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TERRITÓRIOS DE ESPERANÇA: A CONFLITUALIDADE COMO PRODUTORA DO


FUTURO

Book · December 2021

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4 authors:

Sandra Helena Ribeiro Cruz Adolfo Oliveira Neto


Federal University of Pará Federal University of Pará
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Jose Sobreiro Filho Cristiano De Paula


University of Brasília Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
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T E R R I TÓ R I O S D E
ESPERANÇA
A conflitualidade como
produtora do futuro

or ganiz ação
Sandra Helena Ribeiro Cruz • Adolfo Oliveira Neto
José Sobreiro Filho • Cristiano Quaresma de Paula
T E R R I TÓ R I O S D E E S P E R A N Ç A
UFPA

Uni vers i dad e Fe de r al do Par á

Reitor
Emmanuel Zagury Tourinho

Vice-reitor
Gilmar Pereira da Silva

Pró-reitora de Ensino de Graduação


Marília de Nazaré Ferreira

Pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação


Maria Iracilda da Cunha Sampaio

Pró-reitor de Extensão
Nelson José de Souza Júnior

Pró-reitor de Relações Internacionais


Edmar Tavares da Costa

Pró-reitor de Administração
Raimundo da Costa Almeida

Pró-reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional


Cristina Kazumi Nakano Yoshino

Pró-reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal


Ícaro Duarte Pastana

Prefeito Multicampi
Eliomar Azevedo do Carmo

Secretário-geral da Reitoria
Marcelo Galvão Baptista
T E R R I TÓ R I O S
DE ESPERANÇA
A conflitualidade como produtora do futuro

or ganiz ação
Sandra Helena Ribeiro Cruz
Adolfo Oliveira Neto
José Sobreiro Filho
Cristiano Quaresma de Paula

Universidade Federal do Pará


Belém, 2021
Copyright © Autores

Edição: José Sobreiro Filho | Adolfo Oliveira Neto


Design e diagramação: Negrito Produção Editorial
Revisão: Juliene do Socorro Cardoso Rodrigues

Conselho Editorial
Profª. Drª. Benedita Alcidema Coelho dos Santos Magalhães – Ufpa
Profª. Drª. Cátia Oliveira Macedo – Uepa
Prof. Dr. Cláudio Eduardo de Castro – Uema
Prof. Dr. Cristiano Nunes Alves – Uema
Profª. Drª. Dirce Maria Antunes Suertegaray - Ufrgs
Prof. Dr. Gilberto de Miranda Rocha – Ufpa
Profª. Drª. Indira Cavalcanti da Rocha Marques – Ufpa
Prof. Dr. João Márcio Palheta da Silva – Ufpa
Prof. Dr. José Antônio Herrera – Ufpa
Prof. Dr. José Queiroz de Miranda Neto – Ufpa
Prof. Dr. José Sampaio de Mattos Junior – Uema
Profª. Drª. Jurandir Santos de Novaes – Ufpa
Profª. Drª. Luciana Martins Freire – Ufpa
Prof. Dr. Raimundo Luiz Silva Araújo – UnB
Prof. Dr. Ricardo Ângelo Pereira de Lima – Unifap

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com


o ISBD Biblioteca Benedicto Monteiro/UFPA-Ananindeua-PA

Territórios de esperança: a conflitualidade como produtora do futuro / Orga-


nização: Sandra Helena Ribeiro da Cruz, Adolfo Oliveira Neto, José Sobreiro Filho,
Cristiano Quaresma de Paula. – Belém: UFPA, 2021.
258 p. : il.

Inclui bibliografias
ISBN 978-65-86640-39-7

1. Territórios. 2. Movimentos sociais. 3. Conflito. 4. Questão agrária. I. Cruz,


Sandra Helena Ribeiro da (Org.). II. Oliveira Neto, Adolfo (Org.). III. Sobreiro Fi-
lho, José (Org.). IV. Paulo, Cristiano Quaresma de (Org.). V. Título.

T327 CDD: 333.31

Elaborado por Erik André de Nazaré Pires – CRB 2/563


Sumário

Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
Raimundo Luiz Silva Araújo

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
Sandra Helena Ribeiro Cruz • Adolfo Oliveira Neto • José Sobreiro Filho •
Cristiano Quaresma de Paula

Reclamando Heimat: sobre os discursos de território e resistência nos


movimentos sociais na Alemanha atual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17
Teresa Wilmes

Ação coletiva contra os transgênicos: a defesa do milho mexicano.


Pensar os movimentos sociais no século XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
Polette Rivero Villaverde

Questão agrária e geopolítica dos recursos naturais em Moatize–


Moçambique: a Vale S.A. e o extrativismo epidêmico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53
Guilherme Whitacker

Os conflitos rurais na Argentina profunda: uma caraterização da luta pela


terra em Santiago del Estero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73
Cristian Jara • Ramiro Rodríguez • Raúl Paz

Questão agrária no Brasil e Paraguai: resistências, movimentos


socioterritoriais e recriação da luta pelo território. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .89
Lorena Izá Pereira • Camila Ferracini Origuéla
Conflitos socioterritoriais na região do bico do papagaio: reflexões e
possibilidades de construção de uma teoria dos conflitos na geografia. . . . .105
Patrícia Rocha Chaves

Agronegócio, campesinato e contrarreforma Agrária no Baixo Jaguaribe–


Ceará–Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125
Claudemir Martins Cosme • Marco Antônio Mitidiero

A criminalização do MST no Governo Bolsonaro e as novas estratégias


de luta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143
Ronaldo Barros Sodré • José Jonas Borges da Silva • Acácio Zuninga Leite

Resistências na Amazônia: emergência e estratégias de lutas da CPT e


do MAB face à produção de complexos portuários no oeste do Pará . . . . . . .155
Jondison Cardoso Rodrigues

Contradições, resistência e lutas sociais frente aos desastres


socioambientais da mineração em Barcarena/PA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .181
Marcel Theodoor Hazeu • Solange Maria Gayoso da Costa • Nádia Socorro
Fialho Nascimento

Mudanças e influências da contemporaneidade em comunidades


ribeirinhas na Amazônia brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .199
Christian Nunes da Silva • Vicka de Nazaré Magalhães Marinho • Gracilene
de Castro Ferreira • Laís Melo Lima • Monique Farias • Milena de Nazaré Silva
Santos • Adria de Melo Rosa.

Territórios de esperança e política agrária no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .211


Bernardo Mançano Fernandes

Questão agrária, massacre de Pau d’Arco e violência na Amazônia:


entrevista com Ulisses Manaças. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .231
José Sobreiro Filho
Prefácio
Raimundo Luiz Silva Araújo1

Me pediram pra deixar de lado toda a tristeza,


pra só trazer alegrias e não falar de pobreza.
E mais, prometeram que se eu cantasse feliz,
agradava com certeza.
Eu que não posso enganar,
misturo tudo o que vivo.
Canto sem competidor,
partindo da natureza do lugar onde nasci.
(Geraldo Vandré, “Terra Plana”)

P refácio, na sua etimologia, quer dizer o que é dito antes. E é sempre uma
responsabilidade introduzir um livro, especialmente quando ele socializa
aprendizagens vivenciadas no território, territórios onde pelo conflito e resis-
tência se busca reacender a esperança.
Talvez a melhor forma de começar é falar um pouco dos tempos em que o
livro é publicado. Falar um pouco do contexto em que ocorrem as resistências
nele descritas. Vivemos tempos sombrios, não são os únicos, não são os pri-
meiros e, infelizmente, não serão os últimos.
A democracia brasileira faz parte do pacto social expresso no processo de
redemocratização da década de 80 e se materializou na Constituição de 1988,
especialmente nas garantias individuais e nos direitos sociais ali consignados.
Em 2016 a frágil democracia brasileira sofreu um duro golpe. Um governo le-
gitimamente eleito foi apeado do poder sob efêmera justificativa. De lá para
cá os pilares do pacto de 1988 estão sendo de forma acelerada dilapidados,

1. Universidade de Brasília (UnB)

A conflitualidade como produtora do futuro 7


direitos sociais suprimidos, bens públicos privatizados e movimentos sociais
criminalizados.
A vitória de um governo de extrema direita em 2018 é um subproduto des-
te golpe. Aproveitando a descrença da maioria da população com os partidos
tradicionais de esquerda e de direita, um personagem que vivia operando no
universo do chamado baixo clero da política nacional, vivendo de falcatruas
familiares e se elegendo com apoio de milicianos no Rio de Janeiro, se firma
como a melhor alternativa para consolidar o golpe. A elite não pensa duas ve-
zes em entregar o poder central de nosso país a Jair Bolsonaro, com a promessa
de que o programa de desconstrução dos direitos sociais teria continuidade e
com a crença de que seria possível controlar seus “arroubos autoritários”.
Por uma cruel coincidência, foi justamente neste período que o mundo
enfrentou (e enfrenta) uma pandemia, que conseguiu paralisar as atividades
econômicas de quase todos os países, ceifou milhares de vidas e mudou a roti-
na da vida de todos os habitantes deste planeta. Diante de uma crise sanitária
só comparada a gripe espanhola, o comando do país estava nas mãos de um
governo negacionista. O resultado é por todos conhecido: milhares de mor-
tes que poderiam ter sido evitadas, inexistência de coordenação nacional de
combate a pandemia, ataques do governo central aos governos locais e boicote
sistemático as medidas de contenção da propagação do vírus, falta de apoio
material e financeiro a estados e municípios, desemprego alarmante, voltamos
a fazer parte do mapa da fome e boicote ativo a compra de vacinas, atrasando
e tornando lenta a cobertura vacinal da população, mesmo com a expertise do
SUS nessa área. A segunda onda da pandemia poderia ter sido contida e vidas
poderiam ter sido salvas.
Os direitos sociais são o principal alvo das mudanças realizadas pelo gover-
no central. E assim como a pandemia, elas atingem de forma mais violenta os
mais pobres, os que vivem em condições precárias, as mulheres, negros e ne-
gras, os que vivem no campo, os povos originários e a população quilombola.
As experiências de governos federais de esquerda tiveram uma política mi-
tigada: mantiveram a política econômica de austeridade e permitiram a mi-
gração de recursos para os mais ricos, mas aproveitaram o crescimento econô-
mico e realizaram crescimento da cobertura no campo dos direitos e políticas
compensatórias e afirmativas. Esses pequenos avanços foram conquistados
com mobilização social e nunca foram aceitos pela elite. O fato de termos um
capitalismo estruturalmente racista explica a dificuldade de a elite aceitar que

8 Territórios de esperança
uma mulher pobre, filha de agricultores, por exemplo, chegue a uma univer-
sidade ou se desloque de avião. Não são lugares para os deserdados da terra.
Pelo menos no olhar de quem herdou o comando do país dos fazendeiros e
capitãs do mato.
A educação sofre ataques cotidianos, alguns representando a aceleração de
processos que já estavam sendo vivenciados. Com a educação no campo não
é diferente. A matrícula da educação do campo vem caindo na última década,
reduzindo em 27% sua cobertura. O número de escolas existentes vem sendo
reduzido. De 2008 para 2020 foram fechadas 20.228 escolas, quase todas no
campo. A falta de um padrão mínimo de qualidade faz com que as escolas do
campo sejam as mais precárias, com professores com mais baixa formação e
que recebem menos insumos dos governos municipais e estaduais.
Os temas que povoam esse livro são os territórios de esperança e a confli-
tualidade como produtora do futuro. A esperança é uma política necessária em
nosso cotidiano. No campo, nas águas, nas cidades e nas florestas, ela está pre-
sente onde quer que exista o ser. No singular ou no coletivo, há de se reconhe-
cer que há nas classes populares diferentes referências de territórios de espe-
rança. No entanto, em uma sociedade onde as disputas territoriais promovem
práticas de intolerância que atentam à vida e reprodução social, a esperança
se expressa na luta por territórios, na resistência, no seu desenvolvimento e na
organização da solidariedade territorial.
O presente trabalho nos oferece uma sistematização de diferentes formas
de resistir, de defender direitos. E, a cada luta, a cada conflito contra a barbárie,
o autoritarismo e a retirada de direitos, a esperança renasce. A esperança tem
sido contra-hegemônica e tem povoado relações, composto o roteiro de ações
e o cotidiano.
Na contemporaneidade, a esperança tem sido e promovido o confronto à
insurreição do fascismo no Brasil e no Mundo, tem apresentado as contradi-
ções dos transgênicos e defendido a soberania alimentar, criticado e denun-
ciado as formas de espoliação e a geopolítica perversa de extração de recursos
naturais, apontado as contradições do Estado e os conflitos no campo, se orga-
nizado em movimentos socioterritoriais e defendido territórios camponeses e
indígenas face ao capital financeiro no campo.
E essa resistência é feita na cidade e no campo, nas ruas e nas instituições,
dentre elas a escola. E isso nos faz recordar das palavras de Florestan Fernan-
des, que após o processo de derrubada da ditadura militar nos instigava a “fazer

A conflitualidade como produtora do futuro 9


da integração à escola o centro de uma liberação crítica e total, que incentive a
descoberta do eu e do nós coletivo do futuro trabalhador, como pessoa e como
integrante de sua classe social”2. Da data em que ele fez este desafio, milhões
de brasileiros foram incluídos na escola, chegamos perto da universalização do
ensino fundamental e certamente em breve teremos todas as crianças de 4 a
17 anos tendo contato com uma sala de aula. Porém, essa inserção foi feita de
forma precária, desigual e sem que se tornasse hegemônica uma educação que
libertasse as novas gerações das amarras da exploração existente.
Sistematizar a luta nos territórios auxilia a difundir a mensagem de milhões
que não possuem os instrumentos para serem ouvidos e que são silenciados
pelo Estado e pelo Capital de forma contundente. Só este ato já justifica e dá
importância aos escritos deste livro. Mas ele faz mais, ele ajuda a manter acesa
a esperança, sentimento que sempre moveu a humanidade em busca de me-
lhores dias.

2. Fernandes, Florestan. Desafio educacional. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989, p. 263.

10 Territórios de esperança
Apresentação

O livro Territórios de Esperança: a conflitualidade como produtora do fu-


turo procura contribuir com reflexões sobre os territórios de esperança
na contemporaneidade, a indissociabilidade entre conflito e esperança, bem
como o processo conflituoso que envolve o devir. Camponeses, indígenas, ri-
beirinhos, quilombolas, movimentos, acadêmicos etc., têm protagonizado na
contemporaneidade a crítica, a resistência e a luta em diferentes trincheiras da
e pela esperança, disputando não só o presente. O futuro tem sido objeto de
motivação de ações e expectativas, entre ele, o presente e o passado que são
criadas as esperanças.
Lenin e Kautsky buscaram prever o processo de fim do campesinato, que
acarretaria vasta massa de trabalhadores pertinente aos interesses político-
-partidários. Embora os camponeses e camponesas tenham sofrido inúmeros
ataques, em diferentes lugares do mundo tem se organizado em busca de re-
sistência e recriação. No embate entre o campesinato e o agronegócio, diversas
experiências agroecológicas têm testemunhado que organizações do campo
tem elegido a vida, a saúde e a sustentabilidade em detrimento do lucro. A
esperança tem formas diferentes e povoa muitas relações e processos do co-
tidiano. É preciso ser sensível para captar o modo como ela se apresenta em
diferentes ações que envolvem a produção do espaço e territórios.
Enquanto o mundo vive as consequências das disputas comerciais e po-
líticas, intensificadas por recorrentes crises do capitalismo, a esperança tem
povoado as mais diversas políticas contenciosas. Uma esperança que luta, que
resiste e que se organiza. Do cotidiano ao tempo histórico, temos notado a in-
surreição de diferentes movimentos socioterritoriais, espaços de politização e
bandeiras que surgem enquanto outras passam a habitar a história contencio-
sa. Novas e velhas pautas redinamizadas criam nervuras na teia de políticas

A conflitualidade como produtora do futuro 11


contenciosas do mundo. A diversidade destas lutas e resistências exprimem os
múltiplos significados da esperança e a reafirma enquanto política pertinente
à produção de espaços e territórios.
Essa diversidade é contemplada neste livro. Somos convidados, por dife-
rentes autores e autoras, a conhecer distintas realidades conflituosas e organi-
zações que representam diversas facetas da esperança. As contribuições aqui
organizadas representam contribuições também enquanto referências em
matéria de estudo da questão agrária na América Latina, das racionalidades
espaço-temporais, das disputas territoriais, da conflitualidade, dos movimen-
tos socioterritoriais e das ações coletivas.
Em “Reclamndo Heimat: sobre os discursos de território e resistência nos
movimentos sociais na Alemanha atual”, de Teresa Wilmes, temos uma interes-
sante análise sobre a insurreição da extrema direita e seus movimentos sociais,
bem como o arrefecimento da agenda da esquerda. A xenofobia e o fascismo
têm sido crescentes e ecoado, através da criação de um partido e movimentos
sociais, no cenário político alemão, performando semelhanças com os discur-
sos de extrema esquerda de outrora. Neste contexto, algumas forças indicam a
necessidade de se rediscutir noções como “Heimat”, “identidade” e “alemão”,
pela esquerda política, pensando um debate qualificado e que se aproprie des-
tes potenciais instrumentais. Parte destas problemáticas é pertinente às dis-
putas referentes ao discurso sobre território e resistência, especialmente pelo
caráter espacial dos debates políticos.
Diante do avanço do processo de domínio e controle dos territórios latino­
americanos, Polette Rivero Villaverde realiza relevante crítica sobre o histórico
dos transgênicos e suas implicações na saúde, meio ambiente, cultura e socie-
dade ao longo de seu artigo “Ação coletiva contra os transgênicos: a defesa do
milho mexicano. Pensar os movimentos sociais no século XXI”. Os atores são
apresentados considerando objetivamente as disputas políticas, o agronegócio
protagonizando sua hegemonia lastreada na relação promíscua com os gover-
nos e em detrimento dos camponeses lançados à sua própria capacidade or-
ganizativa e ao suporte de relações solidárias. Em especial, a autora reconhece
a relevância do cultivo do milho, sendo o México não somente uma referência
em termos de diversidade, mas também parte de sua cultura e fortemente ex-
pressa na alimentação cotidiana e ancestrais. Em um país historicamente ca-
racterizado pela disputa territorial baseada em diferentes formas de confron-
tos políticos no campo, especialmente envolvendo camponeses-indígenas, a

12 Territórios de esperança
questão dos modos de produção por detrás da produção transgênica de milho
tem chamado a atenção de diferentes atores políticos, que, por sua vez, encon-
traram nas ações coletivas uma outra forma de se fazer política.
Em “Questão agrária e geopolítica dos recursos naturais em Moatize –
Moçambique: A Vale S.A. e o Extrativismo epidêmico”, Guilherme Whitacker
promove uma leitura contundente sobre as relações geopolíticas por detrás
da extração de recursos naturais realizada pela Vale S.A. O Artigo se ampara
em análises empíricas para promover relevantes críticas ao megaprojeto de
extração de carvão mineral em Moatize (Moçambique), trazendo e produzindo
contradições de ordem ambiental, social e econômica, bem como geopolítica.
Tomadas as referências materiais e buscando adentrar ao debate da produção
do conhecimento, ousadamente aborda a questão teórico-conceitual perti-
nente ao (neo)extrativismo, com o fito de ofertar a conceituação de extrativis-
mo epidêmico. Por fim, desfere críticas interessantes à geopolítica dos recursos
naturais que muito contribuem para entendimento do debate atual sobre acu-
mulação primitiva, espoliação, exploração etc., bem como sobre a atuação de
multinacionais na África.
Cristian Jara, Ramiro Rodríguez e Raul Paz nos conduzem a uma experiên-
cia de conhecimento da questão agrária Argentina ao passo em que nos per-
mitem entender um pouco mais sobre as especificidades da luta pela terra em
Santiago del Estero. Em seu artigo “Os conflitos rurais na Argentina profunda:
uma caracterização da luta pela terra em Santiago del Estero”, os autores re-
lacionam os conflitos agrários a aspectos estruturais de longa duração, como
a estrutura agrária, a falta de documentos de propriedade etc. Nos permitem
entender também que embora o Estado possa protagonizar relevante papel na
mediação e resolução de conflitos, tem sido insuficiente, especialmente nas
províncias do norte da Argentina. Tais condições contribuem ainda mais para a
manutenção da concentração de terras e outros fenômenos da conflitualidade.
De fronte a essa realidade conflituosa para os camponeses, assistimos à forma-
ção e insurreição do MOCASE (Movimento Camponês de Santiago del Estero),
movimento que tem pautado a luta popular e criado formas de se promover o
desenvolvimento do campesinado no campo de Santiago del Estero.
No artigo “Questão Agrária no Brasil e Paraguai: resistências, movimentos
socioterritoriais e recriação da luta por território” temos uma leitura crítica da
questão agrária tomando como referência os processos de resistência e a ação
coletiva organizadas pelos movimentos socioterritoriais. A análise de Lorena

A conflitualidade como produtora do futuro 13


Izá Pereira e Camila Ferracini Origuéla comporta uma leitura preocupada com
os principais fatos e experiências do processo de formação do MST no Brasil,
nos permitindo compreender sua espacialização e territorialização. Na ques-
tão agrária paraguaia, os leitores seguem acompanhados dos mesmos cuida-
dos acadêmicos, também atentos aos elementos referentes à gênese e atuação
da FNC e CONAMURI. Além de promover a compreensão da relação entre
geopolítica e os movimentos socioterritoriais, o artigo oferece uma contribui-
ção tanto na análise comparativa das resistências quanto na realização da uma
leitura crítica sobre a questão agrária na América Latina.
Patrícia Rocha Chaves assina o artigo “Conflitos socioterritoriais na região
do Bico do Papagaio: reflexões e possibilidades de construção de uma teoria
dos conflitos na Geografia”, onde procura apresentar detalhadamente elemen-
tos referentes aos conflitos relacionados à luta por terra e território na região
do Bico do Papagaio. Tomando o conflito como principal objeto de análise, a
autora percorre detalhes de aspectos estruturais da questão agrária, como a
estrutura fundiária, e que, portanto, expressam algumas das contradições do
avanço das relações capitalistas no campo. Os dados da Comissão Pastoral da
Terra são analisados detalhadamente e bem relacionados com uma leitura his-
tórica precisa sobre fatos e processos políticos da luta pela terra no Brasil e no
Bico do Papagaio.
Claudemir Matins Cosme e Marco Antônio Mitidiero Junior são autores de
“Agronegócio, campesinato e contrarreforma agrária no Baixo Jaguaribe – Cea-
rá – Brasil”, artigo que comporta o debate da luta e resistência dos camponeses
cearenses em assentamentos rurais de reforma agrária. Partindo da conjuntura
de uma questão agrária conflituosa, permeada pelas disputas territoriais entre
classes antagônicas, os autores nos permitem compreender melhor os des-
dobramentos da política nacional na resistência e luta pela terra, bem como
promover uma leitura mais acurada sobre as políticas pautadas para o campo
em diferentes governos. Amparado na análise da questão agrária atenta às re-
ferências teóricas do desenvolvimento contraditório do capital, do seu caráter
rentista e das contradições impostas na (re)criação de formas não capitalistas
de produção, busca promover ainda mais o debate sobre a reforma agrária e a
contrarreforma agrária, tomando como objeto de análise o espaço agrário da
Microrregião do Baixo Jaguaribe (CE). Nesta correlação de força, nota-se que
o agronegócio tem se apropriado cada vez mais do território e em detrimento
das possibilidades dos camponeses.

