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Organizadores

Francisco Luiz Corsi


Agnaldo dos Santos
Marina Gusmão de Mendonça

AMÉRICA LATINA,
ELEIÇÕES E MUDANÇAS
POLÍTICAS
Organizadores

Francisco Luiz Corsi


Agnaldo dos Santos
Marina Gusmão de Mendonça

AMÉRICA LATINA,
ELEIÇÕES E MUDANÇAS
POLÍTICAS

1ª EDIÇÃO – 2023
M ARÍLIA/SP
Projeto editorial Praxis é a editora da RET
(Rede de Estudos do Trabalho - (www.estudosdotrabalho.net)

Copyright© Projeto editorial Praxis, 2023

Editor-Chefe
Giovanni Alves

Conselho Editorial
Dr. André Luiz Vizzaccaro-Amaral (UEL)
Dr. Edilson Graciolli (UFU)
Dr. Francisco Luiz Corsi (UNESP)
Dr. Giovanni Alves (UNESP)
Dr. José Meneleu Neto (UECE)
Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP)
Dr. Renan Araújo (UNESPAR)
Dra. Dolores Sanchez Wunsch (UFRS)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, Campo Grande/MS)

A512 América Latina, eleições e mudanças políticas / organização


1.ed. Francisco Luiz Corsi, Agnaldo dos Santos, Marina Gusmão de
Mendonça. – 1.ed. – Marília, SP : Projeto Editorial Praxis, 2023.
358 p.; 15,5 x 23 cm.

Bibliografia.
ISBN 978-65-84545-15-1

1. América Latina. 2. Capitalismo. 3. Crise econômica. 4.


Economia. 5. Política. Corsi, Francisco Luiz. II. Santos, Agnaldo
dos. III. Mendonça, Marina Gusmão de.

CDD 320.98

Índice para catálogo sistemático:


1. América Latina : Ciências políticas 320.98

Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129


SUMÁRIO

A PRE SE NTAÇ ÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

C A PÍT U LO 1
UM A A N Á LISE DA CON JUN T UR A IN T ERN ACION A L DE 2022 À LUZ
DE UM E X A ME DA S C AT EGORIA S REL ACION A DA S À HEG EMONIA
DE ROBERT W. COX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos

C A PÍT U LO 2
P OL A RIZ AÇ ÃO DOMÉ S TIC A E IN T ERV ENCIONISMO G LOBA L: OS
E S TA DOS UNIDOS DE JOE BIDEN (2021/2023). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Cristina Soreanu Pecequilo
Clarissa Nascimento Forner

C A PÍT U LO 3
A INICIATI VA CIN T UR ÃO E ROTA N A A MÉRIC A L ATIN A: OS
C A SOS DE BR A SIL, PA N A M Á, CHIL E E EQUA DOR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Ana Tereza Lopes Marra de Sousa
Giorgio Romano Schutte
Rafael Almeida Ferreira Abrão
Valéria Lopes Ribeiro

C A PÍT U LO 4
DE SCON TINUIDA DE S E CON TINUIDA DE S BIL AT ER AIS BR A SIL-
E S TA DOS UNIDOS: A G E S TÃO DE JAIR BOL SON A RO (2019/2022). . . . . . . 89
Cristina Soreanu Pecequilo

C A PÍT U LO 5
DERROTA DEFINITI VA OU RE V É S PA SS AG EIRO DO
BOL SON A RISMO? P OSSÍ V EIS CONSEQUÊNCIA S P OLÍTIC A S E
ECONÔMIC A S DO RE SULTA DO EL EITOR A L DE 2022. . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Agnaldo dos Santos

C A PÍT U LO 6
V ITÓRIA EL EITOR A L CON T R A O FA SCISMO E A DISPU TA PELO
E S TA BEL ECIMEN TO DE CONSENSOS CI V ILIZ ACION AIS NO
BR A SIL P ÓS - GOV ERNO BOL SON A RO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
Fabio Venturini
C A PÍT U LO 7
A CON JUN T UR A DA ECONOMIA BR A SIL EIR A E A T ENDÊNCIA AO
BAIXO CRE SCIMEN TO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
Francisco Luiz Corsi

C A PÍT U LO 8
UM A CON JUN T UR A A SER SUPER A DA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Marcelo Soares de Carvalho

C A PÍT U LO 9
NOVA PRERIODIZ AÇ ÃO, NOVOS CONCEITOS, V EL HO DE V IR . . . . . . . . . 199
Dora Shellard Corrêa

C A PÍT U LO 10
OS NOVOS GOV ERNOS PROG RE SSIS TA S E AÇÕE S A FIRM ATI VA S
N A A MÉRIC A L ATIN A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Regiane Nitsch Bressan

C A PÍT U LO 11
A FOME COMO PRO JE TO: A DE S T RUIÇ ÃO DA S P OLÍTIC A S DE
SEGUR A NÇ A A LIMEN TA R NO BR A SIL E A URG ÊNCIA DE SUA
RECONS T RUÇ ÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
Marina Gusmão de Mendonça

C A PÍT U LO 12
O SEN TIMEN TO PE SSOA L DO DE S T ERRO: A SPEC TOS PE SSOAIS
DA CONDIÇ ÃO DE REFUGIA DO E SUA PROT EÇ ÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
João Alberto Alves Amorim

C A PÍT U LO 13
A RE TOM A DA DO PAC TO DE E S TA BILIDA DE E CRE SCIMEN TO
DA UNIÃO EUROPEIA: A INFLUÊNCIA A L EM Ã E OS EFEITOS DA
PA NDEMIA DA COV ID -19. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
Luís Felipe Borges Taveira
Daniel Campos de Carvalho

C A PÍT U LO 14
M A NIPUL AÇ ÃO DA S QUE S TÕE S HUM A NITÁ RIA S EM T EMP O
DE GUERR A: DIFERENÇ A DE ORÇ A MEN TO PA R A A QUE S TÃO
MILITA R E HUM A NITÁ RIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323
José Alexandre Altahyde Hage
Murilo Seri Fagundes
Paula Santos Vieira

C A PÍT U LO 15
CRISE G LOBA L DO C A PITA L NO SÉCULO X XI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
Giovanni Alves
APRESENTAÇ ÃO

A presente coletânea é composta de textos apresentados no


XXII Fórum de Análise de Conjuntura, que ocorreu entre 26 e 28
de setembro e em 9 de novembro de 2022. O Fórum é um evento
interinstitucional, organizado pelo Grupo de Pesquisa Estudos
da Globalização, pela Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da
Universidade Estadual Paulista (UNESP - Campus de Marília), pelo
Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de
Política, Economia e Negócios (EPPEN), da Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP) - Campus de Osasco e pelo Instituto de
Estudos de Economia Internacional (IEEI) da UNESP.
O XXII Fórum de Análise Conjuntura, cujo tema foi “América
Latina, Eleições e Mudanças Políticas”, abordou, a partir de uma
perspectiva interdisciplinar, a situação política, econômica e social
da América Latina em um contexto marcado pelas múltiplas con-
sequências da pandemia do COVID -19 e pela chegada no governo
das forças de esquerda, que saíram vitoriosas no Chile, na Bolívia,
na Colômbia e no Brasil, mas que enfrentam enormes desafios. O
momento é decisivo para a definição do futuro próximo da região,
pois diferentes projetos políticos e socioeconômicos estão em con-
fronto. Foi sob o impacto desses processos que a vigésima segunda
edição do Fórum discutiu os rumos do continente e do Brasil, que ,
no caso, recebeu especial atenção.
A persistência da crise estrutural do capitalismo global, que se
arrasta desde 2008, e a construção de um mundo multipolar, que se
manifesta como um dos resultados da referida crise, agravada pela
pandemia do Covid 19 e pela guerra da Ucrânia, foram o pano de
fundo das discussões. A crescente disputa entre os EUA e a China
pela hegemonia mundial e seus impactos na região, sobretudo no
Brasil, foi um dos temas centrais do debate. Também teve grande
relevo nas discussões a situação de instabilidade política que aflige

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 7


vários países e o futuro dos governos progressistas que voltaram a
ganhar espeço nos últimos dois anos, interrompendo, pelo menos
momentaneamente, a onda de direta e até mesmo extrema-direita
que varreu a região. Outros eixos das discussões foram a crise
ambiental e a crise econômica, temas articulados aos problemas da
desigualdade social, da miséria e da fome. Dessa forma, os artigos
que seguem abordam a conjuntura política e econômica internacio-
nal e regional, os problemas ambientais do continente e as questões
relativas às ações afirmativas, à fome, aos refugiados e a algumas
questões específicas da situação internacional.
Os primeiros quatro capítulos discutem vários aspectos da
conjuntura internacional, as relações entre a China e a América
Latina e a política externa brasileira. Em seguida dois artigos abor-
dam a conjuntura política brasileira, o processo eleitoral que cul-
minou com a vitória de Lula e as perspectivas do novo governo.
Mais dois artigos tratam da conjuntura econômica brasileira, da
crise e dos impasses da economia. O próximo artigo discute o pro-
blema ambiental a partir de uma perspectiva histórica. Em seguida,
dois capítulos abordam, respectivamente, as ações afirmativas na
América Latina e a política de segurança alimentar no Brasil. Os
três capítulos seguintes abordam questões articuladas aos eixos dos
debates do evento, mas cujo escopo ultrapassa o âmbito regional,
abordando problemas vinculados às migrações e à guerra. O último
capítulo faz uma ampla discussão da crise estrutural do capitalismo
global e seus desdobramentos.
Francisco Luiz Corsi
Agnaldo dos Santos
Marina Gusmão de Mendonça

8 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 1

UMA ANÁLISE DA CON JUNTUR A


INTERNACIONAL DE 2022
À LUZ DE UM EX AME DA S
C ATEGORIA S REL ACIONADA S À
HEGEMONIA DE ROBERT W. COX 1

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos2

Introdução

A temática da crise da hegemonia norte-americana não é uma


novidade. Décadas de debates sobre um eventual descenso estadu-
nidense ocupam extensa literatura e ainda ocuparão muitas contro-
vérsias3. Sempre permeiam tais avaliações o risco de a análise de
conjuntura não contemplar uma reflexão mais acurada e previsível,
inclusive pelo fato de estar contida nas temporalidades históricas de
longo prazo. Este é o ensejo para a proposição de uma avaliação pre-
liminar da conjuntura internacional de 2022 a partir de uma leitura

1 Agradeço os comentários e sugestões feitos a uma versão anterior deste texto realizados
por Paulo Victor Zaneratto Bittencourt, Friedrich Maier e Helena Lucchesi França. Este
texto foi finalizado em 28 de fevereiro de 2023.
2 Docente da Unesp – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de
Marília. ORCID: 0000-0002-5542-2812. Bolsista Produtividade do CNPq nível 2.
3 Alguns poucos exemplos: Wallerstein (2004), Kennedy (1991), Campbell (2020).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 9


das categorias relacionadas à hegemonia conforme o cientista polí-
tico canadense Robert W. Cox.
Ainda no ensejo das temporalidades históricas de longo
prazo que permeiam a avaliação de Cox (2013, p. 317), inspirada
no historiador Fernand Braudel (1978), ele a situa de duas formas.
A primeira, em termos sincrônicos, identificada com um “eterno
presente”, de aspectos perenes e duradouros do plano internacio-
nal, dentro do que ele associa a uma perspectiva não muito afeita a
mudanças. Elas seriam semelhantes ao caráter problem-solving das
teorias das relações internacionais que enfatizam condições mais
permanentes, como a ausência de um poder soberano estatal único
no plano internacional. Numa palavra, a anarquia. Comporiam
também tais aspectos os diferentes ciclos de equilíbrio de poder
entre os Estados. A segunda, diacrônica, mais afeita à mudança,
pode ser resultante da atividade coletiva humana que é passível de
se desdobrar em radical transformação com a emergência de novas
estruturas históricas (COX, 2013, p. 329). Embora Cox não faça tal
relação, é possível associá-la à teoria crítica porque contempla uma
perspectiva histórica de transformação.
Assim, a pergunta que orienta este texto é: como elaborar, a
partir da categoria de hegemonia em registro coxiano e outras a ela
diretamente relacionadas, uma sumária avaliação da conjuntura
internacional de 2022 que se desdobre num exame crítico desses
mesmos conceitos? Duas hipóteses são postas para tal problema.
A primeira é, de acordo com a leitura de Cox, que a temporali-
dade histórica de médio prazo e a conjuntura sugerem um processo
contínuo, lento e gradual de descenso da hegemonia norte-ameri-
cana dentro de uma contra-hegemonia liderada pela China. Tal pos-
sibilidade relativa ao ascenso sínico foi vagamente sugerida algumas
vezes por Cox em seu derradeiro livro de memórias (COX, 2013, p.
337 e 366).
A segunda hipótese, crítica à ótica coxiana, é de que o trata-
mento metodológico dualista de Cox da categoria de hegemonia
sugere desdobramentos e avaliações da conjuntura internacional
em que o conceito se faz presente nominal e formalmente, mas não

10 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


efetivamente relacionado à base empírica e em termos teóricos. Em
outras palavras, o componente de longa duração histórica que nomi-
nalmente inspira um conjunto de categorias de inspiração grams-
ciana não faz jus a um exame profundo de elementos históricos de
maior envergadura que combina conjuntura e longo prazo. Neste
sentido, a metodologia histórica de Gramsci (1977, Q13, §17, p. 1578-
1589)4 da análise de relações de força atentaria para uma perspectiva
mais abrangente de longo prazo não devidamente considerada por
Cox, que sobrevaloriza o elemento conjuntural e de médio prazo.
Na medida em que o aparato teórico de Cox é explicitamente eclé-
tico, os aspectos conjunturais apontados pelo autor canadense não
se coadunam com os elementos conceituais presentes na sua aná-
lise. Seja porque ele mobiliza conceitos e autores diferentes, incon-
gruentes entre si na sua análise e de forma a elaborar algo eclético,
seja porque a vagueza da avaliação conjuntural também se constitui
num sintoma do ecletismo. Dito de outra forma, na medida em que
não se aprofunda, não se especifica e não se torna possível aplicar as
categorias de referência a aspectos relevantes da base empírica a ser
analisada, tudo parece parte do mesmo problema, do mesmo con-
ceito, da mesma teoria e do mesmo assunto. Tais pontos caracteri-
zam conceitualmente o ecletismo (OLIVEIRA FILHO, 1995 e 1996).
O texto seguirá um plano. Primeiro, uma apresentação sumá-
ria sobre hegemonia, contra-hegemonia e ausência de hegemonia
conforme Cox e algumas de suas apropriações mais relevantes na
literatura. Posteriormente, uma breve avaliação conjuntural inter-
nacional do ano de 2022, confrontando aspectos da conceituação
e da análise coxianas e um exame teórico-empírico a partir da lei-
tura da referida conjuntura. Por fim, um resumo dos argumentos e
alguns elementos críticos de ponderação sobre a elaboração apre-
sentada que possam, inclusive, se desdobrar em pesquisas futuras.

4 “Q” refere ao número do caderno e “§” na edição crítica italiana dos cadernos carcerários
gramscianos citada neste texto.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 11


Cox: hegemonia, contra-hegemonia
e ausência de hegemonia

Para Cox, a concepção cíclica da história que caracterizaria as


teorias tradicionais internacionalistas seria a-histórica e serviria ao
propósito de manutenção do status quo e de uma visão da realidade
internacional compartimentalizada em escopo e em número de
variáveis, pontos definidores do que ele chama de teorias problem-
-solving. Por oposição, a teoria crítica seria histórica ao contemplar
um propósito de transformação e uma visão de totalidade (COX,
1981, p. 128-130).5 Essa ênfase na transformação motivaria, também,
uma crítica às teorias do sistema-mundo (WALLERSTEIN, 1974
e 1976). Cox enalteceu o caráter alternativo radical dessas teorias,
embora tenha observado que elas tendiam a considerar os Estados
como meras derivações de suas posições no sistema-mundo, com
Estados fortes no centro e Estados fracos na periferia. Ademais,
observou o quadro das análises do sistema-mundo seria mais afeito
a uma perspectiva de manutenção de equilíbrio do sistema do que
a identificação de contradições que poderiam levar a uma transfor-
mação no seu interior (COX, 1981, p. 127).
Edward Hallet Carr seria uma exceção dentro das teorias
mais tradicionais e entre aqueles autores rotulados como “realistas”
(COX, 1997, p. XXVIII). Cox o considerava um teórico do realismo
clássico e de uma perspectiva histórica e não-cíclica que se filiaria
à teoria crítica (COX, 1981, p. 131). A partir desta combinação entre
Gramsci e Carr, dentre outros, Cox reelaborou uma formulação de
hegemonia lhe permitiria compreender não apenas a congênere de
uma nação sobre as demais, mas também a de uma classe ou fração
sobre outras. Para tanto procurou articular as dimensões sociais,

5 A caracterização e diferenciação entre teoria crítica e teoria problem-solving se assemelha


bastante à maneira como Max Horkheimer (1991) diferencia teoria crítica e teoria tradi-
cional, muito embora Cox negue a relevância desta elaboração para a sua teoria (Cox 2002
apud Schechter 2002: p. 4). Entretanto, a filiação de Cox à formulação de Horkheimer é
afirmada por diversos comentadores (DEVETAK, 2005, p. 138-139; HALLIDAY, 1999, p.
67; JAHN, 1998, p. 616-617; MORTON, 2003, p. 153-154).

12 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


econômicas e político-ideológicas da vida social. De acordo com
Cox:

Hegemonia, no nível internacional, é, então, não apenas


uma ordem entre Estados. É uma ordem em uma econo-
mia mundial com um modo de produção dominante, o
qual entra em todos os países e vinculando outros modos
de produção subordinados. É também um complexo de
relações sociais internacionais as quais conectam as classes
sociais de diferentes países. Hegemonia mundial pode ser
descrita como uma estrutura social, uma estrutura eco-
nômica e uma estrutura política; e não pode ser simples-
mente uma dessas coisas mas deve ser as três. A hegemonia
mundial, além disso, expressa-se em normas universais,
instituições e mecanismos os quais definem regras gerais
de comportamento para os Estados e para aquelas forças
da sociedade civil que agem além das fronteiras nacionais,
regras que promovem o modo de produção dominante
(COX, 1996, p. 183).

Cox também definiu a hegemonia como uma estrutura de


valores e entendimentos referentes ao tipo de ordem que permeia
uma sociedade mundial no seu todo, formada por Estados e cor-
porações não estatais (COX, 2001, p. 56). Desse modo, pôs ênfase
naquela dimensão propriamente ideológica do conceito de hegemo-
nia que já havia sido destacada por Gramsci. Desta forma, a

Hegemonia como uma estrutura de dominação, deixando


em aberto a questão da dominação do Estado e do poder
privado, que é sustentado por um consenso de ampla base
através da aceitação de uma ideologia e de instituições con-
sistentes com essa estrutura. Assim, uma estrutura hege-
mônica da ordem mundial é aquela em que o poder toma
forma primariamente consensual (COX, 1981, p. 153).

Essa categoria de hegemonia possibilitaria, por sua vez, reme-


ter a três situações distintas: contra-hegemonia, ausência de hege-
monia e revolução passiva. Cox considerava a contra-hegemonia no

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 13


plano internacional como: 1) uma coalizão de Estados alternativa
ao hegemon (COX, 1981, p. 150), com forças desde as bases sociais
até suas cúpulas que alcançariam uma consciência comum inegavel-
mente distinta da congênere do poder hegemônico como uma estra-
tégia de transformação estrutural (COX, 2001, p. 56); 2) ou então,
uma ordem alternativa sem dominação, com ampla difusão de
poder buscada por Estados e grande número de forças coletivas em
termos de algum acordo em torno de princípios universais (COX,
1992, p. 179-180); 3) ou ainda, no plano interno de um Estado, como
uma luta para a construção de uma conjuntura histórica alternativa
(COX, 1996, p. 141).6
No que se refere a uma ordem com ausência de hegemonia, não
haveria princípios universais efetivos de ordem. Sua característica
seria a interação de rivalidades entre Estados poderosos com seus
respectivos Estados clientes, muito provavelmente baseada numa
organização mundial de regiões mundiais rivais (COX, 1992, p. 179-
180). Complementado, o que Cox reitera ser uma chave gramsciana,
uma estrutura hegemônica da ordem mundial se distingue de uma
ordem não hegemônica “[n]a qual há manifestamente potências
rivais e nenhuma potência foi capaz de estabelecer a legitimidade
de sua dominação. Pode haver dominação sem hegemonia; a hege-
monia é uma forma possível que a dominação pode tomar” (COX,
1981, p. 153).
Por fim, o conceito de ausência de hegemonia seria ainda
importante para a compreensão dos processos históricos de revo-
lução passiva (COX, 2007a, p. 260). Afastando-se da formulação
original de Gramsci, Cox considerou a revolução passiva como 1)
a contraparte da hegemonia, apontando um quadro de uma socie-
dade não-hegemônica em que nenhuma classe dominante teria con-
seguido atingir o caráter de hegemon (COX, 1996, p. 130); ou 2) uma
estrutura autoritária liderada pelo Estado sem qualquer hegemonia
estabelecida (COX, 1987, p. 218). A revolução passiva seria, dessa

6 Não existe um conceito de contra-hegemonia na obra de Gramsci. A provável formulação


originária e popularizadora de “contra-hegemonia” é a de Williams (1977).

14 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


maneira uma base instável para um Estado, a qual substituiria uma
auto-organização genuína dos próprios povos (COX, 2007b, p. 519)7.
Um certo distanciamento de Gramsci e do marxismo não seriam
tão estranhos ao universo teorético percebido pelo próprio Cox.
Cox deixou claro em mais de uma oportunidade que sua teoria
crítica não era filiada ao marxismo, mas apenas tributária dele (COX
apud SCHOUTEN, 2010, p. 3).8 Ademais, sua preocupação nunca foi
ser rigoroso ou fiel à obra de Gramsci, mas usar as suas categorias
para corroborar aspectos de sua teoria, sem uma preocupação espe-
cífica com o rigor dessa tradução9 intelectual, admitindo, inclusive,
um certo ecletismo10:

Muitos dos meus críticos me atribuíram uma identidade


gramsciana ou mais comumente ‘neogramsciana’; e alguns
me desaprovam por eu oferecer uma incorreta interpre-
tação de Gramsci. Com relação a isso, eu diria que pode
haver diferentes leituras de Gramsci como qualquer outro
pensador maior, leituras condicionadas pela perspectiva e
pelas preocupações do leitor. A questão pertinente não é:
eu compreendi corretamente Gramsci? De modo diverso,
é: as inferências que eu apontei (talvez incorretamente, mas
eu não estou pronto para admitir isso) a partir de Gramsci
ajudam na direção da compreensão do fenômeno histórico
que é objeto da compreensão da minha investigação? O
foco deveria ser a adequação da compreensão do mundo
de Cox mais do que a adequação de sua compreensão de
Gramsci. Há pouco a ganhar ao buscar a questão de fixar

7 No seu último livro, Cox (2013, p. 352) cita os casos do Iraque e do Afeganistão como
exemplares do que ele entende ser uma revolução passiva.
8 No seu texto pioneiro de proposição de teoria crítica, Cox (1981, p. 133) menciona o mate-
rialismo histórico como “uma fonte central da teoria crítica”.
9 A tradução é entendida em sentido gramsciano, conforme será explicado mais adiante no
texto.
10 Sobre o ecletismo de Cox no tocante à questão conceitual e analítica, consultar Ayers e
Saad-Filho: 2008. Sobre o ecletismo coxiano no tocante à justaposição dos estatutos epis-
temológicos de Gramsci e Horkheimer, consultar Passos, 2013.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 15


um rótulo na minha identidade intelectual. Eu não me
esquivo da palavra ‘eclético’ (COX, 2002, p. 29).

Ainda assim, Cox foi considerado o principal teórico “neo-


gramsciano” e foi por seu intermédio que a noção gramsciana de hege-
monia chegou ao mainstream da teoria das Relações Internacionais.
Em algumas de suas versões mais tardias, algumas das teorias – que
não possuem uma ênfase metodológica sistêmica tão forte11 – incor-
poraram uma leitura crítica da que ficou conhecida como “teoria da
estabilidade hegemônica” anunciada por Charles Kindleberger, de
acordo com a qual os Estados Unidos tinham os meios para esta-
bilizar os sistemas internacional e monetário no entreguerras, mas
não a disposição para tal (KINDLEBERGER, 1988, p. 257-271). De
acordo com uma crítica a tal tese, a hegemonia enquanto domi-
nação de uma única potência poderia contribuir para a ordem na
política mundial em circunstâncias particulares (KEOHANE, 1984,
p. 46). Todavia, não se trataria de uma condição suficiente. Ainda
na linha crítica de Keohane, tampouco havia motivos para acredi-
tar que tal dominação de uma só potência fosse necessária para tal
estabilização ou mesmo a garantia de uma efetiva liderança. Neste
sentido, Keohane argumenta que a formação de regimes interna-
cionais12 dependeria normalmente de uma hegemonia, particular-
mente de uma hegemonia econômica, definida em termos de con-
trole das matérias primas, controle das fontes de capital, controle
dos mercados e das vantagens competitivas na produção de bens
de valor elevado (KEOHANE, 1984, p. 50). A hegemonia implica-
ria, de tal modo, num Estado poderoso o suficiente para manter
as regras essenciais das relações interestatais, não necessariamente
estabelecendo um nexo entre poder e liderança (KEOHANE, 1984,
p. 34-35). O tema da liderança dá o ensejo a Keohane para discutir

11 Nye e Keohane assinalaram em diferentes passagens de algumas obras o caráter incomple-


to de uma abordagem sistêmica. Ver a respeito: Keohane 1984, p. 26 e Nye, Keohane, 1989,
p. 261-262.
12 Definidos em termos de um conjunto de princípios explícitos, normas, regras e procedi-
mentos de tomada de decisão em que as expectativas dos atores convergem num tópico
específico no âmbito internacional (KEOHANE, 1984, p. 53).

16 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


a noção de hegemonia. Keohane apoiou-se em Cox para afirmar
que haveria a necessidade de uma hegemonia baseada na domina-
ção sobre a produção através de uma ideologia que incorporaria o
consenso entre os dominantes e os subordinados. De forma mais
específica, isto implicaria que a hegemonia se apoiaria na consciên-
cia subjetiva das elites dos Estados secundários. Em conformidade
com isso, tais Estados se beneficiariam, além da vontade do próprio
hegemon abrir mão de benefícios de curto prazo para obter ganhos
intangíveis de longo prazo (KEOHANE, 1984, p. 44-45). Portanto,
percebe-se um enfoque de hegemonia fortemente reduzido e mati-
zado pelo foco no Estado, por sua capacidade de dominação eco-
nômica e por sua liderança ideológica. Essa forma de apropriação
chegou a uma versão na qual a hegemonia era identificada com uma
forma de soft power (poder brando), por meio do qual a “capacidade
de estabelecer as preferências tende a se associar a recursos de poder
intangíveis como uma cultura, uma ideologia e instituições atraen-
tes” (NYE JR., 2002, p. 37).13
Dois pontos precisam ser sublinhados na conclusão deste
tópico. São eles: 1) o dualismo metodológico de caráter paroquialista
de Cox que incide sobre a forma como ele classifica tanto as teorias
de relações internacionais quanto as temporalidades históricas e 2)
as principais diferenças da definição da noção de hegemonia con-
forme Gramsci e de acordo com Cox.
O primeiro diz respeito ao dualismo teoria crítica e teoria pro-
blem-solving. Ele pauta toda a classificação das teorias internaciona-
listas e todas as temporalidades históricas de longo prazo, inclusive a
de Fernand Braudel que inspira o autor. Isto dá ensejo a duas críticas.
A primeira aponta uma mitologia metodológica na medida em que
se trata de um paroquialismo (SKINNER, 1969, p. 24) de natureza

13 Em Gramsci hegemonia não se reduz ao consenso como a definição de soft power pa-
rece sugerir (GRAMSCI, 1977, Q13, §37, p. 1638). Como lembraram Geraldo Zahran e
Leonardo Ramos (2010, p. 24), a caracterização de Nye do soft power dos Estados Unidos
como beneficiário de valores universais (NYE JR., 2004, p. 11) ocultava a existência de
processos de conflito, coerção e consenso na arena internacional que davam ensejo a valo-
res portadores de uma visão de mundo particular.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 17


externa a estas teorias, imiscível e incoerente com elas em termos
de uma classificação passível de risco não somente de desconsiderar
aspectos originários das mesmas como incorrer numa grande sim-
plificação delas. Ou seja, Cox aproxima todos estes aspectos para a
sua leitura dual sem se preocupar se isto distorce suas formulações
conceituais originais.
O segundo refere à categoria de hegemonia no sentido grams-
ciano. Conforme já reiterado neste texto e em outras oportunidades
(PASSOS, 2019; PASSOS; FRANCO, 2017), a noção de hegemonia
pode ser completa ou restrita mas a sua complexidade não é tratada
de forma dual em termos de seu contrário enquanto contra-hege-
monia ou ausência de hegemonia. Enquanto noção que jamais tem
uma única concretude e teorização específica, ela se faz presente em
todos os escopos e fragmentos dos processos históricos enquanto
sujeitos individuais e coletivos que sejam o hegemon e aspirantes a
tal condição. Possui um ponto de partida nacional (GRAMSCI, 1977,
Q 14, § 68, p. 1729), mas se desdobra de forma bastante dinâmica e
complexa em termos internacionais de uma forma “traduzida” em
sentido gramsciano (GRAMSCI, 1977, p. 469, 849, 1468, 2268). Em
outras palavras, ela se materializa com uma manifestação ressigni-
ficada em relação ao sentido original, recepcionada com diferenças
em termos de distintas velocidades das transformações das diversas
dimensões da vida, sem necessariamente seguir o mesmo formato
dos vários contornos nacionais ou do contexto originário do hege-
mon. Na forma completa, diz respeito a um processo de profunda,
radical transformação implementado pelas massas como foram a
fase jacobina da Revolução Francesa e o início da Revolução Russa
de Outubro de 1917. Na forma restrita, “fracassada”14 de hegemo-
nia (THOMAS, 2018, p. 186) assume várias formas de uma moder-
nização conservadora que coopta demandas e setores de classes e
grupos subalternos sem dar-lhes protagonismo político, enquanto

14 “Fracassada” na medida em que a classe hegemônica fracassa no projeto de galvanizar no


âmbito da sociedade civil o consenso das grandes massas e, por isso, demanda o uso da
coerção mediante o Estado.

18 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


inúmeras possibilidades do que Gramsci denominou revolução pas-
siva, com o objetivo das classes dominantes evitarem um processo
revolucionário de tipo jacobino. Por sua vez, a crise de hegemonia é
um processo histórico que envolve uma crise orgânica do Estado e
uma crise de autoridade em que a classe dominante fracassou num
grande empreendimento para o qual solicitou ou impôs pela força o
consenso das grandes massas (como, por exemplo, uma guerra). Tais
classes dominantes têm grande dificuldade para obter o consenso
das massas e fazer nascer um novo processo que lhe garanta um
equilíbrio de forças sociais que lhe seja mais favorável (GRAMSCI,
1977, p. 1602-1603).
De acordo com a formulação original e a hipótese de Gramsci
(1977, Q22, p. 2137- 2182), o processo histórico referente à hegemo-
nia estadunidense seria de revolução passiva dotado de um con-
teúdo que reorganizou a sociabilidade e a materialidade do capi-
talismo, num sentido fordista que traduz (em sentido gramsciano)
suas várias manifestações diferentes e variações da produção e
do consumo em massa nos distintos escopos histórico-espaciais,
inclusive no plano internacional. Em termos da metodologia histó-
rica de análise de relações de força, nenhum aspecto histórico rele-
vante pode ser dado como superado sem que ele se desenvolva ple-
namente nas suas potencialidades e contradições até que ele possa
ser efetivamente transformado, substituído por outro. Do ponto de
vista de uma temporalidade histórica de longo prazo, esta seria a
grande temática a ser analisada. Aplicar a metodologia gramsciana
ao componente-chave da hegemonia norte-americana, o fordismo
enquanto uma concepção de mundo mais ampla, passa por tal
entendimento, que será retomado em etapa posterior do argumento
neste artigo.
A despeito de Cox admitir em alguns momentos de suas defi-
nições as classes sociais nos processos de hegemonia a serem avalia-
dos, o seu referencial mais usado é aquele centrado nos Estados. Seu
tratamento dualista da categoria como o conceito e seu contrário ou
ausência empobrece todo o seu substrato social e conexão com as
bases históricas e sociais que combina a totalidade de aspectos que

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 19


incidem sobre a avaliação enquanto uma verdadeira concepção de
mundo em nível nacional e internacional.

Um brevíssima leitura da conjuntura


internacional de 2022

Muito provavelmente a grande dificuldade de uma análise


sobre a condição hegemônica dos Estados Unidos resida numa
percepção acurada que combine curto, médio e longo prazos, uma
tarefa das mais árduas. Análises sobre um eventual declínio norte-
-americano em favor da União Soviética na Guerra Fria, do Japão
e da União Europeia no pós-Guerra Fria não resistiram a constata-
ções conjunturais de curto e médio prazo que não se sustentaram
no decorrer do final do século XX. Aumentaria a dificuldade um
exame crítico sobre o manuseio da forma como Cox lida com a
matriz gramsciana que dá ensejo às categorias em tela. Os aspectos
conjunturais de médio e curto prazo se conectam a 2022, no qual
os fatos mais marcantes para os fins deste texto focalizam princi-
palmente Estados Unidos, Rússia e China por serem os Estados as
principais referências analíticas de Cox, além de se constituírem
nas unidades políticas mais abordadas em face do objeto específico
deste texto.
A grande pergunta que incide sobre a hegemonia norte-a-
mericana no século XXI e remete a 2022 considera a República
Popular da China como desafiante da condição de hegemon, ponto
já considerado por Cox em seu livro de memórias (COX, 2013, p.
216, 273-297, 358) desde a década de 70 do século XX. A China está
ultrapassando ou em vias de superar a hegemonia de Washington?
Argumentos em termos de médio e curto prazo não faltam em
favor da Terra do Meio. O exponencial crescimento e industrializa-
ção ao longo de duas décadas. A enorme presença chinesa do ponto
de vista econômico, diplomático e multilateral em vários Estados,
inclusive como a maior parceira destes. A crescente liderança
política chinesa, com o preenchimento do vácuo deixado pelos

20 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Estados Unidos na gestão Trump no âmbito multilateral e de com-
bate à COVID-19 tanto na Organização Mundial de Saúde como
no âmbito da “diplomacia das vacinas”, com uma concomitante
busca de aumento de legitimidade15 em outras instâncias multilate-
rais. A aliança entre China e Rússia como parte de um esforço mais
amplo de questionar política, militar e economicamente a liderança
estadunidense. Um crescimento do poder militar chinês, inclusive
do ponto vista marítimo-naval, com uma significativa presença
de mais vasos de guerra num futuro cenário choque militar com
Washington no Mar do Sul da China e a existência futura total de
três porta-aviões convencionais. Ressalve-se que tal avaliação pode
ser um tanto exagerada na comparação com esta mesma dimensão
norte-americana, incomparavelmente maior com onze porta-aviões
de tipo nuclear. Outro contra-argumento importante nesta mesma
linha é a presença de 80 bases militares estadunidenses que cercam
a China (BERLINCK, 2023). O gigantesco volume de investimen-
tos externos recebidos pela China nas últimas décadas. A crescente
presença chinesa de investimentos em nível global e na iniciativa de
infraestrutura terrestre e marítima de alcance global denominada
Iniciativa Cinturão e Rota. Uma postura que busca uma liderança
política e diplomática em termos de uma pretensa neutralidade
em termos de conflitos militares que, em última instância, corro-
bora uma posição desafiadora aos Estados Unidos, como no caso
da guerra russo-ucraniana. Um posicionamento de ocupar espaços
econômicos e políticos com Estados confrontados de forma incisiva
por Washington e seus aliados, como Cuba, Venezuela, Afeganistão,
Irã, Coreia do Norte, Síria e Rússia. Encontramos nestes argumen-
tos iniciais e em outros (ALVES; PASSOS, 2022) as bases do que
poderá ser, em termos da aplicação dos termos coxianos, uma futura
contra-hegemonia.
De forma simultânea, há argumentos em favor de um descenso
norte-americano que combinam elementos de curto e longo prazo.

15 O destaque da legitimidade como ponto relevante e central de um Estado na política inter-


nacional foi sistematizado por Cox em seu livro de memórias (COX, 2013 p. 346, 358).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 21


Em termos de longo prazo, enumeram-se alguns argumen-
tos. A crescente perda relativa de presença econômica dos Estados
Unidos no conjunto do sistema internacional. A crescente perda
de legitimidade norte-americana com suas intervenções militares
e distanciamento crescente em termos de negações de opções mul-
tilaterais e pacíficas no âmbito da diplomacia, e das organizações
internacionais. A crescente xenofobia e racismo nos planos interno
e internacional, no que se refere à atuação e à imagem projetada
pelos Estados Unidos relacionada a tais pontos. A incapacidade dos
Estados Unidos de bancarem guerras em que sustentem a conse-
cução de objetivos políticos e militares plenos identificados com
uma contundente e inconteste “vitória”. A crescente perda de atra-
ção cultural e científica de suas universidades, ainda que este seja
um ponto ainda não muito forte. A crescente e persistente crise
econômica e social na absoluta maioria dos Estados periféricos do
sistema internacional por décadas. A desindustrialização econô-
mica e concomitante desdobramento no agravamento de tensões
e crises econômicas, sociais, políticas, raciais no âmbito interno
estadunidense.
No que tange ao curto e médio prazos, enumeram-se alguns
pontos. O esvaziamento e finalização de uma assim chamada
hegemonia liberal de “exportação da democracia e de valores uni-
versais”, ainda que seja esta, em boa medida, retórica e cheia de
casuísmos que não incluem, por exemplo, o Egito e as monarquias
do Golfo Pérsico. A incapacidade de se impor política e militar-
mente e a concomitante retirada do Afeganistão, mesmo que a pre-
sença estadunidense se identifique com a defesa, ainda que precária
em função de inúmeras ressalvas, de valores ligados aos direitos
humanos e das mulheres. A dificuldade de enfrentar a ascensão,
o crescimento e a hegemonia industrial chinesas. As vicissitudes
no enfrentamento e contenção da Rússia no contexto global mais
amplo e, em particular, da guerra russo-ucraniana. A dificuldade
de contenção militar em duas frentes: Europa (no que se refere à
Rússia) e na Ásia (com relação à China). A postura cada vez mais
avessa no plano interno e no âmbito externo de suas escolhas no

22 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


nível internacional no que se refere a intervenções militares. O
lançamento da iniciativa de financiamento de projetos e infraes-
trutura intitulada “Reconstruir um mundo melhor” pelos Estados
Unidos seria a percepção da necessidade não somente de oferecer
uma reação ou um contraponto à congênere chinesa como também
uma avaliação de um sucateamento de sua infraestrutura interna,
sobretudo a ferroviária (PAULINO, 2021).
O grande desafio é avaliar se estas questões são conjunturais
ou de maior alcance no que concerne à possibilidade de se desdobra-
rem para a República Popular da China se tornar o novo hegemon.
O último livro de Cox, que contempla as suas memórias e rei-
tera de forma bastante repetitiva várias de suas análises e elabora-
ções teóricas presentes ao longo de sua trajetória acadêmica, sugere
também de forma incipiente uma aproximação gradativa (e ainda
não concretizada na temporalidade histórica que contempla o ano de
2022) com um quadro de ausência de hegemonia, embora a catego-
ria em tela esteja apenas implícita no raciocínio e não seja nominal-
mente citada no texto. Segundo o ex-dirigente da OIT (Organização
Internacional do Trabalho), tal quadro encontraria um paralelo his-
tórico outrora existente no papado medieval europeu e , em alguns
momentos, no sistema imperial chinês antigo.
Cox dá notícia dos desdobramentos da crise econômica e
financeira de 2008 na direção dos Estados Unidos16 como um centro
fraco num cenário mundial fragmentado, no qual o hegemon não
age com clara aquiescência e concordância gerais dos demais (COX,
2013, p. 336-337), ponto que se aproxima um pouco da sua defini-
ção de uma ausência de hegemonia, embora ela não esteja plena-
mente caracterizada. A visão não concretizada de que a civilização
norte-americana absorveria as demais poderia, segundo Cox, ser
substituída por uma condição hegemônica refortalecida. Segundo o

16 Cite-se o quadro do esvaziamento gradativo da hegemonia norte-americana, principal-


mente na dimensão econômica no argumento do cientista político canadense como um
ponto apontado muito antes em outro momento de sua produção acadêmica (COX, 1992,
p. 179).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 23


cientista político canadense, a condição para tal revitalização seria
a defesa da biosfera sobre a qual toda a vida humana se desenvolve e
contemplaria o mais elevado interesse comum de todas as civiliza-
ções, rejeitando as armas de destruição em massa, além da efetiva-
ção do reconhecimento intersubjetivo da visão de mundo de todas
as partes das referidas civilizações (COX, 2013, p. 337-338). Tal reco-
nhecimento intersubjetivo é mencionado em outro momento de sua
obra quando Cox o avalia como um componente fundamental do
ponto de vista ideológico e cultural da hegemonia (COX, 1992, p.
179).
Na conjuntura e no ano analisados, bem como em períodos
de curto prazo próximos, parece haver, ao menos no plano retórico,
uma certa convergência de busca de consenso enquanto compo-
nente da hegemonia quanto a aspectos da necessidade de preserva-
ção da biosfera tanto da parte dos Estados Unidos quanto da China.
Em termos do elemento consensual, ideológico, passivizador de
uma retórica a construir uma imagem adequada em termos inter-
nacionais, a preocupação com tal temática é um ponto constatável.
Oficialmente, a China planeja diminuir gradativamente as emissões
de carbono, reduzindo cerca de 20% até 2025 e zerá-las por completo
em 2060 (EUCLYDES, 2021). A construção de um desenvolvimento
inovador e de civilização ecológica foi contemplada pelo Comitê
Central do Partido Comunista da China nos propósitos para a for-
mulação Décimo Quarto Plano Quinquenal (STERN; XIE, 2022, p.
2). O Green New Deal dos Estados Unidos de 2019 objetiva zerar as
emissões de carbono até 2050, buscar até 2030 a produção de ener-
gia a partir de fontes limpas, renováveis e sem emissão de carbono
(COSTA; PERES, 2021).
Nesta etapa do argumento, a principal questão é: como efetuar
um teste empírico deste quadro que caminha para uma ausência de
hegemonia e descenso da congênere estadunidense na conjuntura
internacional de 2022?
Há duas dificuldades conceituais nesta linha de argumento
que convergem com a constatação de conceitos imiscíveis, incon-
gruentes entre si que caracterizariam, em parte, o ecletismo coxiano

24 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


apontado na segunda hipótese defendida neste texto. O quadro do
papado medieval europeu é um argumento de Hedley Bull (2002, p.
296) que Cox repete em relação a outra análise (COX, 1992, p. 179).
Todavia, em pese Cox mencioná-lo no que se refere a um contexto
de esvaziamento do poder (e, portanto, de uma certa definição de
hegemonia) dos Estados Unidos, não se trata do mesmo conceito.
O papado medieval europeu diz respeito a uma temporalidade his-
tórica na qual não existe especificamente o Estado e, por extensão,
a respectiva soberania. A soberania não é quantificada e é, na sua
natureza, um poder simétrico. De forma sumária, ela é definida
como o poder absoluto estatal sobre o seu território e população.
Ademais, a sua simetria é a igualdade jurídica de um Estado em
relação a outros Estados. O que se desdobra como independência
de uma unidade política em face de outra. Tal independência faz
com que qualquer Estado não reconheça o poder ou a superiori-
dade de poder de qualquer outra unidade política ou qualquer outro
ente na arena internacional. Uma certa definição de hegemonia diz
respeito à superioridade das várias dimensões de poder (econô-
mica, militar, tecnológica etc.) de um Estado, pontos que são, em
alguns casos, quantificáveis e desiguais na comparação com outros
Estados. Portanto, um conceito de natureza assimétrica e distinto
do conceito de poder do poder soberano, que possui uma natureza
simétrica.
O antigo sistema imperial chinês parece guardar algumas
semelhanças com a avaliação de um quadro de sociedades políticas
tributárias de um centro de poder limitado no qual ainda não existia
uma soberania e, portanto, também não existia o Estado. Contudo,
ressalve-se que é preciso ter cautela com um contexto histórico asiá-
tico distinto daquele europeu. Aproximações indevidas e eivadas
de um certo eurocentrismo que simplificariam o quadro asiático
àquela época são pontos a serem resguardados na análise concreta
deste caso e que vão muito além do escopo deste texto.
Portanto, uma primeira ressalva diz respeito a uma confu-
são conceitual. O poder soberano (simétrico e não quantificável)
é tomado como equivalente ao poder (assimétrico e, em alguns

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 25


componentes, quantificável) de várias dimensões e capacidades de
um Estado que, em certa forma, pode ser tomado como uma defini-
ção específica de hegemonia.
Tratar do descenso do poder hegemônico dos Estados Unidos
aproximando este quadro com outro no qual há uma avaliação de
ausência de soberania resume as duas dificuldades citadas. Tal apro-
ximação ou analogia revela o sintoma do ecletismo: uma aproxima-
ção vaga, superficial, sem maior especificidade conceitual e empírica
como se os dois momentos históricos fossem parte do mesmo argu-
mento e se ligassem ao mesmo conceito. O descenso estadunidense
de médio e curto prazo de algumas conjunturas é visto vagamente
como um dado permanente, de longa duração sem uma maior pro-
fundidade do argumento.
Isto se desdobra em outra dificuldade apontada por Oliveira
(1995 e 1996) quando há o diagnóstico do quadro eclético: a impos-
sibilidade de desdobrar as categorias em estratégias de investigação
empírica. Por outras palavras, se fossem soberania e poder hegemô-
nico parte do mesmo construto teorético e do mesmo argumento,
por que seriam histórica e teoricamente aproximáveis? Não há jus-
tificativa da parte de Cox quanto à aproximação destes conceitos,
diversos entre si. Além disso, a cautela histórica e categorial deman-
daria uma série de ressalvas quanto às mudanças e particularidades
de cada período no raciocínio de aproximação. Outro ponto seria
considerar o pano de fundo teórico de constância anárquica, evo-
cado por Bull, também objeto de questionamento à luz de uma con-
cepção de constante transformação da qual a perspectiva crítica de
Cox se apresentaria, em tese, mais afeita. Porém, tal ponto não é
levado em conta pelo professor canadense que prefere abraçar, neste
caso, uma argumentação eclética que combina sua teoria crítica a
uma teoria problem-solving, a saber, aquela de Hedley Bull.
Um contra-argumento a isso poderia apontar que a vagueza
na aproximação e na analogia das temporalidades de curto, médio
e longo prazo referentes à hegemonia estadunidense como um
argumento de cunho ensaístico ou uma hipótese preliminar que
Cox não desenvolveu. Ainda que se use tal benefício da dúvida, o

26 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


ponto essencial aponta para a análise de situações concretas em
sua peculiaridade e escopo. Categorias e argumentos que se apli-
cam a tudo sem levar esta condição em consideração acrescentam
muito pouco a qualquer explicação e tornam-se, na prática, uma
generalização. Mesmo que seja um argumento ensaístico ou uma
hipótese preliminar, ele não pode prescindir da especificidade con-
creta que recai sobre o escopo da análise. Portanto, o argumento
deveria recair sobre a especificidade do que Cox chama de pax
americana, que engloba a hegemonia estadunidense. Neste sentido,
algumas questões deveriam ser enfrentadas, a título de exemplifica-
ção. O que diferencia a hegemonia estadunidense das demais para
que ela seja diferenciada de argumentos problem-solving? Quais os
elementos mais importantes e de transformação histórica específica
que se relacionam com o quadro potencial de uma eventual con-
tra-hegemonia chinesa e um gradativo esvaziamento da hegemonia
de Washington? Considerando que o referencial de longa duração
de Fernand Braudel pode considerar uma quantidade de tempo,
por vezes, até muito maior do que a normalmente considerada nas
análises históricas em vista da especificidade de certos fenômenos
(SAWYER, 2015, p. 2), tal cuidado poderia ser inserido nesta refle-
xão, se o caso em tela efetivamente demandar tal tratamento preli-
minar. Neste sentido, que ponto específico da longa duração de ins-
piração braudeliana caracteriza a hegemonia norte-americana? Ou
seja, quais indícios em termos de curta, média e longa duração per-
mitiriam construir hipóteses de trabalho mais específicas de acordo
com suas particularidades de modo a combinar estes pontos com
as variantes da categoria de hegemonia? Outra pergunta essencial:
como ressignificar e justificar conceitualmente de modo a evitar o
ecletismo e a incongruência teórico-prática envolvendo os autores
que servem de referencial, bem como as categorias e seus respectivos
nexos com a base empírica em pauta?
No final do seu último livro (COX, 2013, p. 365-366) o autor
canadense traça dois cenários possíveis. A combinação destes cená-
rios não é coerente com um conjunto de respostas às perguntas do
parágrafo anterior. O teor dos dois cenários se coaduna com a sua

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 27


maneira eclética de formular combinando elementos que reputa às
teorias críticas e às teorias problem-solving. Embora Cox não men-
cione esse dualismo no final do livro, fica implícito o seu roteiro
pautado por tal característica.
O primeiro cenário remete à já aludida caracterização do rela-
tivo declínio da hegemonia norte-americana – com um possível des-
dobramento de uma ausência de hegemonia posterior. Em tal cená-
rio, poderia haver um mundo plural com vários centros de poder
comprometidos com a uma negociação constante para um modo
de vida passível de ser permanentemente ajustado enquanto um dos
papéis dentre vários envolvendo as várias potências. Neste quadro,
a sociedade civil poderia colocar pressão para subordinar os inte-
resses particulares aos interesses comuns na direção de salvar o pla-
neta e lidar adequadamente com o problema do aquecimento global
e da fragilidade da biosfera (COX, 2013, p. 365-366). Este quadro
estaria mais próximo dos referenciais coxianos de uma teoria crí-
tica. Possui os componentes de uma mudança bastante relevante no
quadro internacional na temporalidade histórica de longo prazo.
Cox reitera uma grande esperança neste cenário baseada em sua lei-
tura de Georges Sorel segundo a qual o mito social enquanto eficá-
cia de sentimentos coletivos poderosos poderia funcionar devido a
uma determinação comum entre os povos para a ação (COX, 2013,
p. 366).
O segundo cenário se situa na perspectiva problem-solving
porque retoma um argumento de um “eterno presente” no sistema
internacional que remete à confrontação entre a potência dos mares
e a potência terrestre, o principal parâmetro da filosofia da histó-
ria do geógrafo britânico Halford John Mackinder (1904 e 1919)
ou aquilo que ele denominou especificamente de “pivô geográfico
da história”, ou “coração continental”. Trata-se de uma concepção
geopolítica (no sentido estrito, enquanto sobrevalorização do deter-
minismo geográfico e espacial) que seletiva e anacronicamente teo-
riza que o pivô em questão, uma massa continental terrestre com-
preendida aproximadamente entre o norte e o centro da Eurásia,
proporcionaria o controle do restante da Eurásia e do mundo,

28 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


neutralizando permanentemente as potências marítimas. Alguns
do argumentos que justificariam isto seriam: 1) a inacessibilidade e
enclausuramento do poder controlador do coração continental pelas
águas geladas do Norte e pelos portos gelados setentrionais, condi-
cionando o detentor do poder terrestre à busca de portos quentes
nas áreas eurasianas mais afastadas; 2) a reserva estratégica de um
território vasto e rico em recursos naturais; 3) a grande facilidade
de mobilidade de tropas terrestres ao longo de extensas faixas deste
território. Esta tese jamais obteve comprovação empírica porque
o controlador da área citada nunca controlou toda a Eurásia e o
mundo, tampouco neutralizou constantemente as potências do mar.
Ademais, o determinismo geográfico desta elaboração possui um
argumento factual seletivo. A generalização da sua tese central não
encontra correspondência na história.
De forma mais pontual, o segundo cenário se valeria desses
componentes. No dizer de Cox (2013, p. 366), “uma quase inevi-
tável confrontação catastrófica” com a velha visão geopolítica de
Mackinder. A coalizão de forças distribuídas por todo o mundo lide-
radas pelos norte-americanos enquanto potência dos mares contra
a convergência das potências terrestres, China e Rússia, unidas por
uma ameaça em comum. A Rússia possui uma ameaça nos termos
de um cerco da influência estadunidense sobre a Geórgia, a Ucrânia
e as repúblicas centrais asiáticas. Por sua vez, a China precisa lidar
com a influência norte-americana sobre Taiwan e com a presença
militar estadunidense na Coreia do Sul e no Japão (COX, 2013, p.
365). O professor canadense expressa ainda um temor de que este
conflito de maior envergadura terra-mar possa ocorrer em função
de um hipotético incidente que não envolva estes Estados, como por
exemplo um eventual bombardeio israelense de um reator nuclear
do Irã. Na avaliação de Cox, a Europa ocidental poderia desempe-
nhar um papel de contenção entre os dois lados (COX, 2013, p. 366).
Cox reputa o segundo cenário como o mais provável. A força
do Pentágono e do complexo militar industrial seria o grande obs-
táculo para os Estados Unidos abandonarem “uma dominação de
espectro completo” e trilharem um caminho de abraçarem um

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 29


papel participativo no consenso de busca de um mundo plural
(COX, 2013, p. 366).
O argumento conclusivo de Cox aponta para a incerteza numa
futura ordem mundial. Neste esteio, existiriam possibilidades a
serem consideradas num escopo mais estreito, delimitado mas have-
ria a impossibilidade de prever o futuro. Isto reforçaria a importân-
cia de encarar um enforque mais eivado de pessimismo e de crítica
das relações de poder de forma a trabalhar para a concretização de
um cenário melhor (COX, 2013, p. 366).
A ressalva de Cox é válida. O dois cenários por ele assunta-
dos se entrelaçam com as temporalidades de longo, médio e curto
prazos. Nesta etapa do argumento, a grande questão seria: quais
os limites para avaliar a conjuntura de médio e curto prazo e sua
validade para a temporalidade histórica de longa duração enquanto
parâmetro para a avaliação da hegemonia estadunidense e o con-
traponto de uma eventual ausência de hegemonia e uma contra-he-
gemonia chinesa, ambas hipoteticamente futuras? De forma mais
precisa, o que seria a temporalidade de longo prazo para avaliar a
hegemonia norte-americana? Como os fatos relevantes de 2022 se
relacionam a tal discussão?
A crescente aproximação russo-chinesa, a guerra russo-ucra-
niana e as ações estadunidenses, chinesas e russas em várias frentes
seriam as formulações lapidares para a avaliação da conjuntura de
2022 em face das referências e dos conceitos que Cox mobiliza.
Conceitual e teoricamente, Cox mobiliza no final do seu livro
nos cenários por ele projetados, formulações universalistas e pas-
síveis de serem rotuladas como “liberais” (o interesse comum de
preservação do planeta) e outras que se aproximam de uma rotula-
ção “realista” e “geopolítica” (a confrontação permanente mar-terra
de potências) em termos teóricos internacionalistas. Novamente, o
dualismo crítica e problem-solving se faz presente. Respectivamente,
a transformação para a consciência prática de preservação da bios-
fera e o dado perene da história do confronto entre mar e terra que
se consubstancia na rivalidade dos Estados Unidos com a China e a
Rússia.

30 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


No tocante à preservação ambiental, os fatos parecem corro-
borar parcialmente a consciência almejada por Cox no que se refere
aos interesses comuns das civilizações. Somente uma temporalidade
de médio e longo prazo poderá proporcionar uma avaliação da con-
sistência fática nesta direção.
No que diz respeito à confrontação mar e terra, trata-se de
algo permanente numa ótica seletiva e a-histórica, na medida em
a generalização não cobre todos os fatos, além de organizá-los em
perspectiva cíclica, repetitiva. Atenas e Esparta, Cartago e Roma,
Grã-Bretanha e França, Grã-Bretanha e Alemanha, Estados Unidos
e União Soviética, Estados Unidos contra Rússia e China. Nem
todos esses exemplos se encaixam na teorização de Mackinder,
mencionada por Cox, em vista de não incluírem o coração continen-
tal. Apenas os três últimos exemplos. Ainda assim, não existe uma
confrontação permanente mar e terra na história como um todo.
Em termos da conjuntura de 2022, haveria alguns desdobramentos
pontuais. O esforço da China (que precede 2022) em se projetar para
o Mar do Sul da China aprimorando o seu poder naval, construir
esforços para neutralizar e conquistar Taiwan e sua base naval em
Djibouti seriam exemplos. A Rússia buscaria romper seu enclausu-
ramento para conquistar a Eurásia não somente se aliando à China
como também desmembrando e fazendo incentivos para tal no seu
entorno, além de expandir-se às áreas periféricas da Eurásia, bus-
cando se posicionar melhor no acesso a saídas marítimas quentes.
A secessão e reconhecimento como Estados soberanos da Abcásia e
da Ossétia do Sul (“bolsões” russos) após a guerra russo-georgiana,
o incentivo à secessão do enclave étnico-linguístico-cultural russo
da Transnístria ou Pridnistróvia na Moldávia, a anexação de outras
regiões com ascendência russa em direção às aguas quentes do Mar
Negro, como a Criméia e, posteriormente, de Donetsk e Luhansk
(Donbass), Kherson e Zaporizhzhia, subtraídas da Ucrânia pare-
cem confirmar a lógica em questão. O esforço chinês da Iniciativa
Cinturão e Rota poderia ser visto também como algo que se coa-
duna com a teorização de Mackinder na medida em que a Terra do
Meio busca infraestrutura viária e marítima para se conectar e para

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 31


se projetar nos âmbitos terrestre e marítimo sobre toda a Eurásia, a
África e a América Latina.
Todavia, alguns pontos sustentam a hipótese de que o conceito
de hegemonia se faz presente apenas formalmente na linha de argu-
mento coxiano mas não efetivamente, tampouco na conexão com
a base empírica. São eles: o universalismo, a sobredeterminação
conjuntural e geográfica, o ecletismo envolvendo alguns aspectos
de uma formulação marxista (Gramsci) e outras a-históricas (Bull,
Mackinder, Mahan), o dualismo metodológico crítica e problem-
-solving e a vagueza argumentativa. Nove anos separam o ano do
livro final de Cox e o ano de 2022. Há elementos específicos a serem
considerados, “traduzidos” na acepção gramsciana. Entretanto, o
argumento de Cox sobrevaloriza a conjuntura sem a mediação da
tradução tanto na avaliação da conjuntura quanto no manuseio da
teoria e dos referenciais por ele mobilizados. Na ótica coxiana, a
conjuntura se insere e faz parte da mesma dinâmica eterna do con-
fronto mar-terra, da associação mecânica entre uma teoria histórica
(Gramsci) e outras teorias a-históricas e de uma permanência deca-
dentista norte-americana, superficial e constantemente reiterada
desde o imediato pós-Segunda Guerra Mundial.
A hegemonia, em termos da formulação original gramsciana,
se insere num historicismo absoluto. Dito de outra forma, seus pre-
ceitos definidores gerais jamais podem ser apartados de análises
concretas específicas que lhe conforma o caráter histórico-dinâmi-
co-holista de uma noção. A hegemonia é muito mais do que um
conceito ou categoria com significado fixo ou único. Por isso, rei-
tera-se que ela é uma noção. Ela não pode ser uma categoria que
explica tudo sem remeter às especificidades da totalidade sem uma
efetiva tradução enquanto ressignificação, adequação, recepção nas
distintas particularidades histórico-sociais e espaciais para que ela
seja orgânica, rica, profunda e não mecânica.
A tradução da hegemonia fordista estadunidense poderia,
em tese, comportar uma ressignificação, uma tradução em acep-
ção gramsciana, que traria um componente aparente de decaden-
tismo que não seria suficiente para confirmar esse mesmo traço de

32 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


aparência. Isto porque o fordismo não apresenta, nas suas várias
traduções, sinais mais profundos de esgotamento. Seja por conta de
variantes e traduções nacionais históricas específicas mais conhe-
cidas, como o stakhanovismo na União Soviética e o toyotismo no
Japão, seja porque ele segue existindo com inúmeras outras adequa-
ções, preservada a diretriz central da produção e do consumo mas-
sivos. Obviamente que outras questões relativas a uma concepção
de mundo devem ser adicionadas ao argumento em termos holis-
tas. Afinal, a hegemonia remete a uma perspectiva de totalidade.
Cox parece se apegar ao elemento de legitimidade decrescente dos
Estados Unidos e aos sinais relativos de um relativo descenso eco-
nômico, enfatizando os componentes de poder e restringindo a defi-
nição da categoria em tela. Na perspectiva gramsciana, não há uma
esfera mais relevante, autônoma ou isolada. Há uma determinação
e uma interação recíproca, uma tradução, uma ressignificação entre
econômico e político, entre as estruturas e as superestruturas nos
âmbitos nacionais, bem como no que se refere às outras dimensões,
conectadas entre si organicamente e separáveis apenas do ponto de
vista metodológico, didático.
O descenso hegemônico em termos econômicos é uma questão
conjuntural e temporal de médio prazo insuficiente para cravar um
enfraquecimento mais substantivo do hegemon. Não se levanta com
frequência a estrutural dependência chinesa em relação ao capital
financeiro estadunidense em análises de tal tipo, seja para confron-
tar quem ascende economicamente e quem descende em termos
relativos. Do ponto de vista militar, a questão se inclina incontes-
tavelmente em favor dos Estados Unidos. Questões ideológicas, cul-
turais e linguísticas pesam favoravelmente também em favor dos
norte-americanos. A China não substitui ou estaria em vias de subs-
tituir o fordismo enquanto concepção de mundo que reorganizaria
as forças sociais e históricas do capitalismo. De forma diversa, em
termos gramscianos, a China efetua uma tradução, uma recepção
e ressignificação do fordismo para as suas peculiaridades enquanto
um todo. Em poucas palavras, a totalidade histórica que permeia a
avaliação da hegemonia deve considerar o conjunto das variáveis.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 33


Isto posto, como se justifica o uso de teorias que sobrevalo-
rizam a geografia e seu determinismo, desdobrando-se em termos
de um fatalismo do espaço de forma a-histórica, como aquelas de
Mackinder e Mahan? Sendo Gramsci reconhecidamente o artífice
de uma contribuição contrária aos argumentos fatalistas dentro
do marxismo, como compatibilizar tal combinação de modo não
eclético? Como fazer, tal como Gramsci na assimilação de auto-
res estranhos ao materialismo histórico, uma tradução em termos
de ressignificação para compatibilizar autores excludentes entre si
que não seja incompatível com o marxismo? Como compatibilizar
a anarquia, o equilíbrio de poder com formulações permanentes
e a-históricas com aquelas de cunho histórico e não permanentes
do marxismo de Gramsci? Se a concepção de mundo que permeia
toda construção teórica, inspirada em Gramsci, leva Cox a sustentar
que toda teoria serve a um propósito, qual o propósito de enunciar
um universalismo focado na preservação da biosfera, ainda que se
defenda um interesse comum? Qual o propósito de tal universa-
lismo e a quem ele serve, dado que não existe interesse estritamente
comum? Quem ganha e quem perde com a consecução de tal pro-
posta? Por que Cox não diferencia referenciais teóricos tão distintos
entre si e retoma argumentos que aparecem desde o imediato pós-
-Segunda Guerra Mundial no que se refere à gradativa decadência
hegemônica estadunidense, sem a devida mediação histórica do que
é relativo, conjuntural e do que é de longa duração com a pondera-
ção da envergadura específica dessa grande duração? Na sua análise
das relações de força, Gramsci alertou para ressalvas no sentido de
se diferenciar o imediato e o longevo em termos históricos.
Retoma-se o argumento da vagueza como indicativo de que
tudo faz parte do mesmo argumento, da mesma teoria, do mesmo
conceito como manifestação do ecletismo. Ecleticamente, Cox
busca combinar o que chama de teorias críticas e as teorias problem-
-solving, mas o resultado não aprofunda as bases na qual se apoiam
a historicidade da categoria de hegemonia, como a metodologia his-
tórica gramsciana da análise das relações de força busca empreen-
der, ponto que norteia a maior parte de todas as perguntas lançadas

34 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


neste texto. Neste sentido, reitera-se o que foi escrito no início do
texto: a hegemonia é sinalizada mas não é devidamente contem-
plada em termos empíricos e teóricos na sua obra e nos elementos
mais recentes do seu último livro de forma a fornecer subsídios para
a análise de uma conjuntura pontual. A análise se caracteriza pela
vagueza que repete vários pontos do conjunto da obra coxiana e que
repete outras formulações conceituais de caráter permanente no
plano internacional. A vagueza indica, no mínimo, uma dificuldade
de se conectar com a especificidade empírica. Não se desdobra de
forma específica o uso dos conceitos para explicação mais específica
da realidade concreta.
Chama-se a atenção para a enorme dificuldade de aprofundar
uma análise conjuntural ou de longa duração que justaponha cate-
gorias e componentes teóricos incompatíveis entre sem uma media-
ção, uma adequação conceitual que se desdobre numa ressignifica-
ção, numa adequação conceitual.

Considerações finais

De forma bastante inicial, buscou-se mostrar formulações


relacionadas ao longo, médio e curto prazos (as duas últimas no
que se refere a temáticas mais conjunturais) que proporcionam
esboçar uma avaliação da manutenção da hegemonia estaduni-
dense. Ao mesmo ponto, acentuou-se a dificuldade de uma avalia-
ção mais precisa que proporcione saber se questões conjunturais
possuem um escopo e alcance mais amplos para efetivamente se
desdobrar num descenso hegemônico estadunidense e num congê-
nere ascenso chinês. Foram enumeradas várias questões que foram
respondidas apenas em parte. Respondê-las no todo estaria além do
escopo deste texto.
Argumentou-se no sentido de demonstrar tanto a hipótese de
que Cox desenvolve posicionamentos do esvaziamento gradativo da
hegemonia estadunidense como também a hipótese crítica ao autor
canadense de que a incongruência teórico-empírica quanto a sua

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 35


vagueza não sustentam as bases históricas avaliadas em termos de
uma totalidade e de uma complexa combinação de elementos de
curto, médio e longo prazo nas relações moleculares, sociais e nas
relações interestatais. Estas últimas relações se constituem na ênfase
de Cox em detrimento das relações sociais no conjunto da sua obra
e, em particular, nas formulações do seu livro derradeiro, datado
de 2013 que permite, em certos aspectos, a conexão com a busca de
uma análise conjuntural de 2022.
Por fim, mas não menos importante, uma questão de alcance
teórico referente à categoria que norteia esta avaliação incipiente.
A grande maioria das teorias das relações internacionais considera
os Estados nacionais como os agentes fundamentais no sistema
internacional. Assim, a leitura preponderante do conceito de hege-
monia versa sobre as relações entre os Estados. Quando tal ênfase
não parece tão nítida, como no caso das definições do próprio Cox,
a categoria perde grande parte de sua riqueza, alcance histórico e
base calcada nas forças sociais que conectam a política interna e a
homônima internacional, enveredando por uma perspectiva dua-
lista que tende a separar as unidades de análise, e a desconsiderar
aspectos importantes das relações sociais fundamentais, as classes
e as frações de classe. Em certo sentido, a perspectiva de peculiari-
dade histórica e de ausência de repetição fica prejudicada com esta
opção metodológica dualista de leitura do conceito e não tão focada
na multidimensionalidade de suas bases, tal como Cox procede na
sua leitura de Gramsci. Tal ponto merece uma maior discussão e
aprofundamento futuros para expor as virtudes e vicissitudes de
sua tradução e ressignificação do conceito de hegemonia a partir de
Gramsci e de outros autores.
A proposição alternativa conclusiva deste texto seria o desen-
volvimento de avaliações mais aprofundadas de períodos históricos
de longa duração e de conjunturas mais específicas a partir da cate-
goria de hegemonia de Gramsci, retornando ao comunista sardo,
sem a mediação de Cox. A vagueza de Cox que reitera para longas
durações e conjunturas um mesmo dualismo metodológico poderia
ser substituída por uma articulação teórico-prática distinta.

36 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Tal articulação não passaria por uma apropriação que negue a
existência da hegemonia conforme a acepção gramsciana, como em
algumas das apropriações da categoria por Cox. O desenvolvimento
do conceito por Gramsci buscava atentar para as várias temporali-
dades históricas e dimensões da vida social como um todo, inclusive
nas possibilidades de crise de hegemonia. Assim, uma avaliação mais
holista dos processos históricos de longa duração com esta noção
pode conduzir a possibilidades criativas e promissoras de análises
e teorizações no âmbito das Relações Internacionais. Neste sentido,
pode-se ampliar o escopo analítico e teórico, excessivamente focado
nas questões políticas no âmbito internacional17. Neste caso, a histo-
ricidade específica dos distintos processos hegemônicos pode con-
duzir a inovações metodológicas que lhes sejam adequadas. Neste
diapasão, o próprio Gramsci assinalava a unidade orgânica entre o
desenvolvimento científico e a peculiaridade de cada investigação,
proporcionando também um método específico (GRAMSCI, 1977:
Q11, §15, p. 1404). Acredita-se que a utilidade da categoria grams-
ciana de hegemonia para a teoria das relações internacionais possa
se traduzir em vários caminhos nesta direção.

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40 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 2

POL ARIZ AÇ ÃO DOMÉS TIC A E


INTERVENCIONISMO GLOBAL:
OS ES TADOS UNIDOS DE
JOE BIDEN (2021/20231)

Cristina Soreanu Pecequilo2


Clarissa Nascimento Forner3

Introdução

Em Janeiro de 2021, a posse do democrata Joe Biden à frente da


presidência norte-americana parecia representar uma quebra nos
padrões unilateralistas e agressivos de Donald Trump (2017/2020)
e sua gestão republicana. Após a invasão do Capitólio no dia 06
deste mesmo mês, a democracia norte-americana demonstrava
sua resiliência diante das polarizações e fragmentações sociais ali-
mentadas pela extrema-direita, prometendo uma era de reconci-
liação interna e estabilidade externa. Simbolizada na premissa da

1 Texto finalizado em 27 de Fevereiro de 2023.


2 Professora de Relações Internacionais da UNIFESP e dos Programas de Pós-Graduação
em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP e em
Economia Política Internacional da UFRJ. Pesquisadora do NERINT/UFRGS e do CNPq.
E-mail: crispece@gmail.com
3 Professora de Relações Internacionais na Universidade São Judas Tadeu e pesquisadora do
Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) e do Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/INEU). E-mail: claris-
saforner@gmail.com

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 41


America is Back, a visão de Biden contrastava com o discurso do
Make America Great Again (MAGA).
Além disso, como uma promessa do seu discurso de posse,
Biden direcionara as prioridades estadunidenses para o âmbito
interno diante da crise econômica pós-pandemia e as transforma-
ções mundiais, fazendo referência a uma “política externa da classe
média” (THE WHITE HOUSEa, 2021). Basicamente, a formatação
da nova projeção internacional dos Estados Unidos (EUA) recupe-
raria os padrões hegemônicos cooperativos e de engajamento a seus
aliados e multilateralismo, mas sem deixar de lado as prioridades do
povo norte-americano em termos de bem-estar social. Assim, have-
ria uma indissociabilidade entre segurança estratégica, econômica
e social-cultural nas ações estadunidenses (CREBO-HEDIKER and
HEDIKER, 2022).
Todavia, o biênio 2021/2022, correspondente à primeira
metade da gestão Biden demonstra-se mais complexo e distante
desta ideia de uma política externa que seja voltada “para dentro
e para fora” simultaneamente, com foco na recuperação do país,
sua população e sua reconciliação com o mundo e entre o próprio
povo americano. O envolvimento na Guerra da Ucrânia iniciada
em Fevereiro de 2022 indica que a retórica de uma “política externa
de classe média” é suplantada pelas demandas do intervencionismo
global e a manutenção de uma intervenção decisiva dos EUA nos
negócios internacionais, buscando remodelar a ordem mundial em
transição.
Frente a este contexto, o texto aborda estes primeiros dois anos
da presidência Biden (adentrando em acontecimentos até Fevereiro
de 2023), contrastando, por meio de um balanço interno e externo
de sua agenda, suas prioridades como nação hegemônica. Para dar
conta deste debate, além desta Introdução e das Considerações
Finais, estas reflexões encontram-se divididas em mais duas partes:
a dinâmica doméstica e a internacional da gestão democrata, com
foco no envolvimento dos EUA na Guerra Rússia-Ucrânia como
estudo de caso sobre o comportamento hegemônico. Como esta-
mos diante de processos em andamento o objetivo não é esgotar

42 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


o debate, mas sim trazer provocações futuras para a compreensão
deste período breve, mas intenso das relações internacionais.

