSÃO DA CAUSA PRIMEIRA (DEUS)

Uma das versões do argumento cosmológico, é a versão da causa primeira,


que se baseia no facto empírico de o Universo ou Cosmos existir, partindo da
observação de que os fenómenos que ocorrem em nosso redor têm, todos eles, causas
específicas, o que sugere que tudo o que acontece tem uma causa, sendo, portanto, o
resultado ou o efeito de acontecimentos anteriores, ou seja, todas as coisas e
mudanças da natureza foram causadas por qualquer coisa que lhes é anterior –
nada surgiu ou começou a existir sem uma causa.

209
As causas e os efeitos formam longas sequências que se estendem (numa lógica
regressiva) até ao passado remoto: por exemplo, a causa da nossa existência foram os
nossos pais; e a causa da existência dos nossos pais foram os pais deles. A causa do
planeta Terra foram vários acontecimentos anteriores que incluíam o nosso Sol e a causa
do nosso Sol. E a causa do nosso Sol foram vários acontecimentos anteriores. Ou seja, a
formação do planeta Terra tem como causa anterior a formação do Sistema Solar; o
Sistema Solar tem como origem remota a formação da Via Láctea; a formação das
galáxias tem origem no Big Bang (teoria cosmológica sobre o desenvolvimento inicial do
Universo, a que alguns também chamaram “hipótese do átomo primordial”, que se baseia
não numa hipotética explosão do espaço, como, erradamente, muitos interpretam, mas
sim numa expansão do próprio espaço, mas, se aceitarmos que tudo tem uma causa,
também o Big Bang terá uma!)…
Na verdade, ficaríamos muito surpreendidos se encontrássemos uma coisa
qualquer ou um acontecimento que não tivesse uma causa.
Esta sequência origina uma interrogação: poderão as causas e os efeitos
remontar por uma sequência infinita em direção ao passado ou há algures um início
da cadeia de causas e efeitos, uma primeira causa? A resposta a esta questão
constitui o essencial do argumento. Vejamos em que consiste:

1. Tudo o que existe tem uma causa.

2. Se tudo o que existe tem uma causa, então o universo, no seu conjunto,
também tem uma causa.

3. Logo, o universo tem uma causa.

Para além disso:


4. A cadeia de causas não pode recuar infinitamente.

5. Se a cadeia de causas e efeitos não é infinita na direção do passado, então


existe uma primeira causa.

Conclusão:
6. Há uma primeira causa do universo e essa primeira causa é Deus.

Aparentemente, trata-se de um argumento bastante simples:

1. Consiste numa generalização universal daquilo que a nossa experiência nos


informa sobre os acontecimentos com os quais contactamos diretamente.

2. Estabelece que aquilo que se verifica a respeito de cada acontecimento


particular se aplica ao universo no seu conjunto.

210
3. Diz-nos que a série das causas e dos efeitos não pode ser infinita.

4. Afirma que não é possível que se recue na ordem das causas sem parar – a
cadeia não pode ser infinita.

Este argumento, que pressupõe que a cadeia causal não pode recuar
indefinidamente e que, portanto, teremos que chegar a uma causa primeira que
origina toda a cadeia causal, foi alvo de uma profunda reflexão por Tomás de Aquino
(1225-1274), frade e teólogo, que procurou demonstrar a existência de Deus, na sua
obra Suma Teológica, através das chamadas cinco vias, das quais destacamos a
segunda via – designada por “Causa Eficiente Primeira” e que pode sintetizar-se da
seguinte forma:
Todos os acontecimentos e coisas no mundo são causados por algo e nada é
causa eficiente de si mesmo.

As causas são anteriores aos efeitos.

Ou a série de causas eficientes (a cadeia causal) regride infinitamente, ou


existe uma causa eficiente primeira.

A série de causas eficientes não regride infinitamente.

Logo, existe uma causa eficiente primeira – a que chamamos Deus.

Outra forma possível, e mais simples, de apresentar este argumento é a seguinte:


Se não existisse uma causa eficiente primeira, então não existiriam causas
subsequentes.

Existem causas subsequentes.

Logo, existe uma causa eficiente primeira – uma causa incausada e que é a
origem de todas as outras causas, ou seja, Deus.

Parece não haver dúvidas de que estamos perante um argumento válido. Mas
será que poderemos considerá-lo sólido? Ou seja, será que as suas premissas são
todas verdadeiras? Por outro lado, será que podemos concluir que essa causa
eficiente primeira é Deus?
Vejamos as principais críticas/objeções que podem ser dirigidas ao argumento
da causa primeira…

CRÍTICAS/OBJEÇÔES À VERSÃO DA CAUSA PRIMEIRA (DEUS)

A primeira versão do argumento cosmológico baseia-se na ideia de que se


todas as coisas têm uma causa, então há uma causa para todas as coisas. Essa

211
causa é Deus. Assim, a existência do universo só pode ser explicada recorrendo à
entidade Deus:

Tudo o que existe tem uma causa.


Logo, o universo tem uma causa, que é Deus.

A premissa do argumento é tudo o que existe tem uma causa. Com base nesta
premissa, conclui-se que Deus é a causa do universo. Contudo, qual é a causa de
Deus?
Se a ideia é Deus que não tem causa alguma(causa incausada), a conclusão
contradiz a premissa que afirmava que tudo tem uma causa. Nesse caso, o argumento
é incoerente.
Se a ideia é que Deus se causa a si mesmo, porque não pode o universo
causar-se a si mesmo?
Se a premissa tudo o que existe tem de ter uma causa for verdadeira, isso
implica que Deus, caso exista, também a tenha. Se há algo que é a causa da existência
de Deus, então esse algo (que o precedeu) vem antes dele na sequência causal que
depois ele continuou, criando o Universo. Logo, ao invés do que o argumento (ontológico)
procura estabelecer, Deus não seria a primeira causa.
Uma forma de escapar a esta dificuldade seria pensar que Deus, sendo a causa
de tudo, é causa de si mesmo. Mas o conceito de causa de si mesmo é filosoficamente
bastante suspeito. Para algo ser causa de si mesmo, teria de se gerar a si próprio. Ora,
para se gerar a si próprio, teria de já existir, logo, não precisaria de se gerar.

VERSÃO DA SEQUÊNCIA DE CAUSAS

A segunda versão do argumento cosmológico começa com esta pergunta


simples: porque há algo em vez de nada?
Por exemplo, por que existe a Joana, em vez de não existir? A resposta óbvia é
que ela existe porque os pais dela a conceberam. Caso os pais dela não a tivessem
concebido, ela não existiria. Mas isso significa que temos de perguntar agora por que
existem os pais dela? E a resposta óbvia é que eles existem devido aos pais deles. E
assim por diante…
Ora, ou esta sequência de seres responsáveis pela existência dos outros para num
dado ponto ou continua para sempre. Vamos explorar estas duas hipóteses, uma de cada
vez: como primeira hipótese, imaginemos então que a sequência de seres responsáveis
pela existência dos outros para num determinado ponto. Que ponto poderá ser esse?
Imaginemos que é o Big Bang. Poderá o Big Bang explicar porque existe a Joana? Não.
212
Isto porque o Big Bang aconteceu, mas poderia não ter acontecido. Temos de supor que
foi Deus quem criou o Big Bang, sendo responsável pela existência da Joana e de tudo o
resto (a ideia é que o Big Bang é um acontecimento contingente e não necessário, ao
passo que Deus é um existente necessário).
Exploremos agora a segunda hipótese: a sequência de seres responsáveis pelos
outros continua para sempre. Neste caso, conseguimos explicar a existência da Joana?
Não. Porque ainda não explicámos por que razão existe essa sequência infinita de seres
responsáveis pela existência uns dos outros. Afinal, essa sequência existe mas poderia
não ter existido. Por que razão existe? Uma vez mais, temos de supor que foi Deus quem
criou essa sequência infinita de seres, sendo responsável pela existência da Joana e de
tudo o resto (uma vez mais, a ideia é a de que a sequência existe contingentemente, e
não necessariamente, ao passo que Deus existe necessariamente).

Assim, o argumento é o seguinte:


Ou a sequência de seres para no Big Bang ou continuará para sempre.
Se para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem o criou.
Se não para no Big Bang, temos de supor que foi Deus quem criou essa
sequência infinita.
Logo, em qualquer dos casos, Deus existe (o argumento é dedutivamente
válido).

CRÍTICAS/OBJEÇÕES À VERSÃO DA SEQUÊNCIA DE CAUSAS


(QUAL FOI A CAUSA DE DEUS?)

A primeira objeção a esta versão do argumento cosmológico rejeita a segunda


premissa, que é: se a sequência de seres para no Big Bang, temos de supor que foi
Deus quem o criou. Mas por que razão temos de supor tal coisa? Talvez, pelo
contrário, o Big Bang tenha surgido do nada; ou talvez seja um acontecimento necessário,
algo que não poderia deixar de acontecer. A objeção a essa premissa é que pressupõe
sem justificação que caso o Big Bang seja a origem de tudo, não há outra maneira de o
explicar exceto recorrendo a Deus. Mas parece haver outras maneiras. Logo, a premissa
é pelo menos duvidosa (os desenvolvimentos mais sofisticados do argumento
cosmológico respondem precisamente a estas objeções).
A segunda objeção rejeita a terceira premissa: se a sequência de seres não
para no Big Bang, se é infinita, temos mesmo de supor que Deus a criou? Isto
pressupõe sem justificação que não há outras maneiras de explicar a sua existência.
Contudo, parece haver outras maneiras. Talvez a sequência seja eterna e seja impossível
213
que não exista. Ou talvez tenha surgido do nada. Assim, a premissa é pelo menos
duvidosa.

