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or ganiz ação
Sandra Helena Ribeiro Cruz • Adolfo Oliveira Neto
José Sobreiro Filho • Cristiano Quaresma de Paula
T E R R I TÓ R I O S D E E S P E R A N Ç A
UFPA
Reitor
Emmanuel Zagury Tourinho
Vice-reitor
Gilmar Pereira da Silva
Pró-reitor de Extensão
Nelson José de Souza Júnior
Pró-reitor de Administração
Raimundo da Costa Almeida
Prefeito Multicampi
Eliomar Azevedo do Carmo
Secretário-geral da Reitoria
Marcelo Galvão Baptista
T E R R I TÓ R I O S
DE ESPERANÇA
A conflitualidade como produtora do futuro
or ganiz ação
Sandra Helena Ribeiro Cruz
Adolfo Oliveira Neto
José Sobreiro Filho
Cristiano Quaresma de Paula
Conselho Editorial
Profª. Drª. Benedita Alcidema Coelho dos Santos Magalhães – Ufpa
Profª. Drª. Cátia Oliveira Macedo – Uepa
Prof. Dr. Cláudio Eduardo de Castro – Uema
Prof. Dr. Cristiano Nunes Alves – Uema
Profª. Drª. Dirce Maria Antunes Suertegaray - Ufrgs
Prof. Dr. Gilberto de Miranda Rocha – Ufpa
Profª. Drª. Indira Cavalcanti da Rocha Marques – Ufpa
Prof. Dr. João Márcio Palheta da Silva – Ufpa
Prof. Dr. José Antônio Herrera – Ufpa
Prof. Dr. José Queiroz de Miranda Neto – Ufpa
Prof. Dr. José Sampaio de Mattos Junior – Uema
Profª. Drª. Jurandir Santos de Novaes – Ufpa
Profª. Drª. Luciana Martins Freire – Ufpa
Prof. Dr. Raimundo Luiz Silva Araújo – UnB
Prof. Dr. Ricardo Ângelo Pereira de Lima – Unifap
Inclui bibliografias
ISBN 978-65-86640-39-7
Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
Raimundo Luiz Silva Araújo
Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
Sandra Helena Ribeiro Cruz • Adolfo Oliveira Neto • José Sobreiro Filho •
Cristiano Quaresma de Paula
P refácio, na sua etimologia, quer dizer o que é dito antes. E é sempre uma
responsabilidade introduzir um livro, especialmente quando ele socializa
aprendizagens vivenciadas no território, territórios onde pelo conflito e resis-
tência se busca reacender a esperança.
Talvez a melhor forma de começar é falar um pouco dos tempos em que o
livro é publicado. Falar um pouco do contexto em que ocorrem as resistências
nele descritas. Vivemos tempos sombrios, não são os únicos, não são os pri-
meiros e, infelizmente, não serão os últimos.
A democracia brasileira faz parte do pacto social expresso no processo de
redemocratização da década de 80 e se materializou na Constituição de 1988,
especialmente nas garantias individuais e nos direitos sociais ali consignados.
Em 2016 a frágil democracia brasileira sofreu um duro golpe. Um governo le-
gitimamente eleito foi apeado do poder sob efêmera justificativa. De lá para
cá os pilares do pacto de 1988 estão sendo de forma acelerada dilapidados,
8 Territórios de esperança
uma mulher pobre, filha de agricultores, por exemplo, chegue a uma univer-
sidade ou se desloque de avião. Não são lugares para os deserdados da terra.
Pelo menos no olhar de quem herdou o comando do país dos fazendeiros e
capitãs do mato.
A educação sofre ataques cotidianos, alguns representando a aceleração de
processos que já estavam sendo vivenciados. Com a educação no campo não
é diferente. A matrícula da educação do campo vem caindo na última década,
reduzindo em 27% sua cobertura. O número de escolas existentes vem sendo
reduzido. De 2008 para 2020 foram fechadas 20.228 escolas, quase todas no
campo. A falta de um padrão mínimo de qualidade faz com que as escolas do
campo sejam as mais precárias, com professores com mais baixa formação e
que recebem menos insumos dos governos municipais e estaduais.
Os temas que povoam esse livro são os territórios de esperança e a confli-
tualidade como produtora do futuro. A esperança é uma política necessária em
nosso cotidiano. No campo, nas águas, nas cidades e nas florestas, ela está pre-
sente onde quer que exista o ser. No singular ou no coletivo, há de se reconhe-
cer que há nas classes populares diferentes referências de territórios de espe-
rança. No entanto, em uma sociedade onde as disputas territoriais promovem
práticas de intolerância que atentam à vida e reprodução social, a esperança
se expressa na luta por territórios, na resistência, no seu desenvolvimento e na
organização da solidariedade territorial.
O presente trabalho nos oferece uma sistematização de diferentes formas
de resistir, de defender direitos. E, a cada luta, a cada conflito contra a barbárie,
o autoritarismo e a retirada de direitos, a esperança renasce. A esperança tem
sido contra-hegemônica e tem povoado relações, composto o roteiro de ações
e o cotidiano.
Na contemporaneidade, a esperança tem sido e promovido o confronto à
insurreição do fascismo no Brasil e no Mundo, tem apresentado as contradi-
ções dos transgênicos e defendido a soberania alimentar, criticado e denun-
ciado as formas de espoliação e a geopolítica perversa de extração de recursos
naturais, apontado as contradições do Estado e os conflitos no campo, se orga-
nizado em movimentos socioterritoriais e defendido territórios camponeses e
indígenas face ao capital financeiro no campo.
E essa resistência é feita na cidade e no campo, nas ruas e nas instituições,
dentre elas a escola. E isso nos faz recordar das palavras de Florestan Fernan-
des, que após o processo de derrubada da ditadura militar nos instigava a “fazer
2. Fernandes, Florestan. Desafio educacional. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989, p. 263.
10 Territórios de esperança
Apresentação
12 Territórios de esperança
questão dos modos de produção por detrás da produção transgênica de milho
tem chamado a atenção de diferentes atores políticos, que, por sua vez, encon-
traram nas ações coletivas uma outra forma de se fazer política.
Em “Questão agrária e geopolítica dos recursos naturais em Moatize –
Moçambique: A Vale S.A. e o Extrativismo epidêmico”, Guilherme Whitacker
promove uma leitura contundente sobre as relações geopolíticas por detrás
da extração de recursos naturais realizada pela Vale S.A. O Artigo se ampara
em análises empíricas para promover relevantes críticas ao megaprojeto de
extração de carvão mineral em Moatize (Moçambique), trazendo e produzindo
contradições de ordem ambiental, social e econômica, bem como geopolítica.
Tomadas as referências materiais e buscando adentrar ao debate da produção
do conhecimento, ousadamente aborda a questão teórico-conceitual perti-
nente ao (neo)extrativismo, com o fito de ofertar a conceituação de extrativis-
mo epidêmico. Por fim, desfere críticas interessantes à geopolítica dos recursos
naturais que muito contribuem para entendimento do debate atual sobre acu-
mulação primitiva, espoliação, exploração etc., bem como sobre a atuação de
multinacionais na África.
Cristian Jara, Ramiro Rodríguez e Raul Paz nos conduzem a uma experiên-
cia de conhecimento da questão agrária Argentina ao passo em que nos per-
mitem entender um pouco mais sobre as especificidades da luta pela terra em
Santiago del Estero. Em seu artigo “Os conflitos rurais na Argentina profunda:
uma caracterização da luta pela terra em Santiago del Estero”, os autores re-
lacionam os conflitos agrários a aspectos estruturais de longa duração, como
a estrutura agrária, a falta de documentos de propriedade etc. Nos permitem
entender também que embora o Estado possa protagonizar relevante papel na
mediação e resolução de conflitos, tem sido insuficiente, especialmente nas
províncias do norte da Argentina. Tais condições contribuem ainda mais para a
manutenção da concentração de terras e outros fenômenos da conflitualidade.
De fronte a essa realidade conflituosa para os camponeses, assistimos à forma-
ção e insurreição do MOCASE (Movimento Camponês de Santiago del Estero),
movimento que tem pautado a luta popular e criado formas de se promover o
desenvolvimento do campesinado no campo de Santiago del Estero.
No artigo “Questão Agrária no Brasil e Paraguai: resistências, movimentos
socioterritoriais e recriação da luta por território” temos uma leitura crítica da
questão agrária tomando como referência os processos de resistência e a ação
coletiva organizadas pelos movimentos socioterritoriais. A análise de Lorena
14 Territórios de esperança
No artigo “A criminalização do MST no governo Bolsonaro e as novas estra-
tégias de luta”, Ronaldo Barros Sodré, José Jonas Borge da Silva e Acácio Zuniga
Leite promovem um debate com o fito de refletir sobre a criminalização de
movimentos camponeses e atual conjuntura agrária brasileira. A análise das
estratégias de luta do MST na atual conjuntura, especialmente tomando o Ma-
ranhão como lastro de análise, nos permite entender como o movimento tem
conseguido levar adiante e avançar em determinadas pautas populares ao pas-
so em que enfrentam a repressão e a tensão no campo. Assentamentos rurais,
ocupações de terras, desenvolvimento da produção, reforma agrária, resistên-
cia e outros, são os temas que povoam o debate sobre o desafio de se manter a
resistência de famílias camponesas juntamente ao processo de criminalização.
Jondison Cardoso Rodrigues assina o artigo “Resistências na Amazônia:
emergência e estratégias de lutas da CPT e do MAB face à produção de com-
plexos portuários no oeste do Pará”, onde realiza uma análise instigante sobre
insurreição da organização política e ações coletivas de políticas contencio-
sas promovidas em decorrência da resistência às estruturações portuárias na
Amazônia paraense. Douto do papel estratégico do estado do Pará na agenda
do capital, o autor reconhece a relevância e o protagonismo da Comissão Pas-
toral da Terra e do Movimento dos Atingidos por Barragens na organização dos
processos de resistência diante do avanço da dotação de infraestrutura portuá-
ria na porção oeste da Amazônia paraense.
Não obstante, Marcel Theodoor Hazeu, Solange Maria Gayoso da Costa e
Nádia Socorro Fialho Nascimento contribuem neste livro com o artigo “Con-
tradições, resistência e lutas sociais frente aos desastres socioambientais da
mineração em Barcarena/PA”. Reconhecendo a imprescindibilidade do deba-
te sobre o conflito, os autores destacam diferentes impactos e desastres so-
cioambientais provocados pela mineração e que historicamente tem afetado
as comunidades tradicionais. Não obstante, a insurreição das ações coletivas e
a retomada de territórios face à mineração compõem parte especial na agen-
da de lutas e resistências na Amazônia Paraense. Ademais, o artigo contribui
objetivamente para a compreensão da formação das ações organizadas e suas
práticas de política contenciosa contra a mineração em Barcarena.
Christian Nunes da Silva, Vicka de N. M. Marinho, Gracilene de C. Ferreira,
Laís M. Lima, Monique Farias, Milena de N. S. Santos e Adria de M. Rosa assi-
nam o artigo “Mudanças e influências da contemporaneidade em comunidades
ribeirinhas na Amazônia brasileira”. As autoras e o autor promovem o debate
16 Territórios de esperança
Reclamando Heimat: sobre os discursos de
território e resistência nos movimentos sociais
na Alemanha atual
Teresa Wilmes
Introdução
18 Territórios de esperança
quase exclusivamente sites de nacional-socialistas e da extrema direita, o que,
rapidamente, fez-me desistir da investigação.
Segundo algumas jovens1 da América Latina, que participaram de um pro-
grama de intercâmbio na Alemanha, foram elas que acabavam falando sobre
a música, a arte, as tradições dos seus lugares de origem, enquanto as jovens
alemãs não sabiam o que compartilhar.
Quando já estava pensando em abordar o tema da identidade “alemã” e
reunia os primeiros pensamentos e fontes, um dia, sentada em um parque em
Londres (onde estudo atualmente), sentou-se um casal na mesa a meu lado.
Obviamente eram alemães; percebia-se, mesmo sem escutá-los conversando,
pois na camisa estava escrito “no nationality” (sem nacionalidade). É daí que
partem as considerações mais fundadas teoricamente que desenvolvemos
neste capítulo.
A situação atual
20 Territórios de esperança
que menos e menos conseguem convencer de sua legitimidade e efetividade
o indivíduo.
Nesse clima, no qual o indivíduo permanece em uma situação socialmente
insegura, “ansiedades existenciais populares” viraram a “nova fórmula políti-
ca” (BAUMAN, 2007, p. 16). Ao invés de revelar as verdadeiras origens desses
medos no neoliberalismo feroz e na globalização negativa, os movimentos da
extrema direita “reduzem a multidão de tensões [...] da vida sob o neoliberalis-
mo globalizado simplisticamente – mas confortavelmente – a um inimigo con-
creto” (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 02). O atual ministro do interior alemão,
Seehofer, mostrou uma chocante falta de capacidade analítica, quando simpli-
ficou a complexidade dos desafios atuais, falando da migração como “mãe de
todos os problemas” (ROBMANN, 2018).
Além dessas condições de individualismo extremo e da falta de seguran-
ça social, temas da identidade e coletividade viraram “o território primário da
extrema direita” na Europa (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 03). Especialmente
na Alemanha, movimentos de esquerda não disputam ou ocupam temas da
identidade e coletividade. Depois de ter visto as consequências mais fatais do
nacionalismo fascista nas atrocidades do regime nacional-socialista, a nova
República Federal da Alemanha se encontrou frente ao dilema de não poder
formular uma identidade nacional positiva. Esse ceticismo frente ao naciona-
lismo, “[...] grandes partes da intelligentsia da esquerda-liberal da Alemanha
do Oeste, desde os anos 1960, imaginaram que fosse possível ultrapassar – ou
pelo menos ignorar – a nação na Alemanha e ir direito pela utopia do interna-
cionalismo liberal-burguês” (THOMPSON, 2002, p. 123).
Até hoje, o desejo de não ter que se associar à nação alemã encontra vá-
rias expressões, como destacamos no começo, nos slogans dos movimentos
da esquerda “No border – No nation” (Sem fronteira – Sem nação) ou nas re-
ferências de jovens alemães ao se identificarem somente como “cidadão eu-
ropeu” ou “cidadão do mundo”. Surge desse entendimento um ceticismo ao
nacionalismo, que eu – crescida com estas ideias – acho essencial para poder
interrogar criticamente ideologias potencialmente exclusivistas e/ou totalitá-
rias. Na busca pela identidade “alemã”, que com essa interrogação crítica do
nacionalismo não parou por completo, a chamada “maravilha econômica” na
República Federal, depois do fim de guerra em 1945, aliviou a problemática:
quando a normalidade alemã “se define [...] em partes pela integração próspe-
ra nos mercados e convenções políticas do capitalismo global” (TABERNER;
22 Territórios de esperança
vocábulo, que não tem tradução exata no português, nem em outros idiomas,
refere-se a uma “[...] constelação particular de espaço, memória coletiva e per-
tencimento” (EIGLER; KUGELE, 2012, p. 05). Heimat pode denominar tanto
um lugar físico, como o lugar de nascimento, de moradia, uma rotina ou a pes-
soas ligadas a certos lugares. Em qualquer caso, expressa uma “afiliação emo-
cional e espiritual” (WILLIAMS, 1996, p. 343) profunda.