A dinâmica doméstica e internacional

Considerando a trajetória da presidência Biden, ela pode ser


dividida em duas fases: janeiro 2021 a fevereiro 2022 e março 2022
a fevereiro 2023. Temporalmente, os marcos divisórios destas fases
são a posse na Casa Branca a o início da guerra Russo-Ucraniana
e o fim do primeiro biênio da gestão democrata, estendendo-se ao
primeiro ano deste conflito4.
As ações iniciais foram representadas por Ordens Executivas
desmontando políticas controversas em pautas como meio ambiente,
direitos humanos, imigração e multilateralismo. O alvo era reafir-
mar o compromisso com regimes internacionais sobre o aqueci-
mento global e preservação ambiental, direitos sociais, com foco em
direitos de gênero e reprodutivos e de igualdade racial, e garantir o
direito de migrantes a pedidos de asilo, refúgio, acesso legal e natu-
ralização, internamente. Visava-se reconstruir a ideia de uma nação
de portas abertas, sem campos de imigrantes, crianças separadas de
seus pais e violência nas fronteiras. Estes temas foram descritos no
Interim Strategic Guidance (ISG), primeiro documento estratégico.
Outro ponto era a definição da China como maior ameaça, seguida
pela Rússia.
O que se observou foi uma participação ativa em reuniões
como as do G7 e a Conferência das Partes (COP), que se estende
até 2023. Podem ser listados: a volta dos EUA ao Acordo de Paris,
a Cúpula dos Líderes sobre o Clima e a Cúpula pela Democracia,
em 2021, e a Cúpula das Américas, em 2022. Em 2021, no G7, foi
proposto o Build Back Better World (B3W), uma versão global

4 Alguns destes temas foram abordados em PECEQUILO, 2022 e PECEQUILO e FORNER


(draft paper - em avaliação por revista). Este texto é baseado em ambas estas reflexões
desenvolvidas pelas autoras.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 43


do plano de infraestrutura e desenvolvimento interno, para a
retomada destas pautas, fortemente dominadas pela China e a
Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI). No âmbito da Organização
Mundial da Saúde (OMS), Biden propôs a distribuição gratuita e
a quebra de patentes de vacinas e medicamentos para lidar com o
COVID-19.
A realidade dos resultados é um pouco mais complexa: a fragi-
lidade da política migratória se mantém, em uma crise humanitária
sem precedentes na fronteira e nos países da América Central; não
houve avanços no B3W (G7, 2021) ou nas negociações climáticas ou
direitos humanos, prevalecendo a retórica (e não a implementação);
não existiram melhorias no acesso a medicamentos e à vacinação
para o COVID-19; sequer foram cumpridas as metas de vacinação
interna por uma mescla de negacionismo científico e posturas anti-
-governo; a Cúpula das Américas foi esvaziada e sem a presença de
líderes como os do México, com a exclusão de Cuba e Venezuela, e o
Brasil só confirmou a participação perto do evento, como resultado
de uma negociação.
No hemisfério, os EUA se percebem confrontados por três
situações de risco: a presença da China, a volta ao poder de governos
progressistas de esquerda (Bolívia, Peru, Chile, Brasil e Colômbia)
e a crise social-econômica-institucional no Brasil. O Brasil, ainda,
enfrentou uma situação limite com a tentativa de golpe em 08 de
Janeiro de 2023, uma semana após a posse de Lula em seu terceiro
mandato. Os EUA e a comunidade internacional condenaram de
forma veemente o acontecido e o Presidente Lula visitou Washington
no mês de Fevereiro 2023. Outro evento controverso foi a retirada
final da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) do
Afeganistão.
No multilateralismo, opta-se pela repactuação, a criação
de acordos paralelos, como o Acordo Quadro Indo-Pacífico, em
detrimento de fóruns como a Organização Mundial de Comércio
(OMC). A preferência recai em instituições como a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com forte domínio dos EUA.
Ocorreu a revitalização do QUAD (Índia, Austrália, Japão e EUA)

44 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


e a criação do AUKUS (Austrália, Reino Unido, EUA). O foco é na
região eurasiana e do Indo-Pacífico, buscando equilibrar interesses
geopolíticos e geoeconômicos.
Internamente, focou-se nos planos de investimentos: o de cará-
ter emergencial- American Rescue Plan, U$ 1,9 trilhão- e os de médio
e longo prazo- American Jobs Plan e o American Families Plan, cada
um com aportes previstos de cerca de U$ 2 trilhões (US CONGRESS
2021; THE WHITE HOUSEc, 2021; THE WHITE HOUSEd, 2021).
Mesmo com autoridade para implementar os planos por meio de
Ordens Executivas, Biden optou pelo consenso bipartidário no
Legislativo. Foram aprovadas a agenda emergencial e, apesar de ter
o orçamento reduzido para U$ 1,2 trilhão, o Jobs Plan na forma do
Bipartisan Infrastructure Investment and Jobs Act (THE WHITE
HOUSEe, 2021), convertendo-se na vitória mais significativa. O
Families Plan continua parado, com os auxílios para a redução da
pobreza, de saúde, educação e alimentação para famílias e crianças
mantendo-se pelo status temporário do Rescue Plan.
Apesar desta ofensiva interna parecer dominante, a invasão
da Ucrânia pela Rússia representou o início de uma nova etapa da
gestão Biden, na qual a política externa reassumiu um perfil de
intervencionismo global explícito, em detrimento à chamada polí-
tica externa da classe média. Até Fevereiro de 2022, antes do início
do conflito, as ações externas norte-americanas mantiveram-se de
pressões sobre a China e a Rússia, desenvolvendo ações múltiplas
de contenção e alertas para que estas nações não agissem de forma
agressiva. Paralelamente aliados dentro da União Europeia (UE),
como a Alemanha, e o próprio bloco sofriam pressões para que
ou rompessem seus acordos com Rússia e China, ou os revisassem
devido à agressividade destes regimes. Até o início do conflito, em
particular com relação à Rússia e as parcerias energéticas (gás e
petróleo), a maioria dos países europeus não apoiava as deman-
das norte-americanas de distanciamento e mantinha suas relações
econômicas com Moscou, apesar de um esfriamento diplomático.
Com a guerra, denominada por Putin de operação especial, esta
política de equidistância tornou-se inviável.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 45


Dentre os casos que melhor exemplificam esta dinâmica está
a relação Alemanha-Rússia e Alemanha-EUA. Antes da guerra, os
EUA pressionaram diretamente o novo governo recém-empossado
de Olaf Scholz a interromper a entrada em operação do gasoduto
Nord Stream 2, resultante de uma parceria bilateral sólida estabe-
lecida entre Moscou-Berlim no mandato da ex-Chanceler Angela
Merkel (2005/2021). Este projeto permitiria à Alemanha acessar
diretamente o gás russo, sem passar por zonas sensíveis, dentre elas
a própria Ucrânia, complementando o fornecimento existente via
Nord Stream 1. Apesar das pressões dos EUA, Scholz não interrom-
pera essa parceria em 2021, mantendo a previsão de seu funciona-
mento para 2022. Com a guerra, contudo, estes e outros laços da
Alemanha com a Rússia foram não só rompidos, como deteriorados.
O Nord Stream 2 encontra-se parado e o Nord Stream 1 sofreu um
atentado durante o conflito, até hoje não esclarecido, que interrom-
peu seu funcionamento.
Todavia, não cabe prolongar este tema, à medida que os aspec-
tos do envolvimento dos EUA na Ucrânia serão abordados na pró-
xima seção, mas apenas apontar tendências que demonstram a
ascensão do intervencionismo externo da parte norte-americana.
Em termos de grande estratégia, em 2022 isso se refletiu em dois
documentos: na prévia da Estratégia de Segurança Nacional de
Março 2022 (US DEPARTMENT OF DEFENSE, 2022) e na versão
final da Estratégia de Segurança Nacional de Outubro do mesmo
ano (THE WHITE HOUSEh, 2022). Mais uma vez, estes documen-
tos ressaltam o risco de China e Rússia. No caso da China alerta-se
para a multidimensionalidade de ameaças geradas por esta nação
que envolvem desde temas como segurança nuclear, militarização
do Mar do Sul da China (MSCh) e Taiwan, até o embate comercial
e tecnológico. Cabe, portanto, aos EUA, manterem e atualizarem
sua supremacia em todas as dimensões de poder, no que é definido
como um ecossistema de segurança confiável e moderno.
Mas que efeitos estas ações externas detiveram no campo
doméstico? Aqui é preciso indicar que, sim, todas estas opções
dos EUA possuíram impactos internos no país, associados à alta

46 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


inflação e aumento da dívida e dos gastos públicos com o incre-
mento de orçamentos no setor de defesa e ajuda direta à Ucrânia, o
que desgasta a base democrata e desvia recursos prioritários de pro-
jetos sociais e de infraestrutura. Por outro lado, a política externa
não foi o único, ou principal, fator para a perda de popularidade de
Biden e suas derrotas domésticas de 2021 a 2023.
Conforme pesquisa do Pew Research (2023a), cerca de 75% da
população dos EUA acredita a que a prioridade permanece a eco-
nomia, seguida pela redução dos custos de assistência médica 60%,
associadas a uma série de outras prioridades domésticas. A Figura
abaixo disponibilizada pelo Pew Research é majoritariamente com-
posta por temas domésticos, ou seja, associados à política externa da
classe média, e não a dinâmicas internacionais. Os tópicos interna-
cionais mais relevantes não incluem, como se percebe a Guerra da
Ucrânia, mas sim questões intermésticas (internacionais e domésti-
cas) associadas ao terrorismo, comércio, meio ambiente e imigração.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 47


Paralelamente, outro dado interessante trazido pelo Pew
Research (2022) é que mesmo com o envolvimento crescente dos
EUA na Ucrânia e pressões sobre parceiros sobre a China, quase
metade da população (47%) acredita que o país esteja mais fraco no
mundo do que em comparação a anos anteriores, 32% indicam que
a força dos EUA permanece a mesma e 19% percebem o país enfra-
quecendo (sendo que 2% não souberam ou se recusaram a respon-
der). Portanto, não só os temas domésticos possuem precedência,
como toda ação externa de ofensiva muitas vezes surge como con-
traproducente à opinião pública.
Mais especificamente sobre a Guerra da Ucrânia e os paco-
tes de ajuda militar e financeira ao país, os dados do Pew Research
(2023b) apontam para um gradual declínio do apoio ao conflito e às
opções da presidência Biden e seu envio significativo de ajuda finan-
ceira e militar ao país. A tendência apontada por estas pesquisas
de 2023 (assim como a supracitada de 2022) é também o aumento
das cisões partidárias republicanas e democratas. Enquanto elei-
tores que se identificam como democratas, ou mais próximos à
agenda deste partido, apoiam de forma ainda mais sustentada a
agenda Biden, eleitores identificados como republicanos e próxi-
mos à pauta deste partido, de teor moderado, tem-se afastado do
governo. Adicionalmente, entre as alas mais radicais de ambos os
partidos, pacifistas entre os democratas e de extrema-direita repu-
blicana, opõem-se de forma aberta à guerra, cada qual por suas
razões- pacificismo como citado no caso democrata e necessidade
de maior atenção a temas sociais- e, no campo da extrema-direita-
demanda por maior unilateralismo e investimentos internos (PEW
RESEARCH 2022, 2023a e 2023b).
Afinal, domesticamente, a magnitude do conflito russo-u-
craniano não foi suficiente para abafar as profundas e estrutu-
rais divisões internas, que se mostram transversais aos recortes
de classe, raça e gênero. Muito pelo contrário, a tendência é que
estas fraturas internas se tornem cada vez mais presentes, e impac-
tem as relações Legislativo-Executivo, ainda mais tendo em vista
a corrida presidencial de 2024. Dentre os casos que já podem ser

48 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


mencionados, de forma emblemática, em junho de 2022, uma
decisão histórica da Suprema Corte derrubou o dispositivo Roe
vs Wade de 1973, que garantia proteções ao direito feminino ao
aborto. A votação na mais alta instância jurídica do país foi acom-
panhada por inúmeras manifestações, tanto de representantes do
movimento feminista, contrários à decisão, quanto dos grupos
autoproclamados “pró-vida”, indicando que as forças do conserva-
dorismo permanecem relevantes.
Por outro lado, estas mesmas forças do conservadorismo não
conseguiram a vitória arrasadora que esperavam contra os demo-
cratas nas eleições de meio de mandato em Novembro de 2022. Parte
da recuperação democrata, inclusive, pode ser atribuída à perda
dos direitos civis associados a Roe Vs. Wade, que levaram muitos
eleitores (mesmo que não identificados plenamente com a pauta
democrata) a se preocupar com a extensão a outros temas como
ação afirmativa e direitos de gênero em geral. Com isso, os demo-
cratas perderam a maioria na Câmara, mas não foram suplantados
por uma “onda vermelha”, observando-se um resultado final de 222
republicanos e 213 democratas. No Senado, o baque republicano foi
maior, uma vez que os democratas conseguiram manter seu domí-
nio 50-50, com voto de desempate de Kamala Harris5. Entretanto,
a perda da maioria na Câmara não deve ser subestimada à medida
que passam pelo Legislativo a aprovação (ou não) de pacotes adicio-
nais de investimento interno, o aumento do teto da dívida e, princi-
palmente, o incremento de gastos com a ajuda à Ucrânia e à projeção
internacional estadunidense.

5 Na verdade, os números seriam 51 democratas e 49 republicanos, mas uma senadora de-


mocrata, Kristen Sinema, declarou-se independente.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 49


A dinâmica internacional: o estudo
de caso Rússia-Ucrânia

A crise russo-ucraniana impôs novos desafios à gestão Biden.


O conflito reafirmou a relevância da agenda externa, mas agravou
suas contradições. Por um lado, a administração Biden comprome-
tia-se a empregar a força apenas como recurso de última instância,
e a não esgotar os recursos domésticos em novas “guerras intermi-
náveis” (BIDEN, 2020). Por outro, a deflagração das hostilidades
colocou à prova as metas de recuperação da liderança internacional
estadunidense, demandando respostas em três frentes: a) a conten-
ção da Rússia (e da China, indiretamente); b) o restabelecimento
da parceria transatlântica; c) a atenuação das percepções negativas,
domésticas e internacionais, causadas pelas falhas na condução da
retirada das tropas do Afeganistão, em 2021.
O primeiro eixo já protagonizava os documentos da adminis-
tração. Com variações ocasionais, China e Rússia eram apresen-
tadas como potências de caráter autoritário, que desempenhavam
papeis cada vez mais assertivos, nos âmbitos político, econômico,
militar e tecnológico (BIDEN, 2020; BIDENa, 2021; THE WHITE
HOUSEb, 2021), demandando o aperfeiçoamento das capacidades
estadunidenses. Em se tratando da Rússia, Biden optou por um
caminho de “pragmatismo seletivo” (FREIRE, 2021) que contra-
balanceava a retórica mais agressiva, direcionada ao governo de
Vladimir Putin, com a promoção da cooperação em setores de inte-
resse, como a não-proliferação.
Inicialmente, foi acordada a extensão, até 2026, do Novo
START (Strategic Arms Reduction Treaty), negociado durante a Era
Obama (2009-2017) (BIDEN, 2021a). Entretanto, a postura crítica
foi conservada nas menções à questão cibernética e nas acusações
sobre a interferência russa nas eleições norte-americanas – que
reforçavam a construção da imagem da Rússia como potência “dis-
ruptiva” e antidemocrática (BIDEN, 2020). Em Fevereiro de 2023,
um ano após o início da Guerra e a constante ajuda dos EUA, OTAN
e UE à Ucrânia, foi a vez de Putin anunciar sua saída do tratado

50 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


unilateralmente. A temática dos direitos humanos se apresentava
como sensível, em decorrência da morte por envenenamento de
Alexei Navalny, opositor político de Putin, responsável pela divul-
gação de denúncias de corrupção.
Embora se mostrasse aberto ao diálogo, Biden procurou se
distanciar da condução trumpista da relação bilateral, que, sob sua
avaliação, era permeada pela permissividade perante as agressões
russas (BIDENa, 2021). Neste quesito, a Ucrânia e a proposta de rea-
tivação da OTAN eram pontos de choque. Na visão presidencial,
a OTAN, também comprometida durante o governo Trump, era
fundamental à segurança nacional e um “baluarte do ideal liberal
democrático” (BIDEN, 2020). O presidente não ignorava os pro-
pósitos defensivos e direcionados à contenção russa da aliança: “O
Kremlin teme uma OTAN forte, a mais efetiva aliança político-mi-
litar da história moderna. Para conter a agressão russa, temos que
manter as capacidades militares da aliança preparadas (...). (BIDEN,
2020, tradução nossa).
Em junho de 2021, a administração reafirmou tais princípios,
durante a realização da Cúpula da OTAN, em Bruxelas. A pauta
da Ucrânia, que já vinha sendo listada entre os aspectos críticos da
relação com a Rússia, foi retomada no comunicado oficial do encon-
tro, no qual as lideranças da organização condenavam a manuten-
ção de tropas russas na Ucrânia, Geórgia e Moldávia, e defendiam o
direito soberano das nações à escolha, quanto ao ingresso na aliança
(NORTH ATLANTIC COUNCIL, 2021). Apesar das tensões cres-
centes, no mesmo mês, os governos Biden e Putin anunciaram o
estabelecimento do Strategic Stability Dialogue, voltado ao controle
de armamentos (THE WHITE HOUSEf, 2021).
Em agosto, Biden declarou o encerramento das operações mili-
tares no Afeganistão. A retirada foi permeada por falhas táticas e
estratégicas, além de evidenciar as fissuras entre as alas civis e mili-
tares. Como parte da justificativa da retirada, o presidente afirmou
que competidores estratégicos, como China e Rússia, se beneficia-
riam se o país continuasse a canalizar recursos e atenção para o ter-
ritório afegão (BIDENb, 2021). A repercussão negativa das imagens

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 51


de civis desamparados tentando deixar o país e a retomada do poder
pelo Talibã, contribuíram para a queda da popularidade doméstica
da gestão democrata e o agravamento da percepção externa sobre
a perda da projeção estadunidense, diante do ativismo de China e
Rússia em diálogos sobre o futuro da região.
Seguiu-se um agravamento das tensões. No mês de setembro,
Biden e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, anunciaram
o relançamento da parceria estratégica, envolvendo a intensifica-
ção da cooperação em defesa e o envio de um montante de US$ 60
milhões em assistência de segurança para a Ucrânia (THE WHITE
HOUSEg, 2021). Em dezembro, intensificaram-se as denúncias esta-
dunidenses sobre o aumento da movimentação de tropas russas na
fronteira com a Ucrânia, as quais entraram em ritmo de escalada,
até a invasão, em fevereiro de 2022.
Desde sua deflagração, a atuação da administração Biden em
relação ao conflito pode ser resumida em três dimensões: a) a des-
legitimação retórica das ações russas em território ucraniano, como
um ataque “não provocado e injustificado” (BIDEN, 2022); b) a pro-
moção da coalizão ocidental, lastreada na revitalização do papel da
OTAN; c) a aplicação de medidas indiretas, como sanções econômi-
cas unilaterais e multilaterais, e o envio de pacotes de ajuda huma-
nitária e de assistência em segurança, aliadas à reafirmação do não
envolvimento do país pela via militar direta. Todos os três conjun-
tos de ações possuem fundamentos bidimensionais, com objetivos
domésticos e externos.
O primeiro expediente, bastante presente no histórico da polí-
tica externa estadunidense, envolve o recurso à polarização entre as
ações russas – retratadas como frutos das aspirações expansionistas
ilegítimas de lideranças autoritárias – e a defesa do “mundo livre”
e dos princípios da ordem liberal internacional, representados pela
Ucrânia e pela aliança ocidental. Esta última se materializa na rea-
firmação da relevância da OTAN, após um longo período de ques-
tionamentos e fragmentações, que se acentuavam desde a década
de 1990. Além da ampliação dos contingentes de efetivos nos terri-
tórios dos países membros que margeiam a Ucrânia, a organização

52 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


se prepara para sua “expansão nórdica”, que, se concretizada, levará
à adesão de Finlândia e Suécia, como membros plenos, alterando a
arquitetura de segurança regional europeia e ampliando os pontos
de estrangulamento com a Rússia.
Como evidenciado no discurso de State of the Union de março
de 2022 (e reafirmado em 2023), a mobilização dos valores liberais
como mecanismo de projeção de um “Ocidente” unificado também
desempenha a função de resgate da unidade no âmbito doméstico,
marcado pela crescente polarização política e social:
Hoje nos encontramos como Democratas, Republicanos e
Independentes, mas mais importante: como americanos com um
dever uns para com os outros (...) e uma determinação inabalável
de que a liberdade sempre triunfará sobre a tirania. (BIDEN, 2022,
tradução nossa).
A opção pela via das sanções econômicas e envio de assistên-
cia humanitária e militar pode ser interpretada, por um lado, como
parte dos cálculos estratégicos de não escalada do conflito e, por
outro, como um movimento de redução de custos da retomada do
padrão do intervencionismo global, perante a audiência doméstica.
Os pacotes de sanções implementados unilateralmente e via G7,
envolvem inúmeros setores da economia russa e já suscitam pro-
jeções de um retraimento de 9%, superior ao período da pandemia
de Covid-19. Ainda assim, subsistem dúvidas, sofre a efetividade
das sanções como vetor de mudança da postura russa na guerra
(EICHENGREEN, 2022).
No campo militar, Biden vale-se das prerrogativas presiden-
ciais para autorizar o aumento dos montantes submetidos ao fundo
Ukraine Security Assistance Initiative, existente desde 2014, e ao
Foreign Military Financing (FMF), direcionado ao financiamento de
transferências de armamentos para países que fazem fronteira com
a Ucrânia. Entre 2014 e junho de 2022, foram autorizados mais de
US$8,7 bilhões (CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE, 2022).
O país ainda ampliou os contingentes de tropas estacionadas no
Leste Europeu, podendo-se refletir acerca dos impactos e limites de
tais medidas.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 53


No segundo semestre de 2022 e início de 2023, pacotes adicio-
nais de ajuda à Ucrânia no montante de mais de US$ 2 bilhões foram
aprovados, assim como o envio de equipamentos militares com
capacidade ofensiva modernos para a Ucrânia. Dentre os equipa-
mentos aprovados para envio e enviados (associados ao treinamento
de tropas ucranianas para sua operacionalização) destacam-se os
veículos blindados Abrams (EUA) e Leopard (Alemanha). Somando
todos os pacotes de ajuda, o valor já chega quase US$ 80 bilhões.
Estes eventos fizeram com que o caráter de guerra por procuração
do conflito6 ficasse cada vez mais evidente, assim como a dualidade
entre escalada-desgaste que o conflito atravessa.
Adicionalmente, manteve-se a ofensiva retórico-simbólica
anti-Putin, associada a demonstração abertas de apoio à Ucrânia
e confiança na unidade das forças contra Moscou, vide as visitas
relâmpago de Zelensky à capital dos EUA Washington em Dezembro
de 2022 e de Joe Biden à Ucrânia na semana do aniversário da
guerra. Para os EUA, a Guerra Rússia-Ucrânia surge, assim, como
um fator central de sua política externa, cada vez menos associada à
ideia da política externa da classe média e muito mais à reafirmação
hegemônica em um mundo em transição. A história mostra que, a
despeito de suas complementariedades, há dinâmicas próprias nos
tabuleiros doméstico e internacional, que não necessariamente se
sobrepõem ou se substituem.

6 O termo guerra por procuração, no original inglês proxy war, origina-se na Guerra Fria
(1947/1989), em particular na década de 1970/1980 quando na impossibilidade do enfren-
tamento direto entre as superpotências devido ao risco da destruição mútua assegurada
pelo poder nuclear, EUA e União Soviética (URSS). Neste cenário, uma das superpotências
apoiava um terceiro país, ou vários Estados pivô, em uma determinada região ou situação,
visando prejudicar seu adversário indiretamente. O expediente foi usado em conflitos as-
simétricos como EUA-Vietnã (1968/1973), URSS-Afeganistão (1979/1989) somente para
citar alguns, e no atual contexto é o cenário triangular Ucrânia-Rússia-EUA/UE/OTAN
(entendendo-se este eixo ocidental como um bloco único anti-Rússia).

54 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Considerações finais

Aventar uma política externa para a classe média tinha como


fundamento o reequilíbrio entre as agendas doméstica e externa,
mediante a revalorização da dimensão socioeconômica e a reca-
libração dos instrumentos da política exterior estadunidense. A
deflagração da crise russo-ucraniana, em 2022, impôs desafios a
estes objetivos, ao reavivar a dinâmica da competição geopolítica
entre grandes potências, bem como a importância dos elementos
estratégicos tradicionais. A atuação da administração democrata
no conflito tem sido marcada pela tentativa de resgate aos con-
sensos domésticos e externos que alicerçaram a consolidação da
ordem liberal internacional, desde o pós-1945. Todavia, a realidade
contemporânea, em ambas as esferas, se mostra mais complexa e
fragmentada.
Do ponto de vista externo, a promoção da coalizão ocidental
esbarra nas limitações do futuro incerto acerca da efetividade das
sanções e na dificuldade de sustentação da coesão transatlântica,
diante da continuidade da dependência europeia (particularmente
no setor energético) em relação à Rússia e da perspectiva de agrava-
mento da crise econômica global. Da mesma forma, a multiplicação
das sanções amplifica a possibilidade de maior aproximação sino-
-russa, alargando os espaços de contestação à hegemonia norte-a-
mericana. Além disso, essa contestação, senão alternativa à hegemo-
nia, revela-se na oposição ao conflito vinda não só da China, mas de
outras nações do Sul Global como a Índia, a África do Sul, e Estados
da África e do Oriente Médio. Embora pouco presente na narra-
tiva ocidental, esta rejeição às práticas dos EUA/OTAN/UE existe, e
congrega uma grande parcela da economia e da população mundial
que procura nova voz no multilateralismo e na ordem internacional.
Da Guerra Fria, ao pós-Guerra Fria, em plena segunda década do
século XXI, o mundo vive, ainda, à sombra da guerra.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 55


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56 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


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AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 57


CAPÍTULO 3

A INICIATIVA CINTUR ÃO E
ROTA NA AMÉRIC A L ATINA: OS
C A SOS DE BR A SIL, PANAMÁ,
CHILE E EQUADOR1

Ana Tereza Lopes Marra de Sousa2


Giorgio Romano Schutte3
Rafael Almeida Ferreira Abrão4
Valéria Lopes Ribeiro5

O lançamento do projeto One Belt, One Road em 2013 causou


preocupação na América Latina. Era fato que o subcontinente não
tinha qualquer relação com a antiga Rota da Seda, e a dúvida era se
isso poderia significar uma diminuição da importância que a China

1 O presente capítulo é uma versão atualizada e em português do texto anteriormente apre-


sentado com o título ‘China in Latin America: to BRI or not to BRI’ no livro ‘The Palgrave
Handbook of Globalization with Chinese Characteristics: The Case of the Belt and Road
Initiative’ (2023), organizado por Paulo Afonso B. Duarte, Francisco José B. S. Leandro,
Enrique Martínez Galán.
2 Universidade Federal do ABC. E-mail: ana.tereza@ufabc.edu.br. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-7580-4797.
3 Universidade Federal do ABC. E-mail: giorgio.romano@ufabc.edu.br. ORCID: https://
orcid.org/0000-0002-5225-469X.
4 Universidade Federal do ABC. E-mail: rafael.abrao@ufabc.edu.br. ORCID: https://orcid.
org/0000-0001-9405-0719.
5 Universidade Federal do ABC. E-mail: valeria.ribeiro@ufabc.edu.br. ORCID: https://or-
cid.org/0000-0003-3885-4805.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 59


vinha dando à América Latina em prol da priorização de investi-
mentos na Eurásia e na África. Logo a iniciativa ampliou seu escopo
e largou a referência a “one” belt, sendo rebatizada, em março de
2015, como Belt and Road Initiative (BRI), ou Iniciativa Cinturão e
Rota, em português. A BRI ampliou seus horizontes não somente
do ponto de vista geográfico, abrangendo potencialmente qualquer
país interessado em assinar algum Memorando de Entendimento.
Ela também abriu o leque de atividades, embora mantendo o foco
principal na infraestrutura física, para poder incluir investimen-
tos em outros setores, desde que com envolvimento de empresas e
financiamentos chineses.
Nos anos seguintes, a BRI começou a se confundir cada vez
mais com a própria expansão global do capital chinês e a política
externa de Beijing (ROLLAND, 2019). Projetos preexistentes, até
aqueles já executados, começaram a ser computados como parte da
BRI (JONES & ZENG, 2019). Nesse contexto, não surpreende que
agora a própria diplomacia chinesa tenha começado a procurar a
integração formal de seus parceiros latino-americanos.
Até o final de 2021, 20 países tinham aderido, mas grandes
economias da região, em particular Brasil, Argentina e México, fica-
ram de fora, embora continuem sendo prioridade para a expansão
chinesa (DREYER, 2019). Isso mudou com a adesão da Argentina,
em fevereiro 2022, que foi seguida de uma sugestão da China para
que a Argentina se juntasse também ao BRICS. Curiosamente, em
seguida, a Argentina foi prestigiada pelo Ocidente, sendo ela – e não
o Brasil – a convidada especial da América Latina para a Cúpula do
G7 na Alemanha, em junho do mesmo ano.
De todo modo, como será explorado neste capítulo, a grande
maioria dos países latino-americanos está incorporada na lógica do
BRI, com ou sem adesão formal. Países como o Brasil, que não ade-
riram à iniciativa, continuaram sendo prioridade para a expansão
chinesa (DREYER, 2019).
Essa lógica será apresentada a partir de três seções. Na pri-
meira, será feita uma análise geral da crescente presença econômica
chinesa na América Latina. A China se tornou no século XXI o

60 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


primeiro ou segundo parceiro comercial de grande parte dos países
da região e, na década de 2010, houve um aumento grande de inves-
timentos externos diretos e financiamentos. Isso gerou oportunida-
des para os países da América Latina, apesar de assimetrias e com-
plexidade das relações.
Na segunda seção, discutimos a relação política que vem se
estabelecendo entre a China e os países latino-americanos. Nesse
caso, o quadro é diferenciado. Da parte da China, trabalha-se com
metas e objetivos de longo prazo com interesse em expandir sua
influência como ator político. Entretanto, dificuldades de empla-
car um mecanismo regional de articulação entre América Latina,
Caribe e a República Popular da China (RPC); o potencial de dis-
puta com os EUA; e a questão de Taiwan (considerando que nove
dos 15 países que mantêm relações diplomáticas com a ilha estão na
região) apresentaram-se como especificidades a serem consideradas
na relação China-América Latina.
Na terceira seção, serão apresentados quatro estudos de caso:
Brasil, Chile, Panamá e Equador. Sendo os últimos três membros
do BRI, e o Panamá em particular, um dos países que trocou recen-
temente o reconhecimento diplomático de Taiwan pela República
Popular da China. O Chile faz parte da Aliança para o Pacífico e da
Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), enquanto o Equador,
na época em que o país começou a receber os investimentos e finan-
ciamentos chineses, era membro da Aliança Bolivariana para os
Povos da Nossa América (Alba). O Brasil, embora não tenha aderido
à BRI, é o país com maior presença chinesa e foi o primeiro país
no mundo a estabelecer uma Parceria Estratégica com a China em
1993. Dessa forma, os quatro países representam um recorte repre-
sentativo da diversidade latino-americana.

Expansão econômica chinesa na América Latina

A presença chinesa na América Latina se dá em quatro fren-


tes que se ampliaram em ritmos diferentes e estão se reforçando:

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 61


comércio, financiamentos, investimento externo direito (IED) e
projetos de infraestrutura. Esse mix é composto de forma diferente
em cada país da região. Assim, por exemplo, a Venezuela é a pri-
meira em valores de estoque de financiamentos dos bancos e fundos
estatais chineses, enquanto o Brasil é o que mais atrai IED.
As relações econômicas entre a China e a América Latina
aprofundaram-se fortemente na década de 2010. Como mostra o
Gráfico 1, a participação da China nas exportações da região saiu de
pouco mais de 1% em 1995 para 12% do total exportado em 2019. No
mesmo ano, as importações também cresceram, correspondendo a
18% do total importado. Com isso, a corrente de comércio alcançou
US$ 324 bilhões, com um déficit comercial regional com a China de
US$ 68 bilhões, não obstante o expressivo superávit do Brasil (US$
20 bilhões).

Gráfico 1 – América Latina – Exportações e Importações


com a China (1995-2019) em milhões de dólares

Fonte: UNCTADSTAT, 2020. Elaboração própria.

A China estabeleceu acordos de livre-comércio com Chile,


Costa Rica e Peru, além de estar em processo de negociação com
o Panamá e estudar a viabilidade de um acordo com a Colômbia
(CASAS, FREITAS & BASCUÑÁN, 2020). Além disso, pode-se
identificar um conjunto de empresas estatais, integradas à BRI,
que está realizando investimentos com apoio de bancos estatais
chineses, seja por meio de participação em concessões de serviços

62 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


públicos, seja como IED. Com isso, a China está dando uma contri-
buição expressiva à expansão da infraestrutura na região e, junto a
isso, à exploração de recursos naturais.
Entre 2005 e 2019, foram 86 projetos de infraestrutura reali-
zados por empresas chinesas na América Latina, que somam um
total de US$ 76,8 bilhões. A maior parte desses projetos é de energia
(hidrelétricas, eólicos) e infraestrutura (portos, telecomunicações,
hospitais e tratamento de água) (PETERS, 2020).
Com relação aos IED classificados pela China como integra-
dos à BRI na América Latina, entre 2013 e 2019 as operações na
América do Sul e América Central somam um total de US$ 54,7
bilhões. Desse total, 39,9% são no setor de energia e 35,8% no setor
de metais, sendo os outros 13% no setor de transporte. O maior des-
taque é o Peru, sozinho responsável por 36,41% do total de IED via
BRI na América Latina; seguido pelo Chile, com 16,47% do total
e pela Venezuela com 14,86% (CHINA GLOBAL INVESTMENT
TRACKER, 2020).
O financiamento desses projetos ficou a cargo principalmente
do China Development Bank (CDB) e do Exim Bank, os mesmos que
estão à frente dos financiamentos globais dos projetos da BRI. Na
América Latina, eles foram responsáveis por quase US$ 140 bilhões
de empréstimos no período entre 2005 e 2020. Esse volume foi supe-
rior às carteiras do Banco Mundial e do Banco InterAmericano para
o Desenvolvimento (BID) (GALLAGHER & MYERS, 2020).
No caso de economias menores, em particular a Bolívia e o
Equador, o impacto desses projetos é muito expressivo. Além do
petróleo, surgiu também um forte interesse em projetos relaciona-
dos ao lítio, matéria prima estratégica para a eletrificação do trans-
porte individual, sendo que cerca de 75% das reservas do material
estariam na América do Sul (PIRES, 2020).
Uma característica das operações chinesas em infraestrutura
é a montagem de fundos específicos. No caso da América Latina,
estabeleceu-se o CLAI Fund (China Latin American Invest­ment Fund
for Industrial Cooperation) e o CLAC Fund (China Latin American
Cooperation Fund), com participações do China Development Bank

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 63


(CDB), ChinaExim e da State Ad­ministration of Foreign Exchange
(SAFE), sendo o CLAI com estrutura e apoio técnico e adminis-
trativo mais próximo ao CDB e o CLAC ao ChinaExim. Esses três
fundos foram criados no período entre 2014 e 2015, com uma capa-
cidade de financiamento anunciada de US$ 40 – US$ 55 bilhões,
sobretudo, mas não exclusivamente, em projetos de infraestrutura.
O CLAI Fund foi aprovado pelo Conselho de Estado da China
em junho de 2015, no valor de USD 10 bilhões, mas os investimen-
tos concretos ficaram abaixo do esperado e foram realiza­dos sempre
para apoiar empresas chinesas, a exemplo do apoio para a aquisição
de hidroelétrica no Paraná e dos ativos da Duke Energy no Brasil
pela China Three Gorges (CTG).
Além dos três fundos regionais, foi criado um específico para
o Brasil, lançado em junho de 2017: o China-Brazil Cooperation Fund
for the Expansion of Production Capacity, com capacidade de US$ 20
bilhões. Embora anunciado em várias ocasiões, este Fundo nunca
foi operacionalizado.
Cabe mencionar o envolvimento da região nas inciativas chine-
sas de montar novos bancos multilaterais, voltadas para o financia-
mento de infraestrutura nos países em desenvolvimento. Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Peru, Uruguai e Venezuela são non-
-regional prospective member do Asian Infrastructure Investment
Bank (AIIB), sendo que o Brasil participa também do Novo Banco
de Desenvolvimento (NBD).
Essa complexa teia de mecanismos de investimento e finan-
ciamento nos âmbitos bilateral, regional e multilateral suscitou
preocupação por parte dos EUA: “Esse financiamento enfraqueceu
a capacidade dos Estados Unidos e das organizações multilaterais
de influenciar o comportamento dos governos da América Latina e
do Caribe” (US-CHINA ECONOMIC AND SECURITY REVIEW
COMISSION, 2018, p. 3).
Para além de dificuldades para operacionalizar os projetos na
quantidade e velocidade desejada por ambas as partes, havia uma
vantagem no fato de que a própria região está desde 2000 tentando
se organizar para gerar uma carteira de projetos de infraestrutura.

64 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Originalmente, o financiamento dos projetos ficaria a cargo de
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco de
Desenvolvimento da América Latina (CAF) e Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Vários desses pro-
jetos que não saíram do papel ou que não foram complementados
entraram nas negociações com os bancos e fundos chineses (PIRES,
2020).
A China estabeleceu acordos de investimento com 12 países
na região (CEPAL, 2019). Mais de 50% do estoque de investimentos
chineses na LAC foi dirigido para o setor de energia (petróleo, gás
e eletricidade), com mineração (30%) em segundo lugar (PETERS,
2019). O peso de energia se deve às operações no Brasil. A América
Latina sem o Brasil mostra a mineração em primeiro lugar. Ganhou
destaque também a atuação de empresas de telecomunicação
(Huawei e ZTE) na ampliação e modernização da telecomunicação,
o que chamou a atenção dos EUA (SOUSA et al., 2021).
A China gerou grandes expectativas diante da fragilidade
financeira dos países da região e os limites das estruturas de finan-
ciamento existentes. E ainda há de se considerar o afastamento dos
tradicionais bancos de financiamento, BID e Banco Mundial, de
grandes projetos de infraestrutura. Bernal-Meza (2016) contestou,
porém, a tese de uma relação ganha-ganha (win-win) - muitas vezes
alegada por representantes dos governos e de empresas chinesas ao
caracterizar a relação China-América Latina. Para o autor, ela é van-
tajosa para todos, mas seria mais para uns do que para outros.
Na segunda metade da década de 2010 o fluxo de investimen-
tos e financiamentos se estabilizaram. Para Peters (2019), as empre-
sas chinesas entraram em período de consolidação das suas opera-
ções e prevê um aumento de investimentos chineses nos setores de
serviços e, em menor escala, na manufatura. Além disso, a tendên-
cia seria a de um aumento da participação de empresas privadas.
Em seguida, a pandemia provocou uma diminuição generalizada
dos investimentos e financiamentos com reflexos também para
América Latina, mas mantém-se a perspectiva de ampliação mais
focada da presença chinesa na região pós-pandemia.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 65


A diplomacia chinesa e as relações
político-institucionais

A preferência chinesa pela construção de espaços multilaterais


em que as principais regras do jogo são bilaterais se aplicou também
à América Latina. A China apostou na CELAC, formalizada em
dezembro 2011, como o espaço de articulação com os 33 países da
América Latina e como mecanismo de articulação com a região. Foi
durante a visita de Xi Jinping à região, em 2014, que se aprovou a
Cúpula China-CELAC e criou-se o Fórum China-Celac (FCC), com
a fórmula 1+3+6 Cooperation Framework. No caso, “1” se refere ao
China-Celac Joint Plan of Action for Cooperation on Priority Areas.
“3” são os direcionamentos da cooperação: comércio, investimento e
finanças. E “6”, as áreas prioritárias: energia e recursos naturais, tec-
nologias da informação (TI), construção de infraestrutura, agricul-
tura, manufatura, inovação científica e tecnológica.
Em 2009, o Conselho de Estado publicou o China’s Policy Paper
on Latin America and the Caribbean, no qual se sugeriu uma coopera-
ção Sul-Sul: “O desenvolvimento da China não pode ser possível sem
o desenvolvimento de outros países em desenvolvimento, incluindo
a América Latina e o Caribe” (LAC POLICY PAPER, 2009). Ao lado
do FCC, o policy paper colocou os marcos institucionais para o apro-
fundamento da cooperação visando reproduzir a experiência de ins-
titucionalidade que a China tinha com a África (VADELL, 2018).
A primeira reunião ministerial do FCC ocorreu em Beijing em
2015. Contudo, a diplomacia brasileira manteve a preferência por
negociar com a China no âmbito bilateral, diminuindo a importân-
cia do FCC enquanto instrumento de articulação regional, e rejei-
tando qualquer formulação na declaração da cúpula que afirmasse a
adesão da região a iniciativa.
Desse modo, tem sido por meio de negociações bilaterais que
a China tem buscado a adesão da América Latina à BRI. Até o final
de 2020, 20 países aderiram, mas grandes economias da região, em
particular Brasil e México, ficaram de fora.

66 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Entretanto, a China desenvolveu outras formas de estrutu-
rar sua cooperação na esfera regional. A China se filiou a organi-
zações existentes, como o Caribbean Development Bank e do BID.
O país ganhou status de observador na Organização de Estados
Americanos (OEA), na Associação Latino-americana de Integração,
no Parlamento Latino-americano e na Aliança do Pacífico
(JAUREGUI, 2020, ABRÃO, 2022). Na esfera diplomática, houve o
estabelecimento de parcerias estratégias novas (Costa Rica, Uruguai
e Bolívia) e um “upgrade” de sete parcerias para o status de parceria
estratégica. No caso do Brasil, elevou-se o status para parceria estra-
tégica global. Essas nomenclaturas têm um significado nebuloso
para os países da região, mas fazem parte da atuação chinesa. Outra
característica da estratégia de ampliação de influência do país é o
valor dado aos encontros de alto escalão, com várias visitas à região
do presidente Xi Jinping (2013, 2014, 2016, 2018).
Houve um entendimento da importância em aceitar as inicia-
tivas políticas chinesas para poder aproveitar as oportunidades eco-
nômicas. Para os governos nacionalistas de orientação de esquerda,
havia também um interesse na aproximação com a China para mos-
trar maior autonomia com relação aos EUA, algo que permaneceu
no caso da Venezuela.
O desafio era sobretudo entender esse novo ator que ganhou
importância em um espaço curto de tempo. A CEPAL começou
a fornecer análises sobre as estratégias da América Latina para a
China com uma série de publicações e acompanhamento de dados
sobre investimentos, comércio e financiamentos. Nesses documen-
tos, aparecem a preocupação com a assimetria comercial e o apro-
fundamento da posição da região como fornecedora de matérias
primas.
No âmbito de cada país, havia também uma dificuldade de
coordenação para acompanhar as inciativas dos agentes chineses. A
vontade de aprofundar as oportunidades fez governo subnacionais
estabelecerem contatos diretos, o que aconteceu também com vários
ministérios. Ainda são poucos os documentos nacionais para subsi-
diar os governos sobre a relação de médio-longo prazo com a China

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 67


No caso da BRI, as economias menores entenderam a parti-
cipação formal como uma janela de oportunidade que poderia dar
acesso a novos fundos e atrair investimentos. De qualquer forma,
com ou sem um Memorando de Entendimento, todos os países lati-
no-americanas têm grande expectativas com relação ao potencial
dos investimentos em infraestrutura em ferrovias, portos, estradas,
aeroportos, linhas de ultra alta voltagem, cabos marítimos e redes
de comunicação, em particular 5G (PIRES, 2020).
A região da América Latina é considerada, porém, uma área de
influência dos EUA, o famoso backyard. A expansão da China, ainda
mais sob a BRI, tende a fomentar uma competição entre a China
e os EUA na região pelo simples fato de que, numa visão de jogo
de soma zero, o aumento da influência chinesa geraria automatica-
mente uma redução da hegemonia dos EUA (FLINT & ZHU, 2018).
No início, a China teve cuidado para não ser percebida como
um rival por parte dos EUA. Em 2006, durante as presidências de
George W. Bush e Hu Jintao, instalou-se um diálogo bilateral sobre
América Latina, sem a presença da própria região. No governo
Obama, foi dada continuidade a esses encontros, embora mais espo-
rádicos. Não há notícias de reuniões semelhantes durante o governo
Trump.
Baiyi (2016) analisou o que considerou um avanço da rela-
ção China-América Latina no contexto de um suposto declínio da
influência dos EUA e da UE na região. Observou também que a
ampliação da presença chinesa ainda não foi alvo de ataques dos
países ocidentais, mas alertou que “quando a influência geral da
China ultrapassar um determinado ponto crítico de tolerância ocidental,
é possível que a América Latina se torne uma nova fronteira de queda
de braço de geopolítica entre potências” (BAIYI, 2016, p. 19). Até lá,
ele acredita haver um “período de oportunidades estratégicas” (BAIYI,
2016, p. 19).
Durante o governo Trump, com a continuação do avanço da
presença chinesa na região, as coisas começaram a mudar. No rela-
tório da US-China Economic and Security Review Comission (2018,
p. 28) afirmou-se claramente que “China está corroendo o domínio

68 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


econômico dos EUA na região”. Enquanto o Secretário de Estado,
John Kerry, tinha declarado em 2013 o fim da Doutrina Monroe,
seu sucessor, Rex Tillerson, a revigorou no início de 2018, com uma
clara referência à expansão chinesa. Embora o tom da equipe do
presidente Joe Biden possa ser diferente, a preocupação com a pre-
sença chinesa veio para ficar. E a presença estadunidense na LAC
contribui para aumentar a cautela por parte das grandes economias
na região com relação à BRI.
O primeiro grande conflito diplomático entre China e EUA na
América Latina se deu em 2019, em torno do BID. Conforme mencio-
nado, a RPC se tornou membro não regional em 2009 visando inte-
grar suas estratégias de financiamento para infraestrutura com as
do banco regional. A diplomacia chinesa investiu muito para come-
morar seus dez anos de participação e os 50 anos da existência do
BID na China, em Chengdu. Mas os EUA insistiram que a Venezuela
deveria ser representada na diretoria por Ricardo Hausmann, minis-
tro de economia indicado por Juan Guaidó. Diante desse impasse,
o evento foi cancelado 48 horas antes da Assembleia Geral começar.
A América Latina é também a região com maior número de
países que mantiveram relações diplomáticas com Taiwan6. Entre
2000 e 2008, durante os primeiros governos do Partido Democrático
Progressista (PDP) em Taiwan, houve uma ofensiva por parte da
diplomacia chinesa que resultou em troca de reconhecimento por
parte de Costa Rica, Granada e Dominica. Com a chegada do novo
governo do PDP, em 2016, houve outra ofensiva, e mais três países
mudaram de posição: Panamá (2017), República Dominicana e El
Salvador (2018)7. Neste esforço, a RPC sinalizou a disponibilização
de recursos. No caso da República Dominicana, US$ 3,1 bilhões em

6 Do total de 15 países, 9 são da região: Belize, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua,


Paraguai, São Cristóvão e Neves, Santa Lucia, São Vicente e Granadinas.
7 Observa-se o fato curioso que os EUA, que eles mesmos não mantem formalmente rela-
ções diplomáticas com Taiwan, chamaram os Embaixadores dos três países para consulta
em protesto.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 69


investimentos e empréstimos. Chama particularmente a atenção o
movimento do Panamá, que será discutido na próxima seção.

Estudos de caso

Brasil

As relações Brasil-China remontam à década de 1970, no con-


texto da política externa pragmática do governo brasileiro. Embora
pouco tenha avançado na área econômica, houve na década 1980
um intercâmbio no setor hidroelétrico porque a China visava apren-
der com a experiência brasileira para a construção de Three Gorges.
Em 1988, estabeleceu-se uma parceria espacial que iria passar por
altos e baixos até ganhar novamente destaque a partir de meados da
década de 2000 (BARBOSA, 2018).
Chama a atenção o fato de o Brasil ter sido o primeiro país no
mundo a assinar um Acordo de Parceria Estratégica com a China,
em 1993. A partir de meados da década de 2000, as duas nações
montaram um arcabouço institucional que o Brasil não possui com
qualquer outro parceiro fora do Mercosul (ROSITO, 2020). Em 2004,
criou-se a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação
e Cooperação (Cosban), encabeçada pelos vice-presidentes dos dois
Estados, para identificar as oportunidades de parcerias. Houve uma
forte ampliação das relações econômicas, sobretudo no contexto da
superação da crise global de 2008, e em 2012, o Brasil e a China eleva-
ram a sua Parceria Estratégica ao nível de Parceria Estraté­gica Global.
Considerando o conjunto de parcerias bilaterais, regionais e globais
(BRICS, G20 em particular), existe há mais de uma década um con-
tato intenso entre os dois governos, que vem sendo acompanhado
por cada vez mais contatos empresariais, acadêmicos e de governos
subnacionais. Isso demonstra a capacidade de atração da China ao
oferecer imensas oportunidades (reais, potenciais e imaginárias).
A Cosban ganhou um dinamismo forte na década de 2010,
com uma série de encontros de alto nível que resultaram em Planos

70 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Conjuntos ambiciosos e nem sempre de acordo com as reais con-
dições para a sua materialização, mas sinalizando a vontade de
ampliar a parceria.
A partir de 2010, além de ser o maior destino das exportações
brasileiras, a China se tornou também um dos principais investi-
dores e financiadores. A presença de empresas chinesas, sobretudo
estatais, se ampliou rápido. Assim, embora a Venezuela tenha sido,
na primeira década do século XXI, o grande receptor de finan-
ciamentos chineses na região, é o Brasil quem passou a despontar
(BIATO JR, 2010).
Com relação ao comércio, há duas características constantes: a
existência de um superávit devido à exportação de matérias-primas
que esconde o déficit na manufatura e uma concentração da pauta
exportadora em três produtos, que correspondem a quase 80% do
total de forma constante ao longo dos anos (soja, petróleo, minério
de ferro).
O Brasil se tornou na segunda década do século um dos cinco
principais destinos de IED chineses (SCHUTTE, 2020). Dados
do Ministério da Fazenda, referentes ao período entre 2003 e o 3º
trimestre de 2019, mostram um total de IED de US$ 80,5 bilhões.
Também nessa modalidade há uma concentração em grandes pro-
jetos, sobretudo na área de energia (especialmente petróleo) e ele-
tricidade. Nos dois casos, as estatais chinesas se posicionaram em
poucos anos entre os principais players no país. Para State Grid e
CTG, o Brasil é o principal destino de investimentos externos e
prioridade das suas estratégias de internacionalização.
No caso dos financiamentos, os principais agentes no Brasil
foram o CDB e ChinaExim. Segundo a China­ -Latin America
Finance Database essas duas instituições emprestaram US$ 28,9
bilhões para empresas/projetos no Brasil entre 2005 e 2017, sendo o
CDB responsável por 95% do montante.
Além disso, o CLAI Fund investiu em vários projetos no Brasil,
num total de cerca de USS 200 milhões, com par­ticipações menores,
mas importantes para viabilizar algumas aquisições. Exemplo é a
aquisição do Terminal de Contêineres do Paraná (TCP), o segundo

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 71


maior do Brasil, pelo China Merchant. O fundo teve também um
papel importante na concepção do Fundo de Cooperação Brasil-
China para a Expansão da Capacidade Produtiva (“Fundo Brasil-
China”), assinado pelos gover­nos do Brasil e da China em 2015, com
o compromisso de alocarem-se US$ 15 bilhões pelo lado chinês e
US$ 5 bilhões pelo lado brasileiro. Desde então, esse mecanismo
não avançou frustrando expectativas. Os motivos são vários: a difi-
culdade de classificar os projetos que seriam de interesse bilateral,
as deficiências de planejamento e estruturação e, em menor grau, a
instabilidade política no Brasil.
Por último, houve expectativas com relação ao potencial para
financiar projetos de infraestrutura pelos NDB e o AIIB, ambos
tendo o Brasil como membro-fundador.
Além de frustrações com relação a anúncios de financiamentos
depois não operacionalizados, houve uma série de grandes projetos
que não foram postos em prática por não estarem de em sintonia
com a realidade do país. Um exemplo é o anúncio do projeto de
ferrovia bioceânica ligando a costa do Brasil (Oceano Atlântico) à
costa do Peru (Pacífico), pela China Railway Eryuan Engineering
Group (Creec), visando aprimorar o escoamento de soja e minérios.
Embora o projeto tivesse sido parte da carteira da Cosiplan, a com-
plexidade política, ambiental e econômica envolvidas não foram
compreendidas pelos agentes chineses. Do lado brasileiro, em con-
trapartida, havia uma expectativa exagerada com relação à capaci-
dade chinesa de superar esses problemas.
Outro elemento da curva de aprendizagem que precisava ser
enfrentado era a frustração por parte da China com relação às regras
dos projetos de parceria público-privada, que precisam passar por
processos de licitação e não podem ser executados por contratação
direta.
Ficou evidente que há por parte da China uma estratégia clara
visando a garantia de matérias-primas e exploração de mercados
nos quais suas empresas podem ter uma vantagem competitiva. Os
problemas econômicos que afetaram o Brasil a partir de 2015 não
impactaram tanto esses fluxos e investimentos, ao contrário do que

72 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


ocorreu com os investimentos voltados diretamente ao mercado
consumidor, muitos dos quais foram abortados.
A pergunta que fica é porque então o Brasil não aderiu à BRI
para consolidar essa intensa parceira econômica e institucional.
Tudo indica que não aderiu porque não consegue enxergar seu valor
adicionado para uma relação bilateral que já tem um peso específico
importante. Também não faz parte da tradição diplo­mática brasileira
assinar documentos multilaterais cuja construção o país não tenha
participado ativamente. Além do mais, há o elemento já mencionado
da equidistância necessária para poder aproveitar as oportunidades
com os EUA e até com a União Europeia (CARAMURU et al., 2019).
Não há dúvida, porém, de que a China gostaria de ver progre-
dir uma adesão explícita do Brasil para dar maior peso à iniciativa.
Contudo, pode-se concluir que a forma de atuação e a presença chi-
nesa no país segue a mesma lógica das nos países signatários do BRI,
gerando as mesmas oportunidades e desafios.

Panamá

Nos últimos anos houve baixo interesse dos EUA na região, repre-
sentado pelo corte em ajudas financeiras, por exemplo. Ainda assim
as nações centro-americanas mantêm uma forte relação de depen-
dência, inclusive por meio de acordos de livre comércio com os EUA
(GRANADOS & RODRIGUEZ, 2020). Nesse contexto, o Panamá é o
país mais relevante para a China na sub-região da América Central,
principalmente quando considerado o Canal do Panamá. No que se
refere às relações comerciais, o comércio entre a China e o Panamá
aumentou principalmente a partir de 2000. Em 2019 o total do comér-
cio foi de US$ 4,7 bilhões, com as importações chinesas assumindo
uma importância significativa, com US$ 4,2 bilhões. O Panamá vem
apresentando déficit comercial constante com a China, chegando a
US$ 3 bilhões em 2019 (UNCTAD Stat, 2021).
Esse quadro de crescentes importações reflete em parte o fato
de que atualmente a China é o primeiro fornecedor da Zona Franca

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 73


de Cólon, um dos maiores portos livres de reexportação de merca-
dorias do mundo.
Em 13 de Julho de 2017 o Panamá deixou de reconhecer Taiwan
como Estado independente, estabelecendo relações diplomáticas
com a República Popular da China. A partir desse reconhecimento
o relacionamento entre os dois países se estreitou cada vez mais,
com uma visita de estado histórica à China do Presidente paname-
nho Juan Carlos Varela, em novembro de 2017.
Segundo Méndez (2018), os treze meses desde essa visita pro-
duziram mais progresso nas relações China-Panamá do que outros
países latino-americanos conseguiram em muitos anos de diploma-
cia. Em julho de 2018, o Panamá assinou 28 acordos bilaterais com
Pequim, cobrindo desde o livre comércio até o desenvolvimento da
infraestrutura, do turismo e intercâmbio cultural. Em dezembro
de 2018 o Presidente Xi Jinping visita o Panamá, assinando mais
19 novos acordos. No total foram assinados 47 acordos entre 2017
e 2018, que podem ser divididos em diversas áreas como: diploma-
cia; BRI; marinha mercante; transporte aéreo; cooperação para o
desenvolvimento humano; infraestrutura; energia elétrica; agricul-
tura; fitossanitária; bancária; turismo, cooperação para zonas eco-
nômicas e comerciais; ciência e tecnologia e inovação (HERRERA
et al., 2020).
Esta grande quantidade de acordos revela uma ambiciosa
agenda bilateral que mostra um esforço do lado panamenho, e ao
mesmo tempo da China para recrutar o Panamá no BRI, refletindo
a estratégia de segurança marítima chinesa e uma aposta ousada
da estratégia global chinesa de estender sua área de influência
(MENDEZ & ALDEN, 2019).
Assim, em meio ao fortalecimento das relações entre os dois
países, o Panamá foi, em dezembro de 2018, o primeiro país da
América Latina a aderir à iniciativa por meio de um Memorando
de Entendimento. No próprio Memorando ficou clara a centrali-
dade do Canal, como ressalta Garzón (2017): “O Panamá adere à
Iniciativa da Rota da Seda da China, reforçando seu papel como ‘a
grande conexão’ com o Canal do Panamá”.

74 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Dados do China Global Investment Tracker referentes ao IED e
financiamento em infraestrutura entre 2015 e 2018 somam um total
de US$ 3,1 bilhões. Entre os investimentos chineses no Panamá que
foram incorporados ao BRI destacam-se os investimentos feitos
pela empresa chinesa State Construction Enginering no setor de
construção, que somam um total de US$ 330 milhões. Além desses
investimentos a State Construction Enginering ainda investiu, em
2016, outros US$ 180 milhões no setor de educação.
Outro investimento importante foi realizado pela Shandong
Landbridge Group, uma das maiores empresas privadas chinesas
na área de logística e energia, cujo dono é o empresário Ye Chang.
A empresa investiu US$ 900 milhões em 2016 na construção de
um novo porto de águas profundas e terminal de containers na
zona livre de Colón voltada para o Atlântico (TAM, 2016). Outros
investimentos de grandes dimensões e relacionados à expansão do
Canal do Panamá foram realizados pela China Communications
Construction Corp (CCCC), em 2017 e 2018. A empresa investiu o
total de 1,6 bilhão em projetos de infraestrutura (transporte), como
o projeto da Atlantic Bridge e o projeto da nova ponte recém-inau-
gurada em 2019 no lado Pacífico do Canal.
Em 2018 a empresa chinesa Power Construction Corporation
of China se aliou a uma empresa local para se tornar a primeira
empresa chinesa a ganhar uma licitação para um uma instalação
pública, no caso relacionado ao abastecimento de água na Cidade
do Panamá.
O avanço das empresas chinesas na América Central provo-
cou reações por parte dos EUA. Em 2018, o secretário de Estado
dos EUA, Mike Pompeo, visitou a Cidade do Panamá para alertar
contra a “atividade econômica predatória” das empresas chinesas.
Em seguida, pressões diplomáticas sobre o governo de Laurentino
“Nito” Cortizo, que assumiu a presidência em maio de 2019, pare-
cem estar surtindo efeito. Uma proposta chinesa de um trem de alta
velocidade de US $ 4,1 bilhões ligando a Cidade do Panamá ao norte
do país foi cancelada. O mesmo ocorreu alguns meses depois com
um grande projeto de transmissão elétrica na costa do Caribe no

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 75


qual um grupo chinês estava entre os dois licitantes qualificado. A
tramitação do acordo de livre comércio Panama-China também
atrasou (YOUKEE, 2020) e há forte indícios que pressão dos EUA
tenha sido responsável também pela desistência de construir uma
nova embaixada chinesa na foz do Canal.

Chile

O Chile foi a primeira nação sul-americana a estabelecer rela-


ções diplomáticas com a China, em 1970, o primeiro país a apoiar
a entrada chinesa na Organização Mundial do Comércio (OMC),
em 1999, o primeiro a reconhecer a China como uma economia de
mercado, em 2004, e novamente o primeiro a assinar um acordo de
livre-comércio com a China, em 2005. Desde então, as suas relações
econômicas foram fortalecidas por meio da assinatura de sucessivos
tratados e instrumentos comerciais, como o Acordo Complementar
sobre o Comércio de Serviços, in 2008, e o Acordo Complementar
sobre Investimento, em 2012. Com isso, chegou-se, a partir de 2015,
a eliminar quase 100% das tarifas em produtos de origem chilena
no mercado chinês e a China se consolidou como principal par-
ceiro comercial (CASAS, FREITAS & BASCUÑAN, 2020). No
âmbito multilateral, ambos fazem parte da Asia-Pacific Economic
Cooperation (APEC). Além disso, o Chile é membro da Aliança do
Pacífico – ao lado de Colômbia, México e Peru –, que tem sido ins-
trumentalizada como um bloco de promoção das relações comer-
ciais com a Ásia (TORO-FERNANDEZ & TIJMES-IHL, 2020).
Com uma economia historicamente centrada na exportação de
commodities, a China é o principal mercado de exportação de produ-
tos minerais chilenos, especialmente o cobre, além de produtos flo-
restais, vinhos e frutas frescas. Assim, a demanda chinesa se tornou
uma das principais explicações para o crescimento do PIB chileno
e da manutenção de uma balança comercial positiva. Cabe desta-
car que, segundo a UN Comtrade (2019), em 1995, as exportações
do país para a China correspondiam a pouco mais de 1% do total,

76 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


enquanto em 2019, 39% das exportações chilenas foram direciona-
das à China. A China também conquistou uma posição de liderança
nas importações chilenas, representando 23% do total.
Ao longo de diversos governos, o país buscou fortalecer as rela-
ções com a China. Assim, a prioridade dada à BRI se manifestou
pela presença da presidente de centro-esquerda Michelle Bachelet
no primeiro Belt and Road Forum for International Cooperation
em Pequim, em 2017, e no segundo Forum, realizado em 2019, com
a participação do presidente de centro-direita Sebastián Piñera
(MORENO, TELIAS & URDINEZ, 2020). Com a assinatura do
Memorando de Entendimento, formalizando a adesão chilena à
BRI, em 2018, Piñera aproximou-se ainda mais da China. Nesse con-
texto, o Ministério da Ciência e Tecnologia da China e a Comissão
Chilena de Pesquisa Científica e Tecnológica formaram uma parce-
ria para cooperação tecnológica intitulada o Plano de Ação para a
Cooperação em Ciência e Tecnologia (2017-2019) (CASAS, FREITAS
& BASCUÑAN, 2020).
Com relação ao AIIB o ingresso no banco era visto pela diplo-
macia do Chile como uma oportunidade de mais uma vez ocupa-
rem a posição de vanguarda nas relações entre a China e a região
(CASAS, FREITAS & BASCUÑÁN, 2020, URDINEZ, 2020). No
nível doméstico, alguns atores tiveram que ser convencidos dos
benefícios da entrada em uma instituição multilateral cuja ênfase
geopolítica estava na Ásia, mas a possibilidade de impulsionar
investimentos de multinacionais chinesas, de aumentar a coopera-
ção com países asiáticos e fortalecer os laços políticos com a China
aceleraram a tramitação na Câmara e no Senado8. Moreno, Telias
& Urdinez (2020) destacam que a política doméstica chilena tem
apresentado pouca resistência ao estreitamento das relações com
a China, tornando o custo político de assinar a entrada na BRI

8 No entanto, o processo acelerado foi interrompido pelas grandes manifestações que toma-
ram o país em 2020, frustrando o desejo da diplomacia chilena de serem os primeiros da
região no AIIB, posição que ficou com Equador.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 77


relativamente baixo. Desse modo, os pontos de fricção nas relações
com a China têm sido provocados por determinantes externos.
Havia dois projetos de infraestrutura que potencialmente
seriam financiados pelo AIIB na agenda bilateral dos dois países.
O primeiro era a expansão do porto de San Antonio, o maior porto
chileno e uma instalação chave para as relações comerciais do país
com a região da Ásia e do Pacífico. O segundo projeto prioritário
na agenda era um cabo submarino de fibra ótica para dar suporte à
instalação da tecnologia 5G no Chile e, se concretizado, se tornaria
a primeira ligação submarina direta entre a América do Sul e a Ásia
(URDINEZ, 2020). A Huawei era a principal candidata a executar
este projeto, por ter participado da construção de outro empreen-
dimento de 2,800 km de fibra ótica no sul do país, em 2019. Além
disso, estava envolvida, desde 2017, nos estudos de implementação
do cabo em parceria com a agência reguladora chilena. O desen-
volvimento do projeto foi financiado pela Corporação Andina de
Fomento (CAF), e foram desenhadas várias possibilidades de rotas
até Shanghai.
No entanto, a execução da agenda bilateral de projetos con-
juntos entre o Chile e a China tem sido dificultada pela pressão
dos EUA, com a argumentação de que existe uma suposta ameaça
chinesa sumarizada nas tecnologias desenvolvidas pela Huawei,
colocando em risco os cidadãos chilenos (BANGAR, 2020). Após
a pressão estadunidense, as autoridades chilenas anunciaram em
2020 que a rota escolhida teria Sidney como ponto final. Com isso o
projeto original de interligação direta com a China foi abandonado
sob a justificativa de que essa seria a opção mais eficiente em termos
de custos. E a Huawei deve ser excluída do projeto, uma vez que
ela foi banida da Austrália em benefício de fornecedores japoneses
(BNAMERICAS, 2020).
Outros projetos no âmbito da BRI foram bem-sucedidas com
destaque para a aquisição realizada pela Chengdu Tianqi Lithium,
de 26% de participação na Sociedad Quimica y Minera (SQM), uma
das maiores produtoras de lítio do mundo, por um valor de de US$
4,51 bilhões. E ainda com a pretensão de comprar outros 30% da

78 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


SQM da canadense Nutrien (ZHU & TILAK, 2018). O lítio é maté-
ria-prima essencial do processo de fabricação para baterias elétricas,
um setor em expansão, no qual a China pretende ser líder mun-
dial. Além do lítio, destacam-se os investimentos greenfield da State
Power Investment no setor de energia, realizados em 2016; a compra
pela chinesa Southern Power de 28% da Transelec, empresa chilena
de energia, no valor de US$ 1,3 bilhão, em 2016; e, por fim, a compra
pela CTG de todo o capital da chilena Cornelio Brennand, em 2018
(AEI, 2020).
O caso chileno denota que as justificativas para ingressar na
BRI e em instituições correlatas, como o AIIB, estão comumente
ligadas a ideia de que isso pode impulsionar investimentos e o finan-
ciamento de projetos de infraestrutura. Por outro lado, as recentes
ações estadunidenses para conter o avanço chinês na região, demons-
tram que as relações entre a China e a América Latina entraram em
uma nova fase, cujo aprofundamento dependerá da capacidade das
nações latino-americanas de sustentar seus interesses diante da dis-
puta entre as duas potências.

Equador

Embora a presença chinesa por meio de investimentos e finan-


ciamentos tenha se iniciado no governo de Rafael Correa (2007-
2017), foi no mandato de seu sucessor que, em dezembro de 2018, o
Equador assinou o Memorando de Entendimento que marcou sua
adesão à BRI. Na ocasião, o presidente Lenín Moreno afirmou que o
Memorando de Entendimento era um “instrumento inicial” a partir
do qual se poderia impulsionar investimentos e comércio entre os
países, bem como a “construção de uma América Latina eficiente,
moderna e interconectada” (MORENO, 2018, p.1).
A entrada do país em tal iniciativa deve ser compreendida
dentro de um quadro de aprofundamento das relações China-
Equador. Tradicionalmente, os EUA são o país de maior importância
para o Equador; ainda hoje seu maior parceiro comercial. Contudo,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 79


no século XXI, a China ampliou sua presença de forma significativa.
Dados do Trade Map mostram que, em 2019, o país foi destino de
13% das exportações equatorianas (enquanto, em 2000, era de apenas
1,2%) e fonte de 19% das importações (contra apenas 2,1% em 2000),
tendo se tornado o 2º principal parceiro comercial do Equador.
Semelhante ao padrão na região, o comércio tem sido marcado pela
assimetria. Os principais produtos exportados pelo Equador são
peixes, petróleo, frutas, madeiras e minerais, enquanto a importa-
ção está focada em maquinários e equipamentos, com saldo bilateral
deficitário para a nação sul-americana. O que tem chamado mais
atenção, contudo, são os investimentos e financiamentos.
Dados do China Global Investment Tracker (2020) mostram que
a partir de 2005 começaram a se intensificar investimentos chineses
no Equador com foco nos setores energético e mineral. A entrada de
mais investimentos e financiamentos chineses refletiu, de um lado,
a estratégia de internacionalização de empresas e bancos chineses,
orientados tanto pela lógica microeconômica como pelos objetivos
estratégicos da China. De outro lado, foi fruto das novas orientações
do governo Rafael Correa, que optou por desenvolver uma política
externa de diversificação voltada a tornar o país mais independente
com relação aos EUA e algumas organizações internacionais, como
o Banco Mundial (GARZÓN & CASTRO, 2018).
No que se refere a financiamentos, entre 2010 e 2018, o Equador
foi o 3º país a receber mais recursos chineses na região (apenas
atrás de Venezuela e Brasil). Segundo dados do China-Latin America
Finance Database, foram disponibilizados US$ 18,4 bilhões ao país,
com destaque para projetos no setor de energia e infraestrutura
(GALLAGHER & MYERS, 2020).
Dos oito maiores empreendimentos de hidroenergia no
Equador, a China envolveu-se em sete, por meio de financiamentos
e participações de empresas chinesas na construção, destacando-se
as hidrelétricas Coca Codo Sinclair e Sopladora – os dois maiores pro-
jetos no país, ambos financiados pelo Exim-Bank chinês (GARZÓN
& CASTRO, 2018). Essas empreitadas receberam US$ 1,7 bilhão em
2010 e US$ 509 milhões em 2014.

80 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A participação da China em tais projetos contribuiu para
diversificar e limpar a matriz energética equatoriana, auxiliando no
cumprimento do plano de eletrificação do governo, além de gerar
emprego e infraestrutura local. Ao mesmo tempo surgiram proble-
mas ambientais, técnicos e orçamentários. Outra crítica foi que os
financiamentos chineses ofertados para a realização dos projetos
possuíam juros acima dos praticados por outras instituições oficiais
(GARZÓN & CASTRO, 2018). Em particular, as polêmicas em torna
da hidrelétrica Coca Codo Sinclair acabaram danificando a reputa-
ção chinesa (BULLOCK, 2020, DREYER, 2019).
No que se refere ao cobre, destacam-se os projetos de mineração
de Panantza-San Carlos e Mirador, os maiores já feitos no Equador no
setor mineral. O investimento chinês inicial foi realizado em 2018,
com as primeiras exportações do minério para a China a partir de
2020 (MENDOZA, 2020). Críticas referentes a aspectos ambien-
tais e ao impacto sobre as populações indígenas se dão mais com
relação ao projeto do que às empresas chinesas, embora acabem se
confundindo. A obra era considerada pelo governo como uma das
mais importantes para o Equador a médio e longo prazo, sobretudo
devido a seu potencial para contribuir com a desejada diversifica-
ção da economia para além do petróleo. Para a China, o empreen-
dimento visa propiciar maior diversificação de suas fontes de cobre.
Desde 2009, a China passou a ofertar financiamentos ao país,
condicionados ao pagamento em petróleo. Essa estratégia busca
diversificar as fontes de importação e contribuir com a internaciona-
lização das petrolíferas chinesas. De lado de Equador havia a neces-
sidade de aportes que possibilitassem a extração do recurso natural
e o desenvolvimento da infraestrutura (LUZURIAGA, 2017).
A partir de 2010, as firmas chinesas passaram a atuar de forma
mais direta na exploração do petróleo equatoriano. Em 2010, a CNPC
e a SINOPEC assumiram a Andes Petroleum, por meio da qual pas-
saram a controlar blocos de exploração na Amazônia Equatoriana
e, a partir de 2016, na Provincia de Pastaza. Assim, a partir de 2013,
mais de 80% das exportações equatorianas de petróleo passaram a
ser dominadas por empresas chinesas.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 81


A entrada de Equador na BRI, em 2018, contudo, não repre-
sentou uma mudança do padrão de relação econômica que já existia
entre os dois países, uma vez que os investimentos e financiamentos
chineses no Equador já estavam focados em atividades que foram
abraçadas como prioritárias pela BRI. Os empreendimentos ante-
riores foram, inclusive, classificados como parte da iniciativa. O
espaço para a ampliação das relações no marco da BRI é pequeno
devido ao volume de investimentos e financiamentos chineses ante-
riores e o endividamento que isso causou.
Em 2020, no contexto da crise econômica causada pela pan-
demia, o Equador conseguiu uma renegociação da sua dívida com
o Eximbank chinês que lhe permitiu um alívio de US$ 474 mi entre
2020 e 2021, e uma reprogramação com o CDB que possibilitou
ao país deixar de realizar pagamentos durante 12 meses (entre
agosto de 2020-2021), o que representou um alívio de US$ 891 mi
(Ministerio de Economia y Finanzas, 2020). Havia uma expectativa
de que a China pudesse conceder novos empréstimos (US$ 1,4 bi
do Banco Industrial e Comercial da China e US$ 1 bi do CDB) que
foram frustradas. Estes empréstimos seriam baseados em petró-
leo, mas no quadro internacional de preços baixos do óleo, e diante
das desavenças em torno da determinação do valor do produto no
acordo, as negociações não progrediram (LUCERO, 2020).
De outro lado, Equador fechou, início de 2021, com a
Development Finance Corporation (DFC) dos EUA um crédito de US$
3,5 bilhões para projetos voltados ao setor produtivo e para o paga-
mento de sua dívida externa. Isso suscitou preocupações por parte
de alguns setores internos devido a desconfiança que tal acordo
possa prejudicar as relações com a China (ÂNGULO, 2021).
Assim, o aprofundamento das relações com a China e a inte-
gração plena do Equador à BRI são questões que dependerão: i) de
os países lidarem com o impacto que o endividamento com a China
produz sobre o Equador e de encontrarem espaço para novos proje-
tos nesse cenário, e; ii) das pressões que os EUA venham a oferecer
visando criar embaraços à atuação chinesa na região.

82 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Considerações finais

A análise dos dados mostra um avanço expressivo da presença


econômica chinesa em um prazo relativamente curto de tempo na
América Latina, com intensidades e ênfases diferentes entre os vários
países, mas atingido a todos. Tal movimento reflete não somente
aspirações geoeconômicas e geopolíticas dos agentes chineses, mas
também dos governos latino-americanos à procura de financia-
mento e investimento para seus projetos, em particular na área de
infraestrutura e para a valorização de suas riquezas minerais.
O padrão de atuação chinesa na região é comum ao que preva-
lece ao longo da BRI: uma combinação de empresas estatais, bancos
de financiamento, acordos de cooperação e forte assimetria nas rela-
ções comerciais, com exportação de manufatura e importação de
matérias primas. No seu conjunto, a balança comercial da região
com a China é, inclusive, deficitária, não obstante os expressivos e
constantes superávits do Brasil.
O movimento da China em direção à América Latina é ante-
rior à BRI e, em um primeiro momento, se intensificou em paralelo à
nova política mais ambiciosa do governo Xi Jinping. Posteriormente,
a América Latina e o Caribe foram integrados à BRI, a partir de
dois movimentos. De um lado, os próprios países latino-america-
nos sinalizaram desde o lançamento da iniciativa sua preocupação
em ficar de fora das prioridades de Beijing. De outro, a própria BRI
mudou seu escopo para se tornar uma proposta com pretensão de
abranger todos os países do mundo. Nessa nova abordagem, a adesão
da América Latina se tornou parte das prioridades. Uma tentativa
por parte da diplomacia chinesa de coordenar esta participação em
nível regional fracassou pela resistência do Brasil e, em seguida, em
virtude do enfraquecimento das próprias estruturas de integração
regional, em particular a Celac.
As diferenças da atuação e presença chinesa entre os países
da região reflete um conjunto de fatores de cada nação: sua estru-
tura econômica e existência de riquezas naturais, políticas gover-
namentais, impacto de influência estadunidense para diminuir a

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 83


influência chinesa, e em alguns casos, um certo path dependency,
como na Venezuela. No caso do Brasil, se acrescenta o interesse
em estabelecer uma parceria que envolve a atuação global dos dois
países, em particular no BRICS e no G20, mas também nas questões
climáticas.
A adesão ou não à BRI não é, portanto, uma variável indepen-
dente ou fator determinante que explica a intensidade das relações.
Assim, a não adesão do Brasil não parece ser um empecilho para o
aprofundamento das relações econômicas. Nos casos apresentados,
observou-se que a adesão à BRI pelo Panamá fez, sim, parte de um
processo mais amplo e ousado por parte da China de marcar uma
forte presença em um país que durante mais de um século foi um
símbolo da influência estadunidense na região.
No caso do Equador, a participação na BRI não garantiu o
acesso a novos financiamentos chineses, o que abriu uma possibi-
lidade aos EUA de apresentar uma alternativa concreta, algo ainda
raro na região. Já no caso chileno, identifica-se uma política per-
manente visando maior abertura possível e participação na BRI. O
objetivo é poder explorar ao máximo as oportunidades geradas pela
economia chinesa, mas com o cuidado de não se indispor com os
EUA.
A década de 2020 começou com um esfriamento dos investi-
mentos e financiamentos, muito em função de um movimento geral
relacionado à pandemia. Mas há também certa reflexão de ambas
as partes sobre a experiência da década passada. Do lado da China,
há um amadurecimento e uma subida na curva de aprendizagem, o
que deve resultar em uma abordagem mais focada. Isso vale tanto
para os bancos de investimento como para as empresas estatais e
privadas, essas últimas muito em função das dificuldades econômi-
cas pela quais a maioria dos países da região está passando.
E do lado das nações latino-americanas, houve também uma
aprendizagem, em dois sentidos. Primeiro, por parte dos gover-
nos, um entendimento maior sobre os limites do que se pode espe-
rar da relação com a China. Ou, o efeito “Papai-Noel-não-existe”.
Segundo uma compreensão crescente em alguns países a respeito

84 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


dos impactos negativos dos investimentos e do comércio com a
China, em particular no que diz respeito aos impactos ambientais
e ao aprofundamento da reprimarização das economias. Nesse sen-
tido, se mantém por parte de ambos os lados e dos vários agentes
envolvidos um interesse de consolidar e aprofundar a relação, mas
buscando ajustar a sua operacionalização.
Outro fator que deve se fazer mais presente na década de 2020
é a reação dos EUA. Com o acirramento da disputa entre as duas
potências, é de se esperar um reflexo na América Latina no sentido
de pressões estadunidenses para que a região se alinhe às suas posi-
ções estratégicas, o que já vinha acontecendo no final do governo
Trump. Por outro lado, pode haver disputa em torno dos países
que mantêm relações diplomáticas com Taiwan, como Paraguai e
Nicarágua, entre outros. Cabe aos Estados da região encontrar um
caminho para aproveitar o que ambas as potências podem oferecer
de melhor para seu desenvolvimento e manter a devida equidistân-
cia em relação à disputa geopolítica.

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88 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 4

DESCONTINUIDADES E
CONTINUIDADES BIL ATER AIS
BR A SIL- ES TADOS UNIDOS:
A GES TÃO DE JAIR
BOL SONARO (2019/2022)1

Cristina Soreanu Pecequilo2

Introdução

O período de 2019 a 2022, correspondente ao governo de Jair


Messias Bolsonaro (Partido Liberal-PL) já tem sido objeto de inúme-
ros estudos acadêmicos sobre política externa brasileira (CASARÕES,
2019, PECEQUILO, 2021, HIRST e MACIEL, 2022, HIRST e
PEREIRA, 2022; MARINGONI, SCHUTTE e BERRINGER, 20213),
que destacam as suas descontinuidades em comparação às tradições

1 Texto baseado na apresentação do XXII Fórum de Análise de Conjuntura “América


Latina, Eleições e Mudanças Políticas” realizada na Mesa 5 “Relações Internacionais”, fi-
nalizado em 27/01/2023.
2 Professora de Relações Internacionais da UNIFESP e dos Programas de Pós-Graduação
em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP e em
Economia Política Internacional da UFRJ. Pesquisadora do NERINT/UFRGS e do CNPq.
E-mail: crispece@gmail.com
3 Destaca-se também o amplo acompanhamento do período pela mídia por analistas como
Jamil Chade e Patrícia Campos Mello, com diversas publicações no Portal UOL e no jornal
Folha de S. Paulo.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 89


das relações internacionais do país em termos de política de Estado.
Tais descontinuidades residem em diversos fatores: a contestação
do multilateralismo e da governança internacional, o abandono do
pragmatismo e de posturas de equilíbrio, o descaso com a integra-
ção regional, a retórica ideológica inflamada, a adesão a alianças
conservadoras de cunho religioso no campo dos direitos humanos e
o desrespeito a regimes internacionais e uma agenda predatória no
meio ambiente.
Em certa medida, mesmo intercâmbios bilaterais tradicionais
como Brasil-Estados Unidos estariam submetidos a este padrão de
quebras devido ao alinhamento automático Bolsonaro-Trump entre
2019/2021, já manifestado durante a campanha eleitoral de 2018
pelo então candidato, ainda filiado ao Partido Social Liberal (PSL),
do qual se desvincularia pouco tempo depois de assumir o cargo.
Considerado como o “Trump Tropical”, Bolsonaro e Trump seriam
o núcleo dessa aliança de extrema-direita global, lutando contra as
pautas consideradas excessivamente liberais ou contrárias à sobe-
rania nacional, simbolizadas nas agendas do anti-globalismo por
um lado e, por outro, a do anticomunismo. Brasil-Estados Unidos
estariam juntos, como sempre procurava destacar o ex-Chanceler
Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores de
2019/2021 na luta pró-Ocidente (ARAUJO, 2017;2020).
Entretanto, mesmo que tenham de fato existido rupturas impor-
tantes na política externa nacional durante 2019/22, principalmente
no que se refere à postura diante do multilateralismo e dos regimes,
isto é, diante da governança global como instrumento de política
internacional, algumas pautas não podem ser descoladas da história
das relações internacionais, dentre estas: o alinhamento automático
com os Estados Unidos, as visões soberanistas no meio ambiente e
direitos humanos e a menor prioridade à integração regional. Em
muitos destes campos, estando aí incluídas as relações bilaterais
Brasil-Estados Unidos, refletiram-se comportamentos passados,
associados a determinadas coalizões de poder dominantes na política
nacional (oligarquias urbanas e rurais, Forças Armadas, Igreja dentre
outras) e ao Regime Militar de 1964 a 1985 (VISENTINI, 2020).

90 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Partindo desta provocação, de que a gestão Bolsonaro possui
tanto quebras, quanto retomadas de prioridades em sua agenda,
o objetivo deste texto é examinar as descontinuidades e continui-
dades das relações bilaterais Brasil-Estados Unidos no período de
2019 a 2022 e seu impacto na política externa brasileira. Ainda que
fases de maior polarização e crise, como a mencionada, tendam a
ser vistas como exceções na trajetória das relações internacionais, o
argumento a ser debatido é que, de fato, em alguns pontos o governo
Bolsonaro representou uma ruptura, enquanto, em outros, refletiu
uma retomada de posturas políticas. Para dar conta desta problemá-
tica, estas reflexões encontram-se divididas em duas partes, além
desta Introdução e Considerações Finais, a aliança conservadora: a
dinâmica Trump-Bolsonaro (2019/2020) e do “desalinhamento” à
acomodação? De Bolsonaro à Lula (2021/2022)

A aliança conservadora: a dinâmica


Trump-Bolsonaro (2019/2020)

O período de 2019 a 2020, no qual as presidências de Donald J.