14 Territórios de esperança
No artigo “A criminalização do MST no governo Bolsonaro e as novas estra-
tégias de luta”, Ronaldo Barros Sodré, José Jonas Borge da Silva e Acácio Zuniga
Leite promovem um debate com o fito de refletir sobre a criminalização de
movimentos camponeses e atual conjuntura agrária brasileira. A análise das
estratégias de luta do MST na atual conjuntura, especialmente tomando o Ma-
ranhão como lastro de análise, nos permite entender como o movimento tem
conseguido levar adiante e avançar em determinadas pautas populares ao pas-
so em que enfrentam a repressão e a tensão no campo. Assentamentos rurais,
ocupações de terras, desenvolvimento da produção, reforma agrária, resistên-
cia e outros, são os temas que povoam o debate sobre o desafio de se manter a
resistência de famílias camponesas juntamente ao processo de criminalização.
Jondison Cardoso Rodrigues assina o artigo “Resistências na Amazônia:
emergência e estratégias de lutas da CPT e do MAB face à produção de com-
plexos portuários no oeste do Pará”, onde realiza uma análise instigante sobre
insurreição da organização política e ações coletivas de políticas contencio-
sas promovidas em decorrência da resistência às estruturações portuárias na
Amazônia paraense. Douto do papel estratégico do estado do Pará na agenda
do capital, o autor reconhece a relevância e o protagonismo da Comissão Pas-
toral da Terra e do Movimento dos Atingidos por Barragens na organização dos
processos de resistência diante do avanço da dotação de infraestrutura portuá-
ria na porção oeste da Amazônia paraense.
Não obstante, Marcel Theodoor Hazeu, Solange Maria Gayoso da Costa e
Nádia Socorro Fialho Nascimento contribuem neste livro com o artigo “Con-
tradições, resistência e lutas sociais frente aos desastres socioambientais da
mineração em Barcarena/PA”. Reconhecendo a imprescindibilidade do deba-
te sobre o conflito, os autores destacam diferentes impactos e desastres so-
cioambientais provocados pela mineração e que historicamente tem afetado
as comunidades tradicionais. Não obstante, a insurreição das ações coletivas e
a retomada de territórios face à mineração compõem parte especial na agen-
da de lutas e resistências na Amazônia Paraense. Ademais, o artigo contribui
objetivamente para a compreensão da formação das ações organizadas e suas
práticas de política contenciosa contra a mineração em Barcarena.
Christian Nunes da Silva, Vicka de N. M. Marinho, Gracilene de C. Ferreira,
Laís M. Lima, Monique Farias, Milena de N. S. Santos e Adria de M. Rosa assi-
nam o artigo “Mudanças e influências da contemporaneidade em comunidades
ribeirinhas na Amazônia brasileira”. As autoras e o autor promovem o debate

A conflitualidade como produtora do futuro 15


sobre as mudanças ocorridas no modo de vida ribeirinho e em seus territórios,
destacando como a inserção de tecnologia vem mudando seus costumes e for-
mas de relacionar-se com o meio. O contato com a cultura externa, em decor-
rência da globalização, se expressa nos meios de locomoção, na alimentação,
no modo de se vestir e na comunicação. Estas relações são relevantes porque
passam a permear o território e a compor o quadro de elementos das diferentes
formas de valores atribuídos pelos ribeirinhos da Amazônia paraense.
Bernardo Mançano Fernandes assina o artigo “Territórios de esperança e
política agrária no Brasil”, onde oferece uma análise crítica sobre o modo como
a luta pela terra e pela reforma agrária produzem territórios de esperança e
políticas agrárias. Tomando como referência a conflitualidade pertinente à
disputa por modelos de desenvolvimento, o debate teórico-conceitual se atém
aos domínios da categoria território. Esperança e conflito são elementos indis-
sociáveis em sua abordagem, uma vez que a esperança habita a luta pela exis-
tência e resistência dos territórios camponeses contra o capitalismo. Os terri-
tórios camponeses, oriundos das políticas de reforma agrária, são territórios da
esperança, capazes de transformarem a realidade e promoverem a superação.
O Debate paradigmático contribui para entendermos melhor a relação entre
conflitualidade, campesinato, território e esperança. Em especial, contribui
enquanto método de análise da questão agrária e do capitalismo agrário.
Por fim, na entrevista “Questão agrária, Massacre de Pau D´Arco e violência
na Amazônia: entrevista com Ulisses Manaças”, José Sobreiro Filho promove
um diálogo acerca da conflitualidade, violência e as disputas territoriais na
questão agrária amazônica com uma das principais lideranças Sem Terra da
Amazônia. Ulisses Manaças, conhecido como “Comandante Cabano”, era um
respeitado militante que criticava duramente a questão agrária e mineral na
Amazônia, relacionando-as a problemas estruturais. A violência no campo é
compreendida não somente pelos latifundiários, grileiros, agronegócio, ma-
deireiros, camponeses, indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc., mas também
pelo protagonismo do Estado, onde, em alguns casos, atua como organizador
do conflito. Casos como o massacre de Pau D´Arco são expressões da ousadia
dos latifundiários na Amazônia e caráter promíscuo do Estado perante os in-
teresses capitalistas. Por fim, o debate entre Sobreiro e Manaças nos instiga a
pensar a importância das articulações das lutas na Amazônia e do avanço do
campesinato.

16 Territórios de esperança
Reclamando Heimat: sobre os discursos de
território e resistência nos movimentos sociais
na Alemanha atual
Teresa Wilmes

“Toda ação que se pretenda efetivamente transformadora, hoje, necessita,


obrigatoriamente, encarar esta questão: ou se trabalha com a multiplicida-
de de nossas territorializações, ou não se alcançará a transformação que
almejamos. Os movimentos contra o neoliberalismo e por uma outra glo-
balização que o digam.” (Haesbaert, 2007, p. 42)

N os partidos conservadores alemães, vimos tentativas de copiar os discur-


sos da extrema direita para ocupar espaços discursivos. Essas tentativas,
que não diminuem o apoio popular pelos movimentos da extrema direita,
erram: ao invés de copiar, temos que reocupar e redefinir as categorias im-
portantes, para que não sejam somente os populistas falando da identidade e
da Heimat. Quando assumimos e redefinimos essas categorias, temos a opor-
tunidade de criar outra visão dinâmica e inclusiva do coletivo, reclamando o
“nós” e deixando claro que existem alternativas bem mais diversas e válidas na
Alemanha do que a autoproclamada “Alternativa para Alemanha”. Reconhe-
cendo o papel importante da língua, faz-se necessário reocupar as palavras e
abrir os debates para poder responder à “[...] retórica irracional e inflamatória
que pode desestabilizar culturas políticas e as suas bases eleitorais” (DRUXES;
SIMPSON, 2016, p. 13).

Introdução

Por muito tempo, o território e as territorialidades têm sido categorias ne-


gligenciadas nos discursos dos movimentos sociais e políticos da esquerda ale-
mã. O presente artigo apresenta considerações sobre as origens dessa relação

A conflitualidade como produtora do futuro 17


distanciada, a relevância do território nos discursos dos movimentos da direita
e esquerda na Alemanha atual e a necessidade de reconhecer, reapropriar e
reclamar os conceitos ligados ao território pelos movimentos da esquerda.
Depois de uma breve apresentação do contexto atual dos crescentes movi-
mentos da extrema direita e das dificuldades de definir identidades coletivas
na Alemanha, traçaremos sobre o uso e abuso das categorias do território e das
territorialidades. Principalmente, examinaremos o conceito da Heimat, que,
na língua e imaginação alemã, expressa um sentimento profundo de pertenci-
mento, mediado pelo espaço e a memória coletiva de um lugar.
Revelaremos como historicamente essas três dimensões – espaço, memória
e pertencimento – foram usadas pela extrema direita para construir uma iden-
tidade alemã exclusiva, xenofóbica e fascista. Embora dê a entender como daí
surge certa relutância de engajar com estas terminologias os movimentos da
esquerda política, a última parte do texto desta pesquisa argumenta a favor da
reclamação a esses conceitos. Precisamos reconhecer as nossas próprias posi-
cionalidades, (re)apropriar-nos das terminologias, e disputar espaços políticos
para oferecer uma refletida alternativa política contra a lógica dos movimentos
da extrema direita, bem como das forças do neoliberalismo.
Metodologicamente este capítulo não usa como base um trabalho extenso
de pesquisa qualitativa, mas é formado a partir de considerações da própria
participação em espaços de movimento e formação política de esquerda, a
partir da observação do discurso da direita, no cotidiano alemão, e aprofunda-
das pela revisão da correspondente literatura.
No entanto, é preciso revelar o momento subjetivo desse trabalho, inerente
a toda pesquisa acadêmica, na qual falo da própria experiência, não para co-
locá-la no centro, mas para entender que estas reflexões necessariamente sur-
gem a partir da própria posicionalidade. Para ilustrar a temática, exemplificarei
três encontros que incitaram a escrever o presente artigo: Primeiro, trabalho no
acompanhamento e reflexão de jovens alemães que fazem serviço voluntário
no sul global. Depois de ter concluído a escola, ao voltar à Alemanha, após
ter vivido um ano na Bolívia, uma jovem alemã disse: “[...] comparado com a
diversidade cultural que eu conheci na Bolívia, aqui na Alemanha nem temos
identidade cultural”. Lembro que, depois de ter feito um serviço voluntário na
Bolívia, em 2010/2011, quis investigar a música folclórica da Alemanha, já que
os bolivianos tinham me perguntado por que eu só sabia cantar músicas em
inglês. Ao buscar na internet o termo “folclore alemão”, os resultados foram

18 Territórios de esperança
quase exclusivamente sites de nacional-socialistas e da extrema direita, o que,
rapidamente, fez-me desistir da investigação.
Segundo algumas jovens1 da América Latina, que participaram de um pro-
grama de intercâmbio na Alemanha, foram elas que acabavam falando sobre
a música, a arte, as tradições dos seus lugares de origem, enquanto as jovens
alemãs não sabiam o que compartilhar.
Quando já estava pensando em abordar o tema da identidade “alemã” e
reunia os primeiros pensamentos e fontes, um dia, sentada em um parque em
Londres (onde estudo atualmente), sentou-se um casal na mesa a meu lado.
Obviamente eram alemães; percebia-se, mesmo sem escutá-los conversando,
pois na camisa estava escrito “no nationality” (sem nacionalidade). É daí que
partem as considerações mais fundadas teoricamente que desenvolvemos
neste capítulo.

A situação atual

A Alemanha de hoje enfrenta uma situação que parecia impossível há pou-


co tempo. Pela primeira vez na história da República Federal, desde 1945, vi-
venciamos a presença de um partido da extrema direita no parlamento alemão,
resultado da entrada da AfD, a autodenominada “Alternativa para Alemanha”
ao Bundestag, no outono de 2017. Esse fato, desafortunadamente, não é nada
particular na Europa, nem em vários países, no mundo inteiro, momento em
que vemos a extrema direita crescendo (PANITCH; ALBO, 2015).
Em comparação a outros países europeus, como a Itália, Hungria ou Polô-
nia, por exemplo, a Alemanha demorou mais para ter a entrada de um partido
da extrema direita no parlamento (DRUXES; SIMPSON, 2016). Isso, obviamen-
te, nunca foi por a xenofobia e o racismo terem desaparecido na sociedade
alemã, mas a memória das atrocidades do Holocausto cometidas pelos nacio-
nal-socialistas significou que, pela grande maioria das alemãs, era impossível
votar num partido político que represente essas ideologias ao nível institucio-
nal de um partido político (BERBUIR; LEWANDOWSKY; SIRI, 2015). Nesse
sentido, a presença da AfD no parlamento fez com que o impensável aconte-
cesse: a extrema direita voltou a ser representada oficialmente, reunindo quase
13% das eleitoras alemães em 2017 (THE ECONOMIST, 2017).

1. Onde uso o plural gramático feminino, me refiro a ambos gêneros.

A conflitualidade como produtora do futuro 19


Em crescentes números, os simpatizantes desse partido e de outros movi-
mentos xenofóbicos e racistas da extrema direita ocupam as ruas das cidades,
especialmente na porção anteriormente comunista da “República Democrá-
tica Alemã”, onde a AfD ganhou mais de 20% dos votos na última eleição. Os
protestos em Chemnitz, em agosto de 2018, após a morte de um alemão, pro-
vavelmente por um requerente de asilo político, marcaram uma nova escalada
da xenofobia: Aproximadamente 5.000 pessoas pertencentes à AfD, à PEGIDA
(autodenominados “Europeias patriotas contra a Islamização do Ocidente”),
à “Identitäre Bewegung” (movimento identitário) e outros grupos da extrema
direita dominaram as ruas da cidade e deixaram as forças policiais sem contro-
le nenhum (RIETZSCHEL, 2018). Esses grupos podem ser considerados movi-
mentos sociais, mas são movimentos que se opõem aos direitos de refugiados,
migrantes e cidadãos alemães que não correspondem às suas ideias exclu-
dentes de “ser alemão”. Abusando da palavra de ordem da reunificação alemã,
eles clamam “Nós somos o povo” e promovem o vocabulário da “cultura” e da
“identidade” alemã, baseadas na xenofobia e no racismo.

Em busca da identidade “alemã”

Enquanto algumas pesquisadoras identificam “[...] uma mudança geral na


Europa do oeste [...] em direção à identidade nacional como categoria comba-
tida”2 (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 03), observamos estas tendências também
no âmbito político em outras regiões do mundo. Seja na ideologia da “America
first”, na xenofobia ou no racismo do futuro presidente brasileiro, os partidos
da extrema direita proclamam a ideia de um coletivo “nacional” e quem não
corresponde a esta ideia do cidadão uniforme, tenha o passaporte da “nação”
ou não, está sendo marginalizada.
O Estado-Nação, construto colonial imposto em muitos lugares, não é ca-
paz de abrigar as diversidades reais dos seus sujeitos. Além disso, como pro-
va Bauman (2007), vivenciamos a crescente separação do poder, em mãos do
capital transnacional, e da política como poder decisivo, que não consegue se
opor às forças neoliberais ou se une aos seus interesses. Em vários lugares do
mundo, cresce a insatisfação com as instituições controladas pela economia,

2. Todas as traduções do Inglês, Espanhol e Alemão são livres.

20 Territórios de esperança
que menos e menos conseguem convencer de sua legitimidade e efetividade
o indivíduo.
Nesse clima, no qual o indivíduo permanece em uma situação socialmente
insegura, “ansiedades existenciais populares” viraram a “nova fórmula políti-
ca” (BAUMAN, 2007, p. 16). Ao invés de revelar as verdadeiras origens desses
medos no neoliberalismo feroz e na globalização negativa, os movimentos da
extrema direita “reduzem a multidão de tensões [...] da vida sob o neoliberalis-
mo globalizado simplisticamente – mas confortavelmente – a um inimigo con-
creto” (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 02). O atual ministro do interior alemão,
Seehofer, mostrou uma chocante falta de capacidade analítica, quando simpli-
ficou a complexidade dos desafios atuais, falando da migração como “mãe de
todos os problemas” (ROBMANN, 2018).
Além dessas condições de individualismo extremo e da falta de seguran-
ça social, temas da identidade e coletividade viraram “o território primário da
extrema direita” na Europa (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 03). Especialmente
na Alemanha, movimentos de esquerda não disputam ou ocupam temas da
identidade e coletividade. Depois de ter visto as consequências mais fatais do
nacionalismo fascista nas atrocidades do regime nacional-socialista, a nova
República Federal da Alemanha se encontrou frente ao dilema de não poder
formular uma identidade nacional positiva. Esse ceticismo frente ao naciona-
lismo, “[...] grandes partes da intelligentsia da esquerda-liberal da Alemanha
do Oeste, desde os anos 1960, imaginaram que fosse possível ultrapassar – ou
pelo menos ignorar – a nação na Alemanha e ir direito pela utopia do interna-
cionalismo liberal-burguês” (THOMPSON, 2002, p. 123).
Até hoje, o desejo de não ter que se associar à nação alemã encontra vá-
rias expressões, como destacamos no começo, nos slogans dos movimentos
da esquerda “No border – No nation” (Sem fronteira – Sem nação) ou nas re-
ferências de jovens alemães ao se identificarem somente como “cidadão eu-
ropeu” ou “cidadão do mundo”. Surge desse entendimento um ceticismo ao
nacionalismo, que eu – crescida com estas ideias – acho essencial para poder
interrogar criticamente ideologias potencialmente exclusivistas e/ou totalitá-
rias. Na busca pela identidade “alemã”, que com essa interrogação crítica do
nacionalismo não parou por completo, a chamada “maravilha econômica” na
República Federal, depois do fim de guerra em 1945, aliviou a problemática:
quando a normalidade alemã “se define [...] em partes pela integração próspe-
ra nos mercados e convenções políticas do capitalismo global” (TABERNER;

A conflitualidade como produtora do futuro 21


FINLAY, 2002, p. 03), substituiu-se o trabalho biográfico de uma identidade
baseada numa territorialidade que era impactada pela memória dolorosa.
Desde o momento da reunificação da Alemanha, a partir de 1989, surgem
dois problemas para lidar com o tema da identidade. O primeiro é que essa
versão da identidade alemã não é uma experiência alemã, mas é “[...] primor-
dialmente marcada pela experiência de uma geração de líderes políticos em
possessão de uma visão particular da história da Alemanha do oeste e valores
do oeste alemão [...]” (TABERNER; FINLAY, 2002, p. 14). Até hoje, a proporção
de membros do parlamento da antiga Alemanha Oriental é menor que a pro-
porção de provenientes da antiga Alemanha Oriental na população nacional,
diminuindo a representação dessas regiões (MDR, 2018). Essa parte da popu-
lação nunca experimentou nem a “maravilha econômica” nem a investigação
crítica do passado nacional-socialista que o regime comunista ocultou; sofreu
as crises econômicas causadas pelo sistema neoliberal, consequentemente,
demanda mais abertamente de uma identidade coletiva e comunidades como
refúgio (THOMPSON, 2002).
Segundo, essa experiência não só é limitada geograficamente. É, também,
“[...] delimitada pela idade, afinidade intelectual e ideológica, ponto de vista
político, mobilidade social e geográfica, etnicidade, classe e gênero” (TABER-
NER; FINLAY, 2002, p. 03). O entendimento de uma identidade não naciona-
lista, baseada numa economia crescente, ignora as distintas posicionalidades
dos sujeitos e nega a participação na construção de uma identidade coletiva.
Subsequentemente, ao tomarmos a realidade de alguns como realidade
de todos, nos deparamos com o (re) surgimento dos movimentos da direita
na Alemanha, principalmente nos últimos anos. Nessa situação de profunda
separação, na qual a Alemanha unificada “nunca virou uma nação no pri-
meiro lugar” (THOMPSON, 2002, p. 123), os movimentos da extrema direita
se beneficiam, muitas vezes, da decepção dos marginalizados com o sistema
neoliberal e dos restos das ideologias fascistas enraizadas na sociedade alemã.
Abusando-se da “necessidade humana de localidade” (APPADURAI, 2005), a
extrema direita proclama uma identidade nacional exclusivista e racista.

Heimat como conceito territorial da língua e imaginação alemã

Uma palavra em particular representa a problemática de se engajar com


territorialidades, desde um ponto de vista da esquerda alemã: Heimat. Esse

22 Territórios de esperança
vocábulo, que não tem tradução exata no português, nem em outros idiomas,
refere-se a uma “[...] constelação particular de espaço, memória coletiva e per-
tencimento” (EIGLER; KUGELE, 2012, p. 05). Heimat pode denominar tanto
um lugar físico, como o lugar de nascimento, de moradia, uma rotina ou a pes-
soas ligadas a certos lugares. Em qualquer caso, expressa uma “afiliação emo-
cional e espiritual” (WILLIAMS, 1996, p. 343) profunda.
Historicamente, o termo foi usado e, em vários contextos, capitulados. Na
revolução democrática alemã de 1848, Heimat serviu como justificativa para
lutar contra os déspotas fidalgos; no período do colonialismo alemão, foi usada
para proclamar as terras e sujeitos oprimidos como “extensão” do território
nacional. Pelos nacional-socialistas, o termo serviu para chamar à defesa da
“pátria” contra o “inimigo”. Depois das guerras, Heimat também fez parte dos
esforços para unir um país dividido. Mais tarde, na época do movimento 19683,
o conceito serviu às forças de esquerda para resistir à dominância estaduni-
dense e à contaminação do meio ambiente. Mesmo marcada por profundas
contradições, até hoje “[...] a ideia de Heimat é (…) uma parte central das tenta-
tivas de pessoas que falam alemão em dar sentido ao mundo onde eles vivem”
(BLICKLE, 2012, p. 55).
Embora a tendência geral da Heimat seja virar um espaço mais e mais in-
dividualizado, dependendo das definições de pertencimento de cada um(a)
(BLICKLE, 2012), hoje também observamos novamente a ocupação desse ter-
mo pela direita e pela extrema direita. Essas forças sugerem uma noção estática
do termo: o mesmo ministro do interior citado anteriormente rebatizou o seu
ministério, incluindo o termo “Heimatministerium”. Convencido que Heimat
não é nada que se deixe prescrever e enquadrar em instituições oficiais, o pre-
sente trabalho o entende como “[...] categoria implícita pelo estudo de rela-
cionamentos intersecionais, individuais e coletivas com lugares particulares”
(EIGLER; KUGELE, 2012, p. 09). Portanto, a seguir se examina o uso de três
dimensões como constituintes da Heimat nos movimentos sociais, a saber: o
espaço, a memória coletiva e o pertencimento.

3. Os movimentos de 1968, na Alemanha, foram movimentos sociais da esquerda que exigiam a reforma do
sistema político e da sociedade, a favor de direitos sociais, e um socialismo democrático. Emergiram em
concordância com movimentos de protesto em vários países europeus e nos Estados Unidos.

A conflitualidade como produtora do futuro 23


O espaço como elemento da Heimat

A dimensão espacial da Heimat, que surge a partir da oposição à chama-


da “revolução industrial” na Europa, foi usada e abusada, em primeiro lugar,
referindo-se à natureza e às florestas alemãs. Os irmãos Grimm, que fizeram
a coleção mais completa de contos e palavras alemãs, no Século XIX, regis-
traram mais que 1000 substantivos e adjetivos da língua alemã que contêm a
palavra “floresta”, provando a sua imensa importância. Como muitos conceitos
centrais na imaginação do país, a floresta também fez parte do discurso dos
nacional-socialistas, proclamando que um povo são precisaria de natureza sã
(KRUG, 2018). Até hoje, a extrema direita explora os discursos da “preservação”
do meio ambiente, promovendo uma ideia estática da natureza e das culturas
correspondentes (STAUD, 2015).
Mesmo assim, o tema da proteção das florestas e do meio ambiente mais
tarde também foi reocupado pelos movimentos da esquerda, especialmente
com a fundação do Partido Verde, nos anos 1980, que liga temas ambientais
com questões de justiça social. Esse partido e a variedade de movimentos da
esquerda que lutam pelo meio ambiente indicam que a ocupação de discur-
sos, antigamente temas da extrema direita, foi, neste caso, muito exitosa. Ao
mesmo tempo, os dados sobre as eleitoras do Partido Verde confirmam um
crescente distanciamento entre o seu eleitorado da classe média das cidades
grandes e das trabalhadoras e desempregadas que, na grande maioria, não
apoiam esse partido (DECKER, 2018).
Mas a dimensão espacial da Heimat não somente se refere à “natureza”;
também é referente à realidade na cidade e no campo. Em relação a este úl-
timo, o maior problema constatado na Alemanha é o “êxodo rural”, que leva
as pessoas das pequenas cidades às grandes; deixando as vilas vazias e com a
população envelhecida. Nas metrópoles, o problema é a gentrificação, com a
compra de imóveis por empresas gigantes e a expulsão das pessoas que viviam
nesses lugares, pois elas não conseguem mais pagar o aluguel, que aumenta a
preços absurdos.
Esses dois fenômenos ligados pela sobrevalorização da cidade e a desvalo-
rização do campo, na sociedade atual, são temas tomados por uma variedade
de partidos e movimentos. Entretanto, esses temas levam, sobretudo, a extre-
ma direita a ganhar espaço na situação atual, como mostra Mullis (2018). As
pessoas impactadas no dia a dia descarregam a sua frustração sobre o sistema

24 Territórios de esperança
político atual e a dominância das políticas neoliberais, apoiando os partidos
de extrema direita.
As crescentes desigualdades na sociedade alemã provocam experiências
extremamente distintas. Dividindo a sociedade, a globalização “[...] permite
que alguns grupos, em geral os mais privilegiados, usufruam de uma multipli-
cidade inédita de territórios” (HAESBAERT, 2007, p. 38), aproveitando a mul-
titerritorialidade que caracteriza as nossas sociedades: falamos várias línguas,
viajamos para vários lugares e temos a oportunidade de aprender mais que
uma tradição de saberes. No lado oposto, a “globalização negativa” (BAUMAN,
2007) marginaliza mais ainda os já marginalizados. Haesbaert (2007, p. 20) nos
lembra que “[...] quem de fato perde o ‘controle’ e/ou a ‘segurança’ sobre/em
seus territórios são os mais destituídos, [...] mais precariamente territorializa-
dos”. Alguns reagem a essa percebida “des-territorialização”, tentando restituir
o controle por meio de iniciativas nacionalistas que, por engano, prometem
voltar a um passado mais estável e mais calculável.

A memória como elemento da Heimat

Quando chegamos à conclusão que todo território está ligado e produz


necessariamente uma territorialidade, uma dominância simbólica do territó-
rio, reconhecemos que a memória é uma categoria de suma importância para
trabalhar a “historicidade do território” (HAESBAERT, 2007, p. 28). Em vários
âmbitos, estamos vendo que os movimentos da direita na Alemanha ocupam e
pervertem a memória coletiva de múltiplas épocas da história alemã.
Um exemplo evidente são as canções de resistência que foram cantadas
durante vários momentos da história alemã, em defesa dos direitos sociais e
contra as ditaduras de épocas diferentes, e que hoje estão sendo capituladas
pela extrema direita. Uma dessas canções mostra esse absurdo em toda sua
força: a canção “Procuram ao meu pai”, escrita em 1935, pelo comunista Hans
Drach, denunciando a perseguição e a matança de oponentes políticos pelos
nacional-socialistas, hoje é usada pela extrema direita que, por opção, esconde
a origem dessa canção, modificando a letra e se apresentando como persegui-
da, como a portadora da “resistência” contra o sistema vigente.
Pervertendo a história, colocam-se numa tradição de grandes cantores que
lutaram e cantaram contra as ditaduras nos seus países, como o chileno Vic-
tor Jara ou o alemão Wolf Biermann, e se legitimam pela “perseguição” que

A conflitualidade como produtora do futuro 25


eles – supostamente – estão sofrendo hoje na democracia (MOSSMANN, 2015;
RITTER, 2009). Absurdamente, o principal interesse da extrema direita não é
tanto modificar a memória, mas se mostrar como os herdeiros legítimos de
uma tradição de resistência que se opôs ao terror das ditaduras. Reconhecendo
a força da memória, a extrema direita a distorce em seu favor (MOSSMANN,
2015). Assim como o autor conclui: “[...] viramos testemunhas de uma revisão
nacionalista da história” (MOSSMANN, 2015, p. 92).
Os movimentos de esquerda, que nos anos 1960 e 1970 tinham cantado
essas canções de resistência e escrito as suas próprias músicas contra o Estado
neoliberal e a extrema direita, hoje, na sua maioria, ficam calados frente à essa
tendência inquietante. Em uma crescente despolitização da música alemã,
além do medo de não querer ser visto numa tradição alemã qualquer, não se
ocupam as terminologias, particularmente, as canções de resistência por parte
da esquerda. Portanto, na esquerda não se mantém viva a memória na pers-
pectiva tal como daqueles que sofreram, mas como os que resistiram em várias
épocas da história alemã. Tentando deixar a história no passado, nos esquece-
mos que a memória também pode inspirar processos positivos de aprendizado
e de esperança, partindo das lutas de resistência passadas. Esquecemos que só
partindo da memória podemos assumir a responsabilidade que nasce do fato
de ter crescido num país com uma história tão atroz.