Historicamente, o termo foi usado e, em vários contextos, capitulados. Na
revolução democrática alemã de 1848, Heimat serviu como justificativa para
lutar contra os déspotas fidalgos; no período do colonialismo alemão, foi usada
para proclamar as terras e sujeitos oprimidos como “extensão” do território
nacional. Pelos nacional-socialistas, o termo serviu para chamar à defesa da
“pátria” contra o “inimigo”. Depois das guerras, Heimat também fez parte dos
esforços para unir um país dividido. Mais tarde, na época do movimento 19683,
o conceito serviu às forças de esquerda para resistir à dominância estaduni-
dense e à contaminação do meio ambiente. Mesmo marcada por profundas
contradições, até hoje “[...] a ideia de Heimat é (…) uma parte central das tenta-
tivas de pessoas que falam alemão em dar sentido ao mundo onde eles vivem”
(BLICKLE, 2012, p. 55).
Embora a tendência geral da Heimat seja virar um espaço mais e mais in-
dividualizado, dependendo das definições de pertencimento de cada um(a)
(BLICKLE, 2012), hoje também observamos novamente a ocupação desse ter-
mo pela direita e pela extrema direita. Essas forças sugerem uma noção estática
do termo: o mesmo ministro do interior citado anteriormente rebatizou o seu
ministério, incluindo o termo “Heimatministerium”. Convencido que Heimat
não é nada que se deixe prescrever e enquadrar em instituições oficiais, o pre-
sente trabalho o entende como “[...] categoria implícita pelo estudo de rela-
cionamentos intersecionais, individuais e coletivas com lugares particulares”
(EIGLER; KUGELE, 2012, p. 09). Portanto, a seguir se examina o uso de três
dimensões como constituintes da Heimat nos movimentos sociais, a saber: o
espaço, a memória coletiva e o pertencimento.
3. Os movimentos de 1968, na Alemanha, foram movimentos sociais da esquerda que exigiam a reforma do
sistema político e da sociedade, a favor de direitos sociais, e um socialismo democrático. Emergiram em
concordância com movimentos de protesto em vários países europeus e nos Estados Unidos.
24 Territórios de esperança
político atual e a dominância das políticas neoliberais, apoiando os partidos
de extrema direita.
As crescentes desigualdades na sociedade alemã provocam experiências
extremamente distintas. Dividindo a sociedade, a globalização “[...] permite
que alguns grupos, em geral os mais privilegiados, usufruam de uma multipli-
cidade inédita de territórios” (HAESBAERT, 2007, p. 38), aproveitando a mul-
titerritorialidade que caracteriza as nossas sociedades: falamos várias línguas,
viajamos para vários lugares e temos a oportunidade de aprender mais que
uma tradição de saberes. No lado oposto, a “globalização negativa” (BAUMAN,
2007) marginaliza mais ainda os já marginalizados. Haesbaert (2007, p. 20) nos
lembra que “[...] quem de fato perde o ‘controle’ e/ou a ‘segurança’ sobre/em
seus territórios são os mais destituídos, [...] mais precariamente territorializa-
dos”. Alguns reagem a essa percebida “des-territorialização”, tentando restituir
o controle por meio de iniciativas nacionalistas que, por engano, prometem
voltar a um passado mais estável e mais calculável.
26 Territórios de esperança
e 1973 (KOLINSKY, 2002). Ao invés de promover uma visão múltipla, diversa
e aberta da nacionalidade, o racismo individual e estrutural impossibilitou e
impossibilita para muitos se sentirem parte respeitada da sociedade alemã,
exigindo que você se posicione ou como turco ou alemão, sem considerar que
a visão monoterritorial da identidade não consegue dar conta das experiências
múltiplas e multiterritoriais. Essas discriminações internas não só se referem a
etnias, mas a outras características socioeconômicas ou socioculturais, e impe-
dem um sentimento de pertencimento por grande parte da sociedade Alemã.
Os movimentos da extrema direita se aproveitam dessas desigualdades e
divisões existentes, ocupando o discurso do pertencimento e propagando uma
visão exclusiva e estática da identidade alemã. Nas suas manifestações, recla-
maram, baseados no aspecto físico, de quem pertence e quem não pertence;
quem é “verdadeiro alemão” e quem não é; e, ultimamente, intentam determi-
nar quem faz parte do povo, quem faz parte do “nós”.
Reapropriação de noções
28 Territórios de esperança
numa maneira simplista ou esquemática” (EIGLER; KUGELE, 2012, p. 04). Ao
invés de promover uma visão estática e exclusiva da Heimat como a extrema
direita, devemos nos apropriar da palavra e ativamente influenciar a “produ-
ção social e cultural de lugares de pertencimento” (EIGLER; KUGELE, 2012,
p. 03) num mundo mais e mais interligado. Confrontando a versão única da
Heimat da extrema direita, devemos revelar e promover a multiplicidade das
representações da sobre ela que “[...] surgem da percepção mutável e indivi-
dualizada do sujeito” (BLICKLE, 2012, p. 60) e que, portanto, permitem que me
defina como alemã e polonesa (ou turca, ou brasileira, ou libanesa...).
Isso também significa entender que Heimat não é nada que eu poderia defi-
nir para outra pessoa: cada uma sente seus próprios pertencimentos em outros
lugares. Pelos movimentos de esquerda, resta a responsabilidade de criar as
condições para que todas possam se sentir na Heimat na Alemanha, e possi-
bilitar a abertura de discursos que debatam esse conceito, a sua construção e
questões interligadas de identidades múltiplas.
Em alguns âmbitos, essa visão mais inclusiva e dinâmica já está sendo im-
plementada, como afirma Irchenhauser (2011), pelas novas gerações de es-
critores e cineastas que trabalham com a noção da Heimat. Considerando as
experiências, combinando várias territorialidades, constroem lugares de per-
tencimento baseadas na diversidade. Igualmente, o coletivo “Neue Deutsche
Medienmacher” (Novos Produtores de Mídia Alemães) redefine quem é “ale-
mão”. Dependendo e ou Provenientes de vários contextos socioculturais, eles
trabalham para alcançar uma maior diversidade e representatividade na mídia
alemã. Se autodenominando os “novos alemães”, não deixam a definição do
“nos” pelos movimentos como PEGIDA e AfD, senão ocupam o espaço público
para fazer a diversidade da sociedade alemã visível.
Apesar da existência dessas iniciativas, é urgente que coloquemos temas de
identidade e pertencimento na nossa agenda nos espaços da esquerda. Mui-
tas das vezes, somos bons pela interrogação crítica de qualquer identidade,
mas não oferecemos espaços discursivos e físicos para atender à necessidade
humana de localidade. Como Paulo Freire (2015) nos lembra, pela transfor-
mação é necessária a denunciação, mas também a anunciação, a criação de
alternativas positivas. Assumir e redefinir a terminologia da identidade são
passos necessários para resistir a visões uniformes promovidas pelo capitalis-
mo e pela extrema direita. Ao invés de ter medo do termo “cultura”, podemos
abrir o discurso sobre as culturas que vivemos, lembrando que “[...] em nome
Disputar espaços
Nos tempos atuais, as nossas cidades e vilas estão sendo ocupadas pelo
capital ou abandonadas, em busca dele. A gentrificação e o êxodo rural que-
bram laços locais, que antigamente davam segurança social e brindaram Hei-
mat. Portanto, temos que oferecer alternativas em escala local, reconstruindo
identidades que dão a oportunidade de responder ao medo de muitos, que é
a perda de identidade (s). Como propõe Haesbaert (2007, p. 19), é necessário
revelar que o momento que estamos vivendo não seja marcado pela perda de
territorialidade, mas por uma crescente multiterritorialização: a globalização
não leva a uma des-territorialização, senão à “[...] intensificação e comple-
xificação de um processo de (re)territorialização [...] `multiterritorial´“. En-
quanto e ou quando a extrema direita lamenta “o fim do Ocidente”, temos
que revelar os benefícios de um mundo menos eurocêntrico e mais pluricên-
trico, “[...] resistindo a monodimensionalidade cultural associada [...] com o
capitalismo global” (TABERNER; FINLAY, 2002, p. 14). Isso também signifi-
30 Territórios de esperança
ca reconhecer a memória como parte de todas as territorialidades presentes
nas nossas sociedades, e criar um discurso de multipertencimento territorial
(HAESBAERT, 2007).
Contra a redução da identidade no entendimento único do neoliberalismo
global e na visão exclusiva da extrema direita, temos que promover a multipli-
cidade e complementaridade de identidades. Nos espaços da esquerda, não
devemos reproduzir a lógica do neoliberalismo que “[...] se baseia ideologica-
mente numa dissociação absoluta de economia e cultura” (THOMPSON, 2002,
p. 130), mas ativamente influenciar e reconstruí-las como conceitos dinâmicos
em oposição à perspectiva estática da extrema direita.
Haesbaert (2007, p. 20) nos lembra que “território [...] tem a ver com poder”.
Portanto, necessariamente temos que debater novas formas de participação
política, quando falamos de uma transformação do discurso sobre territoria-
lidades. Questões de redistribuição de poder econômico obviamente estão
inerentemente ligados às questões de poder. Mas como a “[...] criação de con-
dições objetivas econômicas pela transformação social é só uma parte [...] da
tarefa de efetuar mudança nas identidades e lealdades das pessoas” (THOMP-
SON, 2002, p. 136), também precisamos assegurar a participação política de
todos no processo de construção do espaço e da memória coletiva. Estamos
presenciando, em várias regiões do mundo, o fracasso do modelo de demo-
cracia como a conhecemos hoje. Como esquerda, temos que promover outros
formatos verdadeiramente democráticos que assegurem a participação de to-
dos. Modelos que repartem cargos políticos em grêmios menores, por meio da
lotaria, ao invés do voto, conseguem incluir todas as cidadãs; mostraram em
vários contextos abrem espaços de reflexão, engajamento e formação política
(REYBROUCK, 2016). Temos que nos atrever a responder as tendências antide-
mocráticas crescentes na população com novas formas de democracia.
Iniciativas locais têm um papel decisivo em construir essas identidades:
não podemos restringir os nossos ao nível global, já que “[...] a defesa de um
‘espaço de todos’ (…), de um território efetivamente a serviço de processos
crescentes de democratização, não pode nunca se restringir apenas à moda-
lidade de territórios-rede” (HAESBAERT, 2007, p. 31). Além do fato de que o
nível local permite a comunicação mais direta, é necessário, potencialmente,
incluir todas e abrir novas oportunidades de participação. Ao mesmo tempo,
não devemos perder a oportunidade de nos conectar além das fronteiras na-
cionais e continentais.
Considerações finais
32 Territórios de esperança
vimos tentativas de copiar os discursos da extrema direita para ocupar espaços
discursivos. Essas tentativas, que não diminuem o apoio popular pelos movi-
mentos da extrema direita, erram: ao invés de copiar, temos que reocupar e
redefinir as categorias importantes, para que não sejam somente os populistas
falando da identidade e da Heimat. Quando assumimos e redefinimos essas
categorias, temos a oportunidade de criar outra visão dinâmica e inclusiva do
coletivo, reclamando o “nós” e deixando claro que existem alternativas bem
mais diversas e válidas na Alemanha do que a autoproclamada “Alternativa
para Alemanha”. Reconhecendo o papel importante da língua, faz-se necessá-
rio reocupar as palavras e abrir os debates para poder responder à “[...] retórica
irracional e inflamatória que pode desestabilizar culturas políticas e as suas
bases eleitorais” (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 13).
Propondo uma visão dinâmica e inclusiva, os discursos da esquerda obvia-
mente não devem partir de um entendimento nacionalista. Ao mesmo tempo,
não devem ignorar os legados das nações na ordem global vigente e na vida de
cada um (a). Antes de tentar criar um consenso nacional, devemos trabalhar
para criar ou fortalecer outros coletivos inclusivos que albergam a necessidade
dos sujeitos de localidade e pertencimento e que, em algum momento, talvez
possam substituir o construto eurocêntrico da nação.
Enquanto reclamamos espaços físicos e de poder, é necessário prover al-
ternativas sistemáticas ao neoliberalismo dentro dos partidos na Alemanha,
tal como ao nível global. Essas alternativas precisam partir do local que inspira
soluções e faz identidades tangíveis. Partindo de uma “[...] noção alternativa
da Heimat, que não depende de origens ou futuros utopistas, mas que emerge
pela interação social nos ambientes urbanos” (EIGLER; KUGELE, 2012, p. 09).
Além disso, no campo, podemos entender Heimat como um processo, como
Beheimatung em construção e interação.
Não só na Alemanha, mas também no Brasil e em outros lugares do mundo,
as forças da extrema direita estão ganhando apoio. Caçando votos com a pro-
messa de criar um “nós” simplificado, esses grupos indicam a relevância das
categorias de espaço, memória e pertencimento. Por conseguinte, pelos gru-
pos da esquerda, não somente é necessário “[...] reconhecer a importância es-
tratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade”
(HAESBAERT, 2007, p. 42), mas também repolitizar o entendimento popular
das identidades. A crescente tendência à despolitização da educação, que no
Brasil se mostra na iniciativa “Escola Sem Partido”, e na Alemanha nas tenta-
Referências
34 Territórios de esperança
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Introdução
38 Territórios de esperança
Transgênicos no México
É importante destacar que dos 853 pedidos, têm sido aprovados um total de
595, enquanto 123 estão em processo, e 113 têm sido rejeitados. Em primeiro
lugar, encontram-se os pedidos de algodão transgênico, com 405, dos quais,
308 foram permitidos; em segundo lugar, encontra-se o milho, com 327, dos
quais, 194 foram autorizadas, 91 estão em processo e 42 foram rejeitadas. Se-
guem, com uma grande distância, a soja, o trigo, alfafa e outros.
Antes da Lei de Biossegurança, de 2005, foram concedidos 33 pedidos para
cultivo experimental de milho transgênico; os ensaios foram realizados em
escala mínima. De 1993 a 1999, a área total cultivada com essas sementes foi
de 4,5 hectares. No entanto, após 2005, do total de 853 pedidos já referidos,
327 são transgênicos, 70% são produzidos pela Monsanto e pela Pioneer. Des-
sas 327, foi solicitada autorização para 228, em fase experimental; 169 foram
aprovadas; 80, em fase piloto, com 26 aprovações; e das 19, na fase comercial,
40 Territórios de esperança
nenhuma foi aprovada até o momento, devido à “Ação Coletiva” que vários
grupos têm expressado. (SANDOVAL, 2017)
Certamente, se compararmos as áreas cultivadas e a produção de milho
transgênico em países como Estados Unidos (mais de 36 milhões de tonela-
das métricas anuais) (CIBIOGEM, 2015), resultaria irrelevante a situação no
México. A realidade é que a forte oposição aos transgênicos, em geral, e ao
milho transgênico, em particular, sustenta-se numa série de argumentos que
o presente trabalho não alcança detalhar em profundidade, mas pelo menos é
relevante mencionar, porque constitui a essência que dá lugar a uma das lutas
mais importantes do povo mexicano.
A policultura é muito mais complexa do que a sua definição sugere, já que não
é apenas o plantio de duas ou mais espécies vegetais num espaço confinado: nela
também estabelecem-se interações entre os organismos que habitam, sejam plan-
tas, cultivadas ou não, e aqueles que chegam espontaneamente [...] Portanto, afir-
mamos que a milpa é um ecossistema feito pelo ser humano, ou seja, um agroecos-
sistema e, como tal, está constituído por elementos florísticos, ecológicos e culturais
muito particulares.
