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º 1 DE MARCO DE CANAVESES
ESCOLA SECUNDÁRIA DE MARCO DE CANAVESES
ANO LETIVO: 2023/2024
11.º ANO
FILOSOFIA
DISCIPLINA DA COMPONENTE DA FORMAÇÃO GERAL
ENSINO SECUNDÁRIO
INTRODUÇÃO
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A este propósito, da relação da filosofia com a “verdade” e a realidade,
atentemos num pequeno excerto da obra do filósofo e escritor Antero de Quental,
Tendências gerais da Filosofia na segunda Metade do Século XX:
Antero de Quental, Tendências gerais da Filosofia na segunda Metade do Século XX, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, p. 54. (adaptado)
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Muito embora a argumentação pressuponha a existência de diferentes teses e
também a possibilidade da contradição, não quer isto dizer que, com este novo modelo
de racionalidade (aberto) se caia num relativismo puro (radical) ou que se negue o
esforço de universalidade (acordo comum/consenso) dos nossos conhecimentos
acerca do real. Pelo contrário, isso significa o reconhecimento do pluralismo próprio
da racionalidade, isto é, o reconhecimento de que se pode interpretar, descrever
(dizer) e conhecer o real de diferentes maneiras (várias “verdades” possíveis).
ATIVIDADES/QUESTÕES:
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“A LIBERDADE DE OPINIÃO É UMA FARSA”
(A MENOS QUE A INFORMAÇÃO FACTUAL ESTEJA GARANTIDA)
Hoje, o que vou contar talvez seja só uma piada. Eu ouvi-a muitas vezes a
jornalistas mais velhos que a partilharam comigo, por isso a quero contar.
Sempre que um jornalista entrava pela primeira vez numa redação norte-
americana, a primeira lição prática que os editores lhe davam (tipo praxe) era esta: “Se a
tua mãe te disse que és muito bonito, confirma isso com outras fontes.”
Mudem a frase como quiserem: “Se a tua melhor amiga te diz que a Terra é plana,
confirma isso com outras fontes”. Por aí adiante. O truque está no método. E o método,
bem sei, tem umas palavras gregas coladas, que é apenas uma forma de lhes vestir a
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gravidade que elas merecem, como se fosse aquele uniforme de fato e gravata que
esperamos ver usado por quem diz coisas sérias na TV. Epistemologia (filosofia do
conhecimento), ou ceticismo (corrente filosófica que nega qualquer possibilidade de
conhecimento) ou teoria do conhecimento são os nomes que damos a uma das mais
comuns e importantes necessidades da nossa vida: saber o que é verdade.
Lembrem-se do jovem jornalista que teve de duvidar das simpáticas palavras da
sua mãe. O que conhecemos (somos bonitos, sem dúvida) é uma construção (mental)
que fazemos, simplesmente. Temos dados e informação e com isso concluímos alguma
coisa. Por isso, é tão importante duvidarmos. Sabermos se essa informação é verdadeira
ou faz sentido. Qualquer surfista que queira apanhar uma onda de 30 metros na Nazaré
tem de saber, antes, se ela pode aparecer e quando. Não lhe basta confiar na opinião de
alguém que tem um pressentimento. Isto vale para tudo o que fazemos: nas nossas
amizades (a minha amiga não veio aos meus anos porque preferiu ir aos anos de outra
pessoa), nos nossos amores (alguém viu a minha namorada de mão dada com outra
pessoa), na nossa vida comum (as vacinas ligam-nos à rede 5G), etc. Todos os exemplos
que dei devem fazer-nos parar para pensar, para saber mais antes de acreditarmos
que são verdadeiros. Posso garantir-vos que o (exemplo) do 5G é mentira, mas
desconfio que os outros também o sejam, pelo menos até que consigamos provas reais
de que são verdade.
E não, não se trata de uma “questão de opinião”. Uma filósofa de quem gosto
muito, Hannah Arendt (1906-1975), escreveu que a liberdade de opinião é uma farsa,
a menos que a informação factual esteja garantida e que os factos, eles próprios,
não estejam em questão. Há um outro filósofo menos reconhecido, talvez por ser um
personagem de ficção, inventado por Italo Calvino, que é o senhor Palomar, e que tem
esta regra: só dê uma opinião depois de morder a própria língua três vezes. Se, mesmo
assim, achar que vale a pena opinar, apesar da dor na língua, então faça-o.
Pelo que vejo no Youtube, no Facebook, no Instragam, a regra do senhor Palomar
não vingou (não venceu) – toda a gente tem opiniões instantâneas sobre tudo o que
corre pelos feeds naquele momento. Isto não é liberdade de opinião porque as
opiniões demoram tempo a formar-se (eu ainda não sei se os elogios da minha mãe
são verdadeiros e já recolho informação sobre isso há décadas).
Ter boas opiniões é o que nos permite escolher: o que vestir, conforme a
meteorologia; o que pensar de políticos racistas, machistas, negacionistas das alterações
climáticas; até o que imaginar para o futuro e como procurar a felicidade. Para tudo isso
precisamos de tempo. A informação de que dependem as nossas opiniões tem de ser
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testada. Devemos falar com pessoas, ler mais do que um título do jornal – ler mais do
que um jornal, aliás – duvidar e procurar respostas para as nossas dúvidas. É isto
que nos permite conhecer mais e melhor. E é disto que precisamos para dar ao mundo
aquilo que parece, em certos dias, tão escasso: sabedoria.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
1. Por que motivo, o jornalista Paulo Pena diz que os media “não podem limitar-se
a transmitir tudo os que os políticos dizem.”?
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O QUE É O CONHECIMENTO?
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Implantação da República foi em 1910 ou que 2+2=4), dado que se aplica à explicação
de algo, assente em proposições suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas. É este
tipo de conhecimento que exprime as nossas ideias sobre a realidade e a conceção
do mundo, e que pode ser transmitido entre as pessoas. É também aquele que,
estando ligado a juízos, suscita o problema da condição da verdade.
De que forma aquilo que pensamos ser verdadeiro o é realmente?
Que garantia poderemos ter em relação àquilo que conhecemos ou afirmamos
conhecer?
Haverá limites para o conhecimento?
Certamente, diremos que sabemos que estamos aqui, nesta sala, que estamos na
aula de filosofia e que estamos a ler este texto… Mas que garantia temos para dizer
que isto é real e que constitui efetivamente uma verdade?
Afirmar: “Estou na aula de filosofia” expressa um tipo de conhecimento
proposicional, mas em que medida é que sei que a proposição: “Estou na aula de
filosofia” é verdadeira?
Afinal, que relação existe entre aquilo que dizemos ser verdade e aquilo que
verdadeiramente o é?
A este propósito, debrucemo-nos sobre o seguinte texto, que nos relata uma
história bastante bizarra, mas, infelizmente, real:
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Qual foi a causa da morte de Hoy? Aparentemente foi o facto de o vidro não
estar bem preso. Mas se ele soubesse que o vidro não estava bem preso, não ousaria
atirar-se contra ele e, portanto, não morreria. Hoy morreu, afinal, porque tinha crenças
falsas, acerca da segurança do vidro, ou seja, morreu por desconhecimento.
Pensava que sabia que a fachada era firme, mas estava enganado: não sabia. Como se
vê, pensar que se sabe sem se saber pode ser fatal. E há muitas outras coisas que
erradamente pensamos saber. Como podemos, então, estar certos de que sabemos
seja o que for?
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
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DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA ATIVIDADE COGNOSCITIVA
(ESTRUTURA DO ATO DE CONHECER)
OS PROBLEMAS DO CONHECIMENTO
- O que é o conhecimento?
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O objetivo da fenomenologia consiste, precisamente, em estudar e descrever a
estrutura geral dos fenómenos, ou seja, daquilo que existe, daquilo que acontece,
daquilo que aparece, daquilo que se mostra, daquilo que nos é dado, antes de qualquer
pressuposto, pondo de parte quaisquer teorias, crenças ou ideias prévias (preconceitos,
pré-juízos) – neste âmbito, fenómeno é tudo aquilo que se apresenta à nossa
consciência).
Assim, a fenomenologia coloca-se “antes” de toda a crença e de todo o juízo
para explorar simplesmente o que é dado (o que existe) apenas enquanto é
puramente dado, sem mais..
Nesta linha de abordagem, a fenomenologia do conhecimento, que consiste,
como o próprio nome indica, numa descrição do fenómeno do conhecimento, pondo
em relevo os elementos que intervêm neste processo, não é uma descrição da génese
(origem) do conhecimento ou das suas causas, mas sim uma descrição “pura”, na
medida em que o seu propósito é evidenciar o que significa ser objeto, o que
significa ser sujeito e que tipo de relações estes dois elementos (sujeito e objeto)
estabelecem entre si.
O conhecimento é aquilo que acontece quando um sujeito apreende
(interioriza, capta, assimila) um objeto. Para que haja conhecimento, é necessária a
existência de dois elementos fundamentais: o sujeito – que é aquele que conhece
(sujeito cognoscente) – e o objeto – aquilo que é conhecido (objeto cognoscível). Sem a
presença de um destes elementos, o conhecimento é impossível.
A fenomenologia do conhecimento não estabelece qualquer relação de
superioridade entre o sujeito e o objeto, limitando-se apenas a reconhecer a sua
mútua necessidade no ato de conhecer.
Vejamos, pois, através da leitura do texto que se segue, os aspetos/momentos
fundamentais que nos são revelados pela descrição fenomenológica do
conhecimento (relação entre sujeito e objeto):
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2. Apesar de existir entre estes dois termos ou elementos uma relação de
oposição, esta (oposição) não pode ser suprimida (anulada), uma vez que sujeito e
objeto serão sempre transcendentes relativamente um ao outro. O sujeito só é
sujeito em relação a um objeto e o objeto só é objeto em relação a um sujeito. Cada
um deles apenas é o que é pela sua relação com o outro. Daí que a sua relação seja
uma correlação (condicionam-se reciprocamente).
5. Considerada do lado do sujeito, esta “apreensão” pode ser descrita como uma
saída do sujeito para fora da sua própria esfera e como uma incursão na esfera do
objeto. O sujeito apreende as determinações (características/propriedades) do objeto
e, ao apreendê-las, interioriza-as, fá-las entrar na sua própria esfera.
7. O facto de o sujeito sair de si para apreender o objeto não muda nada neste
(no objeto). As características do objeto, se bem que sejam apreendidas e como que
“introduzidas” na esfera do sujeito, não são, contudo, deslocadas. Apreender o
objeto não significa fazê-lo entrar no sujeito, mas sim reproduzir neste as
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determinações (propriedades/características) do objeto numa construção mental que
terá um conteúdo idêntico ao do objeto (caso este seja adequadamente apreendido pelo
sujeito). Esta construção operada no conhecimento é a “imagem” do objeto. O
objeto não é modificado pelo sujeito, mas sim o sujeito pelo objeto. Apenas no
sujeito alguma coisa se transforma pelo ato de conhecimento. No objeto nada de novo é
criado; mas no sujeito nasce a consciência do objeto, com o seu conteúdo, com as
suas características, com as suas propriedades e a sua imagem.
Nicolai Hartmann (1945), Les Principes d’une Metaphysique de la Connaissance, vol. I, Paris,
Aubier-Montaigne, pp. 87-88
TIPOS DE CONHECIMENTO
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conhecimento é inseparável de um contexto. A relação entre sujeito e objeto ocorre
sempre dentro de um contexto (contexto pessoal, social, cultural).
O sujeito interage com o real, intervém na definição do objeto, integrando-o na
sua visão do mundo, uma vez que o conhecimento (representação mental) é sempre
resultado de uma abordagem seletiva, interpretativa e construtiva (por parte do
sujeito). Além disso, o próprio modo (subjetividade) como o sujeito se relaciona com o
objeto não é uniforme, o que nos leva a afirmar a existência de diferentes tipos de
conhecimento (perante a mesma realidade ou objeto, pode haver diferentes
conhecimentos e perceções por parte de quem os apreende e perceciona – a isto
chamamos subjetividade).
Enquanto ser-no-mundo, o ser humano encontra-se condenado à experiência.
Aliás, viver é estar sujeito a uma pluralidade de experiências. Assim, a experiência,
em certo sentido, pode ser definida do seguinte modo:
Ferrater Mora, 1994, Dicionário de Filosofia, vol. 2, Barcelona, Editorial Ariel, S. A., p. 1181.
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1. CONHECIMENTO POR APTIDÃO ou SABER PRÁTICO (saber-fazer) – é o
conhecimento prático ou conhecimento de atividades, ligado à capacidade, aptidão
(habilidade) ou competência para fazer alguma coisa.
Exemplos: saber cozinhar; saber conduzir; saber dançar; saber consertar calçado;
saber tratar de uma horta; etc.
Exemplos: saber que 3+53=56; que a Lua gira em torno da Terra; que Vasco da
Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia; que os ovos têm proteínas; etc.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
1. O que é a gnosiologia?
5. Defina experiência.
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7. Distinga os tipos de conhecimento estudados e dê um exemplo para cada
um.
CONHECIMENTO E JUSTIFICAÇÃO
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também se pode acreditar em falsidades. Daí que as crenças possam ser verdadeiras
ou falsas.
O conhecimento da verdade, ao invés do conhecimento de coisas, tem um
contrário, que é o erro. Podemos crer tanto no falso como no verdadeiro. Sabemos que
sobre muitos assuntos há opiniões diversas e incompatíveis sustentadas por diferentes
pessoas; algumas das crenças, por conseguinte, poderão ser erróneas (indutoras de
erro). Ora, visto que sucede que as crenças erróneas são sustentadas frequentes vezes
com tanta energia como as verdadeiras, torna-se um problema bem difícil o de como
distingui-las das verdadeiras.
Então, podemos perguntar: o que entendemos por verdade e falsidade?
Há três pontos a observar na busca da natureza da verdade:
1. A teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, ou seja, a
falsidade.
2. O verdadeiro e o falso são, de facto, propriedades das crenças e das
proposições.
3. O verdadeiro e o falso de qualquer crença dependem de algo exterior à crença.
Exemplo: se creio que Carlos I veio a falecer na prisão, creio veridicamente, em virtude de
um facto histórico, que há dois séculos e meio tal situação se desenrolou. Se creio que
Carlos I faleceu na sua cama, terei, então, uma crença falsa.
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um resultado de um jogo que vai ser disputado entre dois clubes que lhe são totalmente
desconhecidos. Essa pessoa, embora acerte, de facto, no resultado do encontro não
dispõe de qualquer justificação racional para acreditar em tal desfecho. Para que a
crença fique totalmente justificada é necessário esperar pelo fim do desafio.
Ninguém possui conhecimento se não justificar absolutamente (completamente) a
sua crença. Torna-se necessário dispor de provas, razões ou evidências para justificar
essa crença. Por conseguinte, a justificação é também uma condição necessária do
conhecimento.
Que condições são, então, requeridas para que haja conhecimento? Vejamos:
CONDIÇÕES DO CONHECIMENTO
1.ª – CRENÇA.
2.ª – VERDADE.
3.ª – JUSTIFICAÇÃO.
TEETETO – Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e que
ouvi alguém dizer: que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e
que a opinião carente de explicação se encontra à margem do saber. E aquilo de
que não há explicação não é suscetível de se saber, sendo, pelo contrário, apenas
cognoscível (passível de ser conhecido) aquilo de que há explicação (justificação).
Platão, Teeteto ou Da Ciência, 2.ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 300-302 (adaptado)
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Ora, esta identificação (entre o saber e a opinião ou crença verdadeira) é posta
em causa por Sócrates, que afirma existir uma arte suscetível (capaz) de revelar que a
crença ou opinião verdadeira não é conhecimento – trata-se da arte dos retóricos
(sofistas), os quais persuadem (convencem) e levam as pessoas a ter as opiniões que
eles querem e a acreditar no que eles querem. Mediante a eloquência persuasiva
(retórica), fazem nascer (e instalam) essas crenças ou opiniões nas pessoas, sem que
na realidade ensinem o que quer que seja (a quem os escuta), dando-lhes a ilusão do
contrário.
Acontece, inclusive, que os juízes são persuadidos (convencidos) e, apoiados
apenas no ouvir dizer, julgam acerca de determinados factos, formam deles opiniões
que consideram verdadeiras e pronunciam sentenças que consideram corretas, sem,
todavia, disporem de ciência ou conhecimento em relação a esses factos – daí que a
opinião verdadeira e o saber não sejam, afinal, a mesma coisa.
Teeteto afirma, em seguida, ter ouvido alguém dizer que “o saber é opinião
verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião carente de explicação se
encontra à margem do saber” – isto significa que a crença justificada, isto é,
acompanhada de explicações ou razões – equivale ao conhecimento, ao passo que a
crença que não é justificada, ou seja, que é desprovida de explicações (justificações),
se encontra excluída do conhecimento.
Sendo assim, são incognoscíveis (não podem conhecer-se) as coisas acerca das
quais não dispomos de explicação, sendo apenas cognoscíveis (que podem conhecer-
se) aquelas que é possível explicar.
Todas as três condições referidas – crença, verdade e justificação – são
necessárias para que haja conhecimento. Consideradas isoladamente, nenhuma delas
é suficiente.
Em suma, se alguém tiver uma crença acerca de algo, se essa crença for
verdadeira e esse dispuser de boas razões para acreditar nisso, então dispõe de
todas as condições necessárias e suficientes para ter conhecimento.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
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4. Em que medida se pode afirmar que a opinião verdadeira dos juízes e o saber
não são a mesma coisa?
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Este exemplo mostra-nos que, embora alguém tenha uma justificação razoável
para acreditar em algo verdadeiro, tal crença não é necessariamente conhecimento.
Pode haver crenças verdadeiras justificadas acidentalmente, por acaso, ou por
mera coincidência. Neste exemplo, a relação da justificação com a crença
verdadeira não é adequada, sendo a verdade da crença apenas o resultado da sorte,
do acaso ou da mera coincidência.
Face à contestação avançada por Gettier, parece, pois, que definir
“conhecimento” como sendo uma crença verdadeira justificada não é apresentar
uma definição com todas as CONDIÇÕES SUFICIENTES.
Pegando no exemplo acima dado, para que a crença de Liliana a respeito do
golo de Portugal estivesse justificada, tal crença devia ter sido causada por esse
evento e não pelo concurso de caraoque. Como não o foi, a crença não está
(realmente) justificada (está desadequada).
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Henry está a ver televisão numa tarde de junho. Assiste à final de Ténis
masculina de Wimbledon e, na televisão, Carlos Alcaraz vence Novak Djokovic; o
resultado é de dois a zero e match point para Carlos Alcaraz no terceiro set. Carlos
Alcaraz ganha o ponto. Henry crê justificadamente que:
Jonathan Dancy, Epistemologia Contemporânea, Lisboa, Edições 70, pp. 41-42 (adaptado)
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2.1 Refira quais os elementos do texto que correspondem à crença verdadeira
e quais correspondem à justificação que Henry possui.
2.2 Depois de indicar as circunstâncias referidas no texto que fazem com que
este exemplo apoie a contestação de Gettier à definição tradicional de conhecimento,
esclareça em que medida se pode afirmar que Henry não conhece b).
POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO
(DOGMATISMO vs. CETICISMO)
DOGMATISMO
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como as captamos, ou seja, considera o conhecimento como um espelho fiel do real
e, portanto, nem sequer põe o problema de saber se o sujeito apreende ou não o
objeto. Neste sentido, o dogmatismo a que aqui se faz referência (dogmatismo
ingénuo) não coloca em dúvida a possibilidade do conhecimento, acreditando que
os objetos nos são dados diretamente e de um modo absoluto, tal como são em si
mesmos.
Assim, o dogmático é aquele que, depositando confiança na razão, considera
que é possível chegar à certeza e à verdade, entendendo-se aqui “certeza” como
sendo a consciência de que se possui a verdade, associada a uma adesão sem reservas
a isso que se julga ser verdadeiro.
Na Idade Moderna (séc. XVII), alguns filósofos manifestaram uma forte confiança
na razão humana, dando origem a uma espécie de movimento ou corrente filosófica, ao
qual se chamou otimismo racionalista, que se alicerçou (baseou/fundou) na ideia de que
é possível alcançar a verdade unicamente por via do exercício desta mesma razão
ou entendimento. Filósofos como Descartes (1596 – 1650), Leibniz (1646 – 1716) e
Espinosa (1632 – 1677) foram considerados dogmáticos e foram apontados como os
principais representantes deste otimismo racionalista.
CETICISMO
4.º Argumento – o facto de nada ser compreendido por si, associado ao facto
de nada poder ser verdadeiramente compreendido com base noutra coisa leva a
que, para justificar uma crença, tenha que se recorrer a outra e assim
sucessivamente até ao infinito (regressão infinita da justificação).
Exemplo: justifico a crença de que uma bomba explodiu com outra crença: li no
jornal. Justifico esta ao pensar que o jornal não mente. Justifico esta última com a crença
de que os jornalistas são pessoas sérias, etc.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
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4. Assinale a importância da postura cética no nosso desenvolvimento
intelectual.
FONTES DE CONHECIMENTO
(A PRIORI e A POSTERIORI)
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JUÍZOS A PRIORI – por definição, são juízos cuja verdade pode ser conhecida
independentemente de qualquer experiência, tendo, portanto, origem no pensamento ou
na razão.
Caracterizando-os, estes juízos:
JUÍZOS A POSTERIORI – por definição, são juízos cuja verdade só pode ser
conhecida através da experiência sensível (dos sentidos).
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“Hoje, em Marco de Canaveses, está a chover.”
Kant, Crítica da Razão Pura, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 36-37.
O texto, como já foi dito, alerta-nos para a distinção entre “começar com a
experiência” e “derivar da experiência” – uma vez que embora todo o conhecimento
comece com a experiência, nem todo o conhecimento deriva da experiência. É sempre a
experiência que, para além de gerar representações em nós, põe “em movimento a
nossa faculdade intelectual”, permitindo-nos, assim, reconhecer que há
conhecimentos a priori, independentes dela (experiência) e das várias impressões dos
sentidos.
Ora, se afirmarmos: “O todo é maior do que cada uma das suas partes” (juízo a
priori), não estamos a dizer nada que já não esteja implícito no conceito de “todo”;
enquanto se dissermos: “A cadeira é azul” (juízo a posteriori), estamos a afirmar algo que
não está implícito no conceito de “cadeira” (porque existem cadeiras de muitas cores).
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Ora, baseados nesta distinção, há uma pergunta de inegável importância que,
inevitavelmente, o nosso raciocínio nos impõe que seja colocada: uma vez que não
derivam da experiência e são independentes dela, bem como das impressões sensíveis
que dela resultam, será que os juízos a priori nos permitem aumentar o nosso
conhecimento?
Kant dividiu os juízos em (três tipos) analíticos, sintéticos e sintéticos a priori:
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um sujeito e um predicado
(apenas considero os juízos afirmativos, pois é fácil depois a aplicação aos negativos),
esta relação é possível de dois modos: ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo
que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do conceito
A, embora em ligação com ele. No primeiro caso, chamo analítico ao juízo, no segundo
caso, chamo sintético. Portanto, os juízos são analíticos, quando a ligação do sujeito
com o predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa ligação é
pensada sem identidade deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros (os
sintéticos) poderiam denominar-se juízos explicativos; os segundos (os analíticos)
poderiam denominar-se juízos extensivos; porque naqueles (juízos analíticos ou
explicativos) o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela
análise o decompõe nos conceitos parciais, que já nele estavam pensados; ao passo
que nestes (juízos sintéticos ou extensivos), pelo contrário, se acrescenta ao conceito de
sujeito um predicado que nele não estava pensado (contido) e dele não poderia ser
extraído por qualquer decomposição/análise puramente racional.”
Kant, Crítica da Razão Pura, 2.º ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 42-43
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3.2 Defina juízos sintéticos a priori, referindo as suas características e
apresentando exemplos desses mesmos juízos.
ORIGEM DO CONHECIMENTO
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cheirando e saboreando? Os céticos (aqueles que negam toda e qualquer possibilidade
de conhecimento) desafiam-nos a levar estas questões muito a sério, pelo que iremos
confrontar duas respostas a esse desafio: o racionalismo (conhecimento a priori) de
René Descartes (1596 – 1650) e o empirismo (conhecimento a posteriori) de David
Hume (1711 – 1776).
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Sócrates – Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam
os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e
julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?
Glauco – Assim seria.
Sócrates – E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e
íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural
que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com
os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem
os verdadeiros objetos?
Glauco – Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
Sócrates – Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior.
Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as
imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os
próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio
céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se
fosse o Sol e o seu brilho de dia.
Glauco – Certamente!
Sócrates – Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar,
não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
Glauco – Necessariamente.
Sócrates – Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as
estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo
aquilo de que eles viam uma imitação.
Glauco – É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
Sócrates – E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do
saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se
alegraria com a mudança ocorrida consigo e lamentaria a situação dos outros?
Glauco – Com certeza.
Sócrates – E imagina ainda o seguinte: se um homem nessas condições descesse
de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar
subitamente da luz do Sol?
Glauco – Certamente que sim.
Sócrates – E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com
os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado,
antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria
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o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que
não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima,
se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
Glauco – Matá-lo-iam, sem dúvida!
Sócrates – Meu caro Glauco, este quadro deve agora aplicar-se a tudo quanto
dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da
prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo
superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao
mundo inteligível (das ideias/conceitos), não iludirás a minha expectativa, já que é teu
desejo conhecê-la. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível (“conhecível”) é que
se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para
todos a causa de tudo o quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou
a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da
inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.
Platão, A República, Fundação Calouste Gulbenkian, 15.ª Edição, Lisboa, 2017, pp. 566-567
(adaptado)
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EMPIRISMO – enquanto o racionalismo admite a existência de um conjunto de
ideias inatas, independentes da experiência, o empirismo é uma teoria segundo a
qual todo o nosso conhecimento provém da experiência, sendo esta, portanto, a fonte
principal do conhecimento. Temos aqui em conta sobretudo o empirismo moderno, por
vezes também chamado empirismo inglês.
Assim, segundo a corrente empirista, não existem ideias conhecimentos ou
princípios que residam no sujeito como se fosse algo inato, ou seja, como se
nascesse com ele ou já estivesse nele desde que ele existe, como se tivessem sido
colocados na razão ou no espírito humano por Deus ou por outro ser superior
qualquer.
Contrariando os racionalistas, os empiristas consideram que a razão, a mente
ou o entendimento se assemelha a uma página em branco onde, antes de qualquer
experiência, nada se encontra escrito (teoria da “tábua rasa”), podendo-se, por isso,
definir o empirismo como sendo a teoria filosófica que, opondo-se ao racionalismo,
nega a existência de conhecimentos inatos (que já tenham nascido connosco),
afirmando que todo o conhecimento deriva principalmente da experiência. É nesta
(experiência) que o conhecimento tem o seu fundamento e, naturalmente, os seus
limites.
De acordo com o filósofo John Locke (1632 – 1704), no seu Ensaio Sobre o
Entendimento Humano, a experiência – seja a experiência externa (sensações), pela
qual se captam os objetos exteriores e sensíveis, seja a experiência interna
(raciocínios), pela qual se captam as operações internas da mente – marca os limites
do conhecimento. O conhecimento encontra-se duplamente limitado pela
experiência, tanto ao nível da sua extensão (o entendimento é incapaz de ultrapassar os
limites impostos pela experiência) como da sua certeza (as certezas de que dispomos
referem-se apenas àquilo que se encontra dentro dos limites da experiência).
Importa acrescentar que, embora neguem os conhecimentos inatos, os
empiristas não negam necessariamente o conhecimento a priori (que se processa de
modo puramente racional e independentemente da experiência). Por exemplo, para David
Hume (1711 – 1776), filósofo empirista, esses conhecimentos (a priori) existem, só que
nada nos dizem acerca do mundo. Além disso, as ideias presentes em tais
conhecimentos (a priori) acabam por derivar, todas elas, da experiência.
Podemos agora caracterizar o empirismo com base nos seguintes aspetos:
- a experiência é a origem principal de todo o nosso conhecimento;
40
- todas as ideias têm uma base empírica, até as mais complexas, não
existindo ideias inatas (que tenham nascido connosco ou que já estejam em nós);
- o conhecimento do mundo obtém-se através das impressões sensoriais
(pela via dos sentidos);
- o objeto impõe-se ao sujeito.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
41
O RACIONALISMO DE RENÉ DESCARTES
O MÉTODO (CAMINHO/PROCESSO)
“Em lugar daquele grande número de preceitos (regras) que constituem a lógica,
julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que eu tomasse a firme e constante
resolução de não deixar de uma só vez de os cumprir:
- o primeiro consistia em nunca aceitar coisa alguma por verdadeira (duvidando de
tudo ou pondo tudo em dúvida) sem que a conhecesse evidentemente como tal, ou seja,
evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção e não incluir nada mais nos meus
juízos senão o que se apresentasse tão claramente e tão distintamente ao meu espírito
que não tivesse hipótese de o pôr em dúvida.