O pertencimento como elemento da Heimat

Como as análises de Bauman (2007) revelaram, o surgimento do neolibe-


ralismo levou a uma des-solidarização e um enfoque sobre o mérito, colocan-
do toda responsabilidade do sucesso ou do fracasso nos ombros do indivíduo.
Esse sistema, portanto, provoca o desejo pela coletividade, por uma comuni-
dade solidária, onde as antigas estruturas de solidariedade na vizinhança e na
família não se sustentam mais (THOMPSON, 2002).
Já que sabemos que toda identidade é construída e reconstruída pelos indi-
víduos e coletivos, é importante refletir sobre como a formação da identidade,
no território alemão, deu-se nas últimas décadas. Historicamente, o Estado ale-
mão não conseguiu criar uma visão etnicamente inclusiva da identidade ale-
mã. Um exemplo é a política oficial que, durante muitas décadas – e seguindo
até hoje – esperava a mera assimilação dos trabalhadores e as suas famílias que
tinham vindos da Turquia para Alemanha, na sua maioria entre os anos 1961

26 Territórios de esperança
e 1973 (KOLINSKY, 2002). Ao invés de promover uma visão múltipla, diversa
e aberta da nacionalidade, o racismo individual e estrutural impossibilitou e
impossibilita para muitos se sentirem parte respeitada da sociedade alemã,
exigindo que você se posicione ou como turco ou alemão, sem considerar que
a visão monoterritorial da identidade não consegue dar conta das experiências
múltiplas e multiterritoriais. Essas discriminações internas não só se referem a
etnias, mas a outras características socioeconômicas ou socioculturais, e impe-
dem um sentimento de pertencimento por grande parte da sociedade Alemã.
Os movimentos da extrema direita se aproveitam dessas desigualdades e
divisões existentes, ocupando o discurso do pertencimento e propagando uma
visão exclusiva e estática da identidade alemã. Nas suas manifestações, recla-
maram, baseados no aspecto físico, de quem pertence e quem não pertence;
quem é “verdadeiro alemão” e quem não é; e, ultimamente, intentam determi-
nar quem faz parte do povo, quem faz parte do “nós”.

Possíveis respostas, necessárias respostas

Considerando as distintas dimensões da Heimat, revela-se uma necessida-


de de se opor aos movimentos da extrema direita, a partir de três estratégias:
reconhecendo a própria posicionalidade; reapropriando-se de noções; e, dis-
putando espaços públicos.

Reconhecendo a própria posicionalidade

Esse artigo não argumenta por um “outro nacionalismo” na Alemanha, mas


por uma consciência das influências nacionais sobre nós. Existe uma diferença
essencial entre esses conceitos. Enquanto o nacionalismo cria um orgulho sem
fundação, mas com fundamentalismo, uma consciência crítica “[...] reconhece
os papéis continuados e as legacias de tradições nacionais culturais” (EIGLER;
UGELE, 2012, p. 04) que impactam o nosso pensamento e comportamento; a
nação é uma construção artificial, um construto de origem eurocêntrico. No
entanto, como atualmente é uma realidade coletivamente reconhecida, afeta
a nossa socialização.
Tal como o reconhecimento da própria branquitude, resultado de cons-
truções e estruturas racistas, faz-se possível refletir sobre a responsabilidade
compartilhada que herdamos dos sistemas de poder prevalentes, a partir do

A conflitualidade como produtora do futuro 27


reconhecimento de ser socializada como alemã – embora emergindo do cons-
truto problemático da nação – nos leva a entender que as atrocidades da histó-
ria nacional, como o nacional-socialismo ou o colonialismo, não são culpa da
atual geração, mas responsabilidade de manter a memória viva e combater os
legados dessas estruturas dos dias de hoje.
Contrária ao nacionalismo, a consciência nacional permite ambiguidades:
as contradições e problemáticas da “nação” não estão sendo eliminadas, mas
refletidas. Socializada com essa memória coletiva alemã, a juventude alemã
deve-se sentir obrigada a participar nos discursos e movimentos atuais, para
que essas atrocidades não se repitam nem no território alemão, sob uma nova
forma, nem em outro lugar.
Somente quando se reconhece como o conceito da “nação alemã” impac-
tou e guiou a forma de pensar do povo alemão, consegue-se questionar e, pas-
so a passo, desconstruir as estruturas opressivas solidificadas na identidade
dos sujeitos. O nacionalismo e a visão estática da Heimat que a extrema direita
promove não permitem essas ambiguidades. Portanto, inaceitavelmente, a AfD
e outros movimentos da extrema direita negam ou minimizam o Holocausto.
O reconhecimento da própria posicionalidade, obviamente, não deve se
limitar às influências do construto da nação sobre os sujeitos. Se não é razoável
ignorar as experiências múltiplas de discriminação interseccional no território
que vivemos, os movimentos da esquerda devem enfrentar o classicismo ine-
rente a seus múltiplos espaços de formação. Preferimos celebrar a diversidade,
quando é exotizada nas culturas “estrangeiras”, mas hesitamos reconhecer a
cultura do dia a dia das companheiras no bairro ao lado. Obviamente, essa crí-
tica é válida também para outras estruturas de poder e revela a falta de espaços
de reflexão biográfica nos nossos sistemas educativos. Ao invés de glorificar ce-
gamente a cultura ou a história da “nação”, essa reflexão das identidades deve
começar o debate sobre a nossa memória coletiva e abri-la às perspectivas
marginalizadas da história social.

Reapropriação de noções

A análise prévia revelou a necessidade de reclamar certas noções e discur-


sos. A palavra Heimat é, como explorado previamente, uma dessas terminolo-
gias que tem uma enorme importância nos contextos de fala alemã. Devemos
resistir às “[...] tendências nos discursos teóricos recentes que usam o termo

28 Territórios de esperança
numa maneira simplista ou esquemática” (EIGLER; KUGELE, 2012, p. 04). Ao
invés de promover uma visão estática e exclusiva da Heimat como a extrema
direita, devemos nos apropriar da palavra e ativamente influenciar a “produ-
ção social e cultural de lugares de pertencimento” (EIGLER; KUGELE, 2012,
p. 03) num mundo mais e mais interligado. Confrontando a versão única da
Heimat da extrema direita, devemos revelar e promover a multiplicidade das
representações da sobre ela que “[...] surgem da percepção mutável e indivi-
dualizada do sujeito” (BLICKLE, 2012, p. 60) e que, portanto, permitem que me
defina como alemã e polonesa (ou turca, ou brasileira, ou libanesa...).
Isso também significa entender que Heimat não é nada que eu poderia defi-
nir para outra pessoa: cada uma sente seus próprios pertencimentos em outros
lugares. Pelos movimentos de esquerda, resta a responsabilidade de criar as
condições para que todas possam se sentir na Heimat na Alemanha, e possi-
bilitar a abertura de discursos que debatam esse conceito, a sua construção e
questões interligadas de identidades múltiplas.
Em alguns âmbitos, essa visão mais inclusiva e dinâmica já está sendo im-
plementada, como afirma Irchenhauser (2011), pelas novas gerações de es-
critores e cineastas que trabalham com a noção da Heimat. Considerando as
experiências, combinando várias territorialidades, constroem lugares de per-
tencimento baseadas na diversidade. Igualmente, o coletivo “Neue Deutsche
Medienmacher” (Novos Produtores de Mídia Alemães) redefine quem é “ale-
mão”. Dependendo e ou Provenientes de vários contextos socioculturais, eles
trabalham para alcançar uma maior diversidade e representatividade na mídia
alemã. Se autodenominando os “novos alemães”, não deixam a definição do
“nos” pelos movimentos como PEGIDA e AfD, senão ocupam o espaço público
para fazer a diversidade da sociedade alemã visível.
Apesar da existência dessas iniciativas, é urgente que coloquemos temas de
identidade e pertencimento na nossa agenda nos espaços da esquerda. Mui-
tas das vezes, somos bons pela interrogação crítica de qualquer identidade,
mas não oferecemos espaços discursivos e físicos para atender à necessidade
humana de localidade. Como Paulo Freire (2015) nos lembra, pela transfor-
mação é necessária a denunciação, mas também a anunciação, a criação de
alternativas positivas. Assumir e redefinir a terminologia da identidade são
passos necessários para resistir a visões uniformes promovidas pelo capitalis-
mo e pela extrema direita. Ao invés de ter medo do termo “cultura”, podemos
abrir o discurso sobre as culturas que vivemos, lembrando que “[...] em nome

A conflitualidade como produtora do futuro 29


da preservação da cultura e do saber, não existe nem verdadeiro saber nem
cultura” (FREIRE, 2015, p. 90).
Igualmente, nos espaços da esquerda, precisamos reapropriar o termo da
resistência. As resistências do passado têm sido contra as ditaduras, ao sistema
neoliberal e as ideologias totalitárias – e é importante manter essa memória
viva nos movimentos de hoje. Em vez de deixar de cantar músicas que foram
abusadas pela extrema direita, temos que revelar o contexto da sua origem e
seguir cantando para divulgar as experiências históricas de marginalização e
resistência. Se ficarmos sem cantar, a direita capitulará a memória coletiva.
Ultimamente, falta inclusive reclamar o termo da “política”. As entrevistas
que fiz, em 2018, como parte de uma pesquisa com professores da educação do
campo, no Pará, Brasil, revelaram que a maioria destes rejeita uma dimensão
política do seu trabalho, ligando-a imediatamente com nepotismo e corrup-
ção. Essa rejeição da “política” seguramente vale, com outras características,
também para os grupos da extrema direita, no contexto alemão, como afirmam
Druxes; Simpson (2016). Essa frustração, por mais entendível que seja, limita
as opções das sociedades de decidir sobre o seu futuro. Nos espaços e movi-
mentos, temos que transmitir que “[...] conter-se de tomar uma postura política
é um ato político em si” (BOURN, 2016, p. 73).

Disputar espaços

Nos tempos atuais, as nossas cidades e vilas estão sendo ocupadas pelo
capital ou abandonadas, em busca dele. A gentrificação e o êxodo rural que-
bram laços locais, que antigamente davam segurança social e brindaram Hei-
mat. Portanto, temos que oferecer alternativas em escala local, reconstruindo
identidades que dão a oportunidade de responder ao medo de muitos, que é
a perda de identidade (s). Como propõe Haesbaert (2007, p. 19), é necessário
revelar que o momento que estamos vivendo não seja marcado pela perda de
territorialidade, mas por uma crescente multiterritorialização: a globalização
não leva a uma des-territorialização, senão à “[...] intensificação e comple-
xificação de um processo de (re)territorialização [...] `multiterritorial´“. En-
quanto e ou quando a extrema direita lamenta “o fim do Ocidente”, temos
que revelar os benefícios de um mundo menos eurocêntrico e mais pluricên-
trico, “[...] resistindo a monodimensionalidade cultural associada [...] com o
capitalismo global” (TABERNER; FINLAY, 2002, p. 14). Isso também signifi-

30 Territórios de esperança
ca reconhecer a memória como parte de todas as territorialidades presentes
nas nossas sociedades, e criar um discurso de multipertencimento territorial
(HAESBAERT, 2007).
Contra a redução da identidade no entendimento único do neoliberalismo
global e na visão exclusiva da extrema direita, temos que promover a multipli-
cidade e complementaridade de identidades. Nos espaços da esquerda, não
devemos reproduzir a lógica do neoliberalismo que “[...] se baseia ideologica-
mente numa dissociação absoluta de economia e cultura” (THOMPSON, 2002,
p. 130), mas ativamente influenciar e reconstruí-las como conceitos dinâmicos
em oposição à perspectiva estática da extrema direita.
Haesbaert (2007, p. 20) nos lembra que “território [...] tem a ver com poder”.
Portanto, necessariamente temos que debater novas formas de participação
política, quando falamos de uma transformação do discurso sobre territoria-
lidades. Questões de redistribuição de poder econômico obviamente estão
inerentemente ligados às questões de poder. Mas como a “[...] criação de con-
dições objetivas econômicas pela transformação social é só uma parte [...] da
tarefa de efetuar mudança nas identidades e lealdades das pessoas” (THOMP-
SON, 2002, p. 136), também precisamos assegurar a participação política de
todos no processo de construção do espaço e da memória coletiva. Estamos
presenciando, em várias regiões do mundo, o fracasso do modelo de demo-
cracia como a conhecemos hoje. Como esquerda, temos que promover outros
formatos verdadeiramente democráticos que assegurem a participação de to-
dos. Modelos que repartem cargos políticos em grêmios menores, por meio da
lotaria, ao invés do voto, conseguem incluir todas as cidadãs; mostraram em
vários contextos abrem espaços de reflexão, engajamento e formação política
(REYBROUCK, 2016). Temos que nos atrever a responder as tendências antide-
mocráticas crescentes na população com novas formas de democracia.
Iniciativas locais têm um papel decisivo em construir essas identidades:
não podemos restringir os nossos ao nível global, já que “[...] a defesa de um
‘espaço de todos’ (…), de um território efetivamente a serviço de processos
crescentes de democratização, não pode nunca se restringir apenas à moda-
lidade de territórios-rede” (HAESBAERT, 2007, p. 31). Além do fato de que o
nível local permite a comunicação mais direta, é necessário, potencialmente,
incluir todas e abrir novas oportunidades de participação. Ao mesmo tempo,
não devemos perder a oportunidade de nos conectar além das fronteiras na-
cionais e continentais.

A conflitualidade como produtora do futuro 31


A extrema direita, embora com seu enfoque nacionalista, forjou as suas
alianças europeias e globais, sabendo que o intercâmbio de estratégias ao ní-
vel global fortalece as iniciativas locais (GRUMKE, 2017). Nos movimentos da
esquerda, reconhecemos que as formas de opressão que contestamos atraves-
sam fronteiras nacionais. Por isso, a resistência às estruturas globais de poder
têm que ser local e global ao mesmo tempo.

Considerações finais

No presente capítulo, procurei investigar como os movimentos e partidos


na Alemanha atual, usam e abusam da categoria do território nos seus discur-
sos, e propor uma forma de como a esquerda do espectro político deveria se
posicionar frente ao que Haesbaert (2007, p. 25) chama “[...] o mais eficaz de
todos os construtores de identidade”. Analisando por meio das três dimensões
do conceito territorial alemão da Heimat, revelamos uma situação preocupan-
te. Na dimensão do espaço, é especialmente ressaltante que a falta de propos-
tas credíveis da esquerda ao êxodo rural e à gentrificação leva aos temas a se-
rem ocupados pela extrema direita. Na dimensão da memória, consideramos
a ocupação das canções de resistência da esquerda pela extrema direita. É a
falta de ação positiva para manter essa memória viva que abre os espaços para
a direita ocupar. Na dimensão do pertencimento, a falta de solidariedade cau-
sada pelo neoliberalismo incita discursos exclusivos de um coletivo nacional.
Mesmo com essa avaliação grave, temos a consciência de que Heimat,
como qualquer conceito territorial, são “espaços em transição constante” (EI-
GLER; KUGELE, 2012, p. 12). Portanto, identificamos três estratégias de como
reocupar conceitos e territórios discursivos e reais. Primeiramente, é neces-
sário o reconhecimento da própria posicionalidade. Argumentamos possíveis
somente por meio de uma consciência nacional que me permitem reconhecer
os impactos do construto da nação sobre as minhas experiências. Em vez de
negar uma identidade nacional por completo, reflito a minha responsabilidade
que surge do (s) território (s) e da (s) territorialidade (s) que me cunharam.
Na disputa de poder discursivo com a extrema direita, argumentamos que
é imprescindível a reapropriação de noções como “Heimat”, “identidade” e
“alemão”. Como a análise mostrou, durante muito tempo não abordamos es-
sas categorias nos espaços dos partidos e movimentos da esquerda, negando a
sua importância e temendo a sua força. Nos partidos conservadores alemães,

32 Territórios de esperança
vimos tentativas de copiar os discursos da extrema direita para ocupar espaços
discursivos. Essas tentativas, que não diminuem o apoio popular pelos movi-
mentos da extrema direita, erram: ao invés de copiar, temos que reocupar e
redefinir as categorias importantes, para que não sejam somente os populistas
falando da identidade e da Heimat. Quando assumimos e redefinimos essas
categorias, temos a oportunidade de criar outra visão dinâmica e inclusiva do
coletivo, reclamando o “nós” e deixando claro que existem alternativas bem
mais diversas e válidas na Alemanha do que a autoproclamada “Alternativa
para Alemanha”. Reconhecendo o papel importante da língua, faz-se necessá-
rio reocupar as palavras e abrir os debates para poder responder à “[...] retórica
irracional e inflamatória que pode desestabilizar culturas políticas e as suas
bases eleitorais” (DRUXES; SIMPSON, 2016, p. 13).
Propondo uma visão dinâmica e inclusiva, os discursos da esquerda obvia-
mente não devem partir de um entendimento nacionalista. Ao mesmo tempo,
não devem ignorar os legados das nações na ordem global vigente e na vida de
cada um (a). Antes de tentar criar um consenso nacional, devemos trabalhar
para criar ou fortalecer outros coletivos inclusivos que albergam a necessidade
dos sujeitos de localidade e pertencimento e que, em algum momento, talvez
possam substituir o construto eurocêntrico da nação.
Enquanto reclamamos espaços físicos e de poder, é necessário prover al-
ternativas sistemáticas ao neoliberalismo dentro dos partidos na Alemanha,
tal como ao nível global. Essas alternativas precisam partir do local que inspira
soluções e faz identidades tangíveis. Partindo de uma “[...] noção alternativa
da Heimat, que não depende de origens ou futuros utopistas, mas que emerge
pela interação social nos ambientes urbanos” (EIGLER; KUGELE, 2012, p. 09).
Além disso, no campo, podemos entender Heimat como um processo, como
Beheimatung em construção e interação.
Não só na Alemanha, mas também no Brasil e em outros lugares do mundo,
as forças da extrema direita estão ganhando apoio. Caçando votos com a pro-
messa de criar um “nós” simplificado, esses grupos indicam a relevância das
categorias de espaço, memória e pertencimento. Por conseguinte, pelos gru-
pos da esquerda, não somente é necessário “[...] reconhecer a importância es-
tratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade”
(HAESBAERT, 2007, p. 42), mas também repolitizar o entendimento popular
das identidades. A crescente tendência à despolitização da educação, que no
Brasil se mostra na iniciativa “Escola Sem Partido”, e na Alemanha nas tenta-

A conflitualidade como produtora do futuro 33


tivas da AfD de denunciar professores “da extrema esquerda” (MUNZINGER,
2018), coloca em risco a transformação social.
Precisamos das alianças globais para combater essas formas de opressão
que, num mundo mais e mais globalizado, estão interligadas ultrapassando
fronteiras nacionais. Só quando ensinamos e aprendemos juntos, consegui-
mos alcançar, identificar e opor as estratégias da extrema direita globalizada, e
afirmar as múltiplas identidades que precisam guiar os nossos esforços trans-
formativos.

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A conflitualidade como produtora do futuro 35


Ação coletiva contra os transgênicos: a defesa do
milho mexicano. Pensar os movimentos sociais no
século XXI
Polette Rivero Villaverde1

Introdução

O s transgênicos têm propiciado novos mecanismos de exploração, além de


uma série de implicações negativas, cada vez mais comprovadas, à saúde
e ao meio ambiente. Reflexo da permanente renovação do capitalismo, aquilo
que ainda não tinha sido mercantilizado perde seu valor de uso para trans-
formar-se no valor de troca que gere lucro. Mesmo que toda a natureza seja
importante, o caráter vital de alguns alimentos e recursos faz com que empre-
sas, como Monsanto (Bayer), Pionner, Dow, e Syngenta, colocassem interesse
central em alguns deles. Esse é o caso do milho mexicano.
A pesar que falamos do poder das grandes multinacionais, que contam com
o apoio e cumplicidade dos governos, muitos movimentos sociais do campo
e da cidade demostram que existem mecanismos organizativos de luta para
deter a barbárie propiciada pelos agentes do capital. Nesse sentido, o presente
artigo visa refletir sobre a importância do milho para a sociedade mexicana, a
entrada dos transgênicos no México e a organização em defesa desse produto.
Tudo isso no âmbito da reflexão mais ampla, o que é, e como entender esses
acontecimentos na fase histórica na qual vivemos.

1. Doctoranda en el Programa de Posgrado de Estudios Latinoamericanos, Maestra en Estudios en Relaciones


Internacionales y Licenciada en Relaciones Internacionales, todos por la Universidad Nacional Autónoma
de México (UNAM). Algunas de sus líneas de interés son la geopolítica y la geoeconomía agroalimentaria
de América Latina, los efectos de las políticas neoliberales en el campo mexicano y la conformación histó-
rica del patrón agroalimentario capitalista desde una mirada latinoamericana. En 2019 estuvo a cargo de
la Subdirección de Política y Normativa Internacional de la Comisión Intersecretarial de Bioseguridad de
Organismos Genéticamente Modificados, en el Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología. Actualmente es
profesora de asignatura en la Facultad de Ciencias Políticas y Sociales de la UNAM.

A conflitualidade como produtora do futuro 37


Antecedentes

O desenvolvimento da biotecnologia em alimentos e seres vivos ocorreu


na década de 1970, nos Estados Unidos, quando as práticas para patentear o
material genético de seres vivos ou suas partes foram legalizadas (ÁLVAREZ;
PIÑEYRO, 2009, 2013). A partir de agora, este país tem promovido uma política
para o plantio e comercialização de sementes transgênicas, tanto em seu terri-
tório como em outras partes do mundo.
Uma característica desse processo é que foram as empresas que concentra-
ram a geração desse tipo de biotecnologia, a partir da privatização do DNA de
plantas, sementes e animais, para realizar experimentos que deram origem às
OGMs; tornando-se um poder nas mãos de um setor privado que, nas últimas
três décadas, posicionou-se como o mais poderoso no campo internacional de
produção e controle do setor agrícola.
Como demonstração desse poder, seguindo os dados que proporciona o
Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC Group), no iní-
cio da década de 1980, havia no mundo mais de sete mil empresas no negócio
de comercialização de sementes, mas nenhuma delas atingiu 1% do mercado.
Em meados da década de 1990, empresas como Monsanto, Dow, Bayer, Du-
Pont e outras desenvolveram os pacotes tecnológicos que continham semen-
tes transgênicas e agrotóxicos compatíveis, concentrando o mercado e dando
lugar, em 1997, ao controle de um terço do mercado mundial de sementes por
parte das dez maiores empresas sementeiras; em 2005, já possuíam a meta-
de do mercado; e em 2007, 55%. Deste desse último percentual, somente três
(Monsanto, DuPont y Syngenta) representavam 44%. (RIBEIRO, 2007)
Estamos nos referindo à formação de um oligopólio que domina um dos
setores fundamentais da vida, o da alimentação. Essas empresas não apenas
absorveram ou deixaram de fora outras de menor escala, mas também as me-
gafusões e aquisições são operações que despertaram o alarme pelos níveis de
concentração.
Assim, em 31 de agosto de 2017, foi concluída a fusão entre a Dow Chemical
e a Du Pont, formando a DowDuPont, a maior empresa química do mundo,
com um capital no valor de 130 bilhões de dólares. Em junho de 2018, a Bayer,
uma das maiores empresas do setor químico-farmacêutico, adquiriu a Monsan-
to, a mais importante empresa de vendas de sementes, em uma operação esti-
mada em 63 bilhões de dólares, a mais cara da história alemã. (FORBES, 2018)

38 Territórios de esperança
Transgênicos no México

A resenha anterior é útil porque nos permite apresentar alguns antecedentes


sobre quem são os promotores centrais dos Organismos Geneticamente Mo-
dificados (OGM) e qual é, em termos gerais, o poder que adquiriram sobre as
sementes. Também é importante diferenciar a assimetria existente entre essas
empresas e os povos do México, que, como no caso que se trata neste artigo, tra-
varam uma batalha contra os transgênicos, particularmente pela defesa do milho.
A entrada de transgênicos no México data de 30 anos atrás, quando o gover-
no mexicano autorizou, em 1988, o primeiro cultivo experimental de tomate
transgênico para a empresa Sinalopasta, em Sinaloa. Assim refere um relatório
de Daniel Sandoval, onde é possível identificar duas fases da entrada e da evo-
lução das plantações e do comércio de transgênico no país.
Na primeira fase, que vai de 1998 a 2004, encontram-se as primeiras so-
licitações e autorizações para ensaios de cultivos transgênicos com algodão,
abóbora, canola, milho, cravo, pimenta, batata, abacaxi, soja, tabaco, tomate,
trigo e outros. Experimentos que foram regidos pelo “princípio de precaução”
e uma série de normas que regulavam o cultivo, a partir de instâncias como a
Secretaria de Agricultura, Pecuária, Desenvolvimento Rural, Pesca e Alimen-
tação (SAGARPA), o Comitê Nacional de Biossegurança Agrícola (CNBA) e a
Comissão Intersetorial de Biossegurança dos Organismos Geneticamente Mo-
dificados (CIBIOGEM), esta última criada em 1999.
Nessa fase, 317 autorizações foram concedidas a 38 empresas, três institu-
tos de pesquisa e universidades, para 26 cultivos de transgênicos em fase expe-
rimental2, em 48 locais em 17 estados do país. A área total coberta foi de 667510
hectares, 90% foram para algodão. Com a finalidade de proteger o milho, em
1999 foi estabelecida uma moratória de facto sobre o plantio transgênico deste
grão, que durou até 2005. (SANDOVAL, 2017)
A segunda fase estudada pelo pesquisador abrange o período de 2005 a
2017. Está marcada pela publicação, em 18 de março de 2005, da chamada
Lei de Biossegurança de Organismos Geneticamente Modificados (LBOGM),
também conhecida como “Lei Monsanto”, porque se soube que a empresa fez
lobby com essa lei junto ao governo mexicano, a fim de facilitar a entrada de

2. De acordo com a lei de Biossegurança de Organismos Geneticamente Modificados (LBOGM), vigente


desde 2005, são estabelecidas três fases para a autorização de transgênicos no meio ambiente. São elas: 1)
autorização experimental; 2) programas pilotos; e 3) autorização comercial.