A terceira objeção rejeita a versão de que o Universo foi criado e que tem um
princípio e um fim, baseando-se precisamente na admissão da hipótese contrária – a de
que o Universo poderá não ter sido criado e que poderá não ter princípio nem fim.
Assim, estamos, de facto, para além da dificuldade em responder à pergunta:
“Qual foi a causa de Deus?”, perante uma outra dificuldade, que se traduz no seguinte:
ainda que todos os acontecimentos tenham uma causa e que as causas precedam
os efeitos, tal não significa necessariamente que existe uma primeira causa de
tudo. A série de causas e de efeitos podia estender-se ao longo de um tempo sem fim,
quer na direção do futuro quer na direção do passado. A possibilidade de tudo o que
existe ter uma causa é compatível com um mundo sem princípio nem fim; um mundo
que exista desde sempre, quer na direção do passado quer na direção do futuro.
Um exemplo de como podemos conceber séries infinitas é o dos números, que
são infinitos em qualquer das direções da linha numérica (números negativos e números
positivos).
Em última análise, no que toca às críticas/objeções dirigidas ao argumento
cosmológico, nomeadamente à suas versões da causa primeira e da sequência das
causas, poderemos apresentar, de forma sintética, o seguinte:

1. A principal premissa do argumento – a de que todas as coisas são causadas


por uma outra coisa – assenta na nossa experiência de como as coisas são neste
mundo ou no Universo. Todavia, o argumento pede-nos que estendamos tal ideia àquilo
que terá feito existir o Universo. Ora, isso é algo que está fora da nossa experiência
de como as coisas são neste mundo ou no Universo, visto que está fora do próprio
Universo (a causa do Universo está fora dele). A nossa experiência não pode de todo
esclarecer isso.

2. Este argumento envolve uma autocontradição: defende, ao mesmo tempo,


que todas as coisas foram causadas por qualquer outra coisa, não havendo causa
que não tenha sido causada, e que existe uma causa que não foi causada por outra
coisa: Deus (causa incausada). A principal premissa do argumento contradiz, assim, a
sua conclusão. Podemos, então, ser levados a perguntar: “E o que causou Deus?”
Alguns filósofos dizem que Deus é causa de si mesmo (causa sui), mas a ideia de algo
ser causa de si mesmo, no sentido de se gerar a si próprio, parece bastante obscura. Se
se objetar que tudo, exceto Deus, tem uma causa, e admitindo que a cadeia de causas

214
tem de parar algures e em determinada altura, então, podemos perguntar: por que razão
esse algo incausado é Deus e não o próprio Universo?

3. Este argumento pressupõe que não há uma regressão (retrocesso) infinita na


série de causas e efeitos. No entanto, da mesma maneira que é possível existir uma
cadeia finita de causas e efeitos que necessitaria de uma causa primeira para subsistir, é
igualmente possível existir uma cadeia de causas e efeitos que subsista sem necessidade
de uma primeira causa. As cadeias de causas e efeitos podem regredir e estender-se
infinitamente (à semelhança do que acontece com os números).

4. Ainda que este argumento nos possa convencer da existência de um deus,


encarado como causa primeira, existem sérios limites ao que pode ser concluído a
partir de tal argumento, não havendo razões para pensar que estejamos perante o Deus
teísta. A primeira causa é, certamente, muito poderosa, mas o argumento não garante
que seja um Deus todo-poderoso ou omnipotente – a causa originária/primeira pode,
inclusive, consistir numa equipa de seres. Para além disso, este argumento também não
apresenta nenhuma razão para aceitar a existência de um deus omnisciente e
sumamente bom. Isto porque uma primeira causa não tem necessariamente de ter
esses atributos. Finalmente, quem propõe este argumento fica ainda com o problema
de saber como pode uma divindade omnisciente, omnipotente e sumamente boa
tolerar o mal que existe no mundo.

215
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Formule a versão da causa primeira do argumento cosmológico.

2. Explicite as objeções à versão da causa primeira do argumento


cosmológico.

3. Formule a versão da sequência de causas do argumento cosmológico.

4. Explicite as objeções à versão da sequência de causas do argumento


cosmológico.

5. Por que razão, segundo Tomás de Aquino, a cadeia causal não pode
regredir até ao infinito?

6. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS COMO VERDADEIROS (V) OU


FALSOS (F):

6.1 O argumento cosmológico é um argumento a priori.

6.2 Tomás de Aquino recusa a existência de uma regressão infinita na série de


causas e efeitos.

216
6.3 O argumento da causa primeira é criticado por admitir que Deus não é causa
de si mesmo.

6.4 O argumento da causa primeira, sendo válido, demonstra inequivocamente a


existência de Deus.

ARGUMENTO TELEOLÓGICO OU DO DESÍGNIO


(ARGUMENTO A POSTERIORI)

A VERSÃO DA ANALOGIA OU DA SEMELHANÇA (WILLIAM PALEY)

O argumento teleológico (do grego telos – que significa “fim”, “finalidade” ou


“propósito”) a que também se chama argumento do desígnio, é um argumento a
posteriori que parte do nosso sentimento de assombro (admiração, deslumbramento,
estupefação) pelo facto de muitas coisa no mundo manifestarem ordem e desígnio, isto
é, propósito e finalidade.
A ideia subjacente às diferentes versões do argumento teleológico é a de que
sem o pressuposto da existência de Deus não conseguimos explicar
adequadamente a ordem, a finalidade ou o desígnio, a beleza, a complexidade e as
maravilhas que existem no Universo.
Este argumento (proposto por Platão, embora a favor de uma divindade diferente
do Deus teísta – um só Deus, com todos os poderes que mais nenhum outro ser possui –
e, mais tarde, por Tomás de Aquino) é o mais discutido atualmente, sobretudo graças a

217
recentes descobertas científicas sobre o Universo – no Universo, e no planeta Terra em
particular, há ordem e desígnio. Nele, nada parece existir ou acontecer por acaso, e
tudo se sucede de uma forma que aparentemente não é aleatória (basta pensar, por
exemplo, nas estações do ano ou no ciclo da água e na hierarquia que prevalece entre
plantas e animais).
Perante este cenário, podemos perguntar: tudo isto terá surgido por acaso ou
foi, pelo contrário, obra de um criador inteligente?
Diferentemente do argumento cosmológico, que se baseia não na ordem do
universo mas na sua existência, há quem considere que Deus existe porque, de outro
modo, não poderíamos explicar esta ordem – esta é a base do argumento
teleológico ou argumento do desígnio.
Os defensores do argumento teleológico sustentam que tudo é obra de um
criador inteligente, rejeitando, assim, a possibilidade de o Universo e todas as coisas
terem surgido por acaso, dando origem ao argumento da negação do acaso, que pode
ser formulado da seguinte maneira:

Ou as maravilhas da natureza ocorreram aleatoriamente, por acaso, ou são o


produto de um desígnio inteligente.
As maravilhas da natureza não ocorreram por acaso.
Logo, elas são o produto de um desígnio inteligente.

William Paley (1743-1805), teólogo e filósofo britânico, que usou o argumento


teleológico, baseia-se numa analogia entre o Universo e um relógio – "analogia do
relojoeiro" – para explicar que a complexidade e adaptações dos seres vivos eram a
prova da intervenção divina na criação. Segundo Paley, se nos depararmos com um
objeto composto por muitas partes diferentes que surgem organizadas para
trabalharem juntas para um resultado, sem que nenhuma delas pareça lá estar sem
uma razão de ser, ou seja, sem contribuir para esse resultado, a nossa conclusão
imediata será pensar que esse objeto não é fruto do acaso, mas sim de um ser
inteligente que o concebeu e o construiu para que funcionasse e obtivesse um
determinado resultado.
O relógio pressupõe a existência prévia de um relojoeiro como seu autor (Deus) e
de um desígnio ou propósito deste: dispor as várias peças de modo que se
obtivesse a leitura das horas, dando sentido e ordem a tudo.
Assim, toda a manifestação de desígnio existente num relógio também existe
no funcionamento da natureza e tudo no Universo está cuidadosamente
organizado, harmonizando-se cada parte numa totalidade complexa.
218
Do mesmo modo, a grande organização de partes nos seres vivos (a chamada
organicidade), cada uma delas com uma função mas concorrendo para a sobrevivência e
multiplicação desses organismos, sugere que, também eles, foram concebidos por uma
força inteligente com um propósito ou desígnio. Ora, essa força, para os defensores
deste argumento (teleológico ou do desígnio) é Deus.
Este argumento por analogia (entre o Universo e um relógio), de William Paley,
pode ser assim resumido:
Inferimos corretamente que um relógio foi feito por um criador inteligente,
porque ele tem partes que funcionam conjuntamente ao serviço de um propósito ou
finalidade.
O Universo também é composto de partes que funcionam conjuntamente ao
serviço de um propósito ou finalidade.
Logo, o Universo foi feito por um criador inteligente (DEUS).

Esquematicamente, atentemos nas principais ideias sobre as quais se funda o


argumento teleológico ou do desígnio:

RELÓGIO (MÁQUINA) UNIVERSO (NATUREZA/SERES VIVOS)

Composto por partes (peças) Composto por partes (células)

Partes pequenas formam partes maiores Partes pequenas formam partes maiores (órgãos)

Funções inferiores permitem funções superiores Funções inferiores permitem funções superiores

Todas as partes e funções são necessárias Todas as partes e funções são necessárias

Função geral (dar as horas) Função geral (sobrevivência)

Teve um criador (relojoeiro) Teve um criador (Deus)

Este argumento não é dedutivamente válido, nem os seus proponentes afirmam


que o é. É claro que pode ser verdade – ou seja, não é estritamente impossível nem
contraditório – que o objeto referido acima resulte de um acaso incrível, isto é, que as
premissas sejam verdadeiras (“o objeto tem as caraterísticas de X, Y e Z, etc.”) e a