42
- o segundo consistia em dividir cada uma das dificuldades que examinava em
tantas parcelas quantas fosse possível e fosse necessário, para melhor as resolver.
- o terceiro consistia em conduzir de forma ordenada os meus pensamentos,
começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a
pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais complexos.
- o quarto e último consistia em fazer sempre enumerações e revisões tão
completas e tão gerais, que ficasse com a certeza de que nada tinha omitido (esquecido).”
Por exemplo, intuímos facilmente que um quadrado é delimitado por quatro linhas
e que um triângulo o é apenas por três. Ora, a partir destes conhecimentos evidentes,
podemos deduzir consequências que serão logicamente necessárias (como, por
exemplo, na geometria).
A existência de uma ordem (lógica) entre os vários pensamentos reside no facto
de a sabedoria (inteligência) humana permanecer una e idêntica e, portanto, “funcionar”
de igual forma em todos os homens – daí esta possuir um carácter geral e universal –
o que permite alcançar conhecimentos verdadeiros, ou seja, conhecimentos
científicos, cujos fundamentos importa estabelecer, precisamente, a partir das raízes
da filosofia (a que Descartes chamou metafísica), a qual Descartes compara a uma
árvore:
“Assim, toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes equivalem à metafísica
(estudo do que está para além da física, do que não é físico, do que não é material, do
que não é diretamente acessível aos nossos sentidos, como, por exemplo, a existência da
alma, a origem e possibilidade do conhecimento, o funcionamento da
razão/intelecto/entendimento com os seus processos, operações, etc.), o tronco é a física
43
e os ramos que saem deste tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três
principais, a saber: a medicina, a mecânica e a moral, sendo esta (a moral) o último grau
da sabedoria, uma vez que pressupõe um inteiro conhecimento das outras ciências.
Ora, como não é das raízes, nem do tronco das árvores, que se colhem os frutos,
mas somente das extremidades dos seus ramos, a principal utilidade da filosofia depende
daquelas partes que só se podem aprender em último lugar.”
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as
observar nunca tomar por verdadeiro algo que é falso e, sem desperdiçar inutilmente
nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o
conhecimento de tudo o que será capaz de saber.”
44
RENÉ DESCARTES (1596 – 1650)
A DÚVIDA
Para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, colocar todas as coisas
em dúvida, tanto quanto se puder.
Como fomos crianças antes de sermos homens, e julgamos ora bem ora mal as
coisas que se apresentaram aos nossos sentidos, quando não tínhamos ainda o pleno
uso da nossa razão, vários juízos assim precipitados impedem-nos de atingir o
conhecimento da verdade e predispõem-nos de tal modo que nada indica,
aparentemente, que nos possamos libertar deles, se não tomarmos a decisão de duvidar,
uma vez na vida, de todas as coisas em que encontrarmos a menor suspeita de incerteza.
45
Instrumento por excelência da razão, a dúvida é posta ao serviço da verdade.
Descartes adota inicialmente a postura do cético (aquele que nega qualquer
possibilidade de conhecer, seja pelos sentidos seja pela razão), colocando em dúvida
todas as crenças. Segundo este filósofo, é necessário colocar tudo em causa no
processo de busca dos princípios fundamentais certos e seguros (indubitáveis). Se
alguma crença resistir à dúvida, então ela poderá ser a base ou o fundamento para as
restantes.
O texto anterior assinala a importância da dúvida perante os juízos
precipitados. Mas há outras razões para duvidar. Por que razões, então, se justifica a
dúvida?
46
Vejamos agora uma síntese das características da dúvida cartesiana:
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Notei, há alguns anos já, que tendo recebido desde a mais tenra idade tantas
coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei,
tinha de deitar abaixo tudo inteiramente, por uma vez na vida, e começar, desde os
primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e duradouro nas
ciências.”
47
O COGITO (“Penso, logo existo”)
Sendo um ato livre da vontade, a dúvida acabará por conduzir a uma verdade
incontestável (indiscutível): a afirmação da minha existência, enquanto sou um ser
que pensa e que duvida. Ainda que o “génio maligno” me engane, ele não conseguirá
nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. (Descartes,
Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria Almedina, p.119, adaptado).
“Não poderíamos duvidar sem existir, e isso é o primeiro conhecimento certo que
se pode adquirir.
Enquanto rejeitamos deste modo tudo aquilo de que podemos duvidar, e que
fingimos mesmo que é falso, supomos facilmente que não há Deus, nem céu, nem terra, e
que não temos corpo, mas não poderíamos, igualmente, supor que não existimos
enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas: porque temos tanta repugnância
em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente ao mesmo tempo que
48
pensa que, apesar das mais extravagantes suposições, não poderíamos impedir-nos de
crer que esta conclusão PENSO, LOGO EXISTO é verdadeira e, por conseguinte, a
primeira e a mais certa que se apresenta àquele que conduz os seus pensamentos de
forma ordenada (metódica).”
“Há pessoas que, em toda a sua vida, nada apreendem (conhecem) como deve ser
para bem julgarem. Porque o conhecimento sobre o qual queremos estabelecer um juízo
indubitável deve ser não somente claro mas também distinto. Chamo claro àquele
conhecimento que é presente e manifesto a um espírito atento: assim como dizemos ver
claramente os objetos quando, estando presentes de tal forma perante nós, os nossos
olhos estão dispostos a observá-los. E chamo distinto àquele que é tão preciso e
diferente de todos os outros que só compreende em si o que aparece manifestamente
àquele que o considera como deve ser.”
49
Enquanto primeira verdade, o Cogito surge-nos como crença fundacional (que
fundamenta) ou básica, pois serve de alicerce a todo o edifício (sistema) do saber,
uma vez que é daqui que tudo parte. Além disso, ele apresenta a condição da dúvida
hiperbólica (a dúvida levada ao extremo e até às suas últimas consequências), uma vez
que existir é a condição para se poder duvidar, e, ao mesmo tempo, impõe uma
exceção à universalidade dessa dúvida, pois, há pelo menos uma realidade da qual
eu não posso duvidar: a minha própria existência.
A apreensão (conhecimento) intuitiva da existência mostra-nos como esta está
intimamente ligada ao próprio pensamento, ou seja, sujeito (que existe e que pensa) e
pensamento são indissociáveis. Escreve Descartes: “O sujeito é uma coisa que
pensa” (em Latim, rés cogitans, ou seja, coisa pensante), quer dizer, “que duvida, que
afirma, que nega, que conhece, que ignora, que quer, que não quer, que imagina e
que sente.” (Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria
Almedina, p. 135., adaptado).
O pensamento refere-se, como se pode ver, a toda a atividade consciente. Além
disso, ele (pensamento) é equivalente à alma, a qual é distinta do corpo e é conhecida
antes deste e de tudo o resto, de forma bastante mais fácil, ao contrário daquilo que os
preconceitos nos costumam indicar. Assim, quer o corpo exista ou não, a alma é
distinta dele.
Em síntese, as características do Cogito (Penso, logo existo) são as seguintes:
50
ATIVIDADES/QUESTÕES:
E, notando que esta verdade: Penso, logo existo, era tão firme e tão certa, julguei
que a podia aceitar, sem hesitação, para primeiro princípio da filosofia que procurava.
A EXISTÊNCIA DE DEUS
Apesar de evidente, a certeza “Penso, logo existo” é uma certeza subjetiva (do
sujeito). Torna-se, pois, necessário averiguar o que se encontra na base do pensamento
e na origem da existência do sujeito pensante. Este descobre-se como um ser
imperfeito e, portanto, conclui que possuir o saber será uma perfeição maior do que
duvidar.
Partindo das ideias que estão presentes no sujeito, verificamos que elas possuem
um conteúdo que representa alguma coisa.
Vejamos que TIPOS DE IDEIAS são essas:
51
FACTÍCIAS – São fabricadas pela imaginação. Por exemplo, ideia de centauro, de
dragão, de sereia, de extraterrestre, etc.
INATAS – São ideias constitutivas (que pertencem, que fazem parte de nós, que
“nasceram” connosco) da própria razão. Por exemplo, ideias de pensamento e de
existência, ideias matemáticas (raciocínios lógicos, puramente
formais/teóricos/racionais/intelectuais), etc.
As ideias inatas são claras e distintas (não oferecem dúvidas) e podem ser
caracterizadas como as “sementes das ciências, verdades eternas, verdadeiras e
imutáveis naturezas, essências puramente racionais e inteiramente independentes da
contribuição da perceção sensível, noções que o exercício rigoroso da dúvida metódica,
voluntária e radical, revelará na nossa alma.” (Alexandre Koyré, 1986, Considerações
sobre Descartes, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Presença, pp. 60-61, adaptado).
Entre as ideias inatas que possuímos encontra-se a ideia de um ser perfeito, um
ser omnisciente (que tudo sabe), omnipotente (que tudo pode), omnipresente (que
está em toda a parte) e sumamente bom, ideia esta que servirá de ponto de partida para
a investigação relativa à ideia de ser divino (DEUS).
52
perfeito) representa uma substância infinita. Nesse sentido, nem o sujeito pensante, que
é finito, nem o nada, nem qualquer outro ser imperfeito são a causa da realidade objetiva
de tal ideia. Ora, a causa da ideia de Deus não pode ser outra senão o próprio Deus,
porque, com efeito, Deus é uma realidade que possui todas as perfeições
representadas na ideia de ser perfeito. Concluindo, é ele (Deus) o próprio ser perfeito
e a causa originária da ideia de perfeição que existe em nós e que por ele em nós
foi impressa (posta em nós) – daí se chamar a esta prova argumento da marca
impressa (foi o próprio Deus que nos deu a capacidade de pensar nele e que pôs em nós
a ideia de si mesmo).
53
Uma vez “provada” a existência de Deus, Descartes irá também provar a
existência do corpo e das coisas exteriores em geral – apoiado na certeza de que
Deus não o engana, poderá, assim, superar todos os argumentos dos céticos
radicais (que negam toda e qualquer possibilidade do conhecimento).
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“As sementes das ciências estão em nós: eis porque é que a tarefa cartesiana não
é vã; eis porque é que se pode e se deve tentar desembaraçar a razão de tudo o que lhe
veio do exterior, de tudo o que ela pôde adquirir e receber na vida.”
Alexandre Koyré, Considerações sobre Descartes, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Presença, p. 60
54
Então, de onde nascem os meus erros? Apenas e unicamente porque, como a
vontade (impulsividade) tem um campo mais vasto que o entendimento (razão), não só
não a contenho dentro dos seus limites como também ainda a estendo às coisas que não
compreendo, o que me leva, deste modo, a cair no erro, pois a vontade diverge (afasta-
se) facilmente do bom e do bem.
Ora, quando não distingo de forma clara e inequívoca o verdadeiro do falso, é
óbvio que não procedo retamente e me engano, uma vez que me abstenho de dar o meu
juízo fundado na razão sobre determinada coisa. Mas, se a afirmo ou nego, utilizando
retamente o meu livre arbítrio (liberdade), abraçando o lado da verdade, em vez de me
inclinar para o lado falso, encontrarei a verdade, porque é manifesto pela luz natural que o
conhecimento do entendimento deve sempre preceder (e sobrepor-se) à determinação da
vontade.
Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria Almedina, pp. 173 e 175 (adaptado).
Assim, segundo Descartes, podemos ter ideias claras e distintas dos atributos
(qualidades) essenciais de TRÊS TIPOS DE SUBSTÂNCIAS:
Assim, no que se refere ao ser humano, este constitui uma unidade de duas
substâncias: a unidade da alma (substância pensante) e a unidade do corpo
(substância extensa).
Já no que concerne à substância divina, todos os atributos de Deus são
atributos essenciais, uma vez que todos eles obedecem a uma perfeição infinita,
formando uma unidade, em virtude de Deus ser simples e uno, ou seja, sem partes
(indivisível).
55
ATIVIDADES/QUESTÕES:
FUNDACIONISMO DE DESCARTES
(FUNDAMENTAÇÃO RACIONALISTA DO CONHECIMENTO HUMANO)
56
verdades universais, traduzidas no conhecimento claro e distinto (como, por exemplo,
as ideias da matemática).
As principais verdades, das quais se deduzirão as restantes, são:
57
de todo o conhecimento), só que num sentido que nada tem que ver com o dogmatismo
ingénuo (que tudo aceita sem questionar) ou com a falta de exame crítico, opondo-se,
portanto, ao ceticismo de David Hume (1711-1776), filósofo que estudaremos a seguir e
que contraria a teoria ou perspetiva racionalista acerca da origem do conhecimento de
Descartes com a sua teoria denominada por empirismo.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
4. Por que motivo poderemos afirmar que a filosofia de Descartes acaba por se
enquadrar no âmbito do dogmatismo?
58
humano é limitada e que é na experiência que o fundamento desse mesmo
conhecimento deve ser procurado.
Assim, ao racionalismo de Descartes, para quem a razão é a fonte principal do
conhecimento, opõe-se o empirismo de David Hume, para quem o conhecimento
deriva fundamentalmente da experiência, tendo todas as crenças e ideias, até as mais
complexas, uma base empírica.
ELEMENTOS DO CONHECIMENTO
59
“Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias ou
perceções mais fracas são cópias das nossas impressões ou perceções mais
intensas.
Os dois argumentos seguintes serão, espero eu, suficientes para provar isto:
primeiro, ao analisarmos os nossos pensamentos ou ideias, por muito compostas e
complexas que sejam, sempre descobrimos que elas se resumem a ideias tão simples
como se fossem copiadas de uma sensação ou sentimento precedente (anterior). Mesmo
as ideias que, à primeira vista, parecem afastadas desta origem (das impressões ou
perceções), como, por exemplo, a ideia de Deus, após uma análise mais minuciosa,
descobre-se serem derivadas de sensações ou sentimentos e decompõem-se em ideias
simples; segundo, se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos
sensoriais, não é susceptível (capaz) de qualquer espécie de sensação, vemos sempre
que ele é igualmente pouco susceptível (capaz) das ideias correspondentes. Assim, um
homem cego não pode formar nenhuma noção das cores, tal como um surdo não
pode formar nenhuma noção dos sons. Mas, restitua-se (devolva-se) a cada um deles
o sentido em que é deficiente e eles não encontram qualquer dificuldade em conceber
esses objetos.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 25-26
(adaptado)
ATIVIDADES/QUESTÕES:
David Hume, Tratado da Natureza Humana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p.29
61
Tendo todas as ideias uma origem empírica (que resulta da experiência, das
impressões sensoriais ou sensíveis), não dispomos de conhecimentos a priori sobre o
mundo propriamente dito – que é, afinal, o mundo da experiência. Tal não significa que
não haja conhecimentos a priori (da razão). Simplesmente, esses conhecimentos nada
nos dizem de substancial (significativo) acerca do mundo.
Afirmar, por exemplo, que “o todo é maior do que cada uma das suas partes” ou
que “7 - 5 = 2” é produzir enunciados independentes dos factos, daquilo que
acontece, da existência ou não do “todo” e das “partes”, da existência ou não dos
números 7, 5 ou 2. Trata-se de proposições verdadeiras, referentes à relação entre as
ideias em causa. Embora estas ideias não deixem de derivar da experiência, a
relação entre elas é independente da experiência, o que equivale a dizer, que a sua
verdade não está dependente do confronto (comparação) com a experiência.
Estes conhecimentos apresentam um carácter evidente, traduzindo-se em
proposições necessárias – pois baseiam-se no princípio da não-contradição, já que
negar essas proposições implica uma contradição. Assumem estas características os
conhecimentos da lógica e da matemática.
Ora, já as características do conhecimento referente aos factos são diferentes –
afirmar que “chove” ou que “a Terra gira em redor do Sol” é apresentar enunciados
relativos a factos e cuja justificação se encontra na experiência sensível, ou seja,
nas impressões – o valor de verdade destas proposições só pode ser determinado
recorrendo à experiência.
A certeza das proposições relativas a factos não se fundamenta no princípio
da não-contradição, já que é sempre possível, ou melhor, não é logicamente
impossível, afirmar o contrário de um facto (os factos são factos e, portanto, não
estão sujeitos aos princípios lógicos, como é o caso das proposições matemáticas).
Por exemplo, se dissermos que “o Sol não vai nascer amanhã”, nada nos garante que
isso seja impossível. Assim, não é contraditório pensá-lo, ao contrário do que sucede
quando se admite que “2 + 2 = 5”.
As questões de facto traduzem-se, assim, em proposições que não são
necessárias, mas sim contingentes (variáveis).
Temos, pois, diferentes verdades nestes dois tipos de conhecimento:
Tipos de
Verdades desses conhecimentos Exemplos
conhecimento
62
São sempre
verdadeiras, em
“2 + 2 = 4”
quaisquer
Relações de ideias Necessárias “Uma casa amarela
circunstâncias.
(a priori) é colorida.”
Negá-las implica
contradição.
Obs.: A distinção entre relações de ideias e questões de facto é, de certa maneira, equivalente
à distinção que foi feita entre juízos analíticos e juízos sintéticos, sendo que, para David Hume, apenas
os juízos a posteriori poderiam ser considerados sintéticos.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p.165
63
A ordem da regularidade das nossas ideias assentam em princípios que permitem
uni-las e associá-las. Os princípios de associação de ideias são os seguintes:
64
que dele é inferido (concluído/extraído). Se nada houvesse a ligá-los, a inferência
(conclusão/ligação) seria inteiramente precária (infundada/despropositada).
65
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 65-66 (adaptado).
Ora, o que a este propósito se diz dos objetos externos pode igualmente dizer-se
das operações da mente sobre o corpo. Hume apresenta uma série de argumentos que
visam provar que A IDEIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA TAMBÉM NÃO DECORRE DE
QUALQUER IMPRESSÃO SENSÍVEL, externa, mas sim de um SENTIMENTO
INTERNO, o que leva a concluir que NÃO SURGE, EM TODA A NATUREZA, UM ÚNICO
EXEMPLO DE CONEXÃO QUE POSSAMOS CONCEBER.
Por isso, o nosso conhecimento acerca dos factos futuros NÃO É UM
RIGOROSO CONHECIMENTO – trata-se apenas de SUPOSIÇÃO ou de
PROBABILIDADE, pois, esse conhecimento, assenta unicamente numa EXPETATIVA.
É claro que tal não significa que não estejamos certos de que o fogo queimará ou
de que a água molhará. Contudo, esta certeza tem apenas um FUNDAMENTO
PSICOLÓGICO: o HÁBITO ou o COSTUME, pois, é o hábito de ver um facto a suceder
a outro que nos leva à crença de que sempre assim sucederá – o HÁBITO é, de
resto, um guia imprescindível da vida prática, mas NÃO CONSTITUI UM PRINCÍPIO
RACIONAL.
Diz-nos Hume:
“O costume (o hábito) é, pois, o grande guia da vida humana. Este princípio faz-
nos esperar para o futuro uma série de eventos semelhantes àqueles que
apareceram no passado. Sem a influência do costume seríamos plenamente ignorantes
em toda a questão de facto para além do que está imediatamente presente à memória e
aos sentidos. Nunca saberíamos como ajustar os meios aos fins ou empregara as nossas
capacidades naturais na produção de qualquer efeito.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 49-50 (adaptado).
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Suponhamos que uma pessoa, embora dotada das mais fortes faculdades da
razão e da reflexão, é trazida subitamente para este mundo; observaria, de facto,
imediatamente uma contínua sucessão de objetos e um evento seguindo-se a outro, mas
nada mais seria capaz de descobrir. Não conseguiria, a princípio, mediante qualquer
raciocínio, alcançar a ideia de causa e efeito, visto que os poderes particulares, pelos
quais todas as operações naturais são executadas, nunca aparecem aos sentidos; nem é
66
justo concluir, unicamente porque um evento, num caso, precede outro, que o primeiro é,
pois, causa e o segundo é o efeito. A sua conjunção (ligação) pode ser arbitrária e casual.
Pode não haver motivo para inferir a existência de um a partir do aparecimento do outro.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 46-47 (adaptado).
67
O EU, O MUNDO E DEUS
ATIVIDADES/QUESTÕES:
68
O FUNDACIONISMO DE DAVID HUME
(FUNDAMENTAÇÃO EMPIRISTA DO CONHECIMENTO HUMANO)
69
“Para os empiristas, as fundações do conhecimento são fornecidas pela
experiência. A minha crença de que está um furador vermelho em cima da minha
secretária é justificada pela minha crença básica de que estou a ter a experiência de uma
forma vermelha no meu campo de visão, não necessitando esta crença (básica) de
qualquer justificação adicional. Pode acontecer que eu esteja enganado quanto ao furador
– podia estar a alucinar – mas não posso estar enganado quanto ao facto de estar a ter
essa experiência. É a minha experiência de ver vermelho que justifica a minha
crença de que estou a ver vermelho, o que, por sua vez, justifica (alegadamente) a
minha crença de que está um furador vermelho em cima da minha secretária. Esta
explicação da justificação é plausível se pensarmos no modo como procuraríamos
justificar as nossas crenças se nos pedissem para o fazer. Teríamos que dizer: eu
acredito que está um objeto vermelho em cima da secretária porque me parece que estou
a ver uma forma de cor vermelha ali. Neste caso, estou a apelar a uma das minhas
crenças básicas para a justificação, isto é, a minha crença de que estou a ter um certo
tipo de experiência.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p. 156. (adaptado)
ATIVIDADES/QUESTÕES:
70
1. Aponte as consequências do empirismo de Hume no que se refere à
possibilidade do nosso conhecimento do real.
Para além das ideias factícias e Não existem ideias inatas. Todas
adventícias, existem ideias as ideias (simples ou complexas)
OPERAÇÕES DA MENTE E inatas. A partir destas últimas, é derivam das impressões
possível obter o conhecimento, (sensíveis). As operações da
IDEIAS
mediante as operações mente baseiam-se nos princípios
fundamentais da mente: a de associação de ideias: a
intuição e a dedução. semelhança, a contiguidade no
tempo e no espaço e a
causalidade. Sublinha-se o papel
do raciocínio indutivo.
“Se prosseguirmos a nossa investigação para além das aparências dos objetos dos
sentidos, receio que a maior parte das nossas conclusões venham a estar cheias de
ceticismo e incerteza. Nada está mais de acordo com esta filosofia do que um modesto
ceticismo até certo ponto, e uma confissão leal de ignorância em assuntos que excedem
toda a capacidade humana.”
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, pp. 730-731 (adaptado)
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Assim, só resta que ela (a ideia de Deus) me seja inata, do mesmo modo como
também me é inata a ideia de mim próprio.”
“Todas as nossas ideias ou perceções mais fracas são cópias das nossas
impressões ou perceções mais intensas.”
72
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, p. 25. (adaptado)
Em cada objeto produzido pelo ser humano encontramos a marca da ciência. Uma
simples esferográfica ou um telemóvel têm, com toda a certeza, uma história associada a
uma determinada tecnologia mais ou menos sofisticada de produção, a qual seria
impossível sem a investigação e o progresso científicos.
Aliada à técnica e à tecnologia, a ciência trouxe, ao longo dos tempos, inúmeras
vantagens, comodidades e confortos, sem os quais dificilmente nos imaginaríamos.
Sabemos que, graças ao labor/trabalho de grandes figuras da ciência como Pasteur,
Fleming, Marie Curie, Edison, Turing, Marconi, Bell, Tesla, entre tantos outros,
podemos combater doenças, comunicar e aceder à Internet pelo telemóvel, computador
ou tablet, conduzir automóveis elétricos, e até planear uma viagem a Marte.
O sucesso das suas aplicações permitiu que a ciência alcançasse um estatuto
superior ao de outras formas de conhecimento. A maioria das pessoas valoriza a
ciência e o conhecimento científico sob a crença de que são fiáveis e seguros, os
melhores que alguma vez poderíamos conseguir (a esta fé na ciência chamamos
positivismo ou cientismo). Da ciência espera-se explicações para quase tudo, desde
os fenómenos e problemas mais simples aos mais complexos.
No entanto, o desenvolvimento da investigação científica e da tecnologia
também trouxe a debate inúmeras questões que nos obrigam a refletir sobre o valor, os
riscos e os limites da própria ciência.
Como atividade inquiridora (que indaga, que investiga, que procura, que
questiona) por excelência, a filosofia não poderia deixar de se interrogar sobre estas
questões. A ciência – o conhecimento científico e os resultados da sua aplicação –
constitui o tema sobre o qual nos iremos debruçar ao longo das próximas páginas.
73
A área da filosofia que se ocupa do estudo das questões relativas à prática e ao
conhecimento científico é a filosofia da ciência, também designada por epistemologia.
A consulta de dicionários filosóficos ajuda-nos a explicitar o tipo de estudo a que nos
referimos.
Eis, pois, algumas definições de filosofia da ciência ou epistemologia:
1.“Estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas
ciências, destinado a determinar a sua origem lógica, o seu valor e a sua
importância objetiva.”
(André Lalande)
74
culturas e civilizações, é considerado "um democrata do saber". Cada um à sua maneira,
chamaram a atenção para a importância do contexto histórico e sociológico em que
a atividade científica se desenvolve.
Eis as principais questões de que se ocupa a filosofia da ciência/epistemologia:
- O que é a ciência?
- Como podemos reconhecer um conhecimento científico?
- O que distingue uma boa teoria de uma má teoria científica?
- O que distingue a investigação nas ciências como a biologia e a física da
investigação desenvolvida em disciplinas como a história e a sociologia?
- Poderá haver uma ciência unificada (única) capaz de abranger as diferentes
ciências particulares?
- Qual deve ser o método a adotar em ciência?
- Qual o papel da observação e da experimentação na construção e obtenção
do conhecimento científico?
- Qual o critério a adotar na validação das teorias científicas?
- Como progride a ciência?
- Qual o papel da atividade científica no processo de evolução da ciência?
- Será que o conhecimento científico é objetivo?
- O que significa o conceito de “objetividade científica”?
- O contexto social e cultural tem alguma influência sobre a atividade
científica?
ATIVIDADES/QUESTÕES:
1. Apresente um exemplo (ou, se quiser, mais que um) que ilustre o valor que
geralmente é atribuído à ciência, dando, assim, azo a um comentário pessoal acerca
do papel que a ciência assume na sociedade atual.
75
“Nem todas as invenções científicas têm sido benéficas para os seres humanos
– é óbvio que esses desenvolvimentos têm sido usados tanto para destruir como para
melhorar a vida humana. Contudo, seria difícil negar o sucesso da manipulação da
natureza que a ciência tornou possível. A ciência produziu resultados, ao passo que a
bruxaria, a magia, a superstição e a mera tradição não têm mostrado, comparativamente,
grande coisa a seu favor.”
76
A ESPECIFICIDADE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
DISTINÇÃO ENTRE SENSO COMUM E CONHECIMENTO CIENTÍFICO
“Um amigo meu, que é artista, assume às vezes atitudes de que discordo. Por
exemplo, pega numa flor e diz: «Vê só como é bela!» E eu concordo. Mas, depois,
acrescenta ele: «Eu, que sou artista, consigo apreciar a beleza de uma flor, enquanto tu,
que és cientista, desmancha-la toda, e isso é triste.»
Ora, isto dá-me a ideia de que ele não regula bem!
Em primeiro lugar, a beleza que ele vê é acessível a todos – inclusive a mim,
segundo creio. Embora talvez não possua o seu requinte estético, julgo ser capaz de
apreciar a beleza de uma flor. Mas, simultaneamente, vejo na flor muito mais do que ele:
consigo imaginar as células no seu interior, que têm, igualmente a sua beleza, já que esta
não existe só na escala do centímetro, mas também em porções muito menores (às quais
acedemos através de um microscópio, entre outros instrumentos).
Há ações complicadas das células e outros processos. Por exemplo, o facto de se
ter verificado uma evolução nas cores das flores, de forma a atraírem os insetos para as
polinizar, é muito interessante porque significa que os insetos conseguem ver as cores.
Daí somos levados a perguntar se o sentido estético existe também nas formas de vida
inferiores. Assim, o conhecimento científico, associado ao entusiasmo, ao mistério e ao
respeito por uma flor, torna possível toda uma espécie de perguntas interessantes.”