Trump nos Estados Unidos e Jair M. Bolsonaro no Brasil se sobre-
põem foi considerado por muitos como um ponto fora da curva na
trajetória das diplomacias norte-americana e brasileira. Da mesma
forma, foi avaliado como uma ruptura na trajetória de ambos os
regimes democráticos, principalmente nos Estados Unidos devido à
escolha pela população de dirigentes com perfil autoritário, conser-
vador e com viés populista. Análises como as de Levitsky e Ziblatt
(2018) em Como as Democracias Morrem, tornaram-se bastante
comuns, ressaltando como há uma desconstrução de “dentro para
fora” das instituições que sustentam as leis e as práticas democráticas.
Entretanto, é preciso compreender que ambas as eleições, de
Trump e a de Bolsonaro, fazem parte de um ciclo de crises sociais,
políticas, econômicas, estratégicas e até mesmo valorativas nas socie-
dades ocidentais. Tal ciclo tem como catalisador dois fenômenos: os
atentados de 11/09/2001 ao território continental norte-americano e

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 91


a depressão econômica global de 2008, que colocou em xeque para-
digmas econômicos associados ao neoliberalismo e que teve como
epicentro os Estados Unidos e o bloco europeu.
Os atentados de 11/09 levaram ao incremento da securitização
das relações sociais nas esferas cotidianas, com a tolerância a práti-
cas consideradas ilegítimas no monitoramento e prisão de suspeitos
de terrorismo, além de abrir o caminho para as intervenções milita-
res dos Estados Unidos no Oriente Médio (Afeganistão e Iraque res-
pectivamente em 2001 e 2003) no âmbito da Guerra Global Contra
o Terror (GWT). Na agenda econômica, como aponta Mearsheimer
(2019), esta fragmentação, assim como a diminuição do papel do
Estado, a abertura comercial, a reorganização dos polos de poder
e a superextensão da projeção de poder norte-americana, levou a
um cenário de hiperglobalização. A eclosão da depressão em 2008
é produto de um ciclo iniciado na década de 1980 com as primeiras
políticas neoliberais e que foi se aprofundando ao longo do tempo.
Enquanto os problemas se acumulavam internamente como
exclusão, empobrecimento das classes médias, perda de benefícios e
proteção do Estado de bem-estar, desregulamentação do trabalho e
desemprego, o nível de insatisfação crescia e se revelava no aumento
de pautas xenofóbicas, nacionalistas e tradicionalistas em costumes.
Desta forma, Trump e Bolsonaro são reflexos deste contexto com-
plexo, que também envolve, de maneira menos perceptível, dimen-
sões geopolíticas. Ainda que não caiba aqui entrar no detalhamento
de todos estes fenômenos, todos estes elementos citados fazem parte
de processo de reconfiguração de poder das relações internacionais e
que produzem um debate político polarizado (PECEQUILO, 2022).
Ou seja, Trump e Bolsonaro são governantes que em suas cam-
panhas e depois em suas gestões, instrumentalizaram esta agenda,
passível de polarização, e que já se revelara em fenômenos como a
saída do Reino Unido da União Europeia (BREXIT) e a crescente
eficiência eleitoral de partidos e pautas de extrema direita em diver-
sos países. Bolsonaro, repetiu, de forma adaptada ao contexto brasi-
leiro, táticas de Trump simbolizadas pela disseminação de fake news,
uso de redes sociais e instrumentalização da religião e das guerras

92 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


culturais. A moralidade política no combate à corrupção e a ideia
dos outsiders como salvadores também fazem parte das semelhan-
ças, só que enquanto Trump representava a eficiência e liberdade do
ambiente de negócios, Bolsonaro era símbolo da ordem e do pro-
gresso por seu passado militar, com proximidade ao setor evangé-
lico (DOVAL, 2021)
Igualmente, Bolsonaro fez uso da ideia do Make America Great
Again (MAGA) e do combate aos inimigos definidos genericamente
como comunistas e ideológicos, em torno de um discurso sobera-
nista, nacionalista e xenofóbico. O papel dos setores de segurança e
religiosos, construía uma imagem de patriotismo e elevação moral.
No geral, tanto Trump quanto Bolsonaro tem propagandas e pautas
que visam incrementar, por caminhos diversos, os que se sentem
excluídos e afetados pelas mudanças geradas pela crise e/ou pela
modernidade. Especificamente, o Brasil foi definido pelos Estados
Unidos de Trump, assim como outras nações pertencentes à aliança
conservadora de extrema direita (Polônia Hungria, Arábia Saudita),
como um like minded State (i.e um Estado de valores e pensamento
semelhante).
Todavia, além de ser parte de um processo global, não é pos-
sível definir esta dinâmica Brasil-Estados Unidos como apenas de
quebra de paradigmas no que se refere à política externa brasileira.
O quadro é mais complexo e deriva tanto das tradições desta política
externa como da coalizão que levou Bolsonaro ao poder. Em retros-
pecto histórico, o período 2019/2020 nas relações bilaterais não é
uma ruptura em direção ao alinhamento automático e subordina-
ção aos Estados Unidos, mas sim a retomada de comportamentos
anteriores das relações internacionais do país, inclusive recentes,
impulsionadas pelas mudanças de perfil de suas coalizões internas
que dão sustentabilidade ao governo.
Após 2011, culminando com o impeachment/golpe da então
Presidente Dilma Rousseff em 2016 (MILAN, 2016), as dinâmicas
domésticas já apontavam uma relativização das ações de autono-
mia da agenda internacional do Brasil, com a perda de seu con-
teúdo estratégico. Como indica Bresser-Pereira (2018), muitas

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 93


movimentações políticas de Rousseff no sentido de afastar-se da
gestão Lula (2003/2010), e depois alterações em sua política econô-
mica distanciaram-na de setores chave do setor financeiro, indus-
trial e do agronegócio, em um momento no qual as elites já demons-
travam insatisfação com mudanças sociais promovidas desde 2003.
A busca por uma autonomia mediada por Rousseff diante
dos Estados Unidos, visava uma maior convergência com os nor-
te-americanos, após a era Lula considerada de confrontações em
temas sensíveis de relações bilaterais (Venezuela, Irã), negociações
comerciais, estratégicas e de projeção do Brasil no campo Sul-Sul
via BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e outras
ações multilaterais como IBAS (Índia, Brasil, África do Sul) e a
UNASUL (União das Nações Sul-Americanas). Assim, a ideia era
de uma nova acomodação, celebrada, inclusive, com a vista de
Barack Obama ao país em 2011.
Contudo, esta postura foi quebrada pela própria Rousseff em
2013 devido ao escândalo da espionagem da National Security Agency
(NSA), que levou ao cancelamento de sua visita aos Estados Unidos
naquele ano, com o relacionamento somente retomando certa nor-
malidade em 2014 (NETO, 2015). A retomada viria após esforços
conjuntos das diplomacias, lideradas por Joe Biden, então vice-pre-
sidente dos Estados Unidos, presidente eleito em 2020 e em exercício
2021/22, e do Brasil, mas já em um período de extrema fragilidade
da gestão.
Apesar de reeleito em 2014, o governo Rousseff enfrentou uma
sequência de problemas com os protestos populares de 2013, os
escândalos de corrupção, a quebra do pacto interno (HIRATUKA
e BASTOS, 2021), culminando com sua saída do poder em 2016.
Deve-se mencionar que em 2015, Dilma chegaria a visitar os Estados
Unidos, conseguindo como resultado a abertura do mercado de
carne a produtores brasileiros e a facilitação de viagens de empresá-
rios entre os países (Global Entry).
A posse do vice-presidente Michel Temer (FARIAS e ALVES,
2020) acentuou as mudanças no relacionamento bilateral levando a
um alinhamento incompleto. A opção pela menção ao “incompleto”

94 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


refere-se às pautas economicista e comercialista, associadas a uma
aproximação com os Estados Unidos valorizadas por Temer, mas
que não se esgotavam na parceria bilateral e possuíam uma dimen-
são global. Entretanto, em período eleitoral (2016) de posse do novo
Presidente Donald Trump (2017/2018), esta aproximação não resul-
tou em fatos positivos para o Brasil, mas sim em concessões unilate-
rais. Uma das provas da mudança de vetor do projeto de desenvolvi-
mento nacional, já caminhando a uma agenda de cunho neoliberal,
foi o início da negociação para a venda da EMBRAER para a Boeing
e da cessão da Base de Alcantara para os EUA.
Outra alusão ao termo incompleto deriva do fato que a gestão
Temer não tornou as relações bilaterais como excludentes das
demais agendas ou desvalorizou o multilateralismo e princípios
básicos da diplomacia brasileira (equilíbrio, moderação, respeito
aos regimes internacionais de meio ambiente e direitos humanos).
Pode-se indicar que Temer reproduziu a lógica da “autonomia pela
integração” do governo de Fernando Henrique Cardoso no sentido
de compatibilizar os interesses brasileiros aos norte-americanos, em
consonância à governança internacional e interesses econômicos,
sem promover a revisão de compromissos ou alimentar polariza-
ções. Não predominava um conteúdo estratégico de autonomia, mas
sim um sentido pragmático nos intercâmbios.
Adicionalmente, o discurso da modernidade econômica e da
responsabilidade voltaram a ter grande visibilidade sintetizados
na candidatura do Brasil à OCDE (Organização de Cooperação
e Desenvolvimento Econômico). A participação na OCDE como
membro pleno significava, associada às boas relações com os
Estados Unidos, representava a maturidade brasileira como nação
do Primeiro Mundo que facilitaria maior aporte de investimentos
estrangeiros. Igualmente, aceleraria, em uma espécie de trade-off
doméstico e internacional, as reformas trabalhista e previdenciá-
ria. Temas associados à integração regional, à cooperação Sul-Sul
foram colocados em segundo plano, e com baixos investimentos de
recursos financeiros e humanos, mas sem que fossem plenamente
desmontados.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 95


Observando esta agenda e a de política externa, mais uma vez
mostra-se a não ruptura do que viria a ser o governo Bolsonaro em
muitos destes setores que tiveram continuidade em Trump: OCDE,
aproximação com os Estados Unidos e Primeiro Mundo, esva-
ziamento estratégico de pautas autonomistas e as negociações em
andamento para a venda da EMBRAER para a Boeing e a concessão
do uso da Base de Alcântara pelos Estados Unidos. Esta continui-
dade refletia a formatação do novo pacto interno que se desenhava,
baseado no setor financeiro e no agronegócio de viés neoliberal
e baseado na priorização da economia primária exportadora de
commodities.
Entretanto, e aqui que entra o aspecto de ruptura, a coalizão
que elegeu e sustentou o governo Bolsonaro precisou ser ampliada
em 2018, com a inclusão de novos setores, dando conta de aspectos
já citados: a guerra cultural, o sentimento nacionalista e de exclusão,
e a polarização social. Com isso, como aponta Casarões (2019, p.
253), este equilíbrio de forças passou a ser representado pelos 5Bs:
evangélica (bíblia), ruralista (boi), militares e segurança pública
(bala), anti-globalistas (que o autor denomina de bolso-olavistas”)
e econômica (bancos). Com isso, o governo passou a ser definido
como composto de alas “pragmáticas”- banco e boi- e alas “ideoló-
gicas”- bala, bolsolavistas e bíblia. Posteriormente, a ala pragmática
também seria associada ao “Centrão”. O que isso significou em polí-
tica externa e para as relações bilaterais com os Estados Unidos?
No que se refere à política externa observou-se a mencionada
ruptura, levando a uma agenda internacional desequilibrada, e para
as relações bilaterais a continuidade mediada via alinhamento auto-
mático (PECEQUILO, 2021). A quebra refere-se ao abandono de
comportamentos respeitados e legítimos do país nos fóruns inter-
nacionais, como a valorização do multilateralismo, o juridicismo,
a negociação, a coexistência pacífica e o respeito aos regimes. Em
termos de continuidade mediada, embora o alinhamento auto-
mático seja um padrão recorrente na história das relações Brasil-
Estados Unidos, há uma ruptura no sentido da excessiva pessoaliza-
ção das interações Bolsonaro-Trump.

96 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Entretanto, não se pode tomar como base da análise do inter-
câmbio bilateral somente este aspecto muitas vezes caricatural da
relação e sim seus componentes e efeitos concretos. Há uma ten-
dência, até pelo aumento da exposição de fatos pela mídia e redes
sociais, de se tomar como fato e resultado de política episódios de
aproximação pessoal entre Bolsonaro-Trump, assessores e fami-
liares. Muitas vezes, o que se destaca são cortinas de fumaça que
escondem negociações efetivas em setores como políticas sociais,
econômicas, dentre outras. Além da conjuntura e de imagens, ques-
tões sensíveis associadas a posições do Brasil em fóruns internacio-
nais como as Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial de
Comércio (OMC) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) foram
afetadas pela gestão Trump e pelas coalizões internacionais.
Examinando brevemente as relações Brasil-Estados Unidos
neste período 2019/2020, o primeiro ciclo inicia-se em Março de
2019, com a visita do Presidente aos Estados Unidos consolidando
esta aproximação conservadora de extrema direta (ARAUJO, 2017).
Como resultados desta visita, o Brasil realizou diversas concessões
unilaterais aos norte-americanos, alardeadas pelo então Ministro
das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo, como gran-
des conquistas para o país tais quais: abolição, sem reciprocidade,
de vistos de entrada aos Estados Unidos, Japão, Canadá, Austrália,
a venda da EMBRAER e a concessão da exploração da Base da
Alcântara, não ser mais reconhecido como país em desenvolvimento
visando a entrada na OCDE, quota no comércio de trigo, apoiar a
transferência da Embaixada em Israel para Jerusalém, a guerra cul-
tural e ideológica contra o comunismo e a liberdade de gênero, os
direitos reprodutivos, direitos humanos, além da recusa de regimes
ambientais. Além disso, foi prometido ao Brasil a possibilidade de
ser aliado extra-OTAN. Mas, em termos práticos, o que resultou de
benefícios desta agenda inicial e permaneceu em 2019 e 2020?
Em termos de benefícios pode-se dizer que o resultado foi
negativo, a venda da Boeing foi revertida e não houve nenhuma
reciprocidade comercial, ou inclusão na OTAN (THOMAZ,
VIGEVANI, CASCÃO, 2021). Adicionalmente, temas controversos

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 97


como a transferência da Embaixada em Israel para Jerusalém não
se realizaram devido a pressões dos países árabes e do agronegó-
cio. Basicamente, a aliança era mais sólida no desmonte da inte-
gração regional vista como símbolo do comunismo (ou do “boli-
varianismo”), no meio ambiente e nos direitos humanos, nos quais
predominava o conservadorismo e o negacionismo climático e
pautas de exploração até predatória do meio ambiente. Também
havia um alinhamento “verbal” entre Estados Unidos e Brasil no que
se refere às críticas à China, mas que, no caso brasileiro, não possuía
impactos na alteração da relação econômica com este país. Havia,
porém, elevado mal-estar, à medida que muitas falas de membros
do governo brasileiro sobre este importante parceiro nacional eram
xenofóbicas e agressivas (PODER 360, 2020).
O ano de 2020 viria a agregar mais elementos a esta agenda de
aproximação Bolsonaro-Trump: a pandemia do novo coronavírus, o
COVID-19. Neste campo, o alinhamento ocorreu tanto em termos
ideológicos quanto concretos, ainda que muitas vezes o ideológico
pareça ter ganho precedência devido a seu permanente ruído em
termos negacionistas e anti-chineses. Esta dimensão ideológica foi,
durante toda a pandemia, um objeto de mobilização permanente
das bases e agendas para certos grupos políticos da coalizão, e que
se desenvolvia em diversas áreas durante todo o governo.
Contudo, estas percepções ideológicas traziam embutidas
medidas associadas à promoção de medicamentos sem eficácia (clo-
roquina), a embates multilaterais contra a OMS (acesso a medica-
mentos, abertura ou não de patentes) e a disputa pelo acesso ao mer-
cado de vacinas via ONU e parceiros estatais (vide a competição entre
as companhias farmacêuticas ocidentais de Estados Unidos, Reino
Unido, e as de nações emergentes como China, Rússia e Índia). Os
lobbies associados às cadeias produtivas das indústrias farmacêuticas
estiveram muito presentes nestas negociações, e o Brasil, em detri-
mento de sua história como pivô da cooperação Sul-Sul neste campo,
alinhou-se aos Estados Unidos, renunciando a demandas de demo-
cratização de acesso à saúde, vacinas e medicamentos (CASARÕES e
MAGALHAES, 2021; VENTURA e BUENO, 2021).

98 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Esta é uma das rupturas que pode ser enquadrada no que se
mencionara antes: regimes e governança global, mas não só por
motivos ideológicos, mas sim por razões concretas associadas a
pressões e benefícios que poderiam vir a ser obtidos de grupos de
interesse ligados ao governo Trump. As pressões, além disso, visa-
vam distanciar o Brasil da parceria com a China em setores de com-
petição direta sino-americana: 5G, parcerias tecnológicas, infraes-
trutura e desenvolvimento (THE WHITE HOUSE, 2020). Na gestão
Trump como parte desta tentativa de balancear a presença da China
no Brasil e na região, foi lançada a iniciativa Growth in the Americas
em 2018, com o objetivo de retomar investimentos e parcerias no
hemisfério (THE WHITE HOUSE, 2020a). Entretanto, esta inicia-
tiva pouco caminhou, seja em termos de investimentos ou propostas
concretas.
Em 2020, a relação Brasil-Estados Unidos também foi mar-
cada pelo lançamento do Acordo Comercial Brasil-Estados Unidos
(PROTOCOLO ATEC, 2020). Apesar do governo brasileiro ter apre-
sentado o ATEC como o primeiro passo para um tratado de livre
comércio entre o Brasil e Estados Unidos, o texto era apenas um
Acordo Quadro. Neste âmbito, sinalizava a possibilidade e o com-
promisso de que os países poderiam negociar futuros termos de
liberalização comercial de barreiras tarifárias e não tarifárias. Além
disso, o foco do ATEC para essa eventual liberalização era a dimen-
são burocrática na qual se destacavam temas como facilitação de
negócios e viagens, desburocratização e combate à corrupção. Neste
ano, contudo, em plena campanha eleitoral presidencial norte-a-
mericana de reeleição para Trump, as limitações do ATEC ficaram
bastante claras quando o republicano impôs sanções comerciais ao
Brasil em setores do agronegócio (sucroalcooleiro) e na siderurgia
(BBC BRASIL, 2020).
A despeito da chamada aliança preferencial entre Estados
Unidos-Brasil que se procurou sublinhar na gestão Bolsonaro-
Trump, como se pode perceber, os benefícios foram quase nulos. Em
termos mais gerais, esta dinâmica aproxima-se a outras iniciativas
governamentais que foram apresentadas como prova de sucesso da

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 99


diplomacia não-ideológica, ocidentalizada e primeiro mundista no
período como o sucesso comercial do agronegócio, os investimen-
tos estrangeiros, a continuidade do processo de acesso à OCDE e o
Acordo Mercosul-União Europeia.
Porém, nenhum destes pontos pode ser relacionado como
sucesso desta fase: os dois primeiros pontos, agronegócio e inves-
timentos, foram políticas construídas ao longo dos governos ante-
riores, portanto independeram do governo Bolsonaro. Na realidade,
as duas primeiras dimensões tiveram alguns prejuízos devido à
retórica inflamada anti-China, a má gestão da pandemia e a ausên-
cia de confiabilidade do ambiente de negócios local. Por sua vez, a
entrada em vigor do Acordo Mercosul-União Europeia e na OCDE
não ocorreram, estando muito relacionadas às políticas predatórias
do governo no meio ambiente, nos direitos humanos e no trato da
pandemia do COVID-19. Cabe lembrar que estas negociações, em
particular a de União Europeia e Mercosul faz parte de um ciclo de
tratativas iniciado já nos anos 1990, portanto não uma “novidade”
exclusiva da pauta Bolsonaro-Araújo.
O ciclo Trump-Bolsonaro terminaria ainda mais esvaziado por
conta da derrota do presidente norte-americano em sua campanha
de reeleição em 2020. A vitória do democrata Joe Biden chegou até
mesmo a ser motivo de polêmica nas relações bilaterais, à medida
que o governo brasileiro foi um dos últimos a reconhecer sua vitó-
ria e parabenizá-lo pela conquista oficialmente. Tanto Bolsonaro
quanto Araújo, e figuras mais próximas a este círculo de poder,
inicialmente rejeitaram o resultado eleitoral, reproduzindo contes-
tações ao sistema eleitoral divulgadas por Trump. Em 06/01/2021
quando da invasão do Capitólio, o governo brasileiro também não
condenou os atos democráticos e violentos realizados nos Estados
Unidos.
Em 2021/2022, a retórica Trump e do MAGA mais uma vez foi
adaptada à realidade brasileira, no contexto do aprofundamento da
crise econômica-social e das eleições presidenciais. Porém, diferente
de 2018, as coalizões internas que apoiaram Bolsonaro, relativas aos
5Bs começaram a apresentar rachas internos. Adicionalmente, o

100 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


contexto externo, com a derrota de Trump e o acúmulo de pressões
vindas da União Europeia levaram a uma mudança na gestão das
relações exteriores, com a substituição de Araújo por Carlos França
e a busca, pelo menos na área econômica-comercial de uma agenda
mais pragmática, sem alterações no teor das políticas ambientais,
sociais e direitos humanos.
Neste contexto, e pela mudança de algumas demandas internas
devido ao aprofundamento da crise, criou-se uma expectativa, entre
movimentos organizados da sociedade civil (BBC BRASIL, 2022)
de que a futura gestão Biden reenquadraria o Brasil aos regimes e
governança internacional nestes campos. O que se observou foi um
relacionamento complexo entre Brasil-Estados Unidos entre o desa-
linhamento e a acomodação.

Do “desalinhamento” à acomodação?
de Bolsonaro à Lula (2021/2022)

Analisar as relações bilaterais Brasil-Estados Unidos no


período Biden-Bolsonaro (2021/2022) demanda um estudo da con-
juntura nacional e internacional, até porque são períodos recen-
tes e em andamento. Entretanto, é possível já estabelecer algumas
generalizações sobre o tema que indicam, como citado acima, um
cenário de desalinhamento e acomodação (PECEQUILO, 2021;
PECEQUILO, 2021b). Quando se menciona desalinhamento, o que
se busca reforçar é a falta de convergência das pautas democratas e
do governo Bolsonaro no meio ambiente e nos direitos humanos.
Enquanto para os democratas estas agendas são claramente
progressistas e prioritárias (WHITE HOUSE, 2021), o governo bra-
sileiro manteve suas posturas internas sem alteração, mesmo que
com matizações nos discursos ambientais. No campo dos direitos
humanos, em particular direitos de gênero e reprodutivos mante-
ve-se a aliança de extrema direita com as nações conservadoras. As
questões associadas ao negacionismo científico e a falta de preocu-
pação com políticas sociais são outro foco de distanciamento, assim

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 101


como a manutenção de contatos pessoais com interlocutores prefe-
renciais de Trump.
Este desalinhamento não se converteu no desejado reenqua-
dramento do Brasil em 2021 no modelo que desejavam estes movi-
mentos sociais. Esta visão, de certa forma ingênua, ao ignorar rea-
lidades geopolíticas e geoeconômicas, e o papel do Brasil na região
e no mundo, trazia embutida a esperança de que os Estados Unidos
imporiam embargos ou um isolamento ao Brasil a partir de 2021.
Prevaleceu o pragmatismo nesta agenda, que foi a acomodação e a
adaptação diante de novas circunstâncias político-estratégicas. Este
binômio adaptação/acomodação relaciona-se diretamente à preocu-
pação norte-americana em não realizar ingerências no Estado bra-
sileiro e nem promover o distanciamento de sua diplomacia com
o país, em um momento de forte presença chinesa na região (e no
mundo com a Nova Rota da Seda) em setores como 5G, parceiras
tecnológicas, no campo de infraestrutura e desenvolvimento.
Ainda que os democratas não tenham retomado a iniciativa
Growth in the Americas, o lançamento do Build Back Better World
(B3W) na reunião do G7 de 2021, sinalizava a possibilidade de novas
agendas de cooperação nestes setores entre os Estados Unidos e eco-
nomias do Sul. Com isso, o Brasil recebeu a visita de enviados da
CIA como William Burns, o Assessor de Segurança Nacional Jake
Sullivan e de membros do Departamento de Estado em 2021. O Brasil
também participou da Cúpula Ambiental e da Cúpula das Américas.
O ano de 2022, porém, sinalizaria um caminho um pouco dife-
rente, com uma postura mais assertiva dos Estados Unidos diante
do Brasil. Um primeiro tensionamento foi a visita de Bolsonaro à
Rússia, pouco antes da invasão à Ucrânia, e as políticas ora de neu-
tralidade, ora de condenação tímida a Putin no contexto da guerra.
O fator decisivo, contudo, para o abandono da acomodação foi o
aumento da retórica, e de práticas, antidemocráticas pela gestão
Bolsonaro diante da aceleração da corrida presidencial brasileira.
O mesmo ocorreu com a União Europeia e as Nações Unidas que
começaram a ver com preocupação o risco de uma quebra do regime
democrático nacional.

102 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Assim, em uma importante ofensiva, foram realizadas sinaliza-
ções de que não se aceitaria na comunidade internacional nenhuma
tentativa de golpe no Brasil. Altos oficiais do Departamento de
Estado como Victoria Nulland (REUTERS, 2020) em sua visita
ao país deixaram clara sua confiança no regime democrático bra-
sileiro, e em sabatina ao Senado a indicada de Biden para o cargo
de Embaixadora no Brasil, Elizabeth Bagley fez afirmações seme-
lhantes. Bagley somente foi confirmada no cargo pelo Senado em
Dezembro de 2022 após uma longa negociação interna nos Estados
Unidos.
Embora estas posições não tenham tido o efeito de desmobilizar
as bases mais radicais do bolsonarismo, vide a demora de Bolsonaro
em reconhecer a derrota, as manifestações violentas antidemocracia
e episódios de desobediência civil, estas ações da comunidade inter-
nacional e dos Estados Unidos foram fundamentais para indicar
que um Brasil sem democracia não seria um Brasil ator global. Esta
indicação teve repercussão em parte da coalizão dos “Bs” associada
a Bolsonaro, já traçando clara a linha entre democracia e autorita-
rismo, e que não seria aceita nenhuma regressão. Inclusive, após a
vitória de Lula ser declarada no segundo turno, o reconhecimento
do novo presidente foi quase que imediato na comunidade interna-
cional. Além disso, o presidente eleito Lula já voltou a circular em
fóruns multilaterais e encontros estatais, podendo-se mencionar a
visita do Assessor de Segurança Nacional Jake Sullivan.
Parece que o Brasil retoma o protagonismo em política externa,
não sendo poucos os que mencionaram que, finalmente, “o Brasil
voltou”, em meio a dúvidas sobre qual será o legado do período
2019/2022 em termos de política de Estado no campo internacio-
nal. Afinal, retomando o início destas reflexões, ainda que se apre-
sente a gestão Bolsonaro como um ponto fora da curva por conta de
suas políticas ambientais, de direitos humanos e alinhamentos com
governos autoritários e conservadores em costumes, não se pode
subestimar que muitas destas políticas retomaram pautas anteriores
nestes campos vigentes. Pode-se indagar, teria sido uma retomada
de visões prévias sobre projeto nacional social e de desenvolvimento

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 103


que reproduzem as coalizões as elites oligárquicas internas? Teriam
sido os governos Lula da Silva 1 e 2 e Dilma Rousseff os pontos fora
da curva? Estas são perguntas em aberto e que poderão, talvez, ser
respondidas a partir de uma análise estrutural das pautas externas
do Brasil, com recuo histórico e uma análise pragmática do próximo
ciclo que se abre.

Considerações finais

Independente das perspectivas pós-Janeiro de 2023 para as


relações bilaterais Brasil-Estados Unidos e para a própria política
externa brasileira como um todo, o período 2019 a 2022, e mesmo
da eleição de 2018, não podem ser vistos apenas como rupturas na
trajetória nacional. O fato do resultado das eleições presidenciais de
2022 ter apresentado números tão próximos entre os candidatos ao
Planalto, 50,90% e 49,10, mesmo em tempos de profunda crise eco-
nômica e social, já demonstra a existência de uma sociedade divi-
dida em torno de projetos de Estado e visões de mundo de difícil
reconciliação nos extremos e de esvaziamento periódico do centro.
O estabelecimento de uma frente ampla para a terceira vitória
de Lula não é garantia de uma continuidade a médio e longo prazo
da coalizão, principalmente diante do cenário nacional fragmen-
tado e vulnerável que se apresenta. Em 08 de Janeiro de 2023, uma
semana após a posse do Presidente Lula, o país viveu um “Capitólio
brasileiro” com a invasão e destruição de prédios públicos na capital
federal, Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal (STF) e o
Congresso Nacional. Embora o golpe anti-democrático tenha fra-
cassado e a explosão de violência tenha sido amplamente conde-
nada pela comunidade internacional mais uma vez, prevalece uma
dimensão de preocupação real com a estabilidade nacional.
O 08/01 foi consequência de acontecimentos prévios que se
sucederam, como as manifestações políticas de insurgência e deso-
bediência civil que ocorriam desde a proclamação da vitória de
Lula no segundo turno em Outubro de 2022, e que refletem o não

104 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


cumprimento dos ritos da transição democrática por parte da coali-
zão dos “Bs” e suas lideranças. Embora tenha sido muito alardeada
nacional, e internacionalmente, a bonita imagem de Lula subindo a
rampa do Planalto em sua posse com representantes da sociedade
civil brasileira das mais diversas origens, gênero, credo e raças, não
se pode desconectar da realidade de que isto ocorreu pela recusa do
ex-Presidente Bolsonaro em entregar a faixa presidencial a seu suces-
sor, viajando aos Estados Unidos antes do término do mandato4.
Neste contexto, ainda é preciso ter clareza sobre o que foi o
08/01, assim como sobre os motivos pelos quais o pacto sociopolí-
tico anterior foi desconstruído entre 2011-2016, correspondente às
gestões de Dilma Rousseff. Tal clareza demanda mais análises sobre
a política brasileira, suas fontes de sustentação e instabilidade, que
muitas vezes tem ficado obscurecidas no debate doméstico tanto
com relação a suas raízes internas quanto externas.
Adicionalmente, é preciso lembrar que estas oscilações e frag-
mentações não são exclusivas do Brasil, mas sim parte de um con-
texto global de absoluta incerteza em meio a uma transição hege-
mônica Estados Unidos-China em andamento, o repensar da União
Europeia (UE), a guerra Rússia-Ucrânia, a instabilidade latino-a-
mericana dividida entre a disputa de governos progressistas e de
direita, a falência dos modelos neoliberais dos anos 1980, mas que
renascem sob novas óticas e debates, ora atrelados a temas como
empreendedorismo, ora libertários, ora religiosos. Qual será o perfil
e os resultados de Lula 3? Haverá uma nova mudança de governo
nos Estados Unidos em 2024 e de linha política no Executivo devido
às eleições presidenciais? Quais os impactos do confronto Rússia-
Ucrânia em médio e longo prazo? De que maneira conjugar o desen-
volvimento social e econômico? Haverá uma nova pandemia global

4 Até a finalização deste texto, o ex-Presidente permanecia em solo norte-americano. Desde


08/01 inúmeros parlamentares democratas e movimentos da sociedade civil nos Estados
Unidos pressionam o governo Biden por uma atitude mais decisiva contra a permanência
de Bolsonaro no país. A Casa Branca condenou o golpe de forma veemente e já se encontra
agendada uma visita presidencial de Lula a Washington em Fevereiro.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 105


similar ao COVID-19? Essas são perguntas sem respostas, mas que
representam a complexidade do sistema internacional contemporâ-
neo em sua segunda década do século XXI e os inúmeros desafios
que recaem sobre o Brasil.

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108 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 5

DERROTA DEFINITIVA OU
RE VÉS PA SSAGEIRO DO
BOL SONARISMO? POSSÍVEIS
CONSEQUÊNCIA S POLÍTIC A S E
ECONÔMIC A S DO RESULTADO
ELEITOR AL DE 20221

Agnaldo dos Santos2

Introdução

O ano de 2022 conclui um dos mandatos presidenciais mais


singulares da história brasileira, tendo o ex-capitão do Exército e
ex-deputado federal Jair Bolsonaro à frente do Poder Executivo. Seu
mandato foi marcado pela continuidade da crise econômica que
se arrastava desde 2016, com inflação acima da meta, desemprego
alto e queda do poder de consumo dos trabalhadores. Tendência já
identificada no início do mandato em 2019, tal crise aprofundou-se
com o comportamento negacionista do presidente diante da eclo-
são da pandemia do novo coronavírus Covid-19. A necessidade de

1 Texto revisado e ampliado, apresentado no XXII Fórum de Análise de Conjuntura (Unesp/


Unifesp) em 2022.
2 Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE) e do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Faculdade de Filosofia e Ciências -
Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Marília. E-mail: agnaldo.santos@unesp.br

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 109


promover o isolamento social, de um lado, levou à redução abrupta
de parte expressiva da atividade econômica, enquanto não havia
vacina para combater o novo vírus. De outro, a negação da gravi-
dade da doença, chamada de “gripezinha” por Bolsonaro em 2020,
dificultou uma política mais curta e rigorosa de isolamento social,
o que acabou levando a uma quantidade enorme de mortes no país.
A despeito de todas as dificuldades que o país viveu neste
período, a candidatura à reeleição de Bolsonaro chegou competi-
tiva em 2022, resultado tanto da mobilização de forças políticas e
empresariais identificadas com a pauta extremista do governo,
como também dos acordos políticos que garantiram maioria no
Congresso Nacional, possibilitando alguns “pacotes de bondades”
de teor eleitoreiro. Nada disso, porém, foi suficiente para desban-
car a candidatura oposicionista do ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, que em todos os cenários de intenção de votos surgia em
primeiro lugar.
Os analistas políticos, ao longo da campanha (e agora findada
a eleição, com a eleição de Lula em 2º turno e sua posterior posse
como presidente) começaram a prospectar o futuro próximo daquilo
que se convencionou chamar de “bolsonarismo”: continuará como
força relevante, mobilizando parte da sociedade alinhada à agenda
conservadora, orientando as políticas públicas, ou perderá o prota-
gonismo diante da frente ampla que se formou contra sua reeleição?
As reflexões aqui propostas, apresentadas semanas antes das elei-
ções de outubro de 2022, agora serão enriquecidas com o olhar para
os acontecimentos posteriores ao final das eleições, em especial o
período de transição marcado pelos dois últimos meses do final do
mandato de Bolsonaro e o início do terceiro mandato presidencial
de Lula. Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, quando parti-
dários de Bolsonaro invadiram a Praça dos Três Poderes e as sedes
do Executivo, Legislativo e Judiciário (inéditos na história recente
do país), serão discutidos, em busca de pistas sobre o futuro político
do bolsonarismo.
Dessa forma, propomos desenvolver aqui uma análise prog-
nóstica levando em conta: a) as expectativa iniciais com o governo

110 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


que assumiu em 2019; b) o cenário internacional desta terceira
década do século, diferente do cenário das últimas décadas; c) a
consequente comparação do quadro político de 20 anos atrás,
quando da primeira eleição de Lula, com o atual que marca sua
terceira eleição presidencial; d) os desafios para o novo governo de
esquerda (ou de frente ampla) e as possibilidades de reorganiza-
ção da direita no país, que durante os últimos anos foi hegemoni-
zada pelo extremismo político. Nesse quarto tópico, incluiremos
algumas considerações sobre a tentativa de golpe contra o início
do mandato de Lula, ocorrida no início da segunda semana de seu
governo recém empossado.

O que esperávamos em 2019?

A agenda apresentada por Bolsonaro em 2018 era marcada


por um misto de retórica anticomunista e antissistema político,
conservadorismo religioso (especialmente de matriz neopentecos-
tal) e defesa de um neoliberalismo radical. Havia poucas propostas
sistematizadas, mas no geral o que se esperava de sua campanha
vitoriosa, a partir de 2019, era o aprofundamento das políticas eco-
nômicas imposta por Michel Temer após o impeachment de Dilma
Rousseff. E também a desarticulação de muitas políticas sociais
construídas desde os anos 1990, no bojo da Constituição Federal
de 1988.
Tendo à frente da área econômica o banqueiro Paulo Guedes,
que assumiu o novo Ministério da Economia (que agregou os anti-
gos ministérios da Fazenda, do Trabalho e do Planejamento), o
governo prometia acelerar o processo de privatizações das empresas
estatais, tendo a Petrobrás, a Caixa Econômica Federal e o Banco
do Brasil como os alvos prioritários. Além disso, Guedes prometia
endurecer a política de austeridade fiscal, perseguindo uma redu-
ção do déficit público por meio de cortes de gastos sociais e inves-
timentos públicos, o que permitiria também ao mercado oferecer
serviços sob responsabilidade estatal.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 111


Além destas questões macroeconômicas, o governo que
assumia deveria também corresponder às expectativas de setores
importantes da economia que o apoiaram explicitamente na cam-
panha eleitoral, como o agronegócio. Dessa forma, os ministérios
do Meio Ambiente e da Agricultura se submeteram aos interesses
imediatos do complexo agropecuário, especialmente com a redu-
ção da fiscalização dos desmatamentos e interrupção de demar-
cação de terras indígenas, aumentando assim as áreas disponíveis
para o plantio de grande escala, além da exploração predatória do
garimpo nessas áreas.
Contudo, como apontamos em outra oportunidade3, o
governo eleito era repleto de interesses contraditórios, que em
algum momento acabariam criando dificuldades para Bolsonaro.
A agenda de austeridade, sinalizando a redução de recursos públi-
cos para a base eleitoral de deputados e senadores, dificilmente
seria aceita pelos congressistas. Ademais, a retórica antissistema
de Bolsonaro poderia dificultar a articulação política do Executivo
com a casa legislativa, ainda que ele próprio tenha sido deputado
por vários mandatos (apesar de compor o chamado “baixo clero”
da Câmara dos Deputados). Se o governo recém-eleito aceitasse de
pronto negociar com o “Centrão” (que o jornalista José Roberto de
Toledo alcunhou de “Arenão”4, devido aos laços hereditários com
o partido da ditadura militar), Bolsonaro correria o risco de ficar
desmoralizado diante de seu eleitorado, que aderiu de forma acrí-
tica ao discurso moralista anti-corrupção. Mas, se jogasse duro com
a maioria do Congresso, dificilmente veria prosperar suas agendas
favoritas, relacionadas à pauta de costumes e à facilitação no acesso
a armas, além daquelas prometidas aos players do mercado finan-
ceiro, como as privatizações. Essa tensão perdurou em boa parte

3 “As vicissitudes do Governo Bolsonaro e os desafios ao Brasil no próximo período”.


América Latina e os impactos multidimensionais da pandemia. CORSI, Francisco;
SANTOS, Agnaldo dos; MENDONÇA, Marina Gusmão (org.). Marília:SP, Projeto
Editorial Práxis, 2022.
4 Disponível em https://www.blogs.unicamp.br/verticesociologico/2021/07/13/centrao-ou-
-arenao/. Acessado em 03/11/2022.

112 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


do primeiro ano do mandato, mas a pandemia acabaria criando
condições de aproximação entre governo e parlamento, como dis-
cutiremos adiante.
Como corolário da retórica antissistema (que, nunca é demais
lembrar, já soava muito hipócrita vindo de alguém com mais de três
décadas na vida pública), Bolsonaro também indicava dificuldades
de relacionamento com órgãos de carreira de Estado (como parte
do Ministério Público) e com o Poder Judiciário. Ainda que tenha
contado, em boa parte de seu mandato presidencial, com a simpatia
de muitos procuradores e juízes, o presidente entendia que várias
decisões tomadas pelo judiciário, particularmente pelo Supremo
Tribunal Federal, batiam de frente com sua agenda de costumes.
A tensão só piorou com decisões judiciais relativas à autonomia de
estados e municípios no enfrentamento da pandemia e, ainda mais,
com a anulação do processo que condenou o ex-presidente Lula à
prisão, tornando-o novamente apto a disputar eleições. Seu ques-
tionamento sobre a segurança da urna eletrônica, uma reedição
brasileira da polêmica dos votos pelo correio nas eleições estaduni-
denses que marcaram a derrota de Donald Trump para Joe Biden,
enterram de vez qualquer possibilidade de pacificação entre o
Executivo e o STF. O enfrentamento e o discurso extremado contra
o STF e a Justiça Eleitoral marcaram boa parte de seu mandato, e
provavelmente terá consequências políticas e judiciais no período
que se seguirá com sua saída do Palácio do Planalto.
O fato é que muitos analistas, no início de seu mandato,
previam um governo bastante conturbado, como de fato acabou
ocorrendo, tendo a eclosão da pandemia como um agravante ines-
perado. Mas, além disso, mudanças no cenário exterior também
influenciaram (como não poderia deixar de ser) na dinâmica polí-
tica interna do Brasil durante o período em questão.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 113


O contexto internacional

É bastante conhecida a relação entre o staff político da nova


direita estadunidense, tendo Donald Trump e Steve Bannon5 como
figuras de destaque, e a família Bolsonaro, especialmente com os
filhos Carlos e Eduardo. Portanto, não é coincidência que a eleição
de Trump tenha antecedido e, de certa forma, guiado os passos de
seus congêneres na América Latina e em outras partes do mundo. O
aumento expressivo da desigualdade social, apontado por diferentes
indicadores econômicos, é o combustível da ascensão da extrema-
-direita mundial, aproveitando-se do fracasso do modelo neoliberal
e da insuficiente resposta da esquerda para as consequências de tal
modelo.
Com as vitórias de Trump em 2016, da campanha da saída da
Grã-Bretanha da União Europeia (“Brexit”) em 2017, da reeleição
de Viktor Orbán na Hungria em 2018, além da expressiva vota-
ção da extrema-direita na França, na Áustria, na Alemanha e em
outros países europeus no período recente, parecia que o projeto de
Bolsonaro teria longo fôlego. Como é a maior capitalista do mundo
e uma superpotência militar, a dinâmica política interna dos EUA
acaba por influenciar o humor político dos demais países na arena
internacional. Mesmo com a derrota para Joe Biden em 2020, a cha-
mada “alt-right” (ou simplesmente o conjunto de forças conhecido
como trumpismo) continua influente, capturando o centro polí-
tico6. Os contatos permanentes entre os colaboradores próximos de
Bannon, uma espécie de guru da extrema direita mundial, e a família
Bolsonaro, sugerem que estes últimos tentarão replicar suas táticas.
A malfadada tentativa, no início de 2021, de ocupação do Capitólio
(sede do legislativo estadunidense) pelos trompistas, quando o

5 Disponível em https://theintercept.com/2020/08/21/steve-bannon-preso-bolsonaro-ex-
trema-direita/. Acessado em 03/11/2022.
6 Um bom livro que discute os fundamentos filosóficos dessa nova direita, ligando-a com
uma articulação mundial, é Guerra pela Eternidade - o retorno do tradicionalismo e
ascensão da direita populista, de Benjamin R. Teitelbaum. Editora da Unicamp, 2020.

114 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Congresso de lá reconheceu a vitória e Biden, inspirou claramente
as ações desesperadas de bolsonaristas no dia 8 de janeiro de 2023,
infelizmente confirmando os temores de muitos que temiam por
alguma aventura golpista.
De todo modo, é importante destacar que os fatores econô-
micos estruturais que viabilizaram a ascensão da extrema-direita
mundial continuam sem soluções. Depois da grande crise finan-
ceira do sub-prime de 2008, a economia mundial tem encontrado
dificuldades em atingir percentuais satisfatórios de crescimento.
Mesmo a China, grande motor da expansão econômica das últi-
mas décadas, apresenta números mais modestos, ainda que acima
da média mundial7. Em que pese o fato da fórmula de austeridade
fiscal ter sido abandonada pelas economias centrais, na expectativa
de alavancar um novo ciclo de crescimento, boa parte do receituário
neoliberal ainda continua sendo ditado para a periferia do sistema.
Foi o caso do Brasil. É possível traçar uma linha contínua entre a
desastrosa política de austeridade de Joaquim Levy no início do
segundo mandato de Dilma (interrompido em 2016), a reorientação
liberal completa da política econômica sob Michel Temer, guiado
pelo documento “Ponte para o futuro”, e a agenda implementada
por Paulo Guedes a partir de 2019. No caso específico do Brasil, que
guarda paralelos com outras experiências mundo afora, a soma de
contração de gastos públicos, juros altos e redução da massa sala-
rial (esta, decorrente da reforma trabalhista de 2017) fez com que
o crescimento brasileiro ficasse ainda abaixo do já modesto cresci-
mento da economia mundial no período. Portanto, o quadro já era
preocupante quando eclodiu a pandemia do coronavírus no país,
em março de 2020, acarretando uma combinação de crise econô-
mica e sanitária.
Isso talvez ajude a explicar o movimento pendular do com-
portamento eleitoral no continente. Quando Lula foi eleito pela
primeira vez, em 2002, havia uma espécie de “onda vermelha” (ou

7 Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/crescimento-da-china-vai-desace-
lerar-drasticamente-em-2022-diz-banco-mundial/. Acessado em 03/11/2022.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 115


“cor de rosa”, devido aos contornos de centro-esquerda) com as
vitórias eleitorais da esquerda na Venezuela, no Uruguai, no Chile
e na Argentina, que se seguiriam com outras vitórias no Paraguai,
no Equador e na Bolívia, ainda naquela década. Alguns chegaram
mesmo a ver no movimento uma espécie de “pós-neoliberalismo”,
mas o fato é que não houve profunda ruptura com os alicerces eco-
nômicos construídos nos anos 1990, baseados na abertura dos mer-
cados e na apreciação cambial. Uma combinação de políticas sociais
mais amplas e crescimento das exportações, devido à forte demanda
de commodities da China, possibilitou às forças de centro-esquerda
latino-americana atingirem uma competitividade eleitoral que seria
novamente fragilizada após a crise econômica mundial de 2008.
Os processos de impeachment contra Fernando Lugo no Paraguai,
Dilma Rousseff no Brasil, além de processos judiciais contra Rafael
Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia e Cristina Kirchner na
Argentina, ao longo da segunda década do século, foram prepa-
rando o caminho para o retorno da direita em vários desses países
do continente. Primeiro, Sebastian Pinera no Chile, depois Lenin
Moreno no Equador (este, aliás, antigo colaborador de Correa),
além do perene aliado estadunidense no continente, a Colômbia de
Álvaro Uribe, formaram um conjunto de países com governos de
perfil conservador que teriam na eleição de Bolsonaro um expres-
sivo reforço.
No entanto, a persistência da crise econômica na região, cujos
governos conservadores insistiam na política de austeridade, além
da histórica estrutura de desigualdade social, aliada à derrota de
Trump nos EUA em 2020, passam a mudar o quadro favorável à
direita no continente. As eleições do Chile, da Bolívia, do Peru (um
pouco antes, no México, mais ao norte), além de uma candidatura
de direita mais moderada e vitoriosa no Uruguai, começaram a
criar um isolamento político de Bolsonaro no continente. As postu-
ras negacionistas de seu governo diante da pandemia só pioraram a
imagem dele no exterior.
Além disso, teve que enfrentar um quadro para o qual sua con-
fusa política externa não estava preparada: os conflitos dos EUA com

116 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


a China (a questão de Taiwan) e com a Rússia (Guerra da Ucrânia).
A retórica do chanceler Araújo colocava inicialmente o Brasil ao
lado dos EUA. Contudo, o governo acabou evitando romper com-
pletamente com a China (pela óbvia importância econômica) e com
a Rússia, cujo presidente ironicamente tinha pontos de contato com
o discurso emanado pela extrema-direita mundial. Isso acabou con-
tribuindo ainda mais para seu isolamento: nem tinha total apoio dos
EUA, já que Biden não tinha interesse em ver um aliado de Trump
fortalecido na América Latina, nem conseguia apoio da China, que
era acusada inclusive de “criadora” do Covid-19 pelos bolsonaristas.
E a eclosão da Guerra na Ucrânia, cujas origens estão no avanço
da OTAN (logo, dos EUA) para o Leste Europeu, acabou levando o
governo Bolsonaro a uma “neutralidade” que só aumentou sua má
reputação entre as lideranças internacionais.
Então, o contexto internacional que parecia alvissareiro para
seu governo, quatro ou cinco anos atrás, havia se alterado rapida-
mente. Apesar de ainda receber ajuda logística da “alt-right” estadu-
nidense, Bolsonaro só poderia contar com uma campanha interna
muito articulada na pauta de costumes e no antipetismo para con-
seguir a reeleição. Por outro lado, o cenário que Lula encontraria em
um eventual terceiro mandato também era bastante diverso daquele
de vinte anos atrás.

O Brasil de 2022, distinto do Brasil de 2002

O início do século foi marcado por alguns eventos que aca-


bariam influenciando o início do primeiro mandato de Lula, com
ecos até a deposição de Dilma em 2016. Talvez o mais significativo
seja que a crise do chamado “Consenso de Washington”, que guiou
em boa medida a agenda política da América Latina nos anos 1990,
não significou o fim da orientação neoliberal na região. Lula vence a
eleição de 2002 contra o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, que
havia sido reeleito em 1998, mas teve o segundo mandato marcado
pela falência do modelo econômico neoliberal. O símbolo dessa

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 117


falência havia sido a privatização do sistema elétrico brasileiro, que
gerou diversos “apagões” naquele período. Com a taxa de desem-
prego rondando os 20%, o aumento da inflação (ainda que longe dos
patamares dos anos 1980) e da insegurança alimentar, foi possível
que a candidatura de Lula chegasse competitiva e, por fim, vitoriosa.
Mas foi preciso “beijar a cruz” com a famosa Carta aos Brasileiros,
no qual se comprometia a não alterar os alicerces macroeconômicos
construídos em 1994, com o Plano Real, além dos processos de pri-
vatizações, como a da Companhia Vale do Rio Doce. Mesmo pro-
metendo inserir o pobre no orçamento a partir de 2003, os limites
eram evidentes.
De todo modo, a vitória da esquerda no Brasil não foi um ato iso-
lado, como indicamos acima. A ascensão de diversos governos desse
espectro político na região foi caracterizada como uma “onda ver-
melha”, ainda que boa parte deles (talvez, exceção dada a Venezuela)
estivesse propondo claramente uma agenda “socialista”. O processo
de globalização, caracterizada pela abertura econômica – e que
teve como marco a criação da Organização Mundial do Comércio
(OMC), em 1995 – não permitia mais experiências de substituição de
importantes, como na primeira metade do século XX.
Na verdade, a combinação entre abertura econômica, câmbio
apreciado e forte demanda por commodities por parte da China, que
já no início do século havia se transformado na “oficina do mundo”,
acabou acelerando um processo de desindustrialização na região.
Como as indústrias latino-americanas não tinham o mesmo grau
de competividade das situadas na Ásia, e como são ricas em recur-
sos naturais, parte significativa das elites destes países estimula-
ram a reprimarização de suas economias. Por um lado, essa opção
pode acarretar superávits comerciais quando a demanda interna-
cional é alta; por outro, privilegia setores que remuneram mal e
não são intensivos em mão de obra. Na prática, significa que um
governo com agenda social pode utilizar os recursos provenientes
desse superávit comercial para implementar programas de combate
à fome e de seguridade social aos mais desamparados, mas dificil-
mente consegue reverter a reprimarização. Sem entrar agora nas

118 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


particularidades desse período de 14 anos em que o PT esteve na
presidência, podemos dizer que ele foi bem-sucedido no combate
à extrema pobreza e dinamizou parte da economia do país, mas
não estancou a desindustrialização. Isso é mais dramático porque o
país nunca conseguiu completar o ciclo da II Revolução Industrial,
perdeu a III Revolução Tecnológica (de base microeletrônica) e
agora precisa se adaptar à “Indústria 4.0”.
E tal “opção preferencial” pela reprimarização feita pela elite
brasileira acarreta muitos riscos: além de perpetuar uma estrutura
socioeconômica muito desigual (que apenas postos de trabalho em
setores dinâmicos e bem remunerados poderiam alterá-la), fica à
mercê da sazonalidade por demanda de bens primários dos países
manufatureiros. Uma das marcas dessa situação é a queda da par-
ticipação dos salários no PIB, como consequência tanto do desem-
prego quanto da “legalização” da precariedade decorrente da última
reforma trabalhista. Seu maior expoente é a chamada “economia de
plataforma”: atividades remuneradas sem vínculos empregatícios,
intermediadas por plataformas digitais como Uber ou IFood. Essa
configuração do mercado de trabalho intensifica uma tendência já
identifica no final dos anos 1990 – o desemprego estrutural e a pul-
verização da classe trabalhadora, longe dos sindicatos e dos acordos
coletivos, capazes de forjar uma identidade de classe. Isso evidente-
mente afeta a disposição para a mobilização social, tornando o con-
texto que apresentou a emergência do PT, da CUT e do MST parecer
algo ainda mais distante. Em parte, explica porque a popularidade
de Lula é significativa entre as classes D e E, favorecidas com pro-
gramas de transferência de renda e outras políticas sociais. Mas, por
outro lado, o partido não consegue mais mobilizar como em outros
tempos a classe trabalhadora. Algo que ficou bastante evidente
quando ocorreu o processo de afastamento de Dilma Rousseff.
É possível afirmar que tanto Lula quanto o PT, nesse período,
demonstraram grande resiliência eleitoral, mesmo após toda a
campanha midiática contra a política institucional e de mobiliza-
ção antipetista da classe média e de setores mais abastados do país.
Apesar da sangria sofrida desde 2006, ocasionada pela Ação Penal

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 119


do chamado “mensalão” e, mais recentemente, pela Operação Lava
Jato, o partido foi vitorioso em 3 eleições e chegou ao 2º turno em
2018. E Lula foi durante toda a campanha de 2022 o favorito a se
eleger pela terceira vez8. Mas, com um quadro diverso daquele de
vinte anos atrás, e agora confirmada sua eleição, devemos tentar
identificar as possibilidades que se abrem a partir de 2023. E que
incluem o futuro do bolsonarismo.

O que virá após as eleições de 2022?

Quando esse texto foi concluído, as eleições já haviam se encer-


rado, com a vitória de Luís Inácio Lula da Silva, em uma disputa
muito acirrada e decidida no segundo turno. Também já havia ocor-
rido a sua posse para o terceiro mandato, repleto de simbolismos e
mensagens de busca pela reconstrução do país9. Havia muita expec-
tativa, nos primeiros dias após o fim do processo eleitoral, sobre
qual seria o comportamento do presidente derrotado na tentativa de
reeleição. Além de toda a estrutura de informações (em sua maio-
ria, falsas) disseminadas nas redes sociais, bastante utilizada por
Bolsonaro em 2018, o governo anterior usou o poder da máquina
pública para alcançar a reeleição, ampliando às vésperas da elei-
ção a extensão do Auxílio Brasil (antiga Bolsa Família), oferecendo
crédito consignado pela Caixa Econômica Federal aos beneficiá-
rios desse programa, auxílios para taxistas e caminhoneiros, entre
outras medidas. Vencer essa máquina foi mais um feito notável de
Lula, que fez com que Bolsonaro fosse o primeiro presidente, desde
a instituição da reeleição, a não conseguir esse objetivo.

8 “Datafolha no 2º turno: lula tem 49% das intenções de voto; Bolsonaro, 44%”, por Levy
Teles. O Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/data-
folha-no-segundo-turno-lula-tem-49-das-intencoes-de-voto-bolsonaro-44-3/. Acessado
em 03/11/2022.
9 “O discurso e a ação – Para de fato combater a desigualdade, promessa na posse, Lula terá
que enfrentar interesses poderosos e seculares”, por André Barrocal. Carta Maior. 11 de
janeiro de 2023, Ano XVIII, nº 1241, pp. 14-18.

120 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A eleição de Lula representou mais que a vitória de seu par-
tido: foi a vitória de uma frente ampla, construída com a finalidade
primeira de defender o Estado Democrático de Direito, bem como
conter o avanço da extrema-direita e a desorganização das políti-
cas sociais inscritas na Constituição de 1988. Mas é evidente que
os desafios que virão agora são imensos, a começar pelos primeiros
diagnósticos levantados pela equipe de transição instituída assim
que o TSE confirmou a vitória da chapa Lula-Alckmin. Os desafios
mais óbvios são os relacionados à gestão: o governo Bolsonaro desar-
ticulou o sistema de vigilância ambiental, instaurou uma Auxílio
Brasil desconsiderando o Cadastro Único (CadÚnico) utilizado pelo
Programa Bolsa Família, diminuiu o financiamento da Saúde, da
Educação, da Ciência e Tecnologia etc10. O Gabinete de Transição
Governamental, equipe da chapa vitoriosa responsável pela análise
da situação do governo que findava, com sugestões para o governo
que assumiria em 2023, divulgou um relatório com a situação que
encontraram. O relatório aponta o reingresso de 33 milhões de bra-
sileiros ao mapa da fome, além de 125 milhões vivendo em algum
grau de insegurança alimentar. Os cortes na área da saúde para o
ano de 2023, uma das mais significativas em termos de políticas
públicas, passavam dos R$ 10 bilhões, inviabilizando ações estraté-
gicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Já na educação, outra área
importante, o governo Bolsonaro manteve congelado por quatro
anos o valor de R$ 0,36 por aluno destinado à merenda escolar11. Em
janeiro de 2023, outra tragédia foi revelada: a população Yanomâmi,
que vive em regiões do estado de Roraima, foram abandonadas em
meio à corrida pelo garimpo em suas terras. A estimativa é que,
nos quatro anos do governo Bolsonaro, 570 crianças morreram

10 “Equipe de Transição identifica problemas graves em diversas áreas, como infraestrutu-


ra, saúde, educação”, por Gabriel Valery. Rede Brasil Atual. Disponível em: https://www.
redebrasilatual.com.br/politica/gabinete-transicao-problemas-graves-diversas-areas/.
Acessado em 30/01/2023.
11 Relatório Final. Gabinete de Transição Governamental, 2022, pp. 11 e 12. Disponível em
https://gabinetedatransicao.com.br/noticias/relatorio-final-do-gabinete-de-transicao-go-
vernamental/. Acessado em 30/01/2023.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 121


por doenças tratáveis, além de milhares de indígenas subnutridos e
adoecidos, numa situação que pode ser caracterizada como genocí-
dio consentido pelo Estado, entre 2019 e 202212.
Além das inequívocas decisões desastradas e criminosas toma-
das pelo governo que sai, há uma questão de fundo: a política de
austeridade fiscal instituída pela emenda constitucional do cha-
mado “Teto de Gastos”, no governo Michel Temer. Na verdade, a
pandemia mostrou que tal instrumento é totalmente impraticável,
pois limita o crescimento de investimentos à correção da inflação do
ano anterior, o que levou o governo a “furar o teto” nos últimos dois
anos para o enfrentamento da Covid-19. Isso significa que é impe-
rioso revogar tal dispositivo legal, que atua como um mecanismo
pró-cíclico em períodos de recessão econômica, como o que se vive
em 2022 e se projeta para 202313.
Mas constatar esse fato não significa que seja simples revogar
o Teto de Gastos: dias depois do final da eleição, a mídia corpora-
tiva já iniciou a especulação sobre quem seria o futuro ministro da
Economia (que voltará a ser Fazenda, desmembrando o “supermi-
nistério” de Guedes), bem como se o futuro governo se comprome-
teria com a manutenção da política de austeridade. Lula prometeu,
durante a campanha, que incluiria o pobre de novo no orçamento,
e o rico no imposto de renda. Mas a reação da mídia, que passou a
chamar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição
proposta pelo futuro governo (que viabilizará os programas sociais e
alguns investimentos no início do governo) de “PEC da Gastança”14,

12 “Solução final – O governo Bolsonaro deu guarida à ação deliberada de extermínio dos
Yanomâmi”, por Fabíola Mendonça. Carta Capital. 1 de fevereiro de 2023. Ano XXVIII, nº
1244, pp. 14-19.
13 “Economista de Lula: vamos revogar o teto de gastos e criar um novo arcabouço fiscal”,
por Luciana Dyniewicz e Adriana Fernandes. O Estado de São Paulo. Disponível em ht-
tps://www.estadao.com.br/economia/economista-lula-teto-de-gastos-guilherme-mello/.
Acessado em 30/01/2023.
14 “PEC da Gastança pode elevar dívida bruta a 95,3% do PIB em 2031”. Disponível em ht-
tps://crusoe.uol.com.br/diario/ifi-pec-da-gastanca-pode-elevar-divida-bruta-a-953-do-
-pib-em-2031/. Acessado em 18/11/2022.

122 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


é sinal que a elite econômica não aceitará tão facilmente arcar com
sua parte nos custos da dívida histórica que o país tem com seu
povo. Exemplo que reforça essa postura dos endinheirados ocorreu
já nas primeiras semanas do novo governo, quando o Banco Central
manteve a taxa básica de juros da economia (SELIC) em 13,75%15 e,
após questionamento de Lula e demais membros do governo sobre
patamar tão alto, houve uma ordem unida da mídia corporativa a
favor do presidente do banco Central, Roberto Campos Neto16.
Somado a esse desafio, por si só imenso, será preciso enfrentar o
problema da agitação dos herdeiros do bolsonarismo. O fechamento
de várias rodovias no país por caminhoneiros descontentes com o
resultado eleitoral, um dia após o pleito, já indicava o tamanho do
problema. Mas o evento que demonstrou a real dimensão da radica-
lização dos seguidores de Bolsonaro foi a invasão da Praça dos Três
Poderes e o ataque ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e
ao Supremo Tribunal Federal, na tarde de 8 de janeiro de 202317. A
violência terrorista dos atos, cujos perpetradores não foram incomo-
dados até o início da noite daquele dia, nem pela polícia, nem pela
Guarda Presidencial do Exército, foi um evento inédito desde o fim
da ditadura militar, mas um resultado natural de anos de incentivo do
próprio Bolsonaro, que questionava continuamente o Poder Judiciário
e a estrutura eleitoral brasileira durante todo o seu mandato.
Como Bolsonaro não fez um pronunciamento após as eleições
reconhecendo o resultado das urnas, uma parte de seus seguidores
acalentou, semanas após o final do processo eleitoral, a esperança de
uma “intervenção militar” que anularia todo o processo eleitoral e

15 “Após COPOM, mercado adia no Focus previsão de 1º corte da Selic para novembro”. Isto
É Dinheiro. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/apos-copom-mercado-adia-
-no-focus-previsao-de-1o-corte-da-selic-para-novembro/ . Acessado em 06/02/2023.
16 “Estadão ouve ‘economistas’ sobre Campos Neto no Roda Viva: todos a favor”. Brasil 247.
Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/estadao-ouve-economistas-
-sobre-campos-neto-no-roda-viva-todos-a-favor/. Acessado em 14/02/2023.
17 “O dia seguinte – O fracassado golpe bolsonarista resulta de um complô entre fanáticos,
endinheirados, militares e policiais. E fortalece momentaneamente Lula”. Por André
Barrocal. Carta Capital. 18 de janeiro de 2023, Ano XXVIII, nº 1242, pp. 12-17.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 123


promoveria prisões de juízes e partidários de Lula. Mesmo que con-
sideremos esse contingente muito inferior diante dos 49% de elei-
tores de Bolsonaro – um pouco mais de 58 milhões e duzentos mil
de brasileiros)18, ainda sim é inequívoca a visibilidade dessa nova
extrema-direita no país. Seu protagonismo foi forjado ao longo de
vários anos, desde o primeiro mandato de Lula, tendo seus pontos
altos as manifestações sequestradas de 2013 e a mobilização pelo
golpe (caracterizado como impeachment) contra Dilma, em 2016.
Representa uma parcela da sociedade que sempre esteve presente
em momentos decisivos da história moderna do país, como no
golpe de 1964, mas que foi substancialmente fortalecida nos últimos
anos com a ascensão do neopentecostalismo, hoje uma força polí-
tica inquestionável e que foi a principal base eleitoral de Bolsonaro.
Há muita especulação sobre qual será o futuro desse contingente
político, especialmente após a decretação da intervenção federal na
segurança pública do Distrito Federal durante o mês de janeiro de
2023, e as seguidas prisões temporárias e processos judiciais contra
os participantes dos atos terroristas de 8 de janeiro19.
O comportamento de Bolsonaro logo após sua derrota indica
certa hesitação sobre qual seu papel daqui em diante. De mesma
maneira que Aécio Neves, que foi derrotado em 2014 por Dilma
Rousseff, mas cuja conduta posterior acabou o desqualificando
como referência da oposição, Jair Bolsonaro corre o risco de perder
esse capital político adquirido nos últimos anos. É possível que ele
tenha acreditado na possibilidade de um levante militar golpista
após o resultado das eleições, o que explicaria seu silêncio inicial. Os
atos posteriores, em janeiro, parecem corroborar essa hipótese. Mas
os sinais de que parte expressiva das Forças Armadas não estava

18 Lula foi eleito com 50,9% de eleitores, mais de 60 milhões e trezentos mil brasileiros.
Disponível em https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/apuracao/2turno/. Acessado em
03/11/2022.
19 “Polícia Federal caça mais três terroristas dos atos de 8 de janeiro”, por Plínio Teodoro.
Revista Fórum. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2023/2/3/policia-
-federal-caa-mais-trs-terroristas-dos-atos-de-de-janeiro-130967.html. Acessado em
03/02/2023.

124 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


disposta a entrar nessa aventura20 (ainda que seus simpatizantes
sejam igualmente numerosos21) parecem ter minado sua disposi-
ção a atitudes mais radicais, ao menos com sua participação direta.
Até porque diversos processos sobre fake news e apoio a atos antide-
mocráticos já tramitam no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e na
Suprema Corte, o que pode acarretar tanto sua inelegibilidade por
vários anos, quanto até uma condenação na justiça comum que o
levaria para a prisão. Se esses forem os caminhos, Jair Bolsonaro
pode acabar uma carta fora do baralho, mas certamente não será o
fim do movimento que o conduziu à presidência em 2018.
Vários de seus correligionários foram eleitos para o parlamento
em 2022: seu vice-presidente Hamilton Mourão e sua ex-ministra
Damares Alves foram eleitos senadores, alguns próceres da antiga
Operação Lava Jato também obtiveram vagas no Congresso Nacional,
como o ex-juiz Sérgio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol, além
de seu filho Eduardo Bolsonaro e outras figuras que foram projeta-
das pelo antipetismo nos últimos anos. Certamente farão oposição
sistemática ao novo governo, e tentarão herdar o eventual vácuo de
Jair Bolsonaro. Como o novo governo começará muito pressionado,
por um lado, pelo mercado financeiro e os donos do dinheiro e, por
outro, pela dívida histórica do Estado com as camadas mais fragi-
lizadas da população, tal oposição apostará em um rápido desgaste
do governo para reconstruir sua base política. E precisamos sempre
lembrar que, independente da figura de Bolsonaro, a extrema-direita
criou bases na política nacional, transformando o Brasil em um ver-
dadeiro “laboratório da extrema-direita global”22.

20 Os militares e a política”, por Cesário Melantonio Neto. Último Segundo. Disponível em:
https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/coluna-do-embaixador/2023-02-10/os-milita-
res-e-a-politica.html. Acessado em 10/02/2023.
21 “Sérgio Etchegoyen e os negócios militares”, por Luís Nassif. Jornal GGN. Disponível em
https://jornalggn.com.br/crise/sergio-etchegoyen-e-os-negocios-militares-por-luis-nas-
sif/. Acessado em 19/01/2023.
22 “Brasil é um laboratório da extrema-direita global”, por Laís Modelli. Opera Mundi.
Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/analise/78549/brasil-e-um-laboratorio-
-da-extrema-direita-global. Acessado em 11/01/2023.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 125


Por outro lado, o novo governo Lula terá oportunidade de
demonstrar que aprendeu com os erros do passado. Erros que
podem explicar, em parte, o protagonismo da direita nas manifes-
tações de rua na última década, com o progressivo afastamento do
PT e da esquerda dos movimentos sociais e do trabalho de mobi-
lização, marca de sua gênese política nos anos 1980. O recruta-
mento de diversas lideranças populares para cargos nas prefeituras,
governos estaduais e governo federal durante sua hegemonia elei-
toral acabou fragilizando sua capacidade de organização nos bair-
ros e nas regiões onde se concentram boa parte de seu eleitorado.
Foi uma aposta de via única na institucionalidade, que cobrou um
alto preço neste último período, quando mostrou incapacidade de
resistir ao movimento golpista de 2016. A natureza de frente ampla
do novo governo, que não terá um caráter claramente de esquerda,
bem como as dificuldades econômicas previstas para os primeiros
anos de mandato, exigirá uma mobilização que ao mesmo tempo
defenda o governo e o pressione por pautas mais progressistas.
Indiscutivelmente, a resposta imediata do novo presidente à tenta-
tiva de golpe de 8 de janeiro, que utilizou uma intervenção federal
na segurança pública de Brasília por 30 dias, ao invés da convocação
das Forças Armadas por meio de um decreto de Garantia da Lei e
da Ordem (GLO), abriu uma oportunidade de concertação nacional
pró-democracia. Nos dias seguintes, o presidente se reuniu com os
chefes dos poderes Legislativo e Judiciário e com os governadores23,
sinalizando a intenção de costurar uma ampla aliança contra a vio-
lência de extrema-direita. Isso poderá dar um fôlego para buscar
negociações em outros campos, como no econômico.
Alguns analistas e lideranças políticas acreditam que essa
complexa dinâmica poderá ser garantida com o aprofundamento

23 “Lula se reúne hoje com Fórum de Governadores”, por Karine Melo. Agência Brasil.
Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-01/lula-se-reune-
-hoje-com-forum-de-governadores. Acessado em 30/01/2023.

126 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


dos mecanismos de democracia participativa24, previstas na
Constituição Federal e nas leis orgânicas das políticas sociais de
educação, saúde, seguridade social e outras, e que foram desmon-
tadas desde a deposição de Dilma. Elas, ao mesmo tempo, utili-
zam a institucionalidade inerente ao espaço estatal, mas também
estimulam a organização de base, desde os bairros e cidades, até
às grandes deliberações nacionais. Também se poderá apostar nos
mecanismos de economia solidária, que tem nas cooperativas de
agricultura familiar do Movimento Sem Terra (MST) e nos muti-
rões do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) excelentes
“usinas” de protagonismo social. Ademais, a primeira viagem inter-
nacional do recém-eleito presidente indicou sua intenção em trans-
formar o desenvolvimento econômico com preservação ambiental
em sua grande bandeira, que poderá conciliar a retomada do cresci-
mento econômico com iniciativas ambientalmente sustentáveis. Sua
participação, como convidado especial, na Conferência do Clima
das Nações Unidas (COP-27) em novembro de 2022, indicou a dis-
posição do novo governo em utilizar o tema como instrumento pri-
vilegiado de diplomacia presidencial25.
A luta pela defesa da democracia e contra o avanço do neo-
fascismo, que permanecerá entre nós por um bom tempo – já que
é alimentado pela crise estrutural da economia mundial – exigirá
soluções criativas e muita mobilização popular.

24 “As conferências nacionais do país são mostradas como exemplo”, por Luís Nassif. Jornal
GGN. Disponível em https://jornalggn.com.br/gestao-publica/o-mundo-discute-formas-
-de-aprofundamento-da-democracia-por-luis-nassif/. Acessado em 03/11/2022.
25 “Lula busca romper isolamento do país na COP27 ao se contrapor a política ambiental
de Bolsonaro”, por Bianca Gomes, Gustavo Schmitt e Sérgio Roxo. O Globo. Disponível
em https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/11/lula-busca-romper-isolamento-
-do-pais-na-cop27-ao-contrapor-politica-ambiental-de-bolsonaro.ghtml. Acessado em
30/01/2023.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 127


CAPÍTULO 6

VITÓRIA ELEITOR AL CONTR A


O FA SCISMO E A DISPUTA
PELO ES TABELECIMENTO DE
CONSENSOS CIVILIZ ACIONAIS
NO BR A SIL PÓS - GOVERNO
BOL SONARO

Fabio Venturini1

Em dois anos, desde o afastamento de Dilma em maio de


2016 até a greve dos caminhoneiros em maio de 2018, o governo
de Michel Temer conseguiu promover mudanças estruturais na
legislação brasileira contemplando os interesses do bloco formado
durante o golpe do impeachment, no sentido desmonte da proteção
trabalhista, social e soberania nacional. Foram demolidos os pilares
da conciliação entre as classes em luta nos anos 1980, afirmados na
Constituição de 1988.
Pontos como reforma trabalhista com restrição de acesso à
justiça trabalhista e liberação de terceirização de atividades fim2, a
emenda constitucional do teto de gastos, o desmonte de políticas

1 Professor-adjunto no Departamento Multidisciplinar da Escola Paulista de Política,


Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (EPPEN/Unifesp).
2 A medida permitiu, por exemplo, a contratação de empresas terceirizadas para mascarar
não apenas a violação de direitos trabalhistas, mas também o emprego de trabalho escra-
vo. Por isso foi acompanhada do desmonte dos mecanismos de fiscalização e no início do
mandato de Lula, com a retomada desses órgãos, grandes empresas como vinícolas do Rio

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 129


públicas inclusivas e progressivas foram o objeto de rápido e esforço
do governo. Porém, a sua sustentação, perpetuação e ampliação
dependia de fazer o seu sucessor nas eleições presidenciais de 2018.
Mesmo depois de ter sido alijado do governo pela via do golpe,
as chances de retorno do Partido dos Trabalhadores no pleito
seguinte sempre como grandes desde que seu candidato fosse o
ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, líder em todas as pesquisas
de intenção de voto, com tendência de vitória ainda em primeiro
turno. Os setores aglutinados pelo golpe de 2016, com uma forte
unidade entre todas as frações da burguesia (financeira, industrial
e comercial), oligarquias regionais, agronegócio, governo dos EUA,
instituições de justiça, mídia de massa e classes médias, construíram
a expectativa de um enfrentamento nas urnas entre o candidato do
PSDB, já estava definido, o então governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin, e uma nova força de esquerda que suplantasse o Partido
dos Trabalhadores, com um debate vinculado à agenda de costu-
mes, replicando no Brasil a disputa recorrente entre “Republicanos”
e “Democratas”, nos Estados Unidos. Ademais, sem Lula, não have-
ria um nome petista com suficiente interface eleitoral para capturar
os votos profundamente vinculados à pessoa de Lula, no fenômeno
que André Singer chamou de “lulismo” (2012).
Um ano antes da eleição, em outubro de 2017, seja na academia
ou na imprensa, pouquíssimos analistas políticos, senão nenhum,
avaliavam serem reais as chances de Jair Bolsonaro ser eleito presi-
dente. Sua candidatura era tratada como uma das muitas bazófias
frequentes nas eleições brasileiras desde o final da Ditadura Militar.
A equipe do representante da extrema-direita, contudo, trabalhava
construindo alianças com setores satisfeitos, porém sem qualquer
lealdade a Michel Temer, assumindo compromissos que nenhum
político preocupado com os processos de uma democracia de direito
teriam o despudor de aceitar. Ao agronegócio propunha liberação
ampla e irrestrita de agrotóxicos, armas de grosso calibre para

Grande do Sul e refinarias de derivados da cana no sudeste já foram flagradas empregando


trabalho escravo de fornecedores terceirizados.

130 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


“matar sem-terra” e desoneração total da exportação. Com garim-
peiros e grileiros de terra planejava o fim de reservas indígenas e da
fiscalização ambiental. Para empresários urbanos, reforma previ-
denciária, aprofundamento da reforma trabalhista e eliminação de
impostos. Para governos estrangeiros, a eliminação de dispositivos
de soberania nacional. Para lideranças evangélicas, a teocratização
cristã do Estado. Para as polícias, o direito de matar.
O discurso de Bolsonaro era tão absurdo que se imaginou não
ser capaz de vencer, obtendo algum apoio popular como sempre
houve a candidatos de extrema-direita, porém os índices de inten-
ção de voto, que chegavam até a casa dos 20% no início da campa-
nha, eram entendidos como um “teto” que dificilmente seria furado.
No período de definição das candidaturas, os partidos articulado-
res do golpe (DEM, PP, Solidariedade e PR) se coligaram a Geraldo
Alckmin, do PSDB, garantindo mais da metade do tempo de TV.
O MDB de Michel Temer lançou o Ministro da Fazenda, Henrique
Meirelles, como um aparador de críticas ao programa econômico,
liberando Alckmin da alta reprovação do governo, que chegava à
casa do 74%3. Dos demais candidatos, Marina Silva, terceira colo-
cada em 2018, e Ciro Gomes, voltando a disputar a eleição presi-
dencial depois de 16 anos, tentavam se manter como alternativas à
dicotomia PT-PSDB desgastada pelo golpe, enquanto o PT prepa-
rava a substituição de Lula, naquele momento em prisão política,
por Fernando Haddad.
Uma vez que parecia inconcebível o eleitorado escolher para
governar o país um político vulgar e notoriamente inepto, caberia
então aos demais candidatos desidratar o homem da extrema-di-
reita para chegar ao segundo turno contra o PT, aproveitando o
antipetismo figadal e irracional em expansão desde os preparati-
vos para o golpe de 2016. Bolsonaro entrou em uma crescente com
eventos já durante o período eleitoral: a impugnação da candidatura

3 Ver: RAMALHOSO, W. Temer, o Impopular. UOL, 30 de dezembro de 2018. Disponível


em <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/12/30/temer-o-impopu-
lar-o-que-mudou-no-pais-em-dois-anos-de-governo.htm>. Acesso em 21/2/2023.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 131


de Lula no dia 1º de setembro, a facada sofrida pelo candidato do
PSL em Juiz de Fora no dia 6 de setembro e a entrada de Fernando
Haddad no lugar de Lula em 11 de setembro, elevaram suas chan-
ces, mas sem ainda convencer, colocando as análises de conjuntura
sobre qual seria seu “teto”, com projeções na faixa de 20% a 26%,
como apontava o diretor do Atlas Político, Andrei Roman4.
No entanto, Bolsonaro só passava a liderar as pesquisas sem o
nome de Lula entre as opções. Significa que não um teto, mas um
elevador vazio foi colocado à sua disposição. As intenções de voto
em Bolsonaro dispararam após e as manifestações “Ele Não”, em 29
de setembro e a extrema-direita chegou muito perto da vitória em
primeiro turno no dia 7 de outubro, mostrando que se a tendência
de adesão irracional e figadal na base do “qualquer um para tirar o
PT” se confirmasse, pela primeira vez uma perspectiva claramente
chegaria à presidência do Brasil pela via do voto.
O bloco aglutinado pelo golpe de 2016, no governo Temer e em
torno da candidatura de Geraldo Alckmin não conseguiu chegar a
5% dos votos válidos. A dicotomia Lulismo-PSDB fora demolida,
dando lugar a uma disputa entre a “esquerda”, tendo como maior
referência o PT como defensor de uma agenda progressista de cos-
tumes, e o antipetismo, uma aglutinação despolitizada, reacioná-
ria, antipolítica moralista e cristã que rapidamente atraiu tanto uma
grande parte da base popular do “lulismo” quanto o que restava de
eleitorado tipicamente tucano (MOURA e CORBELLINI, 2019).
Na noite de 28 de outubro de 2018, antes do primeiro pronun-
ciamento, Jair Bolsonaro deu a palavra a Magno Malta, reconhe-
cendo a importância do eleitorado evangélico para sua vitória. O
senador capixaba, em transmissão na TV, apresentou o procedi-
mento da seguinte forma:

4 Ver: MARREIRO, Flavia: Ataque ajudará Bolsonaro a chegar perto de seu teto eleitoral,
em torno de 26%. El País Brasil, 8 de setembro de 2018. Disponível em: <https://brasil.
elpais.com/brasil/2018/09/04/politica/1536094658_372158.html>. Acesso em 21/02/2023.

132 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Começamos essa jornada orando. E o poder de Deus,
ninguém vai explicar isso nunca, o que acontece, os
obstáculos da esquerda jamais seriam arrancados
sem a mão de Deus. Chegamos, começamos orando
e nada mais justo que oremos para agradecer a Deus.
Então, vamos dar as mãos, todos, e vamos orar nesse
momento.