Em termos florísticos, as policulturas estão conformadas por diversas espécies
sujeitas a diferentes formas de manejo humano. Por um lado, temos plantas pro-
priamente domesticadas, que os agricultores têm selecionado de maneira intensa e
direta com o intuito de obter características desejáveis para usá-las por eles mesmos
ou para seus animais domesticados. Também estão as plantas consideradas como
toleradas, que são espécies que crescem espontaneamente em ambientes antro-
pogênicos, sem a ajuda dos humanos, mas que possuem adaptações às condições
de manejo da policultura. Além disso, temos as espécies fomentadas, que também
são plantas não domesticadas com adaptações ambientais, mas cujas sementes são
ocasionalmente mantidas pelos agricultores para serem plantadas no próximo ciclo
agrícola, o que representa uma seleção humana incipiente que, sem saber, garante
que elas cresçam profusamente. (RENDÓN-AGUILAR, BERNAL-RAMÍREZ, SÁN-
CHEZ-REYES, 2017)
42 Territórios de esperança
A luta pela terra
A defesa que o povo fez pelo milho não começa com a introdução dos OGM
no México. Essa luta é mais de caráter histórico, embora certamente a forma
de cobrança seja pela exploração dos transgênicos, talvez, agora, uma das mais
violentas e alarmantes.
No século XX, o México, igual a muitos países da América Latina, passou de
uma sociedade predominantemente rural para uma urbana, devido, principal-
mente, ao desenvolvimento industrial e a expansão das cidades. No entanto,
foi neste país que se deu a primeira grande revolução agrária do século XIX,
uma batalha que, apesar de ter sido iniciada por um setor de latifundiários
mexicanos que denunciavam os crescentes privilégios que o governo de Porfi-
rio Diaz concedeu aos estrangeiros, seu caráter mais profundo foi sustentado
por uma revolta nacional camponesa que surgiu em todas as regiões do país.
Tratava-se de trabalhadores agrícolas que, como herança do colonialismo,
haviam sido despejados de suas terras ancestrais e se dedicavam a trabalhar
para os proprietários nas fazendas (a principal forma que adquiriu a grande
propriedade rural).
A chamada para derrubar o governo de Diaz, que levou mais de trinta anos
na presidência, foi feito sob o slogan de não reeleição, mas uma série de even-
tos motivou os agricultores a organizarem-se, desde suas próprias regiões, com
a finalidade de sublevar-se contra o sistema de exploração ao qual estavam
submetidos, expandindo-se até formar pelo menos dois grandes grupos nacio-
nais de luta, o norte, liderado por Francisco Villa, e o centro sul, com Emiliano
Zapata encabeçando.
Como não é o propósito deste artigo fazer uma resenha deste processo
histórico, basta dizer que o caráter de massa, organizado, estratégico, radical
e autêntico da luta camponesa, permitiu, no meio de uma batalha, estendi-
da de 1910 a 1921, momento em que várias elites assumiram o poder, que os
camponeses conseguissem algumas das suas demandas centrais: proibição do
latifúndio, a abolição da escravatura e do trabalho forçado, a distribuição de
terras para a criação de novos centros de população agrícola, o acesso à água;
e que, até a década de 1990, sem nenhum motivo, os estrangeiros poderiam ter
domínio direto sob a terra e a água.
Resultado também desta relativa vitória, no México, a terra, que antes esta-
va concentrada em poucas mãos, foi distribuída entre milhares de campone-
44 Territórios de esperança
-se principalmente por essa via. Neste período houve um êxodo massivo do
campo para a cidade. Milhares de pessoas deixaram suas terras para procurar
emprego fora. A migração tornou-se um importante fenômeno social, devido
ao deslocamento forçado produzido pela pobreza.
3. Faço referência ao ano de 1940 porque “é quando termina o período de Lázaro Cárdenas del Río a frente
da presidência, em qual se ratificou o conteúdo social da questão agrária na constituição que emanou
da Revolução Mexicana e que se executou através da Reforma Agrária de 1936, com que se entregaram
17.609.139 de hectares em restituição e dotação, mais que os 10.085.863 de hectares entregues nos 20 anos
anteriores. A distribuição foi sendo cada vez menos, desde 1940”. (SILVA, 1975, p. 68)
46 Territórios de esperança
Uruguai. México foi poupado em termos de uma maior exploração, em parte,
porque a quantidade de terras que são propriedade de camponeses e indíge-
nas, bem como a segurança jurídica que eles ainda têm, além do nível de frag-
mentação de participações, complicam a negociação com tantos proprietários
para a compra de grandes extensões.
No entanto, a desapropriação territorial de populações camponesas e indí-
genas veio por meio de outros mecanismos. Um deles é a Reforma Energética
de 2014, feita pelo governo de Enrique Peña Nieto, a qual colocou como prio-
ridade a extração e exploração de recursos de petróleo, gás e energia, estando
acima do direito à alimentação, água, e, portanto, do território com todo o seu
conteúdo biodiverso e cultural. (CECCAM, 2015)
Anteriormente, as portas já haviam sido amplamente abertas para a mine-
ração a céu aberto, que, segundo Eckart Boege, apenas entre 2000 e 2012 foram
concedidas nos territórios indígenas, em torno de 2.173.141 hectares, dos 28
milhões identificados com o núcleo duro dos territórios indígenas. (BOEGE,
2013). As leis constitucionais também foram alteradas, para permitir que es-
trangeiros pudessem comprar propriedades nas costas do país. Desde então,
há um crescente processo de privatização de áreas costeiras e de praias.
A introdução dos transgênicos pode ser inscrita nessas novas formas de
desapropriação; autores como David Harvey chamaram essa fase de “acumu-
lação por despossessão”, precisamente porque o capitalismo requer velhas e
novas formas de acumulação. Na verdade, Marx já falava sobre como o capita-
lismo, que, apesar de seus avanços tecnológicos, precisava permanentemente
da natureza. O tempo nos mostrou até que ponto o progresso das técnicas e das
máquinas, bem como seus usos, dá-se, por um lado, e, por outro, as maneiras
pelas quais o capital valoriza a natureza para transformá-la em mercadoria.
A pergunta que fazemos, uma vez que situamos o problema dos OGM no
contexto histórico é: como conseguiu-se frear até agora o plantio comercial de
milho transgênico no México, quando se enfrentam os grandes poderes do ca-
pital encabeçados pelas empresas transnacionais em aliança com os governos?
A resposta antecipada é que isso só tem sido possível por meio de uma ampla
ação coletiva.
48 Territórios de esperança
zonas de guerra como o Vietnã), que fazem desaparecer toda a vegetação e a
fauna, por recombinação genética da semente. Ele é o único resistente a dito
agrotóxico. O uso desses venenos e seus métodos de fumigação tem matado
plantas, animais, e, crescentemente, registram-se mais casos de doenças como
câncer4 e deformações em humanos.
Conhecidas estas consequências dos transgênicos, quando se estava nego-
ciando a LBOGM, e sendo eliminada a moratória para o milho, muitos campo-
neses começaram a se juntar com organizações da sociedade civil, acadêmicos
e cientistas, para formar um grupo muito diversificado, mas com um objetivo
articulador: deter a entrada das sementes transgênicas, para o caso do milho
e a defesa da milpa. Apesar de que a Monsanto procurou uma lei feita a seu
modo, demonstrou alguns mecanismos legais de biossegurança que têm sido
muito importantes para a realização de uma defesa jurídica. Aproveitando al-
gumas mudanças constitucionais de 2010, que permitem as ações coletivas
como novo instrumento jurídico para interpor demandas em matéria de direi-
tos coletivos, ora chamada Coletividade do Milho, promoveu, no dia 5 de julho
de 2013, perante o Poder Judicial da Federação, “[...] uma demanda Civil de
Ação Coletiva com pretensões declarativas, sobre o direito humano à diversi-
dade biológica dos milhos nativos e autóctones do México”, apelando também
aos direitos em matéria do meio ambiente e do consumidor.
A demanda é contra as secretarias de Estado SAGARPA e SEMARNAT (do
Meio Ambiente e Recursos Naturais), contra Monsanto, Pioneer México, Dow
Agrosciences México e Syngenta Agro. (SAN VICENTE; MORALES, 2015, p. 176)
O propósito é que os tribunais declarem insuficientes os limites e restrições
estabelecidos na LBOGM, especialmente após comprovar a contaminação
transgênica de milhos nativos nos estado de Oaxaca, Veracruz e Guanajuato, já
que a liberação danificaria o direito humano da diversidade biológica dos mi-
lhos nativos, “[...] o direito pelo meio ambiente saudável, a conservação, parti-
cipação justa e equitativa, assim como o uso sustentável que garanta o acesso
às gerações futuras, [...] a uma alimentação adequada, nutritiva, suficiente e de
qualidade; aos direitos culturais e à saúde”. (SAN VICENTE; MORALES, 2015)
4. Em 20 de março de 2015, a Organização Mundial de Saúde publicou, por meio da Agência Internacional de
Câncer, um estudo relatando que, após alguns experimentos, o glifosato causou danos ao DNA e a cromos-
somos nas células humanas, por isso, foi confirmado que pode causar câncer em animais de laboratório
e possibilidades (evidência ainda limitada) de cancerinogenicidade em humanos. Os estudos continuam.
(IARC, 2015)
50 Territórios de esperança
Considerações finais
Referências
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análisis integral sobre el caso de México. México, D.F.: UNAM/CEIICH/UCCS/Universidad
Veracruzana. 2013.
52 Territórios de esperança
Questão agrária e geopolítica dos recursos naturais
em Moatize–Moçambique: a Vale S.A. e o extrativismo
epidêmico
Guilherme Whitacker
Introdução
1. Estivemos em Moçambique entre julho e agosto de 2018 para realizar a pesquisa empírica de nosso Pós-
-Doutorado (processo FAPESP 2017/08847-3) do qual esse artigo faz parte, contudo, apresentamos um
texto geral sobre os processos territoriais e nos dedicamos com maior atenção a reflexão teórica, tendo em
vista nosso objetivo principal.
54 Territórios de esperança
O impasse não está no extrativismo em si, essa é uma ação de extrair ma-
térias primas para a sobrevivência e melhores condições de existência da hu-
manidade que ocorre desde a assim chamada acumulação primitiva. Ocorre
que, com o acirramento da extração mineral nos períodos entre, e pós-guerras
mundiais, tal atividade passou a ser, economicamente, conceituada a partir da
classificação das atividades produtivas como setor primário (CLARK, 1940).
Desde então a mesma foi intensificada pela formação do meio técnico-cientí-
fico-informacional (SANTOS, 2009) e concomitante surgimento de conglome-
rados extrativistas multinacionais a partir da década de 1970, conforme escre-
veram Yves Lacoste (1975), Pierre George (1980), Manoel Correia de Andrade
(1985) e Milton Santos (2008; 2009), a atividade extrativa passa a ser praticada
em grandes volumes e escala por meio da materialização de megaprojetos ex-
trativistas que trazem em seu bojo a subsunção formal e informal dos recursos
naturais (SMITH, 2009) por meio do poder de multinacionais e de mecanismos
de mercado, finanças e investimento.
É fato que o modo de produção capitalista está assentado sobre uma con-
tradição estrutural. A dependência de recursos naturais, sobretudo de poten-
cial energético, que necessitam ser extraídos cada vez em maior volume para
garantir a fluidez de serviços, produtos e mercadorias, articulado a mecanis-
mos de economia política direcionados a subsunção dos recursos naturais e
exploração das condições sociais de produtividade voltado à extração de mais
valor, permite questionar a própria capacidade de reprodução ad infinitum
desse modo de produção, pois demonstra a própria irracionalidade, contradi-
ção sistêmica e irreformabilidade.
Ainda que amparado por relações hegemônicas e antagônicas que per-
mitem, por meio do revolucionamento constante das forças produtivas, que
seu processo sociometabólico entre períodos de ajustes do próprio sistema
de retroalimentação espaço temporal desse modo de produção se mantenha
às custas da exploração irracional de recursos naturais e da sociedade. Assim
compreendido, o modo de produção capitalista é mais que um conjunto de
mecanismos econômicos e políticos, daí ser considerado como um modo de
reprodução sociometabólico multifacetado e oniabrangente, demasiadamente
arraigado no cotidiano, afetando profundamente tudo e cada aspecto da vida
visando assegurar sua expansão conduzido pela acumulação como um fim em
si mesma (MARX, 2012; MÉSZÁROS, 2009; HARVEY, 2014).
56 Territórios de esperança
população e do território: “O poder visa o controle e a dominação sobre os
homens e as coisas” (RAFFESTIN, 1993, p. 20).
Em Moçambique, desde a década de 2000, tem sido registrado um acrés-
cimo vultoso de IED na forma de megaprojetos extrativistas incentivados pelo
FMI (FMI, 2014) e, este fato, posicionou economicamente o país no sistema
internacional de crédito, ainda que este desempenho represente uma concen-
tração de capitais em uma pequena parcela da elite moçambicana. As ações
das multinacionais extrativistas potencializam a dinâmica territorial desigual
ao priorizar relações econômicas voltadas à produção de commodities mine-
rais e, por outro lado, a degradação social e natural.
A partir destes entendimentos e com a contestação da intensificação da
subsunção da natureza na forma do extrativismo, conceitos como poder, ter-
ritório e acumulação por espoliação se correlacionam e permitem estudos
sobre a questão agrária em Moçambique quando examinada a partir da geo-
política dos recursos naturais e da dinâmica territorial extrativista questio-
nando o conceito mainstream do desenvolvimento sustentável, isso porque,
esse é um poderoso conceito de cunho discursivo ideológico que difunde a
imagem da multinacional Vale S.A. como engajada em projetos humanitá-
rios, fato que mascara os reais impactos negativos das atividades extrativistas
(WHITACKER, 2019).
As práticas territoriais exercidas pela Vale S.A. forjam o desenvolvimento
desigual e combinado dos, e nos, territórios a partir da produção de commo-
dities minerais e intensifica a questão agrária moçambicana, o que demons-
tra a contrariedade sobre o desenvolvimento sustentável proposto por essa
multinacional que, indo ao encontro de iniciativas empresariais que aderem
a economia verde e tendo em vistas fazer parte do Índice de Sustentabilida-
de Empresarial (ISE) da Brasil, Bolsa, Balcão (B3), uma das mais importantes
agências de negociação de ações da Vale S.A., para incluir a multinacional na
seleta carteira de investidores que aderem aos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável, proposto pela ONU em 2015.
Assim, a Vale S.A. massifica a disseminação de informações de que sua
missão é: “Transformar recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento
sustentável” (VALE, 2018, p. 3). E, por meio deste argumento central, transmite
a ideia de “Ser a empresa de recursos naturais global número um em criação
de valor de longo prazo com excelência, paixão pelas pessoas e pelo plane-
ta” (VALE, 2018, p. 3). Dessa forma, o desenvolvimento sustentável é utilizado
58 Territórios de esperança
co: “[...] um conceito representa uma categoria de objetos, de eventos ou de
situações e pode ser expresso por uma ou mais de uma palavra” (HARDY-VAL-
LÉE, 2013, p. 16). Ainda segundo o autor, a forma de representação do mesmo
pode ser mental, linguística e pública, considerando que “[...] o conceito é a
unidade primeira do pensamento e do conhecimento: só pensamos e conhe-
cemos na medida em que manipulamos conceitos” (HARDY-VALLÉE, 2013, p.
21). É nesta concepção que trabalhamos com a palavra conceito.
De nossa parte, após realizar exaustiva pesquisa nos trabalhos apresentados
no Simpósio Nacional de Geografia Agrária (SINGA, 2015), Encontro Nacional
de Geografia Agrária (ENGA, 2016) e, Encontro Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Geografia (ENANPEGE, 2017), identificamos que o conceito de
neoextrativismo não é interpretado geograficamente apesar de ser utilizado de
forma direta. Posteriormente, verificamos os anais do XXIV Encontro Nacional
de Geografia Agrária (ENGA, 2018) e na VI Conferência Internacional da Ini-
ciativa BRICS para Estudos Agrários Críticos2 (BICAS, 2018), nesses dois even-
tos o debate crítico sobre o conceito (neo)extrativismo também não aparece.