Richard Feynman, Nem sempre a Brincar, Sr. Feynman, Lisboa, Gradiva, p. 11 (adaptado)
77
O texto apresenta-nos uma perspetiva da ciência por contraste com a arte e
com a maneira habitual que o ser humano tem de perceber os objetos e os factos
do mundo que habita. Mostra-nos como a realidade (de um objeto, de uma flor, etc.)
pode ser explorada e compreendida de modos tão diferentes. Ao relatar-nos este
episódio, Feynman parece querer dizer-nos que o cientista é um ser como outro
qualquer, capaz de perceber a beleza de uma flor, e que, ao mesmo tempo, ele é
capaz de ver muito mais para lá do que a nossa perceção imediata nos pode dar a
conhecer.
Comecemos, pois, por admitir a existência de diferentes níveis de conhecimento
que formamos acerca da realidade. O primeiro nível de conhecimento, que é comum a
todos os seres humanos, designa-se por senso comum ou conhecimento vulgar.
Este tipo de conhecimento é diferente daquele tipo de conhecimento que é capaz
de “ver muito mais”, ou seja, distingue-se do conhecimento científico. Vejamos, então,
que tipo de conhecimento é este:
78
Porque se baseia nas impressões imediatas que formamos dos objetos e
acontecimentos, e também porque não há grandes preocupações de o justificar, o senso
comum é um tipo de conhecimento superficial e pouco ou nada aprofundado.
No entanto, é com base neste tipo de conhecimento que avaliamos,
analisamos e resolvemos os problemas do dia-a-dia. Ele surge espontaneamente no
suceder quotidiano da vida em sociedade, podendo ser definido como o conjunto de
crenças, hábitos e opiniões subjetivas, suposições, pressentimentos, preconceitos
e ideias feitas que se traduzem num conhecimento superficial (não rigoroso, não
aprofundado) e, por vezes, erróneo da realidade.
Existem alguns exemplos, que se prolongaram durante séculos, de aparências
que todos juravam ser “evidências”, imperando aqui o saber do senso comum (ou
conhecimento vulgar). Muitos dos que começaram a duvidar dessas evidências foram
ridicularizados e/ou severamente punidos (nomeadamente, no tempo da Inquisição).
Assim, durante séculos pensou-se que:
- a Terra era plana – era aparentemente evidente que a Terra era plana, porque
todos podiam facilmente verificá-lo. Não aceitar isto significaria admitir que em
determinado ponto da Terra viveriam, absurdamente, pessoas de cabeça para baixo…
- o Sol é que se movimentava em torno da Terra (Geocentrismo ou Teoria
Geocêntrica – a Terra no centro) – como podemos verificar todos os dias, o Sol, de
manhã, “levanta-se”, durante o dia, “movimenta-se”, e, à noite, “põe-se”. Galileu, entre
outros, precisamente por propor a o Heliocentrismo ou Teoria Heliocêntrica (o Sol no
centro do sistema), viu-se forçado a jurar em público que a sua teoria estava errada e
a comprometer-se com o abandono (abjuração) das suas investigações acerca das
órbitas terrestres.
Estes exemplos dão-nos conta de muitas das evidências que, afinal, não o são,
isto é, que vieram a ser contrariadas e postas de lado. Nestes dois exemplos a fonte de
conhecimento que está presente é a experiência sensorial (dos sentidos), isto é a
experiência associada aos nossos órgãos sensoriais ou sensitivos (neste caso, a
visão como sentido de orientação e, consequentemente, a sensação de imobilidade da
Terra e de movimento do Sol).
De facto, relacionamo-nos com o mundo que nos rodeia, antes de mais, através
dos sentidos. São eles que nos permitem diversos tipos de experiências que,
acumuladas, constituem um primeiro nível de conhecimento da realidade exterior: o
conhecimento vulgar ou senso comum.
79
O senso comum (ou conhecimento vulgar) é, assim, aquele tipo de
conhecimento básico, que, como o próprio nome indica, é comum a todos os seres
humanos, através do qual nos orientamos na nossa vida quotidiana.
Eis, então, as principais caraterísticas senso comum (ou conhecimento vulgar):
- Espontâneo e imediato;
- Superficial (não aprofundado);
- Assistemático (desorganizado);
- Dogmático (não põe em causa as evidências ou aquilo que aparentemente é
real);
- Acrítico (não crítico);
- Sensitivo (baseia-se naquilo que chega pela via dos sentidos, nas aparências);
- Subjetivo (não objectivo, ou seja, varia de sujeito para sujeito);
- Ametódico (não tem qualquer método de abordagem da realidade).
Por tudo isto dizemos que o senso comum (ou conhecimento vulgar) se trata do
primeiro nível do conhecimento de que o ser humano dispõe, constituindo este, por um
lado, resposta para as mais diversas situações práticas da vida e, por outro, estimula
a construção de outros tipos de conhecimento mais elevados e mais elaborados,
como é o caso do conhecimento científico.
Acerca desta articulação entre senso comum (ou conhecimento vulgar) e
conhecimento científico e da forma como este se desenvolve, temos duas
perspetivas filosófico-epistemológicas, cujos principais representantes são os
filósofos da ciência (ou epistemólogos) Karl Popper (a quem já se fez referência logo
no início desta matéria sobre a ciência) e Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo,
químico e poeta francês cujo pensamento está focado principalmente nas questões
referentes à filosofia da ciência – apresenta o que viria a ser conhecido como a
“Filosofia do Não”, segundo a qual a experiência nova diz não à experiência antiga.
Um e outro (Popper e Bachelard) visam, cada um à sua maneira, responder às
seguintes questões:
O CONHECIMENTO CIENTÍFICO
80
O conhecimento científico resulta de uma leitura dos fenómenos diferente
daquela que o senso comum (ou conhecimento vulgar) nos proporciona. E, neste
sentido, o conhecimento científico representa também um nível mais aprofundado do
conhecimento que podemos ter acerca da realidade.
Ao contrário do conhecimento vulgar, o conhecimento científico baseia-se em
pesquisas e em investigações apoiadas em procedimentos (métodos) coerentes e
consistentes relativamente a um conjunto de pressupostos teóricos que são adotados
pelos cientistas; faz-se acompanhar, na maioria dos casos (sobretudo nas ciências
experimentais), de instrumentos de medida; implica a construção de conceitos e
teorias e o recurso a uma linguagem própria, procurando descrever, explicar e
prever os fenómenos e as suas relações, e apontando as leis que lhes são inerentes.
Quanto à linguagem, é possível encontrar alguns exemplos de termos que são
comuns ao universo do senso comum e do conhecimento científico, mas cujo
significado é radicalmente distinto (por exemplo, o termo “energia”). No senso comum
predomina a linguagem natural, aquela que utilizamos no dia-a-dia; já a linguagem que
é utilizada pelas ciências é específica e rigorosa, recorre a conceitos técnicos, a
símbolos e, na generalidade, à linguagem matemática.
O conhecimento científico representa, então, um nível de conhecimento mais
rigoroso do real do que senso comum (ou conhecimento vulgar) e distingue-se deste
na medida em que é mais profundo; mais racional; desconfia dos sentidos (porque,
por vezes, os sentidos enganam); manifesta-se através de uma atitude crítica; resulta
de uma atitude ativa; transforma as qualidades em quantidades (através de
instrumentos de medida, como, por exemplo, os termómetros para medir as temperaturas
em graus); é objetivo; estabelece relações de causalidade entre os fenómenos
observados; é metódico (ordenado) e é sistemático (organizado).
A crítica ou a rutura que o conhecimento científico estabelece com o senso
comum (ou conhecimento vulgar) resulta de uma atitude diferente face ao real – daí
que, apesar de alguns termos serem comuns aos dois universos do conhecimento
(conhecimento vulgar e conhecimento científico), o seu significado seja radicalmente
distinto (por exemplo, novamente, o termo “energia”).
Foi, portanto, de uma atitude problematizadora, crítica e planeada que nasceu
aquilo que designamos por ciência.
Mas, então, devemos perguntar:
Quando é que nasceu a ciência?
Qual tem sido a sua evolução?
81
Podemos demarcar (distinguir) diferentes momentos que evidenciam a evolução
da ciência: nos seus primórdios, a ciência não se distinguia da filosofia. De facto, se
entendermos a ciência antiga como Aristóteles a definia, isto é, como um
conhecimento das coisas pelas suas causas, então os filósofos pré-socráticos e outros
que os sucederam eram também cientistas, pois procuravam as causas primeiras (as
origens) dos fenómenos naturais. Os filósofos produziam discursos teóricos sobre a
natureza e deduziam conclusões a partir de princípios, premissas e definições –
aqui, a ciência encontrava-se ainda no seu estado teórico.
Para sermos precisos, a ciência moderna nasce no século XVI e XVII com Galileu
e com Newton. É nesta fase que a ciência se autonomiza relativamente à filosofia e se
torna “no conhecimento que procura formular mediante linguagens rigorosas e
apropriadas – tanto quanto possível, com o auxílio da linguagem matemática – leis por
meio das quais se regem os fenómenos.”
Assim a ciência moderna está associada aos desenvolvimentos da física
clássica, a qual entende o mundo como uma enorme máquina (mecanicismo) sujeita
a relações de causalidade que podem ser expressas em leis que exprimem a
regularidade (invariância) e repetibilidade dos factos. Essas leis devem explicar
matematicamente as relações constantes entre os fenómenos testados por
verificações experimentais e prever a ocorrência de novos fenómenos.
A matematização, a verificação experimental, a lei científica, a ideia de ordem,
a noção de determinismo são dominantes neste estado de evolução da ciência.
Desde o início, a ciência sempre procurou constituir-se como um conjunto de
conhecimentos e procedimentos sistematizados e organizados, tendo em vista a
produção de leis e teorias capazes de descrever, explicar e prever os fenómenos.
A ciência que muitos designam de pós-moderna está associada ao surgimento da
teoria da relatividade de Einstein (físico teórico alemão que desenvolveu a teoria da
relatividade geral, um dos pilares da física moderna ao lado da mecânica quântica) e aos
avanços da Física Quântica (também conhecida como mecânica quântica, é uma
grande área de estudo que se dedica em analisar e descrever o comportamento dos
sistemas físicos de dimensões reduzidas, próximos dos tamanhos de moléculas, átomos
e partículas subatómicas. Por meio da Física Quântica, foi possível compreender os
mecanismos dos fenómenos radioativos, da emissão e absorção de luz pelos átomos, da
produção de raios X, do efeito fotoelétrico, das propriedades elétricas dos semicondutores
etc.), e, mais particularmente, aos trabalhos de Heisenberg (físico teórico alemão que
recebeu o Nobel da Física, em 1932, pela criação da mecânica quântica (por oposição à
82
mecânica clássica) cujas aplicações levaram à descoberta, entre outras, das formas
alotrópicas do hidrogénio – a alotropia foi uma denominação atribuída ao fenómeno em
que um mesmo elemento químico pode originar duas ou mais substâncias simples
diferentes (os carbonos, o enxofre, o oxigénio, entre outros, são alótropos); Heisenberg
propõe que, num nível quântico, quanto menor for a incerteza na medida da posição de
uma partícula, maior será a incerteza do seu movimento linear e vice-versa, ou seja,
o Princípio da Incerteza de Heisenberg diz que não é possível determinar
simultaneamente com a mesma precisão a velocidade e a posição de um eletrão de
determinado átomo, e Bohr (físico dinamarquês cujos trabalhos contribuíram
decisivamente para a compreensão da estrutura atómica e da física quântica). Assim, a
ciência pós-moderna está marcada pelas ideias de relatividade, incerteza,
indeterminismo e probabilidade, contrariamente ao tipo de ciência que lhe antecede,
que se baseava em princípios ou ideias de certeza, precisão e determinação
(determinismo).
Apesar de já ter sido apresentado um conjunto de características específicas do
conhecimento científico, com o propósito de o distinguir do senso comum (ou
conhecimento vulgar), no quadro que se segue apresenta-se uma caracterização, de
uma forma mais esquemática, desse mesmo conhecimento:
CONHECIMENTO CIENTÍFICO
83
conhecimento exprime os factos em
termos estatísticos e probabilísticos.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
84
SENSO COMUM E CIÊNCIA: CONTINUIDADE OU RUTURA?
85
“A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso
comum. Não por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão «senso
comum» que estou aqui a usar é muito vaga e mutável, simplesmente porque denota uma
coisa vaga e mutável – os instintos ou opiniões de muitas pessoas, às vezes adequados
ou verdadeiros e às vezes inadequados ou falsos.
Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como
o senso comum? A minha resposta é: porque não queremos nem tentamos construir um
sistema seguro sobre esses «alicerces». Qualquer das nossas muitas suposições de
senso comum da qual partamos pode ser contestada e criticada a qualquer tempo;
frequentemente, tal suposição é criticada com êxito e rejeitada (por exemplo, a teoria de
que a Terra é plana). Em tal caso, o senso comum é modificado pela correção ou é
transcendido e substituído por uma teoria que, por menor ou maior período de tempo,
pode parecer a certas pessoas como mais ou menos “maluca”. Seja como for, toda a
ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido. A minha primeira tese é, pois, que
o nosso ponto de partida é o senso comum e o nosso grande instrumento para
progredir é a crítica.”
Enquanto Karl Popper admite que o senso comum (ou conhecimento vulgar) é
um ponto de partida, ainda que inseguro, para outro tipo de conhecimento mais
aprofundado do real, bastando para tal ser criticado, um outro epistemólogo (filósofo da
ciência), Gaston Bachelard, não o admite como tal, considerando-o (o senso comum) um
obstáculo epistemológico, ou seja, algo que, por si, impede a produção de
conhecimento científico. Por conseguinte, não basta criticar e corrigir o
conhecimento vulgar, é preciso romper totalmente com ele.
Diz-nos Bachelard:
“A ciência, tanto na sua necessidade de realização como no seu princípio, opõe-se
absolutamente à opinião (do senso comum). Se lhe acontece, num aspeto particular,
legitimar (dar crédito) a opinião, é por outras razões diferentes daquelas que
fundamentam a opinião; de tal maneira que a opinião não tem de direito qualquer razão. A
opinião pensa mal; aliás, ela nem sequer pensa: ela traduz necessidades em
conhecimentos e, designando os objetos pela sua utilidade, interdita-se (impede-se) de os
conhecer. Nada se pode fundar sobre a opinião: é necessário primeiro destruí-la. Ela é o
primeiro obstáculo a superar.”
86
Bachelard, GASTON, La Formation de L’Esprit Scientifique, Paris, J. Vrin, p. 14 (adaptado)
ATIVIDADES/QUESTÕES:
87
NATURAIS: estudam factos e Ex: Biologia, Química,
acontecimentos característicos da Física, Astronomia, …
natureza.
EMPÍRICAS
SOCIAIS E HUMANAS: estudam Ex: Sociologia, Filosofia,
factos e acontecimentos Psicologia, História,
característicos da vida social e Economia, …
humana.
b) Se P. então Q.
88
CIÊNCIA E CONSTRUÇÃO
(O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO/DISTINÇÃO DA CIÊNCIA)
89
de cientificidade, capaz de discernir(distinguir) aquilo que é científico daquilo que não
é científico.
Neste sentido, trataremos, na presente rubrica, de responder às seguintes
questões:
- Quais são os procedimentos (o método, o processo) que o cientista deve
adotar para obter resultados científicos?
- Como podemos reconhecer uma teoria científica?
- Qual o critério a adotar na validação das teorias científicas?
- Será que o método é suficiente para garantir a cientificidade do
conhecimento?
90
De um modo geral, a visão indutivista do método científico considera que a
atividade científica obedece a uma lógica de procedimentos em que se parte da
observação dos fenómenos, passando-se à formulação de hipóteses e à realização
de testes experimentais para, depois, se propor novas teorias e leis científicas
(OBSERVAÇÃO →FORMULAÇÃO DE HIPÓTESES →EXPERIMENTAÇÃO→LEI).
- A observação e o registo devem ser repetidos várias vezes. Tudo é definido com
rigor e método, de modo a proporcionar a medição, a análise e a leitura precisas do
maior número de casos possível.
Exemplos:
Observo que o metal X (por exemplo, o cobre) conduz electricidade.
Observo que o metal Y (por exemplo, o ouro) conduz electricidade.
Exemplo:
Verifico a relação entre os metais X (cobre) e Y (ouro).
91
3. GENERALIZAÇÃO DA RELAÇÃO:
Exemplo:
Todos os metais conduzem eletricidade.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
O CRITÉRIO DA VERIFICABILIDADE
93
distinguir o que é científico do que não o é. De acordo com o critério de
verificabilidade, uma teoria só será científica se for possível verificar aquilo que ela
propõe empiricamente, isto é, através da experiência.
Considera-se que uma proposição é empiricamente verificável (pela
experiência) se for possível determinar, através da observação, o valor de verdade
dessa proposição.
Assim, por exemplo, a proposição “Há cisnes negros”, porque pode ser
verificada pela observação, possui carácter científico, já a proposição “Há anjos
negros”, não pode ser considerada científica porque o que ela afirma não é passível
de ser verificado empiricamente (visto não se ter qualquer conhecimento ou
constatação da existência de seres de tal natureza).
Mas será que as teorias e as leis propostas pelos cientistas podem realmente ser
verificadas?
Considere-se o exemplo seguinte:
Há corvos negros.
Esta proposição é verificável: podemos verificar aquilo que ela afirma de cada vez
que se vê um corvo. Se o corvo for negro, a proposição é verdadeira.
Considere-se, agora, este outro exemplo:
Todos os corvos são negros.
Aquilo que se afirma nesta proposição não pode ser estritamente (com precisão,
com exatidão, com rigor, com absoluta certeza) verificado de forma universal, pois é
impossível saber a cor de todos os corvos que existiram (no passado), que existem (no
presente) e que existirão (no futuro).
94
ATIVIDADES/QUESTÕES:
CRÍTICAS AO INDUTIVISMO
95
afetam a observação que fazemos das coisas, também a observação do cientista é
afetada pelos pressupostos teóricos, pelas teorias, pelos conceitos e pelas
expectativas que desenvolve face à investigação.
96
nós apenas vemos conjunções constantes e não conexões necessárias entre os
fenómenos). Neste sentido, a generalização indutiva nada mais será que uma mera
crença ou expectativa de que os factos se repitam daquele modo.
Se o princípio da uniformidade da natureza decorre do hábito, nenhum raciocínio
que nele se baseie pode garantir rigorosamente a verdade da sua conclusão.
Exemplo:
A couve portuguesa é rica em cálcio.
Os brócolos são ricos em cálcio.
A couve lombarda é rica em cálcio.
Logo, todos os legumes são ricos em cálcio.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
99
- O critério que garante a cientificidade das teorias é o da sua
FALSIFICABILIDADE.
Segundo Popper, a ciência obedece a um processo de construção criativa de
hipóteses – CONJETURAS – para responder a PROBLEMAS. Ao contrário do que é
proposto na conceção indutivista do método científico, a observação não é o ponto de
partida para o cientista, nem as teorias resultam de inferências indutivas. A ciência
parte de problemas (ou de factos-problemas) e as teorias começam por ser hipóteses
explicativas e criativas – CONJETURAS – que terão de ser submetidas a testes
rigorosos, tendo em vista a sua refutação ou rejeição
(PROBLEMA→HIPÓTESE/CONJETURA →TESTES/REFUTAÇÃO).
Popper explica-nos como, no seu entender, se desenvolve a atividade científica:
Afirmo que não partimos de observações, mas sempre de problemas – seja de problemas
práticos ou de uma teoria que se encontra em dificuldades. Ao abordarmos um problema,
podemos começar a trabalhar nele de duas maneiras: podemos prosseguir tentando, em primeiro
lugar, supor ou conjeturar uma solução para o problema e, depois, podemos tentar criticar a nossa
suposição, que, normalmente, é bem mais fraca. Às vezes, a nossa suposição ou conjetura pode
suportar por certo tempo a nossa crítica e os nossos testes experimentais, mas, regra geral, logo
descobriremos que as nossas conjeturas podem ser refutadas (rejeitadas), que não resolvem o
nosso problema ou que só o resolvem em parte. Para além disso, verificamos que mesmo as
melhores soluções – aquelas que são capazes de resistir às críticas mais rigorosas das mentes
mais brilhantes e engenhosas – logo dão origem a novas dificuldades e problemas. Portanto,
podemos dizer que o crescimento do conhecimento (científico) avança de velhos para novos
problemas mediante conjeturas e refutações.
Karl Popper (1974), Conocimiento Objetivo, Madrid, Editorial TECNOS, p. 238 (adaptado).
Popper lançou as bases daquele que hoje é designado por método hipotético-
dedutivo ou método conjetural. Vejamos, através do quadro seguinte, as três etapas
(fundamentais) deste método:
100
Procura-se explicar a razão pela qual estas existentes.
crianças revelam um baixo crescimento.
101
Veremos, de seguida, a importância que o critério de falsificabilidade assume na
filosofia da ciência desenvolvida por este epistemólogo (filósofo da ciência).
ATIVIDADES/QUESTÕES:
“Acredito que a teoria sempre vem primeiro, pelo menos alguma teoria ou
expectativa rudimentar; que ela sempre precede as observações, cujo papel fundamental,
assim como o dos testes experimentais, é mostrar que algumas das nossas teorias são
falsificabilizáveis (refutáveis) e estimular-nos a produzir outras melhores.”
Karl Popper (1974), Conocimiento Objetivo, Madrid, Editorial TECNOS, pp. 237-238.
103
com que o enunciado universal em causa seja plenamente aceitável em termos
científicos, mais concretamente no contexto de uma disciplina científica como a Biologia.”
104
apenas diferindo neles a forma como cada um lidou com o problema – enquanto no
primeiro esses sentimentos produziram a necessidade de provar a si mesmo que era
capaz de ter a coragem de cometer um crime, no segundo produziram a
necessidade de provar a si mesmo que era capaz de ter a audácia de arriscar a sua
própria vida.
Não consigo pensar em nenhum caso concebível de comportamento humano que
não pudesse ser interpretado em termos quer de uma quer de outra maneira e que não
pudesse ser exigido ou requerido por cada uma delas, como “verificação”.
Ora, a atitude verificacionista da ciência é, de certo modo, algo como isto: de um
modo ideal, a ciência tem que considerar todos os enunciados como verdadeiros,
pelo menos aqueles que nós já tenhamos verificado, uma vez que não os
conhecemos todos.
Já a atitude falsificacionista é diferente: consiste em arriscarem-se hipóteses
explicativas (“arriscar” no sentido em que essas hipóteses afirmam tanto que
facilmente se podem revelar como falsas) e em dar o seu melhor para as criticar,
esperando detetar e eliminar candidatos defeituosos ao estatutode teoria
explicativa de carácter científico.”
Karl Popper (1991), A Demarcação entre Ciência e Metafísica, in M. M. Carrilho (org.),
Epistemologia: Posições e Críticas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 221, 249 e 250 (adaptado).
ATIVIDADES/QUESTÕES:
105
CRÍTICAS A POPPER – CRÍTICAS AO FALSIFICACIONISMO
106
1.ª CRÍTICA - O processo de refutação ou falsificabilização não é o
procedimento mais comum entre os cientistas – alguns autores defendem que a
atitude falsificacionista não corresponde exatamente àquela que os cientistas
demonstram na atividade científica. Geralmente, os cientistas procuram confirmar,
em vez de infirmar (negar, contrariar, falsificabilizar), aquilo que as teorias científicas
propõem e, mesmo que dada observação implique a rejeição de uma previsão, isso
não os demove (não os desmotiva) de investigar no mesmo sentido, em vez de a
abandonarem por completo.
Não bastará, portanto, uma observação falsificacionista para que a investigação
termine e se abandone uma teoria. Por outro lado, é expectável que o cientista se
concentre mais nas previsões bem-sucedidas do que naquelas que são um
fracasso. Estas previsões são fundamentais para o progresso da ciência.
A este propósito, atentemos no conteúdo do texto seguinte:
“Os cientistas não são muito influenciáveis. Não abandonam uma teoria apenas
porque os factos a contradizem. Normalmente «inventam» qualquer hipótese auxiliar para
explicar o que chamam de mera anomalia ou, se não conseguem explicar a anomalia,
ignoram-na e dirigem a sua atenção para outros problemas. É de notar que os cientistas
falam de anomalias como de casos rebeldes e não de refutações. É claro que a história
da ciência apresenta-nos múltiplos relatos de teorias alegadamente destruídas por
experiências cruciais (decisivas, importantes). Mas, esses relatos são forjados
(“inventados”, “construídos artificialmente”) muito depois de as teorias terem sido
abandonadas. Se Popper tivesse alguma vez perguntado a uma série de cientistas
newotinianos em que condições experimentais eles abandonariam a teoria de Newton,
pelo menos alguns deles teriam ficado desorientados.”
Lakatos (1998), História da Ciência e Suas Reconstruções Racionais, Lisboa, Edições 70, pp. 15-18
(adaptado)
2.ª CRÍTICA - Considerando a história da ciência, não parece que ela possa
evoluir por um processo assente nas refutações (rejeições) – também ao nível da
história da ciência encontramos episódios que parecem pôr em causa a perspetiva
falsificacionista e a ideia de que a ciência progride por meio de conjeturas
(suposições) e refutações (rejeições). Copérnico, Galileu ou Newton, por exemplo, não
abandonaram as suas teorias na presença de factos que aparentemente as poderiam
falsificabilizar.
107
Nigel Warburton, no âmbito desta crítica, diz-nos o seguinte:
Nigel Warburton (1998), Elementos Básicos de Filosofia, Lisboa, Gradiva, pp. 184-185 (adaptado).
ATIVIDADES/QUESTÕES:
2. Tendo em conta o texto de Lakatos, explique por que razão o autor refere que
alguns cientistas newtonianos teriam ficado desorientados com a pergunta de
Popper.
108
A história da ciência mostra-nos um conjunto de leis, teorias e modelos
científicos sucessivamente revistos ou rejeitados e substituídos por outros mais
eficazes, mais aptos a explicar os fenómenos (a realidade).
Alguns dos exemplos mais marcantes da história da ciência podem ser dados a
partir das diferentes conceções desenvolvidas sobre o Universo. Iniciado por Aristóteles
(384-322 a. C.), filósofo grego, durante o período clássico na Grécia antiga, discípulo de
Platão e professor de Alexandre, o Grande, fundador da do Liceu (Academia de
estudos/”Universidade”), foi um dos pensadores com maior influência na cultura ocidental,
elaborando um sistema filosófico que abordou praticamente todos os assuntos existentes,
como a geometria, física, metafísica, botânica, zoologia, astronomia, medicina, psicologia,
ética, drama, poesia, retórica, matemática e principalmente lógica, e mais tarde
desenvolvido por Ptolomeu (séc. I, 100), cientista grego reconhecido pelos seus
trabalhos em matemática, astronomia, geografia, cartografia e filosofia, o denominado
modelo geocêntrico (a Terra no centro do universo e imóvel) prevaleceu durante
séculos, tendo sido substituído em 1514 pelo modelo heliocêntrico (o Sol no centro do
sistema e imóvel) de Copérnico (1473-1543), astrónomo e matemático polaco que
desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar. Também este modelo veio mais
tarde a ser aperfeiçoado por Kepler (1571-1630), importante astrónomo, astrólogo e
matemático alemão, e Galileu (1564-1642), astrónomo, físico e engenheiro italiano,
sendo, com frequência, referenciado como "pai da astronomia observacional", "pai da
física moderna", "pai do método científico" e "pai da ciência moderna", e depois ainda por
Newton (1643-1727), matemático, físico, astrónomo, teólogo e pensador inglês,
amplamente reconhecido como um dos cientistas mais influentes de todos os tempos e
figura-chave na Revolução Científica, formulou as três leis do movimento que levaram à
descoberta da lei da gravitação universal.
No século XX, a teoria da relatividade, de Einstein (1879-1955), físico teórico
alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física
moderna ao lado da mecânica quântica, introduziu novas perspetivas do espaço, do
tempo e da gravidade que não tinham sido ainda exploradas e que obrigam a uma
revisão dos princípios da física newtoniana. Com efeito, das conceções antigas até às
modernas, encontramos a Terra sob condições muito diferentes daquela que hoje
conhecemos, graças a Hubble (1889-1953), importante astrofísico norte-americano,
tendo sido o responsável pela descoberta dos corpos celestes e pela determinação das
distâncias entre várias galáxias, e que a apresenta (a Terra) como um simples planeta de
uma galáxia entre muitas galáxias.
109
- O facto de quase todas as teorias da história da ciência terem sido
substituídas constituirá um indício de que as que atualmente vigoram serão
também um dia dadas como falsas e inadequadas?