O também pastor e cantor gospel “orou” proferindo um dis-


curso nos termos da campanha de Bolsonaro, numa entoação con-
fessional e de olhos fechados:

Senhor meu deus e meu pai, nesse momento nós


te somos agradecidos. Foram anos de luta, falando
com o povo, pedindo a tua proteção, falando sobre
família, falando sobre país, cuidado das nossas crian-
ças, deus na vida, deus na vida da família, na vida
do Brasil, lutando contra a corrupção e enfrentando
tudo e todos. Esse é um momento festivo. Mas, mais
que isso, é um momento de gratidão. Agradecer ao
senhor pelo que fez: levantou Jair Bolsonaro duas
vezes. Porque o senhor não permitiu que a morte o
tragasse no momento de expectativa e de sonho do
povo brasileiro. Agradecer médicos, enfermeiros,
oh deus, os cuidados daqueles que o cercaram no
momento mais difícil da vida dele. Ele está de pé. Oh,
deus, a vitória concretizada, agora dê a ele sabedoria,
compreensão ao povo brasileiro, a todos nós, para
que ele possa ter tempo para poder reparar, desfazer
minas que foram colocadas, e devolver dias felizes,
de alegria ao povo brasileiro, às nossas crianças, às
nossas escolas e às nossas famílias. A tua palavra diz
que quem unge a autoridade é Deus e o senhor ungiu
Jair Bolsonaro e, a partir dessa data, senhor, ele passa
a ser o presidente de todos nós, um presidente que
ama a pátria, um cristão verdadeiro, um patriota
cheio de fé, de coragem, de esperança. Agradecemos
por isso, por todos os nossos amigos, companheiros
desde o homem mais simples das ruas do município
mais simples desse país, que levantou uma bandeira.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 133


Desde aquela senhora que orava de madrugada, a
outra que rezava, evangélicos, espíritas, católicos,
confissões de fé de um país majoritariamente cris-
tão. Obrigado, Jesus, pela família dele, pelos filhos,
pela esposa, pelo cuidado, oh deus, porque se tor-
naram guardiões da vida dele mais que nunca num
momento difícil. Obrigado por essa hora de festa no
Brasil e no mundo. Agradecemos em nome de Jesus,
o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!

Com 55% dos votos válidos, o Brasil substituiu a conciliação de


cidadania afirmada em 1988 por um consenso teocrático e belicoso
sob direção da extrema-direita, num programa econômico despu-
doradamente defensor de revogação de direitos, concentração de
renda, entrega de setores estratégicos da economia para o capital
financeiro associado à perseguição política, ideológica, racial e de
gênero. O novo governo, construído sobre uma base militar, massa
evangélica em fran a fascistização e do agronegócio, apoiado pelo
poder econômico do capital mais avançado, agregando elementos
das instituições de polícia e justiça, fazia uma transição de imprová-
vel para potencialmente longevo governo do bolsonarismo.
Historicamente, as experiências de características semelhantes
ao fascismo foram encerradas:
1) Ou pela derrota militar (o Segundo Império Francês
liquidado com a derrota na Guerra Franco-Prussiana, a
queda do fascismo italiano e do nazismo alemão na II
Guerra Mundial, o fascismo no leste europeu derrotado
pela União Soviética na Ucrânia, no Báltico e na Romênia,
bem como pelas revoluções socialistas na Albânia e na
Iugoslávia).
2) Ou mimetizada num novo bloco de poder pactuado con-
ciliando com a social-democracia ao final de ditaduras
que duraram décadas, como o franquismo na Espanha,
o Salazarismo em Portugal e, em certa medida, o fim
do Apartheid na África do Sul e da Ditadura Militar no
Brasil.

134 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Embora nenhum dos episódios exemplificados tenham se aca-
bado as ideologias e aspirações do tipo fascistas, a violência do pro-
cesso para seu declínio fez com que se tornassem minoritários nas
referidas sociedades e moralmente rejeitado pelas suas populações.
No Brasil, no entanto, um programa tanto neoliberal quanto tribu-
tário da Ditadura Militar, de um nacionalismo cristão belicista e de
ideologias supremacistas, consagrado nas urnas, foi igualmente der-
rotado pelo voto em 2022. Mesmo com toda a estrutura do Estado
Brasileiro trabalhando a seu favor, Bolsonaro foi derrotado nas unas
por Lula.
Portanto nos colocamos aqui as seguintes questões para ana-
lisar a conjuntura do Brasil nesse início de período de tentativa de
reconstrução dos fundamentos da sociedade lançados em 1988:
1) Como e por que o neofascismo foi eleitoralmente derro-
tado pelas mesmas urnas que o consagrou?
2) Quais são as possibilidades de expandir essa derrota até
os níveis societais mais elementares?
Para tanto aqui trilhamos o método de análise de conjuntura
proposto por SOUZA (1987), analisando acontecimentos, cenários,
atores, relações de força e articulação entre estrutura e conjuntura
identificando suas relações com o sistema capitalista mundial, o
poder político transnacional, s formas de controle político, as estra-
tégias políticas dos atores envolvidos, o quadro recente e os campos
de confronto.

Brasil no conflito global

A atual hegemonia belicista norte-americana cada vez mais


agressiva, o avanço do sistema financeiro sobre os estados nacio-
nais e a formação do sujeito numa cultura neoliberal (DARDOT e
LAVAL, 2016) de amplo espectro só foi possível com o colapso e a
dissolução da União Soviética, evento dramático que sepultou o que
Hobsbawn (1995) chamou de “breve século XX”.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 135


O processo de dissolução da URSS deu à Rússia alguma influên-
cia sobre as ex-repúblicas socialistas, porém o Leste Europeu e as
repúblicas do Báltico estavam irreversivelmente alinhadas ao oci-
dente capitalista, com novos regimes fomentados por atuação direta
de inteligência norte-americana, a ponto dessa experiência ser usada
para construção de um manual de mudanças de regimes escrito por
Gene Sharp (1994). Embora não houvesse ameaças à hegemonia dos
EUA, os interesses geopolíticos norte-americanos se dirigiram para
uma dominação de amplo espectro, passando também pela política,
a economia e a capacidade bélica, mas também cultural e de visão
de mundo, como mostrou Moniz Bandeira (2015). A Rússia em crise
política permanente, com pouca capacidade de orientar a política
das repúblicas ex-soviéticas, mantinha um pacto de colaboração
mútua com Belarus e a Ucrânia, enquanto sua economia, com Boris
Yeltsin, entrou em franco processo de liberalização e pilhagem por
uma nova oligarquia e empresas ocidentais; a China, com altos índi-
ces de pobreza e miséria, buscava modernizar seu parque industrial
a partir de cópias de bens industriais de baixo valor agregado, ainda
tentando resolver questões como alimentar uma população acima
da casa de 1 bilhão de cidadãos; a América Latina, prostrada diante
do Consenso de Washington após o final das Ditaduras Militares;
o continente africano mergulhado em guerras civis com a queda
de governos apoiados pela extinta URSS; o Japão em declínio e as
economias capitalistas mais dinâmicas do sudeste asiático em crises
constantes decorrentes do processo de financeirização e subordi-
nação aos bancos norte-americanos; a Europa Ocidental tentando
consolidar um bloco econômico para reduzir sua dependência dos
EUA; o Leste Europeu ou aderindo a programas de ajuda do FMI
que dilapidaram direitos sociais e soberanias nacionais ou, no caso
de Iugoslávia, sofrendo ataques diretos de tropas da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A despeito de todas as especificidades internas de cada país,
o dado é que não havia ao final da Guerra Fria sequer um sistema
internacional de freios e contrapeso em relação à hegemonia dos
EUA. As táticas de mudança de regime desenvolvidas no colapso

136 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


do bloco comunista permaneceram empregadas para remover dos
novos governos partidos resistentes à integração dos novos países
capitalistas tanto à União Europeia quanto à OTAN. Os primeiros
movimentos surgiram com conteúdo nacionalista, como o boliva-
rianismo na Venezuela e, a ascensão de Vladimir Putin na Rússia, a
consolidação de Muamar Kadhafi na Líbia e da revolução Islâmica
no Irã. Na virada do século a busca por acordos bilaterais e de blocos
alternativos aos controlados pelos EUA cresceu na medida em que o
consenso neoliberal não oferecia respostas econômicas para os pro-
blemas concretos dos países em desenvolvimento. Países com grande
demanda reprimida internamente passaram a fazer programas de
desenvolvimento por inclusão do consumidor interno, criando os
caminhos do assim chamado “Sul Global” em um sentido paralelo e
com tendência à autonomia em relação aos Estados Unidos
O surgimento de governos voltados ao desenvolvimento nacio-
nal enfraqueceu os mecanismos usados pelos EUA desde o colapso
de Bretton-Woods (VAROUFAKIS, 2011): o controle absoluto do
sistema financeiro global e o financiamento de seus déficits fiscal e
comercial com impressão infinita de dólares, cujo lastro era garan-
tido pelo potencial militar. Diante da necessidade de expansão eco-
nômica e contenção de países emergentes, a promoção de mudan-
ças de regime através do fomento de oposições internas simpáticas
aos interesses norte-americanos no Leste Europeu, no Norte da
África e na Ásia se tornou um dos principais instrumentos de atua-
ção externa dos EUA para conseguir expandir seu poderio global
(BANDERA, 2015)
A expansão da OTAN para o Leste Europeu não encontrou
resistência direta russa nos primeiros 15 anos (Polônia, Hungria
e República Tcheca em 1999; Bulgária, Letônia Estônia, Lituânia,
Romênia, Eslováquia e Eslovênia, em 2004) , apesar dos protes-
tos de Moscou. Contudo, em dezembro de 2007, na Conferência
de Segurança de Munique, Vladimir Putin fez um forte discurso
contra a expansão da OTAN no Leste, reivindicando o fim de fato
da Guerra Fria, uma vez que do lado Soviético o Pacto de Varsóvia
foi dissolvido, e afirmou que não seriam mais tolerados avanços

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 137


em direção ao território Russo. A incorporação dos Balcãs foi efeti-
vada para cercar a Sérvia, aliada Russa: Albânia e croácia em 2009,
Montenegro em 2017 e Macedônia do Norte em 2020. A reação
russa veio quando, ignorando todos os protestos de Moscou, a
aliança militar dos EUA, passou a tratar da entrada da Geórgia em
2008, país então governado por Mikheil Saakashvili, que chegou à
presidência após a “Revolução Rosa”, na qual as forças orientadas
por Washington derrubaram o presidente nacionalista recém-eleito
Eduard Shevardnadze.
A instabilidade conscientemente criada no Cáucaso resultou
numa situação de pré-guerra civil em favor da integração europeia
e adesão à OTAN, com ameaças de ataque e extermínio da popu-
lação de etnia russa nas regiões da Abecásia e Ossétia do Sul. Em
agosto de 2008 a Rússia invadiu a Geórgia, anexou as duas regiões
e obrigou Tiblisi a desistir da entrada na OTAN. A partir de então,
o Kremlin definiu a atualização e o desenvolvimento de tecnologia
militar, incluindo a nuclear, como prioridade nacional para se pro-
teger de tentativas dos EUA, via OTAN, para promoções de “revo-
luções coloridas” nas fronteiras ou dentro de território russo. A
mudança de regime, com a implosão da coesão territorial e política
russas eram um objetivo publicamente declarado pelos EUA. A cen-
sura e o autoritarismo cresceram internamente, bem como o apoio
tanto popular quanto da oposição liderada pelo Partido Comunista
da Federação Russa. A defesa nacional suplantou todos os demais
temas na agenda política russa, do Báltico ao Pacífico.
A crise dos subprimes em setembro de 2008 expandiu a neces-
sidade de rapinagem dos EUA e as mudanças de regimes voltaram
à agenda de Washington na América Latina, onde aparentemente
o consenso de Washington indicava a aceitação de regimes consti-
tucionais. Na tentantiva de mitigar o “bolivarianismo” e promover
cercos estratégicos tanto aos governos mais nacionalistas (Cuba e
Venezuela), bem como cercar o Brasil, historicamente vigiado para
não se tornar uma potência na América do Sul, foram promovi-
das as deposições por vias institucionais não militares de Manuel
Zelaya (Honduras, 2009) e Fernando Lugo (Paraguai, 2012). Nessas

138 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


primeiras experiências de mudança de regime com uso de instru-
mentos parlamentares e de justiça, os presidentes foram arranca-
dos do cargo de forma abrupta. As técnicas desenvolvidas no leste
europeu apareceram nas mobilizações contra governos eleitos com
fundamentos e soberania nacional com os golpes contra Dilma
Rousseff, em 2016, e Evo Moráles (2019) tendo como vetor da insa-
tisfação popular o tema da corrupção.
A crise da hegemonia norte-americana, com a ascensão eco-
nômica e política chinesa, bem como a recuperação bélica global da
Rússia, fez com que o hegemon global se tornasse mais agressivo e
mais suscetível a lançar mão de aliados e ideologias anti-civilizacio-
nais contra governos nacionalistas na periferia e na semi-periferia
do sistema. Esta forma de mudança de regime obteve sucesso ainda
na Ucrânia (2014) e na Coreia do Sul (2016), ambos países onde,
assim como o Brasil, os golpes em Viktor Yanukovich e Park Geun
Hye se deram com ampla aliança do governo dos EUA com oposi-
ções internas de corte neoliberal e neo-nazifascista. A turbulência
global conscientemente provocada seguiu no sentido de uma espécie
de revogação informal ao direito à soberania e ao desenvolvimento
nacional de países emergentes, exceto China, Índia e Rússia, cujo
potencial nuclear demanda planejamento militar mais pesado.
Essa aliança do Partido Democrata com neonazistas no leste
europeu, bem como com militares defensores das ditaduras lati-
no-americanas no Brasil, acabou devolvendo o impulso à extrema-
-direita no seu próprio sistema político. Sem respostas econômicas
e políticas para as classes subalternas, aumentos expressivos da
desigualdade e da miséria no país mais rico do planeta e sem uma
referência não neoliberal que desse perspectivas de melhoras para
as classes subalternas, o neo-nazi-fascismo se tornou o arcabouço
político-ideológico preferencial dos setores mais conservadores da
sociedade estadunidense, ocupando o Partido Republicano como
instrumento legítimo de interesses da extrema-direita global.
Com dois polos neoliberais internamente, os EUA se aprisio-
naram em duas formas de consensos neoliberais: o “progressista”,
no qual apenas direitos individuais de identidade e gênero são

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 139


colocados como passíveis de evolução; e o antidemocrático. Em
ambos os casos, os estados-nacionais estariam demolidos (BROWN,
2019). O próprio sistema que originou a hegemonia norte-ame-
ricana estaria em profunda crise existencial tanto política quanto
economicamente, empurrando o Brasil, em desenvolvimento, para
colisão contra os interesses norte-americanos tanto em termos de
cerco contra a Rússia e a China quanto na necessidade de desapossar
o País de ativos valiosos para lastrear os papéis podres do sistema
financeiro pós-crise dos subprimes.

Cenário interno

Outro consenso político baseado em crenças metafísicas


corria o Brasil até pelo menos 2013: não havia mais espaço para
golpes de Estado em nossa democracia consolidada. Contudo os
precedentes mostravam que em momentos de crise, quando a
fração hegemônica da Burguesia não se sentiu politicamente repre-
sentada de forma proporcional ao seu potencial, as classes domi-
nantes se unificaram, coesas, para mudar o regime do país, mesmo
que para algumas de suas frações significasse modificar as bases
sobre as quais operavam economicamente em termos vantajosos
(CARDOSO, 1964).
Com o golpe militar, apesar da produção agroexportadora e
das atividades extrativistas continuarem pujantes e protegidas pelo
Estado, o programa político das classes dominantes, operacionali-
zado pelas Foras Armadas, concebia o desenvolvimento industrial
subordinado aos interesses norte-americanos como meio de dina-
mizar a economia brasileira. O consenso do estado indutor e do
desenvolvimento industrial forjou as ideologias à esquerda e à direita
no Brasil até pelo menos o início dos anos 1980. Internacionalmente,
contudo, a crise de Bretton-Woods abriu caminho para o neolibe-
ralismo, quando a burguesia do núcleo entendeu não ser mais pos-
sível manter o casamento entre capitalismo e democracia no oci-
dente, como mostrou Wolfgang Streek (2018). Enquanto o Brasil

140 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


caminhava no sentido do estado desenvolvimentista, o mundo
retroagia para um liberalismo desregulamentado e autoritário.
A Constituição de 1988 consagrou a aliança da burguesia
industrial com o proletariado urbano, mas, naquele momento, nem
a burguesia queria tal arranjo. A vitória de um programa neolibe-
ral nas eleições presidenciais de 1989, com Collor de Mello, jogou
o Brasil numa crise irrefreável, uma vez que a indústria ainda era
suficientemente forte para comandar a economia, porém o desejo
das classes dominantes era a “modernização” com o livre mercado
e a desregulamentação. Os anos 1990 foram de uma reforma consti-
tucional permanente e informal viabilizada pelo Plano Real, o qual
deslocou do setor produtivo industrial para o sistema financeiro o
locus da acumulação capitalista, formando a aliança entre o capi-
tal especulativo e as classes médias urbanas às custas do acelerado
empobrecimento do proletariado urbano e do subproletariado. Os
governos Lula e, principalmente Dilma, tentaram mudar a matriz
para a acumulação com o desenvolvimento industrial retomando
a conciliação estabelecida na Assembleia Nacional Constituinte.
Nesse ponto é necessário enfatizar que a conciliação não foi rea-
lizada por governos petistas, eles a herdaram do processo consti-
tuinte, permeadas pelas reformas neoliberais dos anos 1990 e pelos
acordos para obter apoio da burguesia na campanha de 2002, dos
quais resultou o documento “Carta aos Brasileiros”, um compro-
misso do então candidato Lula com o cumprimento da constitui-
ção reformada, incluindo dispositivos de austeridade, controle de
gastos, honrar pagamentos da dívida pública e a manutenção da Lei
de Responsabilidade Fiscal.
O processo de democratização dos anos 1980 foi incompatível
com o avanço do neoliberalismo, cuja demanda é por um estado
policial, punitivo, e desregulamento a quem cabe manter basi-
camente as instituições de polícia e justiça, como mostrou Rafael
Valim (2015). As promessas do neoliberalismo não se realizaram e
os consensos de livre-mercado foram abalados em toda a América
Latina, culminando com governos da assim chamada “onda rosa”:
Hugo Chávez na Venezuela, Nestor Kirchner na Argentina, Evo

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 141


Moráles na Bolívia, Rafael Correa no Equador, Tabaré Vasquez no
Uruguai e Lula no Brasil.
Os governos petistas, ao reivindicarem o cumprimento da
Constituição, retomaram internamente o consenso de estado indu-
tor do desenvolvimento, responsável pela proteção social, a expan-
são de direitos e os processos democráticos liberais burgueses como
forma de definições políticas, fundamentado numa aliança com
setores produtivos das classes dominantes, proletariado urbano e
subproletariado beneficiado por políticas sociais, especialmente
no Nordeste, formando a base do “lulismo”, como mostrou André
Singer (2012, op. cit).
Os processos eleitorais do final dos anos 1990 até o auge do
“lulismo”, em 2012, mesmo nas candidaturas da direita, eram pau-
tados pela agenda de direitos sobre a da liberalização. O ponto alto
foi em 2010, quando o candidato neoliberal, José Serra, evitava
temas como as privatizações de estatais, notoriamente presente no
seu programa político. O PT se tornou muito forte eleitoralmente,
praticamente anulando as expectativas de um candidato do sistema
financeiro globalmente hegemônico vencer pelo voto prometendo
direitos mas sabidamente preparado para entregar austeridade.
Para mudar os rumos atendendo tanto aos interesses da fração
hegemônica da burguesia (financeira) quanto da geopolítica dos
EUA, as alternativas restantes residiam em ou eleger Aécio Neves em
2014 ou uma mudança de regime. E, como René Dreifuss (1989) já
pontuara após a promulgação da Constituição de 1988, cuja reforma
se iniciou com apresentação em massa de emendas a partir do dia
seguinte, em 6 de outubro de 1988, a tendência da direita brasileira
é aceitar os processos democráticos enquanto for possível implantar
seu programa político nessa via, caso contrário ela não vê qualquer
impedimento em aplicar novos golpes.
Seja para eleger Aécio Neves ou derrubar Dilma, seria neces-
sário mudar o consenso na sociedade brasileira. Na esfera cultural
e ideológica, esse trabalho já estava iniciado, pelo menos, desde o
período do primeiro mandato do presidente Lula, tendo como pedra
angular a mídia, amplamente controlada pela burguesia financeira.

142 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Até pelo menos 2004, na efeméride dos 40 anos do golpe militar,
o consenso sobre o século XX e, principalmente, a ditadura, havia
hegemonia pela esquerda. Foi necessário um esforço de anos a fio
para que a opinião pública desconfiasse da comunidade científica e
aceitasse interpretações sem lastro de realidade, fundamentadas em
polêmicas vazias. A razão de mundo precisaria deixar a demonstra-
ção empírica e aderir a um conjunto metafísico de valores neoliberais
que sem qualquer compromisso factual e metodológico nas áreas de
sociais e de humanidades. Nesse sentido houve uma pletora de auto-
res, articulistas, novas editoras de livros financiadas por think tanks
empresariais fomentando revisionismos nas áreas História, Filosofia,
Economia e Educação, com “best sellers” como Marco Antônio Villa,
Leandro Narloch, Luís Felipe Pondé e Olavo de Carvalho.
Como a qualidade de vida melhorou nos governos petistas, a
propaganda neoliberal ainda carecia de uma base discursiva factível
para demonstrar a ineficiência do capitalismo associado à demo-
cracia. O poder judiciário, primeiro no caso do mensalão, depois
na Lava Jato, atuou em consórcio com empresas jornalísticas para
construir o consenso de que o estado gera a crise devido à corrup-
ção: os governos do PT “quebraram” o Brasil, Lula era chefe de uma
quadrilha e era preciso desmontar as estruturas estatais corrompi-
das, especialmente a Petrobras.
Nas classes médias, ideologicamente mais suscetíveis a dis-
cursos idealistas, o consenso em torno da Operação Lava Jato e do
PT como “organização criminosa” se formou rapidamente, dando
a Aécio Neves expressiva votação no Sul e em São Paulo, em uma
campanha já completamente marcada pelo discurso reacionário
neofascista e anticomunista. A reeleição de Dilma só se consolidaria
com respostas econômicas. Dez empresas foram responsáveis pelas
doações de campanha que elegeram 70% da Câmara dos Deputados,
dissolvendo a já tensa base de apoio parlamentar do governo. Sem
vencer nas urnas, o programa neoliberal só tinha agora o golpe
como possibilidade de implantação.
O Brasil no final de 2014 vivia uma dupla crise. Além da
queda de arrecadação, as desonerações fiscais para a indústria

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 143


não redundaram em investimentos produtivos, mas em especu-
lação financeira realizada pelo empresariado industrial. A outra
crise, decorrente do fracasso da política de desonerações, residia no
aumento do desemprego e em novos empregos de qualidade infe-
rior. Emparedada, com um congresso hostil controlado pelo sistema
financeiro, Dilma entregou o ministério da Fazenda a Joaquim
Levy, executivo do banco Bradesco, e fez uma série de concessões
em termos de austeridade fiscal e corte de gastos, agravando a crise,
principalmente no desemprego. Já deslocada para um discurso anti-
petista e anticomunista, a massa de trabalhadores do lulismo passou
a migrar do Lulismo para o antipetismo.

A nossa “revolução colorida”

A operação Lava Jato e a campanha para o impeachment que-


braram o consenso de afirmação de direitos, fizeram a população
aceitar a mudança de regime sem mesmo entender que haveria tama-
nha transformação na política e na economia do País. Contudo, a
sua viabilidade decorreu de um primeiro grande impulso em junho
de 2013. Em abril daquele ano, Dilma tinha avaliação de Bom e
Ótimo na casa de 57%. Em julho, caiu para 30%5. O movimento
iniciado em São Paulo, com uma agenda de direitos (passe livre e
uso social do orçamento) começou com as bandeiras amarelas e ver-
melhas da oposição de esquerda ao PT e terminou atropelado pelo
verde-amarelo neo-nazi-fascista em questão de duas semanas, cul-
minando com o Movimento Passe Livre e MTST expulsos, sob tapas
e cuspidas, da Avenida Paulista.
Mas como as condições econômicas ainda eram favoráveis,
a mudança de regime ficou aguardando a via eleitoral. A adesão

5 Ver: DATAFOLHA. Aprovação a governo Dilma Rousseff cai 27 pontos em três semanas.
Disponível em: <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2013/06/1303659-apro-
vacao-a-governo-dilma-rousseff-cai-27-pontos-em-tres-semanas.shtml>. Acesso em
21/02/2023.

144 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


despudorada da campanha de Aécio Neves à extrema-direita colo-
cou o movimento verde-amarelo ao lado dos tucanos. Nas eleições
de 2016 o PSDB passou de 695 para 803 prefeituras, incluindo 26 dos
92 maiores municípios do país, entre eles São Paulo, onde João Dória
Jr. derrotou Fernando Haddad no primeiro turno, Santo André e
São Bernardo do Campo, redutos históricos do PT.
Tudo indicava que o governador Geraldo Alckmin chegaria
como favorito em 2018, desde que Lula não estivesse na cédula.
Porém as instituições de justiça, polícia e Forças Armadas, com o
gosto da atuação política tão saboroso nos lábios quanto o cheiro de
sangue para um tubarão, decidiram dirigir o processo e construir
sua própria aliança em torno de Jair Bolsonaro.
Sem um nome que cativasse a radicalização ou convencesse a
base lulista a migrar para si, o PSDB foi suplantado nas urnas pelo
“outsider”, a vítima da facada, o escolhido por deus para defender a
família, “nossas crianças” e retornar a uma vida feliz. Quem tirou a
extrema-direita das catacumbas foi o PSDB e quem assumiu a sua
liderança foram os setores militarizados da política, associados ao
comando das Forças Armadas. O que chamamos costumeiramente de
“bolsonarismo” é um movimento iniciado nos anos 2000 para quebrar
todos os consensos civilizatórios que geravam condições melhores de
vida para as classes subalternas e faziam o Brasil pender à esquerda.
Sem Lula, o debate no período eleitoral foi induzido a seguir
outra dicotomia, entre liberalismo clássico, com progresso na agenda
de identidade e raça, com afirmação do indivíduo, não necessaria-
mente em direitos coletivos, contra o neoliberalismo neo-nazifas-
cista. O evento artificialmente organizado via Facebook conhecido
como Ele Não foi um mosaico de perspectivas políticas e ideológicas
sem uma liderança clara, todos contra Bolsonaro, o que se encaixou
perfeitamente no story telling da campanha da extrema-direita.
Naquele mesmo final de semana de 28 de setembro de 2018,
imagens reais de pessoas nuas, beijos homoafetivos, jovens fumando
cigarros de maconha e outros pontos da agenda “identitária” típica
do Partido Democrata foram espalhadas como fogo na prada-
ria via grupos de WhatsApp em impulsionamentos massivos em

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 145


estados-chave eleitoralmente onde Dilma havia vencido em 2014,
principalmente Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nos dias seguintes,
conteúdo mentiroso estruturado como notícia, as “fakenews”, man-
tiveram o debate eleitoral longe do debate econômico, capturando
até aa campanha de Haddad, que paulatinamente a agenda “lulista”
para aderir ao debate de costumes. A esquerda, da direção moral da
política no início dos anos 2000, chegou ao ponto de ser ela enten-
dida como algo abjeto, promíscuo, pervertido, corrupto e mentiroso.
Após aquele final de semana quebrarams=se todas as resistências a
Bolsonaro nas camadas populares, principalmente entre mulheres
pobres e da periferia. Milhares de igrejas evangélicas se tornaram
comitê político do bolsonarismo. Em 28 de outubro, depois de tanto
“ultrapassar o teto, Bolsonaro foi eleito presidente.

Governo e tensionamento

Desde o início ficou claro que o bolsonarismo não contava com


quadros qualificados em todas as áreas necessárias para governar o
Brasil. Além do discurso falacioso de redução de número de minis-
térios para poupar gastos, havia questões operacionais insanáveis.
Toda a gestão pública passou a ser orientada por interesses come-
zinhos, de pequenos grupos ou até mesmo individuais, como aten-
dimento a demandas de gamers, garimpeiros, grupos de pastores
próximos ao presidente, esteticistas da primeira-damam e outros
guetos políticos sem qualquer avaliação de impactos universais
sobre orçamento, órgãos instituições etc.
Em segundo, Bolsonaro não pretendia se reeleger, mas viabi-
lizar um golpe para permanecer como ditador sem ter que se sub-
meter a um enfadonho arcabouço jurídico e político. Aos poucos
quadros em quem confiava, deu ministérios com mais poderes do
que o normal, criando para si a ameaça de surgimento de sucesso-
res. O governo começa, então, embora muito fortalecido pela eleição
consagradora do antipetismo, a se fragmentar internas com minis-
tros relevantes sendo alvos do próprio presidente, como o ministro

146 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Chefe da Secretaria da Presidência, Gustavo Bebiano, o ministro
chefe da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, e o ministro
da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
Porém, com a máquina pública nas mãos, nenhum com-
promisso com transparência, virtualmente infinita leniência de
Ministério Público, da Justiça e da Polícia Federal, o presidente se
encarregou da distração pública com polêmicas moralistas diárias
em redes sociais, enquanto Paulo Guedes, o governante de fato,
levava adiante a agenda econômica de rapina do sistema financeiro.
Alguns percalços sugiram de modo que mesmo apoiadores
neoliberais fossem obrigados a se posicionar contra o presidente.
O primeiro afastamento dos neoliberais em relação ao governo se
deu na Educação. Fundações privadas que lucram com consultorias
e venda de sistemas de ensino, como Fundação Leman, Instituto
Unibanco, Todos Pela Educação, Instituto Ayrton Senna, Fundação
Getúlio Vargas etc., pretendiam levar adiante seu programa educa-
cional, adotado no governo Michel Temer, indicando como Ministro
da Educação o ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco,
Mozart Ramos. No entanto, os parlamentares evangélicos reivin-
dicaram o MEC para combater a “agenda de gênero”. Bolsonaro
nomeou Ricardo Velez Rodriguez, docente sem renome nacional
lotado no departamento de filosofia da Universidade Federal de
Juiz de Fora, professor da Escola Superior de Guerra e indicado pelo
astrólogo Olavo de Carvalho. No ministério demonstrou inépcia e
foi atacado vorazmente pelas fundações privadas, sempre vocaliza-
das pela deputada Tábata Amaral, então no PDT-SP. Rodriguez foi
substituído por outro docente sem qualquer relação com a pasta,
Abraham Weintraub, do Departamento de Ciências Contábeis da
Universidade Federal de São Paulo, o qual disputava com o presi-
dente a distração pública com falas grotescas e grosserias ideologi-
camente direcionadas, tornando-se um dos símbolos da desqualifi-
cação do governo como um todo.
O segundo e mais grave afastamento dos neoliberais, cotudo,
veio apenas com a pandemia de Covid-19. A extrema-direita não
teve uma postura uniforme globalmente. Nas Filipinas por exemplo,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 147


o presidente Rodrigo Duterte, a quem Bolsonaro foi comparado pelo
discurso armamentista e violento, tratou a vacinação como obriga-
toriedade e autorizou a polícia a atirar na cabeça de quem recusasse
a imunização. Na Hungria, Victor Orbán rompeu acordos com a
União Europeia para acelerar a vacinação dos cidadãos de seu país
com o imunizante russo Sputnik V, vetado em diversos países por
pressão dos EUA.
O que definiu o maior ou menor grau de negacionismo na extre-
ma-direita foi o nível de proximidade com o presidente dos EUA,
Donald Trump. Bolsonaro reproduziu aqui quase todos os negacio-
nismos do então presidente norte-americano, incluindo os insultos
xenofóbicos contra o governo, as empresas e a população chinesa.
Além da ignorância como método, ao difundir mentiras contra as
vacinas, tinha objetivos geopolíticos para beneficiar as empresas nor-
te-americanas na concorrência global pelo fornecimento de imuni-
zantes. Desse modo, com o governo sabotando a vacinação, o Brasil
chegou a ser o segundo país com maior número de mortos pelo novo
coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos.
Os setores da direita neoliberal fora do governo mantiveram,
contudo, a sua atuação como base parlamentar de Paulo Guedes,
enquanto tensionavam com Bolsonaro na distração pública, denun-
ciando o negacionismo do presidente. Comentaristas e articulistas
da Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e dos canais Globo encon-
traram uma categoria política extravagante e inexistente para tentar
suplantar Bolsonaro mantendo o programa de Paulo Guedes, a cha-
mada “terceira via.
Mesmo com os absurdos perpetrados pelo presidente, todas
as projeções indicavam que Bolsonaro estaria fatalmente em um
segundo turno e perderia no segundo turno por diferenças aperta-
das, assim como em 2018, mas dessa vez com a caneta de presidente
e o orçamento da União nas mãos, sem pudores em usar de forma
anti-republicana. Bolsonaro tinha certeza da reeleição, o que daria
para tentar construir um golpe, o que fez durante todo o seu man-
dato, levando apoiadores às portas do QG do Exército, apoiado pelas
próprias Forças Armadas para conseguir uma comoção.

148 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Outro imponderável veio do declínio do lava-jatismo, uma das
colunas do governo. Ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, Sergio
Moro expôs todo o judiciário às acusações de parcialidade, com
desconfortos em todas as instâncias, principalmente no Supremo
Tribunal Federal, onde ministros como Gilmar Mendes, Rosa
Weber e Carmen Lúcia, essenciais para garantir a “legalidade” tanto
do impeachment de Dilma quanto da prisão de Lula, modifica-
ram posturas no sentido de recuperar garantias constitucionais. A
coesão do judiciário e do MPF para mudança de regime ocorrida
de 2013 a 2018 foi rompida. O canto do cisne dessa aliança se com
a divulgação no site The Intercept de arquivos do celular do procu-
rador Deltan Dalagnol, chefe da Força Tarefa da Lava Jato, obtidos
pelo hacker Walter Delgatti.
Que tanto o juiz Sergio Moro quanto os procuradores da Força
Tarefa atuaram politicamente não havia dúvida, nem entre os defen-
sores da operação, os quais sempre enfatizaram os seus benefícios se
tornou insustentável manter posições com provas rodando a inter-
net. Nas primeiras semanas da divulgação, os esforços midiáticos
para defesa da Lava Jato em seus fins não se abalaram, enquanto a
máquina digital de mentiras de Bolsonaro se concentrava em des-
qualificar o jornalista Glenn Greenwald, um dos autores da série de
reportagens.
A finalidade da Lava Jato no processo de golpe e mudança de
regime era inviabilizar Lula eleitoralmente e impedi-lo de articu-
lar apoios políticos a um sucessor no PT. Esse pilar estava grave-
mente danificado, mas ainda sob controle. A situação mudou de
fato quando os advogados de defesa de Lula obtiveram cópias dos
dados obtidos por Delgatti e apreendidos pela Polícia Federal. Com
pelo menos 7 terabytes de dados em mãos, a equipe de advogados
encontrou linhas de comunicação viciando toda a Lava Jato desde
a 14ª Vara de Curitiba, passando pela segunda instância (TRF-4), o
STJ, até o STF, envolvendo principalmente o ministro Edson Fachin,
relator da Lava Jato no Supremo. O ministro Fachin, nome de mais
alto posto no judiciário brasileiro envolvido nas fraudes processuais
da Lava Jato, concedeu Habeas Corpus a Lula, anulou os processos

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 149


da Lava Jato e assim impediu que mais dados chegassem ao conheci-
mento público. Lula, novamente elegível, voltava à sua posição polí-
tica de antes do golpe.

Quadro atual

Em 2020 Joe Biden derrotou Donald Trump nas eleições norte-


-americanas. O então presidente dos EUA não reconheceu a derrota,
acusou o sistema eleitoral de fraude, mobilizou sua base neo-nazifas-
cista e articulou apoio externo. Apenas um chefe de estado endossou
todo o discurso de Trump: Jair Bolsonaro. Além disso, o deputado
Eduardo Bolsonaro atuava como um dos principais articuladores
internacionais de organizações de extrema-direita, com atuação
inclusive nos Estados Unidos, onde conseguiram a revogação de
uma série de direitos civis na suprema corte, com uma peça escrita
por juristas de todo o mundo, incluindo brasileiros bolsonaristas.
Internacionalmente, o Partido Democrata, idealizador e ope-
racionalizador da mudança de regime no Brasil, precisou se opor
a Jair Bolsonaro. No ano de 2022 diversos tucanos e ex-tucanos
foram testados para assumir a posição de outsider da ordem, a tal
“terceira via”, de modo a captar ou o antipetismo num segundo
turno contra Lula ou voto de esquerda contra Bolsonaro. Entre os
postulantes foram testados, promovidos, forçados goela abaixo do
eleitorado figuras como Sergio Moro, Luís Henrique Mandetta, João
Dória Jr, Eduardo Leite e até mesmo o apresentador de TV Luciano
Huck. Sem sucesso, ao governo Biden não restava alternativa a não
ser atuar para que ou Bolsonaro, vencendo no voto, fosse colocado
numa situação mais controlável ou admitir o retorno de Lula, exer-
cendo pressão para não haver excesso de autonomia no cargo.
A administração Bolsonaro, por sua inépcia e pelos resul-
tados óbvios do programa econômico de Paulo Guedes, também
favoreceu o retorno dos debates sobre direitos, o financiamento do
Sistema Único de Saúde, vacinas, preços de remédios, alimentos,
poder de compra do salário-mínimo, preços de contas de energia e

150 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


combustíveis, colocando a “corrupção do PT” como tema completa-
mente acessório. Com Lula na cédula e sem apoio norte-americano
para um golpe clássico, com ação direta dos militares, a Bolsonaro
restava manobrar o orçamento da União a seu favor, empurrando
os problemas para frente, para ganhar tempo para dar um golpe no
segundo mandato ou provocar o colapso da máquina pública num
eventual governo Lula, justificando assim uma intervenção das
Forças Armadas.
Já a Lula e ao PT se colocavam em 2021 três alternativas, todas
elas de um movimento político nacional com vistas aos resultados
eleitorais. A primeira, defendida pelas correntes mais à esquerda
no PT e de corte de classe média, era a de uma aliança no campo
da esquerda para fazer o embate total contra a agenda neoliberal
e o neofascismo. A segunda linha, defendida pelo governador do
Maranhão, Flavio Dino, era uma frente tão ampla quanto possí-
vel, com todas forças de esquerda e aquelas democráticas dispostas
combater o neoliberalismo e o neofascismo. A terceira e vencedora
tese, defendida por Fernando Haddad, era de que seria necessário
impedir a repetição do segundo turno de 2018, quando o antipe-
tismo impulsionou apoios a Bolsonaro. Significava abrir o arco ao
máximo, até mesmo com setores que participaram do golpe de 2016.
Essa deliberação não foi submetida a qualquer debate interno
em nenhum dos partidos que compuseram a aliança eleitoral que
elegeu Lula. As propostas foram testadas na opinião pública, vaza-
das normalmente em primeira mão na coluna da jornalista Monica
Bergamo, da Folha de S. Paulo. Dependendo da repercussão, a
decisão era tomada no círculo mais próximo a Lula. O método de
balão de ensaio e adoção por aceitação da opinião pública ficou
muito evidente na escolha de Geraldo Alckmin como candidato a
vice-presidente.
A tese de Haddad não apenas venceu, como também isolou as
demais. A partir de Lula e seu círculo mais próximo, com Alckmin
e Haddad na coordenação, o arco de alianças foi incluindo diversas
instituições e atores, sendo o PT um deles, não necessariamente o
que articulava a disputa à presidência.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 151


Lula funcionou como flanco esquerdo de uma frente que
incluiu da esquerda “identitária” aos neoliberais rompidos com
Bolsonaro. Nas semanas anteriores à votação, empresas de mídia
tentavam emparedar Lula a assumir compromissos com a agenda
do golpe de 2016, como manutenção do teto de gastos, da reforma
trabalhista, a reforma da previdência, da política de preços dolari-
zados na Petrobras etc. Por muito pouco a vitória não ocorreu no
primeiro turno, o que abriu uma nova rodada de negociações com
a senadora Simone Tebet, candidata da “terceira via”. No final das
contas, 70% dos votos de Tebet e Ciro Gomes, os únicos com percen-
tual relevante para alterar o resultado, migraram para Bolsonaro.
Eleito, Lula iniciou a transição ratificando e firmando acor-
dos. Internacionalmente, onde negociou reconhecimento imediato
da vitória para mitigar tentativas de golpe pelos militares, não se
afastou dos BRICS, com quem tenta recuperar relações econômi-
cas mais avançadas, especialmente num esforço de reindustrializa-
ção do Brasil com vistas à indústria 4.0, mas claramente ficou em
débitos com o Partido Democrata dos EUA e governos da Europa
Ocidental, como Espanha, Portugal, França e Alemanha, o que foi
cobrado no voto do Brasil na ONU em resolução co-Rússia no tema
da guerra na Ucrânia.
Internamente compôs com a base neoliberal de Bolsonaro
no congresso para isolar o bolsonarismo radical ideológico no
Congresso Nacional, tornando essa relação muito tensa e instável.
Institucionalmente Lula tenta ratificar os trâmites previstos no
arcabouço jurídico, sepultando a Lava Jato e seus operadores, pou-
pando quem a apoiou ou a possibilitou com vistas grossas e ouvidos
moucos.

Considerações finais

A despeito de todas as dificuldades no trabalho de análise de


conjuntura, no qual tentamos encontrar uma ordem no caos infor-
macional do presente em que estamos inseridos, é seguro afirmar

152 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


que o terceiro mandato de Lula se caracteriza como um governo em
permanente disputa, pois foi construído em uma frente amplíssima
tendo como único ponto de convergência derrotar o fascismo nas
urnas. O feito, se não inédito, é absolutamente raro, mostra uma
capacidade incomum de Lula para ler as estruturas, a conjuntura e
a partir daí promover tal articulação que convergiu para si apoio de
forças políticas incrivelmente díspares, do Partido Democrata dos
EUA às corrente trotskistas, maoístas e stalinistas dos partidos de
esquerda, incluindo correntes do PT.
O bolsonarismo societal, por sua vez, continuou forte, demons-
trando grande resiliência, fundamentado no conservadorismo popu-
lar que encontrou no bolsonarismo uma razão de viver. O direito ao
orgulho de ser oligofrênico é muito valioso para se abrir mão rapi-
damente. Este consenso pela barbárie demorou praticamente duas
décadas para ser construído. Como historicamente o eleitorado bra-
sileiro se mostra muito mais tolerante com a direita do que com a
esquerda, caso o governo não providencie respostas econômicas, a
extrema-direita pode voltar pelo voto. Tendo essa consciência, os
neoliberais continuam tentando construir não a inexistente terceira
via, mas o bolsonarismo sem Bolsonaro, principalmente a partir dos
governadores da extrema-direita neoliberal no sul-sudeste: Eduardo
Leite (RS), Romeu Zema (MG) e Claudio Castro (RJ).
O neofascismo foi derrotado nas urnas, mas essa foi a primeira
etapa de um longo período de reconstrução dos mínimos civiliza-
cionais para convivência em sociedade. Derrotá-lo a ponto de a pró-
pria direita readmitir os processos democráticos como único cami-
nho para a disputa política no País ainda é uma incerteza.

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154 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 7

A CON JUNTUR A DA ECONOMIA


BR A SILEIR A E A TENDÊNCIA
AO BAIXO CRESCIMENTO1

Francisco Luiz Corsi2

Introdução

Durante a campanha eleitoral, governo Bolsonaro defendeu


que a política econômica estaria no rumo correto, uma vez que a
economia recuperou-se da pandemia em 2021. As estimativas de
crescimento para 2022 feitas pelo governo e por analistas de mer-
cado situaram-se entre 2,5% e 3%3. Paralelamente, observou-se uma
queda do desemprego e a desaceleração da inflação. Segundo este
discurso, a economia entrara em um ciclo virtuoso de crescimento,

1 Este artigo baseia-se, fundamentalmente, no texto publicado nos Anais do XXII Fórum de
Conjuntura. Fizemos apenas uma revisão e esclarecemos alguns pontos que tinham sido
tratados de forma muito sintética anteriormente. Apesar de muitos dados mais recentes
terem sido publicados, atualizamos apenas alguns que consideramos indispensáveis. De
todo modo, a análise de conjuntura feita no início de setembro de 2022 continua, no geral,
sustentável.
2 Professor de Economia Política e Economia Brasileira da Faculdade de Filosofia e Ciências
(FFC) da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
3 O PIB do Brasil, no segundo trimestre de 2022 cresceu 1,2% em relação trimestre anterior.
Em relação ao mesmo trimestre do ano passado, este crescimento foi de 3,2%. No terceiro
trimestres, o PIB cresceu 0,4% em relação ao trimestre anterior e 3,6% na comparação
interanual. Estima-se, na comparação trimestral, uma retração de 0,2% para o último tri-
mestre. A tendência é de desaceleração (IBGE, 2022).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 155


superando de vez a crise aberta com a pandemia. Os analistas de
mercado, em particular aqueles vinculados ao setor financeiro, assi-
nalavam estar ocorrendo sensível melhora da situação econômica.
Apesar de muitos assinalarem que esta situação seria passageira,
outros indicam que as perspectivas são alvissareiras.
Cabe indagar em que medida, de fato, a economia brasileira
teria entrado em um ciclo virtuoso de crescimento? Ou, como tudo
indica, esses resultados refletem apenas um conjunto de medidas de
cunho eleitoreiro, que injetou um animo momentâneo na econo-
mia? Dessa maneira, a partir do próximo ano, passado o momento
crucial das eleições, a economia retomaria a tendência de baixo cres-
cimento que a tem caracterizado, de modo geral, nas últimas quatro
décadas?
Discutir o atual desempenho da economia brasileira e de suas
perspectivas futuras implica em a situarmos em um período mais
amplo de tempo, pois diversos dos graves problemas enfrentados
atualmente decorrem de determinações estruturais internas e da
forma como o Brasil se inseriu no capitalismo global, processos
que remontam à década de 1980. As breves notas que se seguem
estão organizadas em mais três itens, além dessa breve introdução.
No primeiro, abordamos em suas linhas mais gerais a tendência ao
baixo crescimento da economia brasileira. Em seguida discutimos
a crise causada pela pandemia e a recuperação da atividade eco-
nômica que se seguiu. Por fim, tecemos algumas considerações a
guisa de conclusão. Dado os limites do presente artigo, a pretensão é
apenas de levantar pontos para o debate, sem almejar aprofundar a
análise sobre as questões, as contradições e os impasses enfrentados
nos últimos anos.

A tendência ao baixo crescimento


da economia brasileira

O padrão de acumulação de capital configurado a partir da


década de 1980 com a crise terminal do desenvolvimentismo se

156 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


caracteriza, entre outros aspecto, pelo baixo crescimento, cujas
causas encontram-se em determinações estruturais profundas. A
bibliografia sobre a crise do desenvolvimentismo é vasta e não caberia
aqui discutí-la, mas cabe assinalar que o modelo desenvolvimentista
ruiu sob o peso de suas próprias contradições em um contexto inter-
nacional adverso, que com a chamada globalização e com o avanço
do neoliberalismo, respostas do capital a sua crise estrutural aberta
nos anos de 1970, colocava na ordem do dia a abertura comercial e
financeira das economias nacionais, a drástica redução do papel do
Estado na economia e o ataque aos direitos sociais e trabalhistas4.
Um dos desdobramentos desse novo quadro foi a alteração da corre-
lação de forças entre as frações das classes dominantes favorável ao
aprofundamento da inserção dependente da economia brasileira no
capitalismo global, que se refletiu nas eleições de Collor e FHC, que
levaram a cabo políticas neoliberais. Isso se deu, paradoxalmente,
quase ao mesmo tempo em que foi aprovada a Constituição de 1988,
que refletiu, em certa medida, a força dos movimentos sociais ao
longo da década de1980. Os limitados avanços relativos aos direitos
sociais e trabalhistas estabelecidos pela Constituição, nunca foram
aceitos pelas forças conservadoras e ortodoxas e, desde logo, já nos
governos Collor e FHC, foram alvo sistemáticos de ataques, que
avançaram sobretudo nos governos Itamar e Bolsonaro. Para essas
forças, tais direitos não cabem no orçamento, consideram prioritário
garantir a capacidade do Estado pagar a dívida pública, o que para
tanto é preciso a obtenção de superávits primários e a manutenção
da relação dívida pública/PIB baixa e estável. A questão fiscal, que
consiste no controle e destinação do fundo público, é central para
estes setores, pois está em jogo uma das principais formas de valori-
zação do capital fictício.
Dentre outros múltiplos desdobramentos desses processos,
cabe salientar a adoção de políticas baseadas na abertura comer-
cial e financeira da economia, nos processos de privatizações, na

4 Ver a respeito, entre outros, Brenner (2003) e Harvey (1996).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 157


redução do papel do Estado na economia, na degradação do meio
ambiente e na continua redução dos direitos trabalhistas e sociais.
De modo geral, as políticas econômicas dos governos neoliberais
seguiram essa linha, associadas a partir do segundo mandato de
FHC a política de metas de inflação, câmbio flexível e superávit pri-
mário, que via de regra implicou em taxas elevadas de juros e moeda
valorizada.
O Brasil se inseriu de forma passiva na instável e contraditória
dinâmica do capitalismo global, caracterizada, em particular, por
uma tendência de queda da lucratividade, pelo inchaço da esfera
financeira, pela reconfiguração espacial da acumulação, pela degra-
dação ambiental, pela concentração da renda, pelo elevado endi-
vidamento e pelo aprofundamento da exploração do trabalho. Ou
seja, observa-se o incremento da desigualdade social, a piora das
condições de trabalho e os contínuos ataques aos direitos sociais,
à democracia e ao meio ambiente5. O Brasil, neste contexto, apre-
sentou um baixo dinamismo, em virtude sobretudo da crise dívida
externa, da crise inflacionária, dos desequilíbrios interdepartamen-
tais e regionais e da adoção de políticas neoliberais. Em decorrên-
cia destas e de múltiplas outras determinações, o Brasil, nas últimas
quatro décadas, vive um processo de regressão de sua estrutura pro-
dutiva, caracterizado pela desindustrialização e pela reprimarização
das exportações. Os gráficos 1 e 2 apresentam dados que indicam
essa evolução da economia brasileira. O processo de regressão estru-
tural dificulta o enfrentamento dos históricos e graves problemas de
miséria e desigualdade social.

5 A bibliografia sobre esses processos é imensa, ver entre outros: Brenner (2003), Harvey
(1996), Belluzzo (2009) e Rorberts (2016).

158 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Gráfico 1 – Participaç ão nas Exportações por
setor no Brasil (em %, 1808-2019)

(Fonte: LOPES, 2020)

Gráfico 2 – Participação do valor adicionado (VA) da indústria


de transformação no VA total da economia, em %

Fonte: (CONSIDERA; TRACE, 2022)

Os dados acima indicam um vigoroso processo de desindus-


trialização e reprimarização das exportações brasileiras. A preços
correntes, a indústria de transformação chegou a representar 35,9%
do PIB em 1985, caindo para 13,8%, em 1998. O setor teve uma breve
recuperação no início da década de 2000, quando sua participação
no PIB foi de 17,8%, em 2004. Contudo, voltou a declinar e, em 2021,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 159


sua participação no PIB foi de 11,3%, substantivamente menor que
em 1947 (CONSIDERA; TRACE, 2022).
Entre 1930 e 1980, no período desenvolvimentista, a econo-
mia brasileira cresceu 6,31% a.a., enquanto que entre 1990 e 2019
a economia cresceu 2,1a.a.%. Neste mesmo período, a renda per
capita cresceu menos que 1% em média por ano. A principal razão
desse comportamento reside no fraco desempenho dos investi-
mentos, como pode ser verificado no gráfico 2, o que reflete uma
situação de baixa rentabilidade. Desde meados da década de 1970
a tendência de queda dos investimentos em relação ao PIB é nítida
(PRADO, 2021).

(Fonte: PRADO, 2021)

O governo Lula representou uma exceção neste quadro, pois


o crescimento, entre 2003 e 2010, foi de 4% em média ao ano. Isto
decorreu sobretudo do boom de commodities, da flexibilização da
política macroeconômica neoliberal e da adoção de políticas vota-
das para estimular o mercado interno e para enfrentar os graves
problemas sociais. Também decorreu de uma alteração da correla-
ção de forças depois do fracasso das políticas neoliberais adotadas

160 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


por FHC, que redundaram em um generalizado descontentamento
popular. No entanto, as políticas adotadas não conseguiram reverter
o processo de desindustrialização e reprimarização das exportações.
A crise mundial de 2007/2008 e seus desdobramentos, em
especial o fim do boom de commodities, a queda dos lucros, o acir-
ramento das contradições econômicas e políticas e equívocos na
política econômica, evidenciaram os limites desta fase. No governo
Dilma, apesar da chamada “nova matriz de política econômica”,
que buscou alterar pontos da política macroeconômica neoliberal,
a economia entrou em uma trajetória descendente, em um contexto
internacional cada vez mais adverso, sobretudo devido à incapaci-
dade do capitalismo global recuperar os níveis de acumulação pré-
-crise e ao fim do boom de commodities, vinculado a desaceleração
da economia chinesa. Entre 2011 e 2014, a economia apresentou um
crescimento médio de 2,3% ao ano. Em 2015 e 2016, o Brasil enfren-
tou grave recessão, recuperando-se em 2017, mas o crescimento
até 2019 foi pífio, de tal forma que entre 2015 e 2019 o crescimento
médio anual do PIB foi de cerca de -0,5%, configurando uma estag-
nação (IBGE, 2022).
Ao contrário do discurso do governo Bolsonaro, a economia
estava praticamente estagnada quando foi atingida pela crise desen-
cadeada pela pandemia. Em 2019, o crescimento do PIB foi de 1,41%,
depois de crescer 1,78%, em 2018, e 1,30% em 2017. No primeiro tri-
mestre de 2020, o PIB sofreu uma contração de 0,27% (IBGE, 2022).
Ou seja, os indícios sugerem que a economia caminhava rumo à
resseção antes da pandemia, pois os fortes efeitos contracionistas da
pandemia se fizeram sentir a partir do final do primeiro trimestre,
manifestando-se com toda sua extensão no semestre seguinte.

A crise desencadeada pela pandemia


e a frágil recuperação

A pandemia de Covi-19 teve extenso impacto sobre o capita-


lismo global: queda abrupta e profunda da atividade econômica,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 161


elevação do desemprego, deterioração da situação fiscal, desorgani-
zação das cadeias produtivas globais e inflação entre outros efeitos,
indicando as contradições e as fragilidades da economia globali-
zada. Neste contexto de retração da economia mundial, os impactos
da crise vinculada a COVID 19 no Brasil se fizeram sentir, como
já mencionado, sobretudo a partir do segundo trimestre de 2020.
O PIB, neste trimestre, declinou 10,90% em relação ao mesmo tri-
mestre do ano anterior e o desemprego disparou, sendo que taxa de
desemprego alcançou a cifra de 14,6% em setembro (IBGE, 2022).
O governo Bolsonaro, que adotou uma postura negacionista
em relação a pandemia, considerava que a doença deveria seguir
seu “curso natural”, contaminando indiscriminadamente a popu-
lação. Defendia, a todo custo, a necessidade de manter a economia
aberta, mesmo com dezenas de milhares de mortes. O Congresso
Nacional, em uma situação de gravíssima crise social, tomou a ini-
ciativa de discutir e aprovar um conjunto de medidas para enfrentar
a crise. O governo federal foi a reboque. A principal delas foi, sem
dúvida, o auxílio emergencial, que objetivava amparar os setores da
população mais pobres, duramente atingidos pela recessão desen-
cadeada pelas medidas de isolamento social. Esta medida voltava-se
para os desempregados, os trabalhadores informais e aos microem-
preendedores individuais. Seu alcance foi amplo, beneficiou cerca
de 70 milhões de pessoas. Isto significou a injeção na economia de
recursos da ordem de R$ 300 bilhões, o que evitou uma recessão
profunda com graves consequências sociais. Paralelamente, outras
medidas foram tomadas para enfrentar a situação, sendo as prin-
cipais as seguintes: a flexibilização para o ano de 2020 do teto de
gastos no que se referia aos dispêndios relativos à pandemia; a flexi-
bilização da chamada “regra de ouro”, que proíbe a contratação de
novas dívidas para financiamento de gastos correntes; a aprovação
de recursos adicionais para o Ministério da Saúde e para o finan-
ciamento da folha salarial, com vistas a compensar a suspenção dos
contratos de trabalho e da redução de jornada com salários reduzi-
dos; a transferência de recursos para estados e municípios e a injeção
de liquidez no sistema financeiro.

162 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Esta série de medidas, que representou a injeção na economia
de recursos equivalentes a 8% do PIB, foi de fundamental importân-
cia para amenizar a crise. Mesmo assim, o PIB sofreu uma retração
de 4,1% em 2020. A recessão elevou o desemprego e a renda média
per capita caiu 11,35%. Não obstante o declínio da atividade econô-
mica, a inflação passou a subir a partir de junho de 2020. A recessão
foi relativamente curta, pois a economia iniciou sua recuperação já
a partir do terceiro trimestre de 2020, em virtude do relaxamento
do isolamento social e das medidas adotadas, que significaram um
incremento da demanda agregada. Em 2021, o PIB cresceu 4,6%.
Entretanto, esse resultado é enganoso, pois distorcido pela baixa base
de comparação, que acarretou um arrasto estatístico estimado em
4%. Também é necessário levar em consideração que os resultados
de 2021 foram distorcidos pela inflação em ascensão (IBGE, 2022).
Todavia, é preciso considerar que recuperar o nível de ativi-
dade econômica de 2019 não é significativo, dado que a economia,
como mencionado, estava praticamente estagnada. A continuidade
da tendência à estagnação fica clara quando observamos que o PIB
do segundo trimestre de 2022 continua a abaixo do primeiro tri-
mestre de 2014.
Contudo, cabe indagar acerca das razões da recuperação. De
modo geral, as razões da recuperação foram as seguinte: a expansão
da agropecuária, o auxílio emergencial, a queda da taxa de juros,
a ampliação do gasto público, as medidas voltadas para ampliar a
liquidez e o relaxamento do isolamento social. Outro fator foi a ade-
quação das empresas à nova situação de isolamento social, em espe-
cial a expansão dos serviços online.
O processo de recuperação teve continuidade em 2022. No pri-
meiro trimestre, o PIB cresceu 1% em relação ao trimestre anterior.
Este crescimento foi puxado pelo setor de serviços, que apresen-
tou uma expansão de 1%. A indústria teve um resultado medíocre,
crescendo 0,1%. A agricultura recuou 0,9%. Pelo lado da demanda,
a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), na comparação intera-
nual, declinou 7,2%, correspondendo a 18,7% do PIB. Também na
comparação interanual, o consumo das famílias e o governamental

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 163


sofreram um incremento de 2,2% e de 3,3%. O desemprego perma-
neceu em um patamar elevado, atingindo 11,1% da força de trabalho,
correspondendo a cerca de 12 milhões de trabalhadores sem ocupa-
ção. A renda média do trabalho aumentou 1,5% em relação ao tri-
mestre anterior, alcançando R$ 2.579,00. Porém, este valor encontra-
-se 7,9% abaixo que no mesmo período do ano anterior (IBGE, 2022).
A recuperação foi acompanhada pelo incremento da inflação,
que já vinha subindo, como assinalado acima, desde julho de 2020.
O IPCA acumulado em 12 meses até junho de 2022 foi de 11,89%,
número bem superior ao estabelecido pela meta6. A elevação da infla-
ção decorreu dos seguintes motivos: 1- desvalorização da moeda;
2- problemas de oferta de insumos em decorrência da desorgani-
zação de cadeias produtivas globais com a pandemia; 3- aumento
do preço da energia elétrica; 4- incremento dos preços dos alimen-
tos; 5- elevação dos preços das commodities, sobretudo do petróleo.
A inflação elevada, entre outras consequências, reduz o poder de
compra dos salários, afetando negativamente o nível do consumo.
O fato da inflação ter ultrapassado a meta, levou o Banco Central a
elevar fortemente a taxa de juro básica, que já vinha subindo desde
fevereiro de 2021. Em agosto, a SELIC atingiu a cifra de 13,75%.
Mesmo a inflação não sendo de demanda, o Banco Central persiste
em adotar uma política que visa deter o processo inflacionário pela
contenção da demanda. Mas na verdade, seu objetivo principal é
evitar uma desvalorização ainda maior da moeda, atraindo capitais
especulativos. Dessa forma, visa segurar a inflação. A elevação dos
juros, entretanto, mesmo que de maneira defasada, terá uma série
de consequência negativas para a economia, inibirá o investimento
e consumo, além de deteriorar as finanças públicas ao aumentar os
dispêndios com o pagamento de juros da dívida pública.

6 Em 2021, o centro da meta estava estabelecido em 3,75% e o IPCA foi de 10,6%. Em 2022, a
meta era de 3,5% e o IPCA acumulado em 12 meses foi de 5,8% (IBGE, 2022). Mesmo com
o declínio da inflação o Banco Central persiste em manter a inflação em patamares eleva-
díssimos, com o argumento de esvaziar as expectativas inflacionárias ante as incertezas
fiscais do novo governo Lula. A política monetária apertada bloqueará um crescimento
mais vigoroso da economia.

164 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Entretanto, o PIB continuou, como já assinalado, em sua tra-
jetória ascendente no segundo trimestre de 2022. Cresceu 1,2% em
relação ao trimestre anterior, puxado mais uma vez pelos serviços,
que cresceram 1,3% e pala indústria, que cresceu 2,2%. A agropecuá-
ria teve um desempenho modesto, crescendo 0,5%. A FBCF situou-
-se em 18,7% do PIB. Este número, apesar de ter crescido, é inferior
ao de 2013, quando atingiu 21,5% do PIB. O desemprego declinou
para 9,3% e a renda média do trabalhador foi de R$ 2.652,00, o que
representou um número 5,4% menor que o observado no mesmo
período do ano passado (IBGE, 2022).
O IPCA, que cresceu até junho, começou a cair a partir de mês
seguinte (apresentando uma deflação de 0,68%) e voltou a declinar
em agosto (deflação de 0,36%). Esta contração da inflação decorreu
sobretudo da nova política de preços dos combustíveis, adotada em
junho, que estabeleceu uma redução temporária de impostos fede-
rais e do ICMS sobre os combustíveis, a energia elétrica e os trans-
portes. Ademais, observou-se uma queda do preço do petróleo no
mercado internacional. Todavia, os preços dos alimentos continua-
ram em ascensão, o que prejudicou os mais pobres. A inflação, nos
últimos 12 meses no grupo alimentação e bebidas, acumulou uma
alta de 13,43% e no setor de vestuário 17,44% (IBGE, 2002).
O desempenho relativamente positivo da economia, que supe-
rou as projeções dos analistas do final de 2021 e início de 2022,
ocorreu graças as medidas voltadas para promover a candidatura
de Bolsonaro. A redução dos impostos sobre os combustíveis, o rea-
juste do auxílio Brasil de R$ 400,00 para R$ 600,00, a antecipação
de pagamentos do 13 salário para os aposentados, a liberação de
saques do FGTS, o incremento do valor do vale gás e o auxílio para
os caminhoneiros e taxistas, medidas que vigorarão até dezembro,
representaram gastos da ordem de 340 bilhões de reais em um curto
espaço de tempo, o que correspondeu a mais de 3% do PIB.7

7 No terceiro trimestre o PIB cresceu 0,4% em relação ao anterior, o que significou uma
desaceleração, causada tanto pelos primeiros efeitos da elevação da taxa de juros quanto
pelo fato da base de comparação ser mais alta, diferentemente da situação verificada entre

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 165


Estas medidas de vigência limitada estão estimulando a econo-
mia no período eleitoral. Mas tudo indica que este crescimento terá
fôlego curto, pois a manutenção da taxa de juros básica em patamar
elevado limitará o investimento e o consumo. Ademais, os efeitos
expansivos das políticas eleitoreiras de Bolsonaro cessaram. Indícios
sugerem que essa taxa permanecerá elevada por um período dila-
tado, mesmo com a inflação em queda, ainda mais em um contexto
internacional de elevação dos juros. A estratégia é manter o dife-
rencia de juros elevado, estimulando a valorização da moeda e, por
conseguinte, buscar conter o processo inflacionário.
O nível atual dos investimentos, cerca de 19% do PIB, será
incapaz de assegurar um crescimento mais robusto e de longo
prazo. Ademais, o incremento da produtividade, que depende dos
investimentos, é modesto, o que também inibe o crescimento. Em
2021, a produtividade declinou 0,35%, sendo que entre 1992 e 2021 o
seu crescimento médio foi de 0,74%. O nível de utilização da capaci-
dade produtiva, em julho, foi de 80,1%, apresentando uma queda de
2,4% em relação a mesmo período do ano passado. Paralelamente,
as empresas apresentam elevado endividamento. Um estudo com
230 grandes empresas de capital aberto indica que o endividamento
vem crescendo desde 2016, sendo que em 2021 este crescimento foi
de 15,8% (CNI, 2022; CEIC, 2022).
O incremento do consumo não terá condições de promo-
ver o crescimento de longo prazo. A renda média do trabalho, no
primeiro semestre de 2022, ficou estável, mas inferior a de 2021. A
renda per capita está no mesmo patamar de 2010. O endividamento

2021 e 2020. Na comparação interanual, o crescimento foi de 3,6%. Pelo lado da oferta em.
comparação com o trimestre anterior, a agropecuária recuou 0,9%, a indústria cresceu
0,8, puxada pela construção civil e o serviços cresceram 1,3%. Todos os setores perderam
ritmo. Do lado da demanda, o consumo das famílias cresceu 1% e o do governo 1,3%, o
investimento subiu 2,8 e as exportações e importações subiram respectivamente 3,6% e
5,8%. Aqui também observa-se uma desaceleração em todos os itens. A FBCF representou
19,4% do PIB. Cabe mencionar que o PIB do terceiro trimestre de 2022, depois de 8 anos,
superou o do primeiro do de 2014, o que indica a extensão da quase estagnação da econo-
mia brasileira ( IBGE, 2022).

166 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


das famílias é elevado. Em agosto, 79% das famílias estavam endivi-
dadas e a inadimplência atingiu 29,6%, o maior patamar desde 2010.
A situação internacional também não é alvissareira. O capita-
lismo global caminha para uma nova recessão. A queda do PIB dos
EUA, o esperado recuo da zona do euro e a desaceleração da econo-
mia chinesa são fortes indícios dessa recessão. A inflação elevada
em vários países expressa os inúmeros problemas, sobretudo de
oferta, que afligem a economia mundial. O capitalismo global vive
uma fase marcadamente depressiva, que se estende desde a crise de
2008, cuja uma das causas subjacentes é a baixa lucratividade. Ao
que se soma as profundas transformações no modo de produção
e nas relações de trabalho, a desarticulação de cadeias produtivas
globais, a existência de um enorme volume de capital fictício, o ele-
vado endividamento de famílias e empresas, o aprofundamento da
crise ambiental, a ascensão de forças de extrema direita em diversos
países e o acirramento das disputas pela hegemonia com o deslo-
camento do eixo dinâmico da acumulação para a Ásia. Neste con-
texto, parece difícil ocorrer um novo boom de commodities, como no
início do primeiro governo Lula, que ao diminuir a vulnerabilidade
externa abriu a possibilidade de adoção de políticas expansivas.
Os neoliberais persistem na defesa da austeridade, sobretudo
fiscal. Continuam defendendo o equilíbrio orçamentário como
panaceia para resolver todos os problemas. Mas cabe perguntar:
austeridade para quem? Obviamente, para os trabalhadores. Visam
recuperar a economia a partir da superexploração da força de tra-
balho. Concomitantemente, os superávits primários e o controle
da relação dívida pública/PIB continuam a ser considerados, por
estes setores, fundamentais para assegurar o pagamento da dívida
pública e, por conseguinte, para a valorização do capital fictício. Ao
contrário do que eles defendem, a taxa de juros e o nível do câmbio
não são determinados apenas pela situação fiscal. A taxa de câmbio,
e por conseguinte a inflação, também depende, dentre outros fato-
res, da liquidez internacional, da taxa de juros no mercado mun-
dial, dos fluxos de capital, do desempenho da balança comercial e
dos preços dos produtos importados e das commodities. Em muitas

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 167


situações, observadas em diferentes países, inclusive em desenvol-
vimento, elevada relação dívida pública/PIB e considerável déficit
público convivem com baixas taxas de juros, como no caso do Japão
e da Itália. Os países centrais apresentam elevadas taxas de inflação
no momento, mas as taxas de juros, embora tenham subido, perma-
necem relativamente baixas. Aqui, a preocupação do Banco Central
é garantir apenas a capacidade de pagamento da dívida pública por
parte do Estado, argumentando que a estabilidade fiscal é essencial
para as expectativas dos agentes econômicos, diga-se sobretudo dos
especuladores. O controle que o capital financeiro exerce sobre o
Banco Central impõe os seus interesses ao país.
Nos seis primeiros meses do ano, observa-se um superávit
primário de 57,2 bilhões de reais. O pagamento de juros da dívida
pública em 12 meses, tendo como referência maio, correspondeu a
5,51% do PIB (BCB, 2022)8. O aperto fiscal e sobretudo a elevação
dos juros podem limitar a já problemática recuperação da econo-
mia. Esta corrente e as forças que a sustentam querem a todo custo
manter a continuidade do teto de gastos públicos, ou outra regra que
assegure a estabilidade fiscal. Mas sem derrubar este preceito cons-
titucional não será possível enfrentar os graves problemas sociais
que se avolumam e a crise ambiental e incrementar os investimen-
tos estratégicos, necessários para romper com a tendência de quase
estagnação e alterar a inserção do país no capitalismo global.

Considerações finais

Mesmo que a previsão de crescimento, entre 2,5% e 3%, para


2022 se concretize, isto não significa que a economia brasileira tenha

8 Em 2022, o superávit primário foi de 1,28% do PIB. Porém, o déficit nominal alcançou
4,68% do PIB. Isto significa que foram despendidos recursos da ordem 5,96% do PIB para
o pagamento dos juros da dívida publica. Valor muito maior ao destinado a qualquer pro-
grama social. A dívida bruta situou-se em 73,5% do PIB, que não é um patamar elevado
que indique um descontrole, como sugerem os chamados analistas de mercado e a grande
imprensa (BCB, 2022).

168 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


entrado em uma nova fase ascendente. Para os próximos dois anos,
as projeções são de baixo crescimento. Como os economias dizem,
estamos, tudo indica, diante de um voo de galinha. Depois desse
espasmo, parece que a economia brasileira irá retomar a tendência
de baixo crescimento que a caracterizou nas últimas décadas, acom-
panhada de crescente agravamento da crise ambiental e de severos
problemas sociais.
Romper com essa tendência implica em abandonar as políticas
neoliberais e adotar políticas expansivas voltadas para enfrentar os
problemas estruturais da economia, sobretudo aqueles relacionados
às carências de infraestrutura, as profundas desigualdades sociais,
à crise ambiental e as carências nos setores de saúde e educação. Ao
mesmo tempo, será preciso fomentar o desenvolvimento de fontes de
energia renováveis e o tecnológico. Também será necessário alterar a
inserção no capitalismo global no sentido de superar uma inserção
calcada, em grande medida, nas exportação de commodities. Tudo
isso implicará na reindustrialização da economia e a ampliação dos
direitos sociais e trabalhistas. Tarefa nada fácil, ainda mais em uma
situação de crise estrutural do capitalismo global e acirramento
das disputas pela hegemonia mundial. Todavia, esses processo, que
colocam em questão a chamada globalização e a posição dos EUA,
abrem novas possibilidades.

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AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 171


CAPÍTULO 8

UMA CON JUNTUR A A


SER SUPER ADA 1

Marcelo Soares de Carvalho2

Introdução

O breve texto aqui apresentado tem o propósito de fazer uma sin-


tética análise de conjuntura do Brasil ao final do governo Bolsonaro,
com foco nas questões econômicas e nos seus principais impactos
sobre a população trabalhadora. A abordagem aqui escolhida tem
suas raízes na tradição da Economia Política, tal como desenvolvida,
sobretudo, a partir do século XIX; sob esse prisma, ganham desta-
que os aspectos relativos à forma como a riqueza social é produzida,
distribuída e apropriada pelos diferentes segmentos da sociedade, em
dado contexto histórico – ainda que a teoria econômica predominante
reserve pouca atenção a tais aspectos (NAPOLEONI, 1975, p. 01-08).
Para dar cabo desse propósito, o texto foi organizado em duas
seções, além desta breve Introdução e da Conclusão; na primeira
delas, é feito um retrato estilizado do desempenho macroeconômico
do país em anos recentes, a partir de indicadores selecionados; um

1 O presente texto foi originalmente elaborado para apresentação no evento acadêmico


“XXII Fórum de Análise de Conjuntura – América Latina, Eleições e Mudanças Políticas”,
organizado pela UNESP / UNIFESP e realizado em setembro de 2022; dados usados para
sua elaboração foram – total ou parcialmente – atualizados quando da preparação da ver-
são para publicação, em fevereiro de 2023.
2 Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de São Paulo
– UNIFESP.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 173


segundo bloco de texto é reservado à análise do rebatimento ocupa-
cional do processo de geração de riquezas – o mercado de trabalho – e
de seus desdobramentos principais.

Atividade econômica e seus componentes principais.

O caráter inevitavelmente político da forma pela qual ocorre a


produção e a distribuição de riquezas faz com que as decisões relati-
vas à condução de uma economia nacional (política econômica), que
afetam as condições de geração e repartição do produto socialmente
elaborado, também tenham natureza política – a despeito de frequen-
tes alegações de que haveria um caráter puramente técnico e neutro
(despido de qualquer coloração política, portanto) a orientar a gestão
do âmbito macroeconômico. É bastante conhecido, porém, o caráter
ideológico que perpassa a elaboração desse tipo de discurso, sobretudo
no que toca aos interesses materiais estabelecidos (MANNHEIM,
1954, p. 49-96). Assim sendo, não há neutralidade possível no dis-
curso que se propõe a analisar a realidade socioeconômica e/ou as
escolhas na condução da política econômica; elaborar uma análise de
conjuntura necessariamente envolve, portanto, a adoção da perspec-
tiva identificada a determinado segmento (ou classe) social – tanto
porque se observa a realidade desde o lugar social desse segmento (ou
classe), quanto porque se pretende que a análise feita seja útil a inte-
grantes desse grupo. Aqui, pretende-se elaborar uma análise a partir
do lugar social daqueles que sobrevivem com a venda de seu trabalho.
Para que se possa, porém, abordar o comportamento do mer-
cado de trabalho, torna-se indispensável antes analisar quais as con-
dições mais amplas dentro das quais se encontram aqueles indivíduos
que colocam à venda sua força laboral; dentre essas condições, duas
aqui vão ganhar destaque: (i) o ritmo de criação de novas riquezas (o
nível atividade econômica); (ii) os traços políticos e institucionais que
ajudam a definir as formas de distribuição e apropriação das riquezas

174 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


produzidas3. No que diz respeito a essa última condição, é importante
salientar que a economia brasileira tem sido impactada por decisivas
mudanças, especialmente a partir de 2017 – momento histórico no
qual houve predomínio de uma tendência política alinhada à ideia de
redução da dimensão do Estado no campo econômico e de desregu-
lamentação das relações de trabalho como alegados caminhos para
aumentar o crescimento da produção e o ritmo de geração de postos
de trabalho (BIAVASCHI; VAZQUEZ, 2021; CARVALHO; ROSSI,
2020); como é bem sabido, os marcos centrais desse movimento cor-
respondem à reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e à emenda
constitucional do teto para os gastos públicos (EC 95)4.
Muito embora tais mudanças legais tenham sido introduzidas
ainda antes do governo Bolsonaro, é bastante certo que foi justamente
durante este último que seus efeitos foram mais duramente percebidos;
além disso, aí há importante linha de continuidade no modus operandi
da política econômica com respeito ao período da, digamos, “gestão de
Temer”. E mesmo que se argumente que o advento da pandemia teria
sido o principal fator responsável pelo fraco desempenho macroeconô-
mico brasileiro dos anos recentes, há importantes elementos a identifi-
car e analisar sobre o tema, conforme se pretende fazer, a seguir.
O mecanismo de base de uma economia de mercado é aquele
da troca, consubstanciada em uma transação monetária; para além
de mero intermediário do intercâmbio de bens e serviços, a moeda
é, nesta organização social, uma finalidade em si mesma5. Assim

3 Em se tratando de uma análise de conjuntura, ao menos em uma primeira aproximação,


toma-se como dada certa estrutura social, com suas classes / segmentos; assim sendo, por
questão de foco, busca-se aqui retratar os aspectos que impactariam tais estruturas – seja
para aprofundamento ou mudança das mesmas.
4 Adicionalmente, poderiam ser citados outros elementos de relevo e que guardam a mesma
orientação político-econômica, desde 2016-7: a reversão da legislação que salvaguardava
interesses nacionais quanto à exploração das reservas de petróleo do pré-sal, a aprovação
da autonomia do Banco Central, o desmembramento e venda de subsidiárias da Petrobras,
os sucessivos cortes de verbas para pesquisa (incluindo setores estratégicos), entre outros.
5 Curiosamente, este é um ponto que uniria as visões de Marx e de Keynes. De acordo com
o autor britânico, a economia de mercado seria uma “economia monetária da produção”,
orientada pelo esquema apresentado pelo próprio Marx: D – M – D’ (KEYNES, 1979, p. 81).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 175


sendo, o ritmo de ocorrência das trocas determina também o ritmo
de criação de riqueza nova6; porém, a troca (compra e venda) somente
pode se efetivar em face da decisão de uso do poder de compra por
parte de seu detentor que, ao optar pelo gasto, gera renda para outro
agente econômico. Vale dizer: em economias capitalistas, o ritmo de
crescimento econômico é dado pela intensidade do fluxo de gastos.
Isso, no entanto, não equivale a dizer que todo gasto, perpetrado por
qualquer dos integrantes da economia, tenha a mesma natureza ou o
mesmo peso, já que, por óbvio, o volume de poder de compra dispo-
nível a cada um deles é bastante desigual.
Na Teoria Macroeconômica – ramo da Economia inaugurado
pelos trabalhos de Kalecki e de Keynes7 –, dois agentes de gastos
ocupam lugar de destaque: o empresariado (e seus gastos em investi-
mento) e o governo central (e o uso de seu respectivo orçamento). Não
resta dúvida de que há outros componentes da demanda agregada
que importam para a determinação do valor final do PIB, como é o
caso do consumo das famílias e da balança comercial externa; porém,
conforme sugerido pelos dois autores acima citados, os gastos com a
ampliação da capacidade produtiva instalada (ou seja, o investimento,
sob a ótica macroeconômica) e os gastos públicos do governo cen-
tral apresentam caráter autônomo em relação ao volume corrente de
renda (e de produção): os gastos em investimento se relacionam às
expectativas de lucratividade do setor produtivo, na comparação com
outras possibilidades de aplicação de recursos (KEYNES, 1936) e às
condições de operação internas às firmas, tais como a disponibilidade
de recursos internos e/ou de terceiros, seu grau de endividamento e a
variação recente dos lucros auferidos (KALECKI, 1954); já os gastos
públicos devem sua autonomia à natureza político-administrativa das

6 Conforme registrado pelas contas nacionais, sobretudo no Produto Interno Bruto, o PIB.
7 Não obstante o fato de que Keynes seria conhecido como “pai” da Macroeconomia por
conta da publicação de sua magnum opus (KEYNES, 1936), Kalecki teria (talvez) sido o
pioneiro na identificação do basilar princípio da demanda efetiva. Uma coletânea de tex-
tos do autor polonês publicada ainda ao final da década de 1930 (KALECKI, 1939) apre-
senta artigos nos quais o papel central dos gastos (especialmente do investimento privado
e dos gastos públicos), de modo análogo a Keynes, já era demonstrado – entre 1933 e 1935.