219
conclusão seja falsa (não foi criado por um ser inteligente e com um desígnio), e logo,
que a analogia entre o par Deus/universo e o par relojoeiro/relógio não prova que o
universo tem um criador… Mas um argumento por analogia, nunca sendo infalível,
dá-nos, ainda assim, boas razões para acreditar na conclusão, fundamentalmente
porque torna essa conclusão tão provável quanto a conclusão de que o relógio foi
construído por um relojoeiro, e essa é uma probabilidade altíssima. Aliás, trata-se
de um tipo de argumento usado na própria ciência.
No entanto, o que é fundamental para que um argumento por analogia
funcione é que, naturalmente, a analogia ou comparação por semelhança seja
correta. Isso exige não só que as entidades e condições comparadas sejam de facto
semelhantes, e que as semelhanças sejam muitas, mas também que elas se
verifiquem nos aspetos relevantes. Caso contrário, enfraquecemos o argumento. Por
exemplo, se dois automóveis são em tudo semelhantes, não posso daí concluir que
pertencem à mesma pessoa. No entanto, mesmo que sejam muito diferentes, observá-los
frequentemente na mesma garagem de uma casa onde habita apenas uma pessoa
permite-nos extrair essa conclusão por analogia ou associação de localização, ainda
que isso seja apenas provável.
Esta versão da analogia ou da comparação por semelhança, pode também ser
explicada nestes termos: imaginemos que descobrimos em Marte um objeto estranho.
Quando o estudamos com cuidado, descobrimos que é muito semelhante aos nossos
telemóveis. Tem várias partes interligadas entre si, permitindo fazer ligações telefónicas.
Qual é a nossa conclusão? Que está ali uma marca da presença de seres inteligentes,
mesmo que nunca os tenhamos visto. Porquê? Porque esse objeto só pode ter sido
criado por seres inteligentes. Mas, de novo, porquê? Porque todos os outros objetos
semelhantes a esse de que temos conhecimento nunca surgiram espontaneamente:
foram sempre criados por nós. Nunca vimos surgir espontaneamente um telemóvel, nem
qualquer outro objeto semelhante a um telemóvel (outro exemplo poderia ser o de alguém
que descobre um relógio numa ilha ou numa praia deserta).
Ora, o universo também é feito de partes incrivelmente complexas,
interligadas entre si. Por exemplo, o Sol permite a existência de vida na Terra. As
plantas permitem a existência de animais herbívoros. Os animais herbívoros permitem a
existência dos predadores e assim por diante… E, mesmo quando observamos as partes
que constituem um certo animal, podemos ver que estão organizadas de tal modo que
possibilitam uma determinada função. Por exemplo, cada uma das partes que constituem
os nossos olhos está organizada de tal modo que permitem a visão.

220
O que isto significa é que o universo é semelhante a um artefacto (ao qual
poderíamos associar a conceção de sistema – como um todo organizado – em que cada
peça tem a sua função ou desígnio com vista a uma finalidade – por exemplo, o motor
de um automóvel é um sistema): ambos são constituídos por muitas partes interligadas
entre si, que permitem várias funções com vista a um resultado ou finalidade. Ora, se no
caso do telemóvel, do relógio ou do automóvel, concluímos que foram criados por
seres inteligentes, devemos concluir o mesmo relativamente ao universo: também
este foi criado por um ser inteligente. E esse ser inteligente é Deus.

CRÍTICAS/OBJEÇÕES À VERSÃO DA ANALOGIA OU DA SEMELHANÇA

Uma das críticas dirigidas ao argumento teleológico é a de que este se baseia


numa fraca analogia: a semelhança entre os relógios e o Universo é fraca, havendo
também entre eles diferenças relevantes, pois aquilo que sabemos sobre a origem dos
relógios aprendemo-lo através da observação de muitos deles e da sua produção, ao
passo que nunca observamos diferentes universos (o Universo é único, ao invés dos
relógios) nem a sua produção.

Para percebermos melhor as ideias que estão subjacentes à objeção da versão


da analogia ou da semelhança que integram o argumento teleológico ou do desígnio,
façamos um pequeno esforço mental e imaginemos que descobrimos um objeto em
Marte que, embora se trate de um objeto nunca visto, percebemos que é um objeto de
grande complexidade. Mas ele é de tal modo estranho que não sabemos o que é nem
para que serve, se é que serve para alguma coisa. Vemos que é muito complexo, com
várias partes interligadas entre si, mas é totalmente diferente de qualquer artefacto ou
objeto natural que nós conheçamos. O que concluímos, neste caso? Que o objeto foi feito
por seres inteligentes? Não. Ficamos sem saber se o objeto surgiu naturalmente ou se foi
feito por seres inteligentes. Isto porque não conhecemos outros objetos semelhantes. O
mesmo acontece no caso do Universo: é uma coisa única. Por isso, nada podemos
concluir a partir da sua complexidade.
Assim, uma objeção à versão da analogia ou da semelhança e ao argumento
teleológico, é que há uma diferença muito importante entre os artefactos e o
universo. No que respeita aos primeiros (artefactos), a nossa conclusão é correta
porque já vimos vários, e, em todos estes casos, os artefactos foram feitos por
seres inteligentes. No caso do segundo (universo), contudo, não vimos vários. Só
vimos um Universo. Por isso, não sabemos se foi ou não feito por seres
inteligentes.

221
A VERSÃO DA ORDEM E DA “GOVERNAÇÃO DAS COISAS” (TOMÁS DE
AQUINO)

Imaginemos (mais uma vez se faz aqui apelo às nossas capacidades imaginativas)
que estamos a olhar a formação das nuvens, num dia de verão glorioso. De repente,
damo-nos conta de que as nuvens estão a formar letras no céu. A pouco e pouco,
começamos a ler: “A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875,
era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o Bairro das
Janelas Verdes, por casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete.”
Ficamos muito surpreendidos. Esta é a primeira frase do Romance Os Maias, de
Eça de Queirós. Depois dessa frase, as nuvens formam a segunda frase do romance… e
depois disso a terceira, e assim por diante sem parar, acabando por escrever todo o
romance de Eça de Queirós, sem errar.
Será este estranho fenómeno fruto do acaso? A resposta é que isso nos
parece incrivelmente improvável; tão improvável que é quase impossível. Seria uma
coincidência inacreditável. O que suspeitamos é que algum cientista está a fazer
experiências com tecnologias que desconhecemos. Dificilmente acreditamos que é um
mero acaso. Contudo, o universo e nós mesmos somos ainda mais complexos do que Os
Maias. Assim, a versão da ordem do argumento do desígnio é a seguinte:
Se Deus não existe, o acaso é responsável pela ordem que observamos no
universo.
Mas o acaso não pode ser responsável por tal ordem (tal como as nuvens não
podem escrever por mero acaso).
Logo, Deus existe.

Aqueles que aceitam o argumento teleológico consideram que, se olharmos para


a natureza, encontramos cada vez mais indícios da existência de Deus. Por outro lado,
visto que as coisas naturais são concebidas de formas muito mais engenhosas do
que os artefactos humanos, o criador divino deve ter sido mais inteligente do que
os criadores humanos. Além disso, ele deve ter sido tão poderoso e tão inteligente
que faz sentido supor que terá sido Deus que deixou a sua marca na natureza.
Tomás de Aquino apresentou também uma versão do argumento teleológico
(através da quinta via – “via da governação das coisas” – apresentada na sua obra, já
mencionada a propósito do argumento cosmológico, Suma Teológica, o qual pode ser
assim explicitado:

222
Há coisas destituídas de conhecimento que apresentam uma ordem que
tende para um fim.
Se não há um ser cognoscente e inteligente que dirige para um fim as coisas
naturais, então não há coisas destituídas de conhecimento que tendem para um
fim.
Logo, há um ser cognoscente e inteligente que dirige para um fim as coisas
naturais e esse ser é DEUS.

O argumento de Tomás de Aquino toma como ponto de partida a observação


de finalidades na natureza, concretamente naqueles seres que não possuem
conhecimento nem inteligência. As flores, por exemplo, sendo estruturas reprodutoras,
têm como função produzir sementes através da reprodução sexuada – elas cumprem
essa finalidade, mas não têm conhecimento ou inteligência. Além disso, elas comportam-
se sempre, ou quase sempre, e de modo a realizarem o que é melhor para elas. Tomás
de Aquino acredita que elas não atingem esse fim por acaso, mas em virtude de
determinada intenção e orientação.
Ora, nenhuma entidade desprovida de inteligência atua, de modo consciente
e por si mesma, tendo em vista determinada finalidade, pelo que tem de existir
alguma entidade inteligente e cognoscente que a dirija, tal como uma flecha não pode
dirigir-se ao alvo e atingi-lo se não for por iniciativa e intervenção de um arqueiro
inteligente.
A entidade que dirige as flores terá de ser dotada de inteligência e conhecimento –
logo, existe um ser inteligente e cognoscente pelo qual todas as coisas naturais são
ordenadas, dirigidas e orientadas para um fim – esse ser é DEUS.
O argumento teleológico, nas suas diversas versões, foi sujeito as várias
críticas. Vejamos duas delas:

CRÍTICAS/OBJEÇÕES À VERSÃO DA ORDEM E DA “GOVERNAÇÃO DAS


COISAS” (CHARLES DARWIN)

Uma vez mais, imaginemos que temos vários organismos num dado meio. Estes
organismos alimentam-se e reproduzem-se. Por mero acaso, alguns nascem com uma
cor esverdeada. Com essa cor, escapam mais facilmente aos predadores, escondendo-se
entre a folhagem. Com o tempo, deixam mais descendentes esverdeados do que os
outros, que morrem mais cedo devido aos predadores e que por isso deixam menos
descendentes. Depois de muito tempo, todos os descendentes daqueles organismos são

223
verdes (este exemplo baseia-se em fenómenos do mundo natural, comprovados
cientificamente).
Quando olhamos para os organismos, vemos (percecionamos) uma ordem: os
organismos verdes estão aptos para melhor escaparem aos predadores. Por isso,
parece-nos que esta ordem não pode ser natural e que, portanto, alguém teve de a
conceber e criar. Mas isso não aconteceu. Processos puramente naturais e do acaso
dão, ao longo de um lento processo de adaptação e ajustes sucessivos, origem à
ordem – esta é a base da teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882), que
procura explicar que, em muitos casos, a ordem tem origem no mero acaso, pondo em
causa a versão da ordem e da “governação das coisas” do argumento teleológico
ou argumento do desígnio, mostrando que o acaso é, muitas vezes, responsável pela
ordem.
Assim, o argumento teleológico perde a sua força quando confrontado com a
teoria da evolução por seleção natural, defendida por Charles Darwin na sua obra A
Origem das Espécies (1859). Pelo processo de seleção natural, os organismos mais
aptos são os que sobrevivem no meio, reproduzem-se e transmitem as suas
características aos seus descendentes. Este processo explica como as maravilhosas
adaptações ao meio ambiente podem ter ocorrido. Sem refutar a existência de Deus, a
teoria da evolução acaba, no entanto, por enfraquecer o argumento teleológico, uma
vez que apresenta uma explicação alternativa: explica os mesmos efeitos sem
mencionar Deus como causa. Esta teoria impede que o argumento teleológico surja
como demonstração conclusiva da existência de Deus.
O argumento teleológico, ainda que possa demonstrar a existência e a
necessidade de um criador inteligente, não prova que ele seja único – pode tratar-se
de uma equipa de deuses, todos eles finitos e imperfeitos, tal como só uma equipa de
seres humanos é capaz de construir uma nave espacial – nem prova que se trata de um
arquiteto omnipotente e perfeito – poderá argumentar-se que o Universo apresenta
“erros na conceção” ou “defeitos de fabrico”, visíveis, por exemplo, em organismos
imperfeitos e/ou doentes – nem sequer prova que o criador seja omnisciente e
sumamente bom – a contrariar essa ideia está a existência do mal no mundo (as
catástrofes, o sofrimento, a doença, a morte, a crueldade, …), sendo que, aparentemente,
Deus nada faz para o impedir.