Consideramos portanto que o uso do (neo)extrativismo como conceito
tornou-se prática na Geografia e, deste reconhecimento fomos levados a ques-
tionar a ambiguidade em torno do mesmo considerando o fato que, tem se
tornado regra, sob a primazia ideológica do modo de produção capitalista,
compreendê-lo desarticulado do processo histórico e geográfico de formação
das relações sociais de produção que se materializam nos territórios a partir
da atividade extrativista e, entendemos que esta análise desarticulada remete
a alienação de pesquisadores e consequente utilização indevida do mesmo.
Por isso, ao encararem o desenvolvimento da atividade extrativista de fora
dela, ao assumir uma postura contemplativa a partir da qual a fluidez geográ-
fica do uso dos territórios e o momento histórico concreto lhes aparece como
algo exterior, alguns geógrafos começaram a se servir do conceito em propor-
ção cada vez mais elevada, porém, sem critérios analíticos e críticos tornando
o mesmo cada vez mais desprovidos de conteúdo histórico e geográfico e, por
conseguinte, de base material. Assim, criaram metáforas teóricas sem cuida-
dosa elaboração lógica buscando enquadrar a fluidez do extrativismo, de acor-
do com as diferentes fases de evolução do modo de produção capitalista, na
2. Apesar desse não ser um evento geográfico, optamos por incluir o mesmo pela numerosa presença de
geógrafos nas mesas principais de debates e apresentação de trabalhos.
60 Territórios de esperança
vem sendo realizado para justificar as contradições do mundo real capitalista,
ou seja, o prefixo não altera o significado de sua essência que representa uma
forma de relação entre a sociedade e a natureza que é, em sua essência, con-
traditória na atualidade.
Isso, porque consideramos que o prefixo neo tende a interpretação de algo
novo durante algum tempo, mas não consideramos prudente entender que
esse novo seja durador, pois o tempo, para o desenvolvimento da atividade
extrativista, é algo que flui com facilidade, é na sua fluidez que se constroem
as novidades tecnológicas que se fixam nos territórios e revitalizam a ativida-
de extrativista por meio da tendência a supressão espaço-temporal, portanto,
deveria existir uma relação de vacância temporal entre o extrativismo e o (neo)
extrativismo, algo que não identificamos.
Sendo assim não consideramos a ressignificação conceitual como algo
estático, simplesmente nominal, mas sim como uma leitura que nos permite
compreender a materialidade de determinadas informações transmitidas atra-
vés de códigos inseridos nos conceitos de acordo com a ciência e teoria em que
este está inserida e, concordando que as teorias podem ser maneiras de pensar
e entender a materialidade, concordamos, também, que o pesquisador pode
entender as teorias científicas como um conjunto de proposições conceituais
que lhe permite dialogar com a realidade e construir um entendimento cientí-
fico sobre os fatos reais que observa.
O megaprojeto extrativista de carvão mineral da Vale Moçambique em
Moatize influi na produção do espaço regional e implica na alteração dos usos
dos territórios, possui escala de abrangência que vai do local ao global – con-
siderando o que Santos (2009) escreveu sobre as escalas de comando e escalas
de ação – e, a acumulação por espoliação é sua forma material. Portanto, a
simples aplicação do prefixo neo ao extrativismo não nos serve para entender
essa realidade. É necessário torná-lo operante pela, e para, a Geografia.
Revelando essa informação temos os estudos de Gudynas (2009, 2011,
2013), Acosta (2018), Lander (2018) e outros que firmam o conceito de neoe-
xtrativismo, sobretudo na América Latina e do Sul, mas, em nossa observação
não nos servem como forma conceitual aplicável a Geografia. Reconhecemos
sua importância, mas também a necessidade de geograficizar os esforços em-
preendidos para que a Geografia não se prenda em conceitos oriundos de
outras ciências. Ademais, importantes publicações brasileiras sobre o extra-
tivismo (ZHOURI; 2018, DILGER, LANG, FILHO, 2016, MILANEZ, 2013) não
62 Territórios de esperança
o fluxo de capitais. Reconhecendo que a lógica de domínio territorialista apre-
senta uma concepção limitada de território, entendendo esse como recurso
a ser dominado para, a partir dele, se apropriar de determinadas matérias, a
lógica capitalista e territorialista empreendida pelas multinacionais pode ser
entendida como dialética, nenhuma pode se reduzir a outra, pois o controle
sobre o território e a capacidade de mobilizar recursos para obter poder são a
força do extrativismo epidêmico.
Moçambique, o país hospedeiro, recebe a Vale S.A., uma multinacional
que pode ser considerada, a partir de uma analogia, como um vírus que se
espalha por todo o planeta, presente em 27 países, em todos os continentes.
A Vale Moçambique é a forma de materialização naquele país e a epidemia
começa a demonstrar seus impactos negativos a partir do território do mega-
projeto de carvão mineral de Moatize (local – mina de extração) e se estende
até o porto de Nacala-a-Velha (regional – porto de exportação), cruzando, por
meio de linha férrea, o país vizinho Malawi gerando as mais diversas formas
de impactos socioterritoriais negativos por mais de 1000 Km, temos, portanto,
uma multiterritorialidade. É a partir da escala local que os impactos territoriais
epidêmicos se expandem.
Desencadeia-se, assim, o avanço da proliferação da territorialização da
Vale Moçambique pelo monopólio e alteração no uso dos territórios e, estes
fatos, permitem considerar que, de acordo com Raffestin (1993), a concepção
territorial de agentes econômicos e políticos hegemônicos, como a Vale Mo-
çambique, aplique uma concepção limitada de território, considerando ape-
nas sua dimensão física, o que acaba por transformar o próprio território em
recurso a ser dominado. Nesse sentido, o território usado se aproxima daquela
concepção apresentada por Becker (1983) do uso político do território e de
Santos (2000) de território como recurso “[...] mediante a seletividade dos in-
vestimentos econômicos que gera um uso corporativo do território” (SANTOS,
2000, p. 6).
A tendência atual é no sentido de uma união vertical dos lugares. Créditos inter-
nacionais são postos à disposição dos países e das regiões mais pobres, para permi-
tir que as redes se estabeleçam ao serviço do grande capital. Nessa união vertical, os
vetores de modernização são entrópicos. Eles trazem desordem aos subespaços em
que se instalam e a ordem que criam é em seu próprio benefício. E a união vertical –
64 Territórios de esperança
seria melhor falar de unificação – está sempre sendo posta em jogo e não sobrevive
senão à custa de normas rígidas (SANTOS, 2009, p. 192).
O espaço, o território, o lugar, as relações sociais, as escalas das ações nos aju-
dam a compreender os tipos de movimentos socioespacial ou socioterritorial e seus
processos geográficos (isolados, territorializados ou espacializados). Esses movi-
mentos são tanto instituições formais, quanto não formais, políticas no sentido lato,
por sua materialidade, ação, estabelecimento e dinâmica, quanto são igualmente
instituições formais como os sindicatos, as empresas, os estados, as igrejas e as or-
ganizações não governamentais (ONGs). Nesse sentido, é preciso diferenciar entre
os movimentos socioespaciais e os movimentos socioterritoriais. Os movimentos
socioterritoriais têm o território não só como trunfo, mas este é essencial para sua
existência. Os movimentos camponeses, os indígenas, as empresas, os sindicatos e
os estados podem se constituir em movimentos socioterritoriais e socioespaciais.
66 Territórios de esperança
Porque criam relações sociais para tratarem diretamente de seus interesses e assim
produzem seus próprios espaços e seus territórios. (FERNANDES, 2005, p. 31, itá-
licos nossos).
68 Territórios de esperança
radoras e, segundo, nas relações internacionais, o Estado é ainda importante
agente na organização territorial mundial (SMITH, 1996). No entanto, as ações
políticas de diferentes sujeitos atingem os territórios engendrando novas dinâ-
micas em âmbito local e regional. Logo, essas escalas geográficas não podem
ser negligenciadas pela geopolítica dos recursos naturais.
Considerações finais
70 Territórios de esperança
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72 Territórios de esperança
Os conflitos rurais na Argentina profunda: uma
caraterização da luta pela terra em Santiago del Estero
Cristian Jara • Ramiro Rodríguez • Raúl Paz1
Introdução
T em sido comum afirmar que na Argentina não há índios, negros, e tão pou-
co camponeses. Esse imaginário dominante é fortemente problematizado
pelos movimentos sociais agrários que surgiram no país nas últimas décadas,
e que reaparecem continuamente em conjunturas críticas, tais como o conflito
de 2008 em torno das retenções das exportações de grãos2. Naquela oportu-
nidade, os movimentos camponeses e indígenas, querendo se diferenciar do
modelo agroexportador, representado pela Mesa de Enlace3, expressaram: Não
somos campo, somos Terra e Território. Deste modo, resistem a serem coadu-
nados ao termo reducionista “campo” que suprime os antagonismos de atores
e regiões (BARBETTA, DOMÍNGUEZ; SABATINO, 2012).
1. Los autores son docentes e investigadores del equipo de Ruralidades y Territorios del INDES (Instituto
de Estudios para el desarrollo Social), pertenecientes al CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Tecnológicas) y a la Facultad de Humanidades Ciencias Sociales y de la Salud de la UNSE
(Universidad Nacional de Santiago del Estero de Argentina).
2. Em 2008 aconteceu um conflito sério entre as organizações patronais agrárias e o governo nacional ar-
gentino, em meio a uma proposta para incrementar as retenções da soja. Esse conflito durou vários meses
até que o Senado da Nação, após uma tensa votação, optou por rejeitar o projeto de lei que havia sido
promovido pelo poder executivo.
3. A Mesa de Enlace que reúne as quatro principais associações nacionais de produtores agropecuários da
Argentina: a Sociedade Rural Argentina, a Federação Agrária Argentina, as Confederações Rurais Argen-
tinas e CONINAGRO. Essas associações, ao longo da sua história, tiveram grandes e irreconciliáveis di-
ferenças, mas nessa oportunidade e ante o que compreenderam como uma grande ameaça para o agro
como setor, decidiram deixar de lado os desacordos e conformar a denominada “Mesa de Enlace”. Nesse
sentido, adjudicaram-se a representação do “campo” como um todo e apresentaram-se desse modo frente
ao governo e a opinião pública.
4. Obschatko et al (2007) assinalam que em Santiago del Estero existem 17.453 explorações de pequenos
produtores familiares, que representam 83% do total das explorações, mesmo que só ocupem 16% da
superfície total. Por sua vez, Raúl Paz (2011) aponta que existem 10.000 EAPs camponesas sem limites
definidos. O Instituto Nacional de Estatísticas e Censos define as Explorações Agropecuárias sem limites
definidos como aquelas que se caracterizam por ter limites imprecisos ou carecem deles. Isso significa di-
zer que as parcelas que a integram não estão delimitadas. No geral, estão formadas por unidades maiores,
com distintas modalidades de posse, tais como: campos comunheiros, comunidades indígenas, parques
nacionais, terra fiscais e privadas.
74 Territórios de esperança
quanto aos aspectos mais subjetivos do processo organizativo do campesinato.
Nessa linha, consideramos que as desigualdades estruturais podem ser cons-
tantes, mas as percepções coletivas destas condições variam com o tempo.
Portanto, entre as estruturas de oportunidades e a ação, colocam-se os objetos
e sua capacidade de atribuir sentido às situações (GIARRACCA et al., 2001).
Este texto está estruturado da seguinte forma: em primeiro lugar, apresen-
ta-se um breve recorte da história agrária de Santiago del Estero, identificando
continuidades e transformações na matriz das explorações dos recursos natu-
rais e sua inserção nos padrões de acumulação, em âmbito mundial; em segun-
do lugar, analisamos o papel do Estado, ora por ação, ora por omissão, na latên-
cia e aguçamento do conflito pela terra. Finalmente, procuramos reconstruir
a origem e o desenvolvimento da ação coletiva do campesinato santiaguense
em defesa da terra.
5. Com a ideia da estrutura (do latin, construir), alude-se aqui ao conjunto de elementos que compõe um
todo relacionado entre si, no qual a modificação de uma das partes dá lugar à modificação dos restantes
elementos e/ou relações.
6. La Merced de tierra foi uma instituição jurídica ibérica que surgiu entre os séculos XV e XVI. Geralmente,
aludia a uma doação real (pela coroa) de bens, imóveis e títulos, em troca de um serviço. Durante as pri-
meiras décadas da Conquista Americana, os reis faziam Mercedes de Terras, a fim de estimular a ocupação
efetiva do território pelos conquistadores, fundadores ou colonos. No geral, cada morador recebia um lote
urbano e uma parcela de terra, na periferia da vila de maior extensão, para as explorações pecuárias (es-
tâncias). Por sua vez, a encomenda foi uma instituição de conteúdos distintos, segundo tempos e lugares,
pela qual assignava-se a uma pessoa a um grupo de aborígenes para que se aproveitaram do seu trabalho
ou de uma tributação taxada pela autoridade. Sempre com a obrigação, por parte do encomendado, de
procurar e custear a instrução cristã daquelas pessoas. Em outras palavras, a encomenda era um sistema
de trabalho forçado para os povos originários em favor dos encomendados.
7. O obraje trará de um sistema de produção no contexto histórico regional do Gran Chaco, entre finais do sé-
culo XIX e no início do século XX. Os obrajes consistiam em instalações dentro dos bosques de quebracho
colorado para a tala de árvores à grande escala. Uma característica distintiva foi a temporalidade, ou seja,
que a permanência em um sitio dependia da abundância e qualidade do quebracho. Consistiu em uma
forma de produção integrada ao capitalismo mundial, baseada em um sistema de engajamento e retenção
76 Territórios de esperança
tas orientaram-se para a exploração das espécies madeireiras, especialmente o
quebracho colorado. O caráter extrativista deste processo e o sistema de explo-
ração do hachero produziram consequências socioeconômicas e ecológicas
desastrosas em todo o Chaco Sul-Americano (DARLGOTZ, 2003).
Essa configuração social, onde se articulam os sistemas de servidão e in-
tegração à economia de mercado mediante a produção primária, constituiu a
base da estrutura agrária santiaguense. Em meados do século XX, a exploração
florestal perdeu rentabilidade e os obrajes empreenderam sua retirada. Um
dos resultados foi que muitos dos antigos hacheros permaneceram nessas ter-
ras mediante um processo de recampenização8, embora sem regularizar sua
situação de tenência precária da terra.
A vulnerabilidade desses camponeses sem títulos, expostos aos despejos,
intensificou-se durante a década de 1960, quando grandes investidores adqui-
riram terrenos fiscais e se expandiu a fronteira agrícola, tendo como principal
cultivo o algodão. Os conflitos pela terra agravaram-se desde os anos oiten-
ta, com a expansão das produções agroexportadora (especialmente soja) que
substituíram as atividades tradicionais, como o cultivo de alface.
Outro fator a levar-se em conta, também relacionado com a revalorização
dos recursos naturais, por parte do capital, e as tensões que isso gera com as
comunidades rurais que habitam esses territórios ancestralmente, relaciona-
-se com fenômenos de estrangeirização. Em Santiago del Estero, com um total
de 13 milhões de hectares, aproximadamente, somente 2% (267.684 hectares)
está em mãos estrangeiras. Cabe esclarecer que esses casos são menores em
relação à imensa porção de terras em mãos das empresas locais. Isso embora
a compra de terra pelo estrangeiro ser um fenômeno que tem se acelerado nos
últimos anos.