176 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


decisões que formatam o orçamento do governo central8. Justamente
por conta de seu caráter autônomo (e pelos seus impactos em cadeia),
os gastos agregados em investimento e as despesas públicas têm papel
indutor sobre outros gastos agregados que se ligam ao nível corrente
de renda e produção.
O gasto público federal (não financeiro) foi fortemente restrin-
gido após a vigência da EC 95; mas, para além da restrição formal, a
gestão do erário capitaneada pelo ministro Paulo Guedes procurou
ainda contingenciar uma série de gastos correntes passíveis de deci-
são discricionária (CARVALHO; ROSSI, 2020). Como resultados prá-
ticos, viu-se grande quantidade de obras interrompidas, ausência de
reajustes de vencimentos ao funcionalismo público e, mesmo durante
o pior momento da pandemia (que demandaria uma ação ampliada
do sistema público de saúde), uma reduzida execução orçamentária9
(vide quarta coluna da Tabela 1 e última coluna da Tabela 2, abaixo).
Esse foi também um forte condicionante do fraco desempenho do
PIB, mesmo antes do segundo trimestre de 2020, justamente quando
se fazem notar os primeiros efeitos deletérios da pandemia sobre as
cadeias globais de produção.
Esse último aspecto, relativo ao débil desempenho da economia
brasileira (antes da pandemia) merece particular ênfase em função
do fato de que os períodos imediatamente anteriores (desde 2015,
na verdade) foram de baixo crescimento ou de retração do nível de
atividade econômica10. Dessa forma, mesmo antes do dramático
período de emergência sanitária, a promessa que buscava justificar
as reformas de cunho liberalizante / desregulamentador mostrou-se

8 Por suposto, também os entes subnacionais importam quanto à consolidação dos gastos
totais do setor público; no entanto, é o governo central que tem à sua disposição ferramen-
tas que permitem (ou poderiam permitir) maior margem de manobra à ação estatal, como
no caso das políticas monetária, fiscal e cambial.
9 Parece particularmente grave o fato de ter-se tido, durante o fatídico ano de 2020, uma
execução orçamentária do Ministério da Saúde abaixo daquela autorizada pelo Congresso
Nacional por conta da circunstância emergencial de saúde pública (IPEA, 2021, p. 149).
10 A média geométrica das taxas de crescimentos trimestrais do PIB (taxas usadas nas
Tabelas 1 e 2) é bem próxima de zero entre 2015 e 2018.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 177


fracassada quanto ao seu pretenso objetivo geração de crescimento
econômico – fato que se estendeu, pelo menos, aos primeiros quinze
meses do governo Bolsonaro (conforme Tabela 1, com destaque para
sua segunda coluna).

Tabela 1 - Taxa de variação (%) do índice de volume


trimestral dos componentes do PIB pela ótica da demanda
(em relação ao mesmo período do ano anterior).
Despesa de Formação
PIB a Despesa de Exportação Importação
consumo da bruta de
Trimestre preços de consumo de bens e de bens e
administra- capital
mercado das famílias serviços serviços
ção pública fixo11

1º tri 2019 0,9 2,3 -0,4 3,2 -2,1 -2,8


2º tri 2019 1,2 2,4 -0,5 7,6 0,6 4,9
3º tri 2019 1,1 2,6 -1,2 4,9 -3,5 2,4
4º tri 2019 1,7 3 0,2 0,6 -5,1 0,9
1º tri 2020 0,4 0,3 0,1 6,1 -3,1 6,2
2º tri 2020 -10,1 -11,2 -7,7 -15,1 0 -14
3º tri 2020 -3 -5,1 -4,4 -8,8 -1,5 -24,7
4º tri 2020 -0,4 -2,3 -2,5 11,9 -4,7 -3,1
1º tri 2021 1,7 -1,3 -2,9 15,7 1 6,9
2º tri 2021 12,4 10,2 7,1 32,1 14,4 20,1
3º tri 2021 4,4 4,7 5,3 18,9 4,1 20,9
4º tri 2021 2,1 2 4,4 3,2 3,3 3
1º tri 2022 2,4 2,5 3,9 -6,4 8,7 -10,6
2º tri 2022 3,7 5,7 0,9 1,5 -4,6 -1
3º tri 2022 3,6 4,6 1 5 8,1 10,6

Fonte: IBGE – SIDRA – Contas Nacionais Trimestrais.

Conforme se pretende demonstrar, o único resultado efetivo de


tais reformas foi o aumento do peso dos juros no orçamento público
e a precarização das formas de uso do trabalho (vide item seguinte).

11 Item que pode ser equiparado, para os fins desta exposição, ao investimento. A rigor, o
investimento (como componente do PIB) é composto pela formação bruta de capital fixo
(aquisição de material para ampliação ou reposição da capacidade produtiva instalada) e
pela variação de estoques.

178 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Tabela 2 - Taxa de variação (%) do índice de volume trimestral dos subsetores de
atividade econômica (em relação ao mesmo período do ano anterior).
Administração,
Eletricidade
Transporte, Atividades Outras saúde e educa-
Agro­ Indústrias Indústrias de e gás, água, Informação e Atividades
Período Construção Comércio armazen. e financeiras atividades ção públicas
pecuária extrativas transformação esgoto, gestão comunicação imobiliárias
correio e afins de serviços e seguridade
de resíduos
social
1º tri 2019 0,6 -9,8 -1,3 5,2 -1,8 0,3 1,9 4,5 1,3 3,3 3,1 -0,3
2º tri 2019 0,9 -17,3 1,3 3 2,5 1,5 1,1 3,6 -0,9 3,1 2,5 -0,6
3º tri 2019 0,9 -5,7 -1,9 2,7 4,8 2,2 -1 4,6 1,2 2,2 1,8 -0,9
4º tri 2019 -1,4 -4,1 0,3 -0,4 2,1 2,5 -1,5 5 2,6 1,1 3,6 0,1
1º tri 2020 6,4 3,4 -1,7 -4,1 2 1,9 -4,5 3,7 0,2 1,5 -0,7 -0,2
2º tri 2020 5 6,5 -21 -0,5 -8,8 -13 -23,8 -1,2 4,9 0,8 -18,3 -8,9
3º tri 2020 2 1,2 -0,5 3,9 -2 0,6 -15,3 0,8 4,9 1,8 -11 -5,5
4º tri 2020 1,6 -6,5 4,5 -3,1 0,5 4,3 -7,1 4,8 3 2,9 -7 -3,4
1º tri 2021 7 -2,4 5,3 2,3 5,2 4,9 0,1 5,8 3,7 2,2 -4,5 -3,8
2º tri 2021 0 6,2 24,9 1,7 14,3 20 26,9 16 -1,2 2,3 17,7 6,3
3º tri 2021 -7,9 2,8 -1,1 -2,6 10,3 2,1 15,5 15,1 -2,4 1,8 14,5 4
4º tri 2021 -0,3 5 -6,1 2,6 10,5 -3,9 11,8 13,5 0,2 2 10,3 3,1
1º tri 2022 -5,2 -2 -4,7 9,1 7,8 -2,5 8,9 5,7 -0,9 1,7 12,5 3,6
2º tri 2022 -0,9 -3,7 0,5 9,5 10,3 1,4 10,9 4,3 -1,6 1,9 14,1 1,4

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


3º tri 2022 3,2 -2,6 1,7 11,2 6,6 2 8,8 6,9 1,7 3,2 9,8 1,5

179
Fonte: IBGE – SIDRA – Contas Nacionais Trimestrais.
Dois outros aspectos relativos à redução da ação do Estado no
campo econômico também se mostraram importantes para o fraco
desempenho macroeconômico: a ausência de controles do Banco
Central sobre a taxa de câmbio e o descaso com os estoques públi-
cos reguladores de preços de alimentos. A Companhia Nacional de
Abastecimento (CONAB) viu despencarem seus volumes estocados
de arroz, feijão, milho, trigo, soja e café; tal fenômeno começa já em
2015, mas é levado ao paroxismo a partir de 2017 (CONAB, 2023),
quando já se passa a cogitar a venda de muitos dos armazéns ante-
riormente usados para estocar produtos – estrategicamente com-
prados em períodos de safra e vendidos na entressafra, impedindo
maior volatilidade de preços e protegendo, sobretudo, consumidores
e pequenos produtores.
O regime de câmbio flexível, adotado ainda em 1999, permite
que qualquer instabilidade (interna ou externa, fundamentada em
situações concretas ou não) seja ocasião para fuga de capital finan-
ceiro, com predomínio da lógica especulativa de curto prazo – já
que não se dispõe, por escolha local, de dispositivos de controle
de capitais; não por outro motivo, apesar das expressivas reservas
cambiais acumuladas desde os primeiros anos do presente século,
o real passou por grande desvalorização cambial já em 2020 (cerca
de 29%, apenas nesse ano). Considerando a elevada dependência
nacional em relação a fertilizantes e insumos agrícolas, bem como
os efeitos de preços relativos provocados pela violenta mudança na
taxa de câmbio (que leva muitos produtores da agropecuária a prio-
rizar o fornecimento ao exterior, em detrimento do abastecimento
local), o resultado concreto foi uma alta nos preços dos gêneros ali-
mentícios como não se via há mais de duas décadas. Considerando
que esses itens têm mais peso na cesta de consumo da população
de mais baixa renda (Tabela 3), sua perda de renda real foi expres-
siva – mesmo admitindo uma eventual (e improvável) hipótese da
preservação de seus vínculos empregatícios em tal conjuntura (ver
item seguinte).

180 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Tabela 3 – Inflação (IPCA, acumulado em 12 meses) por faixa de renda12

2020 2021 2022


IPCA 4,52 10,06 5,78
Renda muito baixa 6,22 10,08 6,35
Renda baixa 5,43 10,10 6,04
Renda média-baixa 4,80 10,40 5,59
Renda média 3,97 10,26 5,63
Renda média-alta 3,37 9,66 5,65
Renda alta 2,74 9,54 6,83

Fonte: IPEA. Carta de Conjuntura.

Adotado também em 1999, o regime de metas de inflação usa a


taxa básica de juros (SELIC) para controlar o nível de preços afetando
as condições da demanda agregada (garroteada pelo alto custo / pela
escassa disponibilidade do crédito). É fácil perceber que se trata de
um instrumento que implica pesados custos sociais, já que, em nome
da estabilidade de preços, sacrifica-se o crescimento econômico e a
geração de empregos. Cabe destacar, porém, que os determinantes
dos recentes surtos inflacionários não estão ligados a aumentos de
demanda; tal como apontado acima, estaríamos, na verdade, sob
os efeitos de expressiva desvalorização cambial, do (quase) fim dos
estoques reguladores de alimentos e dos impactos disruptivos da
pandemia sobre as cadeias globais de produção (além, é claro, dos
desdobramentos do conflito na Ucrânia sobre preços de fertilizantes,
de petróleo e de seus derivados). Assim sendo, seria preciso provo-
car – intencionalmente – grande recessão econômica para fazer os
índices de preços desacelerarem; ao que tudo indica, é exatamente
o que tem sido feito pelo Banco Central (tornado independente do

12 De acordo com o IPEA, as faixas de renda domiciliar usadas para compor a tabela são as
seguintes (em valores referentes a janeiro de 2023): (1) renda muito baixa: menor que R$
2.015,18; (2) renda baixa: entre R$ 2,015,18 e R$ 3.022,76; (3) renda média-baixa: entre R$
3.022,76 e R$ 5.037,94; (4) renda média: entre R$ 5.037,94 e R$ 10.075,88; (5) renda média-
-alta: entre R$ 10.075,88 e R$ 20.151,75; (6) renda alta: maior que R$ 20.151,76.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 181


governo central). Na comparação com países da América Latina, o
Brasil, com exceção feita ao caso argentino13, responde pelo maior
patamar de taxas de juros básicas (Tabela 4):

Tabela 4 – Taxas nominais (médias) de juros anuais


da política monetária (países selecionados14)

2021 2022
2017 2018 2019 2020
(4o trim) (2o trim)
Argentina 26,42 44,43 65,22 39,66 38,00 49,33
Bolívia 2,39 2,42 2,58 2,50 6,00 6,00
Brasil 9,83 6,56 5,96 2,81 8,25 12,58
Chile 2,69 2,56 2,46 0,75 3,17 8,08
México 6,75 7,69 8,00 5,31 5,08 7,08
Paraguai 5,40 5,25 4,50 1,67 4,00 7,25
Uruguai ... ... ... 4,50 5,58 8,88

Fonte: CEPAL (2022).

Por suposto, a taxa básica de juros se desdobra num espectro


de taxas de juros de diferentes modalidades ou perfis (em termos de
diferentes prazos, garantias, canais de concessão, entre outros), as
quais vão efetivamente impactar os tomadores de crédito para con-
sumo e para investimento; a Tabela 5 mostra taxas de juros nacionais

13 O caso da Argentina é certamente peculiar e muito distinto daquele brasileiro; a economia


argentina passa por agudos problemas em suas contas externas, ao passo que o Brasil dis-
põe de expressivo volume de reservas cambiais. Para fins de comparação, ao final de 2021,
o Brasil contava com aproximadamente US$362 bilhões em reservas cambiais, ao passo
que a Argentina detinha apenas cerca de US$40 bilhões (CEPAL, 2022) – resultado de
sistemáticos déficits externos nas áreas comercial e financeira do país platino. Cabe notar,
entretanto, que o nível de inflação é substancialmente mais elevado na Argentina (vide
Tabela 6), o que faz com que as taxas de juros reais (ou seja, descontando-se a inflação) do
Brasil sejam, efetivamente, as mais elevadas.
14 Optou-se aqui pela comparação com países da América Latina por conta de suas similitu-
des sociais e econômicas com respeito ao Brasil.

182 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


representativas comparadas15. Os efeitos deletérios sobre o consumo
das famílias16 e sobre o investimento (formação bruta de capital)
podem ser observados ainda na Tabela 1 (terceira coluna). No entanto,
é relevante conhecer os resultados práticos dessa política monetária
restritiva também na comparação com outros países da região.

Tabela 5 – Taxas de juros anuais (médias) ativas


representativas (países selecionados)

2021 2022
2017 2018 2019 2020
(4o trim) (2o trim)
Argentina 26,8 47,7 66,9 36,8 38,9 ...
Bolívia 6,0 6,4 6,4 6,3 6,5 5,6
Brasil 49,9 45,2 42,7 33,8 36,4 ...
Chile 11,5 10,6 8,5 8,0 12,6 16,3
México 27,0 28,3 30,3 30,2 29,2 29,6
Paraguai 14,3 12,9 12,7 10,7 9,9 ...
Uruguai 15,4 14,2 13,3 12,7 8,8 10,5

Fonte: CEPAL (2022).

Como se pode observar na Tabela 6, a despeito de importan-


tes e sucessivos aumentos na taxa básica de juros, a economia bra-
sileira ainda apresentava acréscimos na taxa de inflação – o que é
coerente com a observação anteriormente apresentada, segundo a
qual a tendência local de aumento de preços não estaria ligada à
demanda, já deprimida mesmo antes dos aumentos dos juros. Como
se pode notar (e, novamente, com exceção da Argentina), o Brasil
mantém, a um só tempo, as taxas mais altas de juros nominais e de

15 O estudo preparado pela CEPAL (2022) não se refere a médias nacionais para todos os
canais de crédito ao setor privado: antes, escolhe-se um canal de concessão de crédito
que se assume como mais representativo da realidade de cada país; no caso brasileiro, por
exemplo, optou-se por apresentar as taxas de juros sobre o crédito individual para pessoas
físicas, apenas.
16 Não por acaso, observou-se importante acréscimo no volume de famílias atingidas pela
insegurança alimentar, no período.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 183


inflação – na contramão daquilo que o regime de metas de inflação
se propõe a apresentar como resultado.

Tabela 6 – Preços ao consumidor (taxas acumuladas


em 12 meses) (região / países selecionados)

2017 2018 2019 2020 2021 2022 (jun.)


América Latina e
3,4 3,0 2,9 2,9 6,6 8,4
Caribe
Argentina 25,0 47,1 52,9 34,1 51,4 65,0
Bolívia 2,7 1,5 1,5 0,7 0,9 1,8
Brasil 2,9 3,7 4,3 4,5 10,0 11,9
Chile 2,3 2,6 3,0 3,0 7,2 12,5
México 6,8 4,8 2,8 3,2 7,4 8,0
Paraguai 4,5 3,2 2,8 2,2 6,8 11,5
Uruguai 6,6 8,0 8,8 9,4 8,0 9,3

Fonte: CEPAL (2022).

O sacrifício imposto ao país por tal política monetária pode ser


desdobrado em ao menos três categorias de impactos: sobre as finan-
ças públicas, sobre os investimentos e o sobre mercado de trabalho
(objeto do item seguinte). Conforme apontam Tavares e Belluzzo
(2002), a taxa de juros tem sido usada, desde 1999, não apenas para
o controle direto (e malsucedido) da inflação, mas especialmente
para tentar regular os fluxos de capital financeiro de curto prazo e,
por essa via, a taxa de câmbio. Não apenas se trata de tentativa fre-
quentemente infrutífera (como, por exemplo, nos momentos de ata-
ques especulativos e de resultantes crises cambiais, tão corriqueiros
na década de 1990), mas também custosa em termos fiscais: o esto-
que de dívida pública tende a se expandir consideravelmente como
efeito colateral desse inglório (e nem sempre assumido) nexo entre
as políticas monetária e cambial17. A pressão política gerada em

17 Tavares e Belluzzo (2002) chamam atenção para o fato de que a taxa básica de juros, em um
contexto de liberalização da conta financeira (ou seja, na ausência de instrumentos que

184 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


torno do valor da dívida pública federal, apresentada em uma pro-
blemática proporção entre um fluxo (o PIB)18 e um estoque (dívida
pública, acumulada até um ponto no tempo) seria, porém, uma das
justificativas para a prática de juros elevados19, retroalimentando o
problema de base – e servindo de apoio à ideia de que seria preciso

possam regular os fluxos de capitais financeiros de curto prazo), é usada como forma de
atrair aplicações financeiras forâneas (ou, em contexto de crises cambiais, como forma de
se tentar desestimular fugas de capitais); o controle indireto da inflação ocorreria via uso
dos bens importados (tornados mais baratos quando há valorização cambial) e por meio
do bloqueio da relação entre desvalorização cambial e aumento dos preços locais (pelos
motivos acima indicados, com respeito à nossa atualidade). Além de deprimir a demanda
agregada, os investimentos privados e fomentar, portanto, o desemprego (o que ajuda a
conter a inflação, mas com enorme custo social), esse tipo de prática tende a aumentar a
dívida pública tanto nas conjunturas de saída líquida de recursos externos (porque aí se
aumenta a taxa básica de juros, usada como referência para remuneração de muitos dos
títulos de dívida pública), quanto nas conjunturas de entrada líquida de recursos, como
resultado da política de “esterilização de divisas” (quando o Banco Central vende títulos
ao setor privado para “enxugar liquidez” em moeda local, resultante da entrada de moeda
estrangeira que é trocada por moeda local). Assim sendo, nas conjunturas de escassez de
divisas, a dívida pública sobe puxada pela alta na taxa básica de juros; nas conjunturas de
abundância de divisas, aumenta o estoque de dívida pública em poder do setor privado.
18 A comparação entre um estoque (a dívida pública) e um fluxo (o PIB) é problemática em
diferentes sentidos. Em primeiro lugar, a medida consolidada do estoque de dívida esconde
importantes aspectos relativos à composição da dívida (em termos de prazos de vencimento
dos títulos, da moeda na qual ela é exigível, de eventuais cláusulas de recompra de títulos, e
da natureza da remuneração dos mesmos: pré ou pós-fixada); assim sendo, um mesmo va-
lor de estoque de dívida pode ocultar uma infinidade de combinações de composição, mais
ou menos interessantes ao governo devedor. Em segundo lugar, é importante estabelecer a
distinção entre dívida bruta (soma de todas as exigibilidades ao setor público em poder do
setor privado) e dívida líquida (valor ao qual se chega depois de abater da dívida bruta os
direitos a receber que detém o setor público). Finalmente, a comparação com o PIB (cujo
valor tende a flutuar muito mais que o estoque de dívida) pode levar a conclusões equivoca-
das; cenários recessivos levam a reduzir o valor do PIB, fazendo com que aumente a relação
“dívida / PIB” sem que o governo devedor tenha aumentado seus gastos. Adicionalmente,
cenários recessivos também levam à queda das receitas públicas e a uma piora no saldo fis-
cal – mesmo que o governo não amplie seus gastos. Portanto, tal medida do “desempenho
fiscal” mostra-se pouco lógica (e, talvez, muito ideológica), na prática.
19 O argumento do “risco fiscal” é pouco crível quando a maior parte da dívida pública está
denominada em moeda emitida localmente, tal como no caso brasileiro (já que os títulos
de dívida são exigíveis numa moeda que, em princípio, não é escassa para quem tem o
poder de emiti-la). A confusão entre as distintas lógicas das finanças pública e privada
(CARVALHO; ROSSI, 2020) parece, de fato, atender a interesses materiais muito bem es-
tabelecidos e conhecidos; ainda que os argumentos apresentados para defender tal política

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 185


cortar gastos públicos primários20 (por exemplo, nas áreas sociais e
nos investimentos públicos), ainda que estes não estejam na base das
reais determinações da expansão do déficit público nominal (total).
A este respeito, convém examinar as Tabelas 7 e 8.

Tabela 7 – Gastos de governos nacionais como


percentuais do PIB (região / países selecionados)

Gasto Gasto com Gastos de


Gasto Total
Primário Juros Capital
2020 2021 2020 2021 2020 2021 2020 2021
América Latina
27,7 26,8 20,7 19,9 2,7 2,7 4,2 4,2
e Caribe
Argentina 25,5 23,1 21,9 18,9 2,3 1,7 1,3 2,6
Bolívia 36,7 … 29,9 … 1,0 … 5,9 …
Brasil 33,4 27,2 27,9 21,9 3,8 4,5 1,7 0,7
Chile 27,3 31,5 23,0 27,4 1,0 0,9 3,4 3,3
México 25,7 25,7 19,3 18,6 2,9 2,6 3,4 4,4
Paraguai 19,7 17,8 14,2 12,7 1,1 1,1 4,4 3,9
Uruguai 32,2 30,3 28,2 27,0 2,7 2,2 1,3 1,1

Fonte: CEPAL (2022).

Conforme se pode observar acima (Tabela 7), o Brasil é o país


que mais gasta com juros dentre aqueles aqui selecionados (e muito
mais que a média para a América Latina e o Caribe); de outra parte,
é também o país que menos gasta com investimentos públicos no
período retratado. Esse é um achado coerente com os previsíveis
resultados da política monetária restritiva (de juros substancialmente
elevados) e da política fiscal sujeita ao teto de gastos (que, curiosa-
mente, não se aplica às despesas financeiras da União).

de juros elevados sejam alegadamente “técnicos”, eles estariam mais decisivamente ligados
a interesses pouco explicitados, tanto econômicos quanto políticos (KALECKI, 1943).
20 O saldo fiscal primário é aquela medida orçamentária que exclui de seu cálculo os pa-
gamentos de juros e amortizações da dívida pública; o saldo fiscal nominal corresponde
àquele que inclui todas as receitas e despesas do setor público.

186 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A Tabela 8 (abaixo), por sua vez, indica que, apesar do esforço
fiscal perpetrado via EC 95, a dívida pública brasileira não retor-
nou aos patamares mais reduzidos, vigentes em 2012-5; ao contrá-
rio, houve uma trajetória de crescimento praticamente contínua.
Conforme registrado em nota anterior, para isso cooperaram tanto
a queda e posterior estagnação do PIB (ao reduzir as receitas orça-
mentárias advindas dos impostos que incidem sobre renda, pro-
dução e emprego) quanto os aumentos dos juros (que remuneram
parte importante dos títulos de dívida pública). Evidentemente, o
segmento social que se beneficia de tal uso da taxa de juros básica
e do orçamento público são aqueles que detêm as maiores fatias da
dívida pública, o setor financeiro privado – ainda que boa parte das
empresas do setor produtivo também mantenha operações de tesou-
raria como fonte de ganhos.

Tabela 8 – Dívida líquida total do setor público


brasileiro (% do PIB21), final de período

2012 20,82
2013 19,23
2014 20,78
2015 21,90
2016 33,34
2017 38,48
2018 39,46
2019 41,66
2020 47,98
2021 45,28
2022 48,17

Fonte: IPEA. Carta de Conjuntura.

21 Evidentemente, têm-se aqui presentes os argumentos acima apresentados (em outra nota)
com respeito ao problemático uso desta forma de medir o endividamento público (como
percentual do PIB); optou-se, no entanto, por preservar essa maneira de apresentar os
valores de modo a explicitar que, mesmo em seus próprios termos (tal como geralmente
usados em favor das recentes políticas fiscal e monetária), a defesa da gestão econômica
praticada no período estudado seria, portanto, pouco defensável.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 187


Cabe ainda apontar os efeitos da recente condução de polí-
tica sobre os investimentos22 no país (Tabela 9, abaixo). Tal como se
pode notar, a economia brasileira mostra níveis de formação bruta
de capital fixo sistematicamente inferiores àqueles da média regio-
nal. Esse achado é consistente com as limitações ao crédito geradas
pelos juros elevados e com as débeis perspectivas de ganhos com a
produção.

Tabela 9 – Formação bruta de capital fixo


(% do PIB) (região / países selecionados)

2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
América
Latina e 23,3 22,7 21,9 20,7 19,2 18,6 18,6 18,3 17,4 19,0
Caribe
Argentina 15,4 15,4 14,7 14,9 14,3 15,8 15,3 13,1 12,6 15,3
Bolívia 17,5 18,3 19,1 19,1 19,0 20,4 20,2 19,0 15,5 16,3
Brasil 19,1 19,7 18,7 16,7 15,2 14,6 15,1 15,5 16,1 18,0
Chile 27,1 26,6 25,1 24,6 23,6 22,5 23,0 23,9 23,1 24,3
México 24,3 23,1 23,1 23,5 23,1 22,3 22,0 21,0 18,8 19,7
Paraguai 20,2 20,1 20,5 19,5 19,1 19,3 19,9 18,8 20,0 22,7
Uruguai 19,5 19,3 19,2 17,3 16,8 16,6 15,0 15,1 16,3 18,0

Fonte: CEPAL (2022).

A realidade mostrada na tabela acima é também consistente


com as proposições teóricas fundantes de Kalecki e de Keynes, uma
vez que os juros elevados sinalizam oportunidades de ganho em

22 Certamente, é ainda digno de nota o fato de que, ao refrear a ampliação da capacidade


produtiva instalada (ou seja, os investimentos), a atual política monetária joga contra seus
próprios objetivos em termos dinâmicos (vale dizer, considerando a passagem do tempo):
ao inibir a expansão da capacidade de ofertar bens e serviços, eventuais aumentos futuros
na demanda tenderiam a pressionar os preços no sentido de sua alta. Isso equivale a dizer
que o imenso esforço social imposto pela atual gestão do regime de metas de inflação (alto
custo fiscal com baixo crescimento) sequer faria sentido, nos próprios termos, para além
do curto prazo.

188 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


aplicações financeiras, por oposição ao uso do poder de compra do
empresariado para realizar inversões produtivas (KEYNES, 1936);
ao mesmo tempo, a limitada disponibilidade de crédito, seu custo
crescente (que também aumenta os níveis de endividamento pri-
vado), o baixo dinamismo econômico recente (redundando em
receitas e lucros mais limitados às empresas23) favorecem a poster-
gação das decisões de investimento (KALECKI, 1954). É impor-
tante anotar ainda que o investimento é o gasto agregado mais
intimamente ligado ao setor industrial (dado o poder de geração de
demanda interindustrial de setores ligados à produção de máquinas
e equipamentos, geralmente de maior valor agregado); não chega
a ser surpreendente, portanto, que o desempenho da indústria de
transformação seja negativo ou pífio, durante todo o período aqui
estudado, conforme já exposto na Tabela 2 (quarta coluna).
Assim sendo, nota-se que o fluxo de gastos na economia brasi-
leira tem sido mantido baixo em dois de seus componentes autôno-
mos mais cruciais: as despesas não financeiras do governo central e
os investimentos privados. Em uma circunstância de baixo patamar
de gastos, a geração de renda é também minorada24. E é exatamente
esse contexto de retração / estagnação do nível de renda agregada
que se deve ter em mente quando da análise das condições de obten-
ção de renda pela via da venda da força de trabalho.

23 Conforme já indicado na Tabela 1, o consumo das famílias (componente de importante


peso relativo no PIB, mesmo sendo um gasto meramente induzido pelo nível de renda e
produção correntes) também é negativamente impactado pelos juros elevados; e esse as-
pecto também é incorporado às projeções de receitas por parte das empresas, novamente
cooperando em favor de menores patamares de investimento.
24 Em essência, esse é o sentido mais elementar do princípio da demanda efetiva introduzido
por Kalecki e por Keynes: os gastos determinam o volume de renda de cada período; mas,
conforme já indicado, para que tais gastos ocorram é preciso que os agentes econômicos
que detêm poder de compra decidam exercê-lo.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 189


Situação do mercado de trabalho.

Na raiz da Macroeconomia de Kalecki (1943; 1954) e de


Keynes (1936) também se encontra um elemento conceitual crucial,
segundo o qual as condições que circunstanciam o âmbito agregado
restringem (ou ampliam) os espaços econômicos reservados à ação
de âmbito individual; dito de outro modo, trata-se de entender que o
nível macro condiciona aquele microeconômico. Esse elemento con-
ceitual é particularmente decisivo para o entendimento da operação
do mercado de trabalho, no qual aqueles indivíduos que vendem a
sua força de trabalho tentam “se fazer empregar”; se a relação de uma
compra / venda qualquer somente se realiza em função da decisão
do uso do poder de compra por parte de seu proprietário, é também
verdadeiro que são os gastos feitos pelos empregadores que determi-
nam a renda (e o volume de emprego) disponível aos trabalhadores.
Estes últimos, portanto, são constrangidos em sua atuação pelas cir-
cunstâncias dadas pelas decisões de outro segmento (classe) social,
justamente aquela detentora da capacidade de gasto. Conforme
se viu no item anterior, o uso do orçamento público poderia ser
também importante para atuar sobre as condições macroeconômi-
cas dentro das quais a população trabalhadora procura os recursos
materiais para sobreviver. Entretanto, vimos que as decisões de gasto
dos empresários (com a capacidade produtiva) e do governo central
(com itens não financeiros) foram fortemente limitadas. Não gera
surpresa, portanto, que os dados relativos às condições de trabalho
enfrentadas pelos indivíduos sejam mais duras, dentro do período
analisado, conforme de pode visualizar no Gráfico 1, abaixo.

190 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Gráfico 1 – Taxas (%) de desocupação, subutilização
de mão de obra e desalento25

Fonte: IPEA – Carta de Conjuntura / SIDRA-IBGE – PNAD-C.

Como se pode notar, no período a partir do qual se encontra


em vigência a lei da reforma trabalhista (desde 2018) não se regis-
trou aumento no volume de absorção de mão de obra: a taxa de
desocupação (ou desemprego, na terminologia habitual) permane-
ceu em patamares muito semelhantes até o advento da pandemia;
mesmo após o período de maior gravidade em termos de saúde
pública, a taxa de desocupação somente consegue retomar o pata-
mar de 2015 no segundo semestre de 2022. Situação semelhante
pode ser apontada com respeito à taxa composta de subutilização
de mão de obra26, medida que retrata com maior amplitude as cir-

25 Taxas mensais dessazonalizadas da PNAD-C / IBGE).


26 A “taxa composta de subutilização de mão de obra” corresponde à proporção entre (i) “su-
bocupados por insuficiência de horas trabalhadas” (pessoas de 14 anos ou mais que, na
semana de referência da PNAD-C, trabalhavam habitualmente menos de 40 horas totais,
gostariam de trabalhar mais horas e estavam disponíveis para trabalhar mais horas no
período de referência de 30 dias) mais os (ii) “desocupados” (pessoas sem trabalho em
ocupação nessa semana que tomaram alguma providência efetiva para consegui-lo no pe-
ríodo de referência, e que estavam disponíveis para assumi-lo na semana de referência da
PNAD-C) mais a (iii) “ força de trabalho potencial” (pessoas que realizaram busca efetiva
por trabalho, mas não se encontravam disponíveis para trabalhar, mais as pessoas que
não realizaram busca efetiva por trabalho, mas gostariam de ter um trabalho e estavam
disponíveis para trabalhar – na semana de referência da pesquisa) e o total da “ força de

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 191


cunstâncias dentro das quais se processa a compra / venda da força
de trabalho. O sistematicamente elevado patamar da subutilização
da força de trabalho indica que, além do desemprego aberto, há uma
ampla gama de situações (como no caso da insuficiência de horas
tralhadas) dentro das quais a venda do trabalho ocorre com preca-
riedade. Merece particular destaque a taxa que mede a situação de
desalento27: nesta categoria são catalogadas as pessoas que, embora
precisem vender sua capacidade laboral, não o fizeram no período
da pesquisa domiciliar por conta de aspectos não meramente con-
junturais (como é o caso, por exemplo, da falta de qualificação ou da
repetida impossibilidade de se fazer empregar após muitas tentati-
vas sucessivas). No caso dessa medida, em particular, o período no
qual já estava instaurado o novo marco regulatório de uso do traba-
lho – mas ainda anterior à pandemia – mostrou-se expressivamente
adverso: aí a taxa de desalento é inequivocamente mais elevada que
até então, em toda a série histórica de dados (com início em 2012);
mesmo após o momento mais agudo da Covid-19, a taxa de desa-
lento não regride aos valores (mais baixos) de antes de 2016.
Como se poderia prever, em meio a tal quadro, o patamar de
remuneração do trabalho tampouco se mostrou mais animador no
período posterior à reforma trabalhista. Esse achado merece, porém,
considerações especiais.

trabalho ampliada”, ou seja, o total de pessoas ocupadas, desocupadas e também aquelas


que integram a força de trabalho potencial (IBGE, 2021).
27 A taxa de desalento corresponde à fração da força de trabalho potencial composta pelos
“desalentados”, isto é, pessoas que “estavam disponíveis para assumir um trabalho na se-
mana de referência, mas não tomaram providência para conseguir trabalho no período
de referência de 30 dias por não ter conseguido trabalho adequado, não ter experiência
profissional ou qualificação, não haver trabalho na localidade em que residia ou não con-
seguir trabalho por ser considerado muito jovem ou muito idoso” (IBGE, 2021).

192 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Gráfico 2 – Rendimento médio real habitual no trabalho
principal (em R$, no eixo esquerdo) e taxa composta de
subutilização de mão de obra (em %, no eixo direito)

Fonte: IPEA – Carta de Conjuntura / SIDRA-IBGE – PNAD-C.

Conforme se pode ver acima (Gráfico 2), há dois momentos


distintos marcados pelo aumento dos rendimentos médios da popu-
lação ocupada: (i) entre o final de 2012 e o início de 2015 (grosso
modo, o período destacado pela elipse menor, de cor verde); e (ii)
entre meados de 2016 e o início de 2021 (período aproximado, mar-
cado pela elipse maior, de cor laranja). No primeiro dos períodos, o
aumento da renda média dos indivíduos que tinham alguma ocu-
pação é dado pela melhora geral das condições de venda do traba-
lho, ou seja, a queda na subutilização de mão de obra (desemprego
e formas precárias de absorção da força de trabalho); no segundo, a
melhora da remuneração média decorre de mero efeito estatístico,
uma vez que, em tempos de recessão, são primeiramente demitidos
os trabalhadores que possuem menores níveis de remuneração (seja
pelo custo mais baixo da rescisão contratual ou mesmo pela infor-
malidade jurídica, que também costuma acompanhar remunerações
mais baixas) – o que faz com que suba a média das remunerações
daqueles que permanecem empregados. Após o primeiro trimestre
de 2021, a queda na subutilização da mão de obra é acompanhada

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 193


por queda nos rendimentos médios reais do trabalho, sugerindo que
as novas ocupações geradas oferecem piores condições de absorção
de mão de obra. Não por acaso, a remuneração do trabalho no país
permanece sistematicamente baixa, especialmente a partir de 2017,
numa comparação regional (Tabela 10)28.

Tabela 10 – Índices de salário médio real (2010 = 100) (países selecionados)

2022
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
(1º trim)
Bolívia 101,8 107,7 109,5 111,5 115,0 114,6 114,2 116,3 …
Brasil 108,4 108,9 107,6 110,2 110,0 110,5 115,5 108,4 103,1
Chile 111,9 113,9 115,4 119,0 121,3 123,8 124,5 125,8 125,4
Colômbia 104,5 105,7 103,4 106,6 107,7 108,6 103,3 109,8 111,5
México 101,7 103,2 104,1 102,9 103,7 106,7 110,8 112,4 116,5
Peru 117,9 117,5 122,2 121,8 125,8 125,0 118,6 123,6 129,9
Uruguai 115,4 117,3 119,1 122,6 122,8 124,4 122,2 120,4 120,3

Fonte: CEPAL (2022).

Pode-se depreender que, de um lado, a reforma trabalhista


não viu cumprida a sua perspectiva de gerar mais empregos (dada a
expansão da taxa de subutilização de mão de obra após 2017 e antes
da pandemia) ou empregos melhores (a não ser por efeito estatístico
de uma situação particularmente desfavorável ao trabalho); de outra
parte, tampouco se notou expressiva melhora na participação dos
empregos formais29 – especialmente quando, mais uma vez, é feita
uma comparação com outros países latino-americanos (Tabela 11).

28 Evidentemente, a inflação local tem importante papel neste resultado, já que aqui é feita
referência aos rendimentos reais do trabalho, vale dizer, descontados dos efeitos do au-
mento do nível de preços.
29 Mesmo considerando que toda uma gama de situações precárias de absorção de mão de
obra foi tornada legal e, portanto, potencialmente coerente com o aumento da formalidade
jurídica dos vínculos empregatícios.

194 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Tabela 11 – Índice de emprego registrado
(2010 = 100) (países selecionados)

2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021


Argentina 109,6 110,9 114,0 114,3 115,3 115,6 114,4 112,3 115,2
Brasil 114,8 117,2 115,2 110,6 108,7 109,7 111,0 103,2 116,0
Chile 115,8 117,9 120,1 122,2 123,4 127,8 131,5 128,1 136,4
México 113,0 117,0 122,0 126,7 132,2 137,6 140,7 137,2 139,9
Peru 112,7 114,8 115,8 118,3 120,7 125,4 128,8 124,4 129,3
Uruguai 110,9 111,7 110,1 108,9 109,4 108,9 108,9 102,4 103,9

Fonte: CEPAL (2022).

Logo, conclui-se que a gestão macroeconômica do país foi pre-


ponderante para os resultados negativos observados nas condições
de absorção de mão de obra, na contramão dos argumentos que jus-
tificariam a desregulamentação das relações de trabalho – mesmo
antes da pandemia e na comparação com nações vizinhas.

Conclusão

É bem provável que jamais tenhamos visto, em outro período


da história do Brasil, um desmonte tão amplo e profundo das estru-
turas de proteção social e de regulação econômica. Os impactos
dessa linha de ação sistemática do governo federal foram severos,
tanto no âmbito macroeconômico quanto no mercado de trabalho e
nas condições gerais de sobrevida material da maioria da população,
que depende da venda de seu trabalho para garantir a subsistência.
Para superar essa terrível conjuntura, serão certamente
demandados grandes esforços em diferentes frentes; dentre elas,
poderiam ser citadas: (i) a retomada do uso do orçamento público
com prioridades não financeiras: políticas transferências de renda,
recomposição do poder de compra do salário mínimo, retomada dos
investimentos públicos – o que envolveria o banimento do teto de
gastos; (ii) a reversão da política monetária de juros elevados e o

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 195


uso de políticas não monetárias de combate à inflação (como no
caso das políticas de renda, dos estoques públicos reguladores de
preços e da revisão da política de paridade de preços internacionais
da Petrobras); (iii) retomada da regulação e da proteção ao trabalho
(com destaque para os novos setores, marcados pelo uso das tecno-
logias de comunicação eletrônica); (iv) reforço da democracia e da
participação populares (em conselhos, plebiscitos e outros meios),
para a edificação de um novo projeto nacional de desenvolvimento,
socialmente inclusivo e sustentável.
Não se trata, evidentemente, de tarefa simples ou mesmo pas-
sível de execução em apenas um único mandato para o governo
central. No entanto, a tarefa é tão complexa quanto inadiável, espe-
cialmente para aqueles que são possuidores apenas de sua própria
capacidade de trabalhar – certamente, a mercadoria mais perecível
de todas.

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AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 197


CAPÍTULO 9

NOVA PRERIODIZ AÇ ÃO, NOVOS


CONCEITOS, VELHO DE VIR

Dora Shellard Corrêa1

“Nomear não é dizer a verdade, e sim atribuir àquilo que se


nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar no que o nome
suscita” (STENGERS, 2015, p. 37
Estou alinhada com a ambientalista feminista Eileen Crist
quando ela escreve contra os comprometimentos com a
normalidade humanista modernizante gerencial, tecno-
crática e apaixonada pelo mercado e pelo lucro de muito
do discurso do Antropoceno. Esse discurso não simples-
mente suga nossa capacidade de imaginar e nos importar
com outros mundos, tanto aqueles que agora existem pre-
cariamente (incluindo aqueles chamados de “natureza sel-
vagem”, com toda a história contaminada desse termo no
colonialismo racista) quanto aqueles que precisamos trazer
à luz em aliança com outras criaturas, por passados, presen-
tes e futuros ainda recuperáveis (HARAWAY, p. 94, 2022)

Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro iniciam seu


livro chamando a atenção para as ficções cinematográficas futuris-
tas que tratam de cataclismas ambientais ou o fim do planeta tor-
nando impossível ou muito custosa ou impossível a sobrevivência
humana. Fantasias que num contexto de crescentes eventos climáti-
cos extremos e desastres ambientais. E continuam questionando se

1 Universidade Estadual de Londrina

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 199


“depois de todo nosso avanço científico, tecnológico e civilizacional,
“há mundo por vir?”, reproduzindo o título do livro de Deborah
Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2017).
Desde 2019, assistimos a uma expansão insana do desmata-
mento, especialmente nas regiões centro oeste e norte do Brasil, o
crescimento do garimpo ilegal e a invasão de terras indígenas. O
que tem nos assustado não se trata apenas de haver uma legislação
que é desrespeitada oficialmente, mas a dimensão que a destruição
tomou a partir desse ano e o fato de assistirmos renascer, com cara
nova, não só na América, governos com forte apelo para a explora-
ção ambiental desenfreada. O que ficou evidente a partir de 2019 foi
a fragilidade de nossos organismos ligados à preservação ambiental
e aos direitos indígenas. Embora tenhamos uma legislação ambien-
tal elogiada internacionalmente, isso não basta.
Um dos assuntos mais populares desde o último quarto do
século passado refere-se à degradação ambiental especialmente o
aquecimento global e, ligado a esse fenômeno, as mudanças climá-
ticas. Entrando no novo milênio os desastres ambientais de dife-
rentes proporções provocados pela exploração de petróleo, energia
atômica, obras de engenharia, poluição do ar por indústrias, conta-
minação da terra e das águas pelo uso de insumos químicos e depo-
sição de material contaminado, extinção de parte da fauna aquática
por indústrias pesqueiras, aniquilação de parte da fauna terrestre
por ação do turismo, do comércio de animais silvestres são cada vez
mais constantes em nossa mídia. Culpamos as vacas pelo aumento
do buraco na camada de ozônio, decretamos pena de morte àque-
les animais que criamos quando adoecem em razão de patologias
intensificadas pelas condições enclausuradas e concentradas de vida
que lhes proporcionamos. Em 2020, a Holanda abateu mais de qui-
nhentos mil visons, animais criados para que sua pele seja utilizada
na produção de casacos. Isso se deu porque alguns animais foram
infectados pelo covid-19 e, acredita-se, que podem ter transmitido o
vírus para dois funcionários de uma fazenda (MARON, 2020).
Essas calamidades são noticiadas e percebidas, em geral, como
eventos singulares, locais ou regionais. Diferentemente, quando o

200 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


fato se refere a eventos climáticos, chuvas torrenciais, nevascas e
secas, tem havido uma tendência a associá-los aos discursos sobre as
mudanças climáticas popularizando a expressão ‘evento climático
extremo’. Um fato dado como global e indicativo de que o futuro do
planeta pode estar comprometido.
O assunto está nos consumindo de uma forma tão intensa,
especialmente frente às notícias sobre os eventos climáticos extre-
mos apontando para uma transformação ambiental radical do
planeta nas próximas décadas, que simplesmente esquecemos,
perdemos a memória. Esquecemos, talvez por egocentrismo e arro-
gância cultural, talvez por uma postura política e ou científica que
inúmeros mundos americanos têm sido destruídos desde o século
XV. Segundo o Conselho Indigenista Missionário, CIMI, até o
início do milênio, 1470 povos indígenas haviam sido extintos desde
1500, somente no Brasil (CIMI, 2004). Quando, em 2018, o Museu
Nacional pegou fogo, perdeu-se também a documentação preser-
vada sobre línguas faladas por tribos consideradas extintas. Nova
extinção para aqueles que identificavam suas raízes através desses
testemunhos. (ZARUR, 2018). Talvez devêssemos ouvir também
esses povos que já passaram por destruições e tem modos de vida e
culturas diversas da nossa. Essa responsável pela máquina a vapor,
a combustão, pela energia atômica e pela transformação da terra,
da água, dos minerais, vegetais e animais em mercadoria. É mos-
trado pela mídia que esses eventos extremos atingem especialmente
uma parcela da população, a qual foi obrigada pela especulação
imobiliária a viver em locais mais instáveis. Entretanto, como os
responsáveis pelas mudanças climáticas são generalizados, são os
humanos, a comoção é dirigida circunscritamente àquelas pessoas
atingidas pelas tragédias, ofuscando a realidade de que existem inú-
meros outros humanos morando em situações sujeitas a tais even-
tos naturais. Essa visão encoberta também de que, talvez antes dos
humanos, a atual ordem econômica dominante tenha não consiga
sobreviver às mudanças climáticas.
O que chama a atenção é a repetição, não somente nos meios
de comunicação de acesso geral da população, jornais, magazines,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 201


rádios, televisão, vídeo, sites, mas também de muitos acadêmicos
de variadas áreas, inclusive as humanas, de um discurso singular
sobre a situação ambiental global, o qual contém implicitamente
propostas de ação e o devir sugerido. A ordem econômica e social
atual num planeta sustentável ambientalmente é que se almeja. Esse
discurso é apresentado como apolítico porque se apoia em especial
nos estudos das ciências exatas e da terra.
Contrariamente do que se induz, o conteúdo das propostas
de um mundo “sustentável” envolve muito mais do que animais,
plantas, águas, clima e humanos, há cultura, etnia, formas de usos e
apropriação da natureza e etc. Mas compreende também o sistema
econômico vigente. Não foi por acaso ou apenas por uma questão
de consciência ambiental que somente após da ideia de “desenvol-
vimento sustentável”, veiculado em 1987 no Relatório Brundtland
e elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento da ONU, quinze anos depois da reunião em
Estocolmo, em 1972, que se observará o crescente apoio do capital à
ideia da preservação ambiental. Conforme James Fairhead, Melissa
Leach and Ian Scoones: “Por todo o mundo ecossistemas estão à
venda. A mercantilização da natureza e sua apropriação por um
amplo grupo de atores, para uma variedade de usos – atuais, futuros
e especulativos – em nome da ‘sustentabilidade’, ‘conservação’ ou
valores ‘verdes’ está se acelerando” (p. 237, 2012).2 No novo milênio
se observou a expansão, incorporação de setores como o financeiro
na “cruzada pela sustentabilidade”. Nesse momento o conceito de
sustentabilidade já engloba além do ambiental, o social, econômico,
cultural, ético, estético, político. Vale citar a criação dos Princípios
de Sustentabilidade em Seguros criada em 2012 pela então recente,
Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (UNEP FI). Nesse contexto confuso global e nacional, a

2 “Across the world, ecosystems are for sale. The commodification1of nature, and its appro-
priation by a wide group of players, for a range of uses – current, future andspeculative – in
the name of ‘sustainability’, ‘conservation’ or ‘green’ values is accelerating”

202 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


mudança climática tem tido uma atenção relevante das organiza-
ções financeiras.
Começou a ser difundido no início do século XXI, por um
grupo de cientistas, estudos buscando comprovar que a Terra entrou
numa nova época geológica, a qual denominam de Antropoceno.
Ou seja, isso implica em que não nos encontramos, ou melhor a
Terra, não se encontra mais no Holoceno, e sim numa época em
que os humanos passaram a ser os principais agentes impactantes
do planeta.
De lá para cá, 2023, cresceu expressivamente a sua referência
a esse termo em títulos de publicações tanto acadêmicas como não
acadêmicas, em artigos na mídia impressa e on line, bem como sur-
giram periódicos com essa denominação. O fenômeno longe de ser
localizado, encontra-se espalhado pelo globo. No dia 26/12/2022, a
Folha de S. Paulo publicou uma matéria do repórter de clima do
New York Times, Raymond Zhong, intitulada “Cientistas estão a
um passo de declarar o Antropoceno, a era dos humanos” (ZONG,
2022). É uma abordagem puramente geológica, polemizando se
devemos defini-lo como um evento ou uma era geológica. O sig-
nificativo é que a Folha publicou essa matéria e, até o início de
2023 nenhuma discussão mais crítica a essa proposta foi noticiada.
O conceito é exposto como uma realidade comprovada cientifica-
mente. Raymond Zhong despreza a rica e interessante produção
acadêmica elaborada em boa parte nos Estados Unidos problema-
tizando as ideias e as práticas que estão implícitas a esse conceito.
Trata o Antropoceno somente como como um ato linguístico sem
consequências culturais, políticas e sociais.
A partir da ultima década alguns historiadores ambientais e
outros intelectuais da área das sociais começaram a adotar o con-
ceito de Antropoceno como periodização da história dos últimos
cento e setenta anos. Foram estimulados talvez pela publicação de
John Mac Neil “An Environmental History of the Anthropocene
since 1945”. Nessa obra, o historiador norte americano desconsi-
dera as periodizações historiográficas existentes e trata o tempo da

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 203


história ciência como um fato objetivo, confundindo-o com a con-
cepção de tempo adotada pelos geólogos.
O objetivo deste artigo não é questionar o nível de degradação
ambiental produzida por vários grupos econômicos e Estados que
se observa no globo hoje, mas explorar as críticas que têm sido for-
muladas ao conceito de Antropoceno e às práticas a que ele induz.
Práticas essas que revelam posições políticas, imagens de devir
sugeridas supostamente apolíticas. Não se trata aqui de propor a
substituição desse termo por qualquer outro mas, como afirmamos,
mostrar que há implicações que vão além de uma denominação que
implica em silenciamentos, obscurecimentos, esquecimentos conve-
nientes ao futuro que se está propondo e não apenas a um planeta
em busca de preservação. Irei abordar rapidamente o surgimento do
conceito, para então apresentar as críticas que têm sido feitas.
Está sendo proposto pelo Grupo de Trabalho do Antropoceno
(GTA), grupo de 37 cientistas de várias áreas do saber, criado pela
Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário (órgão da União
Internacional de Ciências Geológicas - IUGS), a tese de que estamos
desde o advento da industrialização, na segunda metade do século
XVIII, em processo de mudanças ambientais em escala planetária
decorrentes das ações humanas. A partir do pós segunda Guerra
Mundial, o planeta ingressa na segunda fase do Antropoceno,
quando sofreu uma grande aceleração: “no início do século XX,
ninguém, (...), imaginou a Grande Aceleração da segunda fase do
Antropoceno – a industrialização mundial pós-Segunda Guerra
Mundial, o desenvolvimento tecnocientífico, a corrida armamen-
tista nuclear, a explosão populacional e o rápido crescimento econô-
mico” (STEFFEN, GRINEVALD, CRUTZEN and MCNEILL, 2011;
MCNEILL and ENGELKE, 2013).3 Essas transformações resultaram

3 “However, in the beginning of the twentieth century, nobody, (...), imagined the Great
Acceleration of the second phase of the Anthropocene—the post-World War II worldwide
industrialization, techno-scientific development, nuclear arms race, population explosion
and rapid economic growth”

204 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


na aceleração da nova época geológica. A mudança climática é o
fenômeno marcante.
Paul Crutzen (Químico e Prêmio Nobel) e Eugene F.
Stoermer (Biólogo) formalizaram o uso do conceito num infor-
mativo publicado em 2000, que tem não mais do que quatro pági-
nas (Crutzen; Stoermer, 2000). Em 2009, foi estabelecido o Grupo
de Trabalho do Antropoceno, da Sub Comissão de Estratigrafia
do Quartenário, dos quais, 3 são cientistas sociais (2 arqueólogos
e um historiador, John Mc Neil, historiador ambiental), para apre-
sentar os estudos objetivando a ratificação dessa nova época pela
Comissão Internacional de Estratigrafia e Comitê Executivo da
União Internacional de Ciências Geológicas.
Oficialmente, conforme a Comissão Internacional de
Estratigrafia e Comitê Executivo da União Internacional de
Ciências Geológicas, a terra encontra-se na Era Cenozóica, Período
Quartenário e Época Holoceno. Mas, segundo Grupo de Trabalho
do Antropoceno, por volta do início da revolução industrial, entra-
mos nos Antropoceno e na década de 1950, houve uma aceleração do
processo (STEFFEN, GRINEVALD, CRUTZEN AND MCNEILL,
2011). Esse grupo de cientistas defende que os impactos da ação da
espécie humana sobre o planeta, tem sido de tal magnitude, que
estão interferindo no Sistema Terra, gerando processos ambientais
que podem se tornar irreversíveis. Ou seja, se ultrapassarmos os
limites de resiliência do planeta, a estabilidade ambiental é perdida.
Registram que: “o aumento de nitrogênio reativo no meio ambiente,
decorrente da fixação humana de nitrogênio atmosférico para ferti-
lizantes, foi dramático; e o mundo provavelmente está entrando em
seu sexto grande evento de extinção e o primeiro causado por uma
espécie biológica” (STEFFEN, p. 848, 2011).4
Corroborando a ideia de que as atividades humanas tem
levado a significativas mudanças nos processos ambientais desde

4 the increase in reactive nitrogen in the environment, arising from human fixation of at-
mospheric nitrogen for fertilizer, has been dramatic; and the world is likely entering its
sixth great extinction event and the first caused by a biological species

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 205


a industrialização, os cientistas do Painel Intergovernamental
sobre mudanças climáticas - IPCC, uma organização criada pela
Organização Meteorológica Mundial junto com o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente, avaliam que as ações huma-
nas após o século XVIII tenham provocado um aquecimento da
terra em cerca de 1,00 C. Em 2022 o IPCC publicou o sexto relatório
de avaliação do painel intergovernamental sobre mudanças climá-
ticas com os resultados dos estudos desenvolvidos a partir de 2018.
Indica que o crescimento das emissões globais de Gases do Efeito
Estufa - GEE - tenha desacelerado na última década. Entretanto,
projeta-se que dificilmente se conseguirá limitar o aquecimento do
planeta a 1,50 C até 2030. O aquecimento a essa taxa diminuirá subs-
tancialmente as possibilidades de adequação aos riscos climáticos
serão cada vez mais escassos (IPCC, 2018; RODRIGUES, 2022).
Desde a criação do Grupo de Trabalho do Antropoceno houve
uma explosão de artigos, reportagens e revistas especializadas no
Antropoceno foram criadas. O termo entrou no nosso vocabulário
e na nossa conversa do dia a dia. A discussão do conceito vem se
desenvolvendo de forma tão aceleradamente, que se fica insegura
com informações, artigos e lives ou, podcasts, que tem mais de um
ano. Foram criados sites (Welcome to the Anthropocene; Seeds of
Good Anthrocenes). O termo entrou no nosso vocabulário e nos
nossos artigos científicos. É um assunto típico da modernidade,
virou moda e marca.
Para se ter uma noção do abalo, a formalização do Antropoceno
demandará, possivelmente, a tomada de medidas pelos órgãos mul-
tilaterais, como a ONU, e pelos Estados Nacionais, visando a mitiga-
ção do processo. Mas muito mais do que isso, Eduardo Violla chama
a atenção para o fato de que será necessário aprofundar a gover-
nança global e repensar a atuação dos Estados Nacionais (VIOLLA;
BASSO, 2016).
A consagração dessa nova periodização geológica tem sido
polemizada por cientista naturais, mas também por cientistas
humanos e sociais. Vou adiantar que não se coloca em questão
que estamos caminhando para uma catástrofe ambiental, mas, sim

206 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


ideias controvertidas que o discurso do Grupo também está tra-
zendo embutido. Em termos gerais, os cientistas humanos e sociais
têm apontado as implicações políticas do conceito, a confusão entre
Antropoceno e Antropização (Grégory Quenet, p. 169),5 a gene-
ralização do espaço e os mitos subjacentes a essa narrativa cientí-
fica. Entre esses mitos, é insinuada a ideia de que o Holoceno era o
Paraíso, porque um período de estabilidade ambiental. Mas estamos
sendo expulsos dele, porque nós o corrompemos. Porém, podere-
mos ser salvos pela ciência. No destes últimos, as críticas envolvem
a forma de periodização, universalização da responsabilidade pelos
impactos ambientais, a generalização do tempo e espaço e as con-
tradições dos mitos implícitos nessa narrativa científica (Homem
domina a natureza, humanidade pode ser eterna, a ciência possi-
bilitou a grande degradação e só ela pode solucionar a reversão do
problema e etc. ressignificações do mito edênico, um fundo judaico-
-cristão/bíblico nesses mitos).
Dentre as várias críticas, as que mais nos interessam aqui,
referem-se à narrativa historiográfica implícita e explícita no que
o Grupo de Trabalho do Antropoceno vem escrevendo e falando; e
o uso do conceito de humano como uma espécie biológica e através
dele a universalização dos responsáveis pelos impactos ambientais
severos que vem acontecendo.
Segundo essa narrativa, surge o homo sapiens que descobre
o fogo, que domestica as plantas e os animais, constrói as cidades,
desenvolve a ciência, a tecnologia e interfere no Sistema Terra. Uma
História Universal evolutiva no sentido ascendente, da selvageria

5 Antropização “resulta de este movimiento de coevolución de los seres humanos y no hu-


manos, ininterrumpido desde hace 200 000 años, que moldeó el planeta, alteró los ecosis-
temas y sus condiciones de funcionamiento, a veces de manera irreversible y con efectos
regionales no intencionales”
“El Antropoceno hace referencia a un efecto sistémico más global, al cual ciertamente con-
tribuyen en parte las alteraciones de los ecosistemas locales, pero cuyo resultado general
es una transformación acumulativa y en vías de aceleración del funcionamiento climático
del planeta. No sería absurdo ponerle una fecha de comienzo a la par de la Revolución
industrial, hacia 1800” (DESCOLA, p. 21)
Antropização não leva necessariamente ao Antropoceno.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 207


à civilização. Um quadro coerente da sucessão dos grandes perío-
dos da história do mundo e que tem por desfecho a sociedade a que
pertence o autor do discurso, sendo esse o ponto culminante dessa
história (Jean Chesneaux). É uma genealogia, segundo Enrique
Leff (2020). Grégory Quenet ressalta que para Paul Crutzen, o
Antropoceno é “a Era do Homem” que se refere tanto ao impacto
da humanidade sobre a o sistema Terra, quanto à capacidade desse
“homem” de responder ao desafio (p. 173, 2017). Ele retira essa
denominação “Era do Homem” – “Age of Man” de um artigo de
Crutzen (2002).
Uma narrativa historiográfica que ignora totalmente a diver-
sidade existente de modos de conhecer/perceber, se relacionar e
habitar a Terra/natureza, tanto ao longo do tempo quanto dentro
de um período singular. Elege-se um único um modo afirmando-o
como universal. Um relato que desconsidera também o fato de ser
um mundo economicamente, politicamente e socialmente desi-
gual. Como escreve Isabelle Stengers é uma operação de erradica-
ção cultural e social que se faz em nome da razão e da civilização
(STENGERS, p. 9).
A conclusão a que essa narrativa nos leva é que todos os que se
encontram dentro da categoria de humanos, são responsáveis pela
destruição do planeta Terra: civilizados e os outros; o grande capital
e os operários e mendigos; o governo francês, que fez testes nuclea-
res em atóis na Polinésia e a população do Taiti que foi exposta à
radiação; a Samarco/Vale do Rio Doce e os que foram atingidos pelo
rompimento da barragem do Fundão ao longo do Rio Doce. Enfim,
estudos sobre o Antropoceno desconsideram totalmente o fato de
que o antropos, que denomina esse novo período, é um ser social, no
seu sentido amplo, cultural, econômico, político etc.
Eileen Crist elaborou uma instigante análise sobre o discurso
sobre o Antropoceno. Segundo ela há um conjunto coeso de ideias
que explicam e justificam o Antropoceno e que se repetem tanto
em comunicações e publicações científicas, bem como em matérias
jornalísticas, exposições museológicas, produções impressas e digi-
tais não acadêmicas. Entre os aspectos que aponta sobre o discurso,

208 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


afirma que a denominação proposta para a época geológica,
Antropoceno, carrega implicitamente a ideia da superioridade do
antropos frente às demais espécies. Aponta que o homem (espécie)
foi o responsável pelos desequilíbrios ambientais, contudo é também
aquele que tem a capacidade científica e tecnológica de controlar ou
impedir o crescimento futuro dessas instabilidades. Um verdadeiro
Deus, superior a todos os demais seres da Terra. Chama a atenção
para o fato de que o discurso se utiliza uma linguagem, que busca
transparecer neutralidade. Opta-se por termos como “alterando”
no lugar de “destruindo” para aludir aos impactos humanos sobre
o planeta. Eilen Crist salienta: “Não estamos destruindo a biosfera
– nós a estamos mudando: o primeira é tão emocional e “tenden-
ciosa”; o último muito mais desapaixonado e civilizado” (2013, 133).
Outra ideia que se repete no discurso sobre o Antropoceno é que
a proteção da Terra com a tecnologia visa para dar continuidade ao
desenvolvimento humano, o que implica também na dimensão social
e ambiental. Mas como ela acentua o humano é o foco central e a
manutenção do sistema econômico sem abalos através de um desen-
volvimento sustentável. As demais espécies, as águas, o solo, o sub-
solo, a atmosfera devem ser conservadas para o usofruto dos huma-
nos (CRIST, 2013; SEITZINGER et al, 2012; STEFFEN et al, 2011).
Em virtude da generalização que se faz dos responsáveis pela
atual condição ambiental do planeta, através de sua denomina-
ção remetendo ao antropos, à espécie, ou seja, a todos os huma-
nos, assiste-se a um silenciamento. Predomina no discurso sobre o
Antropoceno a indiferença quanto aos povos que foram e ainda são
dominados, colonizados, escravizados e mortos e que tiveram suas
terras ocupadas. A história do Antropoceno é contada do ponto de
vista do vencedor. Um mito, o da Terra Prometida ressignificado.
Agora os humanos é que são os responsáveis pelo futuro do planeta,
pela criação, exploração, produção e mitigação de riscos.
Quando observamos as designações proposta por muitos crí-
ticos à denominação Antropoceno, algumas que remetem época
geológica, mas outras ao discurso sobre o Antropoceno, revelando
o que ele traz de implícito em oposição ao que está explicitado

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 209


Outros acentuam a necessidade que os cientistas têm de patentea-
rem uma palavra ou conceito (HARAWAY, 2015). A lista de desig-
nações alternativas denota que mesmo sem, possivelmente, terem
lido o texto de CRIST (2013), a atribuição de uma outra denomi-
nação indica depreciações semelhantes. Alguns críticos qualificam
o Antropoceno de Antropo-cena (Anthroposcene) e Antropo-
obsceno (Anthropo-obscene). Outros fizeram sugestões para novas
denominações, as principais foram: Capitoloceno, Plantioceno,
Antrobsceno, Econoceno, Tecnoceno, MisAntropoceno e
MAntropoceno (MOORE, 2022), Ecozoico (BERRY, 1991; BERRY,
2008), Homogenocene, Patriarchalocene, Gynocene, Capitoloceno,
Plantioceno, Chthuluceno (MERCHANT, 2020). No caso de
Capitoloceno, Plantioceno, fica bem clara a intenção de fixar outra
periodização e, especialmente, singularizar o sujeito desse processo
de transformação e degradação ambiental do planeta, o capitalismo,
e as grandes explorações agrárias, coloniais e nacionais (MOORE,
2022). Chthuluceno é uma concepção totalmente diferente, especu-
lada por Donna Haraway. Significa, entre outros aspectos, a trans-
formação radical do entendimento que temos da Terra, dos seres
vivos e de nós mesmos na Terra e no Universo. Num artigo em que
ela explica esse termo (2015), afirma que a renovação não se dá a
partir de mitos de imortalidade ou do fracasso com a morte e a
extinção, que povoam a nossa ciência/cultura ocidental. Ela, Bruno
Latour (2014); Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro
(2017); Isabelle STENGERS (2015) como vários outros intelectuais
que criticam a narrativa sobre Antropoceno, defendem que devemos
aprender com aqueles que tem sobrevivido aos desastres resultantes
da colonização europeia, da introdução da civilização, da domesti-
cação dos animais, das cidades, das indústrias, da mercadoria, da
ilustração, como os Guarani, os esquimós, os Koisan do sudeste da
África por exemplo. Afirmam a necessidade do diálogo entre os
saberes, ou como diz Henrique Leff, diálogo de saberes (2021).
Não se contesta que estamos a caminho de uma destruição
muito grande, não se questiona os dados quantitativos. Mas o que se
tem alertado é que a visão simplificada dessa população que habita a

210 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Terra de suas sociedades, também informará as proposta e decisões
a serem tomadas quanto à mitigação do processo. Sejam elas quais
forem, terão implicações políticas, sociais, culturais e econômicas,
e não apenas ambientais. Muitos tem considerado que esse debate
sobre a nova época geológica está causando uma controvérsia rele-
vante sobre a humanidade, sobre espaço e tempo, cultura e natureza.
Conforme Bruno Latour escreveu em artigo de 2014 “Apesar de suas
ciladas, o conceito de Antropoceno oferece uma via poderosa, se
usado de maneira sensata, de evitar o perigo de naturalização ao
mesmo tempo em que assegura que o antigo domínio do social – o
domínio do “humano” – seja reconfigurado como sendo a terra dos
Terráqueos ou Terranos” (p.11).
Bruno Latour coloca o humano entre aspas, porque num
mundo tão desigual, onde nem todo mundo é igual ao outro, uns
poucos são patrões e muitos outros empregados, uns são civilizados e
outros índios etc., o correto seria se falar em os humanos e os menos
humanos. Daí utilizar a noção de terráqueos ou terranos referindo-
-se às pessoas, animais, plantas enfim todos os habitantes da Terra.
Enfim, o que se critica é o que o nome Antropoceno suscita
e induz. O Antropos é o sujeito da entrada do planeta nessa nova
era geológica, com a máquina a vapor, a industrialização, o cresci-
mento demográfico, urbanização. Suas criações foram tão incríveis
que colocaram a estabilidade característica do Holoceno em cheque.
Induz a ideia da superioridade do Antropos em relação a todos os
demais seres terrestres, uma vez que ele foi o único que conseguiu
mexer/interferir com as forças da natureza.
Um nome que generaliza a culpa pelas mudanças climáticas,
e esconde/obscurece a realidade que nem todos se relacionavam e
se relacionam da mesma forma com a terra, as plantas, animais, a
água, o ar, bem como as relações entre esses humanos não é simé-
trica/coincidente/uniforme/paritária, o poder não é simétrico/
equilibrado.
O Antropoceno implica no entrelaçamento entre periodização
geológica e histórica, bem como, numa narrativa histórica, portanto,
há uma teoria da História subentendida. O que se tem alertado é que

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 211


a visão evolutiva em sentido ascendente da História – da selvageria
chegamos à civilização -; e o uso do conceito de humano generali-
zando os responsáveis pela destruição, fato que reduz a diversidade
e complexidade social e cultural da população humana da terra,
também informará, junto com dados técnicos, as propostas e deci-
sões a serem tomadas quanto à mitigação do processo. Sejam essas
decisões quais forem, terão implicações políticas, sociais, culturais e
econômicas, e não apenas ambientais. Dado que a realidade humana
é profundamente diversa em termos sociais, econômicos e culturais,
os impactos serão desiguais.
A proposta do Antropoceno implica na interligação entre
periodização geológica e histórica. O problemático dessa proposição,
refere-se à consideração sobre a produção historiográfica recente
e, especialmente alguns conceitos consolidados que nos ajudam a
pensar/refletir sobre as relações entre as sociedades/povos e entre
eles e o planeta/Terra no século XX e XXI. Por exemplo imperia-
lismo, descolonização, centro e periferia, países desenvolvidos, em
desenvolvimento, subdesenvolvidos; desenvolvimento e crescimento
econômico, mercadoria, propriedade privada, concentração de capi-
tal, identidade etc. Conceitos que visam nos instrumentar para ver,
significar, analisar e descrever a realidade social, estudo para o qual
fomos treinados e, portanto, cuja literatura teórica e metodológica
nós devemos dominar, e ela não pequena. Precisamos ter claro de
onde, de que lugar nós falamos, para não cairmos na vulgarização
do conhecimento.
Precisamos tomar cuidado para não reproduzir a concep-
ção de algumas outras ciências sobre História ser um método, um
método retrospectivo, o estudo da evolução temporal de um objeto.
Essa definição desconsidera por exemplo toda a rica discussão que
a historiografia tem proporcionado sobre o documento, a fonte, o
dado primário, e como trabalha-lo/analisa-lo. Vale apontar que não
me refiro somente às fontes escritas. Para isso temos um conceito/
método como contextualização, nos apropriamos de outras ciências
humanas de conceitos como representação.

212 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Um dos poucos pesquisadores da área de humanas do Grupo
de Trabalho do Antropoceno é um historiador ambiental, John
McNeill. Juntamente com Peter Engelk ele publicou em 2013 um
livro intitulado “A grande aceleração”. Ali define o Antropoceno
como o atual período da História e evidencia e referenda a narra-
tiva historiográfica adotada pelos demais membros do Grupo de
Trabalho. Narrativa essa que já aparece sumariamente no artigo
inaugural da proposição do termo Antropoceno escrito por Paul
Crutzen e Eugene Stoermer.
John McNeill defende o uso do termo Antropoceno como o
atual período da História humana, alegando que a periodização
historiográfica é anárquica. Sem se aprofundar na questão e justifi-
cando dessa forma sumária a designação adotada se abstém de dia-
logar com uma a historiografia e filosofia clássica e contemporânea,
particularmente francesa, mas não só, que se aprofundou no estudo
sobre tempo e periodização em História. Lembremos de Braudel
(1969), Ariès (2013), Chartier, 2015), Elias (1998), Hartog (2013;
2014), Koselleck (2006; 2014), Ricoeur entre tantos outros.
Ali descreve fatos sobre as ações dos Estados sobre o planeta a
partir do pós segunda Guerra Mundial e que buscam corroborar a
tese referente ao grande impacto dos humanos sobre a Terra. O relato
concentra-se em alguns casos de acontecimentos bem conhecidas de
países desenvolvidos e seus impactos sobre o meio ambiente do pla-
neta. Uma abordagem desequilibrada quanto ao impacto dos fatos
e a ação dos Estados responsáveis. A saber sobre Chernobil são dis-
pensadas 5 páginas discutindo a atuação ineficiente da URSS. Sobre
as duas bombas atômicas as insere no momento em que está descre-
vendo formas de energia e em que afirma o fato de que um punhado
de uraniun pode gerar mais do que um caminhão de carvão.
Informa que milhares de bombas foram construídas e duas das quais
forma utilizada pelos EUA em agosto de 1945 no Japão encerrando a
segunda Guerra Mundial (MCNEILL e ENGELK, 2013).
A mudança na composição da atmosfera, especialmente o
aumento bem documentado do dióxido de carbono, pareceu a
Crutzen tão dramática e potencialmente tão importante para a vida

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 213


na Terra que ele concluiu que uma nova etapa havia começado na
história da Terra, uma em que a humanidade havia emergiu como
a influência mais poderosa na ecologia global. O cerne do conceito
de Antropoceno é apenas que uma nova época geológica em que
as ações humanas ofuscam a persistência silenciosa de micróbios e
intermináveis oscilações e excentricidades na órbita da Terra, afe-
tando os sistemas governantes Terra e lá a idade
McNeil traz a biologia, a geologia, climatologia para a História,
seus conceitos e metodologia de pesquisa. Mas leva apenas a História
Ambiental, ou melhor, uma parte dela, no seu diálogo com a biolo-
gia, geologia, climatologia. Outros campos de especialização da pró-
pria História, que também auxiliam a refletir sobre a nossa relação
com a Terra, são desprezados. Eu mencionaria a História dos Índios
do Norte da América, que tem uma produção riquíssima.
Embora os Historiadores Ambientais possam ter como foco
central, a mata, os rios, o clima, a fauna, a humanidade, o humano,
sempre está presente de alguma forma, ou pelo menos, deveria estar.
Nossa habilidade é estudá-lo como um ser social, cultural, econô-
mico e político ao longo do tempo, mas não como uma espécie bio-
lógica. A retirada desse sujeito de nossa análise e a sua substituição
por uma espécie, representa a retirada da História, enquanto uma
área do conhecimento das Ciências Humanas. Poderíamos carac-
terizar esse estudo como uma pesquisa retrospectiva dos fenôme-
nos naturais. Reduzir a História, de área do conhecimento, a um
método retrospectivo, revela desconhecimento ou vulgarização da
produção historiográfica recente. É importante que dialoguemos
com as Ciências Ambientais, porém, sem esquecer a nossa identi-
dade disciplinar, a nossas habilidades específicas.
Jean Chesneaux polemizando sobre a introdução da histó-
ria natural na social afirma: “ a desordem ecológica ainda não faz
parte da experiência concreta das massas, esmagadas pela fome e
pela carência” e conclui que “povos que exploram outros povos não
podem se tornar livres, senhores de suas relações com a natureza”
(p. 137, 1995). As massas, num primeiro momento, sofrem a fome,
mas também são as mais atingidas pelos eventos extremos do clima

214 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


em razão das condições e locais em que são obrigadas a habitar.
A questão não é o antropos, o humano, mas a ordem econômica.
John McNeill, como apontamos, dá ênfase aos desastres ambientais
ocorridos na URSS e China, Estados socialistas quando os eventos
ocorreram. Reitera ao longo de seu livro que um mundo sustentável
só será possível em governos democráticos, sugestionando a demo-
cracia norte-americana.
Agnes Heller aponta que no pós 1968 a bandeira vermelha dos
movimentos sociais da década de sessenta, que tinham como valor
dominante a liberdade, foi substituida pela bandeira verde, tendo
como valor fundamental a vida sem estar comprometida neces-
sariamente com a liberdade. Conclui, afirmando a necessidade de
juntarmos a vida à liberdade. Porém o que parece é que o discurso
sobre o Antropoceno luta pela vida, mas não pela vida como ela
está, desigual em termos econômicos e quanto à liberdade cultural
de muitos (1984). O movimento ambientalista, semelhante a vários
desses movimentos sociais era e é muito diversificado ideologica-
mente com posições políticas, não raro, antagônicas (são anarquis-
tas, socialistas, liberais). Lutamos todos juntos pela preservação da
Amazônia ou do Pantanal, mas nos afastamos em nossa proposta de
como fazer isso, em nossa visão de devir.

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218 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 10

OS NOVOS GOVERNOS
PROGRESSIS TA S E
AÇÕES AFIRMATIVA S NA
AMÉRIC A L ATINA

Regiane Nitsch Bressan1

Introdução

O objetivo desse capítulo é compreender a nova agenda dos


governos progressistas na América Latina. Nos últimos anos, a
região voltou a presenciar o retorno de governos considerados à
esquerda do espectro político-ideológico. Contudo, eles apresentam
inovação ao incluir políticas de ações afirmativas como prioridade
nas políticas de seus governos. Ademais, soma-se a essa agenda, a
preocupação com as causas ambientais, fruto da expansão desse
debate no sistema internacional, bem como pelas pressões dos pró-
prios agentes domésticos.
As ações afirmativas visam aumentar a diversidade e a repre-
sentação de grupos marginalizados, particularmente nas oportuni-
dades de educação e emprego. As ações visam neutralizar os efeitos
das distinções e preconceitos históricos, oferecendo oportunidades

1 Professora do Curso de Relações Internacionais, UNIFESP. Professora do Programa


Interinstitucional (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) de Pós-graduação em Relações
Internacionais San Tiago Dantas. Doutora e Mestre em Integração da América Latina,
USP. Email: regiane.bressan@unifesp.br

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 219


iguais para pessoas de diversas origens e grupos sociais, que ainda
sofrem discriminação em toda região latino-americana.
A importância das políticas de ação afirmativa ainda é muito
debatida, ainda que não seja o foco deste estudo. Aliás, as opiniões
sobre o assunto variam amplamente, não havendo consenso sobre
todas elas. Mas os movimentos sociais e seus defensores argumen-
tam o quão essencial é a ação afirmativa para eliminar gradati-
vamente as desigualdades históricas, bem como tentar nivelar as
oportunidades aos indivíduos que foram marginalizados devido
à sua raça, gênero ou demais características. As ações afirmativas
podem oferecer oportunidades para indivíduos que, de outra forma,
poderiam ser negligenciados ou excluídos de certas oportunidades,
propiciando o desenvolvimento de uma sociedade mais diversa e
inclusiva. Portanto, ao se intentar o combate à desigualdade histó-
rica das sociedades latino-americanas, a via das ações afirmativas é
uma grande aliada nesse esforço.
A pesquisa deste trabalho se estruturou em duas partes. A
primeira sessão explanou sobre a atual onda progressista na região,
a qual diferencia-se da onda rosa vivenciada no início do século
XXI. Alguns elementos foram analisados revelando a ampliação
das agendas políticas dos novos governos para duas esferas: ações
afirmativas e meio ambiente. Como exemplo, de maneira sintética,
a agenda de governos progressistas latino-americanos foi retratada
para sustentar a hipótese deste trabalho. Na sequência, o capítulo
escolheu os três seguintes países que se destacam na implementa-
ção das políticas de ação afirmativas nos últimos anos na América
Latina: Argentina, Chile e Colômbia.
A pesquisa reconhece que o governo brasileiro de Luís Inácio
Lula da Silva parece estar bastante engajado nas políticas de ação
afirmativa. Aliás, a posse presidencial foi marcada, de forma iné-
dita, por representantes de diversas minorias e grupos marginali-
zados em 01º de janeiro de 2023. No entanto, o recorte da pesquisa
findou-se em 2022 para a análise de documentos e bibliografias.
As discussões finais não estancam a possibilidade de novos
trabalhos que abordem com mais profundidade os temas discutidos,

220 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


os quais devem desenhar o tabuleiro da trajetória latino-americana
nos próximos anos.