- Como poderemos estar certos de que a ciência nos oferece um conjunto de
conhecimentos verdadeiros?
- Para onde nos leva o conhecimento científico?
- Como poderemos ter a certeza de que a ciência evolui no sentido da
verdade?
111
3.º Deve explicar, se possível, os aspetos que a antiga hipótese não pôde
esclarecer ou prever.
É este, pois, o CRITÉRIO DO PROGRESSO CIENTÍFICO.
Este critério evolutivo pode ser considerado simultaneamente um CRITÉRIO DE
APROXIMAÇÃO DA VERDADE. Isto porque se uma hipótese satisfaz o critério do
progresso e, consequentemente, suporta as verificações críticas pelo menos tão
eficazmente quanto a hipótese que a precedeu (anterior), não consideraremos tal facto
como mera casualidade; e se resistir ao exame crítico de forma ainda mais eficaz,
admitimos então que se aproxima mais da verdade do que a sua antecessora.
O objetivo da ciência é, por conseguinte, a verdade: a ciência é a busca da
verdade. E muito embora nunca possamos saber se alcançámos esse objetivo, podemos,
mesmo assim, dispor de razões válidas que nos permitam supor estarmos mais próximo
do nosso objetivo, isto é, da verdade ou, pelo menos, como diz Einstein, que nos
encontramos no bom caminho.”
Karl Popper (1992), Em Busca de Um Mundo Melhor, Lisboa, Editorial Fragmentos, pp. 48-49.
Tendo por base a crítica, o cientista encontra falhas ou erros nas teorias já
existentes e empenha-se na procura de novas respostas. Esta procura de novas
tentativas de solução para os problemas, decorrente da ELIMINAÇÃO DOS ERROS,
impede que a ciência paralise ou se fixe a qualquer tipo de dogma (“verdade
absoluta” que se aceita como tal e não se põe em causa).
Só com uma ATITUDE CRÍTICA (contrária à atitude dogmática) será possível ao
cientista avançar. O seu objetivo é encontrar a verdade, ainda que essa tarefa
corresponda apenas a uma APROXIMAÇÃO DA VERDADE por intermédio de teorias
cada vez melhores.
Segundo Popper, a ciência nunca poderá afirmar-se como detentora
(possuidora) da verdade, porque AS TEORIAS SÃO SEMPRE FALSIFICABILIZÁVEIS,
mesmo no caso das teorias corroboradas (confirmadas e aceites pela comunidade
científica), há sempre a hipótese de virem a ser refutadas (infirmadas, negadas,
rejeitadas). Por isso, podemos mostrar apenas que dada teoria é verosímil (provável,
admissível, possível). Popper identifica esta verosimilhança (probabilidade) com o grau
com que uma teoria capta a verdade: uma teoria T é mais verosímil do que uma teoria
rival T´ apenas no caso de T implicar mais verdades e menos falsidades do que T´
(Simon Blackburn).
112
Uma vez que a CIÊNCIA É CONJETURAL, visto que se baseia na formulação de
suposições, ou melhor, de hipóteses, e progride, avança em termos de conhecimento,
precisamente, graças à superação destas, numa lógica de substituição de umas
hipóteses por outras, mais fortes, mais resistentes, mais consistentes (mais próximas
da verdade), ela (ciência) não atinge a verdade, apenas se aproxima dela.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
113
Thomas Kuhn (1922-1996), físico, historiador e filósofo da ciência norte-
americano, tendo o seu trabalho incidido sobre história da ciência e filosofia da ciência,
tornando-se um marco no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico,
publicou uma obra essencial para a filosofia das ciências – A Estrutura das Revoluções
Científicas – na qual destaca a importância do papel da história da ciência na
construção da própria ciência. Para o filósofo, a evolução da ciência depende
essencialmente do trabalho dos cientistas e, portanto, o processo de produção da
ciência torna-se o ponto central da sua reflexão epistemológica.
Ao contrário da tradição positivista, Kuhn não vê o cientista como um
investigador neutro, nem as teorias como construções resultantes da análise de
factos em bruto depois de submetidos à experimentação e à matematização.
Segundo Kuhn, o cientista não é um sujeito neutro nem isolado, mas condicionado
e contextualizado. A construção de teorias científicas está sempre dependente de
um conjunto de factos, de crenças e conhecimentos, regras, técnicas e valores
compartilhados e aceites pela maioria dos cientistas, isto é, A PRODUÇÃO
CIENTÍFICA DEPENDE DE UM PARADIGMA (modelo explicativo) na descoberta de
resolução de problemas, no interior da comunidade científica.
Para compreender a evolução da ciência, Kuhn estuda as ETAPAS DO SEU
DESENVOLVIMENTO E INTERROGA-SE SOBRE O MODO COMO OCORREM AS
MUDANÇAS DE PARADIGMAS (modelos explicativos).
É no interior da própria comunidade científica e analisando o modo de operar
dos cientistas que Kuhn encontra resposta para esta questão: como ocorrem as
mudanças de paradigmas (modelos/referências)?
Em traços gerais, Kuhn reivindica (exige), antes do mais, que se considere a
ciência uma atividade institucionalmente integrada, dado que é nas COMUNIDADES
CIENTÍFICAS, e só nelas, que se faz ciência. O que ele procura mostrar é como a
ciência trabalha, como o seu trabalho se traduz sobretudo numa atividade de solução
de puzzles. E isto consiste em, com base num paradigma (modelo, referência) que toda
a comunidade aceita, proceder a aplicações e à resolução de problemas previstos ou
previsíveis no âmbito desse mesmo paradigma – é a isto que Kuhn chama CIÊNCIA
NORMAL, regime que os cientistas fazem todo o possível por manter. SÓ QUANDO O
PARADIGMA ADOTADO NÃO SUPORTA MAIS O CONFRONTO COM UM EXCESSO
DE ANOMALIAS É QUE ELES SE DISPÕEM A PROCURAR OU A CONSIDERAR
OUTRO PARADIGMA. É nesta situação que a ciência muda de regime tornando-se
CIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA, procurando, então sair da crise repondo o regime anterior
114
ou propor um novo quadro paradigmático ou modelo explicativo, dando, assim,
origem a uma REVOLUÇÃO CIENTÍFICA.
A teoria que o novo paradigma (modelo explicativo) fornece é não só mais ampla
do que a teoria anterior (uma vez que não só explica o que ela já explicava como
também o que ela não explicava) como introduz um abismo entre ambas dado que
recorta (define, explica) de outro modo o mundo dos fenómenos, impõe novos
métodos e introduz novos problemas e soluções.
Entre este e o antigo paradigma cava-se um fosso incomensurável
(incompatível), o que significa que há conflito entre os paradigmas quanto aos
problemas que se pretende resolver.
É a ocorrência de anomalias que pode alterar as condições da atividade
científica e provocar uma CRISE e uma revolução científica, situação que culmina na
eleição de um NOVO PARADIGMA.
Vejamos detalhadamente como isto pode acontecer: as ANOMALIAS são
problemas ou enigmas que os cientistas não conseguem resolver a partir de
pressupostos teóricos fundamentais de um paradigma. Nos períodos normais de
atividade científica – designada fase da CIÊNCIA NORMAL – os enigmas resolvem-se
como puzzles. Cada peça, mais cedo ou mais tarde, encaixa no devido lugar. Acontece
que, por vezes, algumas peças parecem não encaixar – quando isto sucede, estamos
perante uma ANOMALIA. Nessa altura, ao contrário do que se poderia pensar, os
cientistas não abandonam o paradigma ou as teorias vigentes e tudo fazem para resolver
aquela anomalia. Por outras palavras, antes de se avançar para um novo paradigma,
tenta-se a assimilação do novo facto (PROBLEMA).
Diz-nos o próprio Kuhn, na sua obra intitulada A Estrutura das Revoluções
Científicas (1996):
A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o
reconhecimento de que, de algum modo, a natureza violou as “regras” que governam a
ciência normal (aquela que se encontra estabelecida). Segue-se, então, uma exploração
mais ou menos ampla da área onde ocorreu a anomalia. Este trabalho só termina quando
a teoria do paradigma for ajustada de modo a que o anómalo se tenha convertido no
esperado. A assimilação de um novo tipo de facto exige mais do que um ajustamento
aditivo da teoria, e até que se tenha completado tal ajustamento – até que o cientista
tenha aprendido a ver a natureza de um modo diferente – o novo facto não será
considerado ainda um facto científico.
115
Como vemos, Thomas Kuhn tem uma visão diferente da de Karl Popper no
que diz respeito à atitude do cientista: PERANTE NOVOS FACTOS OU
PROBLEMAS, O INVESTIGADOR NÃO TEM COMO PREOCUPAÇÃO PRIMEIRA
TENTAR FALSIFICABILIZAR AS SUAS TEORIAS, mas sim PROCURAR
ENCONTRAR UMA FORMA DE RESOLVER OS PROBLEMAS QUE SURGEM,
MANTENDO AS TEORIAS VIGENTES.
Assim, é em condições muito especiais, isto é, quando já não é possível
responder às exigências dos factos e as anomalias se vão acumulando, que a
ciência entra em período de CRISE.
A atividade científica vive um PERÍODO INSTÁVEL, de escolha e debate sobre
a manutenção do paradigma vigente (em vigor) e sobre a eventual adoção de
melhores teorias, novos conceitos e princípios, procurando-se, assim, definir os
alicerces de um NOVO PARADIGMA, que permita explicar aquilo que não é mais
explicável à luz do PARADIGMA ANTERIOR – período de CIÊNCIA
EXTRAORDINÁRIA. Findo o debate, OU SE MANTÉM O PARADIGMA VIGENTE OU
SE OPERA UMA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA, que impõe a MUDANÇA e a ADOÇÃO do
NOVO PARADIGMA.
Continuando a debruçar-nos sobre a obra A Estrutura das Revoluções Científicas
(1996), de Thomas Kuhn, podemos ler o seguinte:
117
proporcionam as MUDANÇAS DE PARADIGMAS, porque não se ajustam ao
paradigma anterior.
118
Kuhn não concorda com esta visão do progresso da ciência (que aponta para
um fim último, perfeito, que se traduz no alcance e na posse da verdade) – A VERDADE
NÃO É A META PARA A QUAL SE ORIENTA A CIÊNCIA, mas sim relativa a cada
paradigma, só podendo ser compreendida dentro dos LIMITES que cada paradigma
impõe.
119
EXATIDÃO mais perto ela está do que é possível observar ou dos
resultados da experimentação.
Thomas Kuhn (1989), A Tensão Essencial, Lisboa, Edições 70, p. 388 (adaptado)
120
Segundo Kuhn, só é possível compreender a ciência tendo em conta o
CONTEXTO em que ela se desenvolve, isto é, tendo em conta os VALORES E AS
CONVICÇÕES DA COMUNIDADE CIENTÍFICA, a qual é, naturalmente, constituída por
indivíduos.
A chamada de atenção para a presença de FATORES SUBJETIVOS na escolha
das teorias constitui um dos aspetos mais desconcertantes e geradores de debate
entre os epistemólogos (filósofos da ciência) a partir de Kuhn – afinal, A IDEIA DE
CIÊNCIA COMO CONHECIMENTO OBJETIVO, CERTO E INDUBITÁVEL DA
REALIDADE É POSTA EM CAUSA.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
121
CRÍTICAS À CONCEÇÃO DE CIÊNCIA DE KUHN
(“RELATIVISTA” E “IRRACIONAL”)
122
obriga a comunidade científica a desistir (sem qualquer tipo de contestação ou posição
crítica) do velho paradigma e a aderir a uma nova racionalidade (aceitando-a sem a
comparar com a anterior). Deste modo, não sendo possível encontrar um critério
racional que justifique a mudança, resta-nos considerar, segundo Lakatos, que ela
ocorre por “fé” no novo paradigma, como se de uma espécie de conversão mística ou
viragem religiosa se tratasse – daí a irracionalidade que se associa, como crítica, à
conceção de ciência proposta por Thomas Kuhn.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
123
A QUESTÃO DA OBJETIVIDADE CIENTÍFICA
FATORES QUE INTERFEREM NA ATIVIDADE DO CIENTISTA
124
carregar o computador, pelo menos até ao carro, o que ele fez sem dificuldade, pois até o
achou “leve”.
125
diagnóstico e terapia no contexto da medicina sofreram, uma vez que se trata de uma
evidência que está à vista de todos.
Por outro lado, o recurso a instrumentos e técnicas de medição tem levantado
outro tipo de constrangimentos e novas questões de ordem metodológica, uma vez
que a objetividade não parece ser assegurada pela criação de instrumentos de
medida – as interferências e os efeitos que eles podem ter na observação fazem com
que a questão da objetividade se torne um problema no interior da própria ciência.
Atentemos no conteúdo do texto que se segue:
Nos primeiros tempos da física quântica, era costume dizer-se que no domínio do
infinitamente pequeno, o físico se encontrava, em certa medida, na mesma situação de
um homem que quisesse estudar uma ave noturna desconhecida. Para esse estudo, teria
duas possibilidades: ou apontava um projetor para a ave e podia então
descrever a sua morfologia, mas não o seu comportamento, pois, o animal
encandeado, manter-se-ia imóvel, ou não utilizava o projetor e, embora pudesse,
observar na semiobscuridade parte significativa do seu comportamento, já não
podia descrever a sua morfologia. Na escala atómica, o problema parece idêntico: se
quisermos observar um corpúsculo (partícula), teremos de alvejá-lo com luz (com fotões).
O corpúsculo sofre um impacto tal que modifica o seu “comportamento” e, portanto,
qualquer operação de medição de um sistema microfísico provoca automaticamente uma
alteração desse sistema.
126
financiam e das prioridades que, em termos políticos, por exemplo, possam ser
definidas no seio das diferentes nações (opções de natureza cultural, ideológica,
política, económica, etc.).
Apesar de pretenderem atingir o conhecimento objetivo, os cientistas são
naturalmente influenciados por inúmeros fatores, tradicionalmente excluídos do
domínio da objetividade.
Vejamos dois desses fatores no quadro que se segue:
ATIVIDADES/QUESTÕES:
127
3. Refira os fatores que influenciam a atividade do cientista e que podem
comprometer a sua objetividade.
128
resposta, explicações hipotéticas), as teorias científicas, sendo corroboradas
(validadas, confirmadas), correspondem a uma leitura objetiva da realidade.
Relembremos que para Popper é o carácter falsificável das teorias que permite
demarcar (distinguir) as teorias científicas das que não são científicas e que as
melhores teorias são aquelas que resistem a várias tentativas de refutação ou
rejeição (e que, ainda assim, não deixam de ser falsificabilizáveis).
Segundo Popper, quando afirmamos que uma teoria é objetiva significa que
aquilo que ela propõe é, de facto, uma explicação dos fenómenos que pode ser
confrontada com a experiência, submetida a testes por qualquer cientista, em
qualquer parte do mundo – ELA É FALSIFICÁBILIZÁVEL E TESTÁVEL
UNIVERSALMENTE. Para além disso, uma teoria não tem sexo, não defende
qualquer partido político nem professa qualquer religião.
Neste sentido, para Popper, O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CORRESPONDE
A UMA LEITURA OBJETIVA (e bem sofisticada) DOS FENÓMENOS,
INDEPENDENTEMENTE DE QUEM A PRODUZ E DO CONTEXTO EM QUE É
PRODUZIDA. E, ainda que não seja a última (a mais perfeita ou a mais completa) leitura
da realidade, ela é a melhor possível (naquele momento e naquelas circunstâncias).
Já Thomas Kuhn apresenta uma resposta diferente para este problema ou
questão da objetividade do conhecimento científico, afirmando que NÃO
COMPREENDE OU NÃO CONSEGUE CONCEBER O CONHECIMENTO CIENTÍFICO
INDEPENDENTE DE QUEM O PRODUZ E DO CONTEXTO EM QUE É PRODUZIDO.
Pelo contrário, destaca o papel que os cientistas, inseridos na comunidade científica,
partilhando os mesmos valores e crenças, têm sobre a construção do conhecimento.
Assim, segundo Kuhn, a ciência e o conhecimento que dela resulta só podem
ser compreendidos em função do paradigma (modelo explicativo vigente) que orienta
a própria atividade científica.
O critério falsificacionista (que,segundo Popper, permite demarcar, distinguir, ou
diferenciar, as teorias científicas das que não o são) é completamente rejeitado por
Kuhn.
Segundo este epistemólogo (filósofo da ciência), O CIENTISTA NÃO PÕE EM
CAUSA O PARADIGMA, NEM AS TEORIAS, A NÃO SER, APENAS, NUM PERÍODO
DE CRISE, QUANDO SE ENCONTRAM ESGOTADAS TODAS AS POSSIBILIDADES
DE O PARADIGMA RESPONDER A ANOMALIAS PERSISTENTES.
Para Kuhn, no processo de mudança de paradigma interferem fatores
históricos, sociológicos e psicológicos, obrigando, essa mudança, ao exercício de
129
uma argumentação consistente, uma vez que os cientistas procuram convencer os
seus pares (“colegas” da comunidade científica da qual fazem parte) da razoabilidade,
pertinência e plausibilidade das suas teorias. Este processo de escolha (mais do que
objetivo) é INTERSUBJETIVO (entre sujeitos, entre pares) e nele (processo de escolha)
os cientistas usam CRITÉRIOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS DE JUSTIFICAÇÃO.
A mudança de paradigma não significa, para Kuhn, que a ciência evolui em
busca da verdade certa, absoluta e definitiva, exclusivamente alcançável através do
rigor científico. A incomensurabilidade (incomparabilidade) dos paradigmas põe em
causa a possibilidade da ciência aspirar ao conhecimento objetivo, uma vez que O
CONHECIMENTO E A VERDADE SÃO SEMPRE RELATIVOS (relativos a um dado
paradigma/modelo).
130
- A verdade é definida no interior de cada
- A ciência é conjetural e tem como meta a
paradigma. Com a mudança de paradigma,
verdade (como correspondência aos
não podemos dizer que nos aproximamos
factos), mas não atinge a verdade; apenas
da verdade.
se aproxima da verdade.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
Thomas Kuhn (1989), A Tensão Essencial, Lisboa, Edições 70, p. 388 (adaptado)
132
A DIMENSÃO ESTÉTICA
ANÁLISE E COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
(FILOSOFIA DA ARTE)
INTRODUÇÃO
133
Desde os mais noturnos e remotos tempos, uma das mais importantes dimensões
da ação humana se foi afirmando: a dimensão estética ou, em termos mais comuns, a
arte…
Nas profundezas das grutas de Altamira ou de Lascaux, no recôndito das florestas
tropicais, na imensidão do deserto do Sahara, nos vales do Côa, gravados ou pintados
nas rochas, ficaram os primeiros traços dessa dimensão.
Ligada às questões primárias da sobrevivência, as pinturas rupestres tinham uma
intenção mágica (e um consequente efeito psicológico) de proporcionar boas caçadas que
garantissem alimento e, ao mesmo tempo, em jeito de ritual, de agradar aos espíritos e
aos deuses – a arte foi, desde esse momento, criação e transfiguração.
A arte é criação, mas essa atitude criadora não está nos materiais escolhidos, no
misturar das tintas (quando se está a pintar), nas pancadas do martelo sobre o cisel
(quando se está a talhar madeira) ou sobre o buril (quando se está a esculpir pedra), na
agilidade dos dedos (quando se está a manejar um determinado instrumento musical,
como, por exemplo, uma guitarra ou um piano) ou no correr da caneta (quando se está a
escrever um poema) – já que isto é, apenas, o domínio de uma técnica, de uma
habilidade ou destreza motora.
Assim, a criação, a atividade criadora do artista, consiste e deriva da sua
inspiração, do seu dom, do seu génio. É claro que o trabalho de criação (“inspiração”)
é, também, um trabalho técnico, de escolher, de emendar, de aperfeiçoar, de colocar um
traço, uma nota, uma imagem ou uma palavra certa no lugar certo e no momento
adequado (“transpiração”), mas, a criação é, principalmente, algo que vem de dentro,
do interior de cada um, e que, portanto, não se vê diretamente (embora se veja,
depois, na obra realizada, no produto final).
Como nem os próprios artistas sabem explicar este fenómeno (o dom, o génio, a
capacidade criadora e inventiva), a criação permanece, para nós, como um verdadeiro
mistério e daí a pergunta: “O que é que existirá em alguns de nós que nos permite
criar, realizar uma obra de arte e, por conseguinte, ser artistas?” Poderemos não ter
uma resposta para esta pergunta intrigante, mas uma coisa sabemos: sem este dom,
que possibilita criar, a arte não existiria.
A frase: “Deus quer, o homem sonha a obra nasce.” que faz parte do poema
Mar Português, que integra a segunda parte da obra Mensagem, de Fernando Pessoa
(1888-1935), poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo,
inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político
português, embora tenha um outro propósito que não o de explicar propriamente o dom e
134
o génio do artista, também poderá ser aqui usada como “explicação” para essas
qualidades misteriosas que o homem possui para se expressar, manifestar, representar,
criar, recriar e transfigurar através das múltiplas formas de arte que desenvolve.
Deste modo, e em última análise, a arte representa uma forma ou um meio de
expressão, um modo “sui generis” (único, original) que o artista encontra para traduzir,
expressar ou mostrar aquilo que vê, ouve, sente, imagina, sonha ou experimenta de
qualquer outra forma. Ora, é, precisamente, neste modo pessoal de se expressar que
reside a criatividade do artista e, consequentemente, a originalidade da obra de arte.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Imaginemos que a Rita e o Carlos passam em frente a uma galeria de arte. A Rita
olha para a montra e, de repente, detém-se encantada a olhar para um quadro do século
XVIII que representa várias pessoas a passear num jardim (por exemplo, a pintura que se
se apresenta, intitulada TheMall in St. James Park, de Thomas Gainsborough, de 1783).
Por sua vez, o Carlos não sente nada de especial, mas acaba por ficar também a
observar o quadro, interessado apenas no modo como as pessoas se vestiam na época
em que o quadro foi pintado. Dir-se-ia que a Rita e o Carlos tiveram experiências de
135
tipo diferente ao observar o mesmo objeto (quadro): ela teve uma experiência
estética, ao passo que ele não. Mas porquê? Onde está a diferença?
O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804), amplamente considerado como
o principal filósofo da era moderna, operando, na epistemologia, uma síntese entre o
racionalismo e o empirismo, sustentou que a diferença está no facto de a experiência
estética ser caracterizada por um sentimento de prazer. Só que isso não chega:
muitos alunos sentem prazer quando recebem uma boa nota no teste de Filosofia, por
exemplo, e nem por isso diríamos que essa é uma experiência estética! Por isso, Kant
acrescenta que este tipo de prazer não é um prazer qualquer, mas um prazer de tipo
especial – trata-se de um prazer estético (também designado por gozo estético), que se
distingue por ser um prazer gratuito, desinteressado.
Mas o que significa isso? Kant esclarece que o prazer é gratuito e
desinteressado quando nada mais interessa a não ser a mera contemplação/fruição
da coerência e harmonia das formas observadas (no caso de uma pintura ou de uma
escultura). Assim, quando apreciamos algo que nos parece belo, nesse momento, não
temos em vista qualquer outro objetivo além do prazer da contemplação da própria
beleza – sentimo-nos arrebatados, conquistados, “capturados” e não estamos
interessados noutra coisa ou em satisfazer qualquer necessidade de carácter material ou
prático – tudo o que conta na experiência estética é o próprio prazer de a ter (gozo
estético). No exemplo dado, isso aconteceu com a Rita e não com o Carlos.
Porém, esta caracterização da experiência estética tem levantado dúvidas por
dois motivos:
136
- em segundo lugar, tem de haver algo sem ser o próprio prazer que explique
por que razão as mesmas coisas umas vezes nos proporcionam prazer estético e
outras vezes não; por exemplo, por que razão hoje já não ligamos a determinada
música que noutros tempos nos deu tanto prazer ouvir?
ATITUDE ESTÉTICA
PROPRIEDADES ESTÉTICAS
ATIVIDADES/QUESTÕES:
138
4. Dê exemplos de propriedades estéticas e de propriedades não estéticas.
JUÍZOS ESTÉTICOS
Londres é uma cidade Londres não é uma cidade Londres é uma das maiores
bonita. bonita. cidades da Europa.
139
O quadro Mona Lisa é O quadro Mona Lisa é feio. O quadro Mona Lisa tem mais
belo. de quinhentos anos.
Centremo-nos, pois, nos juízos estéticos acerca da beleza (que são os juízos
estéticos mais comuns), como é o caso de “Londres é uma cidade bonita”. Não é difícil
encontrar pessoas que discordem e que achem que Londres não é bonita ou até mesmo
que é feia. Quem tem razão? Afinal, Londres é uma cidade bonita ou não?
Estas questões obrigam-nos a colocar uma outra, mais profunda e mais filosófica,
que é a seguinte:
Há quem defenda que a beleza não está nas coisas, mas antes naquilo que as
próprias pessoas sentem quando observam/contemplam/apreciam essas mesmas coisas
– por exemplo, Alberto Caeiro (pseudónimo de Fernando Pessoa) coloca-se nesta
perspetiva através dos versos do poema O Guardador de Rebanhos: “A beleza é o nome
de qualquer coisa que não existe (e) que eu dou às coisas em troca do agrado que
elas me dão.”
Ao invés, outros acreditam que a beleza está nas próprias coisas e que elas são
bonitas ou não independentemente do que cada um sente ao observá-las. Estas são,
pois, as duas principais respostas para um problema filosófico que pode ser
formulado assim: A BELEZA ESTÁ NAS COISAS (OBJETOS/OBJETIVISMO) OU NA
PERSPETIVA DE QUEM AS VÊ (SUJEITO/SUBJETIVISMO)? Este é o problema da
justificação dos juízos estéticos: o que está em causa é se nos baseamos nos
nossos sentimentos para justificar tais juízos ou se, pelo contrário, justificamos
140
esses juízos apontando para as características ou propriedades que se encontram
nas próprias coisas. Formulada de outro modo, a questão é: OS JUÍZOS ESTÉTICOS
TÊM UM CARÁCTER OBJETIVO (residem no objeto) OU SUBJETIVO (residem no
sujeito)?
Esta problemática leva-nos à necessidade de fazer uma distinção entre
subjetivismo e objetivismo, ou melhor, entre subjetivistas e objetivistas.
Chama-se subjetivistas àqueles que respondem que apenas conta o que cada
sujeito sente. Assim, quando perguntamos a um subjetivista: “Por que razão dizes que
aquele objeto é bonito?”, ele responde: “Digo que aquele objeto é bonito porque eu sinto
prazer ao olhar para ele.” – a justificação dos juízos estéticos tem aqui um caráter
subjectivo (porque parte do sujeito).
Por sua vez, chama-se objetivistas àqueles que respondem que tudo o que
conta são as caraterísticas dos próprios objetos: afirmamos que um objeto é bonito
ou feio porque tem certas propriedades que o tornam realmente bonito ou que o
tornam realmente feio. Assim, se perguntarmos a um objetivista: “Por que razão dizes
que aquela flor é bonita?”, ele responderá algo deste género: “A flor é bonita devido às
suas cores intensas e invulgares, à forma elegante do seu caule e à disposição
harmoniosa das suas pétalas.” O objetivista justifica o que diz apontando para certas
caraterísticas da flor: as suas cores, as suas formas e a relação entre as suas partes.
Acredita, pois, que a beleza está na própria flor, mesmo que algumas pessoas sejam
insensíveis a isso e não sejam capazes de detetar a beleza que está diante dos seus
olhos – a justificação dos juízos estéticos tem aqui um caráter objetivo.
141
da cidade de Londres e, portanto, como só eu posso saber, os meus juízos
estéticos nunca podem estar errados!” Sendo assim, se nos basearmos neste
pressuposto, qualquer discussão sobre a beleza acaba por ser disparatada e,
consequentemente, inútil, pois não se vê o que possa haver aí para discutir. Não faz
simplesmente sentido discutir sobre o que não pode estar errado, tal como não faria
sentido as pessoas discutirem sobre se eu sinto agora uma dor de dentes ou não.
A posição: “Eu, e mais ninguém, é que sei!” – é uma posição que corta a
discussão pela raiz. Trata-se, pois, como, de resto, já foi dito, de uma forma radical de
subjetivismo.