Alguns casos ilustrativos de estrangeirização se referem às compras de ter-
ra por George Soros, por meio do Fundo de Investimento de Adecoagro (El
da mão de obra altamente precária. O destino dos trabalhadores estava unido à vontade do empreiteiro,
o capataz ou o patrão. No trabalho participava toda a família. As crianças e as mulheres ajudavam ao ha-
chero em tarefas de limpeza. A atividade dos homens era complementada com outras atividades do grupo
doméstico, como o trabalho das mulheres em lavanderias, cuidando das crianças e da venda de alimentos.
Sua dependência em relação ao aprovisionamento de mercadorias configurou um mercado cativo de tra-
balhadores permanentemente endividados.
8. Significa que os habitantes rurais recuperam uma estratégia baseada no trabalho da terra e na cria de
animais por conta própria destinada, principalmente, ao autoconsumo, de produção com base na mão de
obra familiar.
9. Os artigos 2.351, 3.948 e 4.015 reconhecem o direito dos povoadores à propriedade da terra, quando tem
78 Territórios de esperança
famílias camponesas e indígenas que habitam e trabalham em suas terras por
mais de vinte anos de forma pacífica, pública e contínua, mas que nunca tem
conseguido realizar o processo de regularização dominial.
Segundo o censo realizado pelo Observatório de Direito das Comunidades
Camponesas (2012), pertence ao Ministério da Justiça provincial, entre 2004-
2011, registraram-se 422 expedientes de conflitos de terra, envolvendo 6.747
famílias. As reclamações fazem referência à usurpação da terra, à incorreta
intervenção da polícia às clausuras de acessos a caminhos, escolas, fontes
de água.
Os procedimentos para a apropriação da terra por parte dos empresários
são diversos. Em alguns casos compram as terras a baixo preço das famílias
tradicionais locais, que aparecem como titulares de domínio, mas que não
exercem a posse. Após isso, esses empresários iniciam juízos por usurpação.
Em outros casos, convencem alguns dos possuidores de terras de uso comunal
para que vendam seus direitos de posse, iniciando a prescrição aquisitiva de
usucapião, mesmo quando esses terrenos também estão ocupados por tercei-
ras famílias e não participem do acordo (DE DIOS, 2010b).
Outra forma consiste no oferecimento de arranjos extrajudiciais com a pro-
messa da entrega de títulos. Em troca da renúncia dos direitos de posse, geral-
mente são oferecidos trabalho, melhoras nas casas ou aportes para as escolas.
No geral, a oferta consiste em parcelas demasiadamente pequenas e em solos
de baixa qualidade, sem possibilidade de conformar unidades econômicas
sustentáveis. Da mesma forma, os empresários atuam ilegalmente, avançando
sobre as posses com escavadeiras e cercas para obstruir o acesso às moradias,
escolas e poços de água. (DE DIOS, 2010b).
Outras das operações difundidas para a obtenção de terras está relacionada
com a falsificação de instrumentos públicos. Há patrões que se repetem em vá-
rias das causas: figuram protocolos de escribas que não existem, assinatura de
pessoas já falecidas, escribas dando fé de propriedades e aparição de registros
antes denunciados como extraviados. (EL LIBERAL, 12/02/2012).
Para que os camponeses possam fazer valer seus direitos de posse, pre-
cisa-se da realização de um juízo de usucapião, e de um plano que deve ser
exercido uma posse pacífica, contínua e interrompida por mais de vinte anos, trabalhando e fazendo
melhoras, delimitando suas cercas, construindo barragens. desde o ponto de vista jurídico, a posse com
ânimo de dono é uma figura distinta da titulação e a tenência. O ato de posse implica não reconhecer a
existência de outro proprietário, mas para que a propriedade seja plena requer do título.
80 Territórios de esperança
mente, as dimensões da ação que levam a cabo o MOCASE: uma luta pela terra
e uma luta na terra (McMICHAEL, 2008).
A luta pela terra expressa-se nas demandas pela regularização da proprie-
dade agrária e a resistência aos despejos. Isso constitui o eixo organizacional
e comunicacional. Em outras palavras, o freio às expulsões dos camponeses
faz-se tanto mediante a legitima defesa de seus prédios (ante as tentativas de
despejos violentos), como por meio de apresentações judiciais para o reconhe-
cimento dos direitos de posse. Assim mesmo, atribui-se um papel importante
aos meios de comunicação, com o intuito de publicizar as demandas e instalar
a problemática na agenda pública.
Historicamente, a luta pela terra desenvolveu-se em um clima de antago-
nismo com o regímen de Juárez10. As reações do juarismo ante o crescimento
e a visibilidade adquirida pelo MOCASE deu lugar ao desdobramento de um
conjunto de manobras para calar e ocultar o movimento perante sua aparição
no espaço político.
Quanto à forma que assume a exterioridade no conflito, as organizações
camponesas puseram em marcha um processo de identificação do adversário
que vai desde o mais imediato (a escavadora, a polícia, as milícias) até a oposi-
ção, em um nível mais amplo ao agronegócio.
A ação política das organizações camponesas de Santiago del Estero im-
plicou, por um lado, o começo de um processo de escape de atribuições es-
tigmatizantes; e, por outro, o autoreconhecimento de capacidades agenciais.
Isso pode ser ilustrado com uma série de episódios. Por exemplo, a acusação
de terroristas por parte do deputado que acusou o campesinato de supostas
vinculações com o narcotráfico e com Sendero Luminoso do Peru, o qual care-
cia de fundamento. Também durante o juarismo, o movimento camponês era
considerado pelos serviços de inteligência provinciais como um exemplo de
organização subversiva. (DE DIOS, 2010a).
O uso da coerção que o juarismo empregou contra o MOCASE inclui perse-
guições policiais e encarceramento. Ao mesmo tempo, no âmbito judicial, cria-
10. Carlos Arturo Juárez (1916-2010) governou direta e indiretamente a província durante mais de meio sé-
culo. Juárez foi eleito governador pela primeira vez durante 1948-1952, período da presidência de Juan
Domingo Perón. Em 1973 voltou a ocupar a primeira magistratura, até o golpe militar de 1976. Com o
retorno da democracia, em 1983, foi reeleito, ocupando novamente o poder executivo entre 1983 e 1987,
1995 e 1998, 19919 e 2001. Em 2002, a sua esposa, Mercedes Aragonés de Juárez, o substituiu. O regime
juarista chegou a seu fim com a intervenção Federal de 2004, em um contexto de protesto social pelos
excessos de poder.
11. A mesma surge no ano 2000, integrada por organizações camponesas, a Pastoral Social da Igreja Católica
e diversas organizações não governamentais (INCUPO, Be Pe, El CEIBAL, PRADE, FUNDAPAZ, entre
outras).
82 Territórios de esperança
criação da denominada Mesa Tripartida12. Nesse âmbito, acordou-se forma-
lizar a criação de um Registro de Aspirantes à Regularização da Tenência da
Terra, que tinha como propósito facilitar as condições para que os camponeses
pudessem alcançar uma solução jurídica a seu problema de posse precária da
terra (DE DIOS, 2010b)
Também se criou, em 2007, o Comitê de Emergência que tinha como ob-
jetivo a ação imediata diante as situações conflitivas, por exemplo, quando
supostos titulares de domínio avançam com escavadoras sob as possessões
dos camponeses; quando pretendem realizar trabalhos florestais sem consen-
timento; ou quando a polícia local não aceita as denúncias dos possuidores
(DE DIOS, 2010b)
Não obstante, até a atualidade, não se introduziram reformas legislativas
que reconheçam as formas de propriedade comunitária campesina e os indi-
cadores de territorialização próprios da sua forma de produção. Também não
se concretizou uma das históricas demandas das organizações, os julgamentos
de Direitos Reais e Ambientais para dirimir os conflitos de posses camponesa,
em uma instância distinta ao âmbito do direito civil clássico.
Diante dessa situação, as organizações camponesas têm desenvolvido es-
tratégias diferentes para obter o reconhecimento dos direitos à terra. Por um
lado, encontra-se aquelas que apelam para a autoidentificação da população
rural como indígena, de forma tal que podem se acolher aos benefícios da im-
plementação da lei 26.16013, e ao reconhecimento constitucional da proprieda-
de comunitária por parte do Estado, sem ter que chegar à instância dos juízos
de prescrição (Esta estratégia tem sido usual no MOCASE VC). Por outro lado,
outras organizações camponesas assumem que muitas famílias que não se au-
torreconhecem como indígenas, não têm outra possibilidade do que apelar
para uma efetiva defesa de seus direitos de posse, garantidos no Código Civil.
12. Integrada por representantes do Governo Nacional, pela chefatura de Gabinete da Província e pela própria
Mesa Provincial de Terras.
13. Em novembro de 2006, o Congresso da Nação sancionou a lei Nº 26.160, que tem como objeto principal
declarar a emergência em matéria de posse e propriedade comunitária indígena pelo termo de quatro
anos, suspender os despejos pelo prazo da emergência e dispor sobre a realização de um re-levantamento
cadastral da situação de domínio das terras ocupadas pelas comunidades indígenas. A lei foi regulamen-
tada pelo Decreto Nº 1122/07, que habilita ao Instituto Nacional de Assuntos Indígenas criar o “Programa
Nacional de Re-levantamento Territorial de Comunidades Indígenas. Em novembro de 2009, prorroga-se
o termo por mais quatros anos através da lei Nº 26.554.
14. Eli Juárez foi uma camponesa de San Nicolás (departamento Banda). Em dita comunidade havia-se freado
o avanço dos desmantelamentos através da autodefesa. Diante as cavadoras, a mulher sofreu uma des-
compensação e morreu. Em outro caso, acontecido no Departamento Copo, um jovem morreu dessan-
grado traz ser escopeteado por um dos guardas particulares dos produtores de soja da localidade. Cristian
Ferreyra estava na sua casa da área San Antonio esperando a reunião em que a comunidade devia debater
como se defender dos empresários e as milícias.
84 Territórios de esperança
alternativos baseados no cooperativismo e no valor justo. Isso traduz-se em
projetos em marcha como as feiras e fábricas de doces. Embora, ainda sejam
iniciativas muito pequenas e pontuais que necessitam ser consolidadas para
poder construir um modelo de desenvolvimento rural mais inclusivo.
Considerações finais
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15. Desde a perspectiva de Mançano, os movimentos sociais estão sujeitos a distintos processo geográficos:
a desterritorialização, territorialização e re-territorialização. Neste sentido, o movimento camponês ter-
ritorializa-se, por exemplo, quando constroem-se os barracos preto (construídos com paus e lona preta)
no lugar do conflito como símbolo de resistência diante a ameaça de despejo (desterritorialização) ou
produzem a retomada dos acampamentos (re-territorialização) através da autodefesa.
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88 Territórios de esperança
Questão agrária no Brasil e Paraguai: resistências,
movimentos socioterritoriais e recriação da luta
pelo território
Lorena Izá Pereira1 • Camila Ferracini Origuéla 2
Introdução
1. Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente.
Pesquisadora no The Land Matrix - Ponto Focal América Latina. Presidenta da Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB) (2020-2022)
2. Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Presidente Prudente.
Atualmente, é pesquisadora colaboradora do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais
(IPPRI) da Unesp e membro da Rede DATALUTA.
90 Territórios de esperança
poneses desterritorializados pelo avanço do cultivo de trigo e soja, no Sul do
Brasil, migraram para o Paraguai, ocupando a Região Fronteiriça Oriental. Isso
gerou a desterritorialização dos camponeses paraguaios e a introdução do cul-
tivo da soja no país, na década de 1970.
Atualmente, ambos os países são importantes produtores de commodities,
com destaque para a soja. O Brasil é o segundo maior produtor do grão, com
112.000.000 de toneladas produzidas na safra 2017/2018 e ocupa o primeiro
lugar na exportação, com 69.000.000 de toneladas exportadas (USDA, 2018). Já
o Paraguai é o sexto maior produtor, 9.200.000 toneladas produzidas na safra
2017/2018, e terceiro maior exportador, com 5.800.000 toneladas de soja expor-
tadas3 (USDA, 2018). Ambos os países integram a regionalização que a Syngen-
ta, em 2003, intitulou de República Unida de la Soja4. Uma declaração explicita
de neocolonialismo (GRAIN, 2013) e que colocou o Brasil e Paraguai em uma
posição estratégica no comércio internacional. Este contexto tem modificado
a questão agrária no Brasil e no Paraguai, onde a resistência camponesa é o
principal obstáculo do agronegócio.
As lutas pelo acesso à terra, ou pela permanência nela, fazem parte da his-
tória da formação do campesinato brasileiro. Essas lutas foram e ainda são
fundamentais na constituição de movimentos socioterritoriais. São socioter-
ritoriais porque a sua existência está vinculada ao território (MARTÍN; FER-
NANDES, 2004), ou seja, o território é o seu trunfo, faz parte da sua existência
e resistência.
Entre 1888 e 1964, sobressaíram-se as lutas messiânicas, como a Guerra de
Canudos (1893-1897) e a Guerra do Contestado (1912-1916); as lutas espon-
tâneas, como a revolta de Trombas e Formoso (1950-1957); e as lutas organi-
zadas, como as Ligas Camponesas, o Movimento dos Agricultores Sem Terra
(MASTER) e a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (UL-
TAB) (MORISSAWA, 2001).
3. Apesar da amplitude da produção entre Brasil e Paraguai, devemos considerar as dimensões territoriais
dos dois países.
4. A regionalização é composta por porções do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, configurando-
-se em uma das mais importantes regiões produtoras de soja em todo o globo.
92 Territórios de esperança
É nesse contexto que surge a ideia de cooperação agropecuária do Movi-
mento. Até esse momento, com a influência do trabalho pastoral, os campo-
neses assentados se organizavam em grupos coletivos ou associações infor-
mais. Alguns, inclusive, investiam na implantação de tecnologias alternativas
em seus lotes. Todavia, segundo o MST, a constituição de cooperativas de pro-
dução agropecuária, cooperativas de prestação de serviços e cooperativas de
crédito eram as maneiras mais eficazes de se romper com a pobreza nos as-
sentamentos rurais. Diferente do cooperativismo tradicional, as cooperativas
camponesas surgem como uma forma de resistência ao modo de produção
capitalista na agricultura (FABRINI, 2002).
O terceiro período se desenvolveu ao longo da década de 1990, caracteri-
zando-se pela institucionalização do MST. Esse foi um contexto de massifica-
ção das ocupações de terras, resultando na criação de um número expressivo
de assentamentos rurais em todas as regiões do país. Foi também um período
de repressão dos movimentos socioterritoriais, culminando em dois massa-
cres, o Massacre de Corumbiara, em Rondônia, e o Massacre de Eldorado dos
Carajás, no Pará. Concomitantemente a isso, aconteceu a criação de importan-
tes cooperativas vinculadas ao Movimento. Também houve a implantação de
cursos e institutos técnicos em diferentes regiões do país. Um exemplo disso é
o estado do Rio Grande do Sul, onde houve a criação do Curso de Magistério e
do Curso Técnico em Administração de Cooperativas (TAC), no Departamento
de Educação Rural da Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da
Região Celeiro, no município de Braga; e do Instituto Técnico de Capacitação
e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA), em Veranópolis.
Ainda hoje, o TAC e o ITERRA são importantes espaços de formação téc-
nica dos assentamentos gaúchos. Eles também recebem assentados de outros
estados interessados em aprimorar os conhecimentos sobre cooperativismo.
Ademais, em 1998, uma das principais demandas dos camponeses se tornou
uma política pública, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA).