A atual onda progressista na América Latina

Em 2022, a América Latina foi palco de duas importantes vitó-


rias de lideranças progressistas. O Brasil voltou a eleger Luís Inácio
Lula da Silva, após o governo iliberal e pouco afinado com as insti-
tuições democráticas e organizações internacionais de Jair Messias
Bolsonaro (2009-2022). A Colômbia elegeu o primeiro presidente
de esquerda da sua história, iniciando uma alternância sem prece-
dentes no país. Somando-se ao Brasil e à Colômbia, outros países
da região também escolheram governos alinhados à esquerda mais
recentemente, como México, Argentina, Bolívia Peru, Honduras e
Chile (imagem 01).
Apesar do cenário profícuo à emergência de governos de
esquerda semelhante ao início do século XXI, diferenças são reco-
nhecidas entre os governos atuais e os governos da onda rosa. Em
linhas gerais, estes últimos se apresentavam de maneira mais “radi-
cal” e menos propensos a arranjos políticos com partidos do espec-
tro político do centro (LISSARDY, 2022). Além disso, os governos
da onda rosa detinham um discurso permanente de combate ao
neoliberalismo, o qual foi empregado nos anos 1990 na maioria
dos países da América Latina após o Consenso de Washington. No
início do século, os discursos dos diversos governos da onda rosa
tinham, portanto, maior foco nas críticas ao neoliberalismo, certo
distanciamento político com os Estados Unidos, e também ênfase
permanente na agenda da superação da pobreza (BRESSAN, 2012).
Os governos progressistas da América Latina da década
de 2020, caracterizam-se pela sua heterogeneidade (LISSARDY,
2022) Aliás, neste momento, não há unicidade entre os governos
de esquerda, pois cada um é único, com suas próprias caracterís-
ticas, desafios e contradições, segundo Marta Lagos, cientista polí-
tica e diretora do Latino-barômetro (LAGOS, 2022). Para Lagos, os

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 221


governos progressistas latino-americanos devem ser avaliados com
base em seu contexto e objetivos específicos oriundos dos cenários
domésticos. Aliás, os fatores históricos, sociais, econômicos e cul-
turais moldam os governos progressistas dos diferentes países da
região e balizam suas principais frentes de ação e defesa. Não obs-
tante, ainda há diferenças significativas entre os governos de pro-
gressistas da América Latina, os governos da Europa e de outras
partes do mundo (BBC, 2022).
Ao enfatizar a necessidade de uma análise diferenciada e con-
textualizada para os governos progressistas da década de 2020,
Lagos (2022) definiu quatro categorias para os atuais governos lati-
no-americanos: 01. Nova Esquerda: Colômbia e Chile; 02. Esquerda
populista: México; 03. Esquerda tradicional: Argentina, Bolívia,
Honduras e Peru; 04. Esquerda Ditatorial: Venezuela, Nicarágua e
Cuba (BBC, 2022).
Denotando as diferenças entre eles, Gustavo Petro, atual presi-
dente da Colômbia, é bastante crítico ao governo de Nicolás Maduro
da Venezuela pela condução antidemocrática do país. Aliás, os atuais
governos progressistas, sobretudo da Nova Esquerda são modera-
dos e não querem ser comparados com os governos de esquerda
do século XX (BBC, 2022), e tampouco confundidos com governos
autoritários que ainda existem na região – categoria da Esquerda
Ditatorial (RIVERS, 2022).
Segundo Heinz Dieterich (BBC, 2022), o socialismo do século
XX e XXI já não são aplicáveis aos governos do Chile, Argentina,
Bolívia e Colômbia. A superação da economia de mercado com
ênfase no Estado forte já não é um discurso tão presente nos gover-
nos da Colômbia e Chile, por exemplo. Aliás, o cenário latino-a-
mericano do início do século foi muito favorecido pelo aumento do
valor das commodities no mercado internacional, alavancando as
economias destes países (BRESSAN, 2012). A situação contempo-
rânea está prejudicada pelo momento pós-pandêmico de retração
econômica que tem permeado a economia dos países da América
Latina neste início de década. A confluência deste contexto com a
ebulição de demandas sociais, sobretudo pelas pautas de minorias,

222 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


resultaram em novas agendas que passaram também a balizar os
projetos políticos e atuação dos governos progressistas latino-ame-
ricanos (BBC, 2022).

Imagem 1 – Governos progressistas na América Latina em 2022

Fonte: Poder 360, 2022.

A primeira agenda consiste em políticas de ações afirmativas


e inclusivas reivindicadas pelos movimentos sociais que evocam
equidade social de diversas ordens. Estes movimentos surgiram
em resposta às injustiças e desigualdades sofridas por grupos das

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 223


sociedades latino-americanas. Algumas das ações afirmativas
incluem o movimento dos direitos civis, o movimento feminista em
luta pela equidade de gênero, o movimento étnico-racial em busca
da justiça racial e o movimento dos direitos LGBTQIAP+ (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros/Travestis, Queer,
Intersexual, Assexual, Pansexual e afins).
O objetivo das políticas afirmativas é tentar nivelar o campo
de atuação e criar oportunidades para grupos historicamente desfa-
vorecidos e minorias em direitos, ao mesmo tempo em que promo-
vem a diversidade e a inclusão. Ainda que com muitas diferenças,
vislumbram-se a consolidação desta agenda pelos novos governos
progressistas da região (CEPAL, 2022).
Alberto Fernández eleito presidente da Argentina em 2019,
vem implementando algumas políticas consideradas progressistas
desde o início do seu governo, incluindo a legalização do aborto
(ABRASCO, 2020), bastante reivindicada pelo movimento femi-
nista argentino (BURTON, 2021).
A Bolívia apresenta um histórico de implementação de ações
afirmativas, sobretudo ligado aos grupos indígenas sob o governo
de Evo Morales, presidente da Bolívia entre 2006 e 2019. Morales,
o primeiro presidente indígena do país, implementou políticas des-
tinadas a promover os direitos dos povos indígenas, mulheres, e
outros grupos marginalizados a partir da Constituição do Estado
Plurinacional da Bolívia de 2009 (GOBIERNO DE BOLÍVIA, 2009).
Gustavo Arce, atual presidente boliviano, está empenhado em dar
continuidade aos direitos dos povos indígenas, na tentativa de pro-
mover também ações pela igualdade de gênero, bem como para
maior inclusão do grupo LGBTQIAP+.
O México, outro exemplo, tem adotado políticas importan-
tes dentro do Programa Nacional de Igualdade e Justiça Social
(GOBIERNO DE MÉXICO, 2023). Este Programa visa redu-
zir as desigualdades sociais e trabalhar pela equidade social em
defesa de indígenas, mulheres e pessoas em situação de pobreza.
Condizente ao Programa, a lei para o Desenvolvimento dos Povos
Indígenas reconhece os direitos dos povos indígenas e promove seu

224 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


desenvolvimento social, econômico e cultural. Por sua vez, a lei para
igualdade de gênero visa eliminar a discriminação contra as mulhe-
res em todas as áreas da vida, incluindo educação, emprego e par-
ticipação política. Por fim, os Programas “Prevenção e Erradicação
da Discriminação” e “Desenvolvimento dos Povos Afro-Mexicanos”
visam prevenir e erradicar a discriminação contra diferentes grupos
marginalizados, incluindo mulheres, indígenas, pessoas com defi-
ciência e a comunidade LGBTQIAP+, além de promover os direitos
e o desenvolvimento das comunidades afro-mexicanas, que histo-
ricamente enfrentam discriminação e marginalização à sociedade
(GOBIERNO DE MÉXICO, 2023).
Ainda que remonte a governos anteriores, uma política de ação
afirmativa que tende a crescer na América Latina é o sistema de
cotas para admissão em universidades. No Brasil, reserva-se uma
certa porcentagem de vagas para negros, indígenas e estudantes de
baixa renda. Essa política ajudou a aumentar a representação desses
grupos no ensino superior e foi creditada com a redução da desi-
gualdade no Brasil.
As leis de cotas de gênero estão sendo implementadas em vários
países da região, incluindo Argentina, Bolívia e Colômbia. Essas leis
exigem que os partidos políticos indiquem uma certa porcentagem
de mulheres para cargos eletivos, colaborando para aumentar a
representação feminina no governo e na política. Além disso, alguns
governos progressistas implementaram políticas de ação afirmativa
no emprego, como cotas para contratar pessoas com deficiência ou
promover mulheres a cargos de liderança.
A segunda agenda cresce paulatinamente nos debates das rela-
ções internacionais: o meio ambiente. A consciência ambiental no
sistema internacional remonta à década de 1970, com a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente realizada em junho de
1972, em Estocolmo. Atualmente, a pauta ambiental perpassa os
diferentes níveis de análise, doméstico, regional e multilateral. A
América Latina apresenta importante e exclusiva biodiversidade de
fauna e flora. São recursos minerais e energéticos espalhados por
toda a região que engloba a mais rica biodiversidade do mundo. A

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 225


região abriga importantes bacias hidrográficas, florestas tropicais
e temperadas, zonas costeiras, cerrados, pampas, chaco, pântano,
parte da selva amazônica, Patagônia, Estuário do Prata e Aquífero
Guarani, além de regiões semidesérticas (BRESSAN, 2022).
Assim, ao abrigar vastos recursos naturais e ecossistemas
únicos, que estão ameaçados pelas mudanças climáticas, desma-
tamento e outras atividades humanas, os governos progressistas
despertaram para compromissos mais assertivos visando proteger
o meio ambiente e enfrentar desafios oriundos da relação homem-
-meio ambiente.
Na Argentina, o presidente Alberto Fernandez prometeu prio-
rizar a proteção ambiental, incluindo medidas para combater o des-
matamento e promover o desenvolvimento sustentável. No Brasil, a
campanha presidencial do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva
já priorizava o meio ambiente. Antes mesmo de assumir o poder,
Lula proferiu um discurso na COP 27, a Conferência da Organização
das Nações Unidas (ONU) que discute as mudanças climáticas,
comprometendo-se a retomar políticas favoráveis ao meio ambiente
e de enfrentamento às mudanças climáticas. Aliás, Lula se compro-
meteu o retorno do Brasil como uma liderança mundial pelas causas
ambientais (G1, 2022).
No México, o presidente Andrés Manuel Lopez Obrador pro-
meteu apoiar a energia renovável e proteger a biodiversidade do país
(GOBIERNO DE MÉXICO, 2023) No Chile, o presidente Gabriel
Boric enfatizou a importância de abordar a mudança climática e
promover o desenvolvimento sustentável. A Colômbia de Petro tem
trabalhado para proteger sua biodiversidade e diminuir os impactos
ambientais do desmatamento, incluindo a conservação do territó-
rio amazônico. Assim, embora as abordagens e prioridades espe-
cíficas dos novos governos latino-americanos possam variar, eles
estão reconhecendo a necessidade urgente de enfrentar os desafios
ambientais e proteger seus recursos naturais.

226 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Argentina

Alberto Ángel Fernández, presidente da Argentina, assumiu


o cargo em 2019, implementando diferentes políticas progressis-
tas ao longo de seu mandato. Algumas políticas de Fernández se
concentraram na promoção da justiça social, redução da pobreza e
enfrentamento dos desafios econômicos do país, que são anteriores
à própria pandemia. Fernández também tem promovido políticas
de ação afirmativa nas áreas da educação e do mercado de traba-
lho, destinadas a aumentar as oportunidades para grupos historica-
mente desfavorecidos (OBSERVATORIO STR, 2021).
A política mais controversa consistiu na legalização do aborto.
Em dezembro de 2020, Fernández assinou a lei que legalizou o aborto
no país, consistindo em uma antiga reinvindicação do movimento
feminista do país. A lei permite que as mulheres façam um aborto
nas primeiras 14 semanas de gravidez e, em certos casos, além desse
período. A adoção desta política gerou muitos protestos em apoio e
também contrários por parte de grupos religiosos e conservadores.
Entretanto, pode ser uma medida com tendência a ser adotada em
outros países da região (BURTON, 2021).
Outra ação em plena expansão na região é a promoção dos
direitos LGBTQIAP+. O governo introduziu uma lei de identidade
de gênero, permitindo que os indivíduos mudem seu gênero em
documentos oficiais. Fernández também nomeou vários indivíduos
abertamente LGBTQIAP+, para posições-chave em sua administra-
ção, considerado um feito inédito na administração pública federal
da Argentina (O GLOBO, 2020).
Uma medida progressista e também populista concerniu no
imposto sobre a riqueza. Em dezembro de 2020, Fernández assinou
uma lei implementando um imposto único sobre a riqueza dos indi-
víduos mais ricos do país. Espera-se que o imposto gere receita para
ajudar a financiar programas sociais e esforços de alívio do COVID-
19. Somando-se a essa medida, o presidente argentino incrementou
o financiamento de programas de bem-estar social, como pensões
e abonos de família, para ajudar a reduzir a pobreza na Argentina.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 227


Em relação às demais políticas afirmativas, Fernández adotou
uma série de ações destinadas a promover a justiça social e aumen-
tar as oportunidades para grupos historicamente desfavorecidos.
Destacando-se dos demais países da América Latina, a
Argentina empregou esforços importantes para colocar a paridade
de gênero como prioridade no governo Fernández, objetivando
alcançar representação igualitária de mulheres e homens em cargos
governamentais e em outras instâncias, conforme já destacado
(OBSERVATORIO STR, 2021). Fernández nomeou um gabinete
com paridade de gênero e promoveu várias mulheres a cargos-chave
em seu governo (O GLOBO, 2020). De maneira pouco vista antes
na Argentina, o governo também promoveu diversidade e inclusão
em sua administração, com foco em aumentar a representação de
povos indígenas, afro-argentinos e outros grupos minoritários e
marginalizados.
Para fomentar a qualificação destas parcelas da sociedade, o
presidente Fernández implementou reformas educacionais desti-
nadas a aumentar o acesso à educação para grupos minoritários,
como comunidades indígenas e camponeses. Para sustentar essa
política, foram introduzidos programas para apoiar estudantes
de baixa renda e de minorias, como bolsas de estudos e subsídios
(OBSERVATORIO STR, 2021).
Em geral, sãos ações afirmativas que buscam promover a
diversidade, a inclusão e a igualdade de oportunidades para dife-
rentes grupos minoritários, de longo alcance, com chance promover
mudanças sociais importantes no país.

Chile

O atual governo do Chile é comandado pelo político, ativista


de direitos humanos e acadêmico chileno Gabriel Boric Font, mais
conhecido como Gabriel Boric. Ainda jovem, Boric começou seu ati-
vismo político como líder estudantil durante os protestos estudantis
chilenos de 2011, que visavam reformar o sistema educacional do

228 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Chile. Foi membro da Federação Estudantil da Universidad Diego
Portales e mais tarde tornou-se presidente da Federação Estudantil
da Universidad de Chile. Em 2013, Boric foi eleito para a Câmara
dos Deputados do Chile como membro da coalizão de esquerda
chamada “Izquierda Autónoma”. Durante sua gestão na Câmara dos
Deputados, Boric concentrou-se em questões como direitos huma-
nos, educação e proteção ambiental. Ele também foi um crítico da
forma como o governo lidou com protestos e distúrbios na região
de Araucanía, no sul do Chile. Revelando uma trajetória política
de bastante dedicação às causas sociais, o atual presidente chileno
sempre se mostrou favorável pela adoção de políticas afirmativas no
país (BCN, 2022).
Em 2021, Boric concorreu à presidência como candidato da
coalizão de esquerda “Apruebo Dignidade”. Ele venceu a eleição pre-
sidencial em dezembro de 2021, derrotando o candidato conserva-
dor José Antonio Kast. A vitória de Boric representou mudança sig-
nificativa na condução do governo do Chile, já que Boric se tornou o
primeiro presidente de esquerda, desde Salvador Allende na década
de 1970. Ademais, o atual presidente apresenta engajamento nas
demandas reivindicadas nos protestos chilenos de 2019 (BRESSAN,
2019; BCN, 2022).
Conhecido por suas políticas progressistas e voltadas para a
justiça social, Boric priorizou questões como desigualdade de renda,
proteção ambiental e reforma política. No seu primeiro ano de
governo, Boric se empenhou em uma das iniciativas mais relevantes
à política chilena contemporânea. Ele apoiou a reforma em curso da
nova Constituição Chilena, redigida por um colegiado eleito direta-
mente pela sociedade do país, para substituir a Constituição Chilena
que remonta à era do ditador Augusto Pinochet (CNN, 2022). Esse
processo envolveu a eleição de 155 representantes de diferentes
grupos sociais, que elaboraram a nova Constituição. Ainda que o
documento tenha sido rejeitado no referendo de 2022, o presidente
chileno tem se esforçado para adotar avanços apresentados pela
reforma da Constituição Chilena.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 229


Somando-se à reforma constituinte, o governo chileno visa
reformar o sistema político do país para torná-lo mais transparente e
participativo. O governo propôs medidas como a reforma do finan-
ciamento de campanha, transparência na tomada de decisões do
governo e maior participação do cidadão no processo político. Em
consonância com tais reformas, o Congresso aprovou o Projeto de
Lei de Assentos Reservados, destinando assentos aos representan-
tes dos povos indígenas, bem como promovendo ações para ampliar
a participação de pessoas com deficiência em instâncias políticas e
administrativas (OEA, 2020).
O governo de Boric também tomou medidas para abordar
questões sociais e econômicas prementes do país, como a amplia-
ção da cobertura de saúde pública, ampliação do acesso ao ensino
público, além dos esforços contínuos para o combate à desigualdade
de renda. A temática do acesso à educação e à saúde pelas minorias
e grupo menos favorecidos foi muito reivindicada nos protestos de
2019 (BRESSAN, 2019), pauta que também se fez presente em seu
projeto de governo.
Na arena dos direitos humanos, o governo chileno está empe-
nhado em promover os direitos humanos e abordar os abusos de direi-
tos humanos de seu passado autoritário (PRENSA PRESIDENCIA,
2023). O governo propôs medidas como reformar a força policial,
melhorar o acesso à justiça para comunidades marginalizadas e pro-
mover a verdade e a reconciliação. Nesta esfera, Boric tem recebido
apoio internacional, como do presidente espanhol Pedro Sánchez
(EL PAÍS, 2022).
Na agenda ambiental, o tema da sustentabilidade ganhou
luz no governo de Boric, o qual priorizou a proteção ambiental e
o desenvolvimento sustentável. O governo propôs uma transição
para energia renovável, uma redução nas emissões de gases de efeito
estufa e proteção dos recursos naturais do Chile (ELM, 2022).
Este primeiro ano de governo de Gabriel Boric revelou empe-
nho pela reforma constitucional, enfrentamento à desigualdade de
renda, bem como políticas de justiça social, perpassando a arena
ambiental, como mudança climática.

230 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Colômbia

Em 2022, a Colômbia elegeu o senador de esquerda Gustavo


Petro, ex-prefeito de Bogotá e ex-guerrilheiro, o qual enfrentou uma
disputa acirrada com o empresário Rodolfo Hernández, candidato
populista de direita com um discurso antissistema (COSTA, 2022).
Petro é um partido político de centro-esquerda da Colômbia fun-
dado em 2016 pelo ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos.
O partido está focado na inclusão social e no crescimento econô-
mico, defendendo iniciativas para reduzir a pobreza, expandir o
acesso à saúde e à educação, bem como aumentar o acesso ao crédito
e às oportunidades econômicas. O partido também defendeu um
acordo de paz com as FARCs e medidas importantes de combate ao
narcotráfico.
Encabeçado por Gustavo Petro, o programa Pacto Histórico
defende a necessidade de reformas profundas em áreas diversas
como da economia e funcionamento das Forças Armadas. Ademais
o Pacto alcança defender ações afirmativas para inclusão de mino-
rias. Petro representa inovação com propostas diversificadas na
economia, na segurança, na igualdade de gênero, nos direitos das
minorias e no meio ambiente (CNN Espanhol, 2022).
As principais diferenças entre o governo de Petro e o ex-pre-
sidente Iván Duque da Colômbia (2018-2022) incluem suas respec-
tivas abordagens de política econômica, política social e política
externa. Sob o presidente Petro, o governo já tem se concentrado
em políticas sociais progressivas, como assistência médica gratuita,
ensino superior gratuito e um sistema tributário progressivo. Por
outro lado, o governo do antecessor, de Duque, privilegiou políticas
conservadoras, como redução de impostos para as empresas, cortes
nos gastos públicos e uma abordagem mais restritiva da política
externa (COSTA, 2022).
Uma das primeiras medidas do Congresso da Colômbia, foi a
aprovação do Ministério de Igualdade e Equidade. A proposta de
criação do ministério foi fruto de elaborações do movimento popu-
lar. No país, há dezenas de organizações do povo afrocolombiano,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 231


incluindo o Movimento Cimarrón, Conferência Nacional de
Organizações Afrocolombianas e a Mesa Nacional de Mulheres
Negras. Em 2011, declarado o “ano afro” na Colômbia, estas orga-
nizações se uniram para pressionar pela aprovação da lei 1482 que
penaliza o racismo e a discriminação. Uma das recomendações que
partiram deste encontro foi justamente a criação de um braço ins-
titucional que implementasse políticas antirracistas no país, ado-
tada pelo governo de Petro (MELLO, 2022). Ainda dentro deste
Ministério, estão previstos novos avanços para promover e proteger
os direitos da comunidade LGBTQIAP+. Ainda em 2016, o Tribunal
Constitucional da Colômbia emitiu uma decisão que concedeu aos
casais do mesmo sexo o direito ao casamento e à adoção, tornando
a Colômbia o quarto país latino-americano a legalizar o casamento
entre pessoas do mesmo sexo.
Em consonância com este Ministério, Petro tem adotado polí-
ticas afirmativas para promoção da igualdade entre as mulheres.
Ele propõe aumentar a participação política das mulheres para que
ocupem 50% de todos os cargos públicos em todos os níveis e pode-
res, mimetizando o que ocorreu recentemente na Argentina.
Em seus primeiros meses de governo, Petro quis incentivar a
produção agropecuária junto à reforma agrária tão esperada no país
(CNN Espanhol, 2022). A implementação da reforma agrária que
enfrente a desigualdade na posse e uso da terra consiste em uma
dívida histórica reivindicada pelos primeiros movimentos campo-
neses no país que surgiram nos anos 1940-1950 (HYLTON, 2010).
A medida garantiria o direito à terra às famílias rurais, com prio-
ridade para as mulheres, e a formalização das propriedades rurais,
desencorajando os latifúndios e desenvolvendo a produção agrícola
(CNN Espanhol, 2022).
Também existe a prerrogativa no governo de Petro com o cui-
dado do território e mudança na matriz energética. O programa do
presidente detalha as medidas de proteção dos ecossistemas e dos
recursos naturais, com uma menção ampliada à água. Lembrando
que a Colômbia ocupa o segundo lugar em termos de biodiversidade.

232 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Ao governo de Petro, somam-se diversos desafios os quais
incluem abordar as questões econômicas e sociais do país, incluindo
altos níveis de desigualdade e pobreza, enfrentamento ao problema
do narcotráfico, bem como melhorar a segurança e o estado de
direito.

Considerações finais

Conforme desvelou este capítulo, os novos governos progres-


sistas na América Latina estão empenhados em implementar polí-
ticas de ação afirmativa para enfrentar as desigualdades históricas
dos países da região. São diferentes ações que promovem a diver-
sidade e a inclusão em arenas importantes da sociedade, como na
educação e administração pública. Essas políticas variam em seu
escopo e implementação, mas geralmente visam oferecer opor-
tunidades para indivíduos de grupos historicamente marginali-
zados, como mulheres, afro-latinos, povos indígenas e indivíduos
LGBTQIAP+. A prioridade nesta agenda revela inovação e os dis-
tingue das ondas de esquerda de períodos anteriores da história lati-
no-americana, quando as desigualdades econômicas dominavam os
projetos políticos.
Ainda que a implementação de políticas de ação afirmativa
enfrente desafios e oposição de alguns grupos, incluindo aqueles
que argumentam que tais políticas são discriminatórias ou que não
abordam as causas profundas da desigualdade, os novos governos
progressistas devem a continuar a priorizar tais políticas como
forma de promover a justiça social e a igualdade na região.
Pela agenda ambiental, os governos progressistas na América
Latina também demonstram esforços para priorizar a proteção
ambiental, o enfrentamento às mudanças climáticas, bem como
parecem atuar em defesa da sustentabilidade. Paulatinamente, os
governos de Argentina, Colômbia e Chile estão implementando polí-
ticas para enfrentar os desafios ambientais, como desmatamento,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 233


mudança climática e poluição, ao mesmo tempo em que promovem
o desenvolvimento sustentável e a conservação.
São muitos desafios que persistem na América Latina, sendo a
desigualdade uma das características das mais desafiadoras, amea-
çadoras e contundentes à história da região. Ações afirmativas per-
manentes, bem como políticas ambientais concretas serão muito
demandadas para garantir um futuro sustentável, igualitário e mais
justo para o continente latino-americano.

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CAPÍTULO 11

A FOME COMO PROJETO: A


DES TRUIÇ ÃO DA S POLÍTIC A S
DE SEGUR ANÇ A ALIMENTAR
NO BR A SIL E A URGÊNCIA
DE SUA RECONS TRUÇ ÃO

Marina Gusmão de Mendonça2

“Vi ontem um bicho


Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
(Manuel BANDEIRA, 1947)

2 Bacharel em História e Direito pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre e Doutora
em História Econômica pela FFLCH-USP; possui Pós-Doutorado em Ciências Sociais
pela FFC-UNESP (campus de Marília); Professora Adjunta do Departamento de Relações
Internacionais da EPPEN-UNIFESP (campus de Osasco); Professora Colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da FFC-UNESP (campus de Marília);
Pesquisadora Convidada da Cátedra J. Castro/USP (Cátedra Josué de Castro de Sistemas
Alimentares Saudáveis e Sustentáveis) - endereço eletrônico: mgmendonca@unifesp.br).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 237


Introdução

A fome tem acompanhado a evolução histórica brasileira


desde 1500. Atravessou o período colonial e manteve-se durante
o Império, chegando ao ápice na grande seca de 1876-1879, que
devastou o Nordeste do país e produziu entre 500 mil e 1 milhão
de mortos (DAVIS, 2002, p. 17). O fenômeno se repetiu no início da
República, entre 1896 e 1900, quando novamente cerca de 1 milhão
de pessoas pereceram (DAVIS, 2002, p. 17). Desde então, surtos de
fome têm assolado o Brasil (TAVARES, 2017), sem que os governos
que se sucedem tomem medidas para evitar a tragédia. Ações palia-
tivas são frequentemente anunciadas, mas nada de definitivo é real-
mente feito. Afinal, como bem apontou Alexander de Waal, “quem
define um fenômeno como ‘ fome’ é uma questão de relações de poder
dentro e entre as sociedades” (Apud DAVIS, 2002, p. 31).
Assim, um país com a quinta extensão territorial do mundo3, a
sexta maior população do planeta4 (VALOR INVESTE, 28/12/2022),
e riquíssimo em recursos naturais, o que lhe permite ser o principal
exportador de alimentos (OMC, 2021, p. 69) e ter se consolidado
como o maior exportador líquido de produtos agropecuários no
planeta (MOREIRA, 29/11/2020), assiste impassível à recorrên-
cia periódica da fome. Somente durante os governos do Partido
dos Trabalhadores (PT), entre 2003 e 2016, foram tomadas medi-
das mais efetivas para enfrentar o flagelo. O resultado viria em
2014, quando o relatório da Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação (FAO), informou que o Brasil cumprira
as metas de diminuir pela metade a parcela de sua população que
padecia de fome, pois, segundo o documento, entre 2002 e 2013,
o país reduziu em 82% a população em estado de subalimentação

3 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 8.547.403


km² (IBGE, 5/4/2022).
4 No dia 28 de dezembro de 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
divulgou uma prévia do Censo 2022, indicando que a população brasileira é de cerca de
207.750.000 pessoas (VALOR INVESTE, 28/12/2022).

238 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


(FAO, 2014). Mas a reversão dessa conquista se deu rapidamente, a
partir do governo de Michel Temer (2016-2018), com a implantação
de uma pauta ultraneoliberal, que levou à piora de todos os indi-
cadores sociais. E se agravou durante o governo de Jair Bolsonaro
(2019-2022), que conduziu o país a uma tragédia humanitária, com
cerca de 700 mil mortos por Covid-19, 33 milhões de pessoas pas-
sando fome, 125 milhões de indivíduos em estado de insegurança
alimentar e a quase dizimação do povo Yanomami.
Como bem apontado no relatório Efeitos da pandemia na ali-
mentação e na situação de segurança alimentar no Brasil, publicado
pela Food for Justice Working Paper Series em 2021,

Este período é marcado por mudanças na agenda pública,


baseadas na flexibilização e depreciação de direitos sociais
consagrados [..] e no sistemático enfraquecimento de polí-
ticas e programas voltados à diminuição das desigualda-
des sociais [...], sob a justificativa da austeridade fiscal. A
crise política também afetou a agenda da alimentação por
meio do enfraquecimento da estrutura institucional e de
importantes políticas de promoção da produção da agri-
cultura familiar, que se expressa no fim do Ministério
do Desenvolvimento Agrário (2016) e no baixo investi-
mento no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)5
e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)6

5 O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi criado pela Lei 10.696, de 2003. Os
objetivos básicos são promover acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar,
por meio de compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de
licitação. Destina-se a atender às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutri-
cional e àquelas amparadas pela rede de assistêrncia social, pelos equipamentos públicos
de segurança alimentar e nutricional e pelas redes pública e filantrópica de ensino. Além
disso, o PAA tem também o objetivo de contribuir para a constituição de estoques públi-
cos de alimentos (BRASIL, 30/12/2021). O PAA foi extinto pelo governo Bolsonaro, por
meio da Lei 14.284, de 29 de dezembro de 2021, que criou o Programa Alimenta Brasil
(GOVERNO FEDERAL, 18/1/2022).
6 O programa da merenda escolar, como é conhecido o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE), oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricio-
nal aos alunos de todas as etapas da educação básica pública. Por meio dele, o governo
federal repassa a estados, municípios e escolas federais valores para a cobertura de 200

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 239


(PORTAL DO GOVERNO BRASILEIRO, 30/12/2021)
(GALINDO, TEIXEIRA, ARAÚJO, MOTTA, PESSOA,
MENDES, RENNÓ, 2021, p. 3).

Essas mudanças teriam efeitos extremamente danosos no que


diz respeito ao emprego, à renda, ao aumento da pobreza e, conse-
quentemente, às condições de segurança alimentar da população.
Porém, como bem lembrou Thiago Lima,

permitir e expor o povo à morte, às centenas de milhares,


pelo método da Fome, não é algo inventado pelo governo
Bolsonaro. Foi praticado pelo Império. Foi praticado pela
República. Foi praticado pelas Ditaduras. Mas a falta desta
memória viva, candente, impede que haja um estrutura
permanente para combater esse tipo de vilania e de pro-
mover justiça social (LIMA, 21/6/2021).

Portanto, retomar, ampliar e consolidar as políticas que per-


mitiram a redução da pobreza e, consequentemente, a retirada do
Brasil do mapa da fome, é tarefa das mais prementes. Mas, para além
dessa questão, uma outra se impõe: como foi possível reverter tão
rapidamente as políticas desenvolvidas no período de 2003-2016?
Em suma: como chegamos a esse ponto?
Neste texto, procuraremos apontar os elementos que propicia-
ram a vitória contra a fome e as políticas adotadas a partir de 2016,
que levaram à reversão das condições existentes em 2014, condu-
zindo à situação atual, que condena cerca de 33 milhões de brasi-
leiros a não ter condições de comer, e mantém mais de 125 milhões
de pessoas em estado de insegurança alimentar. Além disso, pro-
curaremos apontar também os elementos que indicam ter sido
este um projeto de extermínio de parte da população brasileira,

dias letivos, conforme o número de estudantes matriculados em cada rede de ensino. A


fiscalização compete aos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE), ao Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ao Tribunal de Contas da União (TCU),
à Controladoria Geral da União (CGU) e ao Ministério Público (MP) (PORTAL DO
GOVERNO BRASILEIRO, 30/12/2021).

240 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


especialmente, dos povos originários, levado a cabo pelo governo
Bolsonaro.

A guerra híbrida contra o Brasil e


o golpe de Estado de 2016

Ao começar sua carreira no Recife, ainda nos princípios da


década de 1930, Josué de Castro (MENDONÇA, 2021) trabalhou
numa fábrica, que o contratou para que encontrasse soluções que
permitissem o aumento da produtividade. No entanto, ele logo
constatou a indigência em que viviam os operários, o que resultou
numa pesquisa sobre as condições de vida da classe trabalhadora na
capital pernambucana (CASTRO, 1935), a primeira desse tipo feita
no país, e que serviria de fundamento para outras conduzidas em
diversas cidades. Anos depois, todos esses estudos constituiriam
uma das bases para a implantação do salário mínimo, em 1942,
durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Sobre
esse período, recordou mais tarde:

No fim de algum tempo, compreendi o que se passava com


os enfermos. Disse aos patrões. ‘Sei o que meus clientes
têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não dire-
tor daqui. A doença dessa gente... é fome’. Pediram que eu
me demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era
social. Não era só do mocambo, não era só do Recife, nem
do Brasil, nem só do continente. Era um problema mun-
dial, um drama universal (Apud SILVA, 1998, p. 50).

Esse episódio, ocorrido há quase um século, é tragicamente


atual, como se pode ver de diversas matérias publicadas na imprensa
brasileira e estrangeira a partir de 2020, com relatos dramáticos
sobre a situação de fome vivida pela população (BENIES, 24/5/2021;
PEREIRA, 29/11/2021; GOMES, 28/4/2022).
Toda essa tragédia é ainda maior quando consideramos que, há
poucos anos, o Brasil conseguira finalmente sair do mapa da fome.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 241


Contudo, e como já mencionado, a partir do golpe de Estado de 2016,
e com a implantação de uma política ultraneoliberal, todas aquelas
conquistas começaram a ser revertidas, levando à situação atual em
que cerca de 125 milhões de pessoas (mais da metade da população
brasileira) sofrem de algum grau de insegurança alimentar.
Para compreender esse quadro, é necessário lembrar que, desde
a independência, em 1822, a História do Brasil tem se configurado
como uma sucessão de golpes ou tentativas de golpe de Estado. De
fato, ao longo de todo esse período, o país viveu crises políticas que
ameaçaram a ordem constitucional ou levaram ao seu rompimento7.
Em todas essas ocasiões, o que estava em jogo era o objetivo, por
parte das classes dominantes e de setores das classes médias, de esta-
belecer controle jurídico-político sobre o Estado e impedir o acesso
das camadas populares a uma maior participação na renda nacional
e aos benefícios do desenvolvimento econômico, além de entregar
as riquezas do país ao capital estrangeiro. E, pelo menos desde 1950,
em todos os episódios, as classes dominantes, aliadas aos meios de
comunicação e ao capital internacional, buscaram cooptar as classes
médias e mesmo alguns setores das classes trabalhadoras por meio
de denúncias de corrupção no governo e da disseminação de um
moralismo pretensamente apolítico.
Na atualidade, esses objetivos levaram à adoção de táticas pre-
conizadas pela chamada guerra híbrida8 e conduziram o país à maior

7 Dentre os principais episódios, destacam-se: a abdicação de D. Pedro I ao trono imperial,


em 1831; a decretação da maioridade de D. Pedro II, em 1840; a Proclamação da República,
em 1889; a renúncia do Marechal Deodoro da Fonseca à Presidência, em 1891; a Revolução
de 1930; a chamada Revolução Constitucionalista, em 1932; a implantação da ditadura do
Estado Novo, em 1937; a deposição de Getúlio Vargas, em 1945; a tentativa de se impedir
a posse de Vargas, em 1950; a deposição e o suicídio de Getúlio, em 1954; a tentativa de
impedir a posse de Juscelino Kubitschek e o subsequente “golpe preventivo”, em 1955; a
Revolta de Jacareacanga, em 1956; a Revolta de Aragarças, em 1959; a chamada solução
parlamentarista, que reduziu os poderes presidenciais de João Goulart, 1961; o golpe de
1964; o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, em 1992; e, finalmente, a
deposição da Presidente Dilma Rousseff, em 2016.
8 De acordo com o cientista político norte-americano Andre Korybko, “as guerras híbridas
são conflitos identitários provocados por agentes externos, que exploram diferenças históri-
cas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas em países de importância geopolítica

242 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


crise política de sua história. Assim, o golpe de Estado de 2016, que
depôs a presidente Dilma Rousseff, permitiu o controle do Estado
por parte das forças derrotadas eleitoralmente desde 2002 e a impo-
sição de uma pauta econômico-social ultraneoliberal (LOPES, 2016;
LEITE, 2015; MENDONÇA, 2018; BERCOVICI, 2016; BERCOVICI,
2017; LÖWY, 2016; PAULANI, 2016; SOUZA, 2016).
O desmonte do Estado, a liquidação de órgãos públicos e a eli-
minação de políticas sociais atingiriam o paroxismo com a posse
de Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019. E a tragédia se revelaria
em toda a sua plenitude com a pandemia de Covid-19, que fez a pri-
meira morte no Brasil em março de 2020 e levou ao agravamento
da crise econômica. A manutenção das políticas ultraneoliberais,
mesmo durante a mais grave pandemia dos últimos 100 anos, con-
duziria o país a uma verdadeira catástrofe humanitária, com cerca
700 mil mortos e milhões de famintos.

A reversão das políticas de combate


à fome a partir de 2016

No relatório de 2014, a FAO aponta os fatores que contribuí-


ram para que o Brasil pudesse sair do mapa da fome (BRASIL,
16/9/2014). Segundo a instituição, a vitória nessa luta deve ser cre-
ditada a: 1) aumento da oferta de alimentos, o que permitiu que em
10 anos a disponibilidade de calorias para a população aumentasse

por meio da transição gradual das revoluções coloridas para a guerra não convencional,
a fim de desestabilizar, controlar ou influenciar projetos de infraestrutura multipolares
por meio do enfraquecimento do regime, troca do regime ou reorganização do regime”
(KORYBKO Apud TUTAMÉIA, 19/10/2018, p. 3). E referindo-se ao caso brasileiro, acres-
centa: “há uma guerra híbrida muito intensa sendo travada no Brasil neste momento e afeta
todos os aspectos da vida de cada cidadão [...]. Ao longo dos últimos dois anos, agentes exter-
nos vêm tentando muito sutilmente condicionar a população para voltá-la contra o Partido
dos Trabalhadores, usando instrumentos como a Operação Lava Jato, apoiada pela NSA,
que tomou vida própria” (KORYBKO Apud TUTAMÉIA, 19/10/2018, p. 7). NSA é a sigla
em inglês para National Security Agency, uma das principais agências norte-americanas
de segurança.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 243


10%; 2) elevação da renda dos mais pobres, a partir do aumento de
71,5% do salário mínimo e da criação de 21 milhões de empregos;
3) o Programa Bolsa Família9, que passou a beneficiar 14 milhões de
famílias; 4) o programa da Merenda Escolar, que proporcionou refei-
ções para 43 milhões de crianças e jovens; 5) a recriação do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)10; 6)
estabelecimento de prioridades políticas e orçamentárias em rela-
ção às necessidades; e 7) fortalecimento da agricultura familiar por
meio de créditos e compras públicas (CAMPELLO, 19/7/2021).
Todas essas medidas tiveram impactos importantíssimos para
os resultados apontados no relatório da FAO de 2014. Mas, como
bem advertiu Thiago Lima,

saímos do mapa da fome porque diminuíram as pessoas


famintas. Mesmo assim, o país tolerou que houvesse famí-
lias famintas. O Direito Humano à Alimentação foi ins-
crito na Constituição? Foi. Houve programas de distribui-
ção de renda e incentivo a empregos à produção? Houve.
Mas estes não baniram a Fome, enquanto princípio, e
foram facilmente desmontados, principalmente do golpe
de 2016 para cá (LIMA, 2020).

Como salientado anteriormente, o desmonte das políticas


voltadas para o aumento do emprego e da renda da população e,

9 O Bolsa Família era um programa destinado ao combate à pobreza e à desigualda-


de no Brasil. Possuía como eixos principais; complemento de renda e garantia de
direitos, por meio de condicionalidades que permitem acesso à educação, à saúde
e à assistência social, proporcionando melhores oportunidades de inclusão social
a futuras gerações (GOVERNO FEDERAL, 29/12/2021). O programa foi extinto
em 1º de novembro de 2022, e substituído pelo Auxílio Brasil.
10 O CONSEA foi criado no governo Itamar Franco, por meio do Decreto 807/93. Foi de-
sativado em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, quando passou a integrar
o Programa Comunidade Solidária. Em 2003, no início do governo do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, foi reativado. Foi extinto pela Medida Provisória 870, editada no
primeiro dia do mandato de Jair Bolsonaro. Era um órgão colegiado de assessoramento da
Presidência da República, com o objetivo de coordenar os programas federais vinculados
à segurança alimentar e nutricional (BRASIL, 25/4/ 2019).

244 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


consequentemente, para o combate à fome no país começaram a ser
revertidas durante o governo de Michel Temer, como é o caso do fim
da política de aumento real do salário mínimo, implantada a partir
de 2017 em nome de uma suposta austeridade fiscal (INSTITUTO
HUMANITAS UNISINOS, 12/1/2017). Conforme ressaltou Júlio
Miragaya, então presidente do Conselho Federal de Economia
(COFECON), “o que tem por trás disso, na verdade, é uma disposição
do governo de, mesmo com a economia crescendo no futuro, limitar
os aumentos do salário mínimo à inflação do ano anterior, o que na
verdade é um retrocesso” (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS,
12/1/2017).
Do mesmo modo, a reforma trabalhista, aprovada em 2017, não
levou ao aumento do emprego, reduziu os salários médios e jogou
milhões de trabalhadores na informalidade (SENADO NOTíCIAS,
2/5/2019). Por fim, sob a alegação de necessidade de controle fiscal,
a promulgação da chamada PEC do Teto de Gastos (Emenda
Constitucional nº 95) instituiu a limitação dos gastos públicos por
20 anos (SENADO NOTÍCIAS, 15/12/2016). Dessa forma, os gastos
orçamentários passaram a ser corrigidos exclusivamente com base
no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do ano ante-
rior, desconsiderando emergências sanitárias, como é o caso da pan-
demia de Covid-19, desastres naturais e até mesmo o crescimento
vegetativo da população.
Todas essas medidas foram alvo de ácida crítica de Ladislaw
Dowbor. Segundo ele,

Estamos no nono ano de economia estagnada, com um


déficit explosivo, explicitando o óbvio: não se governa
um país como uma dona de casa faz no lar. Não atingi-
mos “equilíbrio fiscal do Estado” reduzindo investimentos,
como obriga a política do teto de gastos [...]. O que precisa-
mos para garantir o desenvolvimento econômico é aumen-
tar as entradas e dinamizar a economia pela base. Para
isso é preciso investimento do Estado (DOWBOR, 2022,
p. 186-187).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 245


E acrescenta:

A revista Forbes apresenta a evolução da fortuna dos bilio-


nários do Brasil. Quarenta e dois desses bilionários (em
dólares), em plena pandemia de covid-19, entre março e 12
de julho de 2020, aumentaram sua fortuna em 180 bilhões
de reais, o equivalente a seis anos de Bolsa Família, isen-
tos de impostos. Eles já eram bilionários e conseguiram
isso em quatro meses, em plena pandemia e com a econo-
mia em queda. (...) O país está paralisado em detrimento
da população, do investimento empresarial, das políti-
cas públicas. (...) Enfrentamos a subutilização da mão de
obra, do solo agrícola, do capital, do potencial científico
(DOWBOR, 2022, p. 187).

O resultado seria o aumento exponencial da taxa de desocupa-


ção que, se em dezembro de 2014 estava em 6,5%, passou para 8,9%
em dezembro do ano seguinte, para 11,2% em maio de 2016 (quando
se deu o afastamento de Dilma Rousseff11), e para 11,6% ao final do
mandato de Michel Temer (IBGE, 24/5/2021).

O aumento da pobreza e o desmonte das políticas


de combate à fome no governo Jair Bolsonaro

Os índices apontados acima continuaram a subir com a posse


de Jair Bolsonaro na presidência da República, atingindo 12,7% em
março de 2019. Caíram um pouco ao longo daquele ano, e no início
da pandemia de Covid-19, em março de 2020, estava em 12,2%, mas
ao final do ano chegou a 13,9%. Finalmente, em fevereiro de 2021,
quando a pandemia completou 12 meses, o nível de desocupação afe-
tava 14,7% da população economicamente ativa (IBGE, 24/5/2021).

11 A abertura de processo de impeachment pelo Senado Federal ocorreu em 12 de maio de


2016, e Dilma Rousseff foi afastada do cargo por 180 dias. A conclusão do processo se deu
em 31 de agosto de 2016, quando então a presidente foi substituída por Michel Temer.

246 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A partir de então, a taxa de desemprego caiu lentamente: para
14,8% (abril/2021), 14,7% (maio/2021), 14,2% (junho/2021), 13,7%
(julho/2021), 13,1% (agosto/2021), 12,6% (setembro/2021), 12,1%
(outubro/2021), 11,6% (novembro/2021), 11,1% (dezembro/2021),
subindo novamente para 11,2% (janeiro/2022), índice que se man-
teve em fevereiro (IBGE, 10/4/2022). Em março o índice baixou
novamente para 11,1%, o que corresponde a 12 milhões de pessoas
desempregadas no Brasil (VIEIRA, 29/4/2022). Ou seja: somente no
início de 2022 – portanto, quase seis anos após o afastamento de
Dilma Rousseff da Presidência da República - a taxa de desocupação
voltou ao mesmo patamar de maio de 2016.
Do mesmo modo, a pobreza extrema aumentou 2% entre 2014
e 2019, atingindo neste ano cerca de 13,7 milhões de brasileiros
(FOLHA DE S. PAULO< 12/11/2020), o que só tendeu a piorar com
o início da pandemia, tendo em vista o consequente agravamento
da crise econômica, com o fechamento de inúmeras empresas e ati-
vidades e a perda de empregos e renda. O resultado foi a redução do
número de pessoas que mantinha algum rendimento do trabalho,
de 92,8 milhões para 84,7 milhões (CARDIM, LIMA, 20/11/2021).
Além disso, o rendimento médio mensal real dos trabalhadores
caiu 3,4% em 2020. Naquele ano, cerca de 8,1 milhões de pessoas
deixaram de ter algum ganho proveniente do trabalho, sendo que
66% desse contingente eram de pretos ou pardos (CARDIM, LIMA,
20/11/2021).
Em 2015, o Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento - Banco Mundial (BIRD) considerou o valor de
US$ 5,50/dia/pessoa para o limite da pobreza, e de US$ 1,90/dia/
pessoa para a extrema pobreza. Segundo esses critérios, entre 2019
e 2020, ocorreu uma redução percentual no Brasil, no que diz res-
peito ao número de pobres e miseráveis, de 6,8% para 5,7%. Por
outro lado, o chamado Auxílio Emergencial diminuiria um pouco
o impacto da crise nas condições de sobrevivência da população,
mas não foi capaz de reverter o quadro de agravamento da miséria.
Dessa forma, o número de pessoas que, de acordo com a nomen-
clatura do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 247


recebiam outros rendimentos cresceu de 16,4 milhões, em 2019,
para 30,2 milhões, em 2020. Considerando-se o número de domi-
cílios beneficiados por algum valor oriundo de programas sociais,
o índice subiu de 0,7%, em 2019, para 23,7%, em 2020 (IBGE,
23/4/2022).
O Auxílio Emergencial, criado pela Lei 13.982/2020, começou
a ser pago a partir de abril daquele ano, em até 9 parcelas, sendo as
5 primeiras de R$ 600,00 (correspondentes aproximadamente a US$
3,66/dia), e as quatro últimas de R$ 300,00 (cerca de US$ 1,93/dia)
(ISTOÉ DINHEIRO, 27/11/2020). Tendo em vista que se destinava
a famílias inteiras, o valor era muito inferior àquilo que o Banco
Mundial considera como o limite da extrema pobreza (ONU NEWS,
5/10/2015). O compromisso de pagamento por parte do governo se
encerrou em 31 de dezembro de 2020. Somente em março de 2021
foi editada a Medida Provisória nº 1.039, que recriou o Auxílio
Emergencial, mas limitado ao máximo de R$ 250,00 (aproximada-
mente US$ 1,48/dia) (DOU, 18/3/2021), isto é, muito abaixo daquilo
que o BIRD considera a linha da pobreza extrema.
Ademais, em 29 de outubro de 2021 foi feito o pagamento
da última parcela do Bolsa Família. O programa, criado pela Lei
10.835, de janeiro de 2004, foi extinto a partir de 1º de novembro de
2021 pelo governo Bolsonaro, que o substituiu pelo Auxílio Brasil,
resultante da edição da Medida Provisória nº 1.061, e com dura-
ção limitada a 31 de dezembro de 2022 (CARTA, 29/10/2021). Do
mesmo modo, o governo também eliminou o Auxílio Emergencial,
e seus beneficiários não foram incluídos no Auxílio Brasil. Isto sig-
nifica que mais de 22 milhões de pessoas permaneceriam sem qual-
quer ajuda do governo, num cenário de crise econômica e sanitária
(G1 ECONOMIA, 26/10/2021). O resultado foi a queda de 9,7% da
renda média do brasileiro entre novembro de 2020 e janeiro de 2022,
mesmo com a redução do desemprego. De acordo com Adriana
Beringuy, coordenadora de trabalho e rendimento do IBGE,
“embora haja expansão da ocupação e mais pessoas trabalhando,
isso não está se revertendo em crescimento do rendimento dos traba-
lhadores em geral” (MALAR, 18/3/2022), e nenhum dos setores da

248 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


economia analisados pelo IBGE apresentaram alta dos ganhos dos
empregados (MALAR, 18/3/2022).
Foi ainda autorizada contratação de empréstimo consignado
pelos beneficiários de programas de transferência de renda, com
desconto na fonte. Para Miriam Leitão,

(...) os miseráveis serão achacados pelas financeiras e pelos


correspondentes bancários, em dívidas a juros escorchan-
tes. O governo fez isso para que os muito pobres tenham
a sensação de bem-estar na hora do voto. É política eco-
nômica sem qualquer escrúpulo (Apud ALEXANDRINO,
7/8/2022).

Como bem ressaltou Marcelo Neri, diretor da Fundação


Getúlio Vargas (FGV Social), o Auxílio Emergencial proporcionou
uma melhoria efêmera nos indicadores sociais. Segundo ele,

esse é um efeito limitado. Não investimos em um apren-


dizado ou projeto para saber o que fazer agora nesse pro-
cesso de saída do auxílio emergencial. Os 29 milhões que
contavam com o auxílio deixarão agora de recebê-lo. Acho
que vamos ter fortes efeitos adversos, não só na desigual-
dade, mas na pobreza brasileira (Apud CARDIM, LIMA,
2/11/2021).

Os efeitos do desmonte das políticas sociais


na segurança alimentar da população

Todos esses dados apontam para uma situação gravíssima, em


que a fome ou a insegurança alimentar passaram a atingir milhões
de pessoas em todo o Brasil, principalmente a partir de março de
2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a
existência de uma pandemia, e paralisaram-se todas as atividades
econômicas. Mas isso não aconteceu por acaso. Com bem ressaltou
Leandro Melito,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 249


Ao colocar o pé no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro sina-
lizou a disposição em relação às políticas de segurança ali-
mentar e nutricional por meio da Medida Provisória 870.
Com uma canetada extinguiu o Conselho de Segurança
Alimentar e Nutricional (CONSEA). [...] A promessa de
não mexer no Bolsa Família não parece ter sobrevivido ao
ímpeto do atual governo. O principal programa de trans-
ferência de renda sofreu diminuição no número de pessoas
atendidas (MELITO, 3/2/2020).

O resultado não poderia ser outro. De fato, de acordo com os


resultados referentes a 2020, apresentados no Inquérito Nacional
sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19
no Brasil, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania
e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), os efeitos da pan-
demia atingiram em cheio as condições de vida, trabalho e alimen-
tação em todo o Brasil (MALUF, 2021). Como bem ressaltado no
relatório,

A crise econômica, que já vinha revertendo o sucesso


alcançado até 2013 na garantia do direito humano à ali-
mentação adequada, ganhou impulso negativo maior em
2020 com o advento da pandemia, apesar da permanên-
cia de alguns programas sociais como o Bolsa Família e o
Benefício de Prestação Continuada12, e a criação do auxílio
emergencial com o objetivo de mitigar os efeitos da pan-
demia sobre o emprego e renda. A comparação dos níveis
de SA/IA13 entre a POF de 201814 e o presente inquérito do
VIGISAN mostra a gravidade da superposição da crise

12 O Benefício de Prestação Continuada (BPC) está previsto na Lei Orgânica da


Assistência Social (LOAS). Garante um salário mínimo às pessoas com mais de
65 anos ou àquelas que, em qualquer idade, apresentem alguma deficiência, desde
que não tenham capacidade física, mental, intelectual ou sensorial de participar
de forma plena e efetiva da sociedade, em igualdade de condições com as demais
pessoas. O BPC não se configura como aposentadoria e, portanto, não há neces-
sidade de contribuição prévia ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS)
por parte dos beneficiários (GOVERNO FEDERAL, 5/1/2022).
13 Segurança Alimentar / Insegurança Alimentar.
14 Referência à Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE.

250 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


econômica e crise sanitária em todo o território nacional,
sem uma adequada resposta advinda da política pública
(MALUF, 2021, p. 49).

Em termos comparativos, o relatório mostra que a insegurança


alimentar grave, que havia caído de 9,5% em 2004 para 4,2% em
2013, passou para 9% em 2020. Já os dados relativos à insegurança
alimentar moderada são de 12%, 6,1% e 11,5%, respectivamente.
Por fim, no que se refere à insegurança alimentar leve, os números
apresentados são muito mais significativos: 13,8%, 12,6% e 34,7%,
respectivamente (MALUF, 2021, p. 49). Ou seja:

([...) a Insegurança Alimentar e a fome no Brasil retorna-


ram aos patamares próximos aos de 2004. Mais que isso,
foi anulado, para parcela significativa da população bra-
sileira, o sucesso obtido entre 2004 e 2013 na garantia do
direito humano à alimentação adequada e saudável. Os
dados mostram que tivemos um retrocesso de 15 anos em
apenas cinco; retrocesso ainda mais acentuado nos últimos
dois anos (...) (MALUF, 2021, p. 48).

De acordo com o relatório apresentado pela Food for Justice,


essa piora se deveu às restrições orçamentárias e aos retrocessos
institucionais verificados a partir de 2016 e agravados no governo
Bolsonaro, como são os casos da extinção do CONSEA, a inope-
rância da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e
Nutricional (CAISAN)15, e a falta do II Plano Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (PLANSAN)16, que estabelece o planeja-

15 O CAISAN integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional


(SISAN), e tem como objetivo promover a articulação e a integração dos órgãos e
entidades da administração pública afetos à área de segurança alimentar e nutri-
cional. O SISAN foi criado pela Lei 11.346/2006, e constitui um sistema de gestão
intersetorial, participativa e de articulação entre os três níveis de governo para
implementação e execução das políticas de segurança alimentar e nutricional,
com o objetivo de promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação
da segurança alimentar no país (veja-se: GOVERNO FEDERAL, 13/2/2022).
16 O II Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2016-2019), elaborado
pelo CAISAN e pelo CONSEA, a partir de deliberações da V Conferência Nacional de

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 251


mento e a execução da Política Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (PNSAN)17, provocando o agravamento das condições
de segurança alimentar da população no contexto da pandemia
(GALINDO, TEIXEIRA, ARAÚJO, MOTTA, PESSOA, MENDES,
RENNÓ, 2021, p. 4).
Some-se a isto a questão da inflação de alimentos, que atinge
profundamente a população mais pobre. A esse respeito, é preciso
considerar, primeiramente, que este é um fenômeno mundial, como
se verifica dos dados divulgados pela FAO em novembro de 2021,
que apontavam para o fato de o preço dos alimentos ser o mais alto
dos últimos 10 anos, atingindo um aumento de 31,3% em relação a
outubro de 2020 (CNN BRASIL, 4/11/2021). A situação, no entanto,
piorou muito desde então, como se pode ver do Índice de Preços dos
Alimentos (FFPI) da FAO, o maior em 100 anos, tendo sido supe-
rado apenas durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e na
pandemia de gripe espanhola (1918-1919). De acordo com o demó-
grafo José Eustáquio Diniz Alves,

o aumento do preço dos alimentos já vinha subindo em


decorrência do rompimento das cadeias produtivas ocor-
rido na pandemia da covid-19 e, especialmente, em fun-
ção da crise climática e ambiental que tem dificultado a
produção de alimentos devido às secas, enchentes, erosão e
acidificação dos solos e das águas, etc. (ALVES, 8/4/2022).

É preciso salientar que, no caso brasileiro, o problema se acen-


tua, pois os preços dos alimentos têm sido gravemente afetados pela
alta dos preços como um todo desde 2020 (GALINDO, TEIXEIRA,
ARAÚJO, MOTTA, PESSOA, MENDES, RENNÓ, 2021; AGÊNCIA

Segurança Alimentar e Nutricional, constitui-se de um conjunto de ações do governo fe-


deral voltadas para garantir a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à
alimentação adequada para a população brasileira (BRASIL, 30/12/2021).
17 A PNSAN é implementada e executada por meio do SISAN e tem como objetivo acom-
panhar, monitorar e avaliar a segurança alimentar e nutricional do país, envolvendo me-
didas tomadas por parte do governo e da sociedade civil, com a implantação de ações e
programas estratégicos (BRASIL, 30/12//2021).

252 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


BRASIL, 11/1/2022), com impacto mais forte no setor de transpor-
tes, na habitação e nos alimentos, que correspondem à maior parte
da composição do IPCA. O índice continuou a se elevar em 2022,
atingindo 1,62% em março, o maior índice para este mês desde 1994,
chegando a 3,2% somente no primeiro trimestre do ano, e 11,3% nos
12 meses imediatamente anteriores. Os principais impactos foram
provocados por transportes (3,02%) e alimentos e bebidas (2,42%),
preços que representam cerca de 43% no cálculo mensal do IPCA
(ALVARENGA, 8/4/2022). No caso dos alimentos, alguns itens
básicos tiveram aumentos exponenciais, tais como tomate (27,22%),
cenoura (31,47%), leite longa vida (9,34%), óleo de soja (8,99%),
frutas (6,39%) e pão francês (2,97%). E no mês seguinte, o fenômeno
se repetiu (VIEIRA, 27/4/2022). Segundo Pedro Kislanov da Costa,
economista do IBGE,

foi uma alta disseminada dos preços. Vários alimentos


sofreram uma pressão inflacionária. Isso aconteceu por
questões específicas de cada alimento, principalmente
fatores climáticos, mas também está relacionado ao custo
do frete. O aumento do preço dos combustíveis acaba refle-
tindo em outros produtos da economia, entre eles os ali-
mentos (Apud ALVARENGA, 8/4/2022).

Evidentemente, o efeito desse aumento é maior entre os mais


pobres, para quem os gastos com alimentação consomem 20,94%
da renda, chegando a 23,84% para as famílias que vivem com no
máximo cinco salários mínimos. De fato, o Índice Nacional de
Preços ao Consumidor (INPC) de 2021, também calculado pelo
IBGE, e que aponta os preços pagos pelas famílias mais pobres, atin-
giu 10,16% em 2021 (AGÊNCIA BRASIL, 11/1/2022). A elevação dos
preços continuou em 2022. Em março, o aumento foi de 1,71% em
relação ao mês anterior, sendo que os itens que mais impactaram o
índice foram alimentos e bebidas (2,39%), habitação (1,24%) e trans-
portes (3,01%) (IBGE, 8/4/2022), exatamente aqueles que atingem
mais profundamente as camadas mais pobres da população

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 253


Note-se também que os aumentos explosivos não se restringem
aos alimentos, pois, de outubro de 2020 a outubro de 2021 houve
elevação dos preços de vários itens essenciais, tais como: botijão de
gás (34,67%); energia elétrica (28,82%), gás encanado (20,36%), arti-
gos de limpeza (6,36%) e aluguel (5,42%) (COSTA, 31/10/2021). E
somente em março de 2022, o botijão de gás teve aumento de 6,75%.
Em contrapartida, os reajustes do salário mínimo têm sido
muito inferiores aos da inflação. Assim, se em janeiro de 2019 era de
R$ 998,00, passou a R$ 1.045,00 em janeiro de 2020, R$ 1.100,00 doze
meses depois, e R$ 1.212,00 em janeiro de 2022 (G1 ECONOMIA,
27/4/2022). Diante desses dados, é preciso assinalar que, embora em
moeda nacional tenha havido aumentos no salário mínimo em relação
aos anos anteriores (4,7%, 5,26% e 10,18%, respectivamente), quando
calculado em dólar, ocorreu estabilidade entre 2019 e 2020, e queda
significativa em 2021, patamar em que se manteve em 2022, passando
de US$ 259,22, para US$ 259,95, para US$ 213,17 e para US$ 215,27,
respectivamente (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 27/4/2022).
Ao mesmo tempo, o preço da cesta básica na cidade de São
Paulo subiu de R$ 467,65 em janeiro de 2019 (46,85% do salário
mínimo), para R$ 517,51 doze meses depois (49,52% do salário
mínimo), para R$ 654,15 em janeiro de 2021 (59,46% do salário
mínimo), atingindo, em setembro de 2021, R$ 673,45 (61,22% do
salário mínimo) (DIEESE, 6/10/2021). Com a aceleração da inflação,
a cesta básica em São Paulo chegou a R$ 761,19, em março de 2022
(elevação de 6,36% em relação ao mês anterior), o que corresponde a
62,8% do salário mínimo (DIEESE, 6/4/2022).
Acrescente-se a isto a informação divulgada pela LCA Consultores,
com base em indicadores trimestrais obtidos pela Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE. Segundo os dados apre-
sentados, no final de 2021, 33,8 milhões de trabalhadores, ou seja, 36%
do total de ocupados, tinham uma renda mensal de, no máximo, um
salário mínimo, ou seja, 4,4 milhões de pessoas a mais nesta situação
em apenas um ano (BRASIL 247, 19/4/2022).
Esses dados apontam para uma verdadeira tragédia, que atinge
principalmente a parcela mais pobre da população, sem que o

254 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


governo federal tome quaisquer medidas para mitigar o problema.
É o que se vê do relatório da Food for Justice: no que diz respeito ao
arroz, por exemplo, o IPEA apontou alguns fatores que levaram ao
aumento extraordinário dos preços:

Primeiramente, houve aumento das exportações e dimi-


nuição da importação (...) nos oito primeiros meses de
2020. (...) Em segundo lugar, houve alterações nos hábitos
de consumo de alimentos, devido ao isolamento social,
criando uma tendência de estocagem domiciliar, com con-
sequente aumento da procura por produtos básicos. Em
terceiro lugar, a produção brasileira de arroz tem permane-
cido relativamente estagnada, em grande medida pela prio-
rização do agronegócio na produção de commodities inter-
nacionais para exportação (...), em detrimento da produção
de alimentos. O quarto fator é a tendência de redução polí-
tica de estoques nacionais a partir da safra 2013/2014 (...)
(GALINDO, TEIXEIRA, ARAÚJO, MOTTA, PESSOA,
MENDES, RENNÓ, 2021, p. 4).

Para Tereza Campello,

foi criminosa a destruição do (...) SISAN, que poderia estar


coordenando nacionalmente as diferentes frentes das polí-
ticas municipais, estaduais e federais (...). Com o SISAN
operando, o governo poderia, por exemplo, ter se anteci-
pado propondo medidas para evitar a disparada do preço
de alimentos e garantir o abastecimento da população.
Mas Jair Bolsonaro e Paulo Guedes18 preferiram viabilizar
o lucro extra dos exportadores. [...] Em vez disso, assisti-
mos incrédulos o ministro da Economia tentar tirar van-
tagem da tragédia humanitária da fome e aproveitar para
solucionar os estoques mal planejados da rede varejista.
Ou tentar emplacar o velho pleito dos supermercados de

18 Referência a Paulo Roberto Nunes Guedes, Ministro da Economia do governo de Jair


Bolsonaro.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 255


flexibilizar as regras de prazo de validade para otimizar
lucros (CAMPELLO, 19/7/2021).

O desmonte das instituições voltadas para a segurança ali-


mentar, que tem levado ao aumento dos preços dos alimentos, foi
agravado pela política de preços adotada pela Petrobras S/A. desde o
governo de Michel Temer, e mantida pelo governo de Jair Bolsonaro.
Segundo Henrique Jager,

essa política de Preços de Paridade de Importação (PPI)


vincula automaticamente o preço dos derivados nas refi-
narias ao comportamento do preço do produto em dólares
no mercado internacional, acrescido dos custos de trans-
porte e de uma taxa de 5%, para mitigar possíveis riscos.
Assim, os preços no mercado interno passaram a ser defi-
nidos com base no comportamento do preço no mercado
internacional, do câmbio e dos custos de transporte, sem
nenhuma vinculação com os custos de produção nas refi-
narias nacionais. Com a implantação dessa política todo o
faturamento da estatal brasileira passou a ter como um dos
principais parâmetros a taxa de câmbio. (...) Como resul-
tado, o custo ficou para a sociedade brasileira (JAGER,
24/9/2021).

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022,


provocaria um choque nos preços do petróleo. Este, que valia US$
96,84 antes da operação militar, imediatamente se elevou, atingindo
o pico de US$ 130,00 em 8 de março de 2022 (FERRARI, 8/3/2022).
Caiu um pouco em decorrência de diversas medidas tomadas pelo
países produtores e exportadores, mas a tendência parece ser a
manutenção de preços muito elevados, o que terá impactos sobre o
valor dos combustíveis no Brasil e, consequentemente, dos alimen-
tos. De acordo com Henrique Jager, o resultado da política de preços
de Petrobras “vem se mostrando um problema crescente para a esta-
bilidade monetária do país, para a retomada do crescimento econô-
mico e, consequentemente, contribuindo para o aumento da insegu-
rança alimentar e da pobreza extrema no país” (JAGER, 24/9/2021).

256 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Mas além da elevação do preço do petróleo, que tem impacto
em todas as cadeias produtivas, haverá outras consequências da
guerra em relação aos alimentos. Conforme ressaltou José Eustáquio
Diniz Alves,

a guerra entre Ucrânia e Rússia ameaça o abastecimento


global de alimentos. A Ucrânia e a Rússia são os princi-
pais exportadores de alguns dos alimentos mais básicos do
mundo, representando juntos cerca de 29% das exportações
globais de trigo, 19% da oferta mundial de milho e 80%
das exportações mundiais de óleo de girassol. Mas a Rússia
também exporta nutrientes agrícolas, bem como gás natu-
ral, que é fundamental para a produção de fertilizantes à
base de nitrogênio. Cerca de 25% do suprimento europeu
dos principais nutrientes das culturas, nitrogênio, potássio
e fosfato, vêm da Rússia. Portanto, com as condições geopo-
líticas desarticuladas, as maiores fontes de matéria-prima
para a produção de alimentos estão sujeitas a limitações e
não há alternativa de curto prazo. (...) Historicamente, o
aumento do preço dos alimentos provoca uma elevação do
percentual da população mundial sujeita à fome e à insegu-
rança alimentar (ALVES, 8/4/2022).

O resultado de tudo isso não poderia ser outro. Nas últimas


semanas de julho de 2021, jornais e portais da Internet noticiaram
um fato aterrador: a formação de uma imensa fila na rua lateral do
Atacadão da Carne, em Cuiabá, capital do Mato Grosso, em que
pessoas esperam sob o sol até que, às 11 horas da manhã, um fun-
cionário inicie a distribuição daquilo que sobrou da desossa do boi:

São, de fato, ossos com resquício da carne vendida e que


servem de uma improvisada fonte de proteína da popula-
ção mais humilde. (...) A ação do açougue de Cuiabá ocorre
há mais de 10 anos. Mas, antes da pandemia, a fila reunia
entre 20 e 30 pessoas, segundo Edivaldo Oliveira (...), dono
do local. “Agora, triplicou ou mais. Hoje são 200 pessoas.
Estamos com dificuldade para atender” (...) (MARCEL,
25/7/2021).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 257


Na mesma reportagem, outro dado chama a atenção:

Os supermercados já oferecem opções mais baratas inclu-


sive para substituir o arroz e o feijão, os dois principais ali-
mentos da dieta brasileira. Um pacote de cinco quilos de
arroz ficou 48% mais caro no último ano e pode chegar a
30 reais em alguns locais. Assim, algumas marcas oferecem
nos supermercados os chamados “fragmentos de arroz”,
opção mais barata, por vezes usada como ração de animais.
(...) Os mercados também já têm disponível a “bandinha de
feijão” – feijão quebrado (MARCEL, 25/7/2021).

Não bastasse isso, poucos dias antes Paulo Guedes dera uma
declaração estarrecedora. Segundo ele,

O prato de um classe média europeu (sic), que já enfrentou


duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos
(sic). E os nossos aqui, nós fazemos almoços onde às vezes
há uma sobra enorme. Isso vai até o final, que é a refei-
ção da classe média alta, até lá há excessos ... Toda aquela
alimentação que não for utilizada durante aquele dia no
restaurante, aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas,
mendigos, desamparados. É muito melhor do que dei-
xar estragar essa comida toda (JORNALISTAS LIVRES,
18/6/2021).

Toda essa infâmia foi assim resumida por Vinícius Souza:

Não, não são os cães que buscam qualquer fonte de prote-


ína como seus antepassados lobos. No Brasil de Bolsonaro,
os famintos são gente que espera pacientemente em longas
filas de doação atrás de um açougue de Cuiabá, capital do
estado que mais produz carne no país (SOUZA, 23/7/2021).

Mas como se essa degradação não fosse suficiente, o que pare-


cia impensável está acontecendo: de um lado, açougues e peixarias
têm visto na tragédia mais uma oportunidade de lucro, passando
a vender aos famintos ossos de boi (DIÁRIO DO CENTRO DO

258 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


MUNDO, 6/10/2021) e carcaças de peixe (BRASIL 247, 6/10/2021),
conforme se pôde constatar em reportagens publicadas na imprensa.
De outra parte, cresce de maneira assustadora o número de queima-
duras, muitas vezes fatais, provocadas pelo fato de que milhares de
famílias passaram a cozinhar com álcool (CONTAIFER, 6/2/2022),
tendo em vista o aumento do preço do botijão de gás (GERCINA,
13/3/2022).
E isso não é tudo, pois, de janeiro de 2019 a novembro 2021,
mais de 7 mil crianças morreram de desnutrição no Brasil (DIAS,
15/11/2021). Acrescente-se ao quadro o fato de que professores da
rede pública de ensino têm relatado episódios estarrecedores, como
aquele que se deu com uma aluna que desmaiou de fome numa
escola do Rio de Janeiro, além de casos em que estudantes normal-
mente calmos têm tido atitudes de extrema agressividade porque
não estão suportando a fome. Evidentemente, esta situação provoca
danos irreparáveis no aprendizado, o que tende a se agravar pela
evasão escolar, pois muitos alunos têm abandonado os estudos para
tentarem obter algum trabalho que lhes permita ajudar no sustento
da casa (CARRANÇA, 17/11/2021).
Diante de toda essa catástrofe, médicos têm alertado para o fato
de que uma alimentação de má qualidade ou insuficiente fragiliza
o sistema imunológico, deixando 33 milhões de brasileiros famintos
e mais de quase 125 milhões que sofrem de insegurança alimentar
mais vulneráveis ao vírus Sars-CoV-2, responsável pela Covid-19 e a
outras doenças infecto-contagiosas.
Mas não é só: no caso das crianças, a fome ou uma alimentação
inadequada e insuficiente terão consequências para toda a vida, con-
forme lembrou José Graziano da Silva, ex-diretor da FAO, “crianças
que passam fome antes dos 5 anos, se sobreviverem, levarão a marca
da desnutrição para o resto da vida, não terão desenvolvimento inte-
lectual e motor normal. Estamos, portanto, condenando o futuro
de milhões de brasileiros” (Apud BENEVIDES, COMPARATO,
10/12/2021).
A ironia – e por que não dizer? – a perversidade dessa polí-
tica de desmonte fica ainda mais evidente se considerarmos a

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 259


declaração feita por Jair Bolsonaro, em 19 de julho de 2019. Segundo
o presidente,

o Brasil é um país rico para praticamente qualquer plan-


tio. Fora que passar fome no Brasil é uma grande mentira.
Passa-se mal, não come bem, aí eu concordo. Agora, pas-
sar fome, não. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas,
com físico esquelético, como a gente vê em alguns países
pelo mundo. Falar que se passa fome no Brasil é discurso
populista, tentando ganhar simpatia popular, nada além
disso (O GLOBO, 19/7/2019).

Contudo, não foi isso o que se viu no dia 21 de janeiro de 2023,


poucas semanas após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
para o seu terceiro mandato. Pelo contrário. O que ficou evidente
foi um verdadeiro genocídio do povo Yanomami, que simplesmente
está sendo exterminado pela fome, pela malária e pela contamina-
ção por mercúrio, utilizado por garimpeiros que exploram ilegal-
mente as terras indígenas sob a complacência dos governos implan-
tados desde 2016.

A fome como método de extermínio

A exploração da região hoje considerada como Terra Indígena


Yanomami, localizada entre os estados de Amazonas e Roraima
começou a ser feita na década de 1940, intensificando-se no decênio
de 1970. Com uma área de 5.015.067 km² (58,93% do território nacio-
nal) e uma população rarefeita - 7 milhões de habitantes em 1970, ou
seja, 7,4% do total do país na época -, a Amazônia se tornou objeto
de preocupação e interesse dos militares desde o golpe de 1964.
Nesse sentido, uma das primeiras medidas tomadas pelo governo
ditatorial em relação à região foi a criação da Superintendência da
Zona Franca de Manaus (SUFRAMA), em fevereiro de 1967.
Em 1970, com o objetivo de pesquisar os recursos naturais
da região, foi criado o Projeto RADAM – Radar da Amazônia,

260 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


organizado pelo Ministério das Minas e Energia (MME) e desenvol-
vido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM),
com recursos do Plano de Integração Nacional. Em 1975 o projeto
foi ampliado, transformando-se no RADAM Brasil.
O relatório divulgado apontou a existência de grande quan-
tidade de ouro na região hoje conhecida como Terra Indígena
Yanomami (TIY), o que imediatamente atraiu a atenção de garim-
peiros. Assim, ao longo da década de 1980 e no início do decênio
seguinte, a área foi ocupada por milhares de aventureiros, o que
gerou uma crise social e sanitária entre os indígenas. Diante da gravi-
dade da situação houve protestos internacionais (RUPP, 24/1/2023),
levando os constituintes eleitos em 1986 a decidirem pela proteção
de territórios em favor de povos originários.
A respeito da criação da TIY, as discussões sobre as medidas a
serem tomadas começaram ainda no governo de José Sarney (1985-
1990), mas foi só em 1992, durante o governo de Fernando Collor
de Mello (1990-1992), que a área foi demarcada19. Com a participa-
ção da Polícia Federal (PF) e do Exército, pistas de pouso clandes-
tinas que permitiam a chegada de garimpeiros foram explodidas.
Mas, segundo o indigenista Sidney Possuelo, na época presidente da
Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), “a estratégia não
deu certo, porque as pistas se recompunham rapidamente e os garim-
peiros voltavam” (Apud RUPP, 24/1/2023).
Possuelo assumiu então os trabalhos, começando pelo mapea-
mento do número de garimpeiros presentes na região (entre 40
mil e 45 mil), que utilizavam cerca de mil balsas e promoveram a
contaminação geral dos rios com mercúrio. Em resposta, a FUNAI
passou a impedir a chegada de combustível e alimentos para os
garimpeiros, por meio do bloqueio do espaço aéreo pela Força Aérea
Brasileira (FAB) e do controle, pela PF, dos postos de abastecimento
das cidades próximas (RUPP, 24/1/2023). De acordo com Possuelo,

19 A Terra Indígena Yanomami, demarcada em 1992, abrange 96.650 k² de área dos estados
de Amazonas e Roraima. A população é calculada em 26 mil indígenas, divididos em 228
comunidades (NETO, 2/2/2023).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 261


Houve tiroteio, agentes da Funai mortos, policiais federais feri-
dos. Mas foi assim que tiramos praticamente todos os garimpeiros.
Ficou um resíduo de 1.200, que se espalharam pela selva, e era quase
impossível retirá-los, por causa da extensão do território (Apud
RUPP, 24/1/2023).
Durante a década de 1990, com o aumento das preocupações
da comunidade internacional em relação às questões ambientais, os
garimpeiros foram mantidos relativamente distantes da região. No
entanto, a retirada das medidas de proteção da área levou, com o
tempo, ao retorno gradativo dessas pessoas.
Com a crise mundial de 2007/2008 e a elevação do preço inter-
nacional do ouro, uma nova corrida pelo metal começou a se dese-
nhar. Mas foi razoavelmente contida por algumas ações da FUNAI
em parceria com a Polícia Ambiental e o Exército. Contudo, a partir
do golpe de 2016 e o progressivo desmonte das instituições volta-
das para a proteção ambiental, a corrida recrudesceu (MACHADO,
JABRA, SENRA, GONGORA, 2/2/2021).
Por outro lado, grandes empresas passaram a se interessar pela
possibilidade de obtenção de lucros com a mineração naquela região,
inclusive algumas dirigidas por facções criminosas, como o Primeiro
Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho, que têm interes-
ses ligados ao tráfico de drogas e ao garimpo. Conforme salientaram
Ana Maria Machado, Daniel Jabra, Estêvão Senra e Majol Gongora,

Na nova estrutura de exploração que prevalece desde o


final da década de 2010, o garimpo está longe de ser a mera
reunião de pessoas desesperadas em busca de uma alterna-
tiva econômica para a sua sobrevivência. (...) As investiga-
ções (...) têm demonstrado que a base do garimpo mudou,
sendo hoje uma atividade que demanda altos investimen-
tos e, portanto, é organizada por um grupo de empresários
regionais, com ramificações no restante do país e alhures.
Esses “investidores da ilegalidade” controlam a logística,
fornecem o maquinário utilizado na extração do ouro e
são responsáveis pelo abastecimento das minas com com-
bustível e alimentação. Os trabalhadores que operam esses

262 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


equipamentos, por sua vez, são remunerados com uma
pequena percentagem do metal encontrado e devem cus-
tear o seu transporte, tratamento de saúde e outras neces-
sidades. O efeito socioeconômico desse arranjo é o surgi-
mento de um grupo excepcionalmente rico, que abocanha
a maior parte do rendimento da atividade, em detrimento
de uma enorme massa de trabalhadores que se mantém
pobre (...) (MACHADO, JABRA, SENRA, GONGORA,
2/2/2021)..