Mas o problema principal provocado pelo subjetivismo radical é que nos coloca
permanentemente a discutir os gostos uns dos outros, questionando se certas coisas
são bonitas ou não e a discordar de juízos estéticos emitidos por outros, por exemplo:
- a Rita diz que a música do Toy é bonita ao que o João responde que ela está
enganada e que nem sequer sabe o que é música;
- o João diz que os filmes do Harry Potter são emocionantes, mas a Rita diz que
não passam de meras histórias para entreter crianças;
- a Rita diz que o romance Os Maias, de Eça de Queirós, é uma obra-prima, mas o
João diz que qualquer livro de terror é bem melhor.
Tais discordâncias só vêm contrariar, na prática, a ideia de que os gostos não
se discutem, ou seja, vêm demonstrar que, afinal, os gostos até se discutem.
Além disso, se a beleza for apenas uma questão de gosto pessoal, individual,
subjetivo, porque razão há tanta gente a gostar mais de Sintra (e disposta a deslocar-se
de longe só para a visitar) do que da Amadora, que fica mesmo ao lado (e a que poucos
se deslocam para esse fim)? Será uma simples coincidência haver tanta gente a
gostar mais de Sintra do que da Amadora?
Pensemos também nos juízos que apresentámos atrás (na tabela inicial) a
propósito desta problemática, e façamos algumas comparações: será que o juízo
estético “Londres é uma cidade bonita” suscita menos discussão do que o juízo
não estético “Londres é uma das maiores cidades da Europa”? Ou que o juízo
estético “Os Maias é um romance vulgar” suscita menos discussão do que o não
estético “O romance Os Maias foi escrito por Eça de Queirós”?
142
Na verdade, poucas pessoas pediriam àquele que afirma que “O romance Os
Maias foi escrito por Eça de Queirós” uma justificação do seu juízo. Pelo contrário, se
alguém afirmar que “Os Maias é um romance vulgar”, irá certamente deparar-se com
muitas pessoas a exigir que justifique o que diz e a ter que defender a sua opinião
perante tantas vozes discordantes. Ora, isto só vem demonstrar que, ao contrário do que
parece, é mais frequente e até mais razoável discutir juízos de gosto do que juízos
de facto, pois, o que se verifica é que, mesmo que os juízos estéticos sejam uma
questão de gosto (subjetivo, pessoal), na prática não procedemos como se os
gostos não se discutissem, ou seja, discutimo-los efetiva e constantemente.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
SUBJETIVISMO ESTÉTICO
143
questões estéticas. Por isso, ambos defendem ser possível encontrar critérios
comuns de apreciação e avaliação das obras de arte.
Mas se os juízos estéticos se baseiam nos sentimentos, preferências ou gostos
pessoais, como contrariar a conclusão de que não há discussão possível? Como
encontrar critérios comuns de apreciação e avaliação de juízos que têm um caráter
subjetivo (relativos a cada sujeito)?
David Hume acredita que tudo o que sabemos acerca do mundo tem origem
na observação cuidadosa das coisas. Ora, diz ele, se verificarmos o que se passa com
as pessoas em matéria de gostos, acabamos por verificar que:
145
aceites por uma maioria esmagadora de pessoas, somos forçados a admitir que
existe de facto um padrão de gosto.
146
DUAS OBJEÇÕES (CRÍTICAS) AO SUBJETIVISMO
As objeções ao subjetivismo radical são tão fortes que, tal como já foi afirmado
neste capítulo, praticamente nenhum filósofo defende essa perspetiva. Aliás, temos que
admitir que se o subjetivismo radical vingasse, não existiriam críticos de arte nem as
obras de arte seriam alvo de qualquer tipo de avaliação ou crítica, pois, seria tudo tão
subjetivo que não haveria sequer troca de impressões, de opiniões, de pontos de
vista DIFERENTES, ficando cada sujeito fechado em si mesmo e, por conseguinte,
naquilo que entenderia ser o seu gosto pessoal.
- a segunda objeção é que tanto David Hume como Immanuel Kant têm de
recorrer a algo diferente do que sentimos para explicar porque razão os gostos não
são arbitrários, isto é, não são ao acaso e, por conseguinte, não são assim tão
variáveis de sujeito para sujeito (esta é a objeção de que o subjetivismo não explica
o que precisa de ser explicado, ou seja, por que razão gostamos do que
gostamos?). Hume responde dizendo que é o PADRÃO DO GOSTO e Kant responde
dizendo que é a UNIVERSALIDADE DOS JUÍZOS ESTÉTICOS.
No fundo, tanto um como outro defendem a ideia de que as nossas
capacidades acabam, de certo modo, por funcionar de maneira semelhante em todos
nós. Mas não seria mais simples admitir que os próprios objetos têm certas
caraterísticas capazes de despertar prazer quando os observamos? Por que razão
se exclui que o prazer que sentimos é causado pela beleza que está nos próprios
objetos? Ora, não basta dizer que sentimos prazer quando apreciamos certas
coisas; é preciso explicar também por que razão sentimos esse prazer, ou seja, POR
QUE RAZÃO GOSTAMOS DO QUE GOSTAMOS? E é precisamente isto que, de acordo
147
com os seus críticos, os subjetivistas (mesmo os mais moderados) deixam por
explicar…
ATIVIDADES/QUESTÕES:
OBJETIVISMO ESTÉTICO
148
Ora, defender que um dado objeto é belo porque gosto dele (subjetivismo) é
muito diferente de defender que gosto dele porque é belo (objetivismo).
Assim, esta “luta” entre subjetivistas e objetivistas pode resumir-se a estes dois
exemplos/afirmações:
O objetivista considera que não pode ser por acaso que gostamos de umas
coisas e de outras não. A razão de gostarmos de certas coisas é, segundo o objetivista
bastante simples: gostamos delas precisamente por serem belas. Afirmar que certas
coisas são belas é reconhecer nelas certas caraterísticas que nos levam a sentir
prazer ao observá-las. Ao observar algo não temos prazer só porque “calha”, mas
porque algo nas coisas nos fez ter prazer.
Se a beleza das coisas dependesse, como diz o subjetivista, do prazer que
sentimos ao percecioná-las, então aquelas só passariam a ser belas depois de
começarmos a gostar delas.
Por exemplo, a canção Fix you, dos Coldplay, foi gravada em 2005, mas a
Carolina só ontem a ouviu e sentiu prazer nisso, achando-a uma música muito bonita.
149
Ora, se os subjectivistas tivessem razão, seria correto a Carolina dizer que até ontem
aquela música não era bonita. E se o Rui deixar de gostar de ouvir a canção Bad Liar, dos
Imagine Dragons, que ainda há pouco tempo lhe dava tanto prazer ouvir, isso significa
que, para ele, a canção deixou de ser de ser bonita? Como as pessoas estão
constantemente a gostar e a deixar de gostar das mesmas coisas, segue-se que
essas mesmas coisas estão constantemente a ser bonitas e a deixar de o ser? Mas
isto não é lá muito razoável, dirá o objetivista.
Nem sequer serve de muito dizer que há um padrão do gosto (como disse David
Hume) ou que a faculdade do gosto funciona de modo muito semelhante em todas as
pessoas (como afirmou Kant), pois voltaríamos ao mesmo problema: como se explica a
existência do padrão do gosto e o que significa isso de o gosto funcionar de forma
semelhante em todos nós?
A resposta/explicação do objetivista é, novamente, a seguinte: nada poderia
explicar tal coisa a não ser o facto de os objetos terem propriedades que nos fazem
gostar deles, ou seja, a beleza está nos próprios objetos, portanto, é objetiva.
150
chamadas propriedades de segunda ordem), que contribuem para a beleza de um
quadro, são de outro tipo, como, por exemplo, a harmonia e a elegância (das cores e
das formas), o vigor (das pinceladas), etc. – a ideia é a de que, como a beleza não se
identifica diretamente com as propriedades físicas (embora resulte delas), detetá-las
exige, muitas vezes, uma informação prévia e uma observação cuidada por parte de
quem se detém a apreciar uma obra de arte, o que acentua a importância do papel
do sujeito nesta experiência (subjetiva).
Assim, defendem, os subjetivistas, tal como só um médico é capaz de, graças a
um treino especializado e a uma observação atenta, olhar para uma radiografia dos
pulmões e detetar a presença de lesões recentes, também só alguém que teve formação
adequada na área artística será capaz de interpretar, explicar e criticar uma obra de arte.
Consequentemente, tal como há situações em que o próprio médico aponta para as
manchas que aparecem na radiografia, dizendo-nos que está ali uma infeção e nós não
vemos senão manchas indefinidas, também há situações em que a beleza numa obra de
arte/objeto estético não é imediatamente observável, mesmo que ela até esteja lá à vista,
necessitando, pois, da sensibilidade/formação/capacidade crítica e interpretativa do
sujeito que sobre ela se debruça.
Mas os objetivistas contrapõem dizendo que esta comparação não é correta,
pois, segundo eles, os próprios especialistas em arte (os estetas, os que perseguem a
beleza) divergem muitas vezes nas suas opiniões/apreciações/críticas, bem como
os próprios médicos, que também podem divergir quanto a determinadas
observações e diagnósticos, chegando mesmo a pedir com alguma frequência
pareceres de outros médicos e a recorrer a outros métodos de observação
complementares (por exemplo, não raras vezes, os médicos divergem quanto à correta
interpretação de uma radiografia dos pulmões e, por isso, não raras vezes, também,
pedem uma terceira opinião e recorrem a outro tipo de análises). Assim, concluem os
objetivistas, tal como a existência das doenças, eventualmente detetadas num
determinado exame, análise ou outra forma qualquer de diagnóstico, não depende
da opinião do médico, também a beleza de um determinado objeto estético não
depende da opinião de cada um, ou seja, a resposta do objetivista é que o facto de
não ser fácil detetar a beleza nas coisas, não significa que ela não esteja
efetivamente lá (caso sejam mesmo belas), tal como acontece com a deteção de
algumas doenças.
151
ATIVIDADES/QUESTÕES:
1. Explique a diferença que existe entre “Gosto disto porque é belo.” e “Isto é
belo porque gosto disto.”
5. “A beleza está nas coisas belas, só que algumas pessoas não a conseguem ver
lá.” Concorda ou não com a afirmação? Justifique.
O QUE É A ARTE?
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
(O PROBLEMA DA DEFINIÇÃO DE ARTE)
À primeira vista, poderá parecer uma perda de tempo perguntar o que é a arte e
darmo-nos ao trabalho de filosofar acerca das obras de arte, pois quase todos nós
somos perfeitamente capazes de dar exemplos claros de coisas que são arte e de outras
que não o são.
Eis uma pequena lista de coisas que todos concordamos serem arte e de outras
que todos reconhecemos não o serem:
- A escultura O Beijo, de Rodin, é arte. Mas a cadeira em que o Guilherme se
senta na sala de aula não é arte.
152
- O quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, é arte. Mas a fotografia que o Duarte
tirou para o cartão de estudante não é.
- O Palácio da Bolsa do Porto é arte. Mas os lavatórios públicos do mesmo
palácio não são arte.
- A obra Os Lusíadas, de Luís de Camões, é arte. Mas as cartas de amor do João
para a Rita não são arte.
- O Requiem (sinfonia), de Mozart, é arte. Mas o toque da sirene do quartel dos
Bombeiros Voluntários não é arte.
- O quadro O Ensaio de Dança, de Edgar Degas, é arte. Mas o esquema que o
senhor António fez num papel para explicar ao filho como pode ir de Marco de
Canaveses ao Porto pela estrada nacional não é arte.
Mas será que esta lista mostra não haver grandes problemas com a compreensão
da noção de arte? A noção de arte aplica-se a um conjunto muito vasto e
diversificado de coisas: pinturas, esculturas, edifícios (arquitetura), peças musicais e
canções, peças de dança e de teatro, filmes, obras literárias, fotografias, etc. Se tivermos
isto em mente, talvez os exemplos acima dados ainda não consigam dar-nos uma ideia
suficientemente precisa do que é e do que não é arte…
Ao refletirmos sobre alguns dos objetos que estão expostos nas mais conceituadas
Galerias de Arte do mundo, somos levados a perguntar: mas isto é arte? É que se nelas,
há, por exemplo, uma cadeira Zig Zag, de Gerrit Rietveld, que faz parte de conhecidas
coleções de arte contemporânea, uma foto da cantora Patti Smith, tirada por Robert
Mapplethorpe, exibida em museus e galerias de arte, e até um urinol invertido, intitulado
Fonte, de Marcel Duchamp, que são consideradas arte, porque não hão-de também ser
arte a cadeira onde o Guilherme se senta, a fotografia do Duarte e os lavatórios do
Norte Shopping?
Qual é, afinal, a diferença?
O que têm em comum todas as obras de arte que nos permite afirmar que são
mesmo obras de arte e, ao mesmo tempo, distingui-las do que não é arte?
Ao fazermos estas perguntas, estamos a questionar a própria noção de arte. E é
para responder a tais perguntas que precisamos de uma boa definição de arte! Vários
filósofos têm enfrentado o problema, apresentando definições explícitas de arte, mas,
definir explicitamente a arte implica identificar as condições necessárias para algo
ser arte (as caraterísticas que são exclusivas à arte, que identificam o que é a arte e que
153
são comuns a tudo o que é considerado arte) e as condições suficientes para algo ser
arte (as caraterísticas que só o que é arte tem).
Assim, para que cheguemos com sucesso a uma definição de arte, impõe-se que
articulemos, precisamente, o problema da definição da arte com a tarefa de
explicitação das ideias que defendem, cada uma a seu modo, que a arte é imitação,
que a arte é expressão e que a arte é forma, o que nos remete para o que se passou a
designar por teorias essencialistas da arte.
Porém, antes da abordagem dessas teorias, atentemos numa breve
CLASSIFICAÇÃO DAS ARTES:
- Artes visuais (inclui todas as artes que dependem ou estão sujeitas às nossas
perceções visuais) – pintura, escultura, desenho, fotografia, tapeçaria, cerâmica…
- Arte sonora – a música, o canto…
- Literatura – a poesia e o romance são os mais importantes.
- Artes mistas (artes que combinam diferentes meios) – cinema, ópera, teatro,
dança…
- Arquitetura – esta é uma arte à parte que combina o aspeto visual (design), a
história (a época e o contexto cultural), a economia (relação custo-benefício relacionada
com níveis de conforto, de qualidade de vida e de bem-estar), a geografia/paisagem
(enquadramento harmonioso no local, tendo em conta o contexto geográfico e climático;
por exemplo, o Douro) e o ambiente/ecologia (impacto ambiental, aproveitamento dos
recursos naturais e sustentabilidade).
Obs.: as artes também se podem dividir entre as performativas (as que se destinam a ser,
geralmente, executadas em público), como a música, o cinema, o teatro, a dança, e as não performativas
(que, por norma, não são executadas em público, salvo algumas exceções), como a pintura, a escultura, o
romance e a arquitetura.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
154
Fonte, de Marcel Duchamp, 1917
Os filósofos gregos Platão (427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.) foram dos
primeiros a pensar sobre a natureza da arte e ambos defendiam que a arte é imitação
ou mimese (palavra portuguesa que tem origem na palavra grega mimesis, que, numa
primeira análise, significa imitação, mas que, em rigor, se aproxima mais do que hoje
entendemos por representação).
155
Platão pensava que toda a arte é imitação e que, por ser imitação, era digna de
censura, pois, este filósofo acreditava que as imitações, ao substituírem o modelo original
(a realidade) por meras cópias, inevitavelmente, acabavam por nos afastar da realidade,
da verdade e, consequentemente, do conhecimento.
Aristóteles, contudo, pensava que as pessoas podiam aprender com as imitações
(podiam aprender, por exemplo, a lidar melhor com as emoções) e, em vez de censurar a
arte, tentou antes classificar e caracterizar os diferentes tipos de imitação. A ideia de
Aristóteles era mostrar que diferentes artes imitam coisas diferentes ou de maneiras
diferentes: a poesia e o teatro imitam ações humanas, só que a poesia fá-lo por meio da
descrição narrativa e o teatro por meio de atores; já a dança imita a ação humana por
meio do gesto, ao passo que a música o faz por meio do som. Seja o que for e de que
maneira for, todas as artes têm em comum o imitar algo.
Esta ideia foi aceite durante séculos, tanto que os próprios artistas procuravam
sempre imitar algo quando criavam as suas obras. A arte era encarada como um reflexo
da natureza e a melhor imitação era normalmente mais digna de admiração.
Esta teoria, apesar de muito antiga, continua a ser muito popular (basta lembrar
que quando, por exemplo, alguém declara que um dado quadro não merece ser
considerado arte por nem sequer se perceber acerca do que é, essa pessoa está
implicitamente a dizer que, para ser arte, o quadro deveria, de algum modo, imitar algo.
A tese que caracteriza a teoria da arte como imitação é a seguinte: tudo o que é
arte imita algo.
Como se pode verificar, não se trata de uma definição da arte, pois não se
apresenta as condições necessárias e suficientes para X ser arte; apenas se afirma
que tudo o que é arte imita algo, mas não que tudo o que imita algo é arte. Como
seria de esperar, tanto Platão como Aristóteles sabiam perfeitamente que há imitações
que não são arte: um homem que imita um macaco não está, desse modo, a fazer arte.
Não é, pois, suficiente haver imitação para haver arte. Mas isso não impede os
defensores desta teoria de insistirem que a imitação é uma característica necessária
da arte: se não houver imitação não há arte.
Mas será que a imitação é mesmo uma condição necessária da arte?
156
o que é arte imita algo. Para isso, basta encontrar um objeto que não imite seja o
que for e que seja classificado como arte.
Ora, não é preciso procurar muito para encontrar, não apenas um, mas vários
exemplos que contrariam a teoria de que a arte é imitação. A não ser que recusemos o
estatuto de arte a muitos quadros e esculturas exibidas em museus e galerias,
dificilmente poderemos concordar que a imitação é necessária à arte. Milhares de
obras de arte abstrata e de peças de música instrumental, as quais não imitam seja o que
for, refutam (contrariam) a tese de que toda a arte imita algo. Se a imitação fosse uma
condição necessária para algo ser arte, então, uma obra tão conhecida como Fonte, de
Marcel Duchamp, não seria arte, pois não imita um urinol: é um urinol. Mas isso
contraria o que parece estar firmemente estabelecido.
A teoria da imitação só pareceu boa durante tanto tempo porque os próprios
artistas a aceitaram como verdadeira durante séculos, criando obras que procuravam, de
facto, imitar algo. Daí que não fosse fácil encontrar contra-exemplos que toda a gente
aceitasse até ao momento em que os artistas começaram a deixar de se preocupar com
imitações.
157
e a vida, apesar de não imitarem coisa nenhuma. E até se pode argumentar que uma
obra como Fonte (o famoso urinol em porcelana), de Marcel Duchamp, representa algo,
legitimando a ideia de que qualquer objeto pode ser arte.
Ainda assim, esta nova versão da teoria da imitação, que aponta mais para a
representação, não parece imune a contra-exemplos, pois continua a haver pinturas
abstratas que dificilmente se consegue mostrar que representam algo. Há pinturas
monocromáticas (com a tela totalmente pintada com uma só cor), por exemplo, muitas
das pinturas Yves Klein (artista francês e é considerado uma figura importante da arte
europeia após a Segunda Guerra Mundial), e outras pinturas abstratas geométricas que
são concebidas para provocarem em nós um certo tipo de experiências visuais, como é o
caso dos jogos de cores e formas da OpArt (arte ótica), por exemplo, as obras de
Vasarely (pintor e escultor húngaro radicado na França considerado o "pai da OP ART"),
que procuram simplesmente estimular a nossa perceção visual. Obras como estas nada
representam, de acordo com os seus próprios autores. O mesmo se pode dizer de
alguma música instrumental, como a chamada música minimal repetitiva, por exemplo,
Drumming de Steve Reich (considerado um dos mais importantes compositores da
música minimalista e da música modalista), muita da qual pretende apenas criar certos
efeitos auditivamente interessantes no ouvinte. Há também importantes obras de
arquitetura, como a Casa da Cascata do conhecido arquiteto Frank Lloyd Wright (cujas
fotos mais conhecidas são da autoria do fotógrafo Harold Corsini), que ninguém diria
representar algo. Parece, pois, que a teoria da representação acaba por não incluir
tudo o que desejaríamos que incluísse para se tornar aceitável.
Porém, é verdade que muita arte imita e/ou representa algo.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
158
5. Sabendo nós que os dragões não existem, será correto afirmar que o
desenho de um dragão imita mesmo um dragão? Justifique.
TEORIA EXPRESSIVISTA
(A ARTE COMO EXPRESSÃO)
O verdadeiro artista é uma pessoa que, debatendo-se com o problema de expressar uma
certa emoção, diz: quero tornar isto claro!
R. G. Collingwood
159
com uma espécie de espelho e colocá-lo diante das coisas do que perder tempo a pintá-
las. A arte estava, pois, centrada nos objetos e devia captar corretamente as suas
caraterísticas resumindo-se a uma mera cópia ou reprodução fiel da realidade.
Ora, esta forma de ver as coisas começou a ser posta em causa nos finais do
século XVIII, com o início do movimento romântico (Romantismo). Poetas, pintores,
escritores e músicos começaram a utilizar a arte como forma de expressão das
suas experiências individuais. Em vez de mostrarem a natureza que os rodeava,
estavam mais interessados em exprimir nas suas obras o seu universo interior. A arte
tornou-se um veículo para exprimir emoções, deixando de ser um espelho da natureza
para se tornar uma forma de exteriorização das vivências internas do artista. Os
artistas deixaram de representar objetos ou acontecimentos e passaram a exprimir
estados de alma (sentimentos ou emoções) – por exemplo, a pintura de uma flor não
pretende representar a flor, mas antes exprimir o sentimento do artista perante a flor. Os
românticos defendiam que a tentativa de descrever objetivamente a natureza é tarefa da
ciência, que parecia estar a ter bastante sucesso na altura. Ao invés, o interesse da arte
reside no interior e não no exterior do sujeito. Segundo os românticos, esta
caraterística (o interesse pelo interior) confere mais valor à arte porque consegue
mostrar uma realidade que escapa à ciência: o nosso universo emocional. A noção
romântica da arte como expressão de emoções ou sentimentos tornou-se
amplamente aceite e continua a ser partilhada por muitas pessoas, senão mesmo
pela maioria. Esta perspetiva está bem patente quando alguém afirma que uma dada
canção não é arte, alegando não haver nela qualquer emoção; ou quando se diz que um
dado poema não tem qualquer interesse artístico por não conseguir transmitir-nos seja o
que for; ou ainda quando se diz que um dado quadro não tem interesse por não ter
“chama”.
Há diferentes versões da teoria expressivista, sendo as mais conhecidas a do
romancista e ensaísta russo Tolstoi (1828-1910) e a do filósofo britânico Collingwood
(1889-1943). Vejamos, em traços largos, cada uma delas:
TOLSTOI: A ARTE COMO TRANSMISSÃO DE EMOÇÕES
Tolstoi defende que a arte surge quando alguém recorre a certas “indicações,
manifestações ou produções externas” (das mais variadas maneiras) para exprimir
sentimentos que quer partilhar com outras pessoas, unindo-se desse modo a elas.
Isto significa que não há arte se não houver expressão de sentimentos ou se tais
sentimentos não contagiarem outras pessoas. Tolstoi defende, portanto, que a arte é
uma forma de comunicação ou de transmissão de sentimentos: o artista (emissor)
160
comunica ao público (recetor) o que realmente sente no ato de criação (mensagem),
de modo que os mesmos sentimentos sejam, por meio da obra (veículo de
transmissão), partilhados por todos. Para que haja verdadeira comunicação, os
sentimentos do artista, não só têm de ser autênticos (sinceros, convictos, fortes),
como os que o público sente têm de ser os mesmos que o artista sentiu.
É certo que há formas de comunicação que não são arte como, por exemplo, uma
notícia de jornal. A diferença é que na arte se expressam sentimentos e não outra
coisa qualquer, constituindo isso um meio de unir as pessoas (através desses
sentimentos). E também é verdade que há casos de expressão de sentimentos que não
são arte: por exemplo, quando alguém chora de tristeza está a exprimir sentimentos, de
forma espontânea, e não a fazer arte. Daí que Tolstoi acrescente que não se trata
simplesmente de exprimir sentimentos, mas da expressão intencional e clarificadora
desses mesmos sentimentos (normalmente, uma pessoa quando chora de tristeza, está
a exprimir sentimentos mas não de forma intencional ou artificial).
1. O artista tem de sentir algo, caso contrário, não há sentimento algum para
exprimir;
2. O público tem de sentir algo, e esse sentimento tem de ser o mesmo que o
artista sentiu, caso contrário, não há verdadeira comunicação de sentimentos;
161
que sente. Assim, a função da arte é clarificar, através da sua expressão,
sentimentos indefinidos do artista, que ele começa por nem sequer saber
identificar. Para isso, o artista recorre à imaginação, procurando fazer luz sobre
sentimentos que lhe surgem em estado bruto – isto é, de forma confusa e imprecisa.
Precisamente porque os sentimentos começam por ser confusos e imprecisos é que
exigem ser clarificados.
Ora, a clarificação de sentimentos é algo que se encontra apenas na
verdadeira arte, a que Collingwood chama “arte propriamente dita” ou “arte
autêntica” para a distinguir dos ofícios que são atividades como o artesanato ou as artes
meramente decorativas, propagandísticas ou de mero entretenimento. A falsa arte, como
o mero entretenimento e o artesanato (muitas vezes confundidos com a verdadeira
arte), não visa a clarificação de estados emocionais individuais do artista. Isto
porque, ao passo que o artista não obedece a qualquer plano definido, pois começa
por nem sequer ter bem consciência de que sentimentos se trata (já que surgem de
forma espontânea e intuitiva), o mero artesão e o entertainer limitam-se a executar um
plano preestabelecido. Quer isto dizer que o verdadeiro artista, recorrendo à sua
imaginação criativa, nunca sabe de antemão onde o pode levar tal processo de
clarificação, processo este que pode nem sequer resultar na produção de obras de
arte/objetos estéticos (pinturas, esculturas, peças musicais, poemas, etc.).
Normalmente, essa experiência imaginativa do artista materializa-se em
pinturas, esculturas, músicas, etc., mas também pode existir apenas na mente do
artista, sem se manifestar ou clarificar. Isto significa que o processo criativo não é
algo essencialmente manual ou corporal (técnico), mas mental (genial). Envolver-se
nesse processo é tomar gradualmente consciência dos sentimentos que estão a ser
expressos, o que tanto vale para o criador (emissor) como para o observador (recetor).
Sendo assim, apreciar uma obra de arte não é algo meramente passivo. O próprio
observador participa nessa experiência imaginativa de clarificação emocional.
Podemos agora ver que tanto a versão de Tolstoi como a de Collingwood
convergem no seguinte:
A arte é expressão clarificadora de emoções.
Desta vez, estamos perante uma definição explícita de arte, que se poderia
formular desta forma: X é arte se, e somente se, expressar emoções de forma
clarificadora. Mas será esta uma boa definição?
162
Ambas as versões da teoria expressivista partilham a ideia de que para haver
arte o artista tem de sentir o que exprime. Ora, isto significa que, por exemplo, os
atores de uma peça de teatro ou de um filme não estão a fazer arte, pois é muito
improvável que sintam todos os sentimentos que procuram exprimir:um ator que
representa o papel de alguém triste não tem, ele próprio, de estar triste. E algo
semelhante se poderia dizer de obras de arte coletivas, como, por exemplo,na
execução de uma obra musical para orquestra, na qual podem intervir mais de uma
centena de executantes.Parece, pois, muitíssimo improvávelque todos os artistas
sintam tristeza quando criam obras consideradas tristes e alegria quando criam
obras consideradas alegres. Exigir tal coisa implicaria excluir do domínio da arte
numerosas obras que são geralmente aceites/classificadas como arte.
Além disso, dado que muitas vezes não sabemos realmente o que o artista
pensou ou sentiu – é frequentemente o caso de artistas desaparecidos há séculos e
também de autores anónimos – também não poderíamos dizer se as suas criações
são verdadeiras obras de arte, o que é difícil de aceitar.
Outra dificuldade das teorias expressivistas é que elas levam a excluir do
âmbito da arte grandes obras destinadas sobretudo a divertir, como algumas
comédias, entre as quais se encontram várias obras de Shakespeare, de Molière e os
filmes de Charlie Chaplin – de acordo com esta posição, tanto Tolstoi como
Collingwoodrejeitaram algumas obras conhecidas aceites pela maioria das pessoas
como obras de arte, dizendo que não tinham valor, como foi o caso de algumasobras
de Beethoven, considerando-as demasiado efusivas ouexpansivas.