Contudo, em meados da década de 1990, o cooperativismo agropecuário
do MST entrou em colapso. Isso porque, segundo Navarro (1998), a propos-
ta construída pelo Movimento representou uma espécie de ideologização da
produção, visto que as cooperativas deveriam ser inteiramente coletivizadas.
Além disso, era um modelo tecnológico da Revolução Verde, baseado na espe-
cialização produtiva, na agricultura intensiva em capital e no alto consumo de
94 Territórios de esperança
intermédio do PAA e PNAE, os assentados estão organizando lojas da reforma
agrária, feiras e cestas agroecológicas.
Atualmente, nas capitais dos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Mi-
nas Gerais o MST organiza as lojas da reforma agrária. Além dessas, em várias
regiões do país os assentados criaram as cestas agroecológicas com diversos
alimentos que são retirados pelos consumidores em lugares determinados
por ambos. Por fim, as feiras também são um importante espaço de venda de
alimentos. O MST as organiza em praticamente todos os estados do país. Na
cidade de São Paulo, desde 2015 acontece a Feira Nacional da Reforma Agrária.
A última edição contou com a participação de 1.215 assentados de 23 estados
mais o Distrito Federal, que comercializaram 420 toneladas de mais de 1.530
variedades de produtos. O total de consumidores foi de 260 mil (MST, 2018).
No caso do MST, as resistências podem ser analisadas em duas frentes dis-
tintas, mas que se complementam no espaço-tempo. A primeira se refere às
lutas pelo acesso à terra e a segunda às lutas pela permanência na terra. Em
ambos os casos as resistências são diversificadas, dependendo também da
conjuntura agrária do país. No caso da luta pela terra, o Movimento organiza
as seguintes ações: ocupações de terra e acampamentos. Nesses últimos anos,
as ocupações de terra ainda são uma importante forma de acesso a terra e (re)
criação do campesinato (FERNANDES, 2000).
Embora o número de ocupações de terra tenha diminuído, nesses últimos
anos, os acampamentos e as famílias acampadas não necessariamente. Isso
porque, na maioria das vezes, tais acampamentos são montados na beira da
estrada ou em áreas públicas, mas não na propriedade reivindicada pelos sem-
-terra. Quando isso acontece não é contabilizado como ocupação de terra, pois
esta só ocorre quando a área de uma propriedade é ocupada. Essa estratégia é
utilizada para evitar que as famílias acampadas sejam despejadas da fazenda
ocupada, por meio da reintegração de posse. Além disso, um único acampa-
mento pode ser responsável pela reivindicação de mais de uma propriedade.
As famílias acampadas também podem estar envolvidas em várias ocupações
de terras e manifestações, numa espécie de circuito de lutas (ORIGUÉLA,
2014). As recentes estratégias fazem parte da resistência dos movimentos so-
cioterritoriais na luta pelo acesso à terra.
Segundo os dados do Relatório DATALUTA Brasil (2017), entre os anos de
1988 e 2016 ocorreram 9.748 ocupações de terra com 1.342.430 famílias. Gran-
de parte dessas ações foi organizada pelo MST. Além dele, outros 136 movi-
5. Com exceção das Ligas Agrarias Cristianas (LACS), movimento criado na década de 1960, perseguido e
brutalmente desarticulado pelo regime militar no ano de 1976 (TALESCA, 2004).
96 Territórios de esperança
ao seu caráter vertical6 (MORA, 2006). O principal objetivo da FNC é a luta
contra o latifúndio. Isso explica o fato de ocupar apenas propriedades maiores
de 3.000 hectares (DELGADO, 2012), pois reconhece que a reforma agrária é
um requisito para romper com a dependência do Paraguai.
As estratégias de atuação e a pauta de luta da FNC diversificaram-se timi-
damente com o avanço do agronegócio no Paraguai. De acordo com Delgado
(2012), entre 1991 e 2010, a FNC havia ocupado cerca de 190.000 hectares de
terras improdutivas, reunindo 14.000 famílias, totalizando 60.000 pessoas. Em
âmbito nacional, a partir de 2003, devido ao avanço indiscriminado de orga-
nismos geneticamente modificados e agroquímicos no Paraguai, observa-se
uma mudança no direcionamento da luta e as ações dos movimentos socio-
territoriais7.
A luta agora não é apenas pela terra, mas contra o modelo agroextrativista
da soja, que implementa a desigualdade social, a concentração de terras e a
violência que o campesinato está exposto cada vez mais e “[...] ante las ma-
sivas fumigaciones, se registran nuevas formas de resistencia campesina que
aglutinan comunidades en defensa de sus mundos de vida y resistencia a su
expulsión” (KRETSCHMER, 2018, p. 119). Neste sentido, desde o ano de 2013,
a FNC tem orientado suas ações para barrar as pulverizações de agroquímicos
em comunidades camponesas realizadas por parte de latifundiários sojiculto-
res, sobretudo brasileiros.
Apesar da criminalização, as ocupações de terra e manifestações ainda são
as principais estratégias de luta da FNC. Ademais das rupturas no decorrer da
sua história, ela possuiu diversas ações conjuntas com variados movimentos
socioterritoriais, com um grande poder de articulação e mobilização enorme.
Palau, Irala e Coronel (2017) afirmam que atualmente a federação é integra-
da por 20.000 famílias nos departamentos de Caaguazú, Caazapá, Canindeyú,
Central, Concepción, Guairá, Itapúa, Paraguarí e San Pedro.
6. A Federación Nacional Campesina foi o primeiro movimento a se fragmentar pelo fato da inserção de
partidos políticos no interior da organização ainda em 1998. Há críticas em relação à FNC, sobretudo por-
que alguns dirigentes desta Federação fundaram, no ano de 1999, em conjunto com outros movimentos
sindicais, o partido político de base marxista e leninista Partido Paraguay Pyahura (PPPR) (DELGADO,
2012; TORALES, 2016). A constituição de tal partido aumentou as divergências ideológicas e táticas entre
os movimentos socioterritoriais paraguaios, desarticulando a luta pela reforma agrária
7. Este redirecionamento foi causado, em parte, pela morte do filho de uma dirigente do CONAMURI por
intoxicação, devido fumigações, o que trouxe na pauta os impactos da soja transgênica e agroquímicos no
país (PALAU e KRETSCHMER, 2004).
8. Perla Alvarez autorizou a entrevista e a divulgação do seu nome. A entrevista foi realizada pela pesquisa-
dora em dezembro de 2015 na sede do CONAMURI, em Asunción.
98 Territórios de esperança
mentos, reivindicando a soberania alimentar e contra os agroquímicos. É in-
teressante destacar que as atividades da CONAMURI, tanto individuais quan-
to conjuntas, são realizadas, majoritariamente, em praças públicas. Quando
questionada sobre a localização das ações, a dirigente do movimento nos rela-
tou que o objetivo das ações do movimento é agregar o maior número possível
de indivíduos e mobilizar a sociedade civil para o debate sobre a soberania
alimentar, partindo do princípio de que o acesso ao alimento saudável é direito
de todos. Todas estas ações são de extrema importância e dão voz à bandeira
de luta pela soberania alimentar.
Em muitas de suas ações, o CONAMURI atua em conjunto com a Orga-
nización de Lucha por la Tierra (OLT), especialmente na criação do Instituto
Agroecológico Latino Americano Guaraní (IALA GUARANÍ), criado em 2011
no Paraguai. De acordo com entrevista realizada com Perla Alvarez, o Insti-
tuto Agroecológico Latino Americano Guaraní está vinculado aos objetivos
da CLOC e da Via Campesina da América do Sul. É uma entidade científica,
humanística e democrática que defende os princípios da soberania alimen-
tar, proteção e multiplicação das sementes nativas, valorização da agricultura
campesina e preservação do meio ambiente.
A CONAMURI parte do entendimento de que os espaços pedagógicos em
agroecologia são resistências que formam novas resistências a médio e lon-
go prazo, pois “[...] son formas de garantizar también un futuro a partir de la
apuesta que significa formar la conciencia de la juventud, abrirles los ojos res-
pecto a la relación que existe entre los cultivos transgénicos que avanzan en el
campo y la proliferación de enfermedades en la comunidad, la relación entre
los desalojos en los asentamientos y el agronegocio” (AMARILLA, 2017, p. 12).
Durante a I Jornada de Agroecología – Agroecología: un proyecto de vida,
lucha y resistência, em 2015, o IALA Guaraní formou sua primeira turma. Dife-
rentemente da FNC, a CONAMURI não realiza ocupações de terra. Em entre-
vista em 2015 nos foi relatado a pouca experiência do movimento nesta estra-
tégia de luta, ao mesmo tempo o interesse por parte da CONAMURI em efetivar
este tipo de ação. Inclusive no momento da entrevista estava sendo realizada
uma oficina sobre ocupações, na qual o Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST) do Brasil era um parceiro. Porém, até o momento o movimento
não avançou nesta ação de resistência.
A resistência do campesinato paraguaio envolve a tradição e a inovação.
A análise das estratégias de luta da FNC e CONAMURI evidenciam isso. En-
Considerações finais
9. Corresponde a agricultura orientada para o monocultivo, geralmente com alto grau de tecnificação, mas
com pouco ou nenhum processamento e com destino a exportação (GUDYNAS, 2009).
Referências
10. Durante o processo eleitoral de Fernando Lugo (Partido Frente Guasú), a FNC não apoiou o candidato,
enquanto outros movimentos realizaram alianças. A postura da FNC em relação a eleição presidencial
de 2008 possibilitou o fortalecimento do movimento. Dirigentes daqueles movimentos que apoiaram a
candidatura de Lugo passaram a ocupar cargos públicos em seu governo, isso desestabilizou a luta destes
movimentos. Já a FNC foi o único movimento socioterritorial que se manteve articulado (Entrevista com
Quintín Riquelme, mai. 2018).
Introdução
Fonte: Caderno de Conflitos no Campo 1985 a 2014 e Centro de Documentações Dom Tomás Balduíno, CPT
Comissão Pastoral da Terra. Elaboração: Patrícia Rocha Chaves.
Os dados registrados pela CPT “[...] são catalogados por situações de dispu-
tas em conflitos por terra, conflitos pela água, conflitos trabalhistas, conflitos
Conflitos por Terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e
propriedade da terra e pelo acesso aos recursos naturais, tais como: seringais, baba-
çuais ou castanhais, dentre outros (que garantam o direito ao extrativismo), quando
envolvem [camponeses posseiros também denominados de ocupantes; campone-
ses proprietários incluindo os camponeses assentados e pequenos camponeses,
camponeses rentistas ou parceiros; camponeses sem terra; camponeses geraizeiros,
camponeses ribeirinhos e ou pescadores; camponeses seringueiros, camponeses
castanheiros, camponeses de fundo de pasto, camponesas quebradeiras de coco ba-
baçu, camponeses faxinalenses], e, os quilombolas e os povos indígenas, etc. (CPT,
2015, p.13) (sem correspondência integral com o original)
Ocupações são ações coletivas das famílias [em geral de camponeses] sem-terra,
que por meio da entrada em imóveis rurais, reivindicam terras que não cumprem
a função social. [Retomadas] são ações coletivas de indígenas e quilombolas que
reconquistam seus territórios, diante da demora do Estado no processo de demar-
cação das áreas que lhe são asseguradas por direito [constitucional]. (CPT, 2015,
p.13) (sem correspondência integral com o original)
Assim, além dos conflitos por terra, ocupações e retomadas formam o cor-
pus teórico dos levantamentos de dados da CPT: os conflitos trabalhistas, tra-
balho escravo, superexploração, conflitos pela água, conflitos em tempos de
seca, conflitos em área de garimpo e conflitos sindicais. O aporte teórico destes
conceitos está assim construído pela Comissão e alterado pela autora desta
pesquisa:
Considerações finais
A luta camponesa pela terra se construiu sob uma tríade que ainda não foi bem
entendida pelos movimentos organizados. De um lado, a ocupação como instru-
mento de negação da concentração da propriedade privada da terra e negação de
seu acesso aos camponeses. De outro, o acampamento como ação positiva de nega-
ção da negação, a fixação ainda que temporária dos camponeses na terra concentra-
da negada. E, por último, o assentamento como conquista irretorquível daquilo que
foi sempre negado, a territorialização camponesa na fração capitalista do território
capitalista mundializado. É luta de classes, é luta camponesa por um pedaço do
2. “A última medida, foi a inscrição para assentamentos de reforma agrária pelo correio, veiculada como
propaganda televisiva e impressa afirmando “a porteira está aberta para a reforma agrária é só entrar e
inscrever-se”, foi o estelionato das políticas do PSDB de FHC.”(OLIVEIRA, p. 144, 2007)
Referências
ALMEIDA, A, W, B. De. Carajás, a guerra dos mapas. Seminário e Consulta. Belém, PA, 1995.
CENTRO DE DOCUMENTAÇÕES DOM TOMÁS BALDUÍNO. Arquivo dos textos de conflitos
nos estados do Pará, Maranhão e Tocantins 1960-2014. Disponível em: http://www.cptna-
cional.org.br/index.php/publicacoes/cedoc-dom-tomas-balduino-da-cpt
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Cadernos de conflitos no campo. Centro de Documenta-
ções Dom Tomás Balduíno. Expressão Popular. SP, 1985-2014.
CARVALHO, M. Sangue da terra: a luta armada no campo. Ed. Brasil Debates: São Paulo, 1980.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Assassinatos no campo: crime e impunidades – 1964/1986.
Global Editora: São Paulo, 1986.
CHAVES, P. R. Rebeldia e barbárie: conflitos socioterritoriais na região do bico do papagaio.
FFLCH – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. Tese (Doutorado em geogra-
fia). Programa de Pós Graduação em Geogafia Humana, Universidade de São Paulo, 2015.
Introdução
Fonte: IBGE
3. Iniciou sua produção em fins do século XIX na região da Califórnia (EUA). Atualmente, a matriz localiza-se
em Miami, sendo um libanês o sócio majoritário. Sua atuação, com produção e sede estratégica, atende
todos os continentes, atingindo cerca de 58 países. Iniciou sua produção no Brasil em fins da década de
1980 no Rio Grande do Norte e, em 2000 e 2001, duas áreas no Ceará: em Quixeré (melão) e Limoeiro do
Norte (abacaxi). A empresa tem contribuído para o desencadeamento de problemas diversos, dentre os
quais a destruição de comunidades e o trabalho precarizado, com graves consequências para a sociedade
e o ambiente (FREITAS, 2010, p. 124)
6. Os Projetos de Assentamentos: Charneca e Barra do Feijão, teve a imissão da posse em 24/03/1995 com
a presença do então Presidente da República na época, Fernando Henrique Cardoso e do Governador do
estado do Ceará, Tasso Ribeiro Jereissati, conhecido latifundiário, e uma caravana de políticos, desde mi-
nistros de Estado a políticos regionais, estaduais e locais, onde, na oportunidade, foi lançado o Programa
Nacional de Reforma Agrária do referido governo e materializado o início dos assentamentos rurais no
Baixo Jaguaribe.
7. LUQUE, Luciano. FHC elogia experiência cearense em programas de reforma agrária. Jornal O Povo, For-
taleza-Ce, p. 3, 24 mar. 1995. Política. CD – ROM.
8. Movimento que nasce em homenagem a Zé Maria do Tome, assassinado no dia 21 de abril de 2010, forma-
do pela Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, MST, Central Sindical Popular (CONLUTAS), Faculdade
de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM)/Universidade Estadual do Ceará (UECE), Núcleo Trabalho,
Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade (TRAMAS) da Universidade Federal do Ceará (UFC), CPT
Ceará, STR do Apodi-RN.