Em suma, esse eventual criador não é necessariamente Deus. O argumento


teleológico apenas pode oferecer-nos, quando muito, uma conclusão bastante
limitada: a de que o mundo foi concebido por algo ou alguém.

224
ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explique em que se baseia o argumento teleológico ou do desígnio.

2. Formule aversão da analogia ou da semelhança do argumento teleológico ou


do desígnio.

3. Explicite a objeção à versão da analogia ou da semelhança do argumento


teleológico ou do desígnio.

4. Formule a versão da ordem do argumento teleológico ou do desígnio.

5. Explicite a objeção à versão da ordem do argumento teleológico ou do


desígnio.

6. Admitindo que o argumento que Tomás de Aquino apresenta é sólido, será


que podemos dizer que, nesse caso, ele prova a existência de Deus?

7. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS COMO VERDADEIROS (V) OU


FALSOS (F):

7.1 O argumento teleológico é um argumento a posteriori.

7.2 O argumento da negação do acaso foi criticado por cometer a falácia do falso
dilema.

225
7.3 William Paley, apesar de utilizar o argumento teleológico, julgava que qualquer
argumento baseado numa analogia entre artefactos humanos e o Universo será sempre
um argumento fraco.

7.4 Tomás de Aquino acreditava que as coisas naturais têm consciência e que é só
por isso que se dirigem para determinados fins.

7.5 O argumento de Tomás de Aquino é posto em causa pela teoria da evolução


das espécies por seleção natural, defendida por Darwin.

7.6 O argumento teleológico, mesmo que prove a existência de um criador, não


prova que ele seja perfeito.

FÉ E RAZÃO
O FIDEÍSMO (SOREN KIERKEGAARD E BLAISE PASCAL)

Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição


entre a paixão infinita da interioridade do indivíduo e a incerteza
objetiva. Se eu for capaz de apreender Deus objetivamente,
não acredito; mas precisamente porque não posso fazer isto,
tenho de acreditar.

Soren Kierkegaard

INTRODUÇÃO

Considere-se a questão de saber se há ou não oxigénio na atmosfera de Marte.


Isto é algo que estabelecemos observando, fazendo experiências científicas e
raciocinando com base nelas. Caso não tenhamos provas suficientes, suspendemos o
226
juízo, ou seja, nem acreditamos que há nem que não há oxigénio na atmosfera de Marte.
Será que devemos fazer o mesmo quanto à existência de Deus? Devemos nós
suspender o juízo quanto à sua existência, a menos que tenhamos provas? Há quem
pense que não. Estas pessoas pensam que a existência de Deus é uma questão de fé,
ou seja, não se trata de decidir com base em provas e argumentos, mas antes de ter
fé.
Mas, será razoável ter fé na existência de Deus sem ter provas?

Alguns filósofos consideram que os métodos comuns de justificação, por meio


de provas e argumentos, são inadequados para justificar a fé na existência de Deus,
mas, apesar disso, consideram legítimo ter fé em Deus – a esta teoria chama-se
fideísmo (do termo latino “fides”, que significa fé). Deste ponto de vista, a falta de boas
razões para pensar que Deus existe não é razão suficiente para deixar de ter fé.
Considere-se o que acontece se tentarmos ouvir as cores. Como é evidente a
audição não é o meio adequado para detetar cores. Contudo, isso não significa que
devemos abandonar a nossa crença nas cores, significa apenas que o sentido da audição
é inadequado para as detetar. Do mesmo modo, o fideísta pensa que os métodos
comuns de justificação são inadequados para detetar Deus. Isto porque Deus é uma
entidade sobrenatural. Segundo o fideísta, só a fé nos pode pôr em contato com
Deus; os métodos comuns de justificação não podem fazer tal coisa.
No seu sentido mais geral, o fideísmo é uma doutrina que sustenta a
incapacidade da razão humana para alcançar determinadas verdades, considerando
ser necessária a introdução da fé. Admitindo a existência de verdades da fé (dogmas),
e a supremacia da fé relativamente à razão, os fideístas defendem que tais verdades
possuem um valor igual ou superior ao das verdades obtidas pela ciência e pela
razão.
Assim, o fideísmo é a posição que defende que a relação entre razão e fé
religiosa é de oposição, ou pelo menos, de separação, mantendo a tese de que só a fé
nos permite acreditar na existência de Deus.

CRÍTICAS AO FIDEÍSMO (EM GERAL)

Como vimos já, esta doutrina (fideísmo) recomenda que se creia na existência de
Deus sem apelo à razão, ou mesmo contra ela.
Ora, sobre o poder da razão e da fé relativamente à existência de Deus, parece
haver apenas duas alternativas:

227
a) Quando a razão não consegue mostrar que Deus existe (mesmo até
podendo tender mais para a conclusão de que ele não existe), o fideísta diz que
devemos acreditar que ele existe. Esta atitude é criticada através do simples
comentário: quando queremos alimentar uma crença sobre algo que não tem
sustentação racional (boas razões) e somos tentados (pelo sentimento) a forçar a
mente a acreditar nesse algo, que é, precisamente, o oposto daquilo que
(racionalmente) temos justificação para pensar, isso não é razoável.
Ou então:
b) Quando a razão mostra que Deus existe (ou tende para essa conclusão), se
esse for o caso, o fideísta diz que devemos ignorar esse facto e acreditar apenas
mediante a fé, sem mais.
Assim, de uma forma ou de outra, o fideísta acaba por defender que podemos
sempre escolher o meio para acreditar na existência de Deus e que esse meio é
sempre o sentimento (fé) e não a razão (explicação racional).
Outra crítica importante que foi movida ao fideísmo é a seguinte: se, segundo o
fideísta, o sentimento interior é o nosso único guia em matéria religiosa, então pode-
se afirmar que todas as confissões religiosas têm razão acerca daquilo em que os
seus crentes acreditam (sentem). Mas, pergunta-se: como pode isso acontecer, se
as religiões sustentam crenças contraditórias entre si? Ora, a esta questão o
fideísta não consegue responder, uma vez que se fecha no sentimento como o único
meio de justificação da crença, pondo de lado a ponderação da razão como meio de
fundamentação dos diferentes princípios que norteiam (orientam)as diferentes
religiões.
Seguir o sentimento como forma de identificar a verdade, apesar do que
mostram a razão e os factos, talvez em casos excecionais possa ser benéfico ou, pelo
menos, compreensível, mas, em geral, isso é o oposto da ponderação, da
imparcialidade e do espírito crítico que constituem a atitude filosófica, o que abre
espaço para a instalação, em muitos espíritos sobressaltados e confusos, de uma fé
cega, que, instrumentalizada, rejeita o debate, que menospreza a análise cuidada e
crítica dos argumentos, que recusa o direito à diferença e que, facilmente, leva as
pessoas ao extremismo, ao fanatismo, à intolerância e ao ódio, não só contra outras
religiões mas também contra ateus ou agnósticos, atingindo níveis de violência
verdadeiramente inquietantes.
Importa, no entanto, distinguir o fideísmo radical do fideísmo moderado:
enquanto o fideísmo radical defende que a fé vai para além da razão e é

228
contraditória em relação a ela, o fideísmo moderado defende que a fé vai para além
da razão mas não está em contradição com ela.
Representantes desta linha de pensamento são o matemático, escritor, físico,
inventor, filósofo e teólogo francês Blaise Pascal (1623-1662) e o filósofo, teólogo, poeta
e crítico social dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855). Para Kierkegaard, mais
radical, não só a razão não consegue demonstrar a existência e a natureza de Deus,
mas acreditar nele com base em argumentos e provas racionais é errado, no sentido
em que a fé, a crença, parte do nosso sentimento (“coração”) e não do nosso
raciocínio (razão).

O ARGUMENTO DA APOSTA – BLAISE PASCAL (FIDEÍSTA MODERADO)

Blaise Pascal, contemporâneo e conterrâneo do já nosso conhecido ilustre filósofo


e matemático René Descartes, considera que a fé pode ser racional mesmo na ausência
de provas e defende que a crença em Deus não pode ser sustentada por meios de
argumentos tradicionais – até porque a própria natureza de Deus (um ser infinitamente
incompreensível) torna esses argumentos necessariamente inadequados.
Na sequência desta convicção, Pascal usou um curioso argumento que se tornou
célebre – “A aposta de Pascal” – o qual consiste no seguinte: aceitemos que não
conseguimos provar que Deus existe, nem que não existe. Os vários argumentos a
favor da existência de Deus não são bons, mas também não temos argumentos
bons a favor da inexistência de Deus. Aceitando que há um empate da razão quanto
à existência de Deus, o que será melhor fazer? Acreditar ou não?
Pascal, que explicitamente rejeita a suspensão da crença como uma terceira
alternativa viável (embora não justifique adequadamente esta rejeição) defende que a fé
pode ser racional na ausência de provas, desde que tenhamos boas razões para
acreditar em Deus, devendo a racionalidade ser aqui entendida mais como uma
espécie de racionalidade prudencial, mais ligada àquilo que é do nosso interesse e à
obtenção de benefícios práticos de forma ponderada e sensata, do que uma
racionalidade epistémica, mais estritamente ligada às evidências ou à obtenção de
conhecimentos precisos, objetivos e científicos sobre as coisas/fenómenos do mundo,
pois, segundo este, se considerarmos todas as alternativas, vemos que temos tudo a
ganhar se Deus existir e formos crentes, ao passo que nada perdemos de
importante se formos crentes e Deus não existir. Por outro lado, se não
acreditarmos e Deus realmente não existir, nada ganhamos de importante, mas