Há ainda a ideia de que o artista clarifica emoções, a qual parece ser
contrariada por muitos artistas reconhecidos, os quais afirmam que procuram nas
suas obras transmitir sentimentos em estado bruto, seguindo o primeiro impulso e
sem qualquer tipo de trabalho de clarificação.
Não há dúvida de que a teoria expressivista realça a nossa profunda ligação
emocional à arte e a ideia generalizada de quepara se compreender a arte tem de se
ser uma pessoa sensível, mas, ainda assim, convirá lembrar que, como última objeção
que aqui se deixa relativamente à teoria expressivista da arte ou da arte como
expressão, apesar de haver muita arte expressiva, também há muita que não o é.
No âmbito desta problemática da arte como expressão de sentimentos, podemos, por
exemplo, questionar se a poesia é expressão de emoções e, adensando ainda mais
complexidade da questão, atentar no genial poema que segue, da autoria de Fernando Pessoa:
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
163
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
TEORIA FORMALISTA
(A ARTE COMO FORMA)
Podemos, então, dispensar de uma vez por todas a ideia de semelhança com a natureza,
da correção e incorreção como um teste, e considerar apenas se os elementos emocionais
inerentes à forma natural foram adequadamente descobertos.
Roger Fry
164
moderna chega a opor-se radicalmente à ideia de representação (no sentido de
imitação, reprodução ou cópia fiel). Representar o mundo exterior era uma coisa que a
fotografia fazia perfeitamente, pelo que alguns pintores acharam que deviam procurar
novos caminhos e abandonar a representação. Um dos caminhos foi explorar as
possibilidades de composição, através da organização puramente visual de cores, linhas
e formas. A pintura abstrata começou a impor-se e com ela também a ideia da “pintura
pela pintura”, daí resultando um conjunto de obras completamente diferente do que era
habitual (os quadros de Wassily Kandinsky, servem de exemplo).
Foi neste contexto que Clive Bell (1881-1964), um conhecido crítico e filósofo da
arte, veio defender a chamada teoria formalista da arte, a que, por vezes, também se
chama “teoria de Bell-Fry”, uma vez que, além de CliveBell, o seu amigo, pintor e crítico
de arte Roger Fry (1866-1934, foi outro dos seus principais defensores. Na verdade,
ainda antes de Clive Bell, já o crítico musical austríaco EduardHanslick (1825-1904)
tinha defendido algo semelhante, mas apenas em relação à música (pode até recuar-se a
Kant, que, ao defender que a experiência estética se centra apenas na forma dos objetos,
lançou as bases do formalismo). Foi, contudo, no tempo de Clive Bell que a teoria
formalista da arte alcançou grande sucesso e veio a ser defendida por outros filósofos,
assim como por muitíssimos críticos de arte.
Quando o crítico de arte diz que determinado quadro revela uma grande unidade e
sentido de equilíbrio, ou quando o crítico musical elogia uma canção por conter uma
melodia simples, sóbria e elegante, tanto um como outro estão a destacar as
propriedades formais das referidas obras. Hanslick, por exemplo, insistia que a
música não tem sequer o poder de exprimir emoções, apesar de ter o poder de despertar
emoções nos ouvintes, o que são coisas muito diferentes. Tudo o que podemos encontrar
na música é o desenvolvimento de certas ideias musicais relativas à melodia, à harmonia,
ao ritmo e aos timbres sonoros. O conteúdo da música é, diz Hanslick, estritamente
musical: são “formas sonoras em movimento”. Por isso é inútil procurar na música
qualquer mensagem ou qualquer ideia não musical.
Daí que, nesta perspetiva (formalista)a apreciação musical se centre
exclusivamente no jogo entre as propriedades formais das obras e que procurar
algo mais do que isso é encará-las, não como objetos estéticos, mas como
curiosidades históricas, sociológicas, etc.
165
Clive Bell centra-se mais no caso da pintura, embora a ideia principal da arte
como forma se mantenha dentro daquilo que são as linhas gerais da teoria formalista.
Procura, contudo, esclarecer a relação especial que, na sua opinião, existe entre as
propriedades formais das obras de arte e a emoção que elas despertam em quem
as aprecia. Nesse sentido, este filósofo da arte considera que sabemos que estamos
perante uma obra de arte quando sentimos uma emoção peculiar (muito própria,
muito especial). Quer dizer, tudo começa com a experiência pessoal de alguém perante
algo que é arte: essa experiência é uma emoção estética.
Ao falar de emoção, Clive Bell, parece estar a aproximar-se da teoria
expressivista, que concebe a arte como expressão, mas não é assim – em primeiro lugar,
porque está a falar da emoção de quem (o recetor/espetador) está diante da obra de
arte, o que não significa que a própria arte exprima tal emoção; em segundo lugar, porque
essa emoção é única no seu género, pois, não se trata de algo como a alegria, a
esperança, a euforia ou outras emoções deste tipo, mas sim de uma emoção que só
a temos quando estamos perante uma obra de arte (emoção estética). Só que não
haveria qualquer emoção estética se não houvesse na própria obra de arte alguma
caraterística responsável por tal emoção – a questão está, pois, em saber que
caraterística é essa.
Clive Bell diz que para sentir emoção estética é preciso sensibilidade, mas que
também é preciso inteligência para detetar a caraterística da obra de arte que
desperta tal emoção – a caraterística que desperta em nós a emoção estética é
comum a todas as obras de arte e só nelas existe. Assim, identificar essa
caraterística é o mesmo que identificar a essência das obras de arte, pelo que ela é,
simultaneamente, condição necessária e suficiente da arte. Mas, insistindo na pergunta,
que caraterística é essa, afinal?
A resposta é: a caraterística que a obra de arte deve ter para despertar em nós
a emoção estética é a forma significante.
FORMA SIGNIFICANTE
Quando se está a falar de forma significante não se está a falar de uma forma
qualquer, uma vez que, precisamente, para a forma ser significante tem de se
destacar por si mesma. Se pensarmos na pintura, por exemplo, a forma é entendida
como a combinação de linhas e cores; na música, a forma é uma certa organização dos
sons; na dança a forma é a composição das figuras e movimentos…
Segundo esta perspetiva, um objeto tem forma significante quando é a própria
forma que nos chama à atenção e desperta o nosso interesse – um exemplo
166
esclarecedor deste aspeto é a escultura Pássaro no Espaço (da qual se apresenta
imagem mais à frente) do mais célebre escultor romeno e um dos principais nomes da
vanguarda moderna Constantin Brâncuși (1876-1957). Assim, se alterássemos aforma,
o objeto deixaria de ser digno de atenção e perderia o seu significado enquanto
objeto de apreciação (objeto estético).
Muitos objetos produzidos pelos seres humanos têm uma finalidade, e a sua forma
depende dessa finalidade: por exemplo, a forma de uma faca depende do facto de ela
servir para cortar. Já as obras de arte são criadas apenas com o único intuito de
exibir a sua forma, deixando-nos encantados… Por isso, as obras de arte, e só elas,
têm forma significante. Daí a definição: a arte é forma significante ou,
alternativamente, X é arte se, e só se, tiver forma significante.
Note-se que, na opinião do formalista, a pintura pode até representar as coisas
exteriores, mas ele defende que não é isso que faz dela arte.
Analisar esteticamente um quadro é, pensam os formalistas, realçar a
disposição das formas na tela, bem como a relação entre as linhas e a utilização
das cores, de modo a verificar se tudo isso se combina numa forma significante.
Mesmo que o quadro represente algo, o que representa é esteticamente irrelevante.
Aliás, quaisquer outras finalidades, além da simples exibição da sua forma são
irrelevantes. É por isso que, por exemplo, mesmo aqueles que não são religiosos estão
em condições de apreciar esteticamente música religiosa, pois, independentemente dos
fins da obra, o que interessa é a sua forma – que uma obra tenha fins religiosos, morais,
políticos ou outro é irrelevante para o formalista.
Esta teoria parece ter uma enorme vantagem em relação às anteriores: pode
incluir todo o tipo de obras de arte, inclusivamente obras que exemplifiquem
formas de arte ainda por inventar. Desde que provoque emoções estéticas,
qualquer objeto é arte, ficando assim ultrapassado o caráter restritivo das teorias
anteriores (da arte como representação e da arte como expressão).
CRÍTICAS/OBJEÇÕES À TEORIA FORMALISTA DE CLIVE BELL
ATIVIDADES/QUESTÕES:
1. Por que razão Clive Bell diz que a apreciação estética não é apenas uma
questão de sensibilidade?
2. O que é, de acordo com Clive Bell, a forma significante?
3. Por que razão a representação é, na opinião dos formalistas, esteticamente
irrelevante?
4. Expliquea objeção da circularidade apontada à teoria formalista de Clive
Bell.
168
5. Na sua opinião, um conteúdo de um romance (ou de um filme) é irrelevante
para o seu valor estético, apenas importando a sua forma ou não? Justifique.
Nota: na obra Pássaro no Espaço, o propósito do seu autor (Constantin Brâncuși) não era o de representar
um pássaro em particular, mas capturar a essência do voo. Por este motivo, removeu as asas e outras partes do
corpo, alongou esse mesmo corpo e reduziu a cabeça e o bico sob um plano oval inclinado.
169
chegaram mais recentemente a exemplos como um tubarão verdadeiro conservado em
formol (de Damien Hirst) ou uma cama por fazer (de Tracey Emin).
Uma das reações dos filósofos da arte a esta expansão sem barreiras do que se
toma por arte foi considerar que O CONCEITO DE ARTE SIMPLESMENTE NÃO TEM
UMA ESSÊNCIA (uma definição única/universal). Apesar de ser possível detetar
algumas semelhanças entre a arte do passado e a do presente, essas semelhanças
não são universais, não são as mesmas a estarem presentes em todas as obras
contemporâneas (e nalgumas obras como “Fonte” parece não haver realmente nada de
comum com a arte anterior).
Esta posição foi proposta principalmente por Morris Weitz (1916-1981), que,
influenciado pela ideia de semelhança de família de Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
explica que a razão pela qual as várias definições de arte têm falhado tem a ver com
o facto de não haver condições necessárias e suficientes para que algo seja arte,
uma vez que as semelhanças na arte se verificam entre uma obra e outra num aspeto,
mas entre esta e uma terceira noutro aspeto, e assim sucessivamente. O resultado é que
pode haver semelhanças, mas não há uma semelhança única, que torne possível
uma definição essencialista (única) de arte. Assim, em vez de termos uma tal lista de
condições que, se um objeto as satisfizer, garantem que ele é arte (desde uma catedral
gótica a um urinol invertido ou a um tubarão conservado num recipiente ou ainda uma
cama por fazer) temos um CONCEITO ABERTO, que está em constante mutação, até
porque alguns artistas vêem como um dos objetivos das suas obras precisamente o
pôr em causa o conceito de arte da sua época.
Desta perspetiva, parece que nenhuma teoria de arte pode ser bem-sucedida hoje
em dia, pois, se, num dia, um filósofo ou teórico da arte pode apresentar ao público uma
nova definição de arte que, no seu entender, consegue finalmente abranger toda a arte,
no dia seguinte, um artista também pode começar a trabalhar numa obra destinada a ser
uma espécie de contra-exemplo (oposição) ao que o teórico defende ser definidor de toda
a arte, e essa obra acabar por ser exibida numa galeria de arte, deitando por terra aquela
definição.
Conceitos deste tipo funcionam, não pela satisfação de definições essencialistas
(únicas), mas por decisões dos agentes envolvidos na produção e apreciação da arte,
baseadas em algumas semelhanças entre o que uma nova obra é, ou tem como sentido,
e o que são, ou o sentido que têm, outras obras que já incluímos no conceito aberto de
arte (e a decisão não tem, obviamente, de ser sempre de aceitação, embora costume ser,
mesmo no caso de obras completamente desconcertantes).
170
TEORIA INSTITUCIONAL
Não é raro ocorrer que pessoas que não têm rigorosamente nenhuma relação com
o mundo da arte produzam, por passatempo ou por outra razão não relacionada com
esse mundo, artefactos que, uma vez descobertos por membros desse mundo, são
aceites como obra de arte de pleno direito, sejam ela tradicionais ou inovadoras; aliás,
não têm sequer noção da história da arte para saberem se aquilo que fazem é
tradicional ou inovador.
Por exemplo, em alguns hospitais psiquiátricos, houve médicos que colecionaram
obras dos seus pacientes, a maioria dos quais não eram nem tinham sido artistas, e que
conseguiram que essa arte criada fora do “mundo da arte” entrasse nele (o que a
definição exclui). Cita-se frequentemente o exemplo de Alfred Wallis, um marinheiro
inglês reformado com alguns problemas psiquiátricos que, nos anos 20/30 (do séc. XX),
pintava paisagens e navios com tinta de parede em pedaços de cartão e que, em 1928,
foi “descoberto” por dois pintores – a partir daí, as suas “obras” foram expostas e
grandemente apreciadas como arte pura, em bruto. Mas Wallis, que tinha começado a
pintar aos 70 anos, depois da morte da sua esposa, não tinha qualquer conhecimento
de história da pintura, nem de técnicas ou de estilos e não parecia considerar o que
pintava como arte e muito menos como algo para outras pessoas verem e
apreciarem. Aliás, há sinais (baseados em relatórios médicos) de que ele concebia o ato
de pintar como uma espécie de ritual que lhe permitia imaginar-se no passado.
172
CIRCULARIDADE DA DEFINIÇÃO DE ARTE
Uma objeção óbvia, de que o próprio George Dickie estava consciente, é a de que
a sua definição é circular: define o conceito de “arte” usando esse mesmo conceito
na noção de “mundo da arte”. Deste modo, parece que quem não sabe o que é arte
não é ajudado em nada pela definição, uma vez que, para a entender, teria de ter já
conhecimento do que é arte para perceber o que é o “mundo da arte”. Dickie
reconhece esta circularidade mas nega que a definição não seja por isso informativa,
uma vez que, na sua perspetiva, ela esclarece objetivamente as condições em que de
facto certas entidades/artefactos/objetos se tornam arte. Assim, para ele, a definição
de arte seria um círculo virtuoso, e não vicioso. No entanto, muitos dos críticos
permanecem não convencidos deste ponto e põem em causa a suposta informação
e virtude da circularidade da informação, insistindo que ela nada (ou quase nada)
informa quem procura saber o que é arte.
Esta é uma das críticas mais sólidas e mais sofisticadas que foram movidas à
teoria ou definição institucional, argumentando da seguinte forma: SEGUNDO A
TEORIA INSTITUCIONAL, QUALQUER ARTEFACTO (peça ou objeto
construído/produzido pelo ser humano) PODE SER ARTE. No entanto, tem para isso de
ser proposta para apreciação por um membro do “mundo da arte”. Daí coloca-se a
questão: dado um certo artefacto A, como decide esse membro (do “mundo da arte”)
que ele deve ser proposto como arte, “transformando-o” assim efetivamente em
arte? Parece pouco sensato responder algo como: “porque lhe apetece!” Muito
mais aceitável seria responder que “o representante do mundo da arte vê em A
certas propriedades que o destacam e que merecem apreciação”. Só que esta
resposta sensata é fatal para a definição de arte e, consequentemente, a definição de
objeto estético, porque leva à conclusão de que o mundo da arte confere esse
estatuto por algumas razões, em função de certos critérios que alguns artefactos
satisfazem mas outros não. Mas, então, a verdade é que A é arte porque satisfaz
esses critérios, sendo por isso que o artista e o “mundo da arte” o candidata para
apreciação, em vez de despachar a questão e propor todos os artefactos alguma
vez existentes ou futuros, tornando-os arte quase que magicamente. Isto subverte
(adultera/destrói) toda a teoria institucional, e volta a colocar-nos no caminho da
descoberta da essência da arte, o que se traduz, afinal, nesta simples e irritante pergunta:
“o que é a arte?”
173
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
A TEORIA HISTÓRICA
TEORIA HISTÓRICO-INTENCIONAL
174
aspetos que têm a ver com a intenção do artista para com a obra e o seu público, e
com a relação dela com a história da arte que a precedeu.
Assim, define-se arte do seguinte modo: algo que é uma obra de arte se e
apenas se é um objeto acerca do qual uma pessoa que seja proprietária dele tem a
intenção não passageira (duradoura) de que ele seja visto como uma obra de arte,
isto é, visto de qualquer modo (ou modos) como foram ou são vistas as obras de arte
anteriores.
A condição do direito de propriedade significa apenas que o autor tem de ser
dono do objeto, ou, no mínimo, estar autorizado a usá-lo pelo proprietário. A ideia é
eliminar a possibilidade de tudo poder transformar-se em arte pela mera afirmação
proferida por um artista, por mais consagrado que seja, de que a partir desse
momento, tal objeto é arte (sua).
Exige-se também que haja, da parte do artista, uma intenção duradoura acerca
da relação entre a obra que criou e a arte do passado. Em particular, ele deve
trabalhar a obra com a intenção séria de que ela seja vista, encarada e considerada
pelo público como o foram as obras de arte do passado (e isso inclui tanto a intenção
de continuidade com as obras clássicas como a de criar uma obra de arte
revolucionária, para ser encarada como as obras revolucionárias o foram no
passado).
Por fim, é preciso esclarecer a questão da relação da obra proposta com os
modos de apreciar as outras obras da história de arte.
Houve e há uma grande diversidade de modos ou formas de contemplar a
arte: podemos focar a atenção nas cores, no detalhe, na estrutura formal, ou nos efeitos
expressivos, na capacidade de representar a realidade, reconhecer um enquadramento
histórico e as características de um estilo; ver obras como objetos que proporcionam
prazer, manifestações da beleza, modos de desafiar as convenções, de exprimir as
emoções e a criatividade humana, e até como fatores de combate político ou formas de
relação com o divino. Um autor cria uma obra de arte se o fizer com uma intenção
duradoura de que ela seja considerada pelo menos uma destas formas, entre
muitas outras. Isto permite abranger o Parténon, em Atenas, a Sinfonia “Júpiter” de
Mozart, mas também a “Fonte” de Duchamp ou uma peça de teatro experimental.
O DIREITO DE PROPRIEDADE
175
A definição de Levinson está exposta a vários contraexemplos a esta condição:
por exemplo, se um autor utilizar materiais que acredita sincera, mas erradamente
serem sua propriedade (por exemplo, um pintor comprou vários itens semelhantes, e,
por distração sua ou do vendedor, não pagou um ou dois deles), as pinturas em que
usou esses materiais não são por isso obras de arte? É uma conclusão bizarra, tal
como é concluir que, se depois de acabadas as pinturas, alguém der pelo engano e os
itens forem devidamente pagos, esse facto transforma-as em obras de arte.
INTENCIONALIDADE
Há situações que, embora sejam raras na realidade, mesmo que nunca tivessem
sucedido, a simples possibilidade de as concebermos serviria de contraexemplo a esta
condição. O caso real mais conhecido é o do escritor Franz Kafka (1883-1924), escritor
boémio de língua alemã, autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um
dos escritores mais influentes do século XX, que deixou instruções para que, quando
morresse, os manuscritos de O Processo e O Castelo fossem destruídos.
Aparentemente, Kafka não teve a intenção de que eles fossem vistos como arte,
mas sim a intenção de que não fossem vistos de modo algum. Como sucede
frequentemente com estes pedidos, alguém reconheceu valor nos manuscritos e,
contrariando a intenção/vontade expressa do autor, publicou as obras, que são
consideradas obras cimeiras da literatura do século XX.
Definir algo em função de algo anterior pode conduzir a problemas. Neste caso, o
problema surge se remontarmos mentalmente ao momento do surgimento dos
primeiros artefactos que mereceriam ser classificados como arte. Em rigor, esse
surgimento é inexplicável pela definição, e segundo ela, a arte não poderia ter
começado a existir. Com efeito, os primeiros artistas (em culturas não comunicantes
entre si, supõe-se) não podiam contar com um passado de modos de ver obras de
arte em cuja continuidade a sua arte se inseriria, pois eles são os pioneiros da
prática da arte. Parecemos, assim, levados a concluir que só propriedades não-
históricas da “primeira arte” (isto é, que fogem à definição de Levinson) podem
justificar o próprio aparecimento da arte.
EXCESSO DE INCLUSIVIDADE
176
Finalmente, temos a objeção de que há práticas que continuam a dar
seguimento a uma certa tradição de ver algo como arte, mas que ninguém
reconhece como arte. É o caso do retrato em pintura, em que um dos
objetivos/intenções (mesmo que muitas vezes não o mais importante) é ver, nesse
mesmo retrato em pintura, a imagem da pessoa retratada. Ora, se esse é um dos
muitos modos legítimos de ver retratos, seguir-se-á que tirar fotografias do tipo
passe ou de outro tipo com a intenção de encontrar a semelhança entre a fotografia
e a pessoa, e assim usando um modo de ser visto que faz parte do reportório da
arte, poderia também ser produzir arte.
O que é a arte?
(síntese)
TEORIA DA ARTE COMO EXPRESSÃO(EXPRESSIVISTA) – uma obra de arte é uma emoção transformada
em ideia na mente do artista e que ele projeta num objeto.
TEORIA DA ARTE COMO FORMA(FORMALISTA) – um objeto é uma obra de arte se possuir uma forma que
possa ser apreciada esteticamente.
TEORIA INSTITUCIONAL DA ARTE – uma obra de arte é um artefacto com um conjunto de aspetos ao qual
foi conferido, por uma pessoa ou por várias pessoas (atuando em nome de uma instituição, o “mundo da arte”) o
estatuto de candidato para ser apreciado.
TEORIA HISTÓRICO-INTENCIONAL – uma obra de arte é um objeto acerca do qual o seu proprietário tem
intenção duradoura de que ele seja visto como é tipicamente vista a arte.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
A DIMENSÃO RELIGIOSA
ANÁLISE E COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
FILOSOFIA DA RELIGIÃO
INTRODUÇÃO
177
A religião, mais concretamente, a experiência religiosa ou atitude religiosa, tal
como a ciência e a arte, constitui um dos aspetos fundamentais da civilização humana e,
como tal, independentemente de sermos crentes ou não-crentes ou nem uma coisa nem
outra (teístas, ateus ou agnósticos), trata-se de um fenómeno humano incontornável
(que não podemos desconsiderar ou ignorar), porque é um facto de que ele existe e ajuda
a definir o ser humano como ser espiritual e racional, mesmo que possamos considerar
a fé como algo pertencente à esfera do irracional, como, de resto, já tivemos
oportunidade de verificar, embora não de forma muito aprofundada, aquando da nossa
abordagem introdutória às origens do pensamento racional, feita logo nas primeiras aulas
de Filosofia do 10.º ano, através dos mitos, nos quais notámos, independentemente de
considerarmos mais ou menos bizarras, mais ou menos ingénuas, mais ou menos
disparatadas as explicações (narrativas míticas) que destes surgiram acerca dos mais
variados aspetos relativos ao mundo/universo/cosmos e ao homem, existir já um
pensamento lógico, isto é, um pensamento com sentido.
Assim, a religião é um fenómeno universal e transversal a todos os seres
humanos, a todos os tempos e a todos os lugares, que corresponde não apenas à
necessidade natural do ser humano de explicar o mundo/universo/cosmos, mas
também à necessidade espiritual de encontrar um sentido para a sua existência.
Para tal, o universo e a vida humana são geralmente concebidos como criação de um
ou vários deuses e a vida terrena como algo cujo fim representa uma transição para
um plano superior, transcendente, habitualmente identificado com a felicidade
eterna, como recompensa (entrada no “Paraíso”), geralmente acompanhado pela
crença numa alternativa punitiva (condenação ao “Inferno”).
Em última análise, falar de religião e de experiência religiosa é, com efeito, aludir
a uma pluralidade de aspetos que nos obriga a “puxar” pelas nossas aptidões reflexivas
e críticas por forma a evitarmos cair em posturas fechadas, preconceituosas,
dogmáticas e redutoras.
178
mundo e que deriva da necessidade que este sente de acreditar que existe “algo” ou
“alguém” transcendente, isto é, que pertence a uma outra esfera ou dimensão que não
lhe é acessível, nem empiricamente nem racionalmente, que o ultrapassa, que o criou
e criou o mundo, que comanda o seu destino, que dá sentido à sua vida e que lhe
garante a continuidade da sua existência para além da morte (“vida eterna”,
“verdadeira vida”, etc.), devemos abordar o problema da nossa própria existência e do
impacto que a esta mesma dimensão religiosa ou experiência da transcendência
ou ainda, simplesmente, a fé, tem no sentido que atribuímos à nossa própria
existência – porque, afinal, tudo isto depende muito do posicionamento ou da
perspetiva a partir da qual queiramos abordar o problema – a maioria das pessoas
pergunta: sem Deus, nós existiríamos? Mas, a pergunta também poderá ser feita ao
contrário: e, sem nós, Deus existiria?
O homem, pela reflexão que começou a fazer sobre a sua vida, sobre as suas
experiências e vivências e sobre tudo o que o rodeia, rapidamente se apercebeu que,
para além de estar num mundo que, só por si, o deixava perplexo, espantado, admirado,
maravilhado e atemorizado (a natureza com os seus fenómenos, tantas vezes,
misteriosos, assustadores e intrigantes), constatou que era um ser diferente dos outros
animais, que para além de um corpo, tem uma dimensão interior, imaterial a que
chamou espírito, alma, energia, etc., e que, ao mesmo tempo, como todos os seres vivos
ou até mais do que a maioria deles, era um ser frágil (basta pensar, por exemplo, nos
cuidados de que um recém-nascido humano precisa para sobreviver) e finito –
constatação esta que o deixou, entre outros sentimentos, deprimido e angustiado. Ora,
esta consciência de si e da sua condição precária no mundo, como ser que sabe que
existe e que vai deixar de existir; que sabe que, a qualquer momento, por qualquer
motivo, pode ver-se confrontado com o infortúnio, com a tragédia, com a doença e,
consequentemente, com a morte, levou o homem não apenas à angústia, mas também,
apesar da sua impotência para se subtrair (fugir, escapar) a essa condição, à “recusa”
(inconformismo) em aceitar que a sua existência se resume apenas a uma fugaz (curta)
passagem pelo mundo (vida terrena) e à crença (fé) numa outra dimensão existencial,
para além desta, de uma outra vida, entrando aqui, como resposta a toda esta série de
“males”, a atitude religiosa.
Assim, a partir de certa altura (que, obviamente, não é possível delimitar com
precisão no tempo, porque foi algo progressivo), o homem passou a acreditar que não é,
simplesmente, mais um ser que vive e que morre, que a sua vida não se resume a
uma mera passagem por este mundo e que, mais do que isso, tem um sentido.
179
Na realidade, desde que começou a pensar, a refletir sobre a sua vida e sobre a
sua morte, o homem ficou com a convicção de que não pertence a este mundo e que
a sua existência tem origem e se projeta numa outra dimensão, completamente
distinta da que possui enquanto ser terreno.
Ora, é precisamente esta convicção/crença, mais do domínio do irracional do
que do racional, que faz com que o homem ascenda a um “patamar” (espiritual) que já
não é humano e entre na esfera do sobrenatural, de relação (mística) com o divino,
que se traduz na crença na existência de uma ou mais que uma entidades divinas, nas
quais ele deposita confiança e, consequentemente, encontra a sensação de paz, de
tranquilidade, de segurança e de esperança. Numa palavra: a religião acaba por
conferir sentido tanto à sua vida como à sua morte (na medida em que, sem essa
convicção/crença, tudo lhe parece absurdo/vazio de sentido).
Esta atitude religiosa, de ligação (religião deriva da palavra latina religare, que
significa, precisamente, ligação) a um (ou mais que um) ser transcendente, fundada na
fé e projetada na esperança numa outra vida, começou, primeiramente, por manifestar-se
com nitidez nos cultos que, desde muito cedo, os homens prestavam aos seus mortos
e, mais tarde, nos sacrifícios, nos rituais, nas cerimónias fúnebres, etc. – não só como
gesto de respeito por aqueles que morriam (“partiam” para uma outra vida/existência),
mas também como sintoma de respeito, de temor pela própria morte e ainda,
fundamentalmente, como já foi dito, como sinal de fé e de esperança numa outra vida (a
morte era entendida, em muitas civilizações, como regresso às origens, como novo
nascimento ou ainda como transição para outra dimensão existencial).
No fundo, acreditar numa ou em várias divindades, que estão acima de todas as
coisas e que pertencem a um mundo sobrenatural e transcendente, mas que tudo veem
e tudo controlam, é uma forma de o homem se sentir, para além de vigiado e
controlado (função normativa da religião, a qual começou com os mitos), pois acredita
que os seus atos serão alvo de recompensa ou de castigo, consoante sejam eles
considerados “bons” ou “maus” à luz da moral e da ética instituídas, mais seguro e
mais protegido num mundo tantas vezes hostil (adverso) e num universo
assustadoramente gigantesco (repleto de planetas, estrelas, galáxias, meteoritos e sabe-
se lá mais o quê…).