Porém, muito antes do retorno do garimpo, o presidente Jair


Bolsonaro mostrou enorme interesse em liquidar a TIY, se possí-
vel, exterminar seus habitantes. Aliás, Bolsonaro jamais escondeu
sua admiração por garimpeiros, pois seu pai foi um dos milhares de
homens que se aventuraram em Serra Pelada, no Pará, na década de
1980 (MACHADO, JABRA, SENRA, GONGORA, 2/2/2021).
Conforme conta Lira Neto, em outubro de 1993, Bolsonaro,
então deputado federal em primeiro mandato, apresentou à Câmara
o projeto de decreto legislativo nº 365, pelo qual tentava tornar sem
efeito o decreto assinado por Fernando Collor no ano anterior.
No entanto, a proposta não foi levada à apreciação do plenário da
Câmara, acabando por ser arquivada ao final da legislatura, em
1995 (LIRA NETO, 24/1/2023).
Mas Bolsonaro não desistiu: reeleito como o terceiro deputado
federal mais votado do Brasil, em 1995 pediu o desarquivamento de
seu projeto, que recebeu parecer favorável do relator, deputado Elton
Rohnelt, que, na década de 1980, havia liderado a invasão das terras
dos Yanomamis por parte de 40 mil garimpeiros. Bolsonaro ainda
solicitou que o projeto tramitasse em regime de urgência, o que foi
acatado pelo presidente da Casa. Levado ao plenário, o pedido de
urgência foi rejeitado e o projeto acabou por ser novamente arqui-
vado (LIRA NETO, 24/1/2023).
Bolsonaro não se conformou e, ao ser eleito para o terceiro
mandato, pediu novamente o desarquivamento do projeto, que mais
uma vez arquivado. Em 2003, já no quarto mandato, Bolsonaro
insistiu e não teve sucesso. Por fim, em 2007, o projeto foi definiti-
vamente arquivado (LIRA NETO, 24/1/2023).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 263


Contudo, mesmo passados tantos anos, a ideia não lhe saiu da
cabeça. Eleito presidente da República, apresentou ao Congresso, em
2020, o projeto de lei nº 191, também assinado pelo Almirante Bento
Albuquerque, ministro das Minas e Energia, e por Sérgio Moro,
ministro da Justiça, pelo qual ficava autorizado o garimpo e ativida-
des do agronegócio em terras indígenas (LIRA NETO, 24/1/2023).
Embora o projeto não tenha avançado no Parlamento, a fisca-
lização sobre atividades ilegais nas terras indígenas foi totalmente
eliminada e o garimpo, estimulado. Provas disso encontram-se
nos dados sobre exportação de ouro extraído de Roraima: somente
entre setembro/2018 e junho/2019 o estado enviou à Índia 194 kg de
ouro, que foram extraídos, na maior parte, do território Yanomami
(MACHADO, JABRA, SENRA, GONGORA, 2/2/2021). Por outro
lado, diversos pedidos de ajuda enviados pelos indígenas foram sole-
nemente ignorados pelas autoridades responsáveis por sua proteção.
Somente entre abril e novembro de 2022, a FUNAI recebeu 36 aler-
tas (cerca de cinco por mês) sobre as péssimas condições de sobre-
vivência do povo Yanomami, os quais foram enviados pelos pró-
prios indígenas, por organizações internacionais e pelo Ministério
Público Federal (MPF). A ONU chegou a enviar um secretário de
Direitos Humanos à região – Jan Jarab -, que colheu relatos com
o objetivo de elaborar um documento a ser enviado à Defensoria
Pública da União (DPU) e à FUNAI. Mas absolutamente nada foi
feito (MORAES, 9/2/2023).
Na verdade e como se viu, a grande preocupação de Bolsonaro
era acabar com as reservas indígenas pelo Brasil, exterminando, se
necessário, toda a população. Para isso, empenhou-se pessoalmente
em conseguir a aprovação, no Supremo Tribunal Federal (STF), de
um novo marco temporal das terras indígenas, que prevê que os des-
cendentes dos povos originários só tenham direito à demarcação dos
territórios já ocupados quando da promulgação da Constituição de
1988. Segundo declarou em junho de 2022, diante de uma plateia de
empresários ruralistas, caso o novo marco temporal não seja apro-
vado, “teremos também uma nova área do tamanho da região Sul, e
uma possível região do tamanho do estado de São Paulo. Acabou a

264 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


economia brasileira do agronegócio! Acabou nossa garantia alimen-
tar, acabou o Brasil!” (FORTES, 21/1/2023).
O resultado todos conhecem. No dia 21 de janeiro de 2023,
em visita emergencial a Boa Vista, capital do estado de Roraima, o
presidente Lula, acompanhado de diversos ministros, pôde consta-
tar o horror em que está vivendo o povo das aldeias Yanomamis, a
ponto de, nos últimos 4 anos, cerca de 570 crianças com menos de
5 anos terem morrido em decorrência de desnutrição ou de doenças
tratáveis, como malária e verminoses. A estimativa é de que, atual-
mente, 6 de cada 10 crianças yanomamis estejam passando fome.
Conforme declarou o presidente Lula,

Mais que uma crise humanitária, o que vi em Roraima


foi um genocídio. Um crime premeditado contra os
Yanomami, cometido por um governo insensível ao sofri-
mento do povo brasileiro. Adultos com peso de crianças,
crianças morrendo por desnutrição, malária, diarreia e
outras doenças. (...) Além do descaso e do abandono por
parte do governo anterior, a principal causa do genocídio
é a invasão de 20 mil garimpeiros ilegais, cuja presença foi
incentivada pelo ex-presidente. Os garimpeiros envene-
nam os rios com mercúrio, causando destruição e morte
(Apud MILLER, 22/1/2023).

Evidentemente, isso não ocorre por acaso. Como se viu, a tra-


gédia foi, na verdade, resultado de um projeto de Bolsonaro que,
ainda em abril de 2018, quando era apenas pré-candidato à presi-
dência da República, declarou: “Índio já tem terra demais, vamos
tratá-los como seres humanos, tem índio tenente do Exército, presi-
dente da Bolívia20, não quer viver em um zoológico21”.
Não satisfeito, em 2020, no ápice da pandemia, e diante do
Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios

20 Referência a Evo Morales, ex-presidente da Bolívia.


21 FORTES, Leandro, 21/1/2023, op. cit..

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 265


Indígenas, aprovado pelo Congresso Nacional, Bolsonaro vetou
várias das medidas previstas, tais como: 1) obrigatoriedade de for-
necer acesso a água potável; 2) distribuição gratuita de materiais
de higiene, limpeza e desinfecção das aldeias; 3) ações para garan-
tir oferta emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva;
4) obrigatoriedade do governo federal em fornecer ventiladores
e máquinas de oxigenação sanguínea; 5) verba emergencial do
governo federal para a saúde indígena; 6) instalação de internet nas
aldeias; 7) distribuição de cestas básicas; e 8) obrigatoriedade de
facilitar acesso ao auxílio emergencial (FORTES, 22/1/2023).
Diante da catástrofe, representantes do novo governo decidi-
ram decretar calamidade pública na Terra Indígena Yanomami. O
Ministério da Saúde também decretou crise sanitária e humanitária
na região. Ao concluir a visita, Lula declarou:

Já ouvi que no Brasil há muita terra para poucos indígenas,


e que indígenas estão ocupando o território brasileiro. Mas
essas pessoas esquecem que em 1500 os povos originários
eram donos de todo o Brasil. Nós é que estamos ocupando
o que pertence aos primeiros habitantes do país. Não
haverá mais genocídios. Povos indígenas serão tratados
com dignidade. A humanidade tem uma dívida histórica
com os povos indígenas, que preservam o meio ambiente
e ajudam a conter os efeitos das mudanças climáticas. Essa
dívida será paga, em nome da sobrevivência do planeta
(Apud MILLER, 22/1/2023).

Como se vê, estamos diante de uma tragédia humanitária, pro-


movida deliberadamente por um governo chefiado por alguém que
decidiu exterminar os indígenas do território brasileiro. E conside-
rando ainda as 700 mil mortes por Covid-19, com a consequente
desarticulação de famílias inteiras em virtude do desaparecimento
do provedor, tem-se uma situação quase impensável em termos de
dor, sofrimento e fome.

266 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Considerações finais

Diante do exposto, verifica-se que o país encontra-se diante de


uma urgência trágica: oferecer alimentação saudável e suficiente a
125 milhões de indivíduos e procurar salvar os indígenas do exter-
mínio. E esta é a tarefa mais premente do novo governo, não apenas
por questões humanitárias, mas também porque a fome tem também
enorme potencial para provocar convulsão social, conforme adver-
tência feita por Josué de Castro na década de 1940 (CASTRO, 1957,
v. 1, p. 139-140).
E é exatamente essa perspectiva que levou José Graziano da
Silva, em entrevista à rede alemã Deutsche Welle (DW Brasil), e
reproduzida pelo Portal UOL, a alertar para a necessidade de serem
tomadas medidas urgentes, pois a fome chegou a uma “situação
explosiva”, e atingiu um patamar que “nunca se tinha visto” (UOL
NOTÍCIAS, 1/3/2022).
No entanto, José Graziano adverte que medidas emergenciais
para enfrentar o problema não serão suficientes, tendo em vista que
“o mais importante no programa de erradicação da fome é geração
de emprego e renda dentro de um processo de desenvolvimento eco-
nômico inclusivo, que distribua melhor a renda” (UOL NOTÍCIAS,
1/3/2022).
Ademais, e como salientado pela FAO, no relatório apresentado
em 2021 (FAO, 2021), é preciso também que se criem mecanismos
para que os sistemas alimentares nacionais resistam a perturbações
e a impactos negativos, como é o caso da pandemia de Covid-19, que
em 2020 afetou a segurança alimentar de um contingente calculado
entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas em todo o mundo, isto é,
161 milhões a mais do que em 2019 (FAO, 2021, p. V).
Portanto, para que o Brasil possa combater a fome e atingir
os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, é necessário
que sejam criados mecanismos de defesa de todo o sistema alimen-
tar nacional, de forma a que este resista não apenas a eventos impre-
visíveis (como é o caso da pandemia de Covid-19), mas também a
crises econômicas e políticas que, em função de interesses os mais

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 267


diversos, possam levar à rápida destruição de políticas e instrumen-
tos voltados para a eliminação da pobreza e para a garantia de uma
alimentação saudável e suficiente para toda a população.
Assim, é urgente que a sociedade brasileira reflita e se orga-
nize para enfrentar o desmonte do Estado brasileiro, a liquidação
das políticas públicas, a destruição da economia, o descalabro na
condução da pandemia e a tentativa de extermínio de parte de sua
população, para que consigamos construir um país mais desenvol-
vido e menos desigual.

Referências bibliográficas:
A conta chegou... para os pobres. O governo Temer abandona a política de valorização do salário
mínimo. Instituto Humanitas Unisinos, 12/1/2017 (disponível em: <https://www.ihu.unisinos.
br/78-noticias/563890-a-conta-chegou-para-os-pobres-o-governo-temer-abandona-a-politica-
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AGÊNCIA BRASIL. IBGE: inflação oficial fecha 2021 com alta de 10,06%, 11/1/2022
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Promulgada emenda constitucional do teto de gastos públicos. Senado Notícias, 15/12/2016


(disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/15/promulgada-
emenda-constitucional-do-teto-de-gastos>, acesso em: 22/1/2023).

RUPP, Isadora. Como o garimpo foi expulso da terra Yanomami em 1992. Nexo, 24/1/2023
(disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/01/24/Como-o-garimpo-foi-
expulso-da-terra-Yanomami-em-1992>, acesso em: 7/2/2023).

SILVA, Tânia Elias Magno da. Josué de Castro: para uma poética da fome. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, 1998. Tese de Doutoramento.

SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe. Rio de Janeiro: Leya, 2016.

SOUZA, Vinícius. Quem procura osso é cachorro. A fome bolsonarista humilha a população.
Jornalistas Livres, 23/7/2021 (disponível em: <jornalistaslivres.org/quem-procura-osso-e-
cachorro-a-fome-bolsonarista-humilha-a-populacao/>, acesso em: 3/8/2021).

TAVARES, Camilo. Histórias da fome no Brasil. MPC Filmes/Instituto Cultura em Movimento,


2017 (Documentário) (disponível em: <youtube.com/watch?v=k-dnlpn1erQ>, acesso em:
11/4/2022).

VIEIRA, Ezequiel. Desemprego: Brasil tem 12 milhões de pessoas em busca de trabalho, diz
IBGE. Diário do Centro do Mundo, 29/4/2022 (disponível em: <diariodocentrodomundo.com.
br/desemprego-brasil-tem-12-milhoes-de-pessoas-em-busca-de-trabalho-diz-ibge/, acesso em
29/4/2022).

VIEIRA, Ezequiel. Prévia da inflação é a maior para abril em 27 anos, aponta IBGE. Diário
do Centro do Mundo, 27/4/2022 (disponível em: <diariodocentrodomundo.com.br/previa-da-
inflacao-e-a-maior-para-abril-em-27-anos-aponta-ibge/>, acesso em: 27/4/2022).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 275


CAPÍTULO 12

O SENTIMENTO PESSOAL
DO DES TERRO: A SPEC TOS
PESSOAIS DA CONDIÇ ÃO DE
REFUGIADO E SUA PROTEÇ ÃO

João Alberto Alves Amorim1

“Eu ia triste, triste, com a tristeza discreta dos fatigados,


com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
Tão preso aos lugares de onde o trem já me afastara,
Estradas arrastadas, que talvez eu não estivesse todo inteiro
presente no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
E era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
Que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava,
Puxando com esforço vagões quase vazios, com almas
cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas, e o com-
boio seguia,

1 Livre-Docente em Direito Internacional pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI)


da Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em Relações Internacionais pelo
IRI/USP. Doutor e mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP.
Professor de Direito Internacional da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, do Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR) na UNIFESP.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 277


Cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha, o
esforço maior, as montanhas mais duras, como sabem ser
duros os caminhos,
Pelos quais a gente vai, só pensando na volta…”2

Introdução

Muito se tem falado recentemente sobre as sucessivas crises de


refugiados ocasionadas principalmente nas fronteiras dos países de
melhor bem-estar social.
Tanto as crises humanitárias e conflitos armados de maior
evidência midiática – como a quase onipresente guerra em terri-
tório ucraniano3 - quanto as crises humanitárias intencionalmente
escondidas dos olhos do mundo pelos mais diferentes interesses
geopolíticos – como as crises humanitárias gravíssimas que assolam
as partes mais esquecidas do planeta4 – produzem anualmente um

2 Trecho de Desterro, de João Guimarães Rosa. Publicado no livro “Magma”. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 60.
3 Por onipresente me refiro, aqui, ao volume de informações e coberturas midiáticas diá-
rias, principalmente em relação aos demais conflitos armados em atividade no mundo
atualmente.
4 De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), as
principais emergências humanitárias atualmente no mundo, além da guerra na Ucrânia,
estão localizadas no Afeganistão (“Metade da população do Afeganistão sofre de fome
aguda. Cerca de 3,5 milhões de pessoas estão deslocadas devido ao conflito e muitas crian-
ças estão fora da escola. O sistema de saúde está em colapso, os direitos fundamentais
de mulheres e meninas estão ameaçados, agricultores e pastores estão lutando em meio
à crise climática e a economia está em queda livre”), América Central (“O número de
refugiados e solicitantes de asilo do norte da América Central disparou nos últimos cinco
anos. O agravamento do crime e da violência alimentados por cartéis de drogas e gangues
é responsável por grande parte do aumento, junto com instituições frágeis e crescentes
desigualdades. Na Nicarágua, a perseguição política e as violações dos direitos humanos
têm causado um novo deslocamento em grande escala.”), Burundi (“O povo do Burundi
enfrenta uma crise humanitária marcada por declínio econômico, insegurança alimentar
extrema e uma epidemia de malária. Embora o pior da violência tenha diminuído, a situ-
ação continua frágil. Questões políticas permanecem sem resolução e os deslocamentos
dentro e para fora do país continuam acontecendo”), Etiópia (“Uma crise humanitária

278 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


em grande escala está se desenrolando à medida que milhares de refugiados fogem dos
combates na região de Tigré, na Etiópia, em busca de segurança. Muitos são mulheres e
crianças. A maioria saiu quase sem pertences e chegou ao Sudão exausta depois de cami-
nhar longas distâncias”), Iêmen (“Iêmen enfrenta a pior crise humanitária do mundo.
Desde 2015, milhões de pessoas são forçados a fugir de suas casas para escapar de um
conflito devastador. (...)Em 2015, um conflito armado irrompeu no Iêmen, um dos países
mais pobres do Oriente Médio. A crise deixou 80% da população em extrema vulnera-
bilidade, interrompeu milhares de vidas e provocou o deslocamento de 3,6 milhões de
iemenitas dentro de seu próprio país”), Iraque (“Milhões de iraquianos foram forçados a
abandonar suas casas depois de décadas de conflito e violência”), Mianmar (“O número
de refugiados Rohingya que estão deixando Mianmar por conta da violência continua
crescendo a uma velocidade surpreendente. Eles caminham durante dias, atravessam sel-
vas, montanhas, ou se arriscam em viagens marítimas perigosas no Golfo de Bengala.
Chegam exaustos, famintos, doentes e necessitados de proteção internacional e assistência
humanitária”), Nigéria (“A insurgência do Boko Haram já deslocou mais de 2,4 milhões
de pessoas na bacia do Lago Chade. Embora os militares nigerianos tenham recuperado o
controle em partes do nordeste do país, civis na Nigéria, Camarões, Chade e Níger conti-
nuam sendo afetados por violações graves de direitos humanos, violência generalizada de
gênero e sexo, recrutamento forçado e atentados suicidas.”), República Centro-Africana
(“A República Centro-Africana (CAR) é um dos países mais pobres do mundo e está entre
as 10 crises humanitárias mais subnotificadas do mundo. Há anos o país está agitado, mas,
desde maio de 2017, novos confrontos entre grupos armados têm causado crescente sofri-
mento, mortes e destruição de propriedades. A violência e a insegurança após as eleições
gerais de dezembro de 2020 forçaram dezenas de milhares de pessoas a fugir”), República
Democrática do Congo (“Novas ondas de agitação na República Democrática do Congo
deslocaram cerca de 5 milhões de pessoas entre 2017 e 2019. Centenas de milhares mais
fugiram para Angola, Zâmbia e outros países vizinhos. As pessoas estão fugindo de suas
casas em um ritmo preocupante, à medida que o agravamento da violência destrói vidas
e meios de subsistência em todo o país”), região do Sahel (“O Sahel está enfrentando uma
das crises de deslocamento que mais cresce no mundo – e uma das mais esquecidas. A
violência intensa e de grupos armados contra civis forçou mais de 2,9 milhões de pessoas
a se deslocar em toda a região, tanto dentro de alguns países como através das fronteiras.
A deterioração da emergência humanitária e de proteção é agora agravada pelo impacto
da COVID-19, combinado com os desafios pré-existentes enfrentados pela região, incluin-
do mudança climática e insegurança alimentar”), Síria (“Após 11 anos de crise, a vida é
mais difícil do que nunca para os deslocados sírios. Desde 2011, milhões de sírios foram
forçados a fugir de suas casas e buscaram segurança em países como o Líbano, Turquia,
Jordânia e além. Enquanto a crise continua, a esperança está se esvaindo. Com o impacto
devastador da pandemia e o aumento da pobreza, todos os dias é uma emergência para
os sírios forçados a fugir”), Sudão do Sul (“Desde dezembro de 2013, o conflito brutal no
Sudão do Sul custou milhares de vidas e expulsou quase quatro milhões de pessoas de suas
casas. Embora muitos permaneçam na condição de deslocados internos, mais de dois mi-
lhões de pessoas foram forçadas a fugir para países vizinhos em uma tentativa desesperada
de buscar segurança”) e Venezuela (“As pessoas continuam deixando a Venezuela para
escapar da violência, da insegurança e das ameaças, assim como da falta de alimentos,

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 279


número cada vez maior de deslocados, montante que no final de
2021 alcançou o total de 89,3 milhões de seres humanos. Destes, 27,1
milhões são refugiados.
Neste artigo, abordarei brevemente os impactos emocionais do
deslocamento forçado, ponto crucial a ser cuidado quando se trata
de acolher refugiados e deslocados internos, e de que modo essa
questão está colocada no ordenamento brasileiro.

A experiência pessoal do desterro.

“O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas


é terrível de experienciar”. É com essa frase forte, e de uma reflexão
profundamente dolorosa, que Edward Said começa seu excelente
texto Reflexões sobre o Exílio (SAID, 2003, p.46-60).
O exílio é a experiência do não-lugar, do não-pertencimento,
do desenraizamento. É o convívio cotidiano com uma profunda
sensação de exclusão.
Ao refletir sobre o sentimento e a experiência do exílio, Said
volta seu excepcional poder analítico e seu olhar único para a con-
dição emocional, afetiva, social e jurídica daqueles que foram obri-
gados a partir, a abandonar, a abandonar as referências, relações,
afetos, significados e significantes que transformavam o seu espaço
de vida em lugar.
O espaço – ou seja, aquele pedaço da superfície da terra onde
se encontra a pessoa – transforma-se em lugar à medida que adquire
definição e significado (TUAN, 1983, p.151). Quando o espaço nos é
inteiramente familiar, torna-se lugar (TUAN, 1983, p. 83).
O lugar de cada um pode variar em forma, dimensão e subs-
tância, pode decorrer da das relações afetivas, culturais e familiares

remédios e serviços essenciais. Com mais de 5 milhões de venezuelanos vivendo no exte-


rior, a grande maioria em países da América Latina e do Caribe, esta se tornou uma das
maiores crises de deslocamento do mundo”). Informações e citações retiradas de https://
www.acnur.org/portugues/#, acesso em 20.09.2022.

280 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


com um espaço específico da superfície do planeta, de um imóvel,
de uma paisagem, de um abraço.
É o sentimento emergente das emoções e afetos, desenvolvi-
dos pelo indivíduo com determinada localidade, que lhe transmite
o conforto, a segurança, a paz e a felicidade que converte aquele
espaço em lugar.
É por isso que o exílio é uma dor terrível de experimentar,
como aponta Edward Said:

Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar


natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial
jamais pode ser superada. E, embora seja verdade que a
literatura e a história contêm episódios heroicos, românti-
cos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não
são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da
separação. As realizações do exílio são permanentemente
minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre.
(...) A moderna cultura ocidental é, em larga medida, obra
de exilados, emigrantes, refugiados. Nos Estados Unidos,
o pensamento acadêmico, intelectual e estético é o que é
hoje graças aos refugiados do fascismo, do comunismo e de
outros regimes dados a oprimir e expulsar os dissidentes.
(SAID, 2003, p. 46-60)

Ao longo da vida, construímos nossa personalidade através da


nossa herança cultural, de nossas escolhas, conscientes e inconscien-
tes, de nossos sucessos e fracassos, das dores e alegrias, dos afetos e
relações dos mais diversos. E o fazemos, quase que sem nos darmos
conta, referenciados no espaço físico que nos cerca.
E o espaço também se relaciona conosco, impactando nossa
existência, nossa formação emocional, afetiva e valorativa, e sendo
impactado e ressignificado cotidianamente por nossa existência.
De acordo com Yi-Fu Tuan, as experiências íntimas jazem
enterradas no mais profundo do nosso ser, de modo que não apenas
carecemos de palavras para dar-lhes forma, mas frequentemente
não estamos sequer conscientes delas (TUAN, 1983, p. 151-153).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 281


Os animais, incluindo os seres humanos, descansam em uma
localidade porque ela atende a certas necessidades biológicas. A
pausa permite que uma localidade se torne um centro de reconhe-
cido valor (TUAN, 1983, p. 151-153).
Obviamente, o lugar não é o mesmo, nem possui relações valo-
rativas idênticas para todos os seres humanos. Entretanto, à medida
que ampliamos o foco sobre o espaço que se transformou em lugar
para cada determinado indivíduo, percebemos que a trama de valo-
res e de afetos tecida por este sobre aquele espaço vai se tornando
maior, mais firme e estreita.
Assim é que, quando consideramos a família, a casa, o bairro, a
cidade, o país – para ficarmos apenas num nível de relações afetivas
que se referem diretamente à temática deste texto e deste livro –,
começamos a compreender a ferida que se abre na personalidade do
indivíduo quando se viu forçado a abandonar seu lugar e ficar con-
denado a nunca mais poder regressar àquela referência sentimental
de pausa e aconchego emocional.
O espaço que se estende sobre um reticulado de pontos cardeais
torna nítida a ideia de lugar, porém não transforma nenhuma deter-
minada localidade geográfica no lugar (TUAN, 1983, p. 151-153).
O migrante tem sempre em si a falta, a saudade. Tanto a sau-
dade do que deixou, quanto uma certa saudade do por vir, do outro
que terá de se tornar para viver na nova vida, no novo espaço, na
construção de um novo lugar.
Se esse sentimento é doloroso para aquele que escolheu, livre-
mente, se deslocar a outro espaço e tentar refazer dali seu lugar,
muito pior é para aquele migrante que não teve escolha, que foi for-
çado a abandonar suas referências vitais e seu lugar, para quem o
exílio foi imposto.
E com uma agravante absolutamente perversa: o nostálgico
migrante voluntário pode, quando desejar, voltar a visitar seu lugar,
reconectar-se, ainda que momentaneamente, a seus afetos, recarre-
gar-se das relações com seu lugar. O migrante forçado, não.
A migração forçada carrega em si a pesada carga emocional de
arrancar o indivíduo de seu lugar, desenraizá-lo de forma violenta e

282 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


impor-lhe a perda definitiva de suas referências e significantes. Essa
é a principal dor que carrega – das muitas que leva em sua bagagem
–, e certamente a mais difícil de curar. Tal condição é o centro de sua
vulnerabilidade individual, frequentemente agravada pelas demais
vulnerabilidades que o alcançam em decorrência de sua condição
de migrante forçado
Como muito bem explicam Miriam Debieux Rosa, Sandra
Lorena Berta, Taeco Toma e Sandra Alencar:

Essa condição de imigrante e de refugiado propicia, sem


dúvida – e é o que observamos –, toda sorte de manipula-
ções e abusos. A questão política se destaca, pois as pessoas
que estão em situação irregular, não documentadas, são
levadas a agir respondendo à urgência. Pressionado, desen-
raizado, o sujeito deixa-se emaranhar nas garras do instan-
tâneo, do reagir em vez do agir. Então o perdido torna-se
um obstáculo e cristaliza-se, seja numa emissão de docu-
mentos, em empregos precários, casamentos arranjados,
em filhos gerados para legalização, estratégias que supos-
tamente decidiriam a posição do sujeito. No caso do refu-
giado, a emissão de um documento situa-o na condição
de ‘protegido’, o que nem sempre corresponde à realidade
do fato, pois, na maioria das vezes, o país o recebe, mas
não lhe oferece meios para a sobrevivência econômica. (...)
Ao falarmos de deslocamento territorial, diferenciamos
os processos por sua dimensão de escolha. Embora mais
óbvio no caso dos exilados e refugiados, reconhecemos a
complexidade da situação na escolha ‘forçada’ dos imi-
grantes e migrantes que aliam os movimentos do sujeito
à expulsão política e social. Muitos que migram buscam,
de certa forma, ampliar horizontes, conquistas, promover
deslocamentos psíquicos ou mesmo romper apegos melan-
cólicos a estilos de vida estagnados e superados. Mas são
nas migrações forçadas pela violência e miséria, como
no caso principalmente dos refugiados ou dos migrantes,
que a dimensão do [que foi] perdido e a dificuldade de se
localizar no mundo tomam um lugar primordial e podem

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 283


promover efeitos de desenraizamento ou de desterritoriali-
zação. (ROSA et al., 2009, p.497-511)

Um misto de esperança e melancolia, de medo e desejo, de


necessidade de acolhimento, de luto pelo que foi perdido, de dor
pelo trauma e de necessidade de reconstrução do mínimo existen-
cial. O sentimento do exílio é, de fato, terrível de experimentar.
Filho do século XX, o regime internacional de proteção dos
refugiados, sobretudo em sua composição atual, testemunhou ao
longo das últimas sete décadas o crescimento exponencial e pratica-
mente ininterrupto do volume de pessoas forçadas a migrar, o que
nos insere, nas palavras de Edward Said, na era do refugiado, da
migração em massa, da pessoa deslocada, principalmente em vir-
tude da guerra moderna, do imperialismo e das ambições quase teo-
lógicas dos governantes totalitários (SAID, 2003, p. 46-60).
De acordo com Said:

Paris pode ser a capital famosa dos exilados cosmopolitas,


mas é também uma cidade em que homens e mulheres
desconhecidos passaram anos de solidão miserável: vie-
tnamitas, argelinos, cambojanos, libaneses, senegaleses,
peruanos. É preciso pensar também em Cairo, Beirute,
Madagascar, Bangkok, Cidade do México. À medida que
nos afastamos do mundo do Atlântico, a cena se torna mais
terrível e lastimável: multidões sem esperança, a miséria
das pessoas ‘sem documentos’ subitamente perdidas, sem
uma história para contar. Para refletir sobre muçulmanos
exilados da Índia, haitianos nos Estados Unidos, habitan-
tes de Bikini na Oceania, ou palestinos em todo o mundo
árabe, é preciso deixar o modesto refúgio proporcionado
pela subjetividade e apelar para a abstração da política de
massas. Negociações, guerras de libertação nacional, gente
arrancada de suas casas e levada às cutucadas, de ônibus ou
a pé, para enclaves em outras regiões: o que essas experiên-
cias significam? Não são elas, quase que por essência, irre-
cuperáveis? (...) O páthos do exílio está na perda de contato
com a solidez e a satisfação da terra: voltar para o lar está
fora de questão. (SAID, 2003, p.46-60)

284 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


No exílio, os sujeitos não conseguem fazer uma escolha livre
e própria, já que se trata de uma busca desesperada por uma terra
— qualquer uma — que os acolha (WEISSMAN, 2017, p. 185-206).
Para Weissman:

Na migração, a grande perda remete aos referentes do con-


texto e da cultura que dão sustentação e apoio a aqueles que
fazem parte do social. O migrante perde essas referências
e começa um comprido périplo de busca entre a cultura,
a língua e os referentes do lugar de origem e a novidade
dos novos apoios sociais que a migração oferece, sem que
isso seja garantia de que o sujeito conseguirá se estruturar
como um sujeito intercultural inserido e atravessado pelas
diversas culturas que o marcaram. (...) Na mudança de
país, perdem-se os significados culturais que terão de ser
ressignificados para corresponder com seu novo entorno,
com seus vínculos e consigo mesmo. (...) A experiência
de exílio é vivida como traumática, na medida em que os
sujeitos não têm a opção de fazer uma escolha subjetiva do
país no qual vão se exilar e, simplesmente, apelam a qual-
quer terra que os acolha, na fuga desesperada das situações
de violência vividas em seu país de origem, tanto de per-
seguição política, quanto religiosa, racial ou econômica.
Por outro lado, nessa fuga ou pedido de exílio do país de
origem, os sujeitos se deparam com a impossibilidade de
regresso – e isso marca uma posição subjetiva traumática,
que tem que ser processada internamente. Esses seriam os
elementos fundamentais que colocam o exílio no limiar de
situação traumática que deve ser elaborada. (WEISSMAN,
2017, p. 185-206)

O exílio, enquanto experiência, é o mais cruel dos desterros. É


o desterro não apenas do lugar, mas, principalmente, das relações,
das referências, dos afetos, da possibilidade de sentir-se no mundo,
com toda a carga de emoções e significantes que esta expressão car-
rega. É ser desenraizado de forma mais violenta e cruel.
Nicholas de Genova observa que:

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 285


Estrangeiros deportáveis são perversamente sujeitos a uma
miríade de condições de degradação social, mundialmente.
Isso é verdade tanto em relação a migrantes ‘meramente
econômicos’ buscando emprego quanto para refugiados
buscando abrigo e alívio para uma variedade de calami-
dades naturais, políticas e sociais, ou ainda para migrantes
‘ilegais’, ou para o refugo humano empobrecido por desas-
tres ‘estrangeiros’, implorando clemência perante a piedade
relutante de burocracias de bem-estar social cada vez mais
austeras. (DE GENOVA, 2013, p.1180-1198)

No século XXI, a era do refugiado não dá qualquer sinal de que


esteja caminhando para o fim. Ao contrário. As crises humanitárias
se multiplicam à medida que conflitos armados, disputas por recur-
sos naturais e a desigualdade socioeconômica, alimentados pela
persistência da mentalidade de subordinação do planeta aos desejos
e caprichos de poder e ganância de uns poucos países – os mesmos
que há pelo menos cinco séculos se engalfinham e se revezam na
busca do controle das condições de vida e de existência da popula-
ção humana.
Enrica Rigo coloca o migrante [forçado] como um sujeito pós-
-colonial, tanto quanto um ‘legado da História colonial’ quanto
porque os migrantes contestam radicalmente o “lugar” reservado
a eles pelas fronteiras políticas e jurídicas. (RIGO, 2005, apud
FERRIER, 2011, p. 3-22)
A perspectiva sombria em relação ao agravamento e multipli-
cidade das crises de deslocamentos forçados em massa ganha tons
ainda mais dramáticos à medida que o planeta começa a sentir de
forma indubitável os efeitos nocivos das mudanças do clima e do
esgotamento dos serviços e sistemas ambientais.
De Genova menciona que:

Os regimes [jurídicos nacionais] de refúgio desqualifi-


cam desproporcionalmente os solicitantes de refúgio, e
os convertem em migrantes ‘ilegais’ e deportáveis. Todos
esses oficialmente ‘indesejáveis’ ou ‘abandonados’ estran-
geiros são estigmatizados por alegações de oportunismo,

286 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


falsidade e demérito. A denunciação, humilhação e
requinte compulsivos aperfeiçoados pela ausência de
direitos dos ‘estrangeiros’ deportáveis, alimenta ainda
mais a lógica das desigualdades jurídicas entre nacionais e
estrangeiros, como categorias diferentes que devem seguir
a lógica racial. Esta ignomínia social deve ser compreen-
dida como parte de uma ampla produção sociopolítica de
‘ilegalidade’ dos migrantes. Construções discursivas que
ressaltam e propagam a noção de ‘ilegalidade’ dos migran-
tes, mais do que meras ‘consequências’ de uma (anterior)
violação persistente, servem como condicionantes reais
da possibilidade de amplos procedimentos sociopolíticos
que produzem e sustentam essa ‘ilegalidade’. A constru-
ção desses discursos deve ser entendida como complexos
de linguagem e imagem, de textos e subtextos retóricos,
assim como como a gramática visual que ressalta e amplia
a iconografia de figuras particulares fetichizadas da ‘imi-
gração ilegal’. Essas imagens e discursos abastecem a lógica
do que eu anteriormente me referi como o ‘Espetáculo da
Fronteira’, um espetáculo de aplicação da lei ‘na’ fronteira,
onde os migrantes ‘ilegais’ são apresentados como espeta-
cularmente visíveis. (DE GENOVA, 2013, p.1180-1198)

Assim, fazer a opção política de acolher os exilados do bem-


-estar socioeconômico, os vulneráveis, os deslocados climáticos, os
refugiados, não é uma simples ação de reconhecimento jurídico de
uma condição pessoal, ou de concessão de documentos.
Não que estas questões não sejam relevantes – são fundamen-
tais –, mas compõem uma obrigação moral muito maior por parte
dos Estados e de suas respectivas sociedades: acolher no sentido mais
amplo, proporcionar não apenas condições jurídicas de exercício de
direitos e de possibilidade econômica de reconstrução da vida e de
inserção no novo contexto social, mas, principalmente, desenvolver
ações para que essa inserção seja o mais rápida, humana e intercul-
tural possível, de modo a permitir a viabilização não apenas da vida
socioeconômica mas, sobretudo, o desenvolvimento de novos laços
de afeto e enraizamento, de transformação do novo espaço em lugar,
de modo a atenuar as feridas emocionais do exílio.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 287


E é nesse aspecto que quero me referir ao Brasil e à Lei
n.°7464/97, sua Lei de Refúgio, e a alguns breves aspectos da Lei
n.°13.445/2017, a Lei de Migração.

A Lei 9474/97 e a questão do acolhimento.

O Brasil tem um sistema de acolhimento e reconhecimento da


condição de refugiado que é referência mundial5.
Além de garantir o direito ao asilo como princípio basilar de
suas relações internacionais, constitucionalmente assegurado6, e de
ter a dignidade da pessoa humana e a cidadania, como fundamen-
tos de sua república7, ser signatário e membro originário tanto da
Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, de
1.951, de seu Protocolo Adicional, de 1967, bem como dos princi-
pais tratados e convenções globais e regionais de direitos humanos,
o país conta em seu ordenamento jurídico com uma lei específica
para a regulamentação da aplicação do Estatuto dos Refugiados: a
Lei 9.474/97.
O ordenamento brasileiro adota uma visão conceitual mais
ampla, em relação a quem pode ser considerado refugiado, agre-
gando à definição convencional (da Convenção de 1.951 e de seu
Protocolo Adicional de 1.967) uma acepção mais ampla – relacio-
nada à situação de grave e generalizada violação de direitos huma-
nos – estabelecida pela Declaração de Cartagena, de 1984, bem como
estabelece procedimento administrativo específico para a solicitação
e o reconhecimento da condição de refugiado no país, e conta com

5 Entretanto, setores altamente xenófobos, que sempre estiveram presentes na so-


ciedade brasileira, dado às circunstâncias políticas atuais, sentem-se cada vez
mais confortáveis em revelar e tentar impor suas posições, no sentido de que o
Brasil destrua integralmente sua posição de país receptor de refugiados e demais
migrantes.
6 Artigo 4.°, X, da Constituição Federal.
7 Artigo 1.°, III, da Constituição Federal.

288 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


um órgão governamental – o Comitê Nacional para os Refugiados
(CONARE) – para cuidar especificamente desta questão.
O país também ganhou recentemente uma nova lei de migra-
ção, a lei n.º13.445/2017, que afirma, como princípios e diretrizes da
política migratória brasileira, dentre outros, a universalidade, indi-
visibilidade e interdependência dos direitos humanos (art. 3º, I), a
acolhida humanitária (art. 3º, VI), o fortalecimento da integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação
de pessoas (art. 3º, XIV) e a cooperação internacional com Estados
de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a
fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante
(art. 3º, XV).
O art. 45, parágrafo único, da lei de migração, assegura ainda
que ninguém será impedido de ingressar no país por motivo de raça,
religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião polí-
tica, reconhecendo e dando plena efetividade e garantia ao direito
fundamental à migração.
Como decorrência teleológica das normas constitucionais
brasileiras, bem como dos tratados e convenções promulgados no
ordenamento nacional – a cujos direitos fundamentais preconiza-
dos, a Constituição Federal, no §2.º, do artigo 5.º, confere, desde sua
promulgação, status de cláusula pétrea8 –, a garantia e a defesa dos
direitos humanos, dentre os quais o direito a migrar e o direito ao
asilo, estão expressamente estabelecidos e garantidos ao longo de
toda a legislação migratória nacional vigente, e devem pautar, obri-
gatoriamente, tanto a ação dos órgãos governamentais quanto, em
respeito à garantia de eficácia horizontal dos direitos humanos,
principalmente, nos atos da sociedade como um todo.
O Brasil adota a opção normativa clara e inequívoca de prio-
rizar e assegurar o acolhimento e os direitos básicos de toda e
qualquer pessoa que sustente estar na condição de refugiado e, em

8 Combinado com o artigo art. 60, § 4.°, IV, da Constituição Federal.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 289


função disso, não impõe – nem poderia, para ser coerente – qual-
quer óbice ao exercício pleno do direito de petição em relação ao
reconhecimento da condição de refugiado.
Além disso, tendo estabelecido um procedimento adminis-
trativo específico, feito através de órgão competente e com base em
normas claras, a facilidade de solicitação e reconhecimento da con-
dição de refugiado, e a garantia dos direitos fundamentais do soli-
citante em território nacional, mesmo antes de ter efetivada a sua
solicitação, não implicam em reconhecimento imediato, mas, sim,
que o país prefere acolher e garantir direitos em primeiro lugar, para
depois analisar e decidir sobre a solicitação.
Como o cerne da questão do refúgio é a proteção da dignidade
da pessoa humana, através da proteção do direito à vida e às liberda-
des fundamentais, não cabe qualquer juízo de valor ou gradação na
proteção concedida, seja por parte dos governos dos Estados parte
das normas internacionais, seja de qualquer pessoa ou autoridade
pública diretamente relacionada com seu trato cotidiano.
Além disso, a partir da solicitação de refúgio ao Brasil, a lei
brasileira reconhece ao solicitante, além do direito de estada regular
e de portar documento de identidade válido no país, todos os direi-
tos fundamentais reconhecidos aos estrangeiros residentes no país,
tais como a liberdade de locomoção no território nacional, direito à
saúde, direito à segurança e à inviolabilidade física, direito à invio-
labilidade domiciliar, direito à educação, direito ao trabalho, direito
à previdência e à assistência social, dentre outros.
No Brasil, todo e qualquer estrangeiro está sujeito aos direitos
e deveres impostos pelo ordenamento jurídico, nos limites determi-
nados por sua condição migratória, por seu estatuto pessoal e pelas
normas de ordem pública.
A lei de refúgio reforça a inclusão dos refugiados a essa regra,
ao estabelecer que o refugiado gozará de direitos e estará sujeito aos
deveres dos estrangeiros no Brasil9.

9 Art. 5.°.

290 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A política migratória brasileira estabelece a garantia plena de
todos os direitos previstos em lei ao imigrante – aí incluídos os refu-
giados e solicitantes de refúgio –, e proíbe que as autoridades nacio-
nais demandem provas documentais impossíveis ou descabidas, que
dificultem ou impeçam o exercício de direitos pelo migrante10.
Especificamente em relação aos refugiados e solicitantes de
refúgio, a lei n.°9.474/97 determina que, no exercício de seus direitos
e deveres, a condição atípica dos refugiados deve ser levada em con-
sideração, quando da necessidade da apresentação de documentos
emitidos por seus respectivos países de origem, ou por suas repre-
sentações diplomáticas e consulares.
Isso se justifica porque, no mais das vezes, o solicitante de refú-
gio, ou o refugiado reconhecido, não pode (ou não quer) contar com
os serviços diplomáticos de seu país, em virtude justamente do fun-
dado temor de perseguição11.
É proibido negar visto ou autorização de residência, ou impe-
dir o ingresso ao país por motivos de etnia, religião, nacionalidade,
pertencimento a grupo social ou opinião política.
A Lei de Migração determina, como um dos elementos cen-
trais da política migratória brasileira – decorrente do protagonismo
dos direitos humanos, tanto como eixo transversal das disposições
da Constituição Federal quanto como resultado dos princípios e
diretrizes da própria política pública relacionada a migrantes –, a
garantia, em todo o território nacional, em condição de igualdade
com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, em obediência ao preceito
constitucional de igual conteúdo, e que garante aos migrantes todos

10 De acordo com a lei de migração e seu regulamento, os órgãos da Administração Pública


Federal devem rever seus procedimentos e normas internas, de modo a se adequar à ob-
servância integral desta regra de desburocratização
11 Elemento central da condição de refugiado. O impedimento, voluntário ou não, de se so-
correr da proteção diplomática de seu respectivo país de nacionalidade, em virtude jus-
tamente do fundado temor de perseguição, é componente da definição convencional de
refugiado, de acordo com a Convenção de 1.951.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 291


os demais direitos fundamentais aos quais a nossa norma superior
não confira exclusividade de gozo a brasileiros natos..
Além disso, a Lei de Migração deixa expresso o reconheci-
mento aos migrantes dos seguintes direitos:
• Direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos;
• Direito à liberdade de circulação em território nacional;
• Direito à reunião familiar, com seu cônjuge ou compa-
nheiro e seus filhos, familiares e dependentes;
• Medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e
de violações de direitos;
• Direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e
economias pessoais a outro país, observada a legislação
aplicável;
• Direito de reunião, para fins pacíficos;
• Direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos;
• Acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e
à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação
em razão da nacionalidade e da condição migratória;
• Amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gra-
tuita, aos que comprovarem insuficiência de recursos;
• Direito à educação pública, vedada a discriminação em
razão da nacionalidade e da condição migratória;
• Garantia de cumprimento de obrigações legais e contra-
tuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção
ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionali-
dade e da condição migratória;
• Direito de acesso à informação, e garantia de confidencia-
lidade quanto aos seus dados pessoais12;
• Direito a abertura de conta bancária13;

12 De acordo com a Lei de Acesso à Informação (Lei n.°12.527/2.011)


13 De acordo com o ACNUR: “Refugiados e solicitantes de refúgio podem abrir contas
bancárias, tendo em vista que o Protocolo Provisório e a Carteira de Registro Nacional
Migratório (antigo Registro Nacional de Estrangeiro – RNE) são documentos válidos no
país. Esse direito é assegurado expressamente pela Lei de Migração, nº 13445/2017: ‘Art.
4º – Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os

292 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


• Direito de sair, de permanecer e de reingressar em territó-
rio nacional, mesmo enquanto pendente pedido de reco-
nhecimento da com dição de refugiado;
• Direito de ser informado sobre as garantias que lhe são
asseguradas para fins de regularização migratória.
Esses direitos e garantias devem ser exercidos com base nos
princípios, valores, objetivos e determinações constitucionais brasi-
leiros, independentemente da situação migratória do solicitante de
refúgio, bem como de acordo com o estabelecido nos tratados e con-
venções de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.
Assim, é inegável que a opção brasileira é a de acolher através
da garantia do reconhecimento e exercício de direitos fundamen-
tais, primeiro passo para que o migrante, em especial o refugiado,
possa iniciar com tranquilidade e segurança seu processo de inser-
ção social e, assim, garantir a reconstrução de sua vida e de seus
afetos em segurança.
Ainda que os desafios socioeconômicos enfrentados pelos
migrantes sejam os mesmos aos quais se encontra submetida a

nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-


priedade, bem como são assegurados: (…) XIV – direito a abertura de conta bancária (…)’.
Além da Carteira ou protocolo, a documentação necessária também inclui a apresentação
do CPF e uma Declaração ou Atestado de Residência (por exemplo, conta de luz de sua
casa). Atenção: Caso você não possua uma declaração de residência, peça ao proprietário
para atestar que você mora naquela localidade específica.” (cf. https://help.unhcr.org/bra-
zil/trabalho-e-renda/atividade-bancaria/, acessado em 30.07.2.021). O ACNUR, o Banco
Central do Brasil, a Organização Internacional de Migrações e o Ministério da Justiça
e Segurança Pública editaram a Cartilha de Informações Financeiras para Migrantes e
Refugiados, disponível em https://help.unhcr.org/brazil/materiais-informativos/cartilha-
-de-inclusao-financeira/. A Resolução n.°4.753, de 26.09.2.019, do Banco Central, é a nor-
ma que estabelece as regras para abertura de contas de depósito. Através da Instrução
Normativa n.°02, de 03.08.2.020, o Banco Central define regras sobre a identificação de
titulares de contas correntes, e reconhece o direito à identificação pela identidade de gê-
nero da pessoa titular da conta: “A exigência de identificação de titulares de contas de
depósitos e de seus representantes prevista na Resolução nº 4.753, de 2019, não impede
o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais, inclusive
mediante utilização do nome social em cartões de acesso a contas e a instrumentos de
pagamento, em canais de relacionamento com o cliente, na denominação de destinatários
de correspondências remetidas pela instituição financeira, entre outros, bem como no
atendimento pessoal do cliente.”.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 293


maior parte da população brasileira, a opção pela afirmação, reco-
nhecimento e garantia de direitos humanos é o alicerce de segu-
rança jurídica necessário ao enfrentamento desses desafios.
A opção de acolhimento, iniciada pela ordem constitucio-
nal que emergiu com o fim do período ditatorial, e que tem na Lei
9474/97 e na Lei de Migração sua base normativa migratória, se con-
solida diariamente, com o incremente das ações e medidas levadas a
cabo pela sociedade civil.

Considerações finais

O mundo testemunha a cada ano o crescimento do número


de pessoas forçadas a se deslocar, por questões relacionadas a crises
políticas, perseguições étnicas e religiosas, conflitos armados,
catástrofes naturais, epidemias (novas ou ressurgentes), mudanças
ambientais e catástrofes humanitárias, decorrentes dos efeitos eco-
nômicos do jogo político e das estruturas internacionais de poder.
Em meio a estes cenários, milhões de pessoas são, literalmente,
desenraizadas de seus locais de referência afetiva, cultura e social,
e condenadas – a exemplo de Sofia Zawistowski14 –, a uma esco-
lha fatal: ficar condenado à extinção ou se deslocar rumo ao desco-
nhecido, perseguindo a esperança de conseguir chegar, e entrar, aos
poucos nichos de possibilidade de existência e de vida – ainda que,
muitas vezes, isso signifique, em verdade, subsistir e estar relegado à
invisibilidade e à subcidadania15.

14 Personagem magistralmente interpretada por Maryl Streep, no filme A Escolha de Sofia


(EUA, 1982, dir. Alan J. Pakula). O filme retrata o dilema de Sofia Zawistowski, uma mãe
polonesa, filha de pai antissemita, que foi presa em um campo de concentração, durante
a II Guerra Mundial, e que foi forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois
filhos para ser executado. Se ela se recusasse a escolher, os dois seriam mortos.
15 SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia
Política da Modernidade Periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de
Janeiro: IUPERJ, 2003. (Coleção Origem) 207p. SOUZA, Jessé, A Modernização
Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro. Ed. UnB, 2000, SOUZA,

294 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Obviamente, a onda cada vez maior de deslocados mundiais
encontra resistências e obstáculos de todos os tipos, principalmente
nos locais de destino, muitos deles países vinculados formalmente
ao conjunto de obrigações decorrentes do arcabouço jurídico inter-
nacional de proteção dos direitos da pessoa humana.
Exclusão social, xenofobia, negação de direitos fundamentais,
fechamento de fronteiras, impedimento de acesso ao território, crimi-
nalização da condição de migrante e da migração em si, propaganda
política negativa, grupos de extermínio, aprisionamento em institui-
ções penais ou em campos de concentração, separação de famílias,
tráfico de pessoas, são algumas das situações a que se expõem, diaria-
mente, em diversos países do mundo, os migrantes que buscam uma
nova oportunidade de reconstrução de suas vidas e afetos.
O Arcebispo sul-africano Desmond Tutu16, em um determinado
momento da série de conversas registradas no livro Contentamento
– O Segredo para a Felicidade Plena e Duradoura17, pergunta a Sua
Santidade, o Dalai Lama, sobre seus sentimentos – e como lida com
eles –, após cinquenta e seis anos de exílio a Índia18.

Jessé. (Não) Reconhecimento e Subcidadania, ou O Que é “Ser Gente”?, Revista


LUA NOVA Nº 59— 2003.
16 Desmond Mpilo Tutu é arcebispo da igreja anglicana, na África do Sul, e lutou ativamente
contra o regime do apartheid, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1984.
17 Editora Globo, São Paulo, 2017, p. 42.
18 “A História da descoberta de que era a reencarnação do último Dalai Lama, aos dois anos
de idade, fez com que ele fosse tirado de sua casa, na zona rural, na província de Amdo, no
oriente do Tibete, e levado para o palácio de Potala, com seus mil cômodos, em Lhasa, ca-
pital do país. Lá, ele foi criado em um isolamento opulento como o futuro líder espiritual e
político do Tibete e como uma encarnação divina do Bodisatva da Compaixão. Depois da
invasão chinesa no Tibete em 1950, o Dalai Lama foi lançado na política. Aos quinze anos,
ele se viu como o governante de 6 milhões de pessoas e enfrentando uma guerra completa
e desesperadamente desequilibrada. Durante nove anos tentou negociar com a China co-
munista, para o bem-estar do seu povo, buscando soluções políticas enquanto o país era
anexado. Em 1959, durante uma insurreição que poderia resultar em massacre, o Dalai
Lama decidiu, com o coração pesado, partir para o exílio. As chances de conseguir uma
fuga bem-sucedida para a Índia eram assustadoramente pequenas, mas, para evitar um
confronto e um banho de sangue, ele partiu à noite, vestido como um guarda do palácio.
Teve de tirar seus óculos, que fariam com que fosse reconhecido, e a visão embaçada deve
ter acentuado a sensação de medo e incerteza, à medida que o grupo em fuga se passava

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 295


Depois de explicar o modo positivo com o qual vê e lida com
as tristezas e dores do exílio, decorrentes de sua condição de refu-
giado, Sua Santidade encerrou sua resposta recordando um ditado
tibetano que diz “onde quer que você tenha um amigo, esse é o seu
país. Onde quer que você receba amor, esse é o seu lar”19.
O arcebispo Tutu complementou, dizendo que:

Acredito que nada pode ser mais devastador mais devasta-


dor de muitas formas do que ser expulso do próprio país.
E um país não é apenas um país, o que quero dizer é que o
país faz parte de você. Você é parte dele de uma forma que
é muito difícil de descrever para as outras pessoas20.

Ou seja, cada indivíduo traz, dentro de si, todo um conjunto de


valores, histórias, tradições, crenças, costumes, afetos e sentimentos
que decorrem, intrinsicamente, da sua própria cultura.
Estas relações, decorrentes da profunda conexão do indivíduo
com suas origens, presentes de forma marcante na sua persona-
lidade, nos seus sentimentos – ao que o arcebispo Tutu se referiu
como o “país” sendo parte da pessoa – podem, todavia, vir a ser
rompidas, de forma voluntária ou forçada.
Obviamente, essa ruptura nunca é completa e – justamente por
isso – nem tampouco indolor.
E essa dor, esse desassossego, esse perdimento das raízes,
aumenta enormemente quando a ruptura é forçada. E ainda mais
quando associada a outros traumas.

por tropas do Exército de Libertação Popular. Eles enfrentaram tempestades de areia e de


neve, enquanto subiam montanhas com quase 6 mil metros de altitude durante a fuga que
levou três semanas.” (p.42). Desde então, Sua Santidade, o Dalai Lama, cujo nome e Tenzin
Gyatso, vive exilado na cidade indiana de Dharamsala.
19 p. 45.
20 Idem.

296 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Milton Santos se refere à desterritorialização, na definição de
Otaviano Ianni, como uma outra palavra para significar estranha-
mento, que é, também, desculturização21.
Dessa forma, aquele que se vê forçosamente afastado de sua
cultura, de seu território, de seu lugar, sofre enormemente com os
temores, obstáculos e desafios relacionados com a cicatrização e o
refazimento de suas relações afetivas, emocionais, culturais com o
novo espaço.
Sofre para refazer, minimamente, o seu lugar em um novo ter-
ritório. Sofre para recomeçar.
Ainda com Milton Santos:

(...) deixar atrás uma cultura herdada para se encontrar


com uma outra. Quando o homem se defronta com um
espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece,
cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma
vigorosa alienação. Mas, num mundo do movimento, a rea-
lidade e a noção de residência (Husserl, Heidegger, Sartre)
do homem não se esvaem. O homem mora talvez menos,
ou mora muito menos tempo, mas ele mora: mesmo que ele
seja desempregado ou migrante. 22

Proponho a você, que está lendo este texto agora, que reflita
nas seguintes questões: O que você faria se, de um dia para outro,
perdesse tudo que mais ama na vida? Como você se sentiria se fosse
obrigado a deixar a sua casa, sua cidade, seu país, simplesmente
porque alguém que não conhece e nunca viu decidiu que todos os
que têm sua cor, sua raça, sua orientação sexual, sua religião, sua
etnia, sua religião ou sua opinião política, devem morrer?
Já imaginou como se sentiria se a cidade em que você vive
fosse, de um dia para o outro, engolida pelo inferno da guerra e você

21 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço, São Paulo, Edusp, p. 222/224.


22 Idem.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 297


tivesse de fugir, sem destino certo, apenas com a roupa do corpo, ou
com o pouco que conseguiu juntar, para não morrer?
São situações desesperadoras e cenas terríveis de se imaginar,
não?
Pois bem. Infelizmente, essa é a realidade que está por trás dos
mais de 89,3 milhões de seres humanos23, dos quais 27,1 milhões
são refugiados, forçados a se deslocar de suas casas em todo o
mundo por questões relacionadas a conflitos armados, preconceito
racial, étnico, religioso, de gênero ou orientação sexual, perseguição
política ou ideológica ou grave e generalizada violação de direitos
humanos.
O mundo contemporâneo, mesmo com todas as suas novida-
des tecnológicas e avanços científicos, vivencia uma onda de retro-
cessos sociais e de reavivamento de pensamentos e modelos organi-
zacionais e comportamentais, de fatídica e genocida memória.
Há um movimento reacionário de extrema direta em curso no
mundo, na atualidade, que busca, de maneira uníssona e coorde-
nada, em diversos países do planeta, provocar o desmonte da demo-
cracia e a destruição de direitos e conquistas sociais.
Protegidos por uma espessa cortina de fumaça24, são vocifera-
dos, diuturnamente, pelas mais diversas formas25, discursos de ódio
e repressão contra uma bem selecionada pauta global (a democra-
cia, a paz, as minorias, os direitos sociais a imigração e os refugia-
dos), extremamente palatáveis a uma parcela da população mundial,
ainda refratária – por vício ou convicção – à diversidade e à plurali-
dade democráticas.
Os mais pesados e atávicos interesses político-econômi-
cos atuam para que a configuração global do século XXI seja

23 Conforme o relatório Global Trends – Forced Displacement in 2021, publicado pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, em 16.06.2022.
24 Atores políticos de figura patética, redes sociais, personalidades públicas dos mais varia-
dos tipos e tamanhos, estruturas corporativas culturais poderosas etc.
25 Das grandes corporações de mídia à indústria da propaganda e do entretenimento; Das
redes sociais e robôs de assimilação de metadados a fantoches caricaturais, ungidos a per-
sonalidades políticas, com milhões de seguidores hipnotizados.

298 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


reorganizada, no sentido de garantir que sua posição de controle
planetário – e, principalmente, de lucro irrestrito – não seja sequer
ameaçada.
É possível identificar denominadores e características assus-
tadoramente comuns nos discursos, plataformas e personalidades,
que ocupam a boca de cena dos principais sistemas políticos e eco-
nômicos globais na atualidade, bem como no modus operandi pelo
qual sobem ao poder os principais arautos desse movimento.
Quase sempre escudados por outsiders políticos caricaturais,
aos quais, de início, ninguém atribui qualquer plausibilidade de
vitória eleitoral – seja por ter perfil político desconhecido, seja em
função da produção de polêmicas e despautérios –, os poderosos
interesses econômicos, que lucram com a política e a economia glo-
bais, garantindo condições de vida paradisíacas para um número
cada vez menor e mais exclusivo de pessoas – às custas, literalmente,
da vida do restante da população mundial atual e das futuras gera-
ções –, movem seus novos peões no tabuleiro mundial, atualmente,
para garantir que seus ganhos prevaleçam e se multipliquem em
meio ao caos e à barbárie.
No melhor estilo da doutrina econômica imposta mundial-
mente desde os anos 70 do século passado, e que declarou guerra
aos movimentos econômicos sociais e desenvolvimentistas – com a
utilização dos mais variados e sórdidos meios26 –, pavimentando o
caminho para a implementação mundial do neoliberalismo, a atual
guinada reacionária à extrema direita busca, na verdade, reorgani-
zar as relações internacionais, de modo a assegurar que nada atra-
palhe, e que tudo – literalmente, tudo – seja condicionado e voltado
à produção e à garantia dos lucros daquele ínfimo grupo de pessoas
que, efetivamente, controla a economia mundial27.

26 Sobre este tema, vide, por todos, o excelente A Doutrina do Choque – A Ascensão do
Capitalismo do Desastre, de Naomi Klein (Editora Nova Fronteira, 2008, 592 p.).
27 Segundo o relatório Tempo de Cuidar – O Trabalho de Cuidado não Remunerado e Mal
Pago e a Crise Global de Desigualdade, publicado em 20.01.2.020, pela ong britânica
Oxfam, o mundo possui 2.153 bilionários (0,00003% da população global), e estas pessoas
somadas possuem mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas (cerca de 60% da população

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 299


Uma das principais externalidades deste movimento global
de dominação28, são as ondas cada vez maiores de refugiados que,
diariamente, fogem em direção aos locais onda ainda existe possi-
bilidade de vida digna, garantida a uma minoria que usufrui das
benesses da proteção de seus interesses econômicos, através da
exploração, degradação e espoliação das regiões de origens justa-
mente desses fluxos migratórios.
Mais do que ajuda humanitária, é neces­sário cada vez mais que
se distribua humanidade.

mundial) e 1% da população mais rica do planeta (cerca de 70 milhões de pessoas) pos-


sui mais riqueza do que o dobro da riqueza que é possuída por 5,9 bilhões de pessoas.
(cf. https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/
tempo-de-cuidar/?_ga=2.23115130.11556511.1594165138-1448900298.1579621001, aces-
sado em 07.07.2.020). O relatório traz ainda dados alarmantes sobre a concentração de
renda, que afeta principalmente mulheres e meninas, submetidas, em sua imensa maio-
ria, a duplas jornadas de trabalho e não remuneradas por seu trabalho doméstico. Os 22
homens mais ricos do mundo concentram mais riqueza do que TODAS as mulheres do
continente africano. O Brasil segue o padrão mundial. No país, de acordo a pesquisa Nós
e as Desigualdades, da Oxfam Brasil, publicado em abril de 2.019, e com o relatório A
Distância que nos Une, também da Oxfam Brasil, publicado em setembro de 2.017, seis
brasileiros possuem mais riqueza do que a metade mais pobre da população (cerca de 100
milhões de pessoas); mantida a tendência dos últimos 20 anos, os negros só adquirirão
igualdade salarial com os brancos em 2.089 (200 anos após a lei Áurea); uma trabalha-
dora que ganhe um salário mínimo por mês, demorará 19 anos para ganhar o que um
dos super-ricos ganha em um mês; os 10% mais pobres do país gastam 32% de sua renda
com tributos, os mais ricos gastam 21%; o 1% mais rico do Brasil recebe, em média, mais
de 25% de toda a renda do país, e os 5% mais ricos recebem a mesma renda dos restantes
95%, mantido o ritmo de diminuição das desigualdades de renda, o Brasil levará 35 anos,
para igualar a desigualdade de renda do Uruguai, e 75 anos, para igualar a desigualdade
do Reino Unido (disponíveis, respectivamente, em https://www.oxfam.org.br/um-retra-
to-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-
-desigualdades-2019/?_ga=2.261755213.11556511.1594165138-1448900298.1579621001,
e https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/a-distancia-que-
-nos-une/?_ga=2.267106894.11556511.1594165138-1448900298.1579621001, acesso em
07.07.2.022). De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –
PNUD, o Brasil é o 7.° país mais desigual do mundo.
28 Talvez, na atualidade, as duas principais externalidades do processo global de volta ao
poder da extrema direita sejam a crise global dos refugiados e as mudanças climáticas,
decorrência direta dos dois principais objetivos da nova onda reacionária: a destruição da
democracia e a erosão integral dos direitos humanos.

300 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Numa época em que mercadorias e di­nheiro possuem mais
importância – e transitam internacionalmente com mais facilidade
–, do que os seres humanos, um país como o Brasil não pode se dar
ao luxo de negligenciar a constante consciência da hu­manidade das
pessoas de sua sociedade, nem tampouco de visar abrir esta huma-
nidade para aqueles que dela tanto necessitam.

Referências bibliográficas
ACNUR BRASIL. Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição
de Refugiado: de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao estatuto
dos refugiados, disponível em https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/
Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_
condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf

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302 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 13

A RETOMADA DO PAC TO
DE ES TABILIDADE E
CRESCIMENTO DA UNIÃO
EUROPEIA: A INFLUÊNCIA
ALEMÃ E OS EFEITOS DA
PANDEMIA DA COVID -19

Luís Felipe Borges Taveira1


Daniel Campos de Carvalho2

Introdução

Em julho de 2020 os líderes e chefes de Estado ou de governo


dos países integrantes da União Europeia se reuniram, de modo
extraordinário, com a finalidade de debater medidas e alternati-
vas para enfrentar os efeitos sócio-econômicos que recaíam sobre a
população europeia à época (UNIÃO EUROPEIA, 2020b): a pande-
mia de Covid-19 já era responsável por mais de 130.000 óbitos apenas
no território do bloco (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020,
p. 11-13). Tal reunião extraordinária originou a aprovação de um
pacote de recuperação sem precedentes: o “Next Generation EU”,
o qual estabelecia um plano de recuperação, de até 750 bilhões de

1 Universidade Estadual Paulista (Brasil) luis.taveira@unesp.br


2 Universidade Federal de São Paulo (Brasil) dccarvalho@unifesp.com

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 303


euros, que viabilizava o combate financeiro aos efeitos econômicos
e sociais da Covid-19 – com a pretensão de também destravar inves-
timentos no Pacto Ecológico Europeu e nos esforços de digitalização
europeia (UNIÃO EUROPEIA, 2020a).
A rápida aprovação de tal proposta está claramente relacio-
nada à mobilização dos integrantes do bloco para a superação da
crise, mediante adoção de propostas centradas na proteção dos
cidadãos e que promovam “a convergência, a resiliência e a trans-
formação na União Europeia” (UNIÃO EUROPEIA, 2020b, p. 2).
No entanto, simultaneamente à aprovação, a União também suspen-
deu (MALINGRE, 2022) a principal salvaguarda fiscal inaugurada
para viabilizar a integração econômica: o Pacto de Estabilidade e
Crescimento (PEC), o qual impõe, dentre outras restrições, o limite
de 60% do PIB nacional para o estoque da dívida pública e 3% em
relação ao PIB de déficit anual (UNIÃO EUROPEIA, 2012).
Após a criação de tal programa emergencial e a limitação no
tempo da suspensão do PEC, cogita-se a retomada dos compromis-
sos consubstanciados no Pacto, a fim de revalidar as balizas fiscais
da União Econômica e Monetária (BLUMEL, 2023; GENTILONI,
2022). Sob especial atuação do presidente do Bundesbank Joachim
Nagel, as críticas acerca da falta de vinculação e real aplicabili-
dade dos limites previstos no Pacto a todos os Estados-Membros
(KOWALCZE, 2023) resgatam a influência germânica na exigência
de requisitos fiscais ajustados sobre todos os Estados-Membros.
Tal debate é especialmente relevante ao se constatar que a União
assumiu o papel de coordenar e programar, de modo supranacional,
grande parte da resposta orçamentária e financeira às repercussões
sócio-econômicas que os cidadãos europeus vivenciaram nos últi-
mos anos – ao mesmo tempo em que abriu mão das salvaguardas de
limitação fiscal que o PEC previa. Evidentemente, esta constatação
visibiliza o desafio relacionado aos limites fiscais da União, nota-
damente o conflito jurídico-político entre as atribuições europeias
e nacionais relacionadas ao desenho jurídico fiscal (que repercute
sobre os Estados-Membros).

304 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Diante disso, o objeto deste texto se traduz na identificação, a
partir de uma análise teórica e documental, da influência germânica
na reinauguração das discussões sobre o referido Pacto, bem como
na arquitetura jurídica das condicionalidades fiscais exigidas. A
hipótese geral a ser respondida é: a atuação alemã encontra respaldo
jurídico e teórico na disseminada ideia da “Cultura Germânica da
Estabilidade”? Por meio de uma pesquisa documental e bibliográ-
fica, adotar-se-á como ponto de partida as especificidades da arqui-
tetura do Pacto e, posteriormente, serão analisadas as teorias que
pretendem conferir sustentação a tal atuação e influência nacional.
Logo, na primeira parte do texto, o objeto de estudo será a aná-
lise aprofundada sobre o PEC, com especial enfoque para o dese-
nho jurídico e o (des)cumprimento das balizas ali colocadas. Na
segunda parte, por sua vez, abordar-se-ão os fundamentos teóricos
que abrangem a formação da categoria “cultura da estabilidade ger-
mânica”, a fim de verificar como a percepção sobre o Pacto e o papel
autoatribuído pelas autoridades nacionais em relação à estabilidade
econômica da Zona do Euro podem explicar o protagonismo da
Alemanha no retorno do PEC.

Advento e desdobramentos do Pacto


de Estabilidade e Crescimento

Inequivocamente, a pretensão da criação da União Econômica


e Monetária, estabelecida no Tratado de Maastricht (UNIÃO
EUROPEIA, 2012), passa pela compreensão da coordenação fiscal
entre os Estados-Membros que integram a Zona do Euro. De fato,
algum grau de arranjo fiscal comum foi exigido nas segunda e ter-
ceira fases do processo de criação da moeda única: (i) na primeira
fase, a qual aconteceria de 1990 a 1994, o mercado interno deveria
ser completado e as limitações à integração financeira teriam que
ser removidas, mediante a liberdade de circulação de capitais nos
Estados-Membros; (ii) na fase subsequente, deveria ser aprimorada
a cooperação entre os bancos centrais nacionais e deveriam ser

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 305


definidos os elementos da governança da Zona do Euro, bem como
o cumprimento dos critérios de convergência; (iii) na última fase, a
partir de 1999, haveria a transição para o Euro, com a fixação das
taxas cambiais, além da vinculação das regras orçamentárias para os
países integrantes da Zona do Euro (EUROPEAN COMMISSION,
1989; SUBRAMANIAN et al, 2020, p. 2; VERDUN, 2000, p. 7).
A justificativa para a adoção de tais condicionantes fiscais
estava relacionada às seguintes constatações: (i) o orçamento pró-
prio da União é limitado, de modo que os orçamentos nacionais
são o principal instrumento para que as políticas macroeconômicas
causem impactos sócio-econômicos no território; (ii) altos déficits
podem ocasionar um risco para a fixação cambial e provocar um
aumento das taxas de juros e o efeito “crowd-out” nos investimentos
privados na Zona do Euro; (iii) o Banco Central Europeu não pode
promover o financiamento monetário, por vedação nos tratados
constitutivos, e a cobertura por capitais estrangeiros estaria limi-
tada pela fixação cambial, resultando em uma dificuldade de finan-
ciamento de déficits orçamentários (THYGESEN, 1990, p. 204-205).
O diagnóstico generalizado, contudo, é de que a coordena-
ção de política fiscal na Zona do Euro não atingiu plenamente tais
resultados almejados e, diante disso, foi impossível frear a crise
da dívida soberana pós-2008 (SCHUKNECHT et al., 2011, p. 5).
Embora seja possível observar uma melhoria nos balanços fiscais no
período pré-crise, tais saldos eram modestos e estavam relaciona-
dos ao crescimento econômico e à pujança no mercado imobiliário,
ambos elementos prejudicados no período posterior à crise, ocasio-
nando uma expansão considerável do déficit orçamentário anual
nos Estados-Membros e no estoque da dívida pública dos países: (i)
o déficit anual cresceu em regra 5 pontos percentuais, alcançando
em média 6% do PIB nos países que integram a Zona do Euro; (ii) o
estoque da dívida cresceu aproximadamente 20 pontos percentuais,
atingindo em média 85% do PIB na Zona do Euro (SCHUKNECHT
et al., 2011, p. 5).

306 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Tabela 1 – Déficit público anual em % ao PIB.

País % em 1995 % em 1998 % em 2007 % em 2021


Alemanha -9,4 -2,6 0,3 -3,7
Áustria -6,1 -2,7 -1,4 -5,9
Bélgica -4,5 -1,0 0,1 -5,6
Chipre -0,7 -3,8 3,2 -1,7
Croácia -0,5 -0,8 -2,1 -2,6
Eslováquia -3,5 -5,3 -2,1 -5,5
Eslovênia -8,1 -2,3 0 -4,7
Espanha -6,8 -2,6 1,9 -6,9
Estônia -1,0 -0,8 2,7 -2,4
Finlândia -5,9 1,6 5,1 -2,7
França -5,1 -2,4 -2,6 -6,5
Grécia -9,7 -6,3 -6,7 -7,5
Irlanda -2,1 2,1 0,3 -1,7
Itália -7,2 -3,0 -1,3 -7,2
Letônia -1,4 0 -0,6 -7,0
Lituânia -1,5 -3,0 -0,8 -1,0
Luxemburgo 2,7 2,8 4,4 0,8
Malta -3,5 -9,2 -2,0 -7,8
Países Baixos -8,7 -1,4 -0,2 -2,6
Portugal -5,2 -4,4 -2,9 -2,9

Fonte: UNIÃO EUROPEIA (2023a).

Diante dos dados históricos, de 1995 a 2021, dos déficits ou


superávits anuais dos países integrantes Zona do Euro é possível
observar duas conclusões: (i) alguns países sistematicamente cola-
boram para que a média da Zona seja menor; (ii) as exigências do
PEC sobre resultado fiscal não são cumpridas de modo satisfatório
(UNIÃO EUROPEIA, 2023a).
É notável a persistência com que alguns países possuem resul-
tados fiscais menores do que a média da Zona do Euro. Países
como: (i) Grécia - teve um resultado fiscal melhor do que a média
da Zona apenas em 4 anos ou 14,81% do tempo; (ii) França, Portugal
e Eslováquia - tiveram resultado melhor apenas em 5 anos ou
18,52% do tempo; (iii) Itália - teve um resultado melhor do que a
média apenas em 7 oportunidades ou 25,93% do tempo (UNIÃO
EUROPEIA, 2023). De outro lado, há países que inequivocamente e

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 307


sistematicamente auxiliam a média da Zona do Euro a melhorar em
relação a tal indicador fiscal: (i) Luxemburgo - entregou um resul-
tado fiscal superior à média da Zona em todos os anos; (ii) Países
Baixos e Estônia - apenas não superaram a média da Zona do Euro
em 3 anos, tendo ficado acima da média em 88,89% do tempo; (iii)
Finlândia - ficou acima da média em 22 oportunidades ou 81,48%
do tempo; (iv) Irlanda - obteve resultado melhor do que a média
em 20 oportunidades ou 74,07%. Importante notar, por fim, que
a Alemanha superou a média da Zona em 17 anos, ou 62,96% do
tempo (UNIÃO EUROPEIA, 2023a).
Mais surpreendente é o cenário quando são examinados os
dados em comparação com o limite previsto no PEC: os países
integrantes da Zona do Euro conseguem cumprir a meta de défi-
cit máximo de 3%? Inicialmente nota-se que a Zona do Euro como
um todo conseguiu cumprir tal limite apenas em 16 oportunidades,
dentre os 27 anos avaliados (1995-2021), ou seja, em menos de 60%
do tempo este requisito do PEC foi cumprido (UNIÃO EUROPEIA,
2023a). Observa-se, contudo, que alguns países contribuíram fre-
quentemente para que tal número não fosse ainda menor: (i)
Luxemburgo - cumpriu em 26 anos ou 96,3% do tempo; (ii) Estônia
- cumpriu em 25 anos ou 92,59% do período; (iii) Finlândia - res-
peitou o limite em 24 anos ou 88,89% do tempo; (iv) Países Baixos,
Áustria e Letônia - o limite foi cumprido em 20 anos ou 74,07% do
tempo. A Alemanha, por sua vez, cumpriu tal limite apenas em 17
anos, ou seja, 62,96% do tempo (UNIÃO EUROPEIA, 2023a).
De outro lado, há países que sistematicamente conduzem suas
políticas fiscais como se não houvesse o limite previsto no PEC: (i)
Grécia - respeitou tal limite em apenas 4 anos ou 14,81% do tempo;
(ii) Portugal - o resultado ficou dentro do limite em 7 oportunida-
des ou 25,93% do período; (iii) França - apenas em 8 anos o limite
foi respeitado ou 29,63% do tempo; (iv) Eslováquia - em 37,04% do
tempo ou em 10 anos o limite foi respeitado (UNIÃO EUROPEIA,
2023a).
Evidentemente, tal cenário de resultados fiscais desali-
nhados com as exigências do PEC, conduziram ao aumento do

308 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


endividamento nacional, de modo que a segunda baliza fiscal pre-
vista no Pacto (o limite para o endividamento público) também ten-
deria a ser descumprida sistematicamente.

Tabela 2 – Estoque da dívida pública em % ao PIB.

País % em 1995 % em 1998 % em 2007 % em 2021


Alemanha 54,9 59,5 64,2 68,6
Áustria 68,3 63,9 65,0 82,3
Bélgica 131,3 119,2 87,3 109,2
Chipre 49,0 55,7 54,0 101,0
Croácia 22,3 22,6 37,2 78,4
Eslováquia 21,6 33,9 30,3 62,2
Eslovênia 18,2 22,7 22,8 74,5
Espanha 61,5 62,3 35,8 118,3
Estônia 8,0 5,9 3,8 17,6
Finlândia 55,2 46,8 36,0 72,4
França 56,1 61,3 64,5 112,8
Grécia 99,0 97,4 103,1 194,5
Irlanda 78,6 51,4 23,9 55,4
Itália 119,4 114,1 103,9 150,3
Letônia 13,9 9,0 8,4 43,6
Lituânia 11,5 16,5 15,9 43,7
Luxemburgo 10,1 9,1 8,1 24,5
Malta 34,2 50,7 61,9 56,3
Paíse Baixos 73,1 62,8 43,0 52,4
Portugal 62,2 55,6 72,7 125,5

Fonte: UNIÃO EUROPEIA (2023b).