Considerações finais
Agradecimentos
Referências
Introdução
Q uando divulgados os resultados das eleições que levou Jair Messias Bol-
sonaro a presidência do Brasil, um sentimento de tristeza recaiu sobre
grande parte da população que desaprovava o projeto eleito, a frustração pela
derrota também era acompanhada pelo ao temor de um futuro agora inevitá-
vel, principalmente daqueles e por aqueles que durante meses de campanha
foram (e continuam sendo) ameaçados. Das redes sociais, uma ilustração logo
viralizou, ela captava o momento após o pleito e expressava a um só tempo
solidariedade e resistência: Ninguém solta a mão de ninguém.
Em pouco mais de seis meses de governo, os ataques generalizados a direi-
tos garantidos constitucionalmente nos levam a refletir sobre a importância de
resistir de forma conjunta. No momento que a educação, ciência e tecnologia
passam por ataques, desprezos e humilhações nunca antes vistos, acreditamos
em um projeto de Universidade pública descentralizada e transformadora, que
dê voz as classes populares e que construa caminhos de forma coletiva. Nesse
sentido, nós, membros da Rede DATALUTA, iniciamos um diálogo (em forma
1. Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), doutorando em Geo-
grafia pela Universidade Federal do Pará com com estágio sanduíche pela Universitat d’Alacant.
2. Mestrando em Geografia no Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Territorial da América La-
tina e Caribe (UNESP/SP). Graduado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP/Presidente Prudente) e Graduado em Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasilei-
ros, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
3. Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Incra. Doutorando em Desenvolvimento Sustentável
pela UnB. Possui graduação em Engenharia Florestal pela Universidade de São Paulo e mestrado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento Rural pela FUP/UnB.
4. Além do MST – para ficar somente nos movimentos sociais do campo – Bolsonaro proferiu em diversos
momentos frases ofensivas e posicionamentos ameaçadores aos povos originários e aos quilombolas.
Ronaldo Sodré – Existem críticas, até mesmo dentro do MST, sobre a for-
ma como o Movimento vem agindo nos últimos anos. A luta pela conquista da
terra por meio de ocupações deixou de ser uma prioridade?
Acácio Leite – Durante três dias debatemos com diversos setores os desa-
fios do período que estamos vivendo. Como resultado do seminário, realiza-
mos um ato político em que foi apresentada uma carta para a sociedade brasi-
leira. A carta denuncia o modelo da morte aplicado pelo governo brasileiro e os
demais agentes do capitalismo dependente, apresenta uma agenda de unidade
no meio rural baseada na defesa da educação, da cooperação e da agroecologia
e reafirma os compromissos desse campo político, em especial com a defesa da
soberania nacional e da função socioambiental da terra.
Após o Seminário, como parte da articulação popular agrária e ambiental,
movimentos e organizações se reuniram em julho de 2018 com o governador
do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), afim de consolidar uma agenda de traba-
lho para avançar regionalmente. Dentre os temas debatidos estão: educação
no campo, previdência, demarcação de territórios tradicionais, criminalização
dos movimentos populares, leis de terras, agricultura familiar, combate aos
agrotóxicos e avanço da reforma agrária. A escolha do estado foi em razão das
políticas progressistas do atual governo e da sua relação com o MST.
5. O Programa faz parte do plano de ações “Mais IDH”, política de governo instituída com a finalidade de
Ronaldo Sodré – Como tem sido a relação do MST com a sociedade ma-
ranhense?
desenvolver ações para superar a pobreza extrema e as desigualdades sociais, nos 30 municípios com
menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM do estado. De acordo com Lopes e Vargas
(2019), em março de 2015, durante a jornada de luta das mulheres, o MST desafiou o governo Flávio Dino a
superar o analfabetismo. No mesmo contexto, houve a consulta ao MST, por parte do governo, se aceitaria
uma parceria com a Secretaria de Estado da Educação, utilizando o método cubano “Sim, eu posso!”. Na
primeira fase da Jornada (2016 e 2017), organizadas 628 turmas, com 9.492 educandos inscritos, tendo sido
alfabetizados 7.119. Entre educadores/as, coordenadores/as de turmas e brigadistas, foram envolvidas
10.217 pessoas envolvidas no processo, em oito municípios. Entre 2017 e 2018 a segunda fase da Jornada
de Alfabetização que foi ampliada para quinze municípios. Essa experiência mobilizou 20.075 alfabetizan-
dos/as, 1.332 alfabetizadores/as, 190 coordenadores/as de turma, 40 mobilizadores/as, 37 brigadistas, mi-
litantes do MST dos estados do Maranhão, Pará, Tocantins, Piauí, Ceará, Paraíba, Bahia, Rondônia, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. Ao todo, serão envolvidas diretamente 21.674 Pessoas.
Jonas Borges – Por fim, o MST ao longo de quase 4 décadas tem avançado
em muitas frentes graças a parcerias e colaboração de outras organizações e
claro com políticas públicas que só chegam com muita pressão e mobilização
social. Foi assim para consolidar a bandeira da terra e da reforma agrária e está
sendo para garantias de direitos que nos der vida digna no campo. Para termi-
nar, o MST tem clareza do momento difícil que estamos passando no Brasil,
mas já acumulamos muito em várias frentes da luta social e política, temos
Referências
Canal Rural. “Quero que matem esses vagabundos”, diz Bolsonaro. Disponível em: https://
canalrural.uol.com.br/noticias/quero-que-matem-esses-vagabundos-mst-diz-bolsona-
ro-69789/. Acesso em 10 de setembro de 2019.
COMPARATO, Bruno Konder. A ação política do MST. São Paulo Perspec. Vol.15, N.4. São Pau-
lo Oct./Dec.2001.
ELIAS, Michelly Ferreira Monteiro. A cooperação agrícola na organização política do MST: um
estudo sobre as experiências desenvolvidas no Maranhão. 2008. 194 f. Dissertação (Mes-
trado em Políticas Públicas) – Centro de Ciências Sociais, Universidade Federal do Mara-
nhão, São Luís, 2008.
LOPES, Maria Divina & VARGAS, Maria Cristina. Do limite do possível ao inédito em cons-
trução: experiência das brigadas de alfabetização no MST. In: BERNAT, I. G; LIMA, J.B;
GUEDES, L. & PEREIRA, S.S. (Orgs.). Jornada de Alfabetização do Maranhão: Mobilização
Popular, Cultura e Emancipação. São Luís: Eduema, 2019. P 48 – 62.
Introdução
1. Financeirizada do capital – pauta-se na compreensão cunhada por Chesnais (2016): “capital financeiro
designa o que as contas nacionais chamam de ‘oeganizações financeiras’, ou seja, bancos e fundos de in-
vestimento de todos os tipos, ampliadas para incluir os departamentos financeiros de grandes ‘empresas
não financeiras’ industriais ”(p. 5). “As organizações mencionadas centralizam a mais-valia na forma de
dividendos, juros do governo e da dívida corporativa e lucros retidos, bem como os fluxos de renda atuais e a
economia das famílias. Eles buscam valorizar o dinheiro que administram através de empréstimos e especu-
lações nos mercados financeiros. Os lucros financeiros pressupõem a centralização da mais-valia já criada.
A maior parte da atividade financeira, notadamente as operações de negociação nos mercados financeiros,
refere-se essencialmente à sua distribuição e redistribuição sem fim entre as empresas financeiras por meio
de especulações.” (CHESNAIS, 2016, p. 6).
2. Não estamos afirmando que Itaituba se resume a isso, apenas apontando um cenário histórico e processo
de cunho macro.
3. Segundo Rasch (2017), na América Latina, as organizações de base e movimentos sociais “contra me-
gaprojetos” como mineração a céu aberto, extração de petróleo, obras de infraestrutura, hidrelétricas e
monoculturas (agronegócio) estão cada vez mais tendo de enfrentar o aumento da criminalização a ma-
nifestações, protestos sociais, mobilizações, reuniões e formações de grupo de base, com sistemáticos
casos de ameaças, intimidações e mortes. Quadro esse com legitimação de estados-nações, de caráter
ultraconservador e neoliberal.
4. A ATAP foi fundada em 2013, associação sem fins lucrativos que congrega os Terminais Portuários (TUP)
e as Estações de Transbordo de Carga da Hidrovias Tapajós, com o objetivo de otimizar suas ações de
fomento e desenvolvimento da região onde se instalam; Defender a ampliação e a manutenção da malha
hidroviária; Enfrentar os desafios socioambientais; Fornecer suporte ao crescimento do setor portuário e
econômico-social de toda área de influência da Hidrovias Juruena –Teles Pires – Tapajós; Fomentar inicia-
tivas que visem o desenvolvimento da infraestrutura dos municípios portuários onde atua. Hoje a ATAP
se chama Associação dos Terminais Portuários e Estações de Transbordo de Cargas da Bacia Amazônica
(AMPORT). A AMPORT foi à fusão da ATAP e ATOC (Associação dos Terminais Portuários e Estações de
Transbordo de Cargas da Hidrovia do Tocantins). É composta por: Bunge, Cargill, ADM, Hidrovias do
Brasil, Cianport, LDC, Unirios (joint venture da Fiagril e Agrosoja), Chibatão Navegações, Brick Logística,
Mineração Butirama, Termogás, Hydro, Imerys, Odebrechet e Votorantim.
[...] aumentou nesse último período nós temos muito mais carreta aí ... passan-
do na rodovia né ... então isso é um impacto maior nós temos agora um índice de
prostituição muito maior ...
[...] as mulheres, as meninas, as adolescentes principalmente ... tão vendo isso
como um mercado de trabalho [...] ganhar um dinheiro lá:: fácil ... mas pra nós assim
... o direito delas estão violados porque elas são adolescentes são crianças né.
[...] dia dez não dia oito de março de além de fazer a luta né ... em favor de di-
reitos das mulheres fizemos também uma luta é:::: questionando essa questão da
Considerações finais
Agradecimentos
Introdução
1. Usamos o termo operário quando nos referimos a trabalhadores e trabalhadoras que vivem dos empregos
diretamente vinculados às empresas em Barcarena
2. O município de Barcarena se estende por 1 310,3 km² e conta com cerca de 99 800 habitantes, segundo o
último censo. Encontra-se a 15 km a Sul-Oeste do município de Belém, capital do estado do Pará.
3. Tais atividades estão vinculadas ao Programa de Extensão Meio Ambiente, Povos e Comunidades Tradi-
cionais (MAPCT) e ao Grupo de Estudos Sociedade, Território e Resistências na Amazônia (GESTERRA),
executados por professores/pesquisadores vinculados à Faculdade de Serviço Social (FASS) e ao Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA/UFPA).
Estes pesquisadores se articulam em parceria com o GETTAM/NAEA/UFPA, que desenvolve trabalhos no
município de Barcarena com lideranças das comunidades e sindicatos.
4. O Decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável dos Povos e Comunidades Tradicionais, em seu Artigo 3o , inciso I, assim define Povos e Comunida-
des Tradicionais: “[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-
ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
5. O conceito de “unidades de mobilização” é proposto por Almeida (2006, p. 25) e refere-se “à aglutinação de
interesses específicos de grupos sociais não necessariamente homogêneos, que são aproximados circuns-
tancialmente pelo poder nivelador da intervenção do Estado – através de políticas desenvolvimentistas,
ambientais e agrárias – ou das ações por ele incentivadas ou empreendidas, tais como as chamadas obras
de infraestrutura que requerem deslocamentos compulsórios”.
Nos anos 1990, com a chegada das novas empresas IMERYS Rio Capim
Caulim e Pará Pigmentos, a comunidade tradicional, autodenominada Monta-
7. É nesse período que os operários da Albrás vivenciaram as lutas mais importantes da história do movi-
mento sindical no Pará, principalmente a greve de agosto de 1990, onde conquistaram direitos econômi-
cos e sociais importantíssimos, com piquetes de greve, assembléias democráticas, apoio dos familiares
e solidariedade de sindicatos versus intransigência do Estado e dos patrões capitalistas. [...] Bem perto
dos operários da ALBRAS acontecia uma greve dos trabalhadores da construção civil, responsáveis pela
ampliação das instalações do complexo Albrás-Alunorte (SANTIAGO, 2007, p. 201, 202).
9. A nova história do Sindicato começou, em 1994, com apoio à eleição de Almir Gabriel (do PSDB) e com-
pletou o seu ciclo em 2006, com a fundação do Sindicato dos Metalúrgicos de Barcarena (SIMEB), ligado
à Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, da Força Sindical (SANTIAGO, 2007).
10. O município passou a sediar a VOTORANTIM, na fabricação de cimento; a USIPAR, na produção do ferro
gusa; a ALUBAR, na fabricação de cabos de alumínio;, a BUNGE, na fabricação de adubos a BURUTIRA-
MA, na fabricação de lingotes de manganês; a TECOP, na produção de coque de petróleo; e os mais recen-
tes portos da TERFRON e da HIDROVIAS DO BRASIL, para exportação de soja (FIALHO NASCIMENTO;
HAZEU, 2015).
11. O § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, reserva à Fundação Cultural Palmares
(FCP) a competência pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro
geral.
12. A Convenção 169 da OIT reconhece, ao lado dos povos indígenas, outros tantos grupos cujas condições
sociais, econômicas e culturais os distinguem de outros setores da coletividade nacional. Este instrumento
reconhece o direito à diferença, enunciando o reconhecimento de direitos étnicos.
13. A elaboração dos protocolos de consulta em elaboração, no município de Barcarena, faz parte das ações
coletivas da “Frente Contra a Ferrovia Paraense”, organizadas no segundo semestre de 2017.
Considerações finais
Referências
Introdução
1. Uma versão desse texto foi publicada sob a referência: SILVA, C.N.; PALHETA, João Márcio; BARRA, J.;
SOUSA, H. P. “Progresso” Tecnológico e mudanças no modo de vida ribeirinho (Amazônia Paraense –
Brasil): Um breve debate. Revista SODEBRAS, v. 10, p. 44-47, 2015.
2. Modo de vida é analisado neste estudo de acordo com os ensinamentos de La Blache (1954) e Sorre (1984).
3. Entendemos que a produção do território se dá a partir do espaço, por meio do uso que a sociedade faz de
seus potenciais sociais e ecológicos. No território, os atores sociais, ao realizarem suas ações político-eco-
nômico-sociais, territorializam práticas sociais para suas permanências nele. Mas nem sempre as práticas
territoriais se revelam como desejadas por todos os atores sociais no espaço geográfico, muitas vezes,
dependem de um conjunto de fatores de negociação e conflitos que envolvem quase sempre mais de um
interesse no território.
4. Para Mello (2006), é preciso entender a região amazônica como um espaço que representa a simultanei-
dade de interesses nacionais e locais, regionais e globais. Um espaço construído por populações diversas.
5. A noção de ‘progresso’ é colocada aqui sob a ótica do capitalismo, na agregação de bens de consumo. Não
é objetivo deste manuscrito a discussão sobre os benefícios ou malefícios da atuação das comunidades
amazônicas no sistema capitalista.
6. Vamos nos referir aos moradores das margens dos rios da Amazônia como “ribeirinhos”, pois trata-se de
um conceito conhecido na região para denominação desses indivíduos. Não pretendemos discutir a ques-
tão política do termo.