A conflitualidade como produtora do futuro 39


transgênicos no país, especialmente o milho. Com essa lei, as empresas conse-
guiram a aprovação das plantações em fase comercial de algodão e soja, e ou-
tras em fase experimental e piloto. Nestes anos, as empresas solicitaram um to-
tal de 853 licenças em 333 locais, equivalentes a 15,4 milhões de hectares para
nove safras. O quadro a seguir mostra como essas solicitações são distribuídas.

Tabela 1: Solicitações de liberação por instituição, ou empresa, período 2005 a 2017.


Empresa Solicitudes
Bayer 168
CIMMYT 44
CINVESTAV 10
Dow AgroSciences 26
Dow AgroSciences y PHI 18
INIFAP 12
Forage Genetics 5
Embaixada dos E.U. 2
Monsanto 379
PHI-Pioneer 133
Syngenta 56
Total 853
Fonte: SANDOVAL, D. 2017.

É importante destacar que dos 853 pedidos, têm sido aprovados um total de
595, enquanto 123 estão em processo, e 113 têm sido rejeitados. Em primeiro
lugar, encontram-se os pedidos de algodão transgênico, com 405, dos quais,
308 foram permitidos; em segundo lugar, encontra-se o milho, com 327, dos
quais, 194 foram autorizadas, 91 estão em processo e 42 foram rejeitadas. Se-
guem, com uma grande distância, a soja, o trigo, alfafa e outros.
Antes da Lei de Biossegurança, de 2005, foram concedidos 33 pedidos para
cultivo experimental de milho transgênico; os ensaios foram realizados em
escala mínima. De 1993 a 1999, a área total cultivada com essas sementes foi
de 4,5 hectares. No entanto, após 2005, do total de 853 pedidos já referidos,
327 são transgênicos, 70% são produzidos pela Monsanto e pela Pioneer. Des-
sas 327, foi solicitada autorização para 228, em fase experimental; 169 foram
aprovadas; 80, em fase piloto, com 26 aprovações; e das 19, na fase comercial,

40 Territórios de esperança
nenhuma foi aprovada até o momento, devido à “Ação Coletiva” que vários
grupos têm expressado. (SANDOVAL, 2017)
Certamente, se compararmos as áreas cultivadas e a produção de milho
transgênico em países como Estados Unidos (mais de 36 milhões de tonela-
das métricas anuais) (CIBIOGEM, 2015), resultaria irrelevante a situação no
México. A realidade é que a forte oposição aos transgênicos, em geral, e ao
milho transgênico, em particular, sustenta-se numa série de argumentos que
o presente trabalho não alcança detalhar em profundidade, mas pelo menos é
relevante mencionar, porque constitui a essência que dá lugar a uma das lutas
mais importantes do povo mexicano.

A importância do milho no México

Do ponto de vista biológico, o cuidado com o milho tem mais relevância


no México do que em outros países, porque é o centro de origem da domesti-
cação e diversificação. O estudo mais detalhado até o momento foi patrocina-
do pela Comissão para o Conhecimento e Uso da Biodiversidade (CONABIO),
juntamente com outras instituições, publicado em 2011. Nele são detalhadas,
entre muitas coisas, as pesquisas sobre os lugares onde está se detectando a
origem de milho e seu progenitor ancestral, o teocintle, descoberto ao redor de
59 raças diferentes, como resultado de práticas humanas de interação com a
natureza e entre as mesmas comunidades, de aproximadamente sete mil anos.
(CONABIO, 2011)
No continente americano, podemos encontrar entre 200 a 300 raças de mi-
lho distintas; 59 delas tem origem do México (KATO, MAPES, et al., 2009, p. 18).
Esta variedade é resultado do trabalho de múltiplos grupos étnicos, que através
da história e até a atualidade, têm se dedicado não só a melhorar e diversificar
estas variedades, mas também a resguardar a riqueza do germoplasma dos mi-
lhos, principalmente sob um sistema de agricultura tradicional. Uma pequena
parcela pode ter até 65 produtos distintos, especialmente do chamado milpa.
A “milpa” é um ecossistema criado desde a época pré-hispânica; baseia-se
na plantação de milho, mas também gera outros alimentos que são o centro da
alimentação no México, entre eles estão o feijão, a abóbora, a pimenta e plan-
tas arvenses (ervas, muitas delas comestíveis e altamente nutritivas, como os
quelites e outras plantas medicinais). Neste sentido, falamos de uma policul-
tura que satisfaz diversas necessidades humanas, abrigando um conjunto de

A conflitualidade como produtora do futuro 41


populações de flora e fauna que resultam da ação da natureza e da interação
cultural dos seres humanos.

A policultura é muito mais complexa do que a sua definição sugere, já que não
é apenas o plantio de duas ou mais espécies vegetais num espaço confinado: nela
também estabelecem-se interações entre os organismos que habitam, sejam plan-
tas, cultivadas ou não, e aqueles que chegam espontaneamente [...] Portanto, afir-
mamos que a milpa é um ecossistema feito pelo ser humano, ou seja, um agroecos-
sistema e, como tal, está constituído por elementos florísticos, ecológicos e culturais
muito particulares.
Em termos florísticos, as policulturas estão conformadas por diversas espécies
sujeitas a diferentes formas de manejo humano. Por um lado, temos plantas pro-
priamente domesticadas, que os agricultores têm selecionado de maneira intensa e
direta com o intuito de obter características desejáveis para usá-las por eles mesmos
ou para seus animais domesticados. Também estão as plantas consideradas como
toleradas, que são espécies que crescem espontaneamente em ambientes antro-
pogênicos, sem a ajuda dos humanos, mas que possuem adaptações às condições
de manejo da policultura. Além disso, temos as espécies fomentadas, que também
são plantas não domesticadas com adaptações ambientais, mas cujas sementes são
ocasionalmente mantidas pelos agricultores para serem plantadas no próximo ciclo
agrícola, o que representa uma seleção humana incipiente que, sem saber, garante
que elas cresçam profusamente. (RENDÓN-AGUILAR, BERNAL-RAMÍREZ, SÁN-
CHEZ-REYES, 2017)

Para muitas comunidades rurais, o plantio do milho representa mais do


que a reprodução de seu ecossistema, uma vez que implica também um car-
regamento sociocultural que, reciprocamente, dá identidade à natureza e ao
grupo humano. Assim, os costumes religiosos, cosmogônicos, emotivos, edu-
cacionais, artístico e, inclusive, a organização política, que depositam no ha-
bitat comum, não são alheias, mas parte do sistema de reprodução material e
simbólica que representa o território no passado, presente e futuro. No Méxi-
co, o trabalho de homens e mulheres tem sido fundamental para que, nesses
milênios, seja formada uma riqueza natural baseada no milho, uma herança
viva. Por sua vez, essa diversidade tem como resultado, particularmente pelas
mulheres, a criação de uma das culinárias mais diversificadas do mundo. Aliás,
são elas as principais guardiãs das sementes.

42 Territórios de esperança
A luta pela terra

A defesa que o povo fez pelo milho não começa com a introdução dos OGM
no México. Essa luta é mais de caráter histórico, embora certamente a forma
de cobrança seja pela exploração dos transgênicos, talvez, agora, uma das mais
violentas e alarmantes.
No século XX, o México, igual a muitos países da América Latina, passou de
uma sociedade predominantemente rural para uma urbana, devido, principal-
mente, ao desenvolvimento industrial e a expansão das cidades. No entanto,
foi neste país que se deu a primeira grande revolução agrária do século XIX,
uma batalha que, apesar de ter sido iniciada por um setor de latifundiários
mexicanos que denunciavam os crescentes privilégios que o governo de Porfi-
rio Diaz concedeu aos estrangeiros, seu caráter mais profundo foi sustentado
por uma revolta nacional camponesa que surgiu em todas as regiões do país.
Tratava-se de trabalhadores agrícolas que, como herança do colonialismo,
haviam sido despejados de suas terras ancestrais e se dedicavam a trabalhar
para os proprietários nas fazendas (a principal forma que adquiriu a grande
propriedade rural).
A chamada para derrubar o governo de Diaz, que levou mais de trinta anos
na presidência, foi feito sob o slogan de não reeleição, mas uma série de even-
tos motivou os agricultores a organizarem-se, desde suas próprias regiões, com
a finalidade de sublevar-se contra o sistema de exploração ao qual estavam
submetidos, expandindo-se até formar pelo menos dois grandes grupos nacio-
nais de luta, o norte, liderado por Francisco Villa, e o centro sul, com Emiliano
Zapata encabeçando.
Como não é o propósito deste artigo fazer uma resenha deste processo
histórico, basta dizer que o caráter de massa, organizado, estratégico, radical
e autêntico da luta camponesa, permitiu, no meio de uma batalha, estendi-
da de 1910 a 1921, momento em que várias elites assumiram o poder, que os
camponeses conseguissem algumas das suas demandas centrais: proibição do
latifúndio, a abolição da escravatura e do trabalho forçado, a distribuição de
terras para a criação de novos centros de população agrícola, o acesso à água;
e que, até a década de 1990, sem nenhum motivo, os estrangeiros poderiam ter
domínio direto sob a terra e a água.
Resultado também desta relativa vitória, no México, a terra, que antes esta-
va concentrada em poucas mãos, foi distribuída entre milhares de campone-

A conflitualidade como produtora do futuro 43


ses a serem restaurados ou dotados pela primeira vez através de duas formas:
ejidos (terras, florestas e água entregues a um núcleo da população) e da ter-
ra comunal (propriedades para grupos indígenas que são guiados por usos e
costumes). Ao lado, também se construiu a propriedade privada, chamada de
pequena propriedade, que não é pequena em todos os casos.
Apesar das limitações da propriedade social rural, ela desempenhou um
papel central na formação do processo de industrialização do país, especial-
mente porque a construção de uma economia camponesa muito produtiva
permitiu décadas de soberania alimentar, bem como excedentes que atraíram
grande fluxo de divisas que ajudaram a financiar o desenvolvimento industrial.
Pelo menos foi assim até a década de 1990, quando o neoliberalismo e o Acor-
do de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) deram um duro golpe à
economia camponesa.
Com o paradigma do livre comércio e o desmantelamento da política social
aceitos pelos governos tecnocratas, que cederam à pressão de organizações
internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e do
Banco Interamericano de Desenvolvimento, abriu-se caminho para as gran-
des empresas transnacionais, que invadiram o mercado mexicano de produ-
tos subsidiados e monopolizaram os canais de comercialização, fechando as
possibilidades aos pequenos e médios produtores agrícolas, excluindo-os da
economia nacional. Foi um período em que o agricultor, apesar de ter terra,
foi afastado até constituir um dos setores mais empobrecidos da população,
concluindo assim a distribuição agrária e modificando a Constituição, espe-
cialmente o artigo 27 – que protegia a propriedade comunal.
Referimo-nos a esses eventos históricos para refletir sobre o seguinte. An-
tes, durante e depois da Revolução Mexicana, a luta da população rural cen-
trou-se na demanda por terra. Uma vez que grande parte da superfície do ter-
ritório nacional foi distribuída, os novos camponeses (é importante dizer que
nem todos receberam a terra) rearticularam sua organização e exigiram que
o governo lhes garantisse as formas comerciais e os preços de seus produtos,
bem como um tratamento mais justo em relação ao que davam aos grandes
produtores nacionais.
Os chamados ajustes estruturais da fase neoliberal fizeram com que as gran-
des transnacionais de alimentos competissem com os camponeses mexicanos,
numa relação assimétrica que, sem tirar a terra, fechavam as possibilidades
de reprodução por meio da atividade agrícola; a desapropriação manifestou-

44 Territórios de esperança
-se principalmente por essa via. Neste período houve um êxodo massivo do
campo para a cidade. Milhares de pessoas deixaram suas terras para procurar
emprego fora. A migração tornou-se um importante fenômeno social, devido
ao deslocamento forçado produzido pela pobreza.

A defesa do território e do milho

No México, a conquista espanhola não pôde eliminar completamente as


formas de agricultura ancestral, tão pouco o processo de industrialização e
nem o neoliberalismo. O agroecossistema da milpa, como o mais importante
de nosso povo, tem sido preservado, por meio das práticas camponesas em to-
das as circunstâncias históricas. É o resultado de uma permanente resistência
comunitária. As conquistas obtidas no processo revolucionário têm sido mui-
to importantes, quando comparadas com a situação dos camponeses rurais e
despossuídos em outros países latino-americanos.
A dotação de terras permitiu retomar de forma mais ampla o processo de
evolução natural e cultural dos alimentos tradicionais, e, apesar de todos os
retrocessos, podemos apontar que, desde 19403 até os dias atuais, a situação
da propriedade camponesa continua a ser um dos poucos casos paradigmá-
ticos. Em um território nacional que tem quase 200 milhões de hectares, mais
da metade -106 milhões de hectares – são de propriedade de 5,7 milhões de
camponeses e indígenas, na forma de ejidos e comunidades agrárias, segundo
dados da Ana de Ita, (CECCAM, 2015)

Cerca de 31,7 milhões hectares são terras agrícolas. Os ejidatarios e comuneros


possuem 61% deles (19 milhões e 300 mil hectares). A maioria das terras cultivadas
é temporária (82%) e as pequenas unidades de produção predominam: 69% do total
é inferior a cinco hectares.
Quase 3 milhões e 800 mil unidades de produção são dedicadas à agricultura.
Destes, 2 milhões 800 mil são ejidales ou comunais. Um milhão é propriedade pri-
vada. [...]

3. Faço referência ao ano de 1940 porque “é quando termina o período de Lázaro Cárdenas del Río a frente
da presidência, em qual se ratificou o conteúdo social da questão agrária na constituição que emanou
da Revolução Mexicana e que se executou através da Reforma Agrária de 1936, com que se entregaram
17.609.139 de hectares em restituição e dotação, mais que os 10.085.863 de hectares entregues nos 20 anos
anteriores. A distribuição foi sendo cada vez menos, desde 1940”. (SILVA, 1975, p. 68)

A conflitualidade como produtora do futuro 45


O México é um dos doze países megadiversos devido à abundância de ecos-
sistemas, espécies e genes. As florestas e selvas ocupam pouco mais de 58 milhões
de hectares e os ejidos e as comunidades agrárias possuem em propriedade 60%
deles (34 milhões e 600 mil hectares). A participação de ejidatarios e comuneros na
conservação dos ecossistemas e biodiversidade, a captação de água, a silvicultura
comunitária, a domesticação e diversificação das espécies têm sido e é de funda-
mental importância.

Poderíamos pensar, amplamente, que a luta das comunidades agrárias no


México passou por várias etapas: a) da colônia ao porfiriato, para a dotação
de terras e o fim do sistema de escravidão e exploração; b) da Revolução Me-
xicana, até 1991, pela dotação e restituição de terras, bem como por créditos
e direitos sociais à população rural; c) de 1992 a 1999, para acesso a circuitos
de comercialização de pequenos e médios agricultores, contra a concorrência
desleal das transnacionais e a perda de apoios sociais ao campo, além de ser
um setor produtivo passou a ser de subsistência; e d) a partir de 2000 em dian-
te, pela defesa do território e contra a exploração.
O século XXI representou o retorno a um estágio de exploração territorial.
Os camponeses deixaram de colocar como demanda central o acesso às for-
mas de comercialização e seguridade social, para defender suas propriedades.
A desapropriação, neste século, não só se espalhou como também adquiriu
novas formas, entre as quais a apropriação do material genético dos alimen-
tos; assim como a privatização do ar, das montanhas e da água são exemplos
do que alguns marxistas anteciparam há quase um século, de que o capitalis-
mo requer de abastecimento crescente de recursos e territórios, bem como de
mercados que permitam absorver cada vez mais a produção excedente.
Não é por acaso que, nas duas últimas décadas, em todo o mundo, mas
marcadamente na periferia, o número de movimentos sociais tenha aumen-
tado, que além das suas demandas específicas (por terra, contra mineração a
céu aberto, poluição) reivindicam a defesa do território. O que pode estar nos
indicando é que a desapropriação capitalista redefiniu seus mecanismos de
acumulação, especialmente desde a crise de 2007-2008, que alertou muitos
capitalistas financeiros da vulnerabilidade da chamada “economia do cassino”.
Um exemplo claro é o land grabbing e os fenômenos de estrangerização da
terra, que, entre os anos de 2003 e 2014, produziram compra-vendas e des-
pejos massivos de terras comuns em países como Brasil, Argentina, Paraguai,

46 Territórios de esperança
Uruguai. México foi poupado em termos de uma maior exploração, em parte,
porque a quantidade de terras que são propriedade de camponeses e indíge-
nas, bem como a segurança jurídica que eles ainda têm, além do nível de frag-
mentação de participações, complicam a negociação com tantos proprietários
para a compra de grandes extensões.
No entanto, a desapropriação territorial de populações camponesas e indí-
genas veio por meio de outros mecanismos. Um deles é a Reforma Energética
de 2014, feita pelo governo de Enrique Peña Nieto, a qual colocou como prio-
ridade a extração e exploração de recursos de petróleo, gás e energia, estando
acima do direito à alimentação, água, e, portanto, do território com todo o seu
conteúdo biodiverso e cultural. (CECCAM, 2015)
Anteriormente, as portas já haviam sido amplamente abertas para a mine-
ração a céu aberto, que, segundo Eckart Boege, apenas entre 2000 e 2012 foram
concedidas nos territórios indígenas, em torno de 2.173.141 hectares, dos 28
milhões identificados com o núcleo duro dos territórios indígenas. (BOEGE,
2013). As leis constitucionais também foram alteradas, para permitir que es-
trangeiros pudessem comprar propriedades nas costas do país. Desde então,
há um crescente processo de privatização de áreas costeiras e de praias.
A introdução dos transgênicos pode ser inscrita nessas novas formas de
desapropriação; autores como David Harvey chamaram essa fase de “acumu-
lação por despossessão”, precisamente porque o capitalismo requer velhas e
novas formas de acumulação. Na verdade, Marx já falava sobre como o capita-
lismo, que, apesar de seus avanços tecnológicos, precisava permanentemente
da natureza. O tempo nos mostrou até que ponto o progresso das técnicas e das
máquinas, bem como seus usos, dá-se, por um lado, e, por outro, as maneiras
pelas quais o capital valoriza a natureza para transformá-la em mercadoria.

Ação coletiva, demanda coletiva

A pergunta que fazemos, uma vez que situamos o problema dos OGM no
contexto histórico é: como conseguiu-se frear até agora o plantio comercial de
milho transgênico no México, quando se enfrentam os grandes poderes do ca-
pital encabeçados pelas empresas transnacionais em aliança com os governos?
A resposta antecipada é que isso só tem sido possível por meio de uma ampla
ação coletiva.

A conflitualidade como produtora do futuro 47


Inicialmente colocamos que, no México, o governo tornou-se o principal
promotor dos transgênicos, não apenas tentando abrir legalmente as portas
para essas sementes, mas também financiando com subsídios do dinheiro pú-
blico a pesquisa neste tipo de biotecnologia às universidades, institutos e em-
presas; assim como por meio de publicidade, pagando a camponeses e cientis-
tas pró-transgênicos, que anunciavam incansavelmente os supostos benefícios
do uso desses produtos e negando qualquer risco natural ou humano.
Para muitas comunidades, essa tecnologia já se mostrava duvidosa, por-
que em lugar de utilizar sementes armazenadas ou aquelas que trocavam
com outros camponeses, teriam que comprá-las das empresas sempre que
quisessem plantar. Quando os casos de agricultores, nos Estados Unidos, que
vinham utilizando sementes transgênicas das mesmas empresas que solici-
taram permissões no México, começaram a se difundir, soube-se que, além
dos supostos benefícios anunciados, os transgênicos tinham implicações em
diversos sentidos.
O uso destas sementes da lugar ao desaparecimento das formas tradicio-
nais de cultivo, a semente agora como mercadoria, não pode ser guardada nem
trocada, senão adquirida através da compra em um pacote tecnológico que
vem acompanhado do uso de agrotóxicos e fertilizantes específicos. Inclusive,
se criou a chamada tecnologia terminator, ou seja, as sementes que se autodes-
troem porque não podem ser guardadas, já que não voltarão a vida, obrigando
que se volte a comprar por novas sementes nos próximos cultivos.
As plantações transgênicas também geram transformações biológicas e fí-
sicas do espaço. Qualquer território cumpre uma lógica muito concreta que
responde ao acumulo de capital. Os espaços adquirem a forma de uma fábrica,
ou seja, um lugar onde os capitalistas podem ter maior controle sobre a pro-
dução e o trabalho, dominando até onde seja possível os processos sempre
cambiantes e inesperados da natureza.
Os monocultivos são a paisagem dominante onde se implanta o capital em
territórios rurais. A natureza é escolhida seletivamente e o que não serve de-
saparece. Contrário das milpas das comunidades que têm formas variadas e
que contêm, cada uma delas, particularidades próprias, alimentos e animais
distintos, o monocultivo de milho transgênico só permite o crescimento dos
talos e suas espigas.
Isso acontece porque muitos pesticidas e herbicidas que estão incluídos no
pacote contêm substâncias como o glifosato (usado para desfolhar campos em

48 Territórios de esperança
zonas de guerra como o Vietnã), que fazem desaparecer toda a vegetação e a
fauna, por recombinação genética da semente. Ele é o único resistente a dito
agrotóxico. O uso desses venenos e seus métodos de fumigação tem matado
plantas, animais, e, crescentemente, registram-se mais casos de doenças como
câncer4 e deformações em humanos.
Conhecidas estas consequências dos transgênicos, quando se estava nego-
ciando a LBOGM, e sendo eliminada a moratória para o milho, muitos campo-
neses começaram a se juntar com organizações da sociedade civil, acadêmicos
e cientistas, para formar um grupo muito diversificado, mas com um objetivo
articulador: deter a entrada das sementes transgênicas, para o caso do milho
e a defesa da milpa. Apesar de que a Monsanto procurou uma lei feita a seu
modo, demonstrou alguns mecanismos legais de biossegurança que têm sido
muito importantes para a realização de uma defesa jurídica. Aproveitando al-
gumas mudanças constitucionais de 2010, que permitem as ações coletivas
como novo instrumento jurídico para interpor demandas em matéria de direi-
tos coletivos, ora chamada Coletividade do Milho, promoveu, no dia 5 de julho
de 2013, perante o Poder Judicial da Federação, “[...] uma demanda Civil de
Ação Coletiva com pretensões declarativas, sobre o direito humano à diversi-
dade biológica dos milhos nativos e autóctones do México”, apelando também
aos direitos em matéria do meio ambiente e do consumidor.
A demanda é contra as secretarias de Estado SAGARPA e SEMARNAT (do
Meio Ambiente e Recursos Naturais), contra Monsanto, Pioneer México, Dow
Agrosciences México e Syngenta Agro. (SAN VICENTE; MORALES, 2015, p. 176)
O propósito é que os tribunais declarem insuficientes os limites e restrições
estabelecidos na LBOGM, especialmente após comprovar a contaminação
transgênica de milhos nativos nos estado de Oaxaca, Veracruz e Guanajuato, já
que a liberação danificaria o direito humano da diversidade biológica dos mi-
lhos nativos, “[...] o direito pelo meio ambiente saudável, a conservação, parti-
cipação justa e equitativa, assim como o uso sustentável que garanta o acesso
às gerações futuras, [...] a uma alimentação adequada, nutritiva, suficiente e de
qualidade; aos direitos culturais e à saúde”. (SAN VICENTE; MORALES, 2015)

4. Em 20 de março de 2015, a Organização Mundial de Saúde publicou, por meio da Agência Internacional de
Câncer, um estudo relatando que, após alguns experimentos, o glifosato causou danos ao DNA e a cromos-
somos nas células humanas, por isso, foi confirmado que pode causar câncer em animais de laboratório
e possibilidades (evidência ainda limitada) de cancerinogenicidade em humanos. Os estudos continuam.
(IARC, 2015)

A conflitualidade como produtora do futuro 49


Desde 2013, acontece uma série de recursos e impugnações em todos os
julgamentos realizados. O principal defensor dos transgênicos tem sido o go-
verno mexicano, que, do mesmo modo que as empresas, recorre às sentenças
provisórias. A maior conquista para o movimento é a aceitação de uma me-
dida cautelar de 17 de setembro de 2013, sancionada por um juiz federal que
ordenou a SAGARPA e a SEMARNAT conterem-se na realização de atividades
tendenciosas a outorgar concessões de liberação no meio ambiente de milho
transgênico, “Dispensar dos procedimentos para isso e suspender as conces-
sões de autorização experimental, piloto e comercial”. Desde então e até o mo-
mento que se escreve o presente artigo, foi interrompido, por cinco anos, o
cultivo desses milhos modificados, enquanto é resolvido o julgamento da ação
coletiva. Entretanto a organização também ganhou uma demanda para parar o
cultivo de soja transgênica na Península de Yucatán, por ter provocado a morte
de populações de abelhas e a contaminação do mel.
O trabalho dos cientistas que participam tem sido fundamental. Organi-
zando-se na União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade (UCCS),
suas pesquisas para conhecer os efeitos dos transgênicos no meio ambiente e
na saúde estão em andamento. O tema da saúde, apesar das evidências do au-
mento das doenças em áreas próximas aos laboratórios, onde se desenvolvem
os transgênicos, e onde as plantações são fumigadas, não apresenta trabalhos
conclusivos. As sociedades que consomem transgênicos têm apenas 20 anos
de existência e, talvez, em curto prazo, tenhamos mais notícias sobre o assunto.
Neste tema a ciência, desde suas diversas posturas, também está disputando
testes científicos e argumentos éticos.
Durante o trajeto deste estudo aqui desenvolvido, uma investigação da
UCCS demostrou que como o México importa a maior parte do milho que con-
some, os mexicanos estão ingerindo transgênicos. O território corpo também
está sendo invadido por essa tecnologia, quase sempre silenciosamente. O es-
tudo revelou que 90,4 por cento das tortilhas que consumimos na Cidade do
México, têm alguma sequência transgênica. (UCCS, 2017). Com a divulgação
dessa informação, as pessoas estão começando a prestar atenção ao tema, e
muitos se questionam: como colocar preço a uma semente, à água, ao territó-
rio, a uma cultura?