É interessante notar que a média da Zona do Euro, composta


pelos atuais integrantes, nos 27 anos analisados, nunca cumpriu o
limite de endividamento estabelecido no PEC. Em todo o período,
o percentual de endividamento, em proporção do PIB, superou os
60% (UNIÃO EUROPEIA, 2023b). Tal resultado é bastante influen-
ciado pelo descumprimento sistêmico de grande parte dos países: (i)
Bélgica, Grécia, Chipre, Itália e Áustria nunca conseguiram cum-
prir tal limite; (ii) a França ficou dentro de tal nível apenas em 4
oportunidades ou 14,81% do tempo; (iii) Portugal apenas em 6 anos

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 309


ou 22,2% do período; (iv) Alemanha somente em 8 vezes ou 29,63%
do tempo (UNIÃO EUROPEIA, 2023b).
Por outro lado, há países que conseguem cumprir tal baliza: (i)
Estônia, Letônia, Lituânia e Luxemburgo cumpriram tal limite em
todos os anos; (ii) Eslováquia ficou dentro de tal nível em 26 oportu-
nidades ou 96,3% do tempo; (iii) Finlândia e Eslovênia fixaram seu
estoque de dívida em tal patamar em 18 anos ou 66,67% do tempo;
(iv) Países Baixos, de modo similar, em 17 oportunidades ou 62,96%
do período (UNIÃO EUROPEIA, 2023b). Com a realidade fiscal
que a União passou a enfrentar, a coordenação da política fiscal na
Zona do Euro também passou por mudanças consideráveis, espe-
cialmente diante deste cenário desafiador em que as balizas do PEC
não são cumpridas de modo satisfatório e, sistematicamente, alguns
países as desrespeitam.
A leniência da Comissão com tais descumprimentos sistêmi-
cos passa pela reforma do Pacto, a qual ocorreu em meados de 2005
e promoveu maior flexibilidade aos Estados-Membros, ao transfe-
rir para eles a responsabilidade de definir quais seriam seus pró-
prios objetivos fiscais de médio-prazo. Com isso, o procedimento
de correção, o período-base para redução dos déficits e a própria
rigidez do percentual máximo de 3% sobre o PIB foram flexibiliza-
dos (SCHUKNECHT et al., 2011, p. 10). O advento da Crise de 2008
trouxe uma suspensão de fato das balizas fiscais previstas no PEC
(SCHUKNECHT et al., 2011, p. 12). Recentemente, a pandemia da
Covid-19 resultou em uma suspensão formal do Pacto até o final de
2023 (MALINGRE, 2022).
No entanto, as preocupações com os efeitos de um aumento do
estoque de dívida pública se relacionam com: (i) as preocupações
dos cidadãos e da classe empresarial sobre a estabilidade tributária
do país; (ii) a solvência fiscal do país – afinal, um estoque de dívida
de 75,4% do PIB, financiado a 6% de juros por ano, exige um supe-
rávit primário de 4,5% do PIB; (iii) a estabilidade de preços também
depende da estabilidade fiscal (TANZI, 2004). Há, inclusive, uma
relação lógica entre a função de utilidade do governo e o déficit
público: “à proporção que o déficit cresce, o país tem que pagar um

310 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


maior serviço da dívida, o que diminui o montante disponível de
recursos para gastos. Dessa forma, o governo terá de se controlar
fiscalmente para garantir um nível de déficit D que maximize suas
despesas G” (MENEGUIN e BUGARIN, 2006, p. 309).
Com base nesse panorama e linhas argumentativas, os receios
com o aumento explosivo do endividamento público na Zona do
Euro, principalmente no período pandêmico e pós-pandêmico,
foram manifestados por diversos líderes governamentais. A título
exemplificativo, os Ministros das Finanças da Áustria, Dinamarca,
Letônia, Eslováquia, República Tcheca, Finlândia, Países Baixos e
Suécia, assinaram um manifesto conjunto, argumentando que o
retorno do PEC, ainda que com modificações e melhorias, poderia
auxiliar na “sustentabilidade fiscal” dos Estados-Membros e que tal
característica é importante para “create confidence and fiscal space
for political priorities and for dealing with future crises and challen-
ges” (BLUMEL, 2003).
De fato, alinhada à demanda destas autoridades financei-
ras nacionais, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de
reforma do Pacto no final de 2022 (UNIÃO EUROPEIA, 2022). Em
suma, a proposta da Comissão apresenta duas mudanças significati-
vas: (i) não há mais preocupações fixas com um limite pré-definido
para o estoque da dívida pública ou para o déficit anual – o objetivo,
na nova proposta, é adequar a trajetória da dívida, sob uma ótica
intertemporal, e não meramente anual; (ii) há possibilidade de tratar
os países excessivamente endividados de modo distinto, sem que
seja aplicado um mesmo limite para os países muito endividados e
os poucos endividados (WYPLOSZ, 2022).
Com tais mudanças, a Comissão estabelecerá os limites de
modo individualizado e levando em conta três variáveis: (i) a taxa
de juros real sobre o serviço da dívida; (ii) a taxa real de crescimento
do país; (iii) os resultados fiscais anuais (UNIÃO EUROPEIA, 2022,
p. 13; WYPLOSZ, 2022). Diante disso, a Comissão poderá propor
patamares numéricos às restrições orçamentárias com base em um
período mais alargado de tempo, de no mínimo 4 anos (UNIÃO
EUROPEIA, 2022, p. 9-14; WYPLOSZ, 2022). O patamar de médio

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 311


e longo prazo continuará a ser os limites estabelecidos no PEC –
60% sobre o PIB para o limite de estoque da dívida pública e 3%
para o déficit anual –, no entanto tais valores serão encarados como
referências (UNIÃO EUROPEIA, 2022) e não como vinculações
fixas. A proposta exige, em um primeiro momento, aprovação dos
Ministros das Finanças dos países que integram o bloco.
É perceptível, sob uma estrutura lógico-racional, a conclusão
de que há três condutas possíveis, por parte dos Estados-Membros,
em relação às restrições do PEC: (i) se o déficit governamental neces-
sário para maximizar a utilidade dos gastos públicos não ultrapas-
sar o limite previsto no PEC, de 3% ao ano, não haverá conflito e
o Estado tenderá a cumprir o patamar em questão; (ii) se o gasto
ótimo superar o limite, o Estado-Membro optará por pagar a sanção
decorrente do descumprimento do PEC e, ainda assim, terá uma
utilidade maior do que se sujeitar ao teto de déficit previsto no Pacto;
(iii) se a multa transformar a utilidade governamental em afrontar
o limite do PEC, o Estado-Membro moldará sua conduta a partir da
percepção da efetiva aplicação da multa – se a União não a impu-
ser, o déficit continuará sendo desrespeitado, pois a sanção não será
aplicada e, diante disso, a função de maximização de utilidade será
atingida (MENEGUIN e BUGARIN, 2006, p. 311-312).
Nota-se que o enforcement da multa aplicável aos descumpri-
dores do PEC repercute na voluntariedade e disciplina com que os
governantes conduzirão as políticas e os orçamentos nacionais, de
modo a ser um fator determinante na perseguição real ao cumpri-
mento das restrições impostas aos Estados integrantes da Zona do
Euro. Com base nessa estrutura de decisão, é possível examinar as
implicações que o cumprimento e o descumprimento das balizas
previstas no PEC têm para o público interno, os pares que integram
a Zona do Euro e a própria União Europeia.

312 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A formatação da “Cultura Germânica da
Estabilidade” como retórica e como prática

A Teoria da Estabilidade Hegemônica assume que os regimes


monetários internacionais dependem da hegemonia de uma grande
potência, a qual influencia e sustenta a cooperação. Com base em tal
teoria, os elementos econômicos não são condição suficiente e nem
necessária para a sustentabilidade da união econômica e monetária,
embora possam ser importantes em sua concepção e manutenção.
De fato, a ideia da dominância nacional na cooperação e definição
das políticas monetárias no âmbito europeu é atribuída à Alemanha
desde antes do advento do Tratado de Maastricht (STEINHERR,
1989, p. 62). Com base nisso, alcunhou-se a expressão “cultura ger-
mânica da estabilidade”, a qual é utilizada para representar uma
preocupação primordial com a estabilidade de preços – e que passou
a ser apontada como influenciadora da arquitetura legal da União
Econômica e Monetária (HAYO, 1998, p. 242).
A apropriação de tal categoria por agentes políticos e funcio-
nários do Bundesbank, é usualmente explicada pelo arcabouço teó-
rico do “construtivismo estratégico”: tais agentes se apropriam e dão
contornos singulares a certos temas, a fim de persuadir e dar signi-
ficado próprio às ações particulares, de modo a viabilizar e justificar
a adoção de “estratégias-chave” para que tais personagens possam
atingir suas preferências e de seus representados (HOWARTH e
ROMMERSKIRCHEN, 2013, p. 750-754). É nesse contexto que o
governo Kohl, por exemplo, utilizou a expressão referida para afir-
mar que a Europa caminhava para uma “Stabilitätsgemeinschaft
(community of stability)” (HOWARTH e ROMMERSKIRCHEN,
2013, p. 759-760).
A influência alemã na definição dos contornos da União
Econômica e Monetária pode ser segmentada em três áreas: (i)
estabilidade monetária; (ii) conservadorismo fiscal; (iii) manuten-
ção da competitividade internacional (BULMER, 2014, p. 1246). De
fato, desde os primeiros estágios da integração, o país já defendia
uma coordenação fiscal antes da união monetária, culminando no

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 313


fato de verdadeiramente transferir as regras de estabilidade fiscal
germânicas para os critérios de entrada na Zona do Euro, previs-
tas no Tratado de Maastricht e, posteriormente, no Pacto (DYSON
e FEATHERSTONE, 1999, p. 262–263; BLYTH, 2013, p. 141;
BULMER, 2014, p. 1246).
Notadamente, as discussões sobre o PEC, no âmbito europeu,
foram protagonizadas pelo Ministro das Finanças da Alemanha
Theo Waigel, tendo alcançado êxito em meados de 1997, com a
finalidade de assegurar a “disciplina fiscal” como pilar do Euro
(BULMER, 2014, p. 1247). Não é por acaso que tal expressão se
relaciona com a estabilidade monetária da Zona do Euro, escan-
teando para um papel secundário os parâmetros econômicos na
construção da União: a “memória” hiperinflacionária das décadas
de 1920, 1930 e 1940 na Alemanha ainda tem grande influência
sobre a população ao avaliar as escolhas políticas (HOWARTH e
ROMMERSKIRCHEN, 2013, p. 754-755; HAYO, 1998), representa-
das por medidas monetárias e fiscais do país e da União.
Tal percepção é corroborada no julgado da Corte Constitucional
Federal Alemã sobre um programa de compra de ativos públicos, o
Public Sector Purchase Program (PSPP), criado pelo Banco Central
Europeu: no início de 2020, tal Tribunal decidiu que o PSPP era des-
proporcional e a transferência de poderes nacionais para a União
não abrangeria a criação de tal programa, obrigando o Bundestag
e o Executivo alemão a adotarem medidas para conferir a propor-
cionalidade exigida pela Lei Básica ao PSPP (ALEMANHA, 2020).
Inequivocamente, a ideia de predominância e hegemonia alemã sobre
a interpretação do significado de União Econômica e Monetária
e sobre quais instrumentos monetários estariam à disposição do
Banco Central Europeu na definição e execução da política monetá-
ria da Zona do Euro estão presentes nos fundamentos de tal decisão:
a CCFA entendeu que o Tribunal de Justiça da União Europeia e o
próprio Banco Central Europeu haviam interpretado erroneamente
as implicações de tal programa para a definição das políticas eco-
nômicas gerais dos Estados-Membro, de modo que essa é uma das
razões pelas quais o PSPP seria desproporcional (ALEMANHA,

314 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


2020). De modo similar, é possível verificar a pretensão de revalidar
sua hegemonia perante atores supranacionais em 2012, ao defender
publicamente a adoção de medidas orçamentárias corretivas auto-
máticas e um plano de ajuste no endividamento dos países integran-
tes da Zona do Euro, mais uma vez a Alemanha influenciou o pilar
supranacional, sob o verniz da cultura da estabilidade (BULMER,
2014, p. 1254).
Após a suspensão ao PEC decorrente da pandemia da Covid-19,
os esforços alemães se consolidam na tentativa de retomar o Pacto,
com a finalidade de convalidar a perspectiva da sustentabilidade
fiscal na Zona do Euro (THE ECONOMIST, 2022). No entanto, até
mesmo as autoridades alemãs e economistas nacionais compreen-
dem que as balizas anteriormente postas no Pacto devam ser altera-
das, uma vez que os níveis estabelecidos no passado não são exequí-
veis: há defesas públicas de que o nível do estoque da dívida bruta
permitido deva ser de 90% do PIB e que o limite de 3% de déficit
anual seja alterado (KRECKÉ, 2022).
Diante de tal perspectiva, tal como supracitado, a Comissão
Europeia apresentou uma proposta de reforma do Pacto, a fim de
que seja possível fixar parâmetros fiscais individualmente, junto a
cada país que integra a Zona do Euro. As flexibilizações propos-
tas às balizas fiscais previstas no PEC podem estar relacionadas à
pretensão europeia de apresentar aos cidadãos, tal como está posto
no já mencionado plano Next Generation, os sinais de que a UE
não somente defende e aprova requisitos e medidas de austeridade
(KRUMPHOLZ et al, 2022).
Todavia, esta possibilidade de negociação individual desagra-
dou as autoridades políticas alemãs, as quais argumentam que tal
modificação poderia ocasionar a ruptura na credibilidade que con-
forma e zela pela União Econômica e Monetária, de modo que é
necessária a existência de parâmetros fixos e aplicáveis a todos os
Estados-Membros (PACKROFF, 2022). O presidente do Bundesbank
Joachim Nagel, adensou as críticas acerca da falta de vinculação e
real aplicabilidade dos limites previstos no Pacto a todos os Estados-
Membros (KOWALCZE, 2023).

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 315


Vale sublinhar, contudo, que esta possibilidade também ten-
deria a concentrar poderes na Comissão, subtraindo, desta forma,
a capacidade narrativa da “cultura germânica da estabilidade”, ao
reduzir a influência nacional na fixação de normas aplicáveis a
todos os países que integram a Zona. O conjunto fático, conforme
demonstrado no tópico anterior, evidencia que a própria Alemanha
não conduz suas políticas fiscais de modo a liderar a Zona do
Euro no cumprimento dos arrochos numéricos previstos no PEC:
a Alemanha foi um dos países que cumpriu o limite de endivida-
mento público em menos de 30% do tempo, no intervalo entre 1995
e 2021. Além disso, o país também descumpriu a baliza de limite de
3% sobre o PIB para o déficit anual em 10 anos, nos últimos 27 ana-
lisados. Ademais, a Alemanha foi um dos Estados-Membros a lide-
rar um bloqueio à proposta da Comissão Europeia, de 2003, em que
se adensava o conjunto de sanções para os países que não estivessem
cumprindo o PEC (SCHUKNECHT et al., 2011, p. 10).
Assim, nota-se que há uma aparente contradição entre a con-
duta pública alinhada à narrativa governamental adotada pelo país
e os dados fiscais concretos: o que explica o fato de que a Alemanha,
simultaneamente, se coloca como o esteio de estabilidade econô-
mica necessária para assegurar a União Econômica e Monetária e
descumpre sistematicamente as balizas fiscais exigidas no PEC e
que contaram com amplo suporte das autoridades alemãs?
É possível notar que a Alemanha, diante das três condutas pos-
síveis sobre os limites postos no PEC, adota dois caminhos alterna-
tivamente visualizados nos últimos 27 anos: (i) restringe seu défi-
cit anual em proporção do PIB aos 3 pontos percentuais, o que é
vantajoso caso o ponto ótimo das despesas seja harmonizável com
tal restrição; (ii) descumpre o patamar referido, contando com uma
influência supranacional para evitar a expansão e aplicação das san-
ções aos descumpridores de tais limites, embora, no plano interno,
continue a utilizar a retórica da “estabilidade germânica”.
Tal dicotomia pode ser explicada pela ideia de que as condu-
tas no plano interno se diferenciam da influência supranacional
em razão do risco reputacional (MENEGUIN e BUGARIN, 2006,

316 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


p. 311) que a perda da apropriação da narrativa da “cultura da esta-
bilidade” pode ocasionar aos nacionais alemães e à própria integra-
ção (CRAWFORD, 2007). Inequivocamente, a decisão nacional está
atrelada à concatenação entre o risco reputacional interno e a efetiva
aplicação da sanção no nível supranacional, caso o déficit orçamen-
tário ultrapasse o limite posto no PEC:

Quando o custo político-social de aplicar a sanção é baixo


para a União Europeia [...], tem-se um bloco econômico
forte, no sentido de que adotará medida repressiva se
necessário. Nesta situação, o Estado-membro se ajustará,
de forma a evitar retaliação. Alternativamente, quando o
custo político-social de aplicar a sanção é muito alto para a
União Europeia [...], tem-se um bloco econômico fraco, no
sentido de que não adotará medida repressiva. Nesta situ-
ação, o Estado-membro poderá despender otimamente,
sem medo de sofrer retaliação (MENEGUIN e BUGARIN,
2006, p. 314).

Cumpre salientar que no início dos anos 2000, a Alemanha,


embora não estivesse promovendo os cortes orçamentários que o
Pacto exigia, escapou das sanções da Comissão, ao passo que países
com um produto interno menos pujante, como Portugal e Irlanda,
foram penalizados (BULMER, 2014, p. 1247-1248). Diante desse
cenário estruturalmente desequilibrado para as autoridades supra-
nacionais, é factível assumir que qualquer país efetivamente hege-
mônico no âmbito europeu tenderá a conduzir sua política fiscal e
seus resultados fiscais a partir de um cálculo unicamente nacional
sobre o gasto ótimo, despreocupado com qualquer baliza prevista
no PEC, afinal, pela Teoria da Estabilidade Hegemônica, é predo-
minante seu poder de influência sobre a real aplicação do conjunto
macroeconômico geral da União, inclusive do conjunto sancionató-
rio para os descumpridores dos limites estabelecidos no Pacto.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 317


Conclusão

O fito deste texto era investigar quais os elementos fáticos e


jurídicos que contornam a criação das balizas fiscais aplicáveis à
Zona do Euro, designadamente previstas no Pacto de Estabilidade e
Crescimento. O objetivo específico era examinar qual a influência
alemã na reinauguração das discussões sobre o referido Pacto, bem
como na arquitetura jurídica das condicionalidades fiscais exigidas,
a partir de quatro vertentes: (i) como o Pacto surgiu?; (ii) quais as
justificativas para a suspensão e o redesenho do PEC?; (iii) como
a Alemanha se comportou nas diversas fases de discussão e imple-
mentação do Pacto?; (iv) quais as razões sócio-jurídicas apontadas
para que a Alemanha descumpra o PEC em reiteradas ocasiões e,
ainda assim, reivindique o locus de força hegemônica na liderança
da estabilidade europeia?
Em um primeiro momento, o meio foi percorrer as razões his-
tóricas e jurídicas que justificaram a criação de regras fiscais rígidas
aplicáveis a todos os Estados-Membros, inclusive como condição
para a adesão à União. Nesse sentido, é possível notar uma influên-
cia germânica predominante, a fim de replicar suas métricas de sus-
tentabilidade econômica na União Europeia, de modo a assegurar
uma justificação interna para a transferência de poderes à UE, ao
mesmo passo em que propagava os ideais teóricos por trás da fixa-
ção de determinados parâmetros fiscais.
Contrariamente, todavia, foi possível observar que nem
mesmo a Alemanha conseguiu cumprir todos os requisitos de fixa-
ção fiscal previstos no Pacto de Estabilidade e Crescimento: de fato,
em menos de 65% do tempo o país atendeu aos requisitos de estoque
da dívida pública inferior a 60% do PIB e de déficit anual menor
que 3% do mesmo parâmetro. Apesar disso, a retórica da “estabi-
lidade hegemônica” continuava a ser capturada pelas autoridades
alemãs em seus discursos e posicionamentos públicos, inclusive
para marcar posição sobre as decisões da Comissão Europeia e de
outras autoridades supranacionais. Vale destacar que até mesmo a
Corte Constitucional Federal Alemã, em uma decisão judicial, se

318 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


apropriou de tal posição para afastar uma decisão do Tribunal de
Justiça da União Europeia e dar uma interpretação própria ao signi-
ficado de “política econômica” e instrumentos monetários à dispo-
sição do Banco Central Europeu.
Nota-se que o PEC era sistematicamente descumprido por um
número considerável de países integrantes da Zona do Euro. Neste
quadro, com o advento da crise pandêmica da Covid-19, o Pacto foi
suspenso, de modo a aprofundar os receios sobre a sustentabilidade
econômica da UE, uma vez que o estoque da dívida pública atingia
níveis recordes e os déficits anuais se aprofundaram consideravel-
mente. Recentemente, a Comissão apresentou uma proposta para
reformar o PEC, considerando que é necessária uma maior flexibili-
zação em relação à fixação de níveis fiscais admitidos. Tal sugestão,
todavia, ocasionou uma imediata resposta pública de autoridades
alemãs que, mais uma vez, tentam reforçar sua posição de predomi-
nância no domínio econômico, ao criticarem a ausência de um marco
fiscal com balizas fiscais aplicáveis a todos os Estados-Membros.
Diante disso, conclui-se que a Alemanha teve um papel histó-
rico determinante para a integração econômica e monetária e para
a fixação dos parâmetros previstos no PEC, embora utilizasse sua
influência para evitar ser sancionada quando o próprio país des-
cumpria as exigências de tal Pacto. Com o advento da suspensão
e do debate sobre a retomada de tal marco fiscal, é notório que as
autoridades germânicas tentam se valer da tradição hegemônica do
país para viabilizar a manutenção de parâmetros fiscais aplicáveis
indistintamente a todos os Estados-Membros, ainda que em pata-
mares acima dos inicialmente estabelecidos no PEC, afinal, a pró-
pria Alemanha não consegue cumprir aqueles números e objetivos
rigidamente previstos.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 319


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322 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


CAPÍTULO 14

MANIPUL AÇ ÃO DA S QUES TÕES


HUMANITÁRIA S EM TEMPO
DE GUERR A: DIFERENÇ A DE
ORÇ AMENTO PAR A A QUES TÃO
MILITAR E HUMANITÁRIA

José Alexandre Altahyde Hage1


Murilo Seri Fagundes2
Paula Santos Vieira3

Introdução

O contexto da pesquisa, em tela, é a estrutura da ajuda finan-


ceira externa de aliados políticos para a Ucrânia, com foco na aná-
lise do orçamento e da sua devida distribuição notadamente quando
é enviado de parceiros com histórico de rivalidade como é o caso
dos Estados Unidos da América (EUA) e União Europeia (UE) que
em relação à Rússia.

1 Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São


Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade
Federal do ABC, campus de São Bernardo do Campo.
2 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade
Federal do ABC, campus de São Bernardo do Campo.
3 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade
Federal do ABC, campus de São Bernardo do Campo.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 323


A justificativa da pesquisa é demonstrar que a ajuda financeira
à Ucrânia terá dois papéis: o primeiro é militar e o secundário é
questão humanitária. Estes dois papéis serão analisados a partir dos
relatórios emitidos pelos departamentos de segurança dos Estados
envolvidos na guerra.
O problema da pesquisa é: Porque o orçamento enviado à
Ucrânia pelos Estados aliados privilegiou a segurança militar, política
e estatal em detrimento da segurança humana?
O objetivo geral deste texto é demonstrar que os Estados
sempre irão privilegiar mais segurança territorial e militar do que a
segurança humana em tempos de conflitos armados. Eis um prin-
cípio do pressuposto realista que os estudiosos não podem se furtar
favor de idealismos em geral.
Os objetivos específicos são aqui são: (i) analisar os orçamentos
enviados pelos EUA e a União Europeia; (ii) Verificar a aplicabili-
dade da segurança humana nos conflitos armados intraestatais.
A metodologia adotada será a qualitativa, tendo como base
análise de conteúdo dos orçamentos e estudo do conceito da segu-
rança humana.
O Escopo Temporal é o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e
os orçamentos enviados pelos EUA e a UE e Geográfico é a Eurásia.

Conceito de Segurança Humana

Com o fim da Guerra Fria, que colocava em risco a noção de


Segurança Internacional (SI), fundada sobre a perspectiva realista
das relações internacionais (CARVALHO, 2012), o ambiente inter-
nacional estava pautado pelo consenso de uma direção a um mundo
de paz e democratização das relação entre Estados, porém, isto não
ocorreu da forma esperada havendo conflitos étnicos-nacionais,
contestando fronteiras consolidadas.
A ideia de segurança humana começou a tomar forma na década
de 1990, pela preocupação pelas inúmeras ameaças aos direitos
civis e sociais dos indivíduos. A autonomia individual conquistada

324 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


através do empoderamento, com a reorganização da sociedade civil
na vanguarda, está diretamente ligada com a segurança humana.
Com a inserção das agendas e auxílios de coalizões políticas para
o desenvolvimento da segurança e das coligações militares, o seu
conceito tem se expandido conforme a agenda internacional, que
acredita na responsabilidade dos Estado com os seus cidadãos, a fim
de protegê-los de abusos e danos. Com isso surge o novo princí-
pio internacional da responsabilidade de proteger (SOGGE, 2012,
p. 233, 235).
Em 2009, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou
um documento internacional que pretendia construir uma opera-
cionalização da noção de segurança humana. Uma narrativa que
descreve “origem e a trajetória institucional da segurança humana
no âmbito do sistema da ONU”, que o considera um documento
“Uma agenda para a paz”, entregue pelo Secretário-Geral Boutros-
Ghali ao Conselho de Segurança da ONU em 1992, seguido
do “Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano” do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em
1994 (CARVALHO, 2012, p. 268).
A definição do conceito de segurança humana foi elaborada em
2003, pela Comissão de Segurança Humana (CSH), que foi criada
em 2001, sob a presidência de Sadako Ogata e Amartya Sen, pelo
documento intitulado La sécurité humaine maintenant. De acordo
com o documento, entende por segurança humana:

[...] proteger o núcleo vital de toda a vida humana, de


maneira a beneficiar o exercício das liberdades e facilitar
o empoderamento humano. A segurança humana significa
a proteção das liberdades fundamentais, que são essenciais
à vida. Significa também proteger o indivíduo contra as
ameaças graves e generalizadas. É preciso por isso apoiar
as potencialidades e as aspirações de cada indivíduo. O
que significa também criar sistemas - políticos, sociais,
ambientais, econômicos, militares e culturais -que no con-
junto deem aos indivíduos os elementos indispensáveis à

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 325


sua sobrevivência, à condição de sua existência e à de sua
dignidade (ONU, 2009, p. 09).

No documento trouxe uma nova definição e com ele veio a


mudança do paradigma presente para pensar a segurança inter-
nacional. Se no século XVII o Estado era o detentor e “monopoli-
zava” o direito de proteger os cidadãos, no XXI, esta questão mudou
profundamente sendo mais complexa por todas as áreas em que ela
agora abarca - como a pobreza crônica e a persistência da violência
étnica, tráfico de seres humanos, mudanças climáticas e terrorismo
internacional (CARVALHO, 2012, p. 270).
Esta nova noção trouxe para as relações internacionais assun-
tos que eram tratados especificamente pelas políticas públicas de
cada Estado. Assuntos que eram de cunho interno passaram a inter-
ferir no sistema internacional também, além de incorporar a pro-
teção internacional destas pessoas vítimas de conflitos. Refugiados
e estabilidade pós-conflito, foram anexadas ao tema da segurança
humana.

Segurança Humana em Conflitos Armados

A segurança humana, não foi pensada para a questão de con-


flitos entre Estados, mas sim para conflitos internos que se limitam
somente às fronteiras internas, segundo Pauline Kerr (2013), que
trouxe dois conceitos de teorias que abordam a segurança humana.
Para a escola estreita são questões de segurança humana, qual-
quer ameaça de violência política às pessoas, pelo Estado ou qual-
quer outro ator político organizado pelo Estado. Ainda reconhece
ameaças e violências sistemáticas praticadas pelos Estados como a
pobreza e a má governança (KERR, 2013, p. 106).

Em contrapartida, porque a escola estreita está conectada


pelo foco comum em a ameaça de violência política às pes-
soas, os meios são direcionados para gerenciar essa ame-
aça. Uma grande variedade econômicas, sociais, políticas

326 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


e militares/policiais meios são encontrados na literatura
sobre gestão de conflito nal e violência transnacional,
embora há um debate considerável sobre quais medidas
funcionam (KERR, 2013, p. 107).

Para as escolas amplas, a segurança humana não está ligada


somente à preocupação com a ameaça de violência. Ela está ligada
na concepção do ser humano, no indivíduo e nos grupos comunitá-
rios (KERR, 2013, p. 106).

As escolas amplas, que abrangem as ameaças ao desen-


volvimento humano e as ameaças muito amplas às vidas
humanas, parecem não ter um fator comum que conecte
todas as diferentes são ameaças, exceto que cada uma é
percebida como uma ameaça às pessoas. Assim, os meios
para as escolas amplas depende de tudo o que a ameaça é
percebida como e são, portanto, ilimitadas (KERR, 2013,
p. 107).

Para o autor Cristopher Fettweiss (2022), que afirma que atual-


mente estamos vivendo numa era complexa e caótica, muito mais
perigosa do que o passado, que não tem como se sustentar, tendo
conflitos de pequenos portes em praticamente todos os continentes
e todos os tipos de conflitos armados, internos e externos. A per-
cepção de ameaça de um Estado está diretamente ligada à questão
de poder e o mesmo pode acontecer com o que o Estado considera
como inimigo.Um Este pensamento tem uma similaridade com o
pensamento de Pauline Kerr (2013), quando ela aborda a escolas
amplas e os tipos de ameaças que a humanidade pode enfrentar,
hoje a guerra é uma espécie de ameaça à extinção.

Orçamento enviado pelos aliados

Uma situação de conflito armado ou guerra hoje não envolve


somente os Estados que estão em confronto mas, todo o mundo se vê
comprometido com situações que afetam a estabilidade do sistema

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 327


internacional, assim, os países que são aliados têm a tendência de
ajudar-se mutuamente, podendo ocorrer uma guerra geral.
Aqui, o autor escolheu citar o estudo do rastreador de ajuda à
Ucrânia que demonstra os três tipos de orçamentos enviados pelos
seus aliados. Como pode-se ver na figura 1 abaixo, é demonstrado
o apoio dos governos coligados à Ucrânia - por tipo de assistências
bilaterais de 24 de janeiro a 3 de agosto de 2022.

Fonte: O rastreador de suporte da Ucrânia: quais países ajudam a Ucrânia e como?


Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/262746/1/KWP2218v5.pdf.

Como indica o gráfico, o setor militar (materiais bélicos),


recebe o maior porcentual da ajuda financeira enviada pelos Estados
e o dinheiro enviado em espécie, por motivos de segurança nacio-
nal, não fica estipulado o seu uso. Fica a questão humanitária por
último, demonstrando claramente que os aliados se preocupam
com a soberania do Estado ucraniano.

328 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Orçamento da União Europeia enviado para a Ucrânia

Orçamento Militar

Este auxílio financeiro da União Europeia, também trouxe um


conjunto de planos econômicos (reconstrução e compra de armas)
à Ucrânia desde o início dos conflitos com a Rússia. Uma mudança
drástica ocorreu no bloco europeu porque pela primeira vez em
sua história o bloco europeu utilizou os fundos orçamentários para
cunho militar, que até então eram proibidos por tratados. Isso ocor-
reu em 27 de fevereiro de 2022. A UE dará à Ucrânia 500 bilhões
de euros em armamento militar através do plano “European Peace
Facility”. Em discurso, Josep Borrell, que ocupa o cargo de Chefe de
Política Externa da UE, juntamente com a Presidente da Comissão
Europeia, Ursula Von Der Leyen, disse pela primeira vez aberta-
mente que este financiamento é para “fornecer armas - armas letais”.
Em um primeiro momento, a Comissão Europeia propôs em
1 de junho uma nova operação de 1 bilhão de euros para a Ucrânia
sob a forma de um empréstimo, sendo parte do pacote “Operação de
Assistência Macroinduto” (sigla em inglês: MFA). Esta foi uma parte
dos 9 bilhões de euros anunciados pela Comissão em 18 de maio
de 2022 e endossado pelo Conselho Europeu em 23 e 24 de junho
de 2022. Esses empréstimos são para a reconstrução da Ucrânia e
apoio financeiro para situações agudas que seriam para manter o
funcionamento das funções mais importantes do Estado Ucraniano
(Comissão Europeia, 2022).
O Conselho Europeu continuará a apoiar a Ucrânia “à resi-
liência econômica, militar, social e financeira global da Ucrânia,
incluindo a ajuda humanitária”, como especificado:

A União Europeia continua fortemente comprometida


em fornecer mais apoio militar para ajudar a Ucrânia a
exercer seu direito inerente de autodefesa contra a agres-
são russa e defender sua integridade territorial e sobe-
rania. Para isso, o Conselho Europeu insta o Conselho

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 329


a trabalhar rapidamente em um novo aumento do apoio
militar (CONSELHO EUROPEU, 2022).

Partindo por um viés realista de relações entre Estados, não é


muito diferente do que se esperaria da UE em relação à ajuda aos
ucrânianos, pensando que esta invasão não ficaria somente no ter-
ritório da Ucraniano. Fornecendo um orçamento para a compra de
armas letais, ajuda a manter o conflito só neste território, livrando
os 27 membros do bloco europeu.
Vemos no gráfico 2 apoio ao governo da Ucrânia, incluindo
a participação da UE - como porcentagem do PIB dos doadores.
Compromissos bilaterais e da UE de 24 de janeiro a 3 de agosto
de 2022. Além do orçamento enviado pela comissão europeia, os
Estados de forma individual também auxiliaram financeiramente o
Estado da Ucrânia.

Fonte: O rastreador de suporte da Ucrânia: quais países ajudam a Ucrânia e como?


Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/262746/1/KWP2218v5.pdf.

330 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


Orçamento para ajuda humanitária

Os 27 Estados-membros mais Noruega, Turquia e Macedônia


do Norte, estão mandando ajuda em espécie, suprimentos médicos,
comida e itens de abrigo até veículos com equipamentos energéticos,
sendo: (i) alimentos, (ii) água, (iii) itens domésticos essenciais, (iv)
cuidados de saúde, (v) apoio psicossocial, (vi) abrigo de emergência
e invernado, (vii) proteção, incluindo educação em emergências e
(viii) assistência em dinheiro para ajudar a cobrir suas necessidades
básicas. Os itens estão sendo entregues diretamente à Ucrânia, por
meio das fronteiras da Polônia, Romênia e Eslováquia.
A comissão europeia ainda tem uma reserva de ajuda
humanitária:

A Comissão Europeia destinou 348 milhões de euros para


programas de ajuda humanitária para ajudar os civis afeta-
dos pela guerra na Ucrânia. Isso inclui, respectivamente, €
335 milhões para a Ucrânia e € 13 milhões para a Moldávia
(COMISSÃO EUROPEIA, 2022).

Não há somente o envio de ajuda humanitária à Ucrânia, mas


a ajuda interna para os Estados do bloco, com o valor de 3,7 bilhões
para acolher os migrantes forçados por conflitos armados. Os prin-
cipais Estados beneficiados são a Polônia e a Romênia por estarem
mais perto geograficamente do Estado ucraniano.
Para o Comissário da UE para empregos e direitos sociais “As
pessoas que fogem da guerra na Ucrânia precisam de apoio imediato
para reconstruir suas vidas em segurança”. Atualmente a UE tem
aproximadamente 7,2 milhões de migrantes forçados pelo conflito
armado, 6,9 milhões de deslocados internos dentro da Ucrânia e
12,6 milhões de travessias fronteiriças da Ucrânia (UNHCR, 2022).
A população ucraniana, que está sob a proteção temporária da
UE, tem direito à proteção em qualquer Estado-membro do bloco
como também o regime de proteção europeu concede o direito
ao trabalho, residência, educação, subsídios sociais e assistência
médica.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 331


A figura 3, demonstra o porcentagem de refugiados individuais
da Ucrânia registrados em toda a Europa até 3 de agosto de 2022.
Painel A: como % da população do país Painel B: em milhões

Fonte: O rastreador de suporte da Ucrânia: quais países ajudam a Ucrânia e como?


Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/262746/1/KWP2218v5.
pdf. Os dados são do ACNUR (2022a).

Orçamento do EUA enviado para a Ucrânia

Orçamento Militar

Seguindo os passos da UE, os EUA também têm auxiliado a


Ucrânia financeiramente para manter a segurança territorial. Em
09 de maio de 2022 o então Presidente Biden, assinou a lei de con-
cessão de empréstimos para auxiliar na segurança da Ucrânia e de
sua democracia. A lei autoriza a administração até o final de 2023
a emprestar ou alugar equipamentos militares para a Ucrânia ou
outros Estados do Leste Europeu. Inicialmente a lei iria eximir a
administração de certas disposições sobre os empréstimos e o alu-
guel destes equipamentos (VERGUN, 2022).
Em 01 de julho de 2022, o Departamento de Defesa (sigla
em inglês: DoD), anunciou o envio de 820 milhões de dólares em

332 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


assistência adicional para a segurança da Ucrânia. Além disso o
EUA já disponibilizaram:

Os Estados Unidos já comprometeram cerca de US$ 7,6


bilhões em assistência de segurança à Ucrânia desde o iní-
cio do governo Biden, incluindo aproximadamente US$ 6,9
bilhões desde o início da invasão não provocada da Rússia
em 24 de fevereiro. Desde 2014, os Estados Unidos com-
prometeram mais de US$ 8,8 bilhões em assistência à segu-
rança à Ucrânia (BREASSEALE, 2022).

Além da ajuda financeira e os empréstimos ou o aluguel dos


equipamentos militares, os EUA enviaram radares contra-artilha-
ria, munições de armas-letais e foguetes de artilharia de alta mobi-
lidade (BREASSEALE, 2022).

Orçamento para ajuda Humanitária

Além da ajuda militar dos EUA, enviou também para ajuda


humanitária o comprometimento de 9,38 bilhões de dólares. Esta
ajuda tem como foco principal o fornecimento de alimentos, remé-
dios e outros itens importantes para a manutenção e segurança
humana da população que ainda permanece no território ucraniano.

Considerações Finais

Em resposta ao problema de pesquisa, observou que os orça-


mentos enviados pelos aliados têm como privilégio a segurança
militar, estatal e política do Estado ucraniano para manter o Estado
Ucraniano estrategicamente entre o Leste Europeu e a influência
Russa.
Como observado no decorrer da pesquisa, quando Estados
estão em conflitos armados, no qual o objetivo é a manutenção
territorial, como é o caso da guerra entre Ucrânia e Rússia, a luta

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 333


pela soberania estatal deixa de lado a questão humanitária, que é
somente levado em consideração nas últimas estâncias.
Analisando os orçamentos enviados pelos aliados da Ucrânia,
podemos perceber que a causa militar é sem dúvida é o foco prin-
cipal, quando se pensa sobre a soberania do Estado e totalidade de
seu território.
A diferença de orçamento entre o militar e a ajuda humanitá-
ria é de bilhões de dólares e euros. Geralmente a causa humanitá-
ria ganha espaço pela mídia, pela comoção social no mundo e pelas
organizações internacionais humanitárias, por ter um grande fluxo
migratório decorrente do conflito armado.
A segurança humana nem sequer entra na análise de conflitos
entre Estados, mas os direitos humanos, a ajuda humanitária entra
na análise quando, principalmente a UE, abre as suas portas para
mais de 7,2 milhões de migrantes e estipula um orçamento espe-
cífico para manutenção desta população nos 27 Estados-membros.

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CAPÍTULO 15

CRISE GLOBAL DO C APITAL


NO SÉCULO X XI

“POLICRISE”, MULTIPOL ARIDADE


GEOPOLÍTIC A E TR ANSIÇ ÃO SOCIALIS TA

Giovanni Alves4

Introdução

Nosso objetivo é expor um entendimento do conceito de crise


estrutural do capital formulado por István Mészáros, desvelando as
suas formas de aparição histórica. Primeiro, como crise estrutural
do capitalismo liberal, o que implicaria tratar do desenvolvimento
histórico da economia política do neoliberalismo e da geopolí-
tica do imperialismo moderno cujo núcleo orgânico hegemônico
são os EUA. Depois, entender a crise estrutural do capital como
sendo aquilo que os autores denominam de “policrise”. Iremos
tratar também da problemática das transições e processualidades
históricas que estão postas no século XXI e que derivam do pró-
prio desenvolvimento do sistema: a transição ecológica, a transição
demográfica, a transição epidemiológica, a transição geopolítica e
a transição socialista. Na verdade, tal problemática histórica deriva
da convergência explosiva das contradições fundamentais do modo

4 Giovanni Alves é professor livre-docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP),


Campus de Marília (SP)–Brasil. E-mail: giovanni.alves@unesp.br.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 337


de produção capitalista com as contradições metabólicas do capi-
tal (Alves, 2020). Tendo em vista os limites do ensaio, interessa-nos
apenas expor as problemáticas teóricas necessárias para o entendi-
mento da radicalidade do nosso tempo histórico.
Inicialmente, é importante tratar o conceito de “crise estru-
tural do capital” utilizado por István Mészáros (2009, 2013), habi-
litando-o para explicar a conjuntura complexa que se manifesta
no começo do século XXI e no interior da qual estamos inseridos.
Interessa-nos aqui elaborar – de modo introdutório, os elementos
teóricos-crítico para organizar a problemática (e desafios) do nosso
tempo histórico de crise global do capital: o conceito de “policrise”
e suas determinações (transições históricas, contradições, crises
estruturais e as processualidade conexas).

A “Policrise” do Capital

A crise global ou a crise estrutural do capital enquanto crise


estrutural do capitalismo liberal ocorre no seio daquilo que os ana-
listas tem intitulado como sendo a “policrise”, uma palavra relativa-
mente nova, que tem sido cada vez mais utilizada por economistas,
políticos e analistas para descrever a ocorrência de múltiplas crises
simultâneas, ou em rápida sucessão, em diferentes áreas e setores da
sociedade5. Essas crises podem incluir, por exemplo, crises econô-
micas, sociais, políticas, ambientais e de saúde, todas ocorrendo ao
mesmo tempo. Cada uma dessas crises pode afetar diferentes aspec-
tos da vida das pessoas, desde a saúde e a segurança até o emprego
e a estabilidade financeira. O resultado dessas crises simultâneas
pode ser uma situação altamente complexa e difícil de gerenciar, em

5 Adam Tooze. “Policrise: pensando na corda bamba” (29/10/2022). Disponivel em: ht-
tps://eleuterioprado.blog/2022/11/10/policrise-pensando-na-corda-bamba/. Acesso em:
19/04/2023; Michael Roberts. “Polycrisis and depression in the 21st century” (09/01/2023).
Disponivel em https://thenextrecession.wordpress.com/2023/01/05/polycrisis-and-de-
pression-in-the-21st-century/. Acesso em 19/04/2023.

338 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


que as soluções para uma crise podem interferir nas soluções para
outras crises. Por exemplo, uma abordagem para lidar com a crise
de saúde pública pode afetar a economia, enquanto uma resposta
para uma crise econômica pode afetar negativamente a sustentabili-
dade ambiental. Em resumo, a “policrise” é uma situação complexa
e desafiadora que exige uma abordagem holística e coordenada para
enfrentar múltiplas crises simultâneas.
A denominação “policrise” aparece na fase histórica da deca-
dência histórica do capitalismo liberal quando se explicitam os
vários elementos da crise estrutural do capital: (1) a crise do capi-
talismo liberal e da geopolítica do imperialismo dos EUA; e (2) os
desafios históricos impostos pelas transições civilizacionais que
aprofundam o descontrole do capital e a sua inépciasistêmica em
evitar a catástrofe civilizatória. A palavra “inépcia” que utilizamos
aqui diz respeito à falta de habilidade, capacidade ou competência
das instituições das sociedades capitalistas para realizar uma tarefa
ou cumprir uma responsabilidade de maneira adequada ou eficaz.
Ela descreve instituições políticas e sociais que são consideradas
incapazes de enfrentar com eficácia, uma determinada tarefa ou
situação de emergência ou de disruptividade, falhando em cumprir
adequadamente suas responsabilidades ou em executar suas tarefas
com competência numa época de mudanças catastróficas. A inép-
cia sistêmica do capital leva à “policrise” e à crise global do capital
entendida efetivamente “crise do controle social”. No texto de 1971,
István Mészáros observou: “Estamos diante de uma crise sem pre-
cedentes do controle social em escala mundial e não diante de sua
solução” (Mészáros, 2009: p.57). Da década de 1970 até nossos dias,
o movimento reestruturativo do capital (a globalização neoliberal
e o novo imperialismo) visando recuperar o controle social, só fez
aprofundar (e complexificar) o descontrole social. A “policrise” é
expressão da crise de controle social do capital.
Em primeiro lugar, o termo “policrise” desvela que a crise
estrutural do capital diz respeito a um “complexo histórico” (um
complexo de complexos, Lukács) que reúne múltiplas crises simul-
tâneas, ou em rápida sucessão, em diferentes áreas e setores da

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 339


sociedade. É deste modo, uma crise de controle do sociometabo-
lismo global. A importância do termo “policrise” está em expor a
globalidade da crise estrutural do capital. Ela ocorre em diferentes
áreas e setores da sociedade global. Entretanto, o termo limita-se a
reconhecer os elementos imediatos da crise: a globalidade, simulta-
neidade, interrelação e rapidez com que se desenvolvem de modo
cumulativo as crises, fazendo surgir novos patamares de crise. Os
autores que descrevem a “policrise” não apresenta uma hierarquia
no interior do complexo de determinações das crises simultâneas
e interrelacionadas. Na verdade, algumas determinações são mais
importantes do que outras; e elas sobredeterminam umas às outras.
O impressionismo da “policrise” oculta o verdadeiro sentido de
“crise estrutural do sistema do capital”.
Por outro lado, o conceito de “policrise” confunde “crise” com
“transições” que decorrem do próprio desenvolvimento do sistema.
A policrise é a expressão da inépcia do sistema em lidar com transi-
ções históricas que tem, por um lado, o caráter de situações de emer-
gência6 e de situações disruptivas7; e por outro lado, de situações de

6 De acordo com a teoria da complexidade, uma situação de emergência ocorre


quando há uma mudança repentina e inesperada em um sistema complexo que ameaça
sua estabilidade e operação normal. Essa mudança pode ser causada por uma variedade
de fatores, como eventos naturais extremos, erros humanos, falhas tecnológicas, conflitos
sociais, entre outros. Uma das características principais de uma situação de emergência é
a sua imprevisibilidade, ou seja, não é possível prever quando e como a mudança repentina
irá ocorrer, nem quais serão suas consequências exatas. Além disso, uma situação de emer-
gência é caracterizada pela complexidade, pois envolve múltiplos fatores interconectados
que influenciam uns aos outros e que podem afetar o resultado final. Em uma situação de
emergência, as soluções convencionais podem não funcionar, já que as interações comple-
xas entre os fatores envolvidos podem gerar consequências inesperadas e indesejadas.
7 Uma situação disruptiva é um evento que interrompe ou perturba um sistema, proces-
so ou negócio estabelecido, levando a mudanças significativas e muitas vezes imprevisíveis
em um curto espaço de tempo. Essas situações podem ser causadas por vários fatores,
como inovações tecnológicas, mudanças no mercado, desastres naturais, eventos políti-
cos, entre outros. Uma situação disruptiva pode impactar diferentes setores e áreas, como
economia, política, sociedade, tecnologia e meio ambiente. Por exemplo, a popularização
da internet e das tecnologias digitais trouxe mudanças disruptivas nos modelos de ne-
gócios tradicionais, enquanto eventos climáticos extremos podem perturbar a produção
agrícola e a infraestrutura das cidades.

340 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


limites estruturais decorrentes do desenvolvimento previsível do
sistema do capital e de suas contradições vivas. Assim, por exemplo,
o que se denomina “crise ecológica” é na verdade a transição ecoló-
gica do planeta resultado do desenvolvimento histórico do sistema
que expõe, por conseguinte a incapacidade dele em oferecer uma
resposta efetivamente progressiva num tempo hábil capaz de evitar
a catástrofe civilizatória8. A crise ecológica não é uma situação dis-
ruptiva no sentido de ser imprevisível. Pelo menos desde a década
de 1970, estudos mostravam os impactos da ação do capital sobre o
ecossistema terrestre (MEADOWS, DONELLA, 2007). É portanto,
uma situação complexa plenamente previsível nos seus impactos de
amplitude, mas com dificuldade em prever exatamente quando e
como a mudança repentina ocorrerá, nem quais serão suas conse-
quências exatas.
A inépcia sistêmica do capital em lidar com as transições –
ecológicas, demográficas e epidemiológica9, por exemplo - é que se
denomina “policrise”. É possível indicar outras transições que
desafiam o sistema global do capital – por exemplo: as transições

8 A palavra “catástrofe” tem sua origem na língua grega antiga, derivando de “katastrophḗ”,
que significa “virada para baixo” ou “reviravolta”. Em seu sentido original, “catástrofe”
era usada para se referir ao clímax trágico de uma peça de teatro, em que a história tomava
uma reviravolta para pior e levava a um desfecho trágico. Com o tempo, o termo passou a
ser utilizado para se referir a qualquer evento desastroso ou calamitoso. Assim, a palavra
“catástrofe” mantém a ideia de uma virada súbita e drástica, que leva a consequências
negativas e graves.
9 A transição epidemiológica é um processo em que ocorre uma mudança nos padrões
de saúde e doença de uma população, geralmente em resposta a mudanças socioeconô-
micas, ambientais e demográficas. Esse processo é caracterizado por uma mudança do
predomínio de doenças infecciosas para doenças não infecciosas como principais causas
de morbidade e mortalidade. Historicamente, as doenças infecciosas eram as principais
causas de morte em todo o mundo, mas com a melhoria das condições de vida, a imple-
mentação de medidas de prevenção e controle de doenças infecciosas, o avanço da me-
dicina e o aumento da expectativa de vida, ocorreu uma transição epidemiológica. Isso
significa que as doenças crônicas não transmissíveis, como doenças cardíacas, diabetes,
câncer e doenças respiratórias, tornaram-se mais prevalentes como principais causas de
morte e morbidade. A transição epidemiológica é um processo dinâmico e pode variar em
diferentes países e regiões do mundo, dependendo do estágio de desenvolvimento, fatores
culturais e ambientais, e outros fatores.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 341


tecnológicas, geopolítica e geoeconômica. Interagindo de modo
complexo, elas aprofundam o descontrole do sistema do capital – um
sistema de controle sociometabólico desequilibrado por natureza e
que face a conjuntura histórica de crise do modo de produção e crise
do sociometabolismo do capital, aparece como “policrise”.
Os desafios históricos que são postos como resultado do desen-
volvimento do sistema do capital – pelo menos desde a década de
1960 – aparecem como transições históricas, contradições, crises
estruturais e processualidade conexas:
Enquanto transições históricas, eles são: transições de primeira
ordem (ecológicas, demográficas e epidemiológica); transições de
segunda ordem (tecnológicas, geopolítica e geoeconômica) e a tran-
sição histórica de ordem superior: a transição socialista (para além
do capital).
Enquanto contradições históricas elas são: contradições funda-
mentais do modo de produção capitalista e contradições metabóli-
cas do capital.
Enquanto crises estruturais: crise estrutural do capitalismo libe-
ral e crise estrutural da hegemonia geopolítica dos EUA enquanto
núcleo orgânico do imperialismo moderno. Ao lado delas, temos
as processualidade históricas conexas que – na medida em que se
interagem com o sistema global do capitalismo liberal - afetam a
dinâmica histórica de desenvolvimento das crises estruturais e das
respostas sistêmicas às transições e contradições expostas acima.
Por exemplo, (1) a dinâmica contraditória – em si – das experien-
cias pós-capitalistas – aquelas de peso geopolítico e geoeconômi-
co-militar (tal como foi a URSS e como é hoje, a China); e (2) as
experiencias das formas capitalistas pós-liberais que, em reação ao
imperialismo dos EUA e ao neoliberalismo, confrontam o imperia-
lismo moderno (Rússia e as formações oriundas de movimentos de
libertação nacional). As processualidade contraditórias intrínsecas
às formações socialistas (como a URSS e a China), se manifesta, por
exemplo, na contradição Anti-valor e Contra-valor (Estado e formas
comunais). Nas formações capitalistas pós-liberais é a contradição
Valor e Anti-valor.

342 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


O conjunto de transições, contradições, crises estruturais e
processualidade conexas constituem o complexo de complexos da
“crise estrutural do capital”, sendo a “policrise” expressão imediata
do descontrole do sistema do capital sob ameaça da catástrofe civi-
lizacional .

A crise do capital é estrutural

No primeiro momento da sua crise estrutural – de fins da


década de 1960 ao começo da década de 1980 - o sistema do capi-
talismo liberal demonstrou ter capacidade para reestrutura-se
tanto na economia política quanto na geopolítica do imperialismo
moderno. Ele fez o mesmo, por exemplo, na década de 1930, ofe-
recendo naquela época, duas possibilidades de renovação: o nacio-
nal-capitalismo (ou o nazifascismo); e o social-liberalismo (a forma
historicamente vitoriosa após a Segunda Guerra Mundial). A partir
de 1973-1975 – tal como em 1929 – o capitalismo liberal renovou-
-se com o neoliberalismo. Foi isso que permitiu a ascensão histórica
do capitalismo neoliberal e da globalização capitalista e a constitui-
ção do poder unipolar dos EUA após o fim da URSS. Entretanto, a
ascensão histórica do globalismo liberal foi só a forma de manifes-
tação efetiva de suas contradições candentes a partir das quais se
fundou sua crise estrutural – tanto no plano da acumulação de capi-
tal, quanto no plano do processo civilizatório. A partir de 2008 com
o profundo crash financeiro global - e na década de 2010 – tornou-se
visível a decadência histórica do capitalismo neoliberal.
A questão é: em que medida o capitalismo liberal sob a direção
geopolítica dos EUA, tem capacidade histórica de operar uma nova
reestruturação capitalista - tal como fez a partir da década de 1970 -
que lhe permitiu inaugurar um novo período de ascensão histórica,
tal como ocorreu, por exemplo, de 1983-2007 com o neoliberalismo?
Ao caracterizarmos o período iniciado em 2008 como uma
época de decadência histórica do capitalismo liberal – na sua forma
neoliberal -, partimos do pressuposto de que, devido a determinações

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 343


concretas diferentes daquelas que haviam na época da Primeira
Guerra Fria (1946-1991), a história não se repetirá.
A conjuntura da Segunda Guerra Fria, iniciada na década de
2010, e o crash financeiro de 2008 demonstraram efetivamente o
esgotamento hegemônico do imperialismo dos EUA e do capi-
talismo neoliberal em face das contradições históricas objetivas
abertas pelo complexo de transições históricas e pela convergência
explosiva entre as contradições fundamentais do modo de produção
capitalista e as contradições metabólicas do capital (a fratura meta-
bólica entre o capital-valor e a natureza).
Em que medida o sistema do capitalismo liberal terá capaci-
dade enquanto sistema global, de enfrentar de forma eficaz, os desa-
fios históricos postos pela crise global do capital, isto é, pelo com-
plexo da “policrise” abordado acima ? – esta é a questão.

Capital e capitalismo

O que o filosofo marxista húngaro I. Mészáros denominou de


“crise estrutural do sistema do capital” é – de imediato - a “crise
estrutural” não apenas do capitalismo liberal, mas a crise estrutural
da relação (e do processo) do capital. Para que possamos entender a
complexidade do conceito de “crise estrutural do sistema do capi-
tal” é importante esclarecer uma distinção fundamental feita por
Mészáros (2011): a distinção entre “capital” e “capitalismo”.
A crise estrutural é do capital e não apenas do capitalismo. Isto
significa que ela não se resolverá apenas “indo além do capitalismo”.
A transição socialista – para além do capitalismo – que acontece
ainda de forma residual na China do começo do século XXI, tem
o seu valor civilizatório na medida em que habilita os povos da
humanidade a enfrentar de forma eficaz, os desafios das transições
históricas irremediáveis que ameaça a humanidade neste século.
Ao mesmo tempo, ela deve tornar-se pressuposto necessário para a
construção de outro modelo de civilização humana global na pers-
pectiva para além do capital (isto é, de acordo com Mészáros – para

344 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


além do Leviatã) (Mészáros, 2019) – sob pena de ir à ruína (tal como
aconteceu com a ex-URSS).
O capital precede o capitalismo em milhares de anos e pode
sobreviver ao capitalismo, como no caso da ex-União Soviética e da
China, cuja estrutura hierárquica de comando do capital subsistiu
e a divisão de trabalho permaneceu intacta. Para Mészáros, o capi-
tal, como sistema de controle sociometabólico, existiu antes e conti-
nuou a existir mesmo depois da derrubada do capitalismo na União
das Repúblicas Soviéticas (URSS). Os países pós-capitalistas, com
a URSS à frente e hoje, a China, mantiveram intactos os elementos
básicos constitutivos da divisão social hierárquica do trabalho que
configura o domínio do capital.
No caso da URSS, a “expropriação dos expropriadores”, a eli-
minação “jurídico-política” da propriedade, realizada pelo sistema
soviético, “deixou intacto o edifício do sistema de capital”. Assim
como existia capital na fase pré-capitalista, sua continuidade e
vigência persistiu na URSS e demais países do Leste Europeu por
várias décadas do século XX. Estes países, embora tivessem o que
Mészáros denominou “sistema de capital pós-capitalista”, foram
incapazes de romper com o sistema de sociometabolismo do capital.
No caso da China, a situação é mais extrema: o “socialismo de mer-
cado” permitiu que o setor capitalista se desenvolvesse lado a lado,
com o setor capitalista. A experiencia chinesa expõe não apenas a
persistência da divisão social hierárquica do trabalho, mas de outro
elemento básico que configura o domínio do capital: o mercado –
embora o mercado que opera na China esteja subsumido ao domí-
nio do Anti-valor. Assim, reconhecemos a legalidade da etapa socia-
lista da China enquanto uma fase de transição onde a lei do valor
opera sob o domínio do Anti-valor.
Para Mészáros, o capitalismo é uma das formas possíveis de
realização do capital, uma das suas variantes históricas para alcan-
çar plenamente a acumulação de lucro e expansão de mercado. O
capitalismo é a forma suprema de manifestação do capital, forma
sociometabólica acoplada à relações capitalistas de produção basea-
das na plena efetividade da lei do valor (o mercado mundial). O

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 345


sistema capitalista representa uma fase histórica particular da
produção de capital, cujos fundamentos são: 1) a produção para a
troca de mercadoria, sendo o valor de uso predominante ao valor de
troca; 2) a força de trabalho torna-se mercadoria; 3) a motivação do
lucro é a força reguladora fundamental da produção; 4) a máxima
extração da mais-valia pelo capitalista para produção do excedente
e aumento ilimitado do lucro; 5) o capitalista é o proprietário exclu-
sivo da mais-valia extraída; 6) os imperativos econômicos de cres-
cimento e expansão de capital tendem à integração globalizada, por
intermédio do mercado internacional, como um sistema totalmente
interdependente de dominação e subordinação econômica – o que
implica o conceito de colonialismo e imperialismo (MÉSZÁROS,
2011).
A distinção fundamental entre capital e capitalismo não é
meramente teórica, pois tem implicações práticas para o presente
e para o futuro, já que o desafio fundamental no século XXI é a
superação do capital e não apenas do sistema capitalista. Como
afirmamos acima, os parâmetros socioeconômicos (e políticos) do
capital – que assumem pleno desenvolvimento com o capitalismo (a
divisão social hierárquica do trabalho, mercado, mais-valia, lucrati-
vidade, acumulação de capital, expansividade da lei do valor e impe-
rialismo), nesta fase de desenvolvimento histórico, não tem mais
compromisso com o processo civilizatório (a fratura metabólica
entre o capital e a Natureza tornou-se flagrante com o capitalismo
do século XXI). Caso não sejam abolidos no decorrer da transição
socialista, podem inviabilizar o novo modelo civilizacional e pro-
mover o retorno das formas arcaicas pretéritas destrutivas do capi-
tal (como aconteceu logo após o fim da URSS em 1991). O desafio
histórico da transição socialista na China e da transição geopolítica
global - ao lado do enfrentamento da transição demográfica, tran-
sição epidemiológica e da transição ecológica – é o maior desafio
da humanidade no século XXI. A incapacidade de rompimento do
sistema do capital na URSS no século XX é o espectro histórico que
ameaça a experiencia chinesa.

346 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


A reflexão de Mészáros é importante nesse caso porque ele
salienta que os problemas reais da transformação socialista não
podem ser apreendidos sem o completo conhecimento de que o
capital e a produção de mercadorias não só precedem, mas também
necessariamente sobrevivem ao capitalismo (MÉSZÁROS, 2011, p.
1065)10. Mas enfatizar a permanência da natureza mais profunda do
capital desde a sua forma subdesenvolvida até a plenamente madura,
não é de forma alguma sugerir que o capital pode fugir às restrições
e limites da história, inclusive à delimitação histórica de seu período
de vida. O papel socialmente dominante do capital em toda a his-
tória moderna é óbvio. No entanto, é necessário explicar como é
possível que, sob certas condições históricas, uma dada “natureza”
(a natureza do capital) se desdobre e se realize - de acordo com sua
natureza objetiva, com suas potencialidades e limitações inerentes
- seguindo suas próprias leis internas de desenvolvimento (apesar
até dos antagonismos mais violentos, com as pessoas negativamente
afetadas por seu modo de funcionamento), desde a forma subdesen-
volvida até a forma da maturidade (MÉSZÁROS, 2011, p. 184). No
caso – por exemplo - da transição socialista na China, a questão é
saber até que ponto as condições históricas de desenvolvimento do
capital (as novas bases tecnológicas e a natureza do Estado socia-
lista), diferentemente da URSS, podem efetivamente obstaculizar as
leis internas de desenvolvimento do capital com suas potencialida-
des e limitações inerentes que se manifestaram no século XX.
Nesse caso, o elemento de peso é a luta de classes – política e
geopolítica – interna à nova formação socialista, que deve enfrentar
a contradição inerente a tal desenvolvimento interno do capital, que

10 Os elementos constitutivos do capitalismo estão presentes, ainda que de forma embrio-


nária, nas formações sociais históricas (primitiva, fenícia, cartaginesa, feudal etc.) ob-
servadas por Marx. Por exemplo, a mercantilização da força de trabalho, que é o passo
mais importante para alcançar a forma mais desenvolvida, a capitalista - apareceram em
algum grau na história muito tempo antes da fase capitalista, em alguns casos, até milê-
nios antes. No processo histórico do capital, cada um dos seus momentos se apresenta
de forma diversificada conforme as particularidades das fases que marcam sua origem e
desenvolvimento.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 347


ao longo de muitos séculos permitiu formar um sistema poderoso,
coeso e de natureza inalterável, que entrou em contradição com o
desenvolvimento das forças vivas do trabalho humano na medida
em que privilegiou a consecução de seus objetivos de acumulação
da riqueza abstrata (valor) em detrimento de carecimentos radicais
(valor de uso) – como uma vida plena de sentido - que se impõem
na medida em que se desenvolve o processo civilizatório (a redução
das barreiras naturais).
Baseando-se nos Grundrisse de Marx, Mészáros reconstitui o
longo processo histórico de transformação das formas iniciais no
capital dominante de hoje para enfatizar que “o capital não é uma
simples relação, mas um processo, em cujos vários momentos sempre
é capital” (MARX apud MÉSZÁROS, 2011, p. 711). Nesse sentido, o
sistema do capital e sua complexidade só pode ser analisada em sua
totalidade a partir da constituição da sociedade burguesa, cujo ponto
de partida e ponto de chegada é o capital. A constituição do capita-
lismo tem origem nas formas de acumulação primitiva do capital,
porém, o ponto de partida para a investigação de Marx é a sociedade
burguesa, considerada por ele a mais desenvolvida e mais complexa
organização histórica da produção e não as formas iniciais:

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada


organização histórica da produção. Por essa razão, as cate-
gorias que expressam suas relações e a compreensão de sua
estrutura permitem simultaneamente compreender a orga-
nização e as relações de produção de todas as formas de
sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos
edificou- se, parte dos quais ainda carrega consigo como
resíduos não superados, parte [que] nela se desenvolvem de
meros indícios em significações plenas etc. A anatomia do
ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por
outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies
animais inferiores só podem ser compreendidos quando a
própria forma superior já é conhecida. Do mesmo modo,
a economia burguesa fornece a chave da economia antiga
etc. (MARX, 2011, p. 84).

348 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


No caso das transições socialistas – observemos o uso plural
do termo - a questão que se coloca é: como o processo da luta de
classes do socialismo pode efetivamente desconstituir a forma histó-
rica do capital que sobreviveu à abolição do capitalismo como modo
de produção ?.
A sociedade pós-burguesa – que é a sociedade socialista - é a
forma mais desenvolvida do capital enquanto forma social “afetada
de negação”. Nesse caso, o socialismo deve ser superior – em termos
materiais no sentido pleno – ao capitalismo para que possa, a partir
dele mesmo, desenvolver as significações plenas para além do capi-
tal – enquanto possibilidade histórica. Não se trata de determinismo
histórico na medida em que, se o desenvolvimento da sociedade
burguesa operou sob o signo da luta de classes (o capitalismo não
era inevitável), o mesmo deve ocorrer sob a sociedade pós-burguesa
– mas nas condições materiais mais desenvolvidas do que aquelas
de 1917 na Rússia.
O princípio metodológico adotado por Marx acima teve como
ponto de partida, a forma mais complexa, mais avançada do capi-
tal: a sociedade burguesa, para entender assim, as mais incipientes e
primárias. Mas como dizemos, ir além da forma mais avançada do
capital no século XXI, diferentemente daquele do século XIX, signi-
fica entender a sociedade socialista enquanto possibilidade objetiva
de “negação da negação”. Na sociedade pós-burguesa deve se mani-
festar o verdadeiro poder do capital - divisão social hierárquica do
trabalho - que na sociedade burguesa estava oculto sob o fetichismo
da mercadoria. Na sociedade socialismo, o que deve se colocar de
forma plena é a luta pela democratização substantiva do ser social
para além da forma burguesa de democracia ou do poder despótico
da ordem sociometabólica existente.

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 349


A morfologia da crise estrutural do capital

O período histórico da crise estrutural11 do capital segundo


István Mészáros (2009, 2011), é o período histórico em que se tornou
perceptível a ativação dos limites absolutos do sistema do capital
enquanto sistema de reprodução plausível. Portanto, crise estrutural
do capital significa (1) a posição da decomposição interna da ordem
do capitalismo liberal, a sociedade burguesa na sua forma mais
desenvolvida; e (2) a posição da relação-capital “afetada de nega-
ção” face aos desafios da crise do controle do metabolismo social.
Ao dizer “crise estrutural do capital”, faz-se referência não apenas a
crise da economia capitalista no sentido usual do termo dado pelos
economistas marxistas, mas sim, a crise da ordem sociometabólica
do capital entendida como modo de controle estranhado da vida
social global.
Em primeiro lugar, a crise global do capital enquanto crise
estrutural é crise de controle. Ela representa o descontrole e a
decomposição da ordem sociometabólico. Ao mesmo tempo ela é
uma crise sistêmica – isto é – global, não restrita à esfera socioeco-
nômica, mas afetando “toda a sociedade de um modo nunca antes
experimentado. Realmente, a crise estrutural do sistema do capital
se revela como uma verdadeira crise de dominação em geral” [o grifo
é nosso] (MÉSZÁROS, 2011, p. 796).
Assim, o conceito de “crise estrutural” na perspectiva mesza-
riana, refere-se a uma condição que “afeta a totalidade de um com-
plexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou
subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é arti-
culada” (ibid., p.795). Por isso mesmo, a crise estrutural “põe em

11 Uma crise estrutural é uma situação de desequilíbrio econômico e social que afeta pro-
fundamente as bases e as estruturas de uma sociedade ou sistema econômico. Diferente de
“crises cíclicas” que ocorrem em intervalos regulares e afetam apenas algumas áreas espe-
cíficas, as crises estruturais podem ser mais duradouras e impactantes, afetando diversos
setores e esferas da vida social e econômica. Geralmente, as crises estruturais são causadas
por problemas profundos na organização ou funcionamento do sistema econômico e so-
cial, que geram desigualdades, instabilidades e ineficiências.

350 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


questão a própria existência do complexo global envolvido, postu-
lando sua transcendência e sua substituição por algum complexo
alternativo. [...] uma crise estrutural não está relacionada aos limites
imediatos, mas aos limites últimos de uma estrutura global” (ibid.,
p.795).
Para Mészáros, a idéia de “crise estrutural” não diz respeito a
um “dia do Juízo Final”, mas seu significado seria “mais modesto”:
ela implicaria em que a “tripla dimensão interna da auto-expansão
do capital [produção, consumo e circulação/distribuição/realização]
exibe perturbações cada vez maiores”; ao mesmo tempo em que
falha a “função vital de deslocar as contradições acumuladas do sis-
tema”. As contradições e disfunções do sistema “tendem a se tornar
cumulativas e, portanto, estruturais, trazendo com elas um perigoso
bloqueio ao complexo mecanismo de deslocamento das contradi-
ções” [os grifos são nossos] (ibid., p. 795) Como vimos, o modelo
de crise estrutural do capital é o modelo da forma efetiva de crise
estrutural do capitalismo liberal – objeto da análise de crítica da
economia política de Karl Marx.
O conceito de crise estrutural do capital serve para ressaltar a
radicalidade do nosso tempo histórico – de um modo nunca antes
experimentado (o que se explica também pela necessidade de con-
trole social e pela possibilidade histórica da transição socialista). Diz
Mészáros (2009) que diferentemente da época de ascensão histórica
do capital, em que havia (e foram aproveitadas) as possibilidades
de deslocamento das contradições estruturais do capital, no novo
tempo histórico da crise estrutural do capital, “o desenvolvimento
da reprodução sociometabólica do capital teria alcançado seus limi-
tes intrínsecos ou absolutos, que não podem ser transcendidos sem
que o modo de controle prevalecente mude para um modo qualita-
tivamente diferente” (MÉSZÁROS, 2011, p. 794).
Diferentemente de Mészáros, defendemos a ideia de que, com
a crise estrutural do capital, o sistema capitalista não deixou de
operar a “função vital de deslocar as contradições acumuladas do
sistema”. Quando Mészáros formulou tal idéia na década de 1970,
não constatou o triunfo do capitalismo neoliberal no seu movimento

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 351


reestruturativo em deslocar as contradições (financeirização e glo-
balização). O capitalismo neoliberal enquanto capitalismo global, é
a própria expressão dos deslocamentos de contradições do sistema
do capital. Por exemplo, a financeirização da riqueza capitalista,
que caracteriza o capitalismo neoliberal, é uma forma de deslocar as
contradições do sistema, transferindo-as por exemplo, da esfera da
produção para a esfera das finanças (ALVES, 2018). Outra maneira
de deslocar as contradições do sistema é a colonização da subjetivi-
dade do trabalho por meio da manipulação exacerbada (a fabricação
do “sujeito neoliberal”) (DARDOT e LAVAL, 2016; ALVES, 2023).
Esses deslocamentos das contradições sistêmicas ocorrem dentro do
próprio sistema, contribuindo assim, para “contornar” temporaria-
mente, a crise de reprodução social do capital. As contradições não
são eliminadas, mas deslocadas para um nível superior.
Para entendermos o sentido histórico da crise estrutural do
capital, precisamos aborda-la na perspectiva daquilo que Fernando
Braudel denominou temporalidade de “longa duração”. Para o histo-
riador francês, a história é composta por três níveis distintos: o nível
dos acontecimentos cotidianos e efêmeros, o nível das conjunturas
de curto prazo e o nível da longa duração. A longa duração refere-se
ao nível mais profundo e duradouro da história, que é caracterizado
por estruturas sociais, econômicas e culturais que mudam muito
lentamente ao longo do tempo. Essas estruturas são vistas como a
base sobre a qual as mudanças de curto prazo e os eventos do coti-
diano ocorrem (BRAUDEL, 2016).
A “longa duração” é o nível mais importante para entendermos
a história, porque é nele que estão as raízes das mudanças históricas.
É preciso olhar para os processos de longo prazo para entender as
dinâmicas sociais, econômicas e culturais que moldam as socieda-
des e as civilizações. Dessa forma, a longa duração é um conceito
chave para o pleno entendimento do conceito de “crise estrutural do
capital” que diz respeito a mudanças mais profundas e abrangentes
das estruturas sociais e históricas do capitalismo global.
É no nível da “longa duração” que se expõe de modo contun-
dente uma característica do capitalismo histórico: ele se transforma

352 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


para continuar sendo o mesmo. Assim, apesar das mudanças sig-
nificativas ocorridas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o
capitalismo, mesmo na fase monopolista, continua a se basear na
propriedade privada e na busca pelo lucro, e, portanto, na domi-
nação imperialista nas relações internacionais. O conceito de “crise
estrutural do capital” indica que o sistema de lucro e imperialismo
enfrenta há pelo menos meio século, a exacerbação de seus limi-
tes internos, devido à contradição global entre o desenvolvimento
das forças produtivas e as relações sociais de produção capitalistas.
Surge, então, uma época de revolução (e contrarrevolução) social.

O desafio histórico fundamental: a transição socialista

A crise estrutural do capital implica conceitualmente mais do


que a crise estrutural do capitalismo liberal. Por isso, como proces-
sualidade contraditória correlacionada – em termos históricos - à
crise estrutural do capitalismo liberal e da hegemonia imperialista,
temos o desafio histórico das experiencias pós-capitalistas que
ocorrem nas formações sociais socialistas da China – por exemplo
– onde apesar de serem pós-capitalistas, preservam o capital (foi o
caso da URSS).
Existem diferenças nas modalidades de contradições (e crises)
intrínsecas às formações capitalistas e às formações socialistas (uma
terceira modalidade de contradição e crise ocorre as formações
capitalistas pós-liberais). Por exemplo, elementos latentes da crise
estrutural do capital na China socialista e na Rússia capitalista pós-
-liberal se distinguem daqueles que verificamos nos EUA e países
do capitalismo liberal (e ainda - no caso das formações do capi-
talismo liberal - nas diferenças entre países imperialistas e países
dominados).
A aparição da crise estrutural que Mészáros identificou em
meados da década de 1960 foi num primeiro momento, a crise estru-
tural do capitalismo liberal - que tinha como núcleo orgânico s EUA.
Mas Mészáros constatou também – num segundo momento - que a

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 353


URSS ou o sistema do “socialismo realmente existente” estava numa
profunda crise. Ambos, EUA e URSS faziam parte do sistema do
capital. Assim, não só países capitalistas, mas países pós-capitalis-
tas como a URSS, que não tinham abolido o capital, manifestavam
uma crise estrutural (o fim da URSS deve ser explicado a partir da
modalidade específica de crise estrutural do capital para formações
socialistas pós-capitalistas).
Assim, a crise da URSS ou dos países do “socialismo real” não
era da mesma natureza da crise do capitalismo liberal que se veri-
ficava na época. Tinha outro conteúdo diferenciados daquele que
ocorria nos países do capitalismo liberal-imperialista. Na verdade,
o que ocorria na URSS era a crise da forma de transição pós-capita-
lista, enquanto o que ocorria nos EUA enquanto núcleo orgânico do
capitalismo liberal, era a crise do desenvolvimento capitalista.
A denominação “crise estrutural do capital”, caso não façamos
tais distinções entre suas aparições históricas, tende a ocultar, num
primeiro momento, dois processos qualitativamente diferentes:
a crise da forma-valor e a crise da transição socialista (Anti-valor
versus Contra-valor) As duas eram formas de crise estrutural do
capital, mas era formas distintas de aparição histórica desta crise
estrutural.
Após o fim da URSS, a crise da transição socialista foi exaltada
como fim do socialismo visando afirmar o triunfo do capitalismo
liberal – que não deixou de conter candentes contradições funda-
mentais (e metabólicas) que mais tarde, iriam se manifestar (a partir
de 2008). Por exemplo, Robert Kurz (1992) afirmou que, tal como a
URSS naufragou, o capitalismo liberal naufragaria tendo em vista
que representa o processo de modernização do capital que tinha se
esgotado.
Entretanto, a crise da URSS e a crise dos EUA enquanto núcleo
orgânico do capitalismo liberal, representaram formas de apari-
ção diferenciadas da crise estrutural do capital. O fato histórico do
fim da URSS não significa que os EUA irremediavelmente devem
naufragar do mesmo modo, tendo em vista que na primeira forma
de aparição da crise estrutural do capital (a crise do capitalismo

354 AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS


liberal) operam outras determinações tais como o rol de contradi-
ções intrínsecas ao modo de produção capitalista.
O fetiche da forma-valor que caracteriza as formações capita-
listas liberais tem muito mais resiliência histórica face às contradi-
ções do capital que o fetiche-Estado (o que explica a sobrevivência
histórica do capitalismo neoliberal apesar de suas profundas contra-
dições sociais). As contradições intrínsecas das formações socialis-
tas são diferenciadas daquelas das formações do capitalismo liberais.
A crise estrutural do capital como crise estrutural do capita-
lismo liberal tendo como seu núcleo orgânico, os EUA e o movimento
do imperialismo moderno: eis a forma de aparição imediata da crise
global do capital. Mas existe outro aspecto da crise estrutural do
capital que se manifesta no desafio histórico das transições pós-capi-
talistas. Portanto, a principal aparição histórica da crise estrutural do
capital é a crise estrutural do capitalismo liberal. Esta crise estrutu-
ral se compõe pari pasu com a outra modalidade de crise estrutural
do capital – a que se verifica de forma diferenciadas, nas formações
capitalistas pós-liberais e nas formações socialistas. É a confluência
destas processualidade históricas que caracterizam um dos desafios
históricos enfrentados pela humanidade no século XXI.

Contradições da multipolaridade geopolítica

O “mundo multipolar” que pode emergir no século XXI exibe


num patamar superior processualidade contraditórias de novo tipo.
Ao lado da formação capitalista liberal em processo de decomposi-
ção, teremos formações sociais capitalistas pós-liberais e formações
sociais socialistas (pós-capitalistas) – todos eles são todos adver-
sários e inimigos do sistema de poder do capitalismo neoliberal.
Entretanto, em maior ou menor medida, todas as formações sociais
acima estão sob a dominância do capital enquanto sistema de con-
trole metabólico – mesmo as formações sociais socialistas.
No caso das formações socialistas, a dominância do capital
está “afetada de negação” A questão é saber como a crise estrutural

AMÉRICA LATINA, ELEIÇÕES E MUDANÇAS POLÍTICAS 355


do capital deve se manifestar na medida em que evoluem histori-
camente a “multipolaridade” do capital. Em termos objetivos o que
se observa hoje de forma candente, é a crise do capitalismo liberal
representado pelos EUA que expõe com clareza as contradições da
forma-valor. Mas o mesmo não acontece com as formações de pro-
tagonismo ascendente – em termos geopolíticos e inclusive, econô-
micos - das formas históricas do capital adversárias e inimigos do
sistema de poder do capitalismo neoliberal (por exemplo, Rússia e
China).
A questão que se põe – no futuro, é como deve evoluir a contra-
dição candente intrínseca às formações pós-capitalistas (Anti-valor
versus Contra-valor ou formas comunais). Por conta da inserção no
mercado mundial, a China hospeda outra contradição social intrín-
seca à sua formação pós-capitalista: a contradição entre o setor
capitalista e o setor estatal-socialista. Trata-se de uma contradi-
ção secundária subordinada àquela entre Anti-valor versus formas
comunais. Na medida em que se avança a processualidade histórica
de afirmação da experiencia socialista, a luta de classes permeada
pelas duas contradições, deve tornar-se mais complexa.
Em síntese: a problemática da crise estrutural do capital que se
encontra na formação capitalista (como os EUA) sob a direção do
valor, não é a mesma que se manifesta numa formação pós-capita-
lista (como a China) onde opera o Anti-valor (diferente do contra-
-valor) – do mesmo modo como ocorria com a URSS. Inserimos tal
desafio histórico como sendo um elemento das transições – talvez
o principal - que a humanidade será obrigada a enfrentar no século
XX.

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Giovanni Alves
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ISBN 978-65-84545-15-1

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