229
temos tudo a perder se não acreditarmos e Deus, afinal, existir. Logo, o mais
razoável a fazer é acreditar em Deus.
Como vemos, aquilo em que este argumento difere de todos os argumentos que
abordámos neste capítulo é que, simplesmente, não é um argumento acerca da
existência de Deus, mas sim um argumento dirigido a quem não vê razões
convincentes para acreditar, nem que Deus exista, nem que não exista, e que
defende que é preferível, mais vantajoso e prudente, escolher a primeira opção.
Assim, segundo Pascal, a fé é racional num sentido prudencial e não num
sentido epistémico, na medida em que procura razões prudenciais, práticas,
vantajosas para acreditarmos em Deus, não porque haja boas provas da sua
existência, mas por causa dos benefícios, proveitos ou recompensas que tal crença
nos pode trazer se vier a revelar-se verdadeira – neste sentido, a crença de que Deus
existe não precisa de provas para ser apropriada ou conveniente.
Diferentemente daqueles argumentos que estudámos, Pascal não procurou
demonstrar a existência de Deus, uma vez que as provas da existência de Deus, tal como
as provas da sua não existência, não são conclusivas, e formulou o chamado argumento
do apostador – “Aposta de Pascal” – recorrendo a uma analogia (comparação) da
situação de uma pessoa que está indecisa acerca da sua crença ou descrença com
a de um apostador, de modo a estabelecer que é muito mais vantajoso acreditar na
existência de Deus. Combinando as apostas na existência e na não-existência de Deus
com os factos possíveis acerca dessa existência (encontramo-nos aqui numa situação
muito idêntica à de um apostador antes de escolher em quem vai apostar, ou seja,
precisamos de calcular as hipóteses que temos), obtemos quatro conjuntos de ganhos e
perdas, cujo saldo é favorável à aposta na existência, por uma grande margem, como
podemos ver no seguinte quadro:

CRENÇA FACTO GANHOS PERDAS SALDO


(“aposta") (“resultado”)

Deus existe Felicidade eterna 0 (zero) Maximamente


ACREDITAR positivo
QUE DEUS
EXISTE Tempo dedicado
ao culto. Não
Deus não fruir dos Ligeiramente
existe 0 (zero) prazeres negativo
proibidos pela

230
religião.

Infelicidade
Deus existe 0 (zero) (eterna ou não), Extremamente
outras punições. negativo
ACREDITAR
QUE DEUS
NÃO Tempo não
EXISTE dedicado ao
Deus não culto. Fruir dos Ligeiramente
existe prazeres 0 (zero) positivo
proibidos pela
religião.

Vejamos uma síntese do quadro acima dado, através de um outro quadro:

CRENÇA (“aposta”) DEUS EXISTE DEUS NÃO EXISTE

Somos crentes Tudo a ganhar. Nada a perder.

Não somos crentes Tudo a perder. Nada a ganhar.

CRÍTICAS/OBJEÇÕES AO ARGUMENTO DA APOSTA DE BLAISE PASCAL


(QUERO ACREDITAR, LOGO ACREDITO! SERÁ ASSIM TÃO SIMPLES?)

Uma primeira objeção é que o argumento de Pascal parece pressupor a


perspetiva de que a crença em Deus está sujeita à vontade. De acordo com os
críticos, não podemos simplesmente decidir acreditar que Deus existe, tal como não
podemos decidir acreditar que os peixes voam.
Mas, segundo Pascal, a aposta na crença na existência de Deus, se ganhadora,
colhe ou obtém o “prémio” máximo, e mesmo que perca, não regista perdas realmente
significativas, ao passo que a aposta contrária (acreditar que Deus não existe) tem quase
tudo a perder e muito pouco a ganhar.
Ora, precisamente, podemos começar por criticar o argumento que pressupõe que
se Deus existir e não formos crentes, temos tudo a perder: mas como sabe Pascal que
isto é verdadeiro? Talvez, pelo contrário, Deus castigue as pessoas crédulas, ingénuas
e calculistas que acreditam nele sem provas, e recompense as pessoas cautelosas,
231
prudentes e espontâneas que, na ausência de provas, não acreditam. Afinal, Deus é
bondoso e não vingativo (além disso, se Deus castigasse os descrentes honestos, não
seria sumamente bom…); por isso, não irá castigar quem não acreditar nele, desde que
sejam boas pessoas. Assim sendo, é falso que tenhamos tudo a perder se não
acreditarmos em Deus, pois, se assim fosse, até seria possível que, talvez, Deus
castigasse pessoas calculistas, que acreditassem na sua existência só porque fariam um
cálculo do que teriam mais a ganhar.
Para além disso, acreditar em Deus em função da contabilização de lucros e
prejuízos no além, como se de um balancete financeiro se tratasse, parece, no
mínimo imoral e hipócrita, podendo até contar como algo negativo aos olhos de
Deus (caso ele exista).
Uma outra crítica, que decorre da anterior, é a seguinte: a conclusão de que o
saldo será positivo para quem acredita em Deus e negativo para quem não acredita
não é líquida (certa), pois, talvez Deus perdoe a todos, caso em que o saldo será
igual seja qual for a aposta (acreditar ou não acreditar).
Finalmente, quando Pascal menciona as vantagens e desvantagens ou as
perdas e os ganhos com base na decisão de Deus em função da crença e do culto,
a crítica é que Deus, a existir, pode decidir mais em função do comportamento, pois,
esse é que será importante em termos de moralidade e de obediência às leis divinas,
do que em função da aposta de alguém na crença de que Deus existe e no tempo
que dedica ao culto (assistir à missa, rezar, ler a Bíblia, etc.).

232
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que é o fideísmo?

2. Distinga fideísmo radical de fideísmo moderado.

3. Apresente as críticas que são movidas ao fideísmo (em geral).

4. Formule o argumento da aposta de Blaise Pascal.

5. Apresente as críticas e objeções ao argumento da aposta de Blaise Pascal.

6. Na sua opinião, será inadequado ter fé em Deus na ausência de provas?


Justifique.

7. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS EM VERDADEIROS (V) E FALSOS


(F):

7.1 Para o fideísmo, há supremacia da fé relativamente à razão.

7.2 O fideísmo radical considera que a fé não contradiz a razão.

7.3 Pascal considera que a fé pode ser racional mesmo na ausência de provas.

7.4 Segundo Pascal, a atitude de apostar na crença em Deus é a melhor porque


temos fortes indícios de que Deus existe.

7.5 Uma das críticas ao argumento do apostador decorre do facto de ele parecer
pressupor que a crença em Deus é voluntária.
O ARGUMENTO DA FÉ – SOREN KIERKEGAARD (FIDEÍSTA RADICAL)

O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard foi um dos mais importantes


defensores do fideísmo radical (relembra-se que, de acordo com o fideísmo radical, a
relação entre razão e fé religiosa é de oposição). Kierkegaard defendeu que é
inadequado exigir provas e argumentos a favor da existência de Deus porque, ao
fazê-lo, estamos a eliminar o que há de especial na vida religiosa, que se funda na
fé; ora, do seu ponto de vista, a fé é incompatível com provas e argumentos.
Imagine-se, por exemplo, que Deus se revelava de maneira inequívoca, ou que
tínhamos razões inequívocas para pensar que ele existe. Seria possível continuar a ter fé
em Deus? O fideísta responde que não, porque a fé religiosa é precisamente uma
crença numa divindade quando não há boas razões (fundamentos racionais) para
acreditar na sua existência. Quando há boas razões para acreditar na sua existência,
não só não é preciso ter fé, como não é sequer possível tê-la.

233
CRÍTICA/OBJEÇÃO AO ARGUMENTO DA FÉ DE SOREN KIERKEGAARD

Kierkegaard quer que aceitemos que faz parte da natureza da fé crer sem
provas. Mas, como seres racionais que somos, podemos perguntar: será correto crer
sem provas? Agora, imagine-se que não é correto crer sem provas. Nesse caso, isso
significa que não é correto ter fé. Então, defender que é correto crer sem provas,
porque essa é a natureza da fé, seria como defender que é correto enganar os outros
porque essa é a natureza da mentira. Se não for correto enganar os outros, não é
correto mentir; da mesma forma, se não for correto crer sem provas, não é correto
ter fé. Assim, a objeção à teoria da fé de Kierkegaard, é que o argumento em defesa
da crença sem provas é circular ou redundante (uma espécie da falácia da petição de
princípio) – o que constitui um problema sério para o fideísmo, sobretudo para as
versões mais radicais como a de Kierkegaard, que acabam por se fechar num espécie
de crença cega, baseada num tipo de argumentação sem saída.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Formule o argumento da fé de Soren Kierkegaard.

2. Apresente a objeção ao argumento da fé de Soren Kierkegaard.

CRÍTICAS À PERSPETIVA RELIGIOSA


O ARGUMENTO DO MAL PARA A DISCUSSÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou


pode e não quer. Se quer, mas não pode (impedir o
mal), é impotente. Se pode, mas não quer (impedir o
mal), é malévolo. Mas se ele quer e pode (impedi-
lo), de onde vem, então, o mal?