50 Territórios de esperança
Considerações finais

Podemos realizar algumas considerações importantes do movimento em


defesa do milho. Em primeiro lugar, há cada vez mais organizações, para onde
convergem grupos do campo e da cidade, com participação tão diversa quan-
to no Coletivo Milhos: produtores, acadêmicos, organizações civis, cientistas,
juristas, artistas, respondem a uma realidade; o capitalismo violenta progres-
sivamente os aspectos fundamentais da vida como a alimentação, os recursos
naturais, o ar, a saúde e a própria permanência da civilização humana. Assun-
tos que, mesmo de forma diferenciada, afetam a todos.
Esta organização também deu um sinal positivo ao resto dos movimen-
tos sociais, porque demonstra que, fazendo uso das ferramentas disponíveis
(legais, científicas, midiáticas, de protesto, reeducativas e de conscientização
conjunta), é possível enfrentar os grandes poderes do capitalismo e os gover-
nos cúmplices. Os problemas são de tal urgência que seus efeitos não mais se
concentram em certas classes da sociedade, estão produzindo efeitos em escala
planetária comprometendo a existência humana. Portanto, os movimentos so-
ciais também precisam expandir-se, somente assim foi possível colocar alguns
impedimentos à devastação, à desapropriação e ao avanço do capitalismo.
Ao longo do caminho, muito também foi ganho, a partir do trabalho cole-
tivo e usando recursos muito elementares, está-se conseguindo chegar a uma
parte da sociedade mexicana com mensagens que os permitem ter uma outra
consciência sobre sua alimentação, sobre o valor biocultural de seus alimentos
tradicionais e a vida. No campo, muitos camponeses defendem e reivindicam,
com mais entusiasmo, por suas plantações com milpa e outras culturas. A ima-
gem que foi vendida na fase neoliberal de que o camponês tradicional e o cam-
po eram alheios à “modernização” do mundo globalizado está sendo cada vez
mais desmistificada. Quanto mais longe a sociedade se sinta do seu alimento
e dos recursos, mais fácil será tirar o seu território material e simbólico que lhe
dá razão para ser.

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A conflitualidade como produtora do futuro 51


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-la-unam

52 Territórios de esperança
Questão agrária e geopolítica dos recursos naturais
em Moatize–Moçambique: a Vale S.A. e o extrativismo
epidêmico
Guilherme Whitacker

Introdução

E m Moçambique, a entrada de megaprojetos mineradores após a abertura


econômica no fim da guerra civil na década de 1990 foi forçada pelo Gru-
po Banco Mundial (Grupo BM) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI),
isso provocou alterações territoriais que impõem ao pesquisador voltado a
questão agrária e a geopolítica dos recursos naturais, uma profunda reflexão
sobre as múltiplas formas de compreender e analisar a própria questão agrária
que assume novas características diante das fases do modo de produção capi-
talista e suas formas de materialização nos territórios que, em Moçambique
é resultante, dentre outros fatores, da desterritorialização camponesa para a
territorialização de megaprojetos neoextrativistas, como o empreendido pela
Vale Moçambique – subsidiária da Vale S.A. – em Moatize, que resultou em um
profundo processo de conflitualidade, pois a constituição do território extra-
tivista organiza as infraestruturas e os serviços, determinando os tipos de uso
dos territórios, expropriando os sujeitos e relações sociais que não são incor-
poradas ou cooptadas.
Objetivamos aqui, a partir da pesquisa empírica realizada em Moçambi-
que1 e revisão bibliográfica, de maneira geral e sucinta, relatar os impactos
territoriais negativos produzidos a partir de políticas econômicas nefastas
materializadas pela entrada do setor extrativista mineiro em Moçambique, es-

1. Estivemos em Moçambique entre julho e agosto de 2018 para realizar a pesquisa empírica de nosso Pós-
-Doutorado (processo FAPESP 2017/08847-3) do qual esse artigo faz parte, contudo, apresentamos um
texto geral sobre os processos territoriais e nos dedicamos com maior atenção a reflexão teórica, tendo em
vista nosso objetivo principal.

A conflitualidade como produtora do futuro 53


pecificamente, da Vale S.A. Esse detalhamento nos permite identificar movi-
mentos socioespaciais e socioterritoriais e, principalmente nesse momento, o
reconhecimento que o conceito (neo)extrativismo não vêm sendo operaciona-
lizado na Geografia, sendo assim, evitando fazer o uso de um conceito oriundo
de outra ciência e utilizá-lo como metáfora, apresentamos como objetivo es-
pecífico uma primeira aproximação a reconceitualização do (neo)extrativismo
a partir de leituras sobre Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) em países
subdesenvolvidos considerando a possibilidade de relacionar a ideia de paí-
ses hospedeiros com a reconceitualização que estamos propondo, extrativismo
epidêmico, pois entendemos e consideramos que esta adjetivação pode ser re-
lacionada ao conceito de escala geográfica tendo como categoria analítica o
território, o que nos desobrigará da utilização do prefixo neo.
Organizamos o texto em três partes que dialogam ente si mantendo a coe-
rência interna do texto como um todo, além da introdução e conclusões preli-
minares. Externamente, a coerência parte da materialidade sobre o extrativis-
mo tendo como análise empírica o megaprojeto de extração de carvão mineral
em Moatize praticado pela Vale Moçambique; posteriormente, remetemos a
uma interpretação teórica sobre o conceito de (neo)extrativismo buscando
uma primeira aproximação para reconceituar o mesmo como extrativismo
epidêmico e, por fim, voltamos a materialidade para fundamentar nossa pre-
tensão teórica tendo a geopolítica dos recursos naturais energéticos, especial-
mente o carvão mineral, como fundamentação, desse modo, relacionamos
teoria e empiria.

A Vale S.A. em Moçambique: extrativismo e questão agrária

Desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano


(ONU, 1972), da aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas da De-
claração sobre o Direito ao Desenvolvimento (ONU, 1986), da Cimeira Mundial
sobre Desenvolvimento Social (ONU, 1995), dos Objetivos do Milênio (ONU,
2000) e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015), o sub-
desenvolvimento e a degradação humana e natural ainda é uma realidade,
particularmente, nos países da África Subsaariana Oriental, como Moçambi-
que, mergulhado em uma economia política extrativista motivada, justamente,
pelos setores e agentes de expansão que atuam no interior da ONU, como o
Grupo BM e suas agências especializadas em desenvolvimento.

54 Territórios de esperança
O impasse não está no extrativismo em si, essa é uma ação de extrair ma-
térias primas para a sobrevivência e melhores condições de existência da hu-
manidade que ocorre desde a assim chamada acumulação primitiva. Ocorre
que, com o acirramento da extração mineral nos períodos entre, e pós-guerras
mundiais, tal atividade passou a ser, economicamente, conceituada a partir da
classificação das atividades produtivas como setor primário (CLARK, 1940).
Desde então a mesma foi intensificada pela formação do meio técnico-cientí-
fico-informacional (SANTOS, 2009) e concomitante surgimento de conglome-
rados extrativistas multinacionais a partir da década de 1970, conforme escre-
veram Yves Lacoste (1975), Pierre George (1980), Manoel Correia de Andrade
(1985) e Milton Santos (2008; 2009), a atividade extrativa passa a ser praticada
em grandes volumes e escala por meio da materialização de megaprojetos ex-
trativistas que trazem em seu bojo a subsunção formal e informal dos recursos
naturais (SMITH, 2009) por meio do poder de multinacionais e de mecanismos
de mercado, finanças e investimento.
É fato que o modo de produção capitalista está assentado sobre uma con-
tradição estrutural. A dependência de recursos naturais, sobretudo de poten-
cial energético, que necessitam ser extraídos cada vez em maior volume para
garantir a fluidez de serviços, produtos e mercadorias, articulado a mecanis-
mos de economia política direcionados a subsunção dos recursos naturais e
exploração das condições sociais de produtividade voltado à extração de mais
valor, permite questionar a própria capacidade de reprodução ad infinitum
desse modo de produção, pois demonstra a própria irracionalidade, contradi-
ção sistêmica e irreformabilidade.
Ainda que amparado por relações hegemônicas e antagônicas que per-
mitem, por meio do revolucionamento constante das forças produtivas, que
seu processo sociometabólico entre períodos de ajustes do próprio sistema
de retroalimentação espaço temporal desse modo de produção se mantenha
às custas da exploração irracional de recursos naturais e da sociedade. Assim
compreendido, o modo de produção capitalista é mais que um conjunto de
mecanismos econômicos e políticos, daí ser considerado como um modo de
reprodução sociometabólico multifacetado e oniabrangente, demasiadamente
arraigado no cotidiano, afetando profundamente tudo e cada aspecto da vida
visando assegurar sua expansão conduzido pela acumulação como um fim em
si mesma (MARX, 2012; MÉSZÁROS, 2009; HARVEY, 2014).

A conflitualidade como produtora do futuro 55


Podemos compreender esse processo geograficamente considerando o
modo de produção capitalista como sistema escalar e territorialista, onde cada
uma de suas partes – entre sujeitos e organizações estatais, não estatais e su-
pra-estatais – subsidia a totalidade da mundialização, seja por meio da garan-
tia da mobilidade espacial de capitais entre os chamados circuitos primário,
secundário e terciário de produção que se retroalimentam, ou, pelos arranjos
espaciais durante os momentos de ajustes cíclicos e sistêmicos – ambos pro-
cessos que vão de uma escala local a global – a partir dos quais novos espaços
de acumulação e reprodução são criados – daí a noção de reajustes espaço
temporais – promovendo o desenvolvimento geográfico desigual e contra-
ditório pela característica ontológica desse modo de produção de criar, pela
destruição, novos espaços de reprodução ampliada que são materializados em
distintos territórios.
Na totalidade do movimento de reajuste espaço temporal desse modo de
produção existem momentos específicos, produtos da desregulação dos mer-
cados, cujo objetivo último é a especulação voltada a acumulação desmedida.
Neste sentido, a produção de commodities minerais por megaprojetos relacio-
na-se com oportunidades e novos espaços de acumulação no que tange a aber-
tura econômica de países subdesenvolvidos e a especulação nos mercados de
futuros das bolsas de valores aonde as ações das multinacionais extrativistas,
como a Vale S.A., estão alocadas, deste modo, os investidores necessitam de
novos espaços nos quais possam investir e auferir lucros. Então, as bolsas de
valores que negociam commodities minerais ganham força como um meio de
reprodução ampliada de capitais via investimentos financeiros alhures, princi-
palmente porque são mercados onde a presença das multinacionais extrativis-
tas protagoniza o processo produtivo, pois as mesmas regulam o acesso à terra
por meio do controle e uso dos territórios.
Temos, portanto, multinacionais, a exemplo da Vale S.A., que atua em Mo-
çambique acentuando alterações nos usos de territórios e, a compreensão da
dinâmica territorial exercida por essa multinacional tem significação contun-
dente para entendermos esses processos, pois consideramos que quando se
aborda o extrativismo e o uso dos territórios podemos considerar que as di-
nâmicas territoriais condicionantes que incidem sobre distintas áreas modi-
ficam as formas originalmente produzidas por forças econômicas e políticas
(SANTOS, 2003) espacialmente consubstanciadas por meio de um processo
dominante que Raffestin (1993) define como o trunfo do poder, o domínio da

56 Territórios de esperança
população e do território: “O poder visa o controle e a dominação sobre os
homens e as coisas” (RAFFESTIN, 1993, p. 20).
Em Moçambique, desde a década de 2000, tem sido registrado um acrés-
cimo vultoso de IED na forma de megaprojetos extrativistas incentivados pelo
FMI (FMI, 2014) e, este fato, posicionou economicamente o país no sistema
internacional de crédito, ainda que este desempenho represente uma concen-
tração de capitais em uma pequena parcela da elite moçambicana. As ações
das multinacionais extrativistas potencializam a dinâmica territorial desigual
ao priorizar relações econômicas voltadas à produção de commodities mine-
rais e, por outro lado, a degradação social e natural.
A partir destes entendimentos e com a contestação da intensificação da
subsunção da natureza na forma do extrativismo, conceitos como poder, ter-
ritório e acumulação por espoliação se correlacionam e permitem estudos
sobre a questão agrária em Moçambique quando examinada a partir da geo-
política dos recursos naturais e da dinâmica territorial extrativista questio-
nando o conceito mainstream do desenvolvimento sustentável, isso porque,
esse é um poderoso conceito de cunho discursivo ideológico que difunde a
imagem da multinacional Vale S.A. como engajada em projetos humanitá-
rios, fato que mascara os reais impactos negativos das atividades extrativistas
(WHITACKER, 2019).
As práticas territoriais exercidas pela Vale S.A. forjam o desenvolvimento
desigual e combinado dos, e nos, territórios a partir da produção de commo-
dities minerais e intensifica a questão agrária moçambicana, o que demons-
tra a contrariedade sobre o desenvolvimento sustentável proposto por essa
multinacional que, indo ao encontro de iniciativas empresariais que aderem
a economia verde e tendo em vistas fazer parte do Índice de Sustentabilida-
de Empresarial (ISE) da Brasil, Bolsa, Balcão (B3), uma das mais importantes
agências de negociação de ações da Vale S.A., para incluir a multinacional na
seleta carteira de investidores que aderem aos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável, proposto pela ONU em 2015.
Assim, a Vale S.A. massifica a disseminação de informações de que sua
missão é: “Transformar recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento
sustentável” (VALE, 2018, p. 3). E, por meio deste argumento central, transmite
a ideia de “Ser a empresa de recursos naturais global número um em criação
de valor de longo prazo com excelência, paixão pelas pessoas e pelo plane-
ta” (VALE, 2018, p. 3). Dessa forma, o desenvolvimento sustentável é utilizado

A conflitualidade como produtora do futuro 57


como estratégia discursiva ideológica criando, assim, mecanismos institucio-
nais para o domínio de determinados territórios. Nas palavras do atual presi-
dente da Vale S.A. a: “[...] sustentabilidade extrapola algarismos e cifras. Ela
permeia o nosso processo decisório para que possamos contribuir de maneira
efetiva para a sociedade” (VALE, 2018, p. 5).
Todo este processo de expansão capitalista, materializada pelo extrativis-
mo e sua rede logística, resulta na acumulação por espoliação (HARVEY, 2014,
2011), fato este que vem ocorrendo em crescente escala, deste modo, a Vale
Moçambique – subsidiária da Vale S.A. – intensifica a questão agrária em Mo-
çambique ao incorporar o processo de apropriação territorial multidimensio-
nal e multiescalar gerando uma nova forma de uso dos territórios a partir da
mobilidade espacial de capitais estrangeiros, fato este que nos permite consi-
dera-lá – a acumulação por espoliação – como produto do modo de produção
capitalista. Portanto, a dinâmica territorialista resultante do processo de acu-
mulação por espoliação, do ponto de vista geográfico da lógica espacial e terri-
torial do capitalismo, intensifica a exploração das condições sociais e naturais
desiguais sob as quais ocorre a acumulação de capitais, aproveitando-se da
dialética inerente a este modo de produção – criação, destruição e recriação de
novos espaços para sua própria reprodução – que, histórica e geograficamente,
resultam em desigualdades.

O extrativismo epidêmico e sua lógica territorial capitalista

Consideramos que o debate e produção teórica sobre o conceito (neo)ex-


trativismo não se encontra no campo geográfico e este fato e sua utilização na
Geografia desloca tanto a base material na qual foi produzido, o desenvolvi-
mento do modo de produção capitalista, quanto a interpretação geográfica
de sua lógica escalar e territorialista. Esse fato nos permite escrever que sua
utilização metafórica na Geografia o torna um conceito idealizado. Portanto, é
preciso um esforço teórico para a reconceitualização, no sentido de relacioná-
-lo com a historicidade e geograficidade que o conceito possui na perspectiva
de não o desvincularmos das relações sociais de produção que conformam
a própria produção do espaço e dos territórios nos quais o extrativismo se
materializa.
De acordo com Hardy-Vallée (2013) um conceito difere de ideia, sendo que
esta pertence à linguagem comum. Neste sentido, conceito é um termo técni-

58 Territórios de esperança
co: “[...] um conceito representa uma categoria de objetos, de eventos ou de
situações e pode ser expresso por uma ou mais de uma palavra” (HARDY-VAL-
LÉE, 2013, p. 16). Ainda segundo o autor, a forma de representação do mesmo
pode ser mental, linguística e pública, considerando que “[...] o conceito é a
unidade primeira do pensamento e do conhecimento: só pensamos e conhe-
cemos na medida em que manipulamos conceitos” (HARDY-VALLÉE, 2013, p.
21). É nesta concepção que trabalhamos com a palavra conceito.
De nossa parte, após realizar exaustiva pesquisa nos trabalhos apresentados
no Simpósio Nacional de Geografia Agrária (SINGA, 2015), Encontro Nacional
de Geografia Agrária (ENGA, 2016) e, Encontro Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Geografia (ENANPEGE, 2017), identificamos que o conceito de
neoextrativismo não é interpretado geograficamente apesar de ser utilizado de
forma direta. Posteriormente, verificamos os anais do XXIV Encontro Nacional
de Geografia Agrária (ENGA, 2018) e na VI Conferência Internacional da Ini-
ciativa BRICS para Estudos Agrários Críticos2 (BICAS, 2018), nesses dois even-
tos o debate crítico sobre o conceito (neo)extrativismo também não aparece.
Consideramos portanto que o uso do (neo)extrativismo como conceito
tornou-se prática na Geografia e, deste reconhecimento fomos levados a ques-
tionar a ambiguidade em torno do mesmo considerando o fato que, tem se
tornado regra, sob a primazia ideológica do modo de produção capitalista,
compreendê-lo desarticulado do processo histórico e geográfico de formação
das relações sociais de produção que se materializam nos territórios a partir
da atividade extrativista e, entendemos que esta análise desarticulada remete
a alienação de pesquisadores e consequente utilização indevida do mesmo.
Por isso, ao encararem o desenvolvimento da atividade extrativista de fora
dela, ao assumir uma postura contemplativa a partir da qual a fluidez geográ-
fica do uso dos territórios e o momento histórico concreto lhes aparece como
algo exterior, alguns geógrafos começaram a se servir do conceito em propor-
ção cada vez mais elevada, porém, sem critérios analíticos e críticos tornando
o mesmo cada vez mais desprovidos de conteúdo histórico e geográfico e, por
conseguinte, de base material. Assim, criaram metáforas teóricas sem cuida-
dosa elaboração lógica buscando enquadrar a fluidez do extrativismo, de acor-
do com as diferentes fases de evolução do modo de produção capitalista, na

2. Apesar desse não ser um evento geográfico, optamos por incluir o mesmo pela numerosa presença de
geógrafos nas mesas principais de debates e apresentação de trabalhos.

A conflitualidade como produtora do futuro 59


fixidez de raciocínios que não contemplam a velocidade e ininterrupta fluidez
dessa forma de relação entre a sociedade e a natureza. Sempre com a ambição
de enquadrar a realidade dentro de esquemas teóricos idealistas.
Formou-se, desse modo, uma concepção teórica geográfica a-histórica, va-
zia de conteúdo e extremamente genérica que, a princípio, beneficia a todos
que utilizam o conceito desvalorizando o futuro crítico da ciência geográfica e
prejudicando a compreensão das conexões e relações existentes entre o novo
– neo – e o antigo extrativismo.
Dessa percepção, foram vários os questionamentos que surgiram sobre o
conceito de (neo)extrativismo aplicado a Geografia e, como escreveu Santos
(2009): “Conceitos em uma disciplina são frequentemente apenas metáforas
nas outras, por mais vizinhas que se encontrem” (SANTOS, 2009, p. 32). Por-
tanto, concordando com a importância da definição conceitual para a produ-
ção e organização do conhecimento, entendemos que a reconceitualização de
determinados conceitos utilizados metaforicamente nos ajuda não só a com-
preender e a se comunicar geograficamente, mas também a fixar o significado
de conceitos que interferem na compreensão geográfica sobre os territórios
em sua concepção de relações de poder. Reconceituar conceitos permite trans-
cender o pensamento acadêmico acrítico indo ao encontro do que escreveu
Marx (2013): “[...] a ciência seria desnecessária se toda a aparência correspon-
desse a essência” (MARX, 2013, p. 721)”. Assim, para reconceitualizar o (neo)
extrativismo trazemos de volta a primeira definição dessa forma de relação
entre a sociedade e a natureza – extrativismo – porém, para permitir sua ope-
racionalização na, e pela, Geografia, vamos adjetiva-lo de epidêmico.
Entre o final do Século XX e início do Século XXI o prefixo neo aparece em
vários temas considerados já como clássicos. Consideramos que a utilização
desse prefixo é uma exaltação de formas de pensar e agir que permanecem
inalteradas em sua essência desde sua origem, como é o caso do extrativismo,
que continua como uma atividade com objetivo de extrair determinada maté-
ria da natureza e, de acordo com a necessidade, transforma-la em recurso, de
acordo com Raffestin (1993), para utilizá-la em proveito próprio ou de outrem.
Portanto, o neo, em extrativismo, parece estar mais próximo de centenários
de desenvolvimento do modo de produção capitalista, escalar e territorialista,
do que de algo realmente novo. Se é correto que a utilização desse prefixo data
da passagem recente do Século XX para o Século XXI, o neo não passa de um
prefixo que procura tornar contemporâneo um comportamento que há muito

60 Territórios de esperança
vem sendo realizado para justificar as contradições do mundo real capitalista,
ou seja, o prefixo não altera o significado de sua essência que representa uma
forma de relação entre a sociedade e a natureza que é, em sua essência, con-
traditória na atualidade.
Isso, porque consideramos que o prefixo neo tende a interpretação de algo
novo durante algum tempo, mas não consideramos prudente entender que
esse novo seja durador, pois o tempo, para o desenvolvimento da atividade
extrativista, é algo que flui com facilidade, é na sua fluidez que se constroem
as novidades tecnológicas que se fixam nos territórios e revitalizam a ativida-
de extrativista por meio da tendência a supressão espaço-temporal, portanto,
deveria existir uma relação de vacância temporal entre o extrativismo e o (neo)
extrativismo, algo que não identificamos.
Sendo assim não consideramos a ressignificação conceitual como algo
estático, simplesmente nominal, mas sim como uma leitura que nos permite
compreender a materialidade de determinadas informações transmitidas atra-
vés de códigos inseridos nos conceitos de acordo com a ciência e teoria em que
este está inserida e, concordando que as teorias podem ser maneiras de pensar
e entender a materialidade, concordamos, também, que o pesquisador pode
entender as teorias científicas como um conjunto de proposições conceituais
que lhe permite dialogar com a realidade e construir um entendimento cientí-
fico sobre os fatos reais que observa.
O megaprojeto extrativista de carvão mineral da Vale Moçambique em
Moatize influi na produção do espaço regional e implica na alteração dos usos
dos territórios, possui escala de abrangência que vai do local ao global – con-
siderando o que Santos (2009) escreveu sobre as escalas de comando e escalas
de ação – e, a acumulação por espoliação é sua forma material. Portanto, a
simples aplicação do prefixo neo ao extrativismo não nos serve para entender
essa realidade. É necessário torná-lo operante pela, e para, a Geografia.
Revelando essa informação temos os estudos de Gudynas (2009, 2011,
2013), Acosta (2018), Lander (2018) e outros que firmam o conceito de neoe-
xtrativismo, sobretudo na América Latina e do Sul, mas, em nossa observação
não nos servem como forma conceitual aplicável a Geografia. Reconhecemos
sua importância, mas também a necessidade de geograficizar os esforços em-
preendidos para que a Geografia não se prenda em conceitos oriundos de
outras ciências. Ademais, importantes publicações brasileiras sobre o extra-
tivismo (ZHOURI; 2018, DILGER, LANG, FILHO, 2016, MILANEZ, 2013) não