Esta atitude (religiosa) acaba, também, por assumir uma função explicativa
relativamente à origem e desenvolvimento de muitos aspetos considerados
importantes, que têm a ver consigo, com a sua vida, com o seu destino e com tudo
o que acontece à sua volta, nomeadamente, dos fenómenos naturais e outros de
180
maior complexidade (função explicativa da religião, que também começou com os mitos)
– o que, por outras vias, não conseguiria, pois, mesmo progredindo muito em termos
científicos, o homem continua sem encontrar respostas concretas no que respeita à
sua origem, ao sentido da sua vida e ao seu desenlace (desfecho, final), ou seja, à
sua morte (a qual, ainda hoje, é para muitas pessoas ainda um tabu), já para não falar na
grande incógnita sobre o que virá a seguir, para além dela.
– Quem sou?
– De onde venho?
– Para onde vou?
– Qual o sentido da (minha) vida?
Eis algumas das questões que, desde muito cedo, o homem se colocou a si próprio
e que, ainda hoje, se mantêm sem uma resposta clara, objetiva, pronta, definitiva…
Assim, precisamente por procurar respostas para questões como estas, é que o
homem recorre à religião, procurando noutra esfera ou noutra dimensão aquilo que
não encontra na sua esfera, no ambiente das coisas com as quais lida no seu dia-a-dia,
no seu mundo material, físico e terreno.
Podemos mesmo atrever-nos a dizer que o homem, dada a sua condição,
“necessita”, pois, de acreditar em algo que dê sentido à sua vida e lhe preencha o
vazio que a ausência desse mesmo sentido instala no seu espírito inquieto,
angustiado, sobressaltado…
Ora, atribuir sentido à vida é, numa perspetiva religiosa, dizer: “Vivo, porque
alguém, superior a mim, quis que eu vivesse, quis que eu tivesse um papel, um
lugar e uma função nesta vida e neste mundo, onde tudo o que existe não existe
por acaso.” Que é o mesmo que dizer: “Não existo por acaso e toda a minha
existência não será em vão, nem se esgota aqui.”
Acreditar, ter fé, adotar uma postura religiosa, embora resulte de
condicionantes psicológicas e socioculturais, às quais ninguém está imune, uma vez que
todos nós nascemos num determinado contexto (familiar, social, histórico e cultural),
acaba também por ser uma atitude pessoal, que cada um de nós pode ou não adotar,
pode ou não dar seguimento, já que só cada um de nós, individualmente, através de
uma análise da sua vida e das suas experiências pessoais, pode encontrar motivos
ou razões (ainda que não racionalmente fundamentadas, como já foi referido quando se
disse que a atitude religiosa pertence ao domínio do irracional e, portanto, não se pode
justificar ou demonstrar por A+B, como se de uma equação matemática se tratasse) para
dizer: “Eu acredito em Deus, porque, ao longo da minha vida, através da minha
181
experiência pessoal, encontrei motivos para acreditar que existe alguém que está
acima de mim, que me criou e que me acompanha em todos os passos que dou;
alguém que, principalmente quando atravesso momentos difíceis, me dá força para
«dar a volta por cima», não me deixando cair; alguém que eu nunca vi, mas que sei
que existe e que, por isso, recorro a ele, conto com ele, falo com ele e só através
dele encontro paz, tranquilidade, calma, conforto, esperança e até mesmo
felicidade.”
Posto isto, a religião pode ou não interessar-nos pode ou não dar sentido à vida de
cada um de nós – já que acreditar num ser transcendente é uma decisão pessoal, de
cada um, que ninguém pode impor a ninguém – mas, seja como for, não podemos
ignorar nem permanecer indiferentes à importância e ao impacto que este
fenómeno (religioso), exclusivamente humano, tem na vida de milhões e milhões de
pessoas, de civilizações e nações ao longo dos tempos – isto é algo incontornável.
E, para terminar esta reflexão, prévia, inicial, podemos dizer: o homem, sem a
atitude religiosa, poderia ser outro (não se sabe se “melhor” ou “pior”, se é que as
coisas se podem colocar nestes termos), mas não seria o mesmo – poderia ser outro,
mas não o mesmo!
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
Imaginemos que a Nádia está ansiosa para ver um filme que lhe dizem ser muito
bom e que acaba de estrear. Decide, assim, enfrentar uma enorme chuvada e autocarros
cheios de gente só para ir ao cinema. Todavia, quando finalmente chega lá, já não há
bilhetes. Todo o seu esforço foi absurdo ou em vão, ou seja, não teve sentido, uma
vez que uma atividade só tem sentido quando se constitui num meio adequado para
182
uma finalidade alcançável de valor – neste caso, o esforço de Nádia não teve sentido
porque a finalidade não foi alcançada. E o mesmo aconteceria se conseguisse bilhete
mas, ao descobrir que o filme era mau, decidisse sair antes de este acabar – neste caso,
o seu esforço também não teria sentido porque a finalidade que ela inicialmente pensava
que tinha valor, afinal, não tinha.
Será toda a nossa existência assim?
Será que andamos atarefados na nossa vida quotidiana, mas no fim não
obtemos o que queríamos?
Ou então obtemo-lo, mas isso não tem afinal qualquer interesse?
Será a nossa existência absurda, como os esforços da Nádia?
Segundo a perspetiva pessimista, a existência humana é absurda. Quando
olhamos para um formigueiro com atenção, vemos as formigas muito atarefadas: umas
procuram e transportam alimentos, outras constroem câmaras de armazenagem e outras
ainda patrulham os caminhos. É uma grande azáfama para se alimentarem e
reproduzirem. Contudo, a existência das formigas parece-nos absurda, apesar de as
formigas não se darem conta disso, evidentemente. Claro que as formigas têm de se
alimentar para sobreviver, e têm de se reproduzir para que a sua espécie não se extinga.
Contudo, as coisas talvez não fossem melhores nem piores caso as formigas não
existissem. As suas atividades só fazem sentido para as manter em existência, mas a
própria existência das formigas parece não ter sentido.
Segundo o pessimista, somos como as formigas, no que diz respeito ao absurdo
da nossa existência. Andamos muito atarefados a fazer várias coisas, mas a verdade é
que nada do que fazemos tem qualquer sentido. Caso deixemos de existir amanhã,
isso não faz qualquer diferença significativa. Apenas deixamos de existir e é tudo.
O que está em causa neste argumento é o valor genuíno da existência humana
– é óbvio que a nossa existência tem valor para nós, mas terá genuinamente valor, isto
é, terá valor em si, independentemente do que nós achamos?
183
Assim, a nossa situação é semelhante à da Nádia: quando chegou ao cinema e
constatou que, afinal, não havia bilhetes. É semelhante porque, tal como ela, não
alcançamos as nossas finalidades. Visamos a permanência mas acabaremos por
morrer, e tudo o que fizermos acabará também por desaparecer. É por isso que,
segundo os pessimistas, a nossa existência não tem sentido, pois, a sua finalidade
não pode ser alcançada. Se a nossa existência não fosse absurda, poderíamos
alcançar as nossas finalidades. Dado que a morte nos impede de as alcançar, a
nossa existência é absurda.
184
CRÍTICAS/OBJEÇÕES A PERSPETIVA PESSIMISTA EXISTÊNCIA HUMANA
ATIVIDADES/QUESTÕES:
185
1. Caracterize, de um modo geral, a perspetiva pessimista.
O ARGUMENTO DO PROPÓSITO
186
mais possível, mas isso seria apenas uma maneira de mentir a nós mesmos. Só Deus
pode salvar-nos do vazio sem sentido.
A ideia central da teoria religiosa é a de que Deus dá sentido à nossa
existência. Deus criou-nos com um objetivo em mente e garante-nos a eternidade.
Sem Deus, a nossa existência seria exatamente como a das formigas, mas com Deus a
nossa existência ganha sentido. Deus permite que a nossa existência não seja
apenas uma sequência vazia de atividades sem sentido ou que não conduzem a
coisa alguma. Pelo contrário, a nossa existência faz parte de um plano de Deus e
nesse plano nós desempenhamos um papel ou função muito importante – daí que
não sejamos como as formigas.
Esta ideia, de que Deus dá sentido à nossa existência, está diretamente ligada a
um argumento a favor da teoria religiosa que se designa por argumento do propósito, o
qual se baseia na ideia de que Deus dá sentido à nossa existência porque lhe dá um
propósito ou finalidade de valor. Assim, a nossa existência não é despropositada,
não é um acaso sem sentido. Pelo contrário, existimos para cumprir o propósito de
valor que Deus nos atribuiu.
Por exemplo, consideremos um simples lápis. Qual é o sentido da sua existência?
O lápis existe porque os seres humanos o fizeram com o propósito de escrever. É esse
propósito que dá sentido à existência do lápis. Se os seres humanos não tivessem feito o
lápis com um propósito em mente, a sua existência não teria qualquer propósito e seria
por isso mesmo absurda.
O mesmo acontece com os seres humanos: a nossa existência tem sentido porque
fomos criados por Deus com um propósito de valor. Mas que propósito será esse?
Talvez não saibamos muito bem, mas o que conta, contudo, é que a nossa existência
tem um propósito de valor e é por isso que não é absurda.
O ARGUMENTO DA ETERNIDADE
188
lhe diz nada em termos de sentido – ora, se a sua existência não tem sentido, não se
vê como poderia ganhá-lo se a prolongássemos para sempre.
ATIVIDADES/QUESTÕES:
RAZÃO E FÉ
Closer To Truth
(“MAIS PERTO DA VERDADE”)
189
"Não prometo que irei encontrar a verdade absoluta, mas prometo que vai ser
entusiasmante chegar ao limiar da verdade.” – Robert Lawrence Kuhn.
Robert Lawrence Kuhn, “Closer to Truth” – episódio 9, temporada 15, 2020 1 (adaptado).
1
Closer To Truth (Mais Perto da Verdade) é uma série de televisão pública dos
Estados Unidos da América, originalmente criada, produzida e apresentada por Robert
Lawrence Kuhn (n. 1944), intelectual público, estratega corporativo internacional e
banqueiro de investimentos. Considerado “um dos defensores mais entusiastas das
políticas de Pequim no mundo ocidental”, é um conselheiro de longa data dos líderes da
China e do governo chinês, de corporações multinacionais sobre estratégias e
transações na China e é um comentador frequente sobre política, economia,
negócios, finanças, filosofia e ciência da China.
190
Kuhn é doutorado em neurociência, recebeu um diploma de bacharel
(palestrante) em Biologia Humana pela Johns Hopkins University, em 1964, um PhD
(abreviação de “Philosophy Doctor”) em anatomia e pesquisa cerebral pela University of
California, Los Angeles Brain Research Institute, em 1968, e um Master of Science em
administração da Sloan Fellows (traduzido do inglês – o programa Sloan Fellows é um
mestrado a meio da carreira sénior em administração geral e liderança) na School of
Management, que integra a Harvard Business School, em 1980, e é autor e editor de
mais de 25 livros, tendo alcançado recordes de vendas, apenas superados pelos livros de
J. K. Rowling, (Harry Potter).
Robert Kuhn é ainda colunista (produz artigos de opinião) do China Daily, South
China Morning Post e aparece na BBC, CNN, Bloomberg, entre outros importantes canais
de divulgação de informação espalhados pelo mundo. A primeira série do programa
Closer to Truth foi para o ar em 2000 por duas temporadas, seguida por uma segunda
série exibida em 2003 por uma única temporada. A terceira série: Cosmos, Consciência,
Deus, foi lançada em 2008, com 20 temporadas completas até o momento.
Closer to Truth foi para o ar em mais de 200 países em estações de televisão
públicas e teve mais de 200.000 transmissões de programas centrados em conversas,
em direto, com importantes cientistas, filósofos, teólogos e estudiosos que
exploraram as questões mais profundas sobre Cosmos, Consciência e Significado -
a estrutura do universo, cobrindo uma gama diversificada de tópicos ou questões,
desde a causa, tamanho e natureza do universo (ou multiverso), passando pelo
mistério da consciência e da noção de livre-arbítrio, pela existência e essência de
Deus, até ao mistério da existência (ou seja, por que existe alguma coisa), tendo sido
considerada por muitos críticos e especialistas das mais diversas áreas como “uma das
mais inteligentes e informadas análises diárias sobre ciência e tecnologia,
albergando uma enorme gama de grandes escritores, ideias e publicações.”
O site Closer to Truth traz conversas extensas além das que já foram transmitidas
na TV (aproximadamente 4.000 vídeos). É o maior arquivo do mundo de entrevistas
em vídeo com os principais especialistas em filosofia da cosmologia e física,
consciência e filosofia da religião. A apresentação de Kuhn, Asking Ultimate
Questions, é a base de Closer To Truth .
O canal Closer To Truth no YouTube tem mais de 800.000 inscritos, mais de 70
milhões de visualizações totais e mais de 300 milhões de minutos de tempo de
exibição.
191
O fascínio do público relativamente aos mistérios do Cosmos, da Consciência e,
acima de tudo, de Deus, tem crescido substancialmente nos últimos anos. Os
debates têm sido intensos e, muitas vezes, atingindo proporções dramáticas. No limiar
da verdade é a épica jornada de Robert Lawrence Kuhn em busca das respostas para
as maiores questões que a humanidade enfrenta atualmente, visitando e conversando
com aqueles que pensam profundamente sobre a existência, o seu significado e
finalidade.
"Não prometo que irei encontrar a verdade absoluta, mas prometo que vai ser
entusiasmante chegar ao limiar da verdade.” – diz-nos Robert Lawrence Kuhn.
DISCUSSÃO CRÍTICA:
Se faz sentido acreditar em Deus, então, podemos concluir que devemos acreditar
em Deus?
Aceitar que faz sentido acreditar em Deus não implica que ele exista. Uma ideia pode fazer sentido
e não corresponder a nenhuma realidade existente. Devemos acreditar nas ideias verdadeiras e não
naquelas que são logicamente possíveis, mas que não sabemos se são realmente verdadeiras…
192
Para ser amplamente compreendida, e dada a sua complexidade, a experiência
religiosa tem de ser estudada, para além de disciplinas como a Sociologia, a
Antropologia, a História, a Psicologia, a Teologia, etc., principalmente pela Filosofia.
Assim, antes de mais, convirá definir o que é a Filosofia da Religião, distinguindo-
a, ao mesmo tempo, da Teologia:
193
William Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, Lisboa, Verbo, 2011, p. 17 (adaptado)
194
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
196
Há outras conceções de Deus, pelo que importa não confundir o teísmo com
perspetivas como o panteísmo (perspetiva religiosa que persiste desde a antiguidade,
sobretudo no Oriente – principalmente no Budismo e no Hinduísmo – aqui, Deus e o
mundo são a mesma realidade, formando uma unidade; Deus é imanente ao mundo e
não se distingue dele) e como o deísmo (perspetiva religiosa segundo a qual Deus criou
o Universo e as leis da natureza, mas não intervém no mundo).
Convém ainda notar que, no tocante à existência de Deus, há duas doutrinas
filosóficas que põem em causa o teísmo: o ateísmo (que defende que o Deus teísta
não existe – neste sentido, o ateísmo opõe-se ao teísmo) e o agnosticismo (que
defende que a razão humana é incapaz de justificar a crença de que o Deus teísta
existe ou a crença de que ele não existe – neste sentido, o agnosticismo nem afirma
nem nega a existência de Deus).
Assim, e dito de outra maneira, há inúmeras religiões e variantes delas, cada
uma seguindo uma conceção de divindade muito, ou apenas ligeiramente, diferente.
Como seria completamente impossível conhecer e debater filosoficamente cada uma
dessas conceções e cada um dos seus principais argumentos, tornou-se necessário
escolher uma noção de Deus, recaindo a nossa opção pelo debate sobre as
propriedades centrais da noção de Deus que, como já se fez referência no parágrafo
anterior, são comuns às religiões largamente maioritárias: um ser único, perfeito,
omnipotente, omnisciente e sumamente bom.
Por vezes, nesta conceção de Deus que é conhecida, como vimos já, por teísmo,
dá-se à divindade o nome de “o Deus dos filósofos”, para salientar que se trata de um
conceito “minimalista” de Deus, isto é, com um subconjunto de propriedades (já
mencionadas acima) muito mais “económico” (mais sintético ou resumido) do que aquele
em que as diferentes religiões acreditam, mas é um conceito que contém as
qualidades fundamentais mais frequentemente atribuídas a Deus e mais discutidas
pela tradição filosófica.
A ideia ou conceção teísta de Deus, que tem sido a ideia dominante de Deus na
civilização ocidental, foi sendo desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos e
filósofos. Vejamos, pois, mais em detalhe, os principais atributos de Deus, segundo
esta ideia ou conceção:
- Eterno – tem existência temporal interminável, sem começo nem fim (nem sequer
está sujeito à lei do tempo);
- Pessoal – é uma pessoa – mas não uma pessoa humana; é um fora de série –
que pensa, que quer e que sente, e a sua relação com o ser humano é de carácter
pessoal (individual);
“Segundo este paradoxo, ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que
não a possa levantar ou não tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra, então há
algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra que criou. Por outro lado, se não pode
criar tal pedra, então há também algo que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada
que não a possa levantar. Em qualquer dos casos, há algo que Deus não pode fazer.
Logo, Deus não é omnipotente.”
William Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, Lisboa, Verbo, 2011, pp. 24-25 (adaptado)
A solução do paradoxo passa por considerar que criar uma pedra tão pesada
que Deus não a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos atributos
essenciais de Deus: a omnipotência. Se existir uma pedra tão pesada ao ponto de
Deus não ter o poder de a levantar, então Deus não é omnipotente. Por isso, se Deus
tiver o poder de criar tal pedra, terá o poder de fazer com que lhe falte um atributo que lhe
é essencial: a omnipotência.
Dizer que Deus é omnipotente significa afirmar que Deus pode fazer tudo aquilo
que não envolva uma contradição nos termos e que não seja inconsistente com
qualquer um dos seus atributos fundamentais. Deus não pode, por exemplo, fazer
com que um triângulo não tenha três ângulos ou construir uma curva reta ou uma reta
198
curva, visto isto ser logicamente impossível (envolve uma contradição nos termos), nem
pode praticar o mal, pois isso é inconsistente com a suma bondade. Deus não pode
criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar, do mesmo modo que não pode
praticar uma ação maldosa.
O problema de se saber se Deus pode ou não alterar o passado ou fazer com o
que foi não tenha sido, parece de mais difícil solução. Em todo o caso, aparentemente,
não está agora ao alcance de ninguém, nem mesmo de Deus, fazer, por exemplo, com
que D. Afonso Henriques não tivesse sido o primeiro rei de Portugal ou com que a
Segunda Guerra Mundial não tivesse acontecido.
Quer haja ou não uma solução ou, melhor dizendo, uma saída mais ou menos
razoável, mais ou menos consensual para este paradoxo, outras questões nos poderão
surgir:
- Será que Deus pode fazer com que 2+2 seja = a 5?
Estas e outras questões similares são suscitadas pela ideia teísta de Deus,
podendo ser usadas na discussão relativa ao problema da existência de Deus.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
199
1. Esclareça o conceito teísta de Deus.
2. Enuncie os atributos do Deus teísta.
3.5 Os agnósticos não negam a existência de Deus, mas também não a afirmam.
COLUNA A COLUNA B
200
O JARDINEIRO INVISÍVEL
Julian Baggini, The Pig that Wants to be Eaten, Londres, Granta, 2005, pp. 133-135 (traduzido e
adaptado).
QUESTÃO/PROVOCAÇÃO:
O carácter fugidio (esquivo) atribuído a Deus será uma boa razão para rejeitar a
sua existência?
201
SUGESTÃO DE RESPOSTA ABERTA:
Por isso, a sugestão de resposta é: “NÃO”. Não podemos encarar o carácter fugidio ou esquivo da
divindade teísta (DEUS) como uma boa razão para negar a sua existência.
202
ARGUMENTOS A FAVOR DA EXISTÊNCIA DE DEUS
203
ARGUMENTO ONTOLÓGICO
(ARGUMENTO A PRIORI)
204
Afinal, Deus é um ser perfeito. O mais perfeito que pudermos imaginar. Contudo,
como poderá o ser mais perfeito que pudermos imaginar não existir? Se não
existisse, não seria assim tão perfeito.
Não será contraditório pensar que Deus não existe? Há quem considere que
sim. Se compreendermos bem o conceito de Deus, vemos que a sua inexistência é
impossível. Do mesmo modo, se compreendermos bem o conceito de triângulo, vemos
que é impossível que não tenha três lados.
Como vemos, há dois aspetos importantes para compreender este argumento:
- Deus é um ser maior do que o qual nada pode ser pensado ou concebido.
205
- Um ser que existe no entendimento e na realidade é maior do que um ser
que existe apenas no entendimento.
206
propriedade que possamos atribuir ou negar a algo, como o poderão ser a
omnipotência ou a omnisciência. Ora, a razão é que a existência não é uma
propriedade/característica, ou, a sê-lo, seria uma propriedade/característica de um
tipo completamente distinto daquilo a que chamamos propriedades – quando
dizemos que A tem B, estamos a empregar apenas duas propriedades, a de algo ser
um A e ter B, ou seja, não estamos a provar a sua existência. Isso é matéria para ser
apurada de outros modos, uma vez que a existência, em si, não é a mesma coisa que
as propriedades/características que as coisas reais têm, não se confundindo com
estas. A existência é sim o suporte para que as verdadeiras
propriedades/características, como ser omnisciente, grandioso, poderoso, generoso,
etc., sejam propriedades de algo (real ou imaginário).
Assim, Kant, referindo-se ao argumento ontológico, afirma que Anselmo comete
uma falha de raciocínio grave ao tentar incluir também a existência na lista das
propriedades/características (perfeitas e grandiosas) que são consideradas como
parte do conceito de Deus (o “Deus no pensamento”), uma vez que esta (a existência)
não é, em si, uma propriedade/característica, mas sim o suporte (substância) sobre a
qual essas características/propriedades deveriam recair, então não “aumentamos”
o conceito de Deus juntando-lhe ainda mais uma, a da existência (que, ainda por
cima, nem sequer uma característica é).
Assim, “o ser maior do que qualquer outro que se possa pensar” tanto pode existir
na realidade como apenas no pensamento – e pegando novamente no exemplo da ilha
perfeita de Gaunilo – por mais que imaginemos, raciocinemos e que busquemos
essa ilha na realidade, nada nos garante, na verdade, que ela exista de facto. Caso
contrário, seríamos forçados a admitir que todo e qualquer conceito de uma entidade que
consigamos imaginar no seu grau mais perfeito tem de existir.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
207
1. Exponha, sucintamente, o argumento ontológico de Anselmo de Cantuária.
2. Por que razão, segundo Anselmo, alguma coisa maior do que a qual nada
pode ser pensado existe pelo menos no intelecto?
3. Por que razão, segundo Anselmo, alguma coisa maior do que a qual nada
pode ser pensado não pode existir apenas no intelecto?
5.4 Gaunilo criticou o argumento de Anselmo por este pressupor que o Universo é
perfeito.
208
ARGUMENTO COSMOLÓGICO
(ARGUMENTO A POSTERIORI)
Para dar resposta a este tipo de questões, há quem considere que Deus existe
porque de outro modo, como já foi dito acima, não conseguimos explicar a existência
do mundo…
Mas, fará sentido esta maneira de pensar ou, pelo contrário, não faz qualquer
sentido atribuir a Deus a causa/origem do Universo e de tudo o que nele existe?
Vejamos, então, duas versões do argumento cosmológico – a versão da causa
primeira e a versão da sequência de causas – bem como as críticas/objeções que
lhes são movidas.
209
As causas e os efeitos formam longas sequências que se estendem (numa lógica
regressiva) até ao passado remoto: por exemplo, a causa da nossa existência foram os
nossos pais; e a causa da existência dos nossos pais foram os pais deles. A causa do
planeta Terra foram vários acontecimentos anteriores que incluíam o nosso Sol e a causa
do nosso Sol. E a causa do nosso Sol foram vários acontecimentos anteriores. Ou seja, a
formação do planeta Terra tem como causa anterior a formação do Sistema Solar; o
Sistema Solar tem como origem remota a formação da Via Láctea; a formação das
galáxias tem origem no Big Bang (teoria cosmológica sobre o desenvolvimento inicial do
Universo, a que alguns também chamaram “hipótese do átomo primordial”, que se baseia
não numa hipotética explosão do espaço, como, erradamente, muitos interpretam, mas
sim numa expansão do próprio espaço, mas, se aceitarmos que tudo tem uma causa,
também o Big Bang terá uma!)…
Na verdade, ficaríamos muito surpreendidos se encontrássemos uma coisa
qualquer ou um acontecimento que não tivesse uma causa.
Esta sequência origina uma interrogação: poderão as causas e os efeitos
remontar por uma sequência infinita em direção ao passado ou há algures um início
da cadeia de causas e efeitos, uma primeira causa? A resposta a esta questão
constitui o essencial do argumento. Vejamos em que consiste:
2. Se tudo o que existe tem uma causa, então o universo, no seu conjunto,
também tem uma causa.
Conclusão:
6. Há uma primeira causa do universo e essa primeira causa é Deus.
210
3. Diz-nos que a série das causas e dos efeitos não pode ser infinita.
4. Afirma que não é possível que se recue na ordem das causas sem parar – a
cadeia não pode ser infinita.
Este argumento, que pressupõe que a cadeia causal não pode recuar
indefinidamente e que, portanto, teremos que chegar a uma causa primeira que
origina toda a cadeia causal, foi alvo de uma profunda reflexão por Tomás de Aquino
(1225-1274), frade e teólogo, que procurou demonstrar a existência de Deus, na sua
obra Suma Teológica, através das chamadas cinco vias, das quais destacamos a
segunda via – designada por “Causa Eficiente Primeira” e que pode sintetizar-se da
seguinte forma:
Todos os acontecimentos e coisas no mundo são causados por algo e nada é
causa eficiente de si mesmo.
Logo, existe uma causa eficiente primeira – uma causa incausada e que é a
origem de todas as outras causas, ou seja, Deus.
Parece não haver dúvidas de que estamos perante um argumento válido. Mas
será que poderemos considerá-lo sólido? Ou seja, será que as suas premissas são
todas verdadeiras? Por outro lado, será que podemos concluir que essa causa
eficiente primeira é Deus?
Vejamos as principais críticas/objeções que podem ser dirigidas ao argumento
da causa primeira…
211
causa é Deus. Assim, a existência do universo só pode ser explicada recorrendo à
entidade Deus:
A premissa do argumento é tudo o que existe tem uma causa. Com base nesta
premissa, conclui-se que Deus é a causa do universo. Contudo, qual é a causa de
Deus?
Se a ideia é Deus que não tem causa alguma(causa incausada), a conclusão
contradiz a premissa que afirmava que tudo tem uma causa. Nesse caso, o argumento
é incoerente.
Se a ideia é que Deus se causa a si mesmo, porque não pode o universo
causar-se a si mesmo?
Se a premissa tudo o que existe tem de ter uma causa for verdadeira, isso
implica que Deus, caso exista, também a tenha. Se há algo que é a causa da existência
de Deus, então esse algo (que o precedeu) vem antes dele na sequência causal que
depois ele continuou, criando o Universo. Logo, ao invés do que o argumento (ontológico)
procura estabelecer, Deus não seria a primeira causa.
Uma forma de escapar a esta dificuldade seria pensar que Deus, sendo a causa
de tudo, é causa de si mesmo. Mas o conceito de causa de si mesmo é filosoficamente
bastante suspeito. Para algo ser causa de si mesmo, teria de se gerar a si próprio. Ora,
para se gerar a si próprio, teria de já existir, logo, não precisaria de se gerar.
A terceira objeção rejeita a versão de que o Universo foi criado e que tem um
princípio e um fim, baseando-se precisamente na admissão da hipótese contrária – a de
que o Universo poderá não ter sido criado e que poderá não ter princípio nem fim.
Assim, estamos, de facto, para além da dificuldade em responder à pergunta:
“Qual foi a causa de Deus?”, perante uma outra dificuldade, que se traduz no seguinte:
ainda que todos os acontecimentos tenham uma causa e que as causas precedam
os efeitos, tal não significa necessariamente que existe uma primeira causa de
tudo. A série de causas e de efeitos podia estender-se ao longo de um tempo sem fim,
quer na direção do futuro quer na direção do passado. A possibilidade de tudo o que
existe ter uma causa é compatível com um mundo sem princípio nem fim; um mundo
que exista desde sempre, quer na direção do passado quer na direção do futuro.