Epicuro (adaptado)

SIMPATIA PELO DIABO

234
“Antigamente havia um ser todo-poderoso – e nada mais. Segundo a tradição, usa-
se o pronome “ele” para esse poder. Os religiosos chamar-lhe-iam “Deus”, só que ele era
diferente no aspeto vital do Deus tradicional. É verdade que era todo-poderoso e infinito,
que detinha o conhecimento, mas em vez de ser bom e benevolente, era mau e
malevolente. Muitos podem concluir que eu acabei de escrever uma versão exaltada do
anjo caído de Deus: o Diabo. Passarei a referir-me a ele como “Diabo”, mas para repetir,
ele é o tal ser todo-poderoso. Não existia um Deus para criá-lo. Ele não teve início.
O Diabo decidiu criar um universo, bastante parecido com o nosso. Tinha estrelas e
planetas, dos quais pelo menos um – a Terra – tinha vida, tal como a nossa. Em todos os
aspetos a Terra era igual à nossa: tinha oceanos, montanhas, pessoas e nações…
Havia pessoas que discutiam acerca de como o universo tinha começado. Existiam
textos religiosos – a Bíblia e o Alcorão – assim como igrejas e sinagogas, templos e
mesquitas; e as pessoas veneravam um ser grandioso, glorioso e bom – Deus! Alguns
proclamavam mesmo revelações da sua benevolência, das suas ordens e da sua
preocupação com todos e com cada um, desde o pardal ao ser humano.
O Diabo tentou rir desta veneração errónea de um ser todo-poderoso e bom. Tinha
propositadamente arranjado maneira de fazer surgir as escrituras, mas como uma piada.
Lá nas suas profundezas demoníacas, isso enfurecia-o e incomodava-o. Até mesmo os
poucos veneradores do Diabo não o reconheceram como sendo ele o ser todo-poderoso.
O que o aborrecia especialmente era que os teólogos, filósofos e mesmo os leigos
discutiam o problema do mal, do sofrimento. Como é que era possível, uma vez que
existia um deus todo-poderoso e bom (como eles acreditavam erradamente que existia),
que existisse tanto mal na forma de sofrimento? O Diabo achava que se ele tinha criado o
universo, com tanto sofrimento e infelicidade a desenvolver-se ao longo de séculos, as
pessoas que refletissem chegariam à conclusão de que devia existir um ser um criador
todo-poderoso e mau, como ele – o Diabo. As pessoas deviam estar a discutir o
problema do bem e não o problema do mal. Uma vez que existem tantas provas
apontando para a existência de um ser todo-poderoso e mau – o Diabo – o
questionamento deveria ser sobre o porquê da existência do bem e não sobre o
porquê da existência do mal.”

Peter Cave, Duas Vidas Valem Mais do que Uma?, Lisboa,


Academia do Livro, 2008, pp. 35-36.

235
Edward Hopper, Satan in Red, 1900
PROVOCAÇÃO:
(DISCUSSÃO CRÍTICA)

Porquê acreditar que existe um Deus todo-poderoso e bom em vez de um


Diabo todo-poderoso e mau?

Todos os argumentos que estudámos a favor da existência de Deus enfrentam


objeções importantes. Além disso, também há objeções poderosas à ideia de que é
correto acreditar em Deus sem “provas”. Talvez possamos concluir que não temos
boas razões para pensar que Deus existe. Nesse caso, teremos boas justificações
para pensar que Deus não existe. Mas este tipo de conclusões é sempre polémico,
pois, por exemplo, não se infere corretamente que temos uma boa justificação para crer
236
que os extraterrestres não existem só porque não temos boa justificação para crer que
eles existem…
Ora, no fundo, esta problemática da existência/não existência de Deus e de
toda a argumentação que lhe está associada, remete-nos para aquilo a que podemos
designar por “ónus da prova”. Um ónus é um custo (que temos de pagar) – por
exemplo, quando compramos um livro, somos nós que arcamos (suportamos) com o ónus
de o pagar, e não quem o escreveu.
No caso da existência de Deus, quem tem o ónus da prova? Se for o crente, é
ele quem tem de apresentar “provas” – e aqui, quem não acredita em Deus não tem
de mostrar nada ou só tem de mostrar que nenhuma dessas provas é boa. Mas se o
descrente (ou não crente) tiver do lado dele o ónus da prova, não lhe basta mostrar que
as “provas” da existência de Deus não são boas; terá de apresentar boas razões para
não acreditar que Deus existe.
Compare-se com o que acontece num tribunal: se alguém me acusar de ter
cometido um crime em Penafiel no dia dois de abril de dois mil e vinte um, às vinte e uma
horas, eu não tenho de provar que sou inocente. Quem tem de provar alguma coisa
(quem tem o ónus da prova) sobre o facto (crime) de que fui acusado é quem me
acusa, e eu e/ou o meu advogado de defesa, quando muito, o que temos de fazer é
rebater (contestar), as “provas” da acusação (caso elas existam), ou seja, mostrar que
essas “provas” não são boas. Contudo, se eu quiser acabar, de uma vez por todas,
com quaisquer eventuais dúvidas e suspeitas que ainda possam subsistir, basta
apresentar boas provas de que nesse dia e a essa hora estava (por exemplo) em
Lisboa (alibi).
Do mesmo modo, quem não acredita em Deus não tem que ter o ónus da
prova, ou seja, independentemente de ser ou não possível provar que Deus não existe (o
que constitui outra questão), não tem que provar que Deus não existe, mas, ainda
assim, pode argumentar a favor da não existência de Deus. Uma maneira de o fazer
baseia-se no argumento do mal.

O PROBLEMA DO MAL

Apresentados os principais argumentos relativos à existência de Deus, é chegada a


altura de nos debruçarmos sobre aquela que parece ser a maior dificuldade que a
crença em Deus enfrenta. Trata-se do problema do mal.
Este problema consiste na dificuldade em conciliar a existência de mal no
mundo, sobretudo mal aparentemente gratuito ou sem sentido, com a existência de

237
Deus, ou seja, o problema do mal é a ideia de que o mal é incompatível com a
existência de Deus. A ideia é que Deus é sumamente bom, e por isso não quer o mal.
Além disso, é omnisciente, ou seja, sabe tudo o que é logicamente possível saber e por
isso sabe que existe o mal. Como é também omnipotente, ou seja, pode fazer tudo o que
é logicamente possível fazer, pode eliminar o mal. Assim, parece razoável pensar que se
Deus existisse, não haveria mal. No entanto, o mal existe: há homicídios, doenças,
pandemias, guerras, roubos, etc. Por isso, parece que podemos concluir que Deus não
existe. Nesta perspetiva (de negação da existência de Deus) surge o seguinte raciocínio:

Se Deus existisse, não existiria o mal.


Mas o mal existe.
Logo, Deus não existe.

Dado que o argumento é válido e as premissas parecem verdadeiras, temos de


aceitar a conclusão: afinal, Deus não existe.

Como vemos, o argumento mais discutido contra a existência de um Deus


teísta (um Deus único, elevado ao máximo) é o problema do mal. Este argumento
explora a incompatibilidade entre:

1. O facto indesmentível da existência do mal – do mal natural, como, por


exemplo, o mal provocado por epidemias, que podem até converter-se em pandemias
(hoje em dia, poderá questionar-se se se trata de um mal natural ou de um mal resultante
da ação dos homens, pelas mais variadas razões e sob as mais variadas formas…), e do
mal moral, como, por exemplo, o mal provocado por guerras ou outras ações negativas
levadas a cabo, intencionalmente ou não, pelos seres humanos.

E:

2. A existência de um Deus que possua pelo menos as qualidades da


omnipotência, omnisciência e bondade suprema.

O argumento do mal estabelece um conflito entre a existência do mal e o


teísmo(crença num Deus único e superior a todas coisas). Se Deus é omnipotente e
omnisciente poderia ter criado um mundo onde não houvesse mal e sofrimento, ou pelo
menos que eles fossem em grau muito menor. Mesmo que não tenha criado o mundo,
poderia acabar com o mal e o sofrimento que, de facto, existem. Sendo omnisciente, sabe
necessariamente como o mal é um facto e, melhor que nós, o quanto ele é universal (está
espalhado por todos os lados). E se Deus é sumamente bom, não pode desejar que o mal
e o sofrimento existam, por isso, deveria fazer tudo o que é possível para o diminuir ou
mesmo eliminar. Assim, dado que o mal existe, ou Deus não possui pelo menos uma
238
das três qualidades centrais à conceção teísta (omnipotência, omnisciência e suma
bondade), ou não existe.
Daí a conclusão, implícita no seguinte raciocínio, que, afinal, mais não é do que o
mesmo, apesar de ligeiramente diferente quanto aos seus termos, do raciocínio já
apresentado anteriormente:

Se Deus é omnipotente, omnisciente e sumamente bom, o mal não existe.


O mal existe.
Ora, ou Deus não é omnipotente, ou não é omnisciente, ou não é bom, ou não
existe.
Será, então, que a existência do mal é incompatível com a existência de um
Deus omnipotente, omnisciente e sumamente bom?

Assim, podemos distinguir dois tipos de mal: o mal natural e o mal moral.

MAL NATURAL – é o mal resultante de forças e causas naturais ou de fatores


externos ao controlo humano (como terramotos, cheias, cheias, fomes, doenças e
incêndios), ainda que ele possa ser aumentado pela ação negligente ou
incompetente do ser humano.

MAL MORAL – é o mal causado pelos seres humanos através de ações mais
ou menos deliberadas (como assassínios, guerras, roubos, mentiras e torturas),
traduzindo-se no sofrimento de outros seres humanos e também de animais.

A versão lógica do problema do mal implica a inconsistência interna do


teísmo, já que o teísta aceita duas afirmações que os defensores da versão lógica
do problema sustentam que são logicamente inconsistentes entre si:

1. Deus existe e é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.


2. O mal existe.

Uma vez que dificilmente poderemos negar a existência do mal no mundo,


parece que temos de rejeitar a crença na existência de Deus através do seguinte
argumento lógico:

Se Deus existe, então o mal não existe.


O mal existe.
Logo, Deus não existe.

Não podemos, todavia, estar certos de que um ser omnipotente, omnisciente e


sumamente bom impedirá a ocorrência seja de que mal for (a primeira premissa é,
239
portanto, duvidosa). Com efeito, talvez os males no nosso mundo existentes no
nosso mundo sejam logicamente necessários à ocorrência de bens que os
superam. Deus pode ter boas razões (que eventualmente nos ultrapassam) para
permitir o mal. Não é, portanto, inconsistente (incoerente, contraditório, incongruente)
que Deus exista e que, simultaneamente, exista o mal.
É sabido, por exemplo, que o sofrimento intenso, tanto em seres humanos como
em animais, ocorre no mundo quotidianamente e de forma abundante – trata-se de
um exemplo inequívoco de mal.
Se o sofrimento intenso conduzir a algum bem superior, um bem que não se
poderá obter sem esse sofrimento (por exemplo, quando alguém decide subter-se a
uma terapia dolorosa e invasiva de quimioterapia para tentar curar-se de um cancro),
poderemos concluir que tal sofrimento é justificado, embora continue a ser um mal.
Existem, no entanto, casos de sofrimento intenso que, aparentemente, não conduzem
a qualquer bem (por exemplo, quando alguém se sacrifica por algo que objetivamente se
sabe que não se justifica).
Neste contexto, importa distinguir o mal justificado do mal sem sentido ou
gratuito:
MAL JUSTIFICADO – é o mal que conduz a um bem superior, que seria
inalcançável sem esse mal.
MAL SEM SENTIDO OU GRATUITO – é o mal que Deus (a existir) poderia ter
impedido, sem com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou
pior.
Sendo assim, é razoável concluir que a versão lógica do problema do mal não
constitui um grande obstáculo para a crença na existência de Deus.