A conflitualidade como produtora do futuro 61


fazem esse esforço teórico, utilizam o conceito pronto, estático, até mesmo o
Dicionário Crítico da Mineração (GOMIDE, et all, 2018) segue esse caminho.
A ressignificação que estamos propondo parte de nossas leituras e interpre-
tações geográficas sobre megaprojetos que conceituam os países que recebem
IED de países hospedeiros (BUNDE, 2017; GALVÃO, PEREIRA, 2017; MONIÉ,
JACOB, 2012; HAMADA, GÓIS, 2012; BRUNO, 2009). Essa noção conceitual
– países hospedeiros – nos deu um primeiro alerta no sentido de entender o
hospedeiro como algo relacionado a um vírus. Extrativismo é a ação ou ato de
extrair algo da natureza. É a primeira forma de relação entre a sociedade e a
natureza materializada pelo trabalho. Desde a acumulação primitiva a ação de
extrair vai ganhando diferentes formas. Feita essa observação, questionamos
o uso do prefixo neo na Geografia. O que o extrativismo atual tem de novo? O
meio técnico-científico-informacional (SANTOS, 2009) transformou por com-
pleto essa atividade, mas não em relação a sua base, a atividade principal ainda
é a mesma, é a extração, portanto o que há de novo é a escala e os impactos
sobre os territórios, como ocorre em Moçambique – uma área que se estende
desde a mina de extração de carvão mineral, em Moatize, até o porto de expor-
tação em Nacala-a-Velha.
A ideia e correlação com a adjetivação que estamos propondo – epidêmi-
co – surge do entendimento da medicina sobre organismos como vírus e bac-
térias, que possuem a capacidade de se reproduzir rapidamente quando as
condições naturais são favoráveis – no caso em questão, a presença de miné-
rio em abundância, valor de mercado, condições governamentais favoráveis
e baixa capacidade de resistência das populações afetadas, são as condições
favoráveis – e esta expansão pode gerar impactos em distintas escalas: o surto
(local – a mina), a epidemia (regional – a logística criada para exportação do
minério) e a pandemia (global – expansão da multinacional por diversos paí-
ses), são as escalas de impacto. Dessa observação é que propomos ao debate a
reconceitualização optando por tratar o então chamado (neo)extrativismo de
extrativismo epidêmico.
Pela geopolítica dos recursos naturais, utilizando adequadamente o con-
ceito de escala e o território como categoria analítica, podemos estabelecer
a relação. Tomando o caso do Estado moçambicano como exemplo classifi-
camos o extrativismo epidêmico como territorialista, pois o mesmo implica a
necessidade de desterritorialização camponesa para a territorialização de in-
fraestruturas logísticas que representam capital fixo tendo em vista favorecer

62 Territórios de esperança
o fluxo de capitais. Reconhecendo que a lógica de domínio territorialista apre-
senta uma concepção limitada de território, entendendo esse como recurso
a ser dominado para, a partir dele, se apropriar de determinadas matérias, a
lógica capitalista e territorialista empreendida pelas multinacionais pode ser
entendida como dialética, nenhuma pode se reduzir a outra, pois o controle
sobre o território e a capacidade de mobilizar recursos para obter poder são a
força do extrativismo epidêmico.
Moçambique, o país hospedeiro, recebe a Vale S.A., uma multinacional
que pode ser considerada, a partir de uma analogia, como um vírus que se
espalha por todo o planeta, presente em 27 países, em todos os continentes.
A Vale Moçambique é a forma de materialização naquele país e a epidemia
começa a demonstrar seus impactos negativos a partir do território do mega-
projeto de carvão mineral de Moatize (local – mina de extração) e se estende
até o porto de Nacala-a-Velha (regional – porto de exportação), cruzando, por
meio de linha férrea, o país vizinho Malawi gerando as mais diversas formas
de impactos socioterritoriais negativos por mais de 1000 Km, temos, portanto,
uma multiterritorialidade. É a partir da escala local que os impactos territoriais
epidêmicos se expandem.
Desencadeia-se, assim, o avanço da proliferação da territorialização da
Vale Moçambique pelo monopólio e alteração no uso dos territórios e, estes
fatos, permitem considerar que, de acordo com Raffestin (1993), a concepção
territorial de agentes econômicos e políticos hegemônicos, como a Vale Mo-
çambique, aplique uma concepção limitada de território, considerando ape-
nas sua dimensão física, o que acaba por transformar o próprio território em
recurso a ser dominado. Nesse sentido, o território usado se aproxima daquela
concepção apresentada por Becker (1983) do uso político do território e de
Santos (2000) de território como recurso “[...] mediante a seletividade dos in-
vestimentos econômicos que gera um uso corporativo do território” (SANTOS,
2000, p. 6).

A geopolítica dos recursos naturais e processos territoriais em


Moatize–Moçambique

Frantz Fanon descreve vivazmente o processo de fragmentação espacial e


territorial a partir da ocupação do continente africano no período colonial em
“Os Condenados da Terra”. Para o autor, a colonização resultou, acima de tudo,

A conflitualidade como produtora do futuro 63


em uma divisão do espaço em territórios segmentados pela alteração dos usos.
Na atualidade, podemos retornar à leitura de Fanon (1968) e relacioná-la a ter-
ritorialização do extrativismo epidêmico materializado pela Vale Moçambique,
em Moatize, apresenta, ao nosso ver, três características principais: a dinâmica
de fragmentação territorial provocada pela territorialização das empresas; a
proibição de trânsito e acesso a determinados territórios antes comuns; e, con-
sequentemente, a desterritorialização e reterritorialização camponesa com a
criação dos reassentamentos 25 de Setembro e Cateme.
O objetivo desses processos é duplo: impossibilitar e desgastar qualquer
movimento de resistência as mineradoras. Sendo assim, consideramos que
esses fatos possam ser relacionados ao funcionamento da formação específica
daquilo que Achille Mbembe escreveu sobre necropolítica (MBEMBE, 2015):
o poder de matar, ditar quem vive e quem morre. A partir de Mbembe (2105)
podemos relacionar a Vale Moçambique com o que o mesmo autor escreveu
sobre novas formas de conflitos territoriais e as máquinas de guerra.

Uma máquina de guerra combina uma pluralidade de funções. Tem as caracte-


rísticas de uma organização política e de uma empresa mercantil. Opera median-
te capturas e depredações, e pode até mesmo cunhar seu próprio dinheiro. Para
bancar a extração e exportação de recursos naturais localizados no território que
controlam, as máquinas de guerra forjam ligações diretas com redes transnacionais
(MBEMBE, 2015, p. 140).

Assim, os territórios ocupados pela mineradora Vale Moçambique são ar-


ticulados em uma rede logística complexa que inclui fronteiras territoriais in-
ternas e células isoladas, que compõem os territórios dos reassentamentos,
essa fragmentação espacial e territorial redefine, claramente, as relações entre
quem manda e quem obedece, entre soberania e espaço. A forma resultante
desse controle territorial pode ser relacionada a verticalidade de Milton Santos.

A tendência atual é no sentido de uma união vertical dos lugares. Créditos inter-
nacionais são postos à disposição dos países e das regiões mais pobres, para permi-
tir que as redes se estabeleçam ao serviço do grande capital. Nessa união vertical, os
vetores de modernização são entrópicos. Eles trazem desordem aos subespaços em
que se instalam e a ordem que criam é em seu próprio benefício. E a união vertical –

64 Territórios de esperança
seria melhor falar de unificação – está sempre sendo posta em jogo e não sobrevive
senão à custa de normas rígidas (SANTOS, 2009, p. 192).

Em Moçambique, o fluxo do capital extrativista tem impactado o Estado e


a sociedade pelo menos de duas formas diferentes. Primeiro, pela escassez de
dinheiro para a comunidade em geral e a concentração gradual em determina-
das elites. Como resultado, o número de indivíduos dotados de meios para so-
brevivência diminui abruptamente. Capturar e fixar capital tem sido um aspec-
to central da constituição do vínculo político entre o governo moçambicano
e a Vale Moçambique. Tais condições foram cruciais para determinar o valor
dos territórios e julgar a utilidade das comunidades camponesas em Moatize.
Quando o valor supera a utilidade as comunidades podem ser destituídas de
seus territórios e incorporadas como trabalhadores, peões ou clientes da mine-
radora e é assim que se materializa a necropolítica de Mbembe (2015). Segun-
do, o fluxo de capital em regiões das quais se extraem recursos naturais espe-
cíficos, como o carvão mineral em Moatize, tornaram possível a formação de
enclaves econômicos e modificaram a antiga relação entre as comunidades e
seus territórios tradicionais, em Moatize, foram desterritorializadas a partir de
2009, 1.313 famílias, em um total 5.423 pessoas. A concentração de atividades
relacionadas com a extração de recursos minerais em torno desses enclaves
tem, por sua vez, fomentado nos territórios conflitos, morte e conflitualidade.
A própria conflitualidade é alimentada pelo territorialismo do extrativis-
mo epidêmico que investe na expansão da mina – uma área de 23.780 hectares
(MOÇAMBIQUE, 2007) – e quantidade de carvão extraído – aproximadamente,
11 milhões de toneladas anuais (VALE, 2018). Consequentemente, a conflitua-
lidade entre a Vale Moçambique, o governo local e nacional e as comunidades
desterritorializadas e vizinhas da mina, como as do Bairro Bagamoyo, é uma
realidade, ainda que as comunidades desterritorializadas dos reassentamen-
tos 25 de Setembro e Cateme não sejam protagonistas.
A conflitualidade é explicada: Fernandes (2004) escreveu que esse é um
processo constante e promove, concomitantemente, a territorialização, des-
territorialização e reterritorialização de diferentes relações sociais. A aparente
busca de soluções por parte do governo para reverter o cenário atual da confli-
tualidade agrária moçambicana – instaurada a mais de uma década (DEUTS-
CHE WELLE, 2012; ADECRU, 2013; MUTZENBERGER, 2014) – por meio das
alterações legislativas, não só tem revelado práticas discursivas ideológicas,

A conflitualidade como produtora do futuro 65


como também a emergência de um modus operandi que vai ao encontro do
mercado internacional e sua lógica capitalista territorialista.
A difusão espacial e territorial do extrativismo epidêmico permite identi-
ficar, em Moçambique, movimentos socioespaciais e socioterritoriais que in-
tensificam a questão agrária e, reconhecendo que, na atualidade essa é uma
questão que não se limita ao agronegócio e camponeses, sendo eminentemen-
te territorial, a mesma é passível de ser analisada pela geopolítica dos recur-
sos naturais, em nossa pesquisa, energéticos. Bernardo Mançano Fernandes
contribui sobre o entendimento entre poder e território com o conceito de
multidimensionalidade dos territórios (social, cultural, econômica, natural e
política), fato que complexifica a leitura sobre sobre os territórios e permite
a identificação de movimentos socioterritoriais, pois os mesmos, entendem
o território como elemento vital, ou como trunfo, conforme Raffestin (1993).

Os movimentos socioterritoriais para atingirem seus objetivos constroem es-


paços políticos, espacializam-se e promovem espacialidades. A construção de um
tipo de território significa, quase sempre, a destruição de um outro tipo de território,
de modo que a maior parte dos movimentos socioterritoriais forma-se a partir dos
processos de territorialização e desterritorialização. (FERNANDES, 2005, p. 31).

Assim, compreender o Estado moçambicano, a Vale Moçambique, os cam-


poneses e camponesas desterritorializados, as associações da sociedade civil,
que de uma forma ou outra atuam em favor das famílias camponesas, como
movimentos socioespaciais e socioterritoriais é imprescindível.

O espaço, o território, o lugar, as relações sociais, as escalas das ações nos aju-
dam a compreender os tipos de movimentos socioespacial ou socioterritorial e seus
processos geográficos (isolados, territorializados ou espacializados). Esses movi-
mentos são tanto instituições formais, quanto não formais, políticas no sentido lato,
por sua materialidade, ação, estabelecimento e dinâmica, quanto são igualmente
instituições formais como os sindicatos, as empresas, os estados, as igrejas e as or-
ganizações não governamentais (ONGs). Nesse sentido, é preciso diferenciar entre
os movimentos socioespaciais e os movimentos socioterritoriais. Os movimentos
socioterritoriais têm o território não só como trunfo, mas este é essencial para sua
existência. Os movimentos camponeses, os indígenas, as empresas, os sindicatos e
os estados podem se constituir em movimentos socioterritoriais e socioespaciais.

66 Territórios de esperança
Porque criam relações sociais para tratarem diretamente de seus interesses e assim
produzem seus próprios espaços e seus territórios. (FERNANDES, 2005, p. 31, itá-
licos nossos).

A produção do território extrativista pela Vale Moçambique se deu pela


territorialização do megaprojeto de extração de carvão mineral e desterrito-
rialização camponesa. Isso nos permite considerar a Vale Moçambique en-
quanto um movimento socioterritorial que atua como máquina de guerra, na
perspectiva de Mbembe (2015), pois a multinacional extrativista implica na
constituição de economias locais ou regionais como altamente dependentes
conduzindo ao colapso as relações sociais e políticas formais sob a pressão da
violência econômica e institucional tendente a conduzir à formação de econo-
mias e mecanismos predadores altamente organizados, que taxam os territó-
rios e as populações que os ocupam.
Por sua vez, na atualidade, os camponeses desterritorializados represen-
tam os movimentos socioespaciais, isso porque, os mesmos não atuam mais
diretamente em formas de conflitualidades contra a Vale Moçambique. De
acordo com relatos obtidos durante a pesquisa empírica em Moçambique,
constatamos que os mesmos não possuem mais condições de enfretamento. A
condição de protagonista nessa ação passa a ser de associações da sociedade
civil, a exemplo da Associação de Apoio e Assistência Jurídica aos Camponeses
(AAAJC), Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais
(ADECRU) e Justiça Ambiental, que são considerados, assim como a Vale Mo-
çambique, como movimentos socioterritoriais.
Em uma correlação com a geopolítica dos recursos naturais, podemos en-
tender o surgimento de uma governança que materializa a acumulação por
espoliação promovida pela Vale Moçambique e esta avança de mãos dadas
com tentativas brutais para imobilizar e fixar territorialmente comunidades
tradicionais ou, paradoxalmente, soltá-las, forçando-as a se disseminar por
outros territórios que excedem as fronteiras do Estado. Enquanto categoria
política, as comunidades são então decompostas e classificadas como rebel-
des, vítimas ou refugiados, civis incapacitados ou simplesmente massacrados,
enquanto os sobreviventes, depois da desterritorialização terrível, são confi-
nados a territórios de exceção.
Nesse contexto se desenvolve a questão agrária moçambicana. A relação
entre a questão agrária e megaprojetos extrativistas, lembramos, permite que a

A conflitualidade como produtora do futuro 67


primeira se torne objeto de análise da geopolítica dos recursos naturais, tendo
em vista as escalas de ação e o poder que a Vale Moçambique influi sobre o go-
verno para explorar territórios em busca de recursos naturais. Assim, busca-se
afirmar que a soberania econômica e política alinhada com a intensificação de
megaprojetos extrativistas se apresenta como elemento fundamental para uma
acelerada modificação no uso dos territórios.
Sendo assim, com base em autores clássicos e contemporâneos como Yves
Lacoste (1972), Richard Peet (1980), John Agnew (2004) e Philippe Le Billon
(2005), dentre outros que trabalharam a evolução epistemológica da geopo-
lítica, consideramos que a geopolítica dos recursos naturais é a fundamen-
tação teórica que nos permite entender os processos territoriais em Moatize.
Desse modo, levamos em consideração o Estado como agente principal, mas
também uma multiplicidade de novos agentes, como a Vale Moçambique – e
escalas – global, regional e local – que influenciam na teorização geopolítica.
Assim, a geopolítica dos recursos naturais pode ser utilizada para estudar e
aplicar à Geografia aspectos da política econômica internacional derivada de
fatores geográficos estratégicos, como o uso dos territórios e, especificamente
em nosso caso, a extração de recursos naturais.
As mudanças que se verificam na atual ordem econômica e política inter-
nacional não são estáticas e permitem que os estudos referentes à Geopolítica
sejam ampliados, uma vez que a relação entre espaço e poder está no cerne da
Ciência Geográfica (LACOSTE, 2012), assim temos que, Moatize, se torna um
dos territórios do espaço global da geopolítica dos recursos naturais.
De acordo com Smith (2009) os recursos naturais foram transformados
pelos capitalistas em espaço de acumulação financeira expresso, de maneira
nítida, no momento histórico no qual multinacionais – sem diminuir o papel
dos estados nacionais – funcionam como instituições reguladoras da atividade
econômica, como é o caso da Vale Moçambique, ao propor regulações a paí-
ses aonde atua utilizando o argumento de cooperação para o desenvolvimento
sustentável.
A geopolítica dos recursos naturais atuais é a opção por uma abordagem
plural para a compreensão dos fatos resultantes dos conflitos e da conflituali-
dade, bem como a redescoberta das escalas regionais e locais (CASTRO, 2006,
p. 24). Assim, territórios camponeses, bem como a escala do Estado nacional,
continuam sendo fundamentais nos estudos geopolíticos, porque, primeiro,
os territórios camponeses são, os mais fragilizados frente ao poder das mine-

68 Territórios de esperança
radoras e, segundo, nas relações internacionais, o Estado é ainda importante
agente na organização territorial mundial (SMITH, 1996). No entanto, as ações
políticas de diferentes sujeitos atingem os territórios engendrando novas dinâ-
micas em âmbito local e regional. Logo, essas escalas geográficas não podem
ser negligenciadas pela geopolítica dos recursos naturais.

Considerações finais

Diante dos escritos, reconhecemos que o processo de acumulação primiti-


va adquire novas formas e segue seu curso intensificando a espoliação e expro-
priação territorial pela transferência espaço-temporal de investimentos inter-
nacionais de capitais a fim de garantir a acumulação e reprodução do modo de
produção capitalista e, este processo, altera e determina relações entre países
desenvolvidos e subdesenvolvidos, pois, a mobilidade espacial e territorial de
capitais que a atividade extrativista proporciona intensifica a descentralização
da produção e a incorporação gradativa de países subdesenvolvidos na eco-
nomia mundial por meio de redes logísticas que permitem a intensificação de
ações que ocasionam a separação entre o lugar de extração da matéria bruta,
transformação da matéria prima e lugar de consumo. Estes processos confor-
mam toda uma complexa rede de logística que materializa seus impactos ne-
gativos nos territórios a partir de relações de poder entre classes sociais e em
diferentes escalas.
Estes elementos destacados nos permitem uma primeira aproximação e
aplicação do conceito extrativismo epidêmico, pois o mesmo está presente en-
quanto ação que se dissemina de acordo com as condições locais. Portanto,
consideramos que o conceito (neo)extrativismo possui em si generalidades
e especificidades à medida que abarca maior número de pessoas e passou a
existir por si só, a ter significado próprio, o que, aparentemente desqualificou
o debate sobre o mesmo. A partir do momento em que o (neo)extrativismo ad-
quiriu seu próprio significado se tornou um conceito em si, fechando-se em si
mesmo, passando a ter significação própria e sendo utilizado de forma comum.
Daí a necessidade de reconceitualização a partir dessas primeiras observações.

A conflitualidade como produtora do futuro 69


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72 Territórios de esperança
Os conflitos rurais na Argentina profunda: uma
caraterização da luta pela terra em Santiago del Estero
Cristian Jara • Ramiro Rodríguez • Raúl Paz1

Introdução

T em sido comum afirmar que na Argentina não há índios, negros, e tão pou-
co camponeses. Esse imaginário dominante é fortemente problematizado
pelos movimentos sociais agrários que surgiram no país nas últimas décadas,
e que reaparecem continuamente em conjunturas críticas, tais como o conflito
de 2008 em torno das retenções das exportações de grãos2. Naquela oportu-
nidade, os movimentos camponeses e indígenas, querendo se diferenciar do
modelo agroexportador, representado pela Mesa de Enlace3, expressaram: Não
somos campo, somos Terra e Território. Deste modo, resistem a serem coadu-
nados ao termo reducionista “campo” que suprime os antagonismos de atores
e regiões (BARBETTA, DOMÍNGUEZ; SABATINO, 2012).

1. Los autores son docentes e investigadores del equipo de Ruralidades y Territorios del INDES (Instituto
de Estudios para el desarrollo Social), pertenecientes al CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Tecnológicas) y a la Facultad de Humanidades Ciencias Sociales y de la Salud de la UNSE
(Universidad Nacional de Santiago del Estero de Argentina).
2. Em 2008 aconteceu um conflito sério entre as organizações patronais agrárias e o governo nacional ar-
gentino, em meio a uma proposta para incrementar as retenções da soja. Esse conflito durou vários meses
até que o Senado da Nação, após uma tensa votação, optou por rejeitar o projeto de lei que havia sido
promovido pelo poder executivo.
3. A Mesa de Enlace que reúne as quatro principais associações nacionais de produtores agropecuários da
Argentina: a Sociedade Rural Argentina, a Federação Agrária Argentina, as Confederações Rurais Argen-
tinas e CONINAGRO. Essas associações, ao longo da sua história, tiveram grandes e irreconciliáveis di-
ferenças, mas nessa oportunidade e ante o que compreenderam como uma grande ameaça para o agro
como setor, decidiram deixar de lado os desacordos e conformar a denominada “Mesa de Enlace”. Nesse
sentido, adjudicaram-se a representação do “campo” como um todo e apresentaram-se desse modo frente
ao governo e a opinião pública.

A conflitualidade como produtora do futuro 73


Há que esclarecer que quando se fala do movimento camponês na Argen-
tina não há uma referência a um ator homogêneo, mas a distintas vertentes
organizativas que têm em comum ter atribuído categoria campesina o sentido
político de conotações axiológicas positivas. Nesta direção, o camponês é fru-
to da construção de uma identidade, comumente ambígua, criada na disputa
pela terra e no autoconhecimento como sujeitos de direitos. (JARA, 2016).
Um relatório da Subsecretaria de Agricultura Familiar da Nação, de 2013,
registrou que existem, em âmbito do país, ao menos 9,3 milhões de hectares
em conflitos. Essa situação afeta a 63.843 famílias que se veem ameaçadas por
despejos, além de sofrerem distintas formas de violência (BIDASECA, 2013).
Tal problemática tem uma importância especial nas províncias do noroeste,
como em Santiago del Estero, caraterizada por uma estrutura agrária que apre-
senta uma população numerosa com sérias desigualdades no acesso à terra4 e
precariedade na posse da mesma.
Geralmente, as terras em disputa (privadas, indivisíveis ou fiscais) têm sido
ocupadas ancestralmente pelos povos camponeses e indígenas, cujas formas
de produção estiveram baseadas no desenvolvimento da pecuária extensiva,
onde a cria a céu aberto é uma prática produtiva, geralmente inclui um uso
compartilhado da terra. Por sua vez, a ausência de títulos que permitam com-
provar a propriedade da terra, os expõe a constantes despejos por parte de em-
presários ávidos de terra consideradas marginais pelo capital (PAZ; DE DIOS;
GUTIÉRREZ, 2014).
Esse problema tem se aflorado nos últimos anos, em um contexto de avan-
ço da fronteira agropecuária e de aceleração do acúmulo dos bens naturais.
Considerando essa questão, o objetivo deste capitulo é caracterizar os conflitos
agrários vinculados à luta pela terra, em uma região periférica da “Argentina
Profunda”: a província de Santiago del Estero. A perspectiva de análise bus-
ca discutir sobre a dicotomia estruturalista-compreensivista da ação coleti-
va, prestando atenção tanto aos fatores que caracterizam a estrutura agrária

4. Obschatko et al (2007) assinalam que em Santiago del Estero existem 17.453 explorações de pequenos
produtores familiares, que representam 83% do total das explorações, mesmo que só ocupem 16% da
superfície total. Por sua vez, Raúl Paz (2011) aponta que existem 10.000 EAPs camponesas sem limites
definidos. O Instituto Nacional de Estatísticas e Censos define as Explorações Agropecuárias sem limites
definidos como aquelas que se caracterizam por ter limites imprecisos ou carecem deles. Isso significa di-
zer que as parcelas que a integram não estão delimitadas. No geral, estão formadas por unidades maiores,
com distintas modalidades de posse, tais como: campos comunheiros, comunidades indígenas, parques
nacionais, terra fiscais e privadas.

74 Territórios de esperança
quanto aos aspectos mais subjetivos do processo organizativo do campesinato.
Nessa linha, consideramos que as desigualdades estruturais podem ser cons-
tantes, mas as percepções coletivas destas condições variam com o tempo.
Portanto, entre as estruturas de oportunidades e a ação, colocam-se os objetos
e sua capacidade de atribuir sentido às situações (GIARRACCA et al., 2001).
Este texto está estruturado da seguinte forma: em primeiro lugar, apresen-
ta-se um breve recorte da história agrária de Santiago del Estero, identificando
continuidades e transformações na matriz das explorações dos recursos natu-
rais e sua inserção nos padrões de acumulação, em âmbito mundial; em segun-
do lugar, analisamos o papel do Estado, ora por ação, ora por omissão, na latên-
cia e aguçamento do conflito pela terra. Finalmente, procuramos reconstruir
a origem e o desenvolvimento da ação coletiva do campesinato santiaguense
em defesa da terra.