A partir do que foi exposto, por meio dos debates que geraram a elaboração
deste trabalho – e sem pretender atribuir valor a uma relação de territorialida-
de existente no modo de vida das comunidades estudadas, podemos observar
que, a partir da percepção e vivência ribeirinha, é possível identificar uma no-
ção de importância relativa aos costumes e ao modo de vida que os habitantes
das margens dos rios da Amazônia mantêm com seu território de convivência
e trabalho. Assim, verificamos que existe um tipo de “percepção de valoração7”,
aqui utilizada como sinônimo de importância e reconhecimento do território
pelos habitantes ribeirinhos, entendida com o mesmo sentido, observadas a
partir de conversas e relatos com esses indivíduos, que percebem e represen-
tam seus territórios (SILVA; PALHETA DA SILVA; CHAGAS; CASTRO, 2014),
juntamente com os seus modos de vida e suas territorialidades.
Essa percepção valorativa8, de reconhecimento e/ou importância, leva em
consideração o modo de vida e as relações territoriais estabelecidas pelos ri-
beirinhos, podendo ser expressa da seguinte forma:
Valor cultural: é a importância que o indivíduo atribui ao território, con-
siderando aspectos como identidade, costumes e hábitos. É neste aspecto, de
manutenção cultural, que o reconhecimento cultural deve ser enfatizado, le-
vando em consideração como o habitante sobrevive e não impondo uma rea-
lidade que não pode ser simplesmente transportada e agregada ao modo de
vida ribeirinho. Contudo, objetos e outros tipos de aparatos não dotados de
uma simbologia tradicional para estes indivíduos, passam a ser utilizados de
forma mais frequente, como apresentado anteriormente, visto que esse am-
biente está aberto a novos atores e processos, mais ainda com o processo de
globalização. A esse respeito, as organizações governamentais e não -gover-
namentais apresentam-se como um importante incentivador da cultura local,
mais especificamente, da manutenção de tradições que pareçam únicas no
7. Ignacy Sachs (1993), em seu trabalho, apresenta uma noção de importância ecológica que pode ser iden-
tificada com a percepção territorial-ambiental dos moradores ribeirinhos.
8. Como discutido em Silva (2008).
Considerações finais
Agradecimentos
Referências
Introdução
N o Brasil, as lutas pela terra e pela reforma agrária são produtoras de terri-
tórios de esperança e de políticas agrárias por meio de permanente con-
flitualidade na disputa por modelos de desenvolvimento. Considerando essa
discussão, neste artigo analiso esse processo em três partes. Inicio com um
ensaio teórico – conceitual sobre as tipologias de espaços e territórios, para
ler territórios de esperança construídos na espacialização da luta pela terra.
A esperança produz o conflito que cria novas esperanças. Começo a segunda
parte discutindo o mundo agrário por meio do debate paradigmático, que é o
método que utilizo para analisar a questão agrária e o capitalismo agrário. Mos-
tro como podemos ler o mundo agrário a partir das diferentes interpretações
produzidas pelas teorias que analisam os modelos hegemônico e alternativo de
desenvolvimento da agricultura. Também apresento o conceito de conflituali-
dade para compreender as múltiplas disputas: teóricas, conceituais, políticas,
territoriais. Por último analiso a política agrária em construção/destruição para
confrontar como agronegócio que se estabeleceu como modelo hegemônico.
A luta camponesa pela terra é hoje uma das mais intensas contra o capita-
lismo. E o sentido está na sua natureza, camponeses existem no capitalismo
sempre subordinados pela construção de perspectivas de desenvolvimento
autônomo. Essa é a razão que faz com que os camponeses produzam um mo-
delo alternativo de desenvolvimento baseado na agroecologia e que tem a Via
Campesina como uma das organizações que mais defende este modelo. O Bra-
sil agrário recente produziu um conjunto de experiências que tem promovido
Territórios de esperança
O Brasil agrário
Considerações finais
Referências
J osé Sobreiro Filho: Gostaria que você caracterizasse como ocorreu a con-
centração de terras no Pará, as relações oligárquicas e, também, as relações
com o capital estrangeiro para entendermos um pouco mais o que é essa Ques-
tão Agrária do Pará.
Ulisses Manaças: Primeiro, nós estamos vivendo um contexto mundial de
um processo cada vez mais crescente de oligopoliozação da agricultura, da
produção agrícola no mundo. A agricultura no planeta inteiro passou a ficar
refém, na verdade, do capital financeiro no plano internacional. O capital fi-
nanceiro que é, digamos assim, o capital hegemônico na sociedade acabou
absorvendo esse capital menor e então a agricultura passou a ser muito mais
um elemento de mercado. Com as definições sobre os investimentos na agri-
cultura, sobre a própria produção agrícola, não são definidas mais nas micror-
regiões. Elas são definidas no mercado internacional, no Banco Mundial, no
Fundo Monetário Internacional e com isso decorre a chamada divisão interna-
cional do trabalho e, consequentemente, da produção. O Brasil ficou muito
mais com essa tarefa de ser um grande produtor de commodities agrícolas, um
produtor de matérias-primas primárias para o abastecimento do capitalismo
central. O país hoje retrocedeu. Da década de 1930 até a década de 1990 era um
país que tinha um processo de industrialização. A década de 1990 gera um
colapso nesse processo de industrialização dependente, mas era um país que
1. Entrevista concedida em 29 de maio de 2017 e publicada originalmente em 2018 na Revista Nera. Dispo-
nível em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/5700/0
2. Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB). Professor do Programa de
Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe do IPPRI/UNESP. Vice coor-
denador da Rede DATALUTA.
José Sobreiro Filho: É possível perceber que há uma dependência crôni-
ca do Capital em relação ao Estado aqui na região da Amazônia e, sobretudo,
aqui no Pará por ser uma fronteira conflituosa? Isso me leva a pensar, com
base no par ofensiva-resistência, se nós teríamos uma tipologia de conflitos e
se teríamos uma mobilidade desses conflitos, visto o avanço do capital rumo à
floresta. Como isso tem se dado nos últimos tempos?
Ulisses Manaças: Nós temos feito muitos debates dentro dos movimentos
sociais para tentar caracterizar o que são esses conflitos. Pode-se dizer que
temos conflitos de natureza estulta quase especificamente que é o problema
fundiário, mas que, ao mesmo tempo, temos vários ciclos onde esses conflitos
explodem. Essas regiões, Norte e Nordeste do Pará, foram a primeira fronteira
aberta do processo mais recente. Nós tivemos no período do processo de colo-
nização da região os rios as grandes estradas. Eram por meio dos rios que você
desenvolvia a região, tanto que as grandes cidades, as mais antigas do estado
do Pará e da Amazônia são nas margens dos rios porque o processo de adentrar
na floresta, dominar a floresta e criar um processo de colonização é muito mais
difícil. Só que na década de 1950, com a abertura da Belém-Brasília, especial-
mente, teve um processo de expansão generalizada desse grande latifúndio na
região. Inicialmente, a ideia do Presidente Juscelino Kubitschek era abrir a Be-
lém-Brasília e nas margens criar um grande processo de reforma agrária. Co-
nectar os produtores rurais, os trabalhadores pequenos e médios garantindo
lotes de propriedade de terras para garantir um processo para o mercado inter-
no de consumo de massa. A ditadura militar rompeu esse processo e agraciou
ao entorno das rodovias grandes latifundiários, grandes empresas nacionais e
internacionais. Então isso gerou um palco de conflito e tensão. Se analisar da
década de 1950 até 1980, as pessoas que eram assassinadas, eram por confli-
tos nessa região Norte e Nordeste do Pará. Depois disso, na década de 1980 é
aberta a transamazônica e o palco do conflito migra também para essa região.
No Sul e Sudeste do Pará teve a implantação de grandes projetos do Estado bra-
sileiro como, por exemplo, a Mineração no caso da Serra dos Carajás: o projeto
José Sobreiro Filho: Observamos ao longo das últimas duas décadas uma
transferência da estratégia em alguns lugares do país, da pistolagem para a ju-
dicialização. Então tivemos um processo de perseguição política de diferentes
lideranças e muitas sendo presas injustamente. Mas quando chegamos no caso
do Pará, nos parece que isso não é ainda a atualidade. Por que que ainda temos
tão forte as práticas como pistolagem, assassinatos e ameaças aqui no Pará?
Ulisses Manaças: Esse processo de judicialização está presente também
no estado. Nós temos um forte processo de criminalização da luta social. Por
quê? Primeiro porque a luta pela terra no Pará, na década de 1980, quando há
o processo de abertura democrática, a retomada dos grandes sindicatos aqui
das mãos dos chamados pelegos, se teve um processo de lutas massivas na
região. O novo sindicalismo emergiu aqui, que não era mais aquele sindica-
lismo ligado ao Estado, à Ditadura Militar na década de 1980. Especialmente
grandes sindicatos foram retomados aqui em Conceição do Araguaia, Mara-
bá, Santarém etc. Sindicatos importantes. Toda essa região norte e nordeste
do Pará, região de luta intensa da retomada da luta camponesa você tem um
processo de repressão também muito brutal, mas é o grande latifúndio que a
gente disputava terra, que morava aqui na região Amazônica, foi se transfor-
mando no chamado grande Agronegócio e a disputa com as grandes empresas
transnacionais. Então esse latifúndio também não tem mais sede aqui, esse
grande Agronegócio ele não mora mais aqui na Região. Com exceção de um
setor periférico, digamos assim da concentração fundiária. O setor periférico
ainda mora aqui, ainda reside aqui. Então esses promovem organizações mais
José Sobreiro Filho: Nas palavras dos movimentos, como ocorreu o Mas-
sacre de Pau D’Arco?
Ulisses Manaças: Bom, agora nós estamos vivendo em um processo de
espera da perícia, do resultado da perícia, que os setores públicos estão fazen-
do em relação ao conflito. Mas, de certa forma, o que que já está segundo o
depoimento dos sobreviventes? Essa área foi reocupada agora recentemente
depois dos dois processos de reintegração de posse na fazenda Santa Lucia. Foi
reocupada recentemente por esses mesmos trabalhadores. Ainda não tinham
conseguido nem montar o acampamento na área. Estavam na área, estavam
ainda montando o acampamento, quando teve uma operação da polícia mili-
tar de Redenção, que não é uma polícia especializada para conflitos agrários,
muito menos para reintegração de posse. Não foram fazer reintegração de pos-
se, foram, segundo a polícia, cumprir quatro mandados de prisão e quatorze de
busca e apreensão. Foram para a região. Segundo os relatos dos sobreviventes,
a polícia chegou atirando, humilhando e espancando os trabalhadores que não
conseguiram fugir. Vários conseguiram fugir ainda, outros foram capturados e
foram massacrados por conta da operação da polícia. Massacrados literalmen-
te. Esse foi o relato de quem conseguiu fugir e ainda viu os policiais sorrindo,
espancando, humilhando os trabalhadores e escutavam vários disparos. Esses
trabalhadores fizeram esse depoimento e a imprensa, inclusive, teve acesso a
esse depoimento dos que relataram esse fato. A polícia já chegou atirando, o
que desmente completamente a tese inicial do sistema de segurança pública
de que a polícia foi recebida com balas. Segundo, não há comprovação ainda
de que aquelas armas que eles apresentam supostamente dos trabalhadores
sejam dos trabalhadores. Você teve, segunda a própria OAB – Ordem dos Ad-
vogados do Brasil -, uma manipulação do cenário, do chamado Teatro do IBR,
como eles falam como uma linguagem militar. Uma completa manipulação e
alteração do cenário do conflito. Então, eles retiraram completamente os cor-
pos da região, impediram a autopsia na própria região, um levantamento na
própria região. Eles retiraram completamente todas as capsulas de bala. En-
José Sobreiro Filho: Não houve nenhum tipo de diálogo em que o INCRA
pudesse prever a possibilidade desse tipo de conflito? Alguma informação que
foi passada anteriormente, algo nesse sentido para que eles que eles tivessem
a noção de que isso viria a ocorrer?
Ulisses Manaças: Tudo era plenamente evitável. Primeiro, porque o Es-
tado, ele é um mediador dos conflitos sociais. Na acepção do termo, o Estado
precisa mediar os conflitos dos diversos interesses de uma determinada socie-
dade. Qual o problema? É que o Estado atua como um dos colaboradores do
conflito, tomando posição sempre pelo lado do latifúndio e do Agronegócio. O
que que acontece? Foi criado um instrumento entre o governo brasileiro, que
é a chamada Comissão Nacional de Mediação de Conflitos Agrários. Essa mes-
ma comissão foi desmantelada, desmontada por esse governo que assumiu a
Presidência da República na atualidade, no governo Temer. Então se tinha um
desembargador, que era o desembargador Gercino Filho que era o grande res-
ponsável por essa comissão nacional de mediação de conflitos agrários. Qual
era o papel da comissão? Onde tinha conflito, onde tinha áreas ocupadas essa
José Sobreiro Filho: Bom, de um lado nós temos uma mediação dos inte-
resses, com capilaridade inclusive por meio de figuras que tem difundido pelas
redes sociais alguns vídeos fazendo ataques diretos. E, do outro lado, nós não
temos então a mediação dos conflitos à favor dos movimentos. Além disso, nós
temos esse massacre, mas temos também outros potenciais. Quais são esses
outros potenciais e, também, quais são esses protagonistas dessa mediação de
interesses que não são populares dentro do Estado?
Ulisses Manaças: Bom, primeiro é importante destacar quem são aqueles
que cometem crime na região. Se tem, por exemplo, em relação aos conflitos
no Pará, primeiro os interesses do Capital privado, que eu já falei. Latifundiá-
rios que atuam de forma criminosa na marginalidade da lei, atuando, perse-
guindo e contratando pistoleiros. Existe, na verdade, uma atuação decisiva do
José Sobreiro Filho: Antes de finalizar eu gostaria que você falasse da sua
participação dentro do MST, da Via Campesina e da CLOC para que pudésse-
mos compreender a articulação das escalas.
Ulisses Manaças: Antes disso, eu vou falar que nós entendemos a seguinte
questão. O capital hoje ele está muito mundanizado, o capital globalizado. O
chamado capital financeiro submeteu a agricultura e a agricultura é um supor-
te desse capital financeiro no mundo inteiro. Portanto, a ideia é mercantilizar
tudo, inclusive todas as formas. Inclusive a própria natureza. Eles atuam nessas
diferentes escalas no mundo inteiro, por isso que a gente acha os agricultores
não só no Brasil, não só do Pará e na Amazônia, têm que atuar nas diferen-
tes escalas também. Então por isso, por essa necessidade, surgiu a necessi-
dade dessas grandes articulações internacionais do próprio MST como, por
exemplo, a criação da Via Campesina na década de 1990 foi uma necessidade
de articular essas lutas em escala planetária que nos fez criar a Via Campe-
sina, que é uma experiência vitoriosa. Hoje se trata da maior organização de
trabalhadores e de camponeses, camponeses do mundo inteiro, uma grande
articulação global para enfrentar o grande capital também nessas diferentes
escalas. Na América Latina, a criação da Coordenadoria Latino Americana da
Organizações do Campo, que é a CLOC e também atuando em escalas Latino-
-americana, articulando as lutas, criando uma unidade campesina na região,
intercambiando em diversas experiências organizativas fortalecendo cada ex-
periência a partir disso. Então a gente acha que esse capital hoje é a suprema-
cia não só no ponto de vista econômico. Ele é a supremacia, a hegemonia na
sociedade no ponto de vista político. A política hoje é refém desse mini projeto.
Então no Brasil não existe partido político, com exceção de alguns partidos
políticos de esquerda que tem semelhanças na estrutura partidária clássica.
Você tem grupos de interesses. Então o governo, esse governo que assumiu
o Brasil, ele é um governo que ele é uma expressão dos interesses do grande
capital. Como ele, esse grande capital atua em diversas frentes. Nós também
temos que atuar em diversas frentes. A gente acha que os movimentos sociais
ISBN 978-65-86640-39-7