240
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS COMO VERDADEIROS (V) OU


FALSOS (F):

1.1 É mais fácil explicar as ocorrências adversas da natureza de um ponto de vista


não religioso do que admitir a existência de um Deus infinitamente bom.
1.2 A versão lógica do problema do mal conduz necessariamente à ideia de que
Deus não existe.
1.3 O mal justificado é aquele que conduz a um bem superior, que seria
inalcançável sem esse mal.
1.4 A existência provável de males gratuitos torna provável a inexistência de Deus.

241
O ARGUMENTO DE LEIBNIZ
(TEODICEIA: RESPOSTAS AO ARGUMENTO DO MAL)

Algumas tentativas de resposta ao argumento da existência do mal procuram


justificar a existência deste de um modo que preserve a possibilidade da existência
de Deus.
Nos inícios do século XVIII O filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646-1716) criou, , o termo teodiceia (do grego theos = “Deus” + diké = “justiça”
ou “justificação”) para designar a investigação destinada a explicar a existência do mal e
a justificar a bondade de Deus – tal justificação (teodiceia), mais não é que uma
tentativa de defender a bondade, a santidade e a justiça de Deus, mostrando que estas
são compatíveis com o mal. Assim, admite-se que o mal está integrado nos
desígnios de Deus.
Leibniz aceita a existência de Deus, considerando-o um ser absolutamente
perfeito e busca uma explicação que mostre que a existência do mal é necessária
ao universo ou à nossa existência. Vivemos no melhor dos mundos possíveis –
Deus não deseja o mal e poderia ter criado um mundo diferente – porque é
omnipotente, pôde criá-lo, e, porque é sumamente bom, escolheu-o e quis criá-lo. No
entanto, qualquer alternativa que Deus pudesse ter escolhido traria ainda mais mal
ao mundo do que o mal atual, daqui resultando um saldo final positivo muito
importante.
Há, portanto, um número infinito de mundos possíveis na ideia de Deus, mas
apenas um veio à existência. Nem tudo o que é possível se realizou ou se realiza. Ora,
Deus, que podia realizar uma infinidade de mundos possíveis, realizou o melhor
dos mundos, sendo que “melhor” significa, neste contexto, “o mais perfeito
possível”.
Tudo o que é possível torna-se real na medida em que haja uma razão suficiente
para que isso aconteça. O princípio da razão suficiente – segundo o qual nada se
verifica ou acontece sem uma razão suficiente – explica porque é que certos
possíveis, mais do que outros, chegaram à existência.
Qual é, então, segundo Leibniz, a razão suficiente para que Deus tivesse
criado este mundo? A resposta a esta pergunta é: Deus criou este mundo, e não um
outro diferente, porque este é o melhor de todos os mundos possíveis. Qualquer
outro mundo seria inconsistente com a perfeição de Deus.
Além disso, Leibniz considera que no melhor dos mundos existem males, mas que
não há neles males gratuitos (desnecessários, escusados, dispensáveis).

242
Este filósofo divide o mal em três tipos:

- O MAL METAFÍSICO – consiste na mera imperfeição de todas as coisas criadas,


dotadas ou não de inteligência, apenas em virtude de terem sido criadas. Leibniz viu este
mal (metafísico) como a derradeira fonte da qual derivam os outros males. O facto de as
coisas terem sido criadas determinas-lhes limites. Apenas Deus é infinito, perfeito e
completo. Leibniz defende que Deus não poderia dar tudo à criatura, pois, se o fizesse,
estaria a torná-la num Deus – por isso, deve haver diferentes graus na perfeição das
coisas e limitações de todo o tipo.

- O MAL FÍSICO – consiste no sofrimento ou desprazer, que inclui a dor, a tristeza,


etc., opondo-se ao bem físico, que inclui o prazer, a saúde, etc. Deus quer esse mal
muitas vezes como uma pena (castigo ou punição) decorrente da culpa, e também para
prevenir males maiores ou obter maiores bens. Além disso, o mal físico serve
frequentemente para melhor saborear ou apreciar o bem e, por vezes, contribui para uma
maior perfeição daquele que o sofre.

- O MAL MORAL – consiste no pecado ou crime que resulta do livre-arbítrio.


Segundo Leibniz, Deus permite o pecado, mas não é responsável por ele – logo, o mal
moral é originado pelo exercício do livre-arbítrio – sendo preferível um mundo onde
haja criaturas com livre-arbítrio, apesar do mal que daí possa resultar, do que um mundo
sem mal moral nem livre-arbítrio.

O mal metafísico, o mal físico e o mal moral fazem, portanto, parte da ordem
do mundo. A ocorrência de certos males no mundo pode ser necessária para se
obterem bens maiores, que superam esses males. Num exemplo apresentado por
Leibniz, um general do exército preferirá uma grande vitória com uma lesão leve do que
uma situação sem lesão e sem vitória. Uma imperfeição na parte pode ser necessária
para a perfeição no todo.
O mal é, portanto, uma parte necessária no conjunto harmónico do melhor dos
mundos e para ser devidamente compreendido ele deve contextualizado e
integrado no conjunto da criação divina.
Quando prestamos atenção apenas a uma parte da realidade e não pensamos na
relação dessa parte com a totalidade do real, podemos ficar com a ilusão de estar perante
males gratuitos. O nosso conhecimento, sendo limitado e imperfeito, não nos
permite compreender a totalidade do Universo e, assim, não podemos ver os bens
associados aos bens com que nos deparamos. Concluímos, então, erradamente,
que esses males são gratuitos. Não existem males gratuitos - Deus permite o mal e

243
este encontra-se totalmente justificado, não sendo, portanto, incompatível com a
perfeição divina.

Podemos agora sintetizar o argumento de Leibniz acerca da existência do mal da


seguinte forma:

Deus criou, de entre infinitos mundos possíveis, o melhor de todos.


No melhor de todos os mundos possíveis existem males, mas não males
gratuitos.
Logo, Deus permite o mal, não existindo males gratuitos.

Esta perspetiva de Leibniz está sujeita a várias críticas. No esquema que se


segue, salienta-se as que são consideradas mais importantes:

É discutível a ideia de que o mal físico é um castigo pelo mal moral. De facto –
pelo menos se apenas considerarmos esta vida que vivemos – nem todos os seres
humanos são castigados pelo mal que praticam. Além disso, o mal físico atinge tanto
as pessoas perversas como as pessoas bem intencionadas e, muitas vezes, mais estas
do que aquelas.
Admitindo que temos efetivamente livre-arbítrio, podemos pôr em causa a ideia
de que um mundo com livre-arbítrio e a possibilidade do mal moral é preferível a um
mundo sem livre-arbítrio nem más ações. Com efeito, o sofrimento decorrente da
maldade humana pode ser tão terrível que muitas pessoas prefeririam, em vez de ter de
passar por tal sofrimento, que toda a gente tivesse sido pré-programada para só praticar o
bem. Deus poderia, inclusive, ter criado esses seres pré-programados de tal modo que
eles acreditassem terem livre-arbítrio e, assim, usufruíssem de todos os benefícios que
essa crença lhes traria, não praticando, assim, qualquer ação maligna.

Em termos genéricos, a resposta de Leibniz ao problema do mal parece ser


arbitrária, pouco rigorosa, pouco exigente e até mesmo parcial, porque, perante a
existência de males aparentemente gratuitos (como casos de sofrimento extremo), este
filósofo limita-se a dizer que esses males são componentes fundamentais de bens
maiores que Deus criou – e que não sabemos que bens são esses porque somos
limitados – o que cria aqui uma dificuldade muito séria: se somos limitados para saber
que bens são esses que superam e dão sentido aos males aparentemente gratuitos,
também somos limitados para saber, por exemplo, se Deus existe ou não, ou para
saber se, existindo, ele criou o melhor dos mundos.

244
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que é o ónus da prova?

2. Formule, genericamente, o argumento do mal.

3. Distinga mal natural de mal moral, dando um exemplo para cada um deles.

4. Defina teodiceia. Dê o exemplo de uma teodiceia e identifique o seu autor.

5. Explicite a justificação do mal moral com base no livre-arbítrio.

6. Que crítica é feita à resposta de Leibniz ao problema do mal.

7. CLASSIFIQUE OS SEGUINTES ENUNCIADOS COMO VERDADEIROS (V) OU


FALSOS (F):

7.1 Segundo Leibniz, Deus criou o melhor de todos os mundos possíveis.

7.2 De acordo com o princípio de razão suficiente, Deus não tem uma razão
suficiente para permitir o mal.

245
7.3 O mal moral decorre, segundo Leibniz, do livre-arbítrio.

7.4 Na perspetiva de Leibniz, o mal físico está na origem do mal metafísico.

7.5 Segundo o ponto de vista de Leibniz, a ocorrência de certos males no mundo


pode ser necessária para se obterem bens maiores.