O conflito agrário: aspectos estruturais de longa duração

Partimos do pressuposto de que toda estrutura agrária5 expressa uma cor-


relação de forças sobre o espaço geográfico. Por sua vez, o estudo da configura-
ção atual da estrutura agrária de Santiago del Estero permitiria uma aproxima-
ção das relações de poder no âmbito rural e a possibilidade de se ter uma visão
diacrônica dos conflitos territoriais, que atualmente caracterizam o nordeste
argentino.
Em âmbito analítico, os elementos constitutivos da estrutura agrária se
combinam de distintas maneiras e podem ser de três tipos. Em primeiro lugar,
temos os elementos fundiários, referentes à forma como está distribuída a ter-
ra. Em segundo lugar, a estrutura agrária se compõe de elementos econômicos
que atuam no processo produtivo. Finalmente, a abordagem dos elementos
sociais alude aos distintos sujeitos atuantes no agro, e ao tramado de relações
existentes entre eles. (BUSTAMANTE, 2010).
O padrão de povoamento da estrutura agrária de Santiago del Estero con-
centrou-se sob os cursos dos dois principais rios que o atravessam (o Dulce e
o Salado). Com a chegada dos conquistadores, o uso do solo santiaguense e o
tipo de assentamento humano mudaram substancialmente. As terras conside-

5. Com a ideia da estrutura (do latin, construir), alude-se aqui ao conjunto de elementos que compõe um
todo relacionado entre si, no qual a modificação de uma das partes dá lugar à modificação dos restantes
elementos e/ou relações.

A conflitualidade como produtora do futuro 75


radas comunitárias pelos nativos passaram a ser propriedade privada, a partir
de distintas formas legais.6
Posteriormente, nos séculos XVII e XIX, consolidou-se o sistema de estân-
cias. Assim, foi conformando-se uma nova forma de ocupação do território em
grandes espaços abertos e sem limites precisos. Por conseguinte, muitos dos
povos rurais surgiram sobre a base da ocupação das estâncias. No entanto, as
localidades mais povoadas situaram-se à beira dos rios.
Em meados do século XIX, a construção do estado provincial permitiu avan-
ço sobre a região nordeste, em um processo de reapropriação dos territórios
indígenas. Isso deu lugar à constituição de um mercado de terras, cuja apro-
priação e especulação implicou na consolidação do poder dos latifundiários e
a presença ativa do Estado nesse processo. Os mecanismos sobre os quais se
baseou a apropriação de terra consistiam em um conjunto de situações, como
doações e vendas do governo a particulares que realizavam obras de caráter
público ou mediante utilização das terras como garantia para investimentos
no setor estatal (ROSSI, 2007).
Para finais do século XIX, começou-se a produzir, no território nacional,
a denominada colonização agrária, entendida como a ocupação da terra por
imigrantes estrangeiros, impulsada desde os governos federais, dando lugar a
um novo tipo de distribuição do território em quadrículas bem definidas. Po-
rém, em Santiago de Estero, a colonização agrária ficou limitada a iniciativas
pontuais e de escassa cobertura geográfica.
Por sua vez, nas planícies do monte santiaguense desenvolver-se-ia outro
estilo de produção e ocupação territorial denominado o obraje7. Os capitalis-

6. La Merced de tierra foi uma instituição jurídica ibérica que surgiu entre os séculos XV e XVI. Geralmente,
aludia a uma doação real (pela coroa) de bens, imóveis e títulos, em troca de um serviço. Durante as pri-
meiras décadas da Conquista Americana, os reis faziam Mercedes de Terras, a fim de estimular a ocupação
efetiva do território pelos conquistadores, fundadores ou colonos. No geral, cada morador recebia um lote
urbano e uma parcela de terra, na periferia da vila de maior extensão, para as explorações pecuárias (es-
tâncias). Por sua vez, a encomenda foi uma instituição de conteúdos distintos, segundo tempos e lugares,
pela qual assignava-se a uma pessoa a um grupo de aborígenes para que se aproveitaram do seu trabalho
ou de uma tributação taxada pela autoridade. Sempre com a obrigação, por parte do encomendado, de
procurar e custear a instrução cristã daquelas pessoas. Em outras palavras, a encomenda era um sistema
de trabalho forçado para os povos originários em favor dos encomendados.
7. O obraje trará de um sistema de produção no contexto histórico regional do Gran Chaco, entre finais do sé-
culo XIX e no início do século XX. Os obrajes consistiam em instalações dentro dos bosques de quebracho
colorado para a tala de árvores à grande escala. Uma característica distintiva foi a temporalidade, ou seja,
que a permanência em um sitio dependia da abundância e qualidade do quebracho. Consistiu em uma
forma de produção integrada ao capitalismo mundial, baseada em um sistema de engajamento e retenção

76 Territórios de esperança
tas orientaram-se para a exploração das espécies madeireiras, especialmente o
quebracho colorado. O caráter extrativista deste processo e o sistema de explo-
ração do hachero produziram consequências socioeconômicas e ecológicas
desastrosas em todo o Chaco Sul-Americano (DARLGOTZ, 2003).
Essa configuração social, onde se articulam os sistemas de servidão e in-
tegração à economia de mercado mediante a produção primária, constituiu a
base da estrutura agrária santiaguense. Em meados do século XX, a exploração
florestal perdeu rentabilidade e os obrajes empreenderam sua retirada. Um
dos resultados foi que muitos dos antigos hacheros permaneceram nessas ter-
ras mediante um processo de recampenização8, embora sem regularizar sua
situação de tenência precária da terra.
A vulnerabilidade desses camponeses sem títulos, expostos aos despejos,
intensificou-se durante a década de 1960, quando grandes investidores adqui-
riram terrenos fiscais e se expandiu a fronteira agrícola, tendo como principal
cultivo o algodão. Os conflitos pela terra agravaram-se desde os anos oiten-
ta, com a expansão das produções agroexportadora (especialmente soja) que
substituíram as atividades tradicionais, como o cultivo de alface.
Outro fator a levar-se em conta, também relacionado com a revalorização
dos recursos naturais, por parte do capital, e as tensões que isso gera com as
comunidades rurais que habitam esses territórios ancestralmente, relaciona-
-se com fenômenos de estrangeirização. Em Santiago del Estero, com um total
de 13 milhões de hectares, aproximadamente, somente 2% (267.684 hectares)
está em mãos estrangeiras. Cabe esclarecer que esses casos são menores em
relação à imensa porção de terras em mãos das empresas locais. Isso embora
a compra de terra pelo estrangeiro ser um fenômeno que tem se acelerado nos
últimos anos.
Alguns casos ilustrativos de estrangeirização se referem às compras de ter-
ra por George Soros, por meio do Fundo de Investimento de Adecoagro (El

da mão de obra altamente precária. O destino dos trabalhadores estava unido à vontade do empreiteiro,
o capataz ou o patrão. No trabalho participava toda a família. As crianças e as mulheres ajudavam ao ha-
chero em tarefas de limpeza. A atividade dos homens era complementada com outras atividades do grupo
doméstico, como o trabalho das mulheres em lavanderias, cuidando das crianças e da venda de alimentos.
Sua dependência em relação ao aprovisionamento de mercadorias configurou um mercado cativo de tra-
balhadores permanentemente endividados.
8. Significa que os habitantes rurais recuperam uma estratégia baseada no trabalho da terra e na cria de
animais por conta própria destinada, principalmente, ao autoconsumo, de produção com base na mão de
obra familiar.

A conflitualidade como produtora do futuro 77


Liberal, 23/12/2011). Do mesmo modo, em 2011, a empresa estatal chinesa
Chongquing Grain realizou uma importante compra de terrenos em Santiago
del Estero (El Liberal, 04/ 05/ 2012).
Diante da falta de regulação dos direitos de posse, são frequentes os episó-
dios de violência, como o conflito de El Cade (departamento Alberdi), que se
fez manifesto em 2013. O diferindo surgiu a raiz que uma empresa agropecuá-
ria asiática quis plantar soja no campo habitado por camponeses. A empresa
que tem capital chinês, instalou-se, em junho de 2012, terceirizando outras
empresas que cercaram e desmontaram o campo, apesar da resistência dos
povoadores locais que reivindicaram 14 mil hectares (REDAF, 2013).
Enfim, a forma de inserção da Argentina na divisão internacional do traba-
lho foi gerando, em Santiago del Estero, uma estrutura agrária onde subsistem
explorações agropecuárias com desigualdades e irregularidades na tenência
da terra.
Como se pode ver, a exploração dos recursos naturais revela um continuo
processo de mercantilização. Tanto a extração florestal como a soja tem cons-
tituído as principais atividades produtivas que marcaram distintos momentos
da estrutura produtiva da província, integrando esta economia aos processos
de acumulação mundial. Sem dúvida, o papel do Estado tem sido chave no
conflito pela terra.

Os conflitos pela terra e o papel do estado

Na Argentina, em especial nas províncias do norte, ainda existem espaços


onde não se encontra regularizada a titulação de grandes extensões de terri-
tório e os registros da propriedade contam com um desenvolvimento parcial.
Nesse contexto, o Estado mostra sérias falências na execução de suas próprias
obrigações, observando-se violações de leis que regulam a posse ancestral,
seja por usucapião ou comunal indígenas (MURMIS; MURMIS, 2012).
A falta de regularização na propriedade da terra tem gerado sucessivos con-
flitos que involucram potencialmente a mais de 10000 famílias camponesas
santiaguenses que vivem em situação de inseguridade jurídica, já que não pos-
suem o acesso aos títulos de propriedade. Apesar de que a legislação argentina
lhes reconhece direitos como possuidores9. Na maioria dos casos, trata-se de

9. Os artigos 2.351, 3.948 e 4.015 reconhecem o direito dos povoadores à propriedade da terra, quando tem

78 Territórios de esperança
famílias camponesas e indígenas que habitam e trabalham em suas terras por
mais de vinte anos de forma pacífica, pública e contínua, mas que nunca tem
conseguido realizar o processo de regularização dominial.
Segundo o censo realizado pelo Observatório de Direito das Comunidades
Camponesas (2012), pertence ao Ministério da Justiça provincial, entre 2004-
2011, registraram-se 422 expedientes de conflitos de terra, envolvendo 6.747
famílias. As reclamações fazem referência à usurpação da terra, à incorreta
intervenção da polícia às clausuras de acessos a caminhos, escolas, fontes
de água.
Os procedimentos para a apropriação da terra por parte dos empresários
são diversos. Em alguns casos compram as terras a baixo preço das famílias
tradicionais locais, que aparecem como titulares de domínio, mas que não
exercem a posse. Após isso, esses empresários iniciam juízos por usurpação.
Em outros casos, convencem alguns dos possuidores de terras de uso comunal
para que vendam seus direitos de posse, iniciando a prescrição aquisitiva de
usucapião, mesmo quando esses terrenos também estão ocupados por tercei-
ras famílias e não participem do acordo (DE DIOS, 2010b).
Outra forma consiste no oferecimento de arranjos extrajudiciais com a pro-
messa da entrega de títulos. Em troca da renúncia dos direitos de posse, geral-
mente são oferecidos trabalho, melhoras nas casas ou aportes para as escolas.
No geral, a oferta consiste em parcelas demasiadamente pequenas e em solos
de baixa qualidade, sem possibilidade de conformar unidades econômicas
sustentáveis. Da mesma forma, os empresários atuam ilegalmente, avançando
sobre as posses com escavadeiras e cercas para obstruir o acesso às moradias,
escolas e poços de água. (DE DIOS, 2010b).
Outras das operações difundidas para a obtenção de terras está relacionada
com a falsificação de instrumentos públicos. Há patrões que se repetem em vá-
rias das causas: figuram protocolos de escribas que não existem, assinatura de
pessoas já falecidas, escribas dando fé de propriedades e aparição de registros
antes denunciados como extraviados. (EL LIBERAL, 12/02/2012).
Para que os camponeses possam fazer valer seus direitos de posse, pre-
cisa-se da realização de um juízo de usucapião, e de um plano que deve ser

exercido uma posse pacífica, contínua e interrompida por mais de vinte anos, trabalhando e fazendo
melhoras, delimitando suas cercas, construindo barragens. desde o ponto de vista jurídico, a posse com
ânimo de dono é uma figura distinta da titulação e a tenência. O ato de posse implica não reconhecer a
existência de outro proprietário, mas para que a propriedade seja plena requer do título.

A conflitualidade como produtora do futuro 79


feito por um engenheiro agrimensor e aprovado pela Diretoria Provincial de
Cadastro. Este tramite administrativo requer importantes somas de dinheiro
que os camponeses geralmente não têm. Por outro lado, a via jurídica também
encontra obstáculos quanto ao critério de aplicação da lei por parte dos juízes.
Barbetta (2009) argumenta que o critério predominante entre os magistra-
dos locais, a respeito das áreas de monte destinadas ao pastoreio, que não têm
limites definidos, é que não existem evidências de que se trate de terras com
melhoras. Portanto, geralmente desconhecem ou subestimam a forma de pro-
dução camponesa.
Nesse contexto, a disputa por espaços no Estado para conseguir o acesso a
políticas públicas é um processo que exigiu a organização do campesinato. Isso
faz parte de uma longa luta contra a criminalização do protesto e a estigmatiza-
ção. Mas, acima de tudo, o desafio que permanece é a necessidade de traduzir
e articular as reivindicações setoriais ao conjunto da sociedade em disputa por
um modelo de desenvolvimento rural alternativo. A seguir aprofundaremos
este ponto.

A emergência do movimento camponês

O nascimento do Movimento Camponês de Santigo del Estero (MOCASE)


representou a mais importante expressão de organização de luta pela terra na
província. Esse processo teve início no interstício das décadas de 1980-1990,
por meio da passagem dos despejos silenciosos (as expulsões vividas com uma
situação privada) para uma defesa coletiva que tem como um de seus marcos
o Grito de los Juríes, acontecido em outubro de 1986, a primeira grande mo-
bilização de protesto. Posteriormente, em 4 de agosto de 1990, foi constituído
formalmente, em Quimilí, o Movimento Camponês de Santiago del Estero, sob
a presidência de Zenón Chuca Ledesma.
Precisamente, o surgimento do MOCASE (junto com o nascimento do
Movimento Sem Terra no Brasil, em 1985, e o levantamento neozapatista de
Chiapa, em 1994) deu-se em momentos de precarização das populações ru-
rais que Blanca Rubio denomina a fase agroexportadora neoliberal excludente.
Por sua vez, as diferenças na ação coletiva derivam dos marcos interpretativos
que constroem esses movimentos e as contradições que enfrenta a fase de de-
senvolvimento neoliberal em cada território (RUBIO, 2003). Para abordar as
particularidades no caso argentino, com fins analíticos, distingue-se, seguida-

80 Territórios de esperança
mente, as dimensões da ação que levam a cabo o MOCASE: uma luta pela terra
e uma luta na terra (McMICHAEL, 2008).
A luta pela terra expressa-se nas demandas pela regularização da proprie-
dade agrária e a resistência aos despejos. Isso constitui o eixo organizacional
e comunicacional. Em outras palavras, o freio às expulsões dos camponeses
faz-se tanto mediante a legitima defesa de seus prédios (ante as tentativas de
despejos violentos), como por meio de apresentações judiciais para o reconhe-
cimento dos direitos de posse. Assim mesmo, atribui-se um papel importante
aos meios de comunicação, com o intuito de publicizar as demandas e instalar
a problemática na agenda pública.
Historicamente, a luta pela terra desenvolveu-se em um clima de antago-
nismo com o regímen de Juárez10. As reações do juarismo ante o crescimento
e a visibilidade adquirida pelo MOCASE deu lugar ao desdobramento de um
conjunto de manobras para calar e ocultar o movimento perante sua aparição
no espaço político.
Quanto à forma que assume a exterioridade no conflito, as organizações
camponesas puseram em marcha um processo de identificação do adversário
que vai desde o mais imediato (a escavadora, a polícia, as milícias) até a oposi-
ção, em um nível mais amplo ao agronegócio.
A ação política das organizações camponesas de Santiago del Estero im-
plicou, por um lado, o começo de um processo de escape de atribuições es-
tigmatizantes; e, por outro, o autoreconhecimento de capacidades agenciais.
Isso pode ser ilustrado com uma série de episódios. Por exemplo, a acusação
de terroristas por parte do deputado que acusou o campesinato de supostas
vinculações com o narcotráfico e com Sendero Luminoso do Peru, o qual care-
cia de fundamento. Também durante o juarismo, o movimento camponês era
considerado pelos serviços de inteligência provinciais como um exemplo de
organização subversiva. (DE DIOS, 2010a).
O uso da coerção que o juarismo empregou contra o MOCASE inclui perse-
guições policiais e encarceramento. Ao mesmo tempo, no âmbito judicial, cria-

10. Carlos Arturo Juárez (1916-2010) governou direta e indiretamente a província durante mais de meio sé-
culo. Juárez foi eleito governador pela primeira vez durante 1948-1952, período da presidência de Juan
Domingo Perón. Em 1973 voltou a ocupar a primeira magistratura, até o golpe militar de 1976. Com o
retorno da democracia, em 1983, foi reeleito, ocupando novamente o poder executivo entre 1983 e 1987,
1995 e 1998, 19919 e 2001. Em 2002, a sua esposa, Mercedes Aragonés de Juárez, o substituiu. O regime
juarista chegou a seu fim com a intervenção Federal de 2004, em um contexto de protesto social pelos
excessos de poder.

A conflitualidade como produtora do futuro 81


vam-se obstáculos para as demandas; procuravam-se falhas nas prescrições de
usucapião. Entre as diversas formas de assédio implementadas, há também a
negação de conceder status jurídico ao movimento social. Da mesma forma,
no ano 2000, a Câmera dos Deputados aprovou a reforma do Código Criminal
e Correcional, com a incorporação do Art. 182 bis. Essa disposição possibilitava
despejar imediatamente as famílias camponesas acusadas de ser intrusas, só
com o pedido do suposto dono.
Pese aos objetivos comuns das organizações camponesas, ou seja, a defesa
da terra e a melhoras nas condições de vida do setor, as diferenças internas
levaram a um processo de fragmentação que desembocou na divisão, em 2001,
entre MOCASE e MOCASE Via Campesina. Essa fratura tem dado lugar a dis-
tintas interpretações por parte dos analistas. Uma linha argumentativa consi-
dera que é o resultado de uma disputa entre o “estilo autoritário” da Comissão
Diretiva do MOCASE e um estilo emergente que pugnava pela “horizontalida-
de”, baseada na tomada de decisões pelo consenso (DURAND, 2006).
Em contraposição à esta interpretação, Rubén de Dios (2010a) considera
que, desde meados dos anos 90, previa-se uma disputa pela condução do MO-
CASE, o qual tem relação, entre outros aspectos, com o controle dos recursos
econômicos disponíveis para a organização e o sistema de alianças priorizado.
A partir da ruptura, o MOCASE VC fez ênfase na sua inserção internacional; en-
quanto o MOCASE priorizou manter suas alianças com os atores locais como o
PSA (Programa Social Agropecuário) e a Mesa de Terra Provincial.
A mudança no contexto político provincial, que supunha a intervenção Fe-
deral de 2014, influenciou na evolução do movimento. Como primeira reação
à queda do Juarismo, o 18 de junho de 2004, realizou-se uma grande marcha
convocada pela Mesa Provincial11 de Terras para exigir a reforma agrária. A
intervenção federal fez algumas concessões às demandas, como foi a proibição
de realizar desmontes por um ano e a aprovação da legalização jurídica que o
MOCASE vinha gestando sem sucesso.
No governo de Gerdo Zamora, que assumiu em 2005, abriu-se uma ins-
tância de diálogo com a Mesa Provincial de Terras. Esta mudança permitiu a

11. A mesma surge no ano 2000, integrada por organizações camponesas, a Pastoral Social da Igreja Católica
e diversas organizações não governamentais (INCUPO, Be Pe, El CEIBAL, PRADE, FUNDAPAZ, entre
outras).

82 Territórios de esperança
criação da denominada Mesa Tripartida12. Nesse âmbito, acordou-se forma-
lizar a criação de um Registro de Aspirantes à Regularização da Tenência da
Terra, que tinha como propósito facilitar as condições para que os camponeses
pudessem alcançar uma solução jurídica a seu problema de posse precária da
terra (DE DIOS, 2010b)
Também se criou, em 2007, o Comitê de Emergência que tinha como ob-
jetivo a ação imediata diante as situações conflitivas, por exemplo, quando
supostos titulares de domínio avançam com escavadoras sob as possessões
dos camponeses; quando pretendem realizar trabalhos florestais sem consen-
timento; ou quando a polícia local não aceita as denúncias dos possuidores
(DE DIOS, 2010b)
Não obstante, até a atualidade, não se introduziram reformas legislativas
que reconheçam as formas de propriedade comunitária campesina e os indi-
cadores de territorialização próprios da sua forma de produção. Também não
se concretizou uma das históricas demandas das organizações, os julgamentos
de Direitos Reais e Ambientais para dirimir os conflitos de posses camponesa,
em uma instância distinta ao âmbito do direito civil clássico.
Diante dessa situação, as organizações camponesas têm desenvolvido es-
tratégias diferentes para obter o reconhecimento dos direitos à terra. Por um
lado, encontra-se aquelas que apelam para a autoidentificação da população
rural como indígena, de forma tal que podem se acolher aos benefícios da im-
plementação da lei 26.16013, e ao reconhecimento constitucional da proprieda-
de comunitária por parte do Estado, sem ter que chegar à instância dos juízos
de prescrição (Esta estratégia tem sido usual no MOCASE VC). Por outro lado,
outras organizações camponesas assumem que muitas famílias que não se au-
torreconhecem como indígenas, não têm outra possibilidade do que apelar
para uma efetiva defesa de seus direitos de posse, garantidos no Código Civil.

12. Integrada por representantes do Governo Nacional, pela chefatura de Gabinete da Província e pela própria
Mesa Provincial de Terras.
13. Em novembro de 2006, o Congresso da Nação sancionou a lei Nº 26.160, que tem como objeto principal
declarar a emergência em matéria de posse e propriedade comunitária indígena pelo termo de quatro
anos, suspender os despejos pelo prazo da emergência e dispor sobre a realização de um re-levantamento
cadastral da situação de domínio das terras ocupadas pelas comunidades indígenas. A lei foi regulamen-
tada pelo Decreto Nº 1122/07, que habilita ao Instituto Nacional de Assuntos Indígenas criar o “Programa
Nacional de Re-levantamento Territorial de Comunidades Indígenas. Em novembro de 2009, prorroga-se
o termo por mais quatros anos através da lei Nº 26.554.

A conflitualidade como produtora do futuro 83


Em suma, os conflitos por terra estão ainda latentes, gerando constante vio-
lência no campo devido à falta de soluções estruturais por parte de parte do
poder público. Isso ficou demonstrado em numerosos episódios de violências
locais. Entre os mais trágicos pode-se mencionar os falecimentos de Eli Juárez
(em março de 2010) e Crinstian Ferreira (em novembro de 2011)14. Neste cená-
rio, a falta de regularização e a desigualdade na posse de terra seguem estando
sem solução.
Por sua vez, o conceito de luta pela terra (McMICHAEL, 2008) alude à ape-
lação territorial da ação coletiva que envolve reivindicações que transcendem
a propriedade da terra (DOMINGUEZ, 2009). É dizer, um plexo de demandas
por exercer, obter, recuperar ou defender um conjunto de direitos humanos.
Apesar que, comumente, os discursos de muitas lideranças do movimento
circunscreverem suas demandas a questões estritamente gremial setorial, o
desafio sempre presente é inscrever sua luta na defesa de interesses coletivos
da sociedade, no seu conjunto.
Aquela ampliação dos sentidos da luta pela terra geralmente aparece em
algumas situações, por exemplo, quando os despejos e os desmantelamentos
são denunciados também como um problema ambiental que atinge a toda a
sociedade, como aconteceu no conflito ocorrido na área La Simona, em 1998.
Alí, as famílias camponesas resistiram às cavadoras e os povoadores decidiram
instalar barracos de lona preta, constituindo-se em um “[...] lugar simbólico de
resistência e de vigília permanente” (DE DIOS, 2010ª: 34).
Construídas com cartazes e lona de plástico preto, esses barracos improvi-
sados recolhiam a experiência da tenda branca dos docentes. A ideia de fundar
novas relações com a natureza implica a vontade de defender o meio ambiente
contra a concepção mercantilista dos bens naturais.
Quanto às relações de gênero, o ativismo de muitas mulheres das organiza-
ções camponesas confronta com a herança patriarcal enraizada há séculos na
província. Da mesma forma, as organizações camponesas tentam problemati-
zar os modos de intercâmbio e participação econômica, promovendo circuitos

14. Eli Juárez foi uma camponesa de San Nicolás (departamento Banda). Em dita comunidade havia-se freado
o avanço dos desmantelamentos através da autodefesa. Diante as cavadoras, a mulher sofreu uma des-
compensação e morreu. Em outro caso, acontecido no Departamento Copo, um jovem morreu dessan-
grado traz ser escopeteado por um dos guardas particulares dos produtores de soja da localidade. Cristian
Ferreyra estava na sua casa da área San Antonio esperando a reunião em que a comunidade devia debater
como se defender dos empresários e as milícias.