Um exemplo de como podemos conceber séries infinitas é o dos números, que
são infinitos em qualquer das direções da linha numérica (números negativos e números
positivos).
Em última análise, no que toca às críticas/objeções dirigidas ao argumento
cosmológico, nomeadamente à suas versões da causa primeira e da sequência das
causas, poderemos apresentar, de forma sintética, o seguinte:
214
tem de parar algures e em determinada altura, então, podemos perguntar: por que razão
esse algo incausado é Deus e não o próprio Universo?
215
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
5. Por que razão, segundo Tomás de Aquino, a cadeia causal não pode
regredir até ao infinito?
216
6.3 O argumento da causa primeira é criticado por admitir que Deus não é causa
de si mesmo.
217
recentes descobertas científicas sobre o Universo – no Universo, e no planeta Terra em
particular, há ordem e desígnio. Nele, nada parece existir ou acontecer por acaso, e
tudo se sucede de uma forma que aparentemente não é aleatória (basta pensar, por
exemplo, nas estações do ano ou no ciclo da água e na hierarquia que prevalece entre
plantas e animais).
Perante este cenário, podemos perguntar: tudo isto terá surgido por acaso ou
foi, pelo contrário, obra de um criador inteligente?
Diferentemente do argumento cosmológico, que se baseia não na ordem do
universo mas na sua existência, há quem considere que Deus existe porque, de outro
modo, não poderíamos explicar esta ordem – esta é a base do argumento
teleológico ou argumento do desígnio.
Os defensores do argumento teleológico sustentam que tudo é obra de um
criador inteligente, rejeitando, assim, a possibilidade de o Universo e todas as coisas
terem surgido por acaso, dando origem ao argumento da negação do acaso, que pode
ser formulado da seguinte maneira:
Partes pequenas formam partes maiores Partes pequenas formam partes maiores (órgãos)
Funções inferiores permitem funções superiores Funções inferiores permitem funções superiores
Todas as partes e funções são necessárias Todas as partes e funções são necessárias
219
conclusão seja falsa (não foi criado por um ser inteligente e com um desígnio), e logo,
que a analogia entre o par Deus/universo e o par relojoeiro/relógio não prova que o
universo tem um criador… Mas um argumento por analogia, nunca sendo infalível,
dá-nos, ainda assim, boas razões para acreditar na conclusão, fundamentalmente
porque torna essa conclusão tão provável quanto a conclusão de que o relógio foi
construído por um relojoeiro, e essa é uma probabilidade altíssima. Aliás, trata-se
de um tipo de argumento usado na própria ciência.
No entanto, o que é fundamental para que um argumento por analogia
funcione é que, naturalmente, a analogia ou comparação por semelhança seja
correta. Isso exige não só que as entidades e condições comparadas sejam de facto
semelhantes, e que as semelhanças sejam muitas, mas também que elas se
verifiquem nos aspetos relevantes. Caso contrário, enfraquecemos o argumento. Por
exemplo, se dois automóveis são em tudo semelhantes, não posso daí concluir que
pertencem à mesma pessoa. No entanto, mesmo que sejam muito diferentes, observá-los
frequentemente na mesma garagem de uma casa onde habita apenas uma pessoa
permite-nos extrair essa conclusão por analogia ou associação de localização, ainda
que isso seja apenas provável.
Esta versão da analogia ou da comparação por semelhança, pode também ser
explicada nestes termos: imaginemos que descobrimos em Marte um objeto estranho.
Quando o estudamos com cuidado, descobrimos que é muito semelhante aos nossos
telemóveis. Tem várias partes interligadas entre si, permitindo fazer ligações telefónicas.
Qual é a nossa conclusão? Que está ali uma marca da presença de seres inteligentes,
mesmo que nunca os tenhamos visto. Porquê? Porque esse objeto só pode ter sido
criado por seres inteligentes. Mas, de novo, porquê? Porque todos os outros objetos
semelhantes a esse de que temos conhecimento nunca surgiram espontaneamente:
foram sempre criados por nós. Nunca vimos surgir espontaneamente um telemóvel, nem
qualquer outro objeto semelhante a um telemóvel (outro exemplo poderia ser o de alguém
que descobre um relógio numa ilha ou numa praia deserta).
Ora, o universo também é feito de partes incrivelmente complexas,
interligadas entre si. Por exemplo, o Sol permite a existência de vida na Terra. As
plantas permitem a existência de animais herbívoros. Os animais herbívoros permitem a
existência dos predadores e assim por diante… E, mesmo quando observamos as partes
que constituem um certo animal, podemos ver que estão organizadas de tal modo que
possibilitam uma determinada função. Por exemplo, cada uma das partes que constituem
os nossos olhos está organizada de tal modo que permitem a visão.
220
O que isto significa é que o universo é semelhante a um artefacto (ao qual
poderíamos associar a conceção de sistema – como um todo organizado – em que cada
peça tem a sua função ou desígnio com vista a uma finalidade – por exemplo, o motor
de um automóvel é um sistema): ambos são constituídos por muitas partes interligadas
entre si, que permitem várias funções com vista a um resultado ou finalidade. Ora, se no
caso do telemóvel, do relógio ou do automóvel, concluímos que foram criados por
seres inteligentes, devemos concluir o mesmo relativamente ao universo: também
este foi criado por um ser inteligente. E esse ser inteligente é Deus.
221
A VERSÃO DA ORDEM E DA “GOVERNAÇÃO DAS COISAS” (TOMÁS DE
AQUINO)
Imaginemos (mais uma vez se faz aqui apelo às nossas capacidades imaginativas)
que estamos a olhar a formação das nuvens, num dia de verão glorioso. De repente,
damo-nos conta de que as nuvens estão a formar letras no céu. A pouco e pouco,
começamos a ler: “A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875,
era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o Bairro das
Janelas Verdes, por casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete.”
Ficamos muito surpreendidos. Esta é a primeira frase do Romance Os Maias, de
Eça de Queirós. Depois dessa frase, as nuvens formam a segunda frase do romance… e
depois disso a terceira, e assim por diante sem parar, acabando por escrever todo o
romance de Eça de Queirós, sem errar.
Será este estranho fenómeno fruto do acaso? A resposta é que isso nos
parece incrivelmente improvável; tão improvável que é quase impossível. Seria uma
coincidência inacreditável. O que suspeitamos é que algum cientista está a fazer
experiências com tecnologias que desconhecemos. Dificilmente acreditamos que é um
mero acaso. Contudo, o universo e nós mesmos somos ainda mais complexos do que Os
Maias. Assim, a versão da ordem do argumento do desígnio é a seguinte:
Se Deus não existe, o acaso é responsável pela ordem que observamos no
universo.
Mas o acaso não pode ser responsável por tal ordem (tal como as nuvens não
podem escrever por mero acaso).
Logo, Deus existe.
222
Há coisas destituídas de conhecimento que apresentam uma ordem que
tende para um fim.
Se não há um ser cognoscente e inteligente que dirige para um fim as coisas
naturais, então não há coisas destituídas de conhecimento que tendem para um
fim.
Logo, há um ser cognoscente e inteligente que dirige para um fim as coisas
naturais e esse ser é DEUS.
Uma vez mais, imaginemos que temos vários organismos num dado meio. Estes
organismos alimentam-se e reproduzem-se. Por mero acaso, alguns nascem com uma
cor esverdeada. Com essa cor, escapam mais facilmente aos predadores, escondendo-se
entre a folhagem. Com o tempo, deixam mais descendentes esverdeados do que os
outros, que morrem mais cedo devido aos predadores e que por isso deixam menos
descendentes. Depois de muito tempo, todos os descendentes daqueles organismos são
223
verdes (este exemplo baseia-se em fenómenos do mundo natural, comprovados
cientificamente).
Quando olhamos para os organismos, vemos (percecionamos) uma ordem: os
organismos verdes estão aptos para melhor escaparem aos predadores. Por isso,
parece-nos que esta ordem não pode ser natural e que, portanto, alguém teve de a
conceber e criar. Mas isso não aconteceu. Processos puramente naturais e do acaso
dão, ao longo de um lento processo de adaptação e ajustes sucessivos, origem à
ordem – esta é a base da teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882), que
procura explicar que, em muitos casos, a ordem tem origem no mero acaso, pondo em
causa a versão da ordem e da “governação das coisas” do argumento teleológico
ou argumento do desígnio, mostrando que o acaso é, muitas vezes, responsável pela
ordem.
Assim, o argumento teleológico perde a sua força quando confrontado com a
teoria da evolução por seleção natural, defendida por Charles Darwin na sua obra A
Origem das Espécies (1859). Pelo processo de seleção natural, os organismos mais
aptos são os que sobrevivem no meio, reproduzem-se e transmitem as suas
características aos seus descendentes. Este processo explica como as maravilhosas
adaptações ao meio ambiente podem ter ocorrido. Sem refutar a existência de Deus, a
teoria da evolução acaba, no entanto, por enfraquecer o argumento teleológico, uma
vez que apresenta uma explicação alternativa: explica os mesmos efeitos sem
mencionar Deus como causa. Esta teoria impede que o argumento teleológico surja
como demonstração conclusiva da existência de Deus.
O argumento teleológico, ainda que possa demonstrar a existência e a
necessidade de um criador inteligente, não prova que ele seja único – pode tratar-se
de uma equipa de deuses, todos eles finitos e imperfeitos, tal como só uma equipa de
seres humanos é capaz de construir uma nave espacial – nem prova que se trata de um
arquiteto omnipotente e perfeito – poderá argumentar-se que o Universo apresenta
“erros na conceção” ou “defeitos de fabrico”, visíveis, por exemplo, em organismos
imperfeitos e/ou doentes – nem sequer prova que o criador seja omnisciente e
sumamente bom – a contrariar essa ideia está a existência do mal no mundo (as
catástrofes, o sofrimento, a doença, a morte, a crueldade, …), sendo que, aparentemente,
Deus nada faz para o impedir.
224
ATIVIDADES/QUESTÕES:
7.2 O argumento da negação do acaso foi criticado por cometer a falácia do falso
dilema.
225
7.3 William Paley, apesar de utilizar o argumento teleológico, julgava que qualquer
argumento baseado numa analogia entre artefactos humanos e o Universo será sempre
um argumento fraco.
7.4 Tomás de Aquino acreditava que as coisas naturais têm consciência e que é só
por isso que se dirigem para determinados fins.
FÉ E RAZÃO
O FIDEÍSMO (SOREN KIERKEGAARD E BLAISE PASCAL)
Soren Kierkegaard
INTRODUÇÃO
Como vimos já, esta doutrina (fideísmo) recomenda que se creia na existência de
Deus sem apelo à razão, ou mesmo contra ela.
Ora, sobre o poder da razão e da fé relativamente à existência de Deus, parece
haver apenas duas alternativas:
227
a) Quando a razão não consegue mostrar que Deus existe (mesmo até
podendo tender mais para a conclusão de que ele não existe), o fideísta diz que
devemos acreditar que ele existe. Esta atitude é criticada através do simples
comentário: quando queremos alimentar uma crença sobre algo que não tem
sustentação racional (boas razões) e somos tentados (pelo sentimento) a forçar a
mente a acreditar nesse algo, que é, precisamente, o oposto daquilo que
(racionalmente) temos justificação para pensar, isso não é razoável.
Ou então:
b) Quando a razão mostra que Deus existe (ou tende para essa conclusão), se
esse for o caso, o fideísta diz que devemos ignorar esse facto e acreditar apenas
mediante a fé, sem mais.
Assim, de uma forma ou de outra, o fideísta acaba por defender que podemos
sempre escolher o meio para acreditar na existência de Deus e que esse meio é
sempre o sentimento (fé) e não a razão (explicação racional).
Outra crítica importante que foi movida ao fideísmo é a seguinte: se, segundo o
fideísta, o sentimento interior é o nosso único guia em matéria religiosa, então pode-
se afirmar que todas as confissões religiosas têm razão acerca daquilo em que os
seus crentes acreditam (sentem). Mas, pergunta-se: como pode isso acontecer, se
as religiões sustentam crenças contraditórias entre si? Ora, a esta questão o
fideísta não consegue responder, uma vez que se fecha no sentimento como o único
meio de justificação da crença, pondo de lado a ponderação da razão como meio de
fundamentação dos diferentes princípios que norteiam (orientam)as diferentes
religiões.
Seguir o sentimento como forma de identificar a verdade, apesar do que
mostram a razão e os factos, talvez em casos excecionais possa ser benéfico ou, pelo
menos, compreensível, mas, em geral, isso é o oposto da ponderação, da
imparcialidade e do espírito crítico que constituem a atitude filosófica, o que abre
espaço para a instalação, em muitos espíritos sobressaltados e confusos, de uma fé
cega, que, instrumentalizada, rejeita o debate, que menospreza a análise cuidada e
crítica dos argumentos, que recusa o direito à diferença e que, facilmente, leva as
pessoas ao extremismo, ao fanatismo, à intolerância e ao ódio, não só contra outras
religiões mas também contra ateus ou agnósticos, atingindo níveis de violência
verdadeiramente inquietantes.
Importa, no entanto, distinguir o fideísmo radical do fideísmo moderado:
enquanto o fideísmo radical defende que a fé vai para além da razão e é
228
contraditória em relação a ela, o fideísmo moderado defende que a fé vai para além
da razão mas não está em contradição com ela.
Representantes desta linha de pensamento são o matemático, escritor, físico,
inventor, filósofo e teólogo francês Blaise Pascal (1623-1662) e o filósofo, teólogo, poeta
e crítico social dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855). Para Kierkegaard, mais
radical, não só a razão não consegue demonstrar a existência e a natureza de Deus,
mas acreditar nele com base em argumentos e provas racionais é errado, no sentido
em que a fé, a crença, parte do nosso sentimento (“coração”) e não do nosso
raciocínio (razão).
229
temos tudo a perder se não acreditarmos e Deus, afinal, existir. Logo, o mais
razoável a fazer é acreditar em Deus.
Como vemos, aquilo em que este argumento difere de todos os argumentos que
abordámos neste capítulo é que, simplesmente, não é um argumento acerca da
existência de Deus, mas sim um argumento dirigido a quem não vê razões
convincentes para acreditar, nem que Deus exista, nem que não exista, e que
defende que é preferível, mais vantajoso e prudente, escolher a primeira opção.
Assim, segundo Pascal, a fé é racional num sentido prudencial e não num
sentido epistémico, na medida em que procura razões prudenciais, práticas,
vantajosas para acreditarmos em Deus, não porque haja boas provas da sua
existência, mas por causa dos benefícios, proveitos ou recompensas que tal crença
nos pode trazer se vier a revelar-se verdadeira – neste sentido, a crença de que Deus
existe não precisa de provas para ser apropriada ou conveniente.
Diferentemente daqueles argumentos que estudámos, Pascal não procurou
demonstrar a existência de Deus, uma vez que as provas da existência de Deus, tal como
as provas da sua não existência, não são conclusivas, e formulou o chamado argumento
do apostador – “Aposta de Pascal” – recorrendo a uma analogia (comparação) da
situação de uma pessoa que está indecisa acerca da sua crença ou descrença com
a de um apostador, de modo a estabelecer que é muito mais vantajoso acreditar na
existência de Deus. Combinando as apostas na existência e na não-existência de Deus
com os factos possíveis acerca dessa existência (encontramo-nos aqui numa situação
muito idêntica à de um apostador antes de escolher em quem vai apostar, ou seja,
precisamos de calcular as hipóteses que temos), obtemos quatro conjuntos de ganhos e
perdas, cujo saldo é favorável à aposta na existência, por uma grande margem, como
podemos ver no seguinte quadro:
230
religião.
Infelicidade
Deus existe 0 (zero) (eterna ou não), Extremamente
outras punições. negativo
ACREDITAR
QUE DEUS
NÃO Tempo não
EXISTE dedicado ao
Deus não culto. Fruir dos Ligeiramente
existe prazeres 0 (zero) positivo
proibidos pela
religião.
232
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
1. O que é o fideísmo?
7.3 Pascal considera que a fé pode ser racional mesmo na ausência de provas.
7.5 Uma das críticas ao argumento do apostador decorre do facto de ele parecer
pressupor que a crença em Deus é voluntária.
O ARGUMENTO DA FÉ – SOREN KIERKEGAARD (FIDEÍSTA RADICAL)
233
CRÍTICA/OBJEÇÃO AO ARGUMENTO DA FÉ DE SOREN KIERKEGAARD
Kierkegaard quer que aceitemos que faz parte da natureza da fé crer sem
provas. Mas, como seres racionais que somos, podemos perguntar: será correto crer
sem provas? Agora, imagine-se que não é correto crer sem provas. Nesse caso, isso
significa que não é correto ter fé. Então, defender que é correto crer sem provas,
porque essa é a natureza da fé, seria como defender que é correto enganar os outros
porque essa é a natureza da mentira. Se não for correto enganar os outros, não é
correto mentir; da mesma forma, se não for correto crer sem provas, não é correto
ter fé. Assim, a objeção à teoria da fé de Kierkegaard, é que o argumento em defesa
da crença sem provas é circular ou redundante (uma espécie da falácia da petição de
princípio) – o que constitui um problema sério para o fideísmo, sobretudo para as
versões mais radicais como a de Kierkegaard, que acabam por se fechar num espécie
de crença cega, baseada num tipo de argumentação sem saída.
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
Epicuro (adaptado)
234
“Antigamente havia um ser todo-poderoso – e nada mais. Segundo a tradição, usa-
se o pronome “ele” para esse poder. Os religiosos chamar-lhe-iam “Deus”, só que ele era
diferente no aspeto vital do Deus tradicional. É verdade que era todo-poderoso e infinito,
que detinha o conhecimento, mas em vez de ser bom e benevolente, era mau e
malevolente. Muitos podem concluir que eu acabei de escrever uma versão exaltada do
anjo caído de Deus: o Diabo. Passarei a referir-me a ele como “Diabo”, mas para repetir,
ele é o tal ser todo-poderoso. Não existia um Deus para criá-lo. Ele não teve início.
O Diabo decidiu criar um universo, bastante parecido com o nosso. Tinha estrelas e
planetas, dos quais pelo menos um – a Terra – tinha vida, tal como a nossa. Em todos os
aspetos a Terra era igual à nossa: tinha oceanos, montanhas, pessoas e nações…
Havia pessoas que discutiam acerca de como o universo tinha começado. Existiam
textos religiosos – a Bíblia e o Alcorão – assim como igrejas e sinagogas, templos e
mesquitas; e as pessoas veneravam um ser grandioso, glorioso e bom – Deus! Alguns
proclamavam mesmo revelações da sua benevolência, das suas ordens e da sua
preocupação com todos e com cada um, desde o pardal ao ser humano.
O Diabo tentou rir desta veneração errónea de um ser todo-poderoso e bom. Tinha
propositadamente arranjado maneira de fazer surgir as escrituras, mas como uma piada.
Lá nas suas profundezas demoníacas, isso enfurecia-o e incomodava-o. Até mesmo os
poucos veneradores do Diabo não o reconheceram como sendo ele o ser todo-poderoso.
O que o aborrecia especialmente era que os teólogos, filósofos e mesmo os leigos
discutiam o problema do mal, do sofrimento. Como é que era possível, uma vez que
existia um deus todo-poderoso e bom (como eles acreditavam erradamente que existia),
que existisse tanto mal na forma de sofrimento? O Diabo achava que se ele tinha criado o
universo, com tanto sofrimento e infelicidade a desenvolver-se ao longo de séculos, as
pessoas que refletissem chegariam à conclusão de que devia existir um ser um criador
todo-poderoso e mau, como ele – o Diabo. As pessoas deviam estar a discutir o
problema do bem e não o problema do mal. Uma vez que existem tantas provas
apontando para a existência de um ser todo-poderoso e mau – o Diabo – o
questionamento deveria ser sobre o porquê da existência do bem e não sobre o
porquê da existência do mal.”
235
Edward Hopper, Satan in Red, 1900
PROVOCAÇÃO:
(DISCUSSÃO CRÍTICA)
O PROBLEMA DO MAL
237
Deus, ou seja, o problema do mal é a ideia de que o mal é incompatível com a
existência de Deus. A ideia é que Deus é sumamente bom, e por isso não quer o mal.
Além disso, é omnisciente, ou seja, sabe tudo o que é logicamente possível saber e por
isso sabe que existe o mal. Como é também omnipotente, ou seja, pode fazer tudo o que
é logicamente possível fazer, pode eliminar o mal. Assim, parece razoável pensar que se
Deus existisse, não haveria mal. No entanto, o mal existe: há homicídios, doenças,
pandemias, guerras, roubos, etc. Por isso, parece que podemos concluir que Deus não
existe. Nesta perspetiva (de negação da existência de Deus) surge o seguinte raciocínio:
E:
Assim, podemos distinguir dois tipos de mal: o mal natural e o mal moral.
MAL MORAL – é o mal causado pelos seres humanos através de ações mais
ou menos deliberadas (como assassínios, guerras, roubos, mentiras e torturas),
traduzindo-se no sofrimento de outros seres humanos e também de animais.
240
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
241
O ARGUMENTO DE LEIBNIZ
(TEODICEIA: RESPOSTAS AO ARGUMENTO DO MAL)
242
Este filósofo divide o mal em três tipos:
O mal metafísico, o mal físico e o mal moral fazem, portanto, parte da ordem
do mundo. A ocorrência de certos males no mundo pode ser necessária para se
obterem bens maiores, que superam esses males. Num exemplo apresentado por
Leibniz, um general do exército preferirá uma grande vitória com uma lesão leve do que
uma situação sem lesão e sem vitória. Uma imperfeição na parte pode ser necessária
para a perfeição no todo.
O mal é, portanto, uma parte necessária no conjunto harmónico do melhor dos
mundos e para ser devidamente compreendido ele deve contextualizado e
integrado no conjunto da criação divina.
Quando prestamos atenção apenas a uma parte da realidade e não pensamos na
relação dessa parte com a totalidade do real, podemos ficar com a ilusão de estar perante
males gratuitos. O nosso conhecimento, sendo limitado e imperfeito, não nos
permite compreender a totalidade do Universo e, assim, não podemos ver os bens
associados aos bens com que nos deparamos. Concluímos, então, erradamente,
que esses males são gratuitos. Não existem males gratuitos - Deus permite o mal e
243
este encontra-se totalmente justificado, não sendo, portanto, incompatível com a
perfeição divina.
É discutível a ideia de que o mal físico é um castigo pelo mal moral. De facto –
pelo menos se apenas considerarmos esta vida que vivemos – nem todos os seres
humanos são castigados pelo mal que praticam. Além disso, o mal físico atinge tanto
as pessoas perversas como as pessoas bem intencionadas e, muitas vezes, mais estas
do que aquelas.
Admitindo que temos efetivamente livre-arbítrio, podemos pôr em causa a ideia
de que um mundo com livre-arbítrio e a possibilidade do mal moral é preferível a um
mundo sem livre-arbítrio nem más ações. Com efeito, o sofrimento decorrente da
maldade humana pode ser tão terrível que muitas pessoas prefeririam, em vez de ter de
passar por tal sofrimento, que toda a gente tivesse sido pré-programada para só praticar o
bem. Deus poderia, inclusive, ter criado esses seres pré-programados de tal modo que
eles acreditassem terem livre-arbítrio e, assim, usufruíssem de todos os benefícios que
essa crença lhes traria, não praticando, assim, qualquer ação maligna.
244
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
3. Distinga mal natural de mal moral, dando um exemplo para cada um deles.
7.2 De acordo com o princípio de razão suficiente, Deus não tem uma razão
suficiente para permitir o mal.
245
7.3 O mal moral decorre, segundo Leibniz, do livre-arbítrio.
7.6 Uma das objeções ao argumento de Leibniz decorre do facto de este filósofo
aceitar a existência de males gratuitos.
246
CONTRA-ARGUMENTAÇÃO À TEODICEIA DE LEIBNIZ
A JUSTIFICAÇÃO DO MAL MORAL: O LIVRE ARBÍTRIO
247
mal, não por escolhermos as ações boas e rejeitarmos as más, mas porque não
conseguiríamos fazer algo mau. Se fossemos “programados” para nunca agir mal, porque
Deus suprimiu o mal, parece que não poderíamos ser nem livres, nem moralmente bons
(ou maus).
Esta justificação do mal moral pressupõe, portanto, que o determinismo
(ausência de liberdade) é falso e que somos realmente livres.
Assim, sintetizando estas ideias (acerca da justificação do mal moral em
articulação com o livre arbítrio), podemos dizer que:
A) O livre arbítrio exige a possibilidade do mal moral, ou seja, se não houver
mal moral, o livre arbítrio é impossível.
B) Um mundo com mal moral mas com livre-arbítrio é melhor do que um
mundo sem mal moral e sem livre-arbítrio.
Na alínea A), acima dada, é afirmado que “O livre arbítrio exige a possibilidade
do mal moral, ou seja, se não houver mal moral o livre arbítrio é impossível.” Mas
será esta afirmação inquestionável?
Suponhamos que Deus cria o universo, e nós nele, de modo a termos capacidade
para escolher entre diferentes ações, só que nenhuma delas origina o mal. Assim, as
nossas ações morais estão sempre entre a máxima bondade humana e a neutralidade, e
temos o poder efetivo de escolher, mas sem nunca fazer o mal. Ou então, Deus podia ter-
nos criado de tal modo que, embora tenhamos livre-arbítrio e a possibilidade de escolher
o mal, pensamos sempre corretamente do ponto de vista moral, e assim, na realidade,
evitamos sempre o mal. Se quiséssemos fazer o mal, Deus não nos impediria. No
entanto, nunca acontece de facto querermos fazê-lo.
Naturalmente, pode-se pensar que, em ambas as situações, não há livre-arbítrio
genuíno, autêntico.
E no que diz respeito à afirmação da alínea B), que diz que “Um mundo com mal
moral mas com livre-arbítrio é melhor do que um mundo sem mal moral e sem livre-
arbítrio.”, será uma verdade evidente?
Imaginemos um mundo sem livre-arbítrio e sem mal. É possível pensar que a
ausência de livre-arbítrio seria um preço relativamente pequeno a pagar por um mundo
que seria poupado a todo o imenso e horrível sofrimento causado pela maldade humana
ao longo da história (basta recordar o Holocausto nazi, como um dos episódios mais
negros da história da humanidade, para perceber que o mal moral existe– provocado pelo
248
próprio ser humano –e não tem limites). E se Deus tivesse criado os seres humanos de tal
modo que tivessem a ilusão de serem livres, embora não o fossem? Dessa maneira,
poderíamos ter o melhor das duas situações: sensação, ainda que ilusória, de livre-
arbítrio e inexistência de mal moral. Podemos pensar que este cenário seria melhor do
que a realidade em que vivemos.
Finalmente, a justificação do mal moral pressupõe que o livre arbítrio é compatível
com a existência de um Deus omnisciente. Mas sê-lo-á de facto? Se Deus já sabe
todas as opções que vamos tomar na vida desde que nascemos, e antes de as
tomarmos, seremos, mesmo assim, realmente livres?
249
coragem para enfrentar a morte e a doença, não haveria heroísmo para salvar pessoas
inocentes de terramotos e não daríamos o melhor de nós mesmos para curar as doenças,
principalmente aquelas que são uma autêntica ameaça não apenas para os indivíduos
mas para toda a espécie humana (veja-se o caso do Novo Coronavírus ou, simplesmente,
Covid-19).
Assim, como justificação do mal natural, sem a exclusão da possibilidade da
existência de Deus, são vários os que defendem (filósofos, teólogos e até mesmo
cientistas – sim, cientistas, poiso facto de se ser cientista não significa que não se possa
ser crente – há, portanto, os que são e os que não são, como qualquer comum dos
mortais) que um mundo com mal natural permite a existência de bens que de outro
modo não poderiam existir. Ao permitir o mal natural, Deus está a promover bens
importantes e significativos que não é possível promover por outros meios(como,
por exemplo, o desenvolvimento da ciência e as ações de solidariedade entre as
pessoas). Ora, deste ponto de vista, não há incompatibilidade entre Deus e o mal
natural.
250
CRÍTICA/OBJEÇÃO À JUSTIFICAÇÃO DO MAL NATURAL
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:
251
4. Considera que o ser humano goza de liberdade de ação (livre-arbítrio) ou,
pelo contrário, considera que o ser humano está refém (prisioneiro, cativo) de um
plano divino (determinismo divino, destino traçado).
FIM
252