7.6 Uma das objeções ao argumento de Leibniz decorre do facto de este filósofo
aceitar a existência de males gratuitos.

246
CONTRA-ARGUMENTAÇÃO À TEODICEIA DE LEIBNIZ
A JUSTIFICAÇÃO DO MAL MORAL: O LIVRE ARBÍTRIO

As guerras, os roubos, os homicídios, entre outros, são males morais porque


resultam das ações humanas; já os terramotos, as inundações e a maioria das doenças,
assumam elas proporções pandémicas ou não, são males naturais porque resultam de
acontecimentos naturais (embora, se pensarmos bem, não seja bem assim, uma vez
que os seres humanos têm desenvolvido muitas ações que não o isentam de
responsabilidades relativamente à ocorrência de muitos males, considerados
“naturais”).
A defesa do livre-arbítrio é uma objeção à primeira premissa do argumento do
mal e aplica-se mais facilmente ao caso do mal moral. A ideia é que Deus é compatível
com o mal moral. Porquê? Porque permitir o mal moral é a única maneira que Deus
tem de possibilitar a existência de outra coisa ou condição muito importante: o livre
arbítrio humano.
Deste ponto de vista, um mundo de seres dotados de livre-arbítrio, como nós,
é melhor do que um mundo sem livre-arbítrio. Apesar de todo o mal que fazemos, se
não tivéssemos livre-arbítrio, o bem que fizéssemos não seria tão significativo.
A ideia é que criar-nos com livre-arbítrio era a única maneira que Deus tinha
de tornar as nossas escolhas moralmente significativas (dotadas de valor moral em
termos de ação). Por exemplo, se não tivéssemos livre-arbítrio não poderíamos escolher
entre mentir e dizer a verdade; por isso, não seria moralmente significativo da nossa parte
não mentir. Aliás, sem livre-arbítrio nem tão pouco faria sentido falar-se em
responsabilidade pelos nossos atos (não só em termos morais como também em
termos legais, judiciais e criminais), já que haveria sempre e só uma
explicação/justificação (desculpa) para os nossos atos: o determinismo (que é
precisamente o contrário de liberdade, entendida como possibilidade de que o ser
humano tem de escolher como agir, mediante determinadas condicionantes).
Assim, o mal moral existe precisamente porque os seres humanos têm livre-
arbítrio e não poderia haver seres (humanos) moralmente significativos sem livre-
arbítrio, isto é, Deus não poderia criar seres racionais e morais sem possibilidade (e
capacidade) de escolha (e de decisão). Ora, a partir do momento em que temos livre-
arbítrio, podemos escolher entre o bem e o mal. Mas, se não nos fosse possível
praticar o mal, não seríamos realmente livres, porque muitas opções que deveriam
estar disponíveis a seres livres estariam bloqueadas por Deus. Então, nunca faríamos o

247
mal, não por escolhermos as ações boas e rejeitarmos as más, mas porque não
conseguiríamos fazer algo mau. Se fossemos “programados” para nunca agir mal, porque
Deus suprimiu o mal, parece que não poderíamos ser nem livres, nem moralmente bons
(ou maus).
Esta justificação do mal moral pressupõe, portanto, que o determinismo
(ausência de liberdade) é falso e que somos realmente livres.
Assim, sintetizando estas ideias (acerca da justificação do mal moral em
articulação com o livre arbítrio), podemos dizer que:
A) O livre arbítrio exige a possibilidade do mal moral, ou seja, se não houver
mal moral, o livre arbítrio é impossível.
B) Um mundo com mal moral mas com livre-arbítrio é melhor do que um
mundo sem mal moral e sem livre-arbítrio.

CRÍTICAS À JUSTIFICAÇÃO DO MAL MORAL E AO LIVRE-ARBÍTRIO

Na alínea A), acima dada, é afirmado que “O livre arbítrio exige a possibilidade
do mal moral, ou seja, se não houver mal moral o livre arbítrio é impossível.” Mas
será esta afirmação inquestionável?
Suponhamos que Deus cria o universo, e nós nele, de modo a termos capacidade
para escolher entre diferentes ações, só que nenhuma delas origina o mal. Assim, as
nossas ações morais estão sempre entre a máxima bondade humana e a neutralidade, e
temos o poder efetivo de escolher, mas sem nunca fazer o mal. Ou então, Deus podia ter-
nos criado de tal modo que, embora tenhamos livre-arbítrio e a possibilidade de escolher
o mal, pensamos sempre corretamente do ponto de vista moral, e assim, na realidade,
evitamos sempre o mal. Se quiséssemos fazer o mal, Deus não nos impediria. No
entanto, nunca acontece de facto querermos fazê-lo.
Naturalmente, pode-se pensar que, em ambas as situações, não há livre-arbítrio
genuíno, autêntico.
E no que diz respeito à afirmação da alínea B), que diz que “Um mundo com mal
moral mas com livre-arbítrio é melhor do que um mundo sem mal moral e sem livre-
arbítrio.”, será uma verdade evidente?
Imaginemos um mundo sem livre-arbítrio e sem mal. É possível pensar que a
ausência de livre-arbítrio seria um preço relativamente pequeno a pagar por um mundo
que seria poupado a todo o imenso e horrível sofrimento causado pela maldade humana
ao longo da história (basta recordar o Holocausto nazi, como um dos episódios mais
negros da história da humanidade, para perceber que o mal moral existe– provocado pelo

248
próprio ser humano –e não tem limites). E se Deus tivesse criado os seres humanos de tal
modo que tivessem a ilusão de serem livres, embora não o fossem? Dessa maneira,
poderíamos ter o melhor das duas situações: sensação, ainda que ilusória, de livre-
arbítrio e inexistência de mal moral. Podemos pensar que este cenário seria melhor do
que a realidade em que vivemos.
Finalmente, a justificação do mal moral pressupõe que o livre arbítrio é compatível
com a existência de um Deus omnisciente. Mas sê-lo-á de facto? Se Deus já sabe
todas as opções que vamos tomar na vida desde que nascemos, e antes de as
tomarmos, seremos, mesmo assim, realmente livres?

A JUSTIFICAÇÃO DO MAL NATURAL

A justificação da compatibilidade entre a existência do mal natural com o Deus do


teísmo é particularmente difícil. Leibniz, filósofo, a quem já fizemos atrás referência,
propôs uma famosa justificação, ou teodiceia: este é o melhor universo possível, e
qualquer estado de coisas alternativo a este teria a mesma quantidade de mal, ou
mais, do que aquele que Deus efetivamente originou.
Parece que isto exclui a omnipotência de Deus. Mas a ideia é que uma
alternativa melhor simplesmente não faz parte do campo das possibilidades, nem
mesmo para Deus. Passa-se o mesmo com outras impossibilidades: Deus não pode
fazer com que “2 + 2 = 5” seja verdade, nem criar círculos quadrados (a famosa
quadratura do círculo não existe porque é impossível)ou pirâmides só com duas faces,
etc. Não ser capaz de fazer isso não põe em causa a sua omnipotência porque não
há tais possibilidades e, portanto, não podemos dizer que Deus não consegue
realizá-las (trata-se, pois, de uma falsa questão). Deus “só” pode fazer o possível e
tais “coisas”, como as que acabámos de mencionar, são contraditórias, logo, realizá-
las não é apenas extremamente difícil, mas é rigorosamente impossível. É fácil
conceber um mundo com menos mal do que este, ou mesmo sem nenhum mal, mas
talvez um mundo assim não seja possível. Talvez porque se Deus evitasse ou não
criasse esses males, teria de criar, ou apareceriam, outros piores. Pode haver leis
naturais a que nem Deus poderá escapar, e que determinam que, entre todos os mundos
que essas leis permitem, o mundo que Deus criou é aquele em que o equilíbrio de
bens e males é mais favorável.
Em jeito de síntese, façamos um pequeno esforço mental em que tenhamos que
imaginar um mundo no qual não há mal natural. Seria esse mundo realmente
melhor do que é? Há filósofos que insistem que não. E porquê? Porque não haveria

249
coragem para enfrentar a morte e a doença, não haveria heroísmo para salvar pessoas
inocentes de terramotos e não daríamos o melhor de nós mesmos para curar as doenças,
principalmente aquelas que são uma autêntica ameaça não apenas para os indivíduos
mas para toda a espécie humana (veja-se o caso do Novo Coronavírus ou, simplesmente,
Covid-19).
Assim, como justificação do mal natural, sem a exclusão da possibilidade da
existência de Deus, são vários os que defendem (filósofos, teólogos e até mesmo
cientistas – sim, cientistas, poiso facto de se ser cientista não significa que não se possa
ser crente – há, portanto, os que são e os que não são, como qualquer comum dos
mortais) que um mundo com mal natural permite a existência de bens que de outro
modo não poderiam existir. Ao permitir o mal natural, Deus está a promover bens
importantes e significativos que não é possível promover por outros meios(como,
por exemplo, o desenvolvimento da ciência e as ações de solidariedade entre as
pessoas). Ora, deste ponto de vista, não há incompatibilidade entre Deus e o mal
natural.

250
CRÍTICA/OBJEÇÃO À JUSTIFICAÇÃO DO MAL NATURAL

O principal ponto fraco desta justificação é que se trata de uma suposição


aparentemente sem fundamento. Que razões temos para aceitar uma hipótese
completamente especulativa (baseada em suposições puramente teóricas), complexa
e rebuscada (requintada), que pode até envolver a impossibilidade de Deus escolher
as leis naturais?
Não faz muito sentido e, por isso, não podemos responder, que, sendo um
facto que Deus existe e é supremamente bom e omnipotente, ele só pode ter criado
o melhor mundo possível. É que o erro desta resposta é que ela parte do princípio
de que é verdade que “Deus é bom e omnipotente”, quando essa hipótese faz parte
do que se está a discutir. O defensor da explicação tem de mostrar que, apesar do
facto de o mal existir (o que parece indicar que Deus nem é bom nem é omnipotente),
“Deus é realmente bom e omnipotente” e que este é o melhor (ou o menos mau)dos
mundos que é possível criar.
Ora, que Deus seja realmente bom e omnipotente, é uma tese não provada.
Logo, se se perguntar que razão temos para aceitar que este é o melhor (ou o menos
mau) dos mundos que é possível criar, a resposta não pode ser: “Deus é realmente
bom e omnipotente”, precisamente, porque esta afirmação continua a não estar
provada.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Apresente as críticas à justificação do mal moral e ao livre-arbítrio.

2. Formule, genericamente, a justificação do mal natural.

3. Apresente a crítica à justificação do mal natural.

251
4. Considera que o ser humano goza de liberdade de ação (livre-arbítrio) ou,
pelo contrário, considera que o ser humano está refém (prisioneiro, cativo) de um
plano divino (determinismo divino, destino traçado).

FIM

252

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