84 Territórios de esperança
alternativos baseados no cooperativismo e no valor justo. Isso traduz-se em
projetos em marcha como as feiras e fábricas de doces. Embora, ainda sejam
iniciativas muito pequenas e pontuais que necessitam ser consolidadas para
poder construir um modelo de desenvolvimento rural mais inclusivo.

Considerações finais

Em âmbito internacional, existe um conhecimento muito amplo das dinâ-


micas nas mudanças agrárias na região dos pampas argentino, onde a expan-
são inicial do capitalismo (século XIX) foi acompanhada pela regularização da
propriedade privada no espaço rural. Porém, esses processos não são extensí-
veis ao resto do país. Neste trabalho, focamos em uma província do noroeste
onde, o avanço da lógica mercantil coexiste, superpõe-se e disputa território
com uma vasta população indígena-camponesa que ocupa a terra de forma
precária, o qual é um problema de longa data (que tem suas raízes em épocas
coloniais) e historicamente desatendido pelo Estado.
Nessa região da Argentina profunda, a terra que outrora foi destinada à
produção de alimentos para a subsistência e ao mercado doméstico, nas úl-
timas três décadas foi orientada para a produção de soja de exportação. Do
mesmo modo, a mudança no uso da terra dá uma ideia sobre as modifica-
ções nas relações sociais entre os diferentes sujeitos agrários. Por exemplo,
enquanto a manufatura requeria muita mão de obra, impondo uma relação
servil no seu interior, atualmente a produção de soja em grande escala exige
menos mão de obra e instala uma relação de tipo capitalista com os trabalha-
dores rurais.
Em uma tentativa de reverter as relações de forças que caracterizaram his-
toricamente a estrutura agrária santiaguense, onde os despejos eram vividos
como uma situação privada, começou a se gestar, principalmente desde a
década de 1980, uma consciência coletiva sobre os direitos dos camponeses.
Nesse contexto, a posse precária de terra na província é um fator estrutural
que contribui para explicar o surgimento do MOCASE, em 1990, mas não é
o único. O surgimento deste sujeito político, por meio da construção de uma
identidade camponesa que é criada durante a luta pela terra, tem permiti-
do a incorporação de novas demandas que transcendem a regularização da
propriedade.

A conflitualidade como produtora do futuro 85


Embora existam alguns esforços por enquadrar a problemática dos despe-
jos e os desmantelamentos não como questão setorial, senão como uma pro-
blemática que afeta a sociedade no seu conjunto, o processo de fragmentação
entre as organizações camponesas mostrou dificuldades para superar as ações
defensivas e de denúncia de um modelo de desenvolvimento rural que exclui
e contamina.
Sem dúvida, a consolidação do MOCASE como movimento socioterritorial15
(Fernandes, 2005) que defenda, produza e reproduza o território camponês de-
penderá do desafio de aprofundar e ampliar as práticas produtivas e organiza-
tivas contra-hegemônicas, diferenciadas pelas relações sociais que desdobram
no seu interior, apelando ao controle mais equitativo e ao uso sustentável dos
recursos naturais.

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15. Desde a perspectiva de Mançano, os movimentos sociais estão sujeitos a distintos processo geográficos:
a desterritorialização, territorialização e re-territorialização. Neste sentido, o movimento camponês ter-
ritorializa-se, por exemplo, quando constroem-se os barracos preto (construídos com paus e lona preta)
no lugar do conflito como símbolo de resistência diante a ameaça de despejo (desterritorialização) ou
produzem a retomada dos acampamentos (re-territorialização) através da autodefesa.

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88 Territórios de esperança
Questão agrária no Brasil e Paraguai: resistências,
movimentos socioterritoriais e recriação da luta
pelo território
Lorena Izá Pereira1 • Camila Ferracini Origuéla 2

Introdução

À medida que o modo de produção capitalista se expande na agricultura,


os camponeses resistem construindo diferentes estratégias de enfren-
tamento. Historicamente, uma dessas estratégias de luta é a constituição de
movimentos socioterritoriais. Alguns surgem por uma causa específica e quan-
do a conquistam deixam de existir. São intitulados de movimentos isolados
(FERNANDES, 2005). Outros atuam apenas nas escalas local ou regional. Mas
existem aqueles que estão organizados em diferentes escalas e possuem uma
estrutura de atuação bem definida.
Os movimentos socioterritoriais que persistem renovam, de acordo com os
diferentes contextos produzidos pela expansão do capital, suas agendas de lu-
tas e estratégias de atuação. São socioterritoriais porque lutam pelo território,
e isso é fundamental para a sua existência. Trata-se, na verdade, de um trunfo
no processo de luta e resistência.
Atualmente, os movimentos camponeses atuam tanto na luta pelo acesso à
terra como na defesa dos seus territórios, questionando o modelo de desenvol-
vimento do agronegócio, possuindo caráter não só reivindicativo, mas também
propositivo. Tais ações correspondem às resistências desde baixo. Por isso, são

1. Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente.
Pesquisadora no The Land Matrix - Ponto Focal América Latina. Presidenta da Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB) (2020-2022)
2. Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Presidente Prudente.
Atualmente, é pesquisadora colaboradora do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais
(IPPRI) da Unesp e membro da Rede DATALUTA.

A conflitualidade como produtora do futuro 89


heterogêneas e nem sempre ocorrem de acordo com o avanço do agronegó-
cio (HALL, EDELMAN, BORRAS JR., SCOONES, WHITE e WOLFORD, 2015).
Algumas dessas ações podem ser chamadas de resistências ativas (MARTINS,
2017). Nesses casos, os movimentos socioterritoriais atuam na construção de
outro modelo de desenvolvimento da agricultura.
Considerando essa discussão, o objetivo deste artigo é analisar as resistên-
cias construídas por diferentes movimentos socioterritoriais no Brasil e Para-
guai. Isso a partir das resistências desde abaixo, que podem (ou não) serem
caracterizadas como ativas. Para isso, analisaram-se os casos do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil e da Federación Nacional
Campesina (FNC) e Coordinadora de Mujeres Trabajadoras Rulares e Indíge-
nas (CONAMURI), no Paraguai.
A escolha desses três movimentos socioterritoriais se deve ao fato de serem
bastante atuantes nas lutas e resistências camponesas nos países analisados.
O MST surgiu em 1984, mas as lutas que deram origem ao movimento tive-
ram início no final da década de 1970. São, portanto, quase quarenta anos de
lutas, conquistas e desafios. A FNC foi constituída em 1991, em um período
de transição democrática, como uma articulação de diferentes movimentos
socioterritoriais. Apesar da história recente, as lutas desse movimento, desde
a sua constituição, foram inspiradas nas Ligas Agrárias Cristianas (LACs), mo-
vimento socioterritorial criado no Paraguai, durante a década de 1970, e que
foi violentamente reprimido pela ditadura militar (1954-1989). A CONAMURI,
por sua vez, foi criado em 1998, em um momento de renovação da luta, agora
não mais apenas pela terra, mas pela permanência na terra, luta por um mo-
delo de desenvolvimento contra hegemônico. Esta transformação da luta pelo
território resulta em novas estratégias e reivindicações.
O Brasil e o Paraguai são países que possuem certa semelhança no que se
refere tanto à questão agrária como às resistências camponesas. Nos dois paí-
ses a questão agrária surge com o processo de formação dos seus respectivos
territórios, acentuando-se com a instauração da propriedade privada da terra.
No caso do Brasil, com a Lei de Terras de 1850, e, no Paraguai, com a Lei de
Venta de Terras Públicas de 1883 e 1885.
As lutas pelo acesso à terra são históricas nesses países, começando com
articulações camponesas locais, evoluindo com a constituição de diversos mo-
vimentos socioterritoriais. Na década de 1960, a modernização da agricultura
brasileira impactou significativamente a questão agrária paraguaia. Os cam-

90 Territórios de esperança
poneses desterritorializados pelo avanço do cultivo de trigo e soja, no Sul do
Brasil, migraram para o Paraguai, ocupando a Região Fronteiriça Oriental. Isso
gerou a desterritorialização dos camponeses paraguaios e a introdução do cul-
tivo da soja no país, na década de 1970.
Atualmente, ambos os países são importantes produtores de commodities,
com destaque para a soja. O Brasil é o segundo maior produtor do grão, com
112.000.000 de toneladas produzidas na safra 2017/2018 e ocupa o primeiro
lugar na exportação, com 69.000.000 de toneladas exportadas (USDA, 2018). Já
o Paraguai é o sexto maior produtor, 9.200.000 toneladas produzidas na safra
2017/2018, e terceiro maior exportador, com 5.800.000 toneladas de soja expor-
tadas3 (USDA, 2018). Ambos os países integram a regionalização que a Syngen-
ta, em 2003, intitulou de República Unida de la Soja4. Uma declaração explicita
de neocolonialismo (GRAIN, 2013) e que colocou o Brasil e Paraguai em uma
posição estratégica no comércio internacional. Este contexto tem modificado
a questão agrária no Brasil e no Paraguai, onde a resistência camponesa é o
principal obstáculo do agronegócio.

Resistências camponesas, desde o MST no Brasil

As lutas pelo acesso à terra, ou pela permanência nela, fazem parte da his-
tória da formação do campesinato brasileiro. Essas lutas foram e ainda são
fundamentais na constituição de movimentos socioterritoriais. São socioter-
ritoriais porque a sua existência está vinculada ao território (MARTÍN; FER-
NANDES, 2004), ou seja, o território é o seu trunfo, faz parte da sua existência
e resistência.
Entre 1888 e 1964, sobressaíram-se as lutas messiânicas, como a Guerra de
Canudos (1893-1897) e a Guerra do Contestado (1912-1916); as lutas espon-
tâneas, como a revolta de Trombas e Formoso (1950-1957); e as lutas organi-
zadas, como as Ligas Camponesas, o Movimento dos Agricultores Sem Terra
(MASTER) e a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (UL-
TAB) (MORISSAWA, 2001).

3. Apesar da amplitude da produção entre Brasil e Paraguai, devemos considerar as dimensões territoriais
dos dois países.
4. A regionalização é composta por porções do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, configurando-
-se em uma das mais importantes regiões produtoras de soja em todo o globo.

A conflitualidade como produtora do futuro 91


A partir de 1964, com a ditadura militar, os movimentos socioterritoriais
em ascensão foram duramente reprimidos. Contudo, em meados da década
de 1970, camponeses desterritorializados pela modernização da agricultura
deram início a um conjunto de lutas pelo acesso a terra, em diferentes estados.
É nesse contexto que começa a ser gestado o principal movimento de luta pela
terra e reforma agrária do país, o MST. A sua constituição representa a retoma-
da das lutas interrompidas pela ditadura militar (TARROW, 1994).
A formação, espacialização e territorialização do MST podem ser com-
preendidas a partir de três períodos distintos (FERNANDES, 2000). O primei-
ro corresponde à sua gestação entre os anos de 1978 e 1985. Nesse período
emergiram diversas lutas camponesas na região centro-sul do país, como a
ocupação das Glebas Macali e Brilhante, no Rio Grande do Sul; a ocupação da
Fazenda Burro Branco, em Santa Catarina; e a luta dos posseiros da Fazenda
Primavera, em São Paulo. A articulação dessas lutas ocorreu por intermédio
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), vinculada a setores progressistas da
Igreja Católica, e da Igreja Evangélica de Comissão Luterana do Brasil (CO-
LETTI, 2005).
Ao romper com o isolamento das lutas camponesas, a CPT contribuiu com
a organização de encontros regionais dos sem-terra, culminando no 1º Encon-
tro Nacional dos Sem Terra, em 1984. O encontro ocorreu no Centro Diocesano
de Formação do município de Cascavel-PR, com a presença de camponeses
representantes dos estados da Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso
do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia,
Santa Catarina e São Paulo (FERNANDES e STÉDILE, 1999). Foram definidas
as diretrizes políticas e as estruturas organizativas do Movimento. Adotou-se,
também, a ocupação como a principal estratégia de luta pela terra.
O segundo período ocorreu entre os anos de 1985 e 1990. Momento em
que o MST se estabeleceu nas outras regiões do país, além de construir uma
estrutura organizativa alicerçada em coordenação, direção e secretaria nacio-
nal, além dos setores de atuação. Nesse momento ascendem, no interior do
Movimento, discussões sobre a viabilidade econômica dos assentamentos ru-
rais, transformando a luta pela terra em disputas por crédito, infraestrutura,
políticas públicas. Isso porque a produção agropecuária era incipiente. Muitas
famílias abandonavam suas terras logo depois de as conquistarem, pois não
tinham condições de nelas se manterem.

92 Territórios de esperança
É nesse contexto que surge a ideia de cooperação agropecuária do Movi-
mento. Até esse momento, com a influência do trabalho pastoral, os campo-
neses assentados se organizavam em grupos coletivos ou associações infor-
mais. Alguns, inclusive, investiam na implantação de tecnologias alternativas
em seus lotes. Todavia, segundo o MST, a constituição de cooperativas de pro-
dução agropecuária, cooperativas de prestação de serviços e cooperativas de
crédito eram as maneiras mais eficazes de se romper com a pobreza nos as-
sentamentos rurais. Diferente do cooperativismo tradicional, as cooperativas
camponesas surgem como uma forma de resistência ao modo de produção
capitalista na agricultura (FABRINI, 2002).
O terceiro período se desenvolveu ao longo da década de 1990, caracteri-
zando-se pela institucionalização do MST. Esse foi um contexto de massifica-
ção das ocupações de terras, resultando na criação de um número expressivo
de assentamentos rurais em todas as regiões do país. Foi também um período
de repressão dos movimentos socioterritoriais, culminando em dois massa-
cres, o Massacre de Corumbiara, em Rondônia, e o Massacre de Eldorado dos
Carajás, no Pará. Concomitantemente a isso, aconteceu a criação de importan-
tes cooperativas vinculadas ao Movimento. Também houve a implantação de
cursos e institutos técnicos em diferentes regiões do país. Um exemplo disso é
o estado do Rio Grande do Sul, onde houve a criação do Curso de Magistério e
do Curso Técnico em Administração de Cooperativas (TAC), no Departamento
de Educação Rural da Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da
Região Celeiro, no município de Braga; e do Instituto Técnico de Capacitação
e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA), em Veranópolis.
Ainda hoje, o TAC e o ITERRA são importantes espaços de formação téc-
nica dos assentamentos gaúchos. Eles também recebem assentados de outros
estados interessados em aprimorar os conhecimentos sobre cooperativismo.
Ademais, em 1998, uma das principais demandas dos camponeses se tornou
uma política pública, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA).
Contudo, em meados da década de 1990, o cooperativismo agropecuário
do MST entrou em colapso. Isso porque, segundo Navarro (1998), a propos-
ta construída pelo Movimento representou uma espécie de ideologização da
produção, visto que as cooperativas deveriam ser inteiramente coletivizadas.
Além disso, era um modelo tecnológico da Revolução Verde, baseado na espe-
cialização produtiva, na agricultura intensiva em capital e no alto consumo de

A conflitualidade como produtora do futuro 93


insumos industriais. Um exemplo disso são os assentamentos rurais da região
Sul, onde 90,3% utilizavam adubo químico e 65% defensivos agrícolas (RIEDL
e NAVARRO, 1998).
Esse modelo resultou no endividamento das cooperativas e, consequente-
mente, dos camponeses assentados, que tentavam se tornar competitivos no
mercado capitalista, investindo em insumos agrícolas. Outra questão impor-
tante é que esse modelo não deixou espaços para outras propostas no âmbito
do Movimento (NAVARRO, 1998). Pode-se dizer que o cooperativismo agrope-
cuário adotado não levou em consideração o modo camponês de fazer agri-
cultura. Todavia, de acordo com Fabrini (2002), mesmo que as cooperativas
não apresentem resultados econômicos satisfatórios, são importantes formas
de organização dos assentados, instrumentos de ação coletiva e luta política.
A partir dos anos 2000, acrescenta-se aos três períodos apresentados um
quarto momento na história do MST, o de ascensão da agroecologia enquanto
alternativa econômica aos assentamentos rurais, seguida da recente proposta
política de reforma agrária popular. Num primeiro momento, a agroecologia
começou a ser desenvolvida em alguns assentamentos específicos, como re-
sultado da organização estadual dos assentados. E isso com a contribuição
das cooperativas existentes e das criadas a partir de então. Um caso bastante
conhecido é a produção de arroz agroecológico nos assentamentos rurais da
Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Os primeiros cultivos tiveram
início em 1999, ainda em caráter experimental. Atualmente, é uma das princi-
pais produções agroecológicas do Movimento no país.
Depois de várias experiências exitosas nesse sentido, a prioridade do Movi-
mento passou a ser a produção de alimentos saudáveis. Em 2014, ao comemo-
rar 30 anos de existência em seu sexto congresso nacional, o MST oficializou
essa proposta, por meio do que denomina como reforma agrária popular. Tal
programa engloba a democratização do acesso a terra e água, a organização da
produção de alimentos saudáveis, a organização da industrialização, o acesso
a políticas públicas, o desenvolvimento de infraestrutura dos assentamentos
rurais e o direito à educação do campo (MST, 2014).
Com o desenvolvimento da produção agroecológica, surgiu a necessidade
de comercializar esses produtos e, além disso, dialogar com a sociedade sobre
a importância da reforma agrária na produção desses alimentos. Nesse ínte-
rim, o Movimento começou a investir na organização de diferentes espaços de
comercialização de alimentos. Além das compras públicas de alimentos, por

94 Territórios de esperança
intermédio do PAA e PNAE, os assentados estão organizando lojas da reforma
agrária, feiras e cestas agroecológicas.
Atualmente, nas capitais dos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Mi-
nas Gerais o MST organiza as lojas da reforma agrária. Além dessas, em várias
regiões do país os assentados criaram as cestas agroecológicas com diversos
alimentos que são retirados pelos consumidores em lugares determinados
por ambos. Por fim, as feiras também são um importante espaço de venda de
alimentos. O MST as organiza em praticamente todos os estados do país. Na
cidade de São Paulo, desde 2015 acontece a Feira Nacional da Reforma Agrária.
A última edição contou com a participação de 1.215 assentados de 23 estados
mais o Distrito Federal, que comercializaram 420 toneladas de mais de 1.530
variedades de produtos. O total de consumidores foi de 260 mil (MST, 2018).
No caso do MST, as resistências podem ser analisadas em duas frentes dis-
tintas, mas que se complementam no espaço-tempo. A primeira se refere às
lutas pelo acesso à terra e a segunda às lutas pela permanência na terra. Em
ambos os casos as resistências são diversificadas, dependendo também da
conjuntura agrária do país. No caso da luta pela terra, o Movimento organiza
as seguintes ações: ocupações de terra e acampamentos. Nesses últimos anos,
as ocupações de terra ainda são uma importante forma de acesso a terra e (re)
criação do campesinato (FERNANDES, 2000).
Embora o número de ocupações de terra tenha diminuído, nesses últimos
anos, os acampamentos e as famílias acampadas não necessariamente. Isso
porque, na maioria das vezes, tais acampamentos são montados na beira da
estrada ou em áreas públicas, mas não na propriedade reivindicada pelos sem-
-terra. Quando isso acontece não é contabilizado como ocupação de terra, pois
esta só ocorre quando a área de uma propriedade é ocupada. Essa estratégia é
utilizada para evitar que as famílias acampadas sejam despejadas da fazenda
ocupada, por meio da reintegração de posse. Além disso, um único acampa-
mento pode ser responsável pela reivindicação de mais de uma propriedade.
As famílias acampadas também podem estar envolvidas em várias ocupações
de terras e manifestações, numa espécie de circuito de lutas (ORIGUÉLA,
2014). As recentes estratégias fazem parte da resistência dos movimentos so-
cioterritoriais na luta pelo acesso à terra.
Segundo os dados do Relatório DATALUTA Brasil (2017), entre os anos de
1988 e 2016 ocorreram 9.748 ocupações de terra com 1.342.430 famílias. Gran-
de parte dessas ações foi organizada pelo MST. Além dele, outros 136 movi-

A conflitualidade como produtora do futuro 95


mentos socioterritoriais atuaram desde os anos 2000 em ocupações de terra.
Outra ação importante, tanto na luta pela terra como na luta pela permanência
nela, é a manifestação. Estas podem ser de vários tipos como marchas, passea-
tas, bloqueio de rodovias, ocupações de prédios públicos. Entre 2000 e 2016
foram registradas 12.554 manifestações, com 7.049.073 pessoas envolvidas.
Como resultado dessas ações, entre 1979 e 2016, foram criados 9.444 assenta-
mentos rurais com 1.127.078 famílias assentadas.
A partir da implantação dos assentamentos rurais, novas resistências foram
construídas, agora nos territórios camponeses. No caso do MST, essas resis-
tências sempre foram coletivas, desde a criação das primeiras cooperativas,
passando pela formação dos assentados, até a ascensão da agroecologia. Di-
ferente do cooperativismo implantado pelo Movimento na década de 1990, a
estratégia atual, baseada na produção agroecológica, também cooperativista,
pode ser caracterizada como resistência ativa (MARTINS, 2017). Isso represen-
ta uma resistência propositiva, na qual os assentados não dependem do pacote
tecnológico do agronegócio.

Resistência camponesa desde a FNC e CONAMURI no Paraguai

As resistências camponesas no Paraguai têm se materializado como práti-


cas isoladas no espaço e tempo (KRETSCHMER, 2018). O mesmo ocorre com
a formação de movimentos socioterritoriais. Até meados da década de 1980,
as articulações camponesas foram bastante pontuais5, especialmente devi-
do à forte repressão do período ditatorial (1954-1989). O contexto político da
abertura democrática propiciou a formação de novos movimentos socioterri-
toriais e fortalecimento da luta e resistência (GALEANO, 1996 e 2011; KRETS-
CHMER, 2018).
Neste contexto surgem os principais movimentos socioterritoriais no país.
A Federación Nacional Campesina (FNC) foi fundada em 1991, com orientação
classista ortodoxa (GALEANO, 2003 e 2011), e como resultado de uma aliança
entre diversos movimentos socioterritoriais. No decorrer dos anos, tais movi-
mentos foram rompendo com a FNC por diferenças ideológicas, talvez devido

5. Com exceção das Ligas Agrarias Cristianas (LACS), movimento criado na década de 1960, perseguido e
brutalmente desarticulado pelo regime militar no ano de 1976 (TALESCA, 2004).

96 Territórios de esperança
ao seu caráter vertical6 (MORA, 2006). O principal objetivo da FNC é a luta
contra o latifúndio. Isso explica o fato de ocupar apenas propriedades maiores
de 3.000 hectares (DELGADO, 2012), pois reconhece que a reforma agrária é
um requisito para romper com a dependência do Paraguai.
As estratégias de atuação e a pauta de luta da FNC diversificaram-se timi-
damente com o avanço do agronegócio no Paraguai. De acordo com Delgado
(2012), entre 1991 e 2010, a FNC havia ocupado cerca de 190.000 hectares de
terras improdutivas, reunindo 14.000 famílias, totalizando 60.000 pessoas. Em
âmbito nacional, a partir de 2003, devido ao avanço indiscriminado de orga-
nismos geneticamente modificados e agroquímicos no Paraguai, observa-se
uma mudança no direcionamento da luta e as ações dos movimentos socio-
territoriais7.
A luta agora não é apenas pela terra, mas contra o modelo agroextrativista
da soja, que implementa a desigualdade social, a concentração de terras e a
violência que o campesinato está exposto cada vez mais e “[...] ante las ma-
sivas fumigaciones, se registran nuevas formas de resistencia campesina que
aglutinan comunidades en defensa de sus mundos de vida y resistencia a su
expulsión” (KRETSCHMER, 2018, p. 119). Neste sentido, desde o ano de 2013,
a FNC tem orientado suas ações para barrar as pulverizações de agroquímicos
em comunidades camponesas realizadas por parte de latifundiários sojiculto-
res, sobretudo brasileiros.
Apesar da criminalização, as ocupações de terra e manifestações ainda são
as principais estratégias de luta da FNC. Ademais das rupturas no decorrer da
sua história, ela possuiu diversas ações conjuntas com variados movimentos
socioterritoriais, com um grande poder de articulação e mobilização enorme.
Palau, Irala e Coronel (2017) afirmam que atualmente a federação é integra-
da por 20.000 famílias nos departamentos de Caaguazú, Caazapá, Canindeyú,
Central, Concepción, Guairá, Itapúa, Paraguarí e San Pedro.

6. A Federación Nacional Campesina foi o primeiro movimento a se fragmentar pelo fato da inserção de
partidos políticos no interior da organização ainda em 1998. Há críticas em relação à FNC, sobretudo por-
que alguns dirigentes desta Federação fundaram, no ano de 1999, em conjunto com outros movimentos
sindicais, o partido político de base marxista e leninista Partido Paraguay Pyahura (PPPR) (DELGADO,
2012; TORALES, 2016). A constituição de tal partido aumentou as divergências ideológicas e táticas entre
os movimentos socioterritoriais paraguaios, desarticulando a luta pela reforma agrária
7. Este redirecionamento foi causado, em parte, pela morte do filho de uma dirigente do CONAMURI por
intoxicação, devido fumigações, o que trouxe na pauta os impactos da soja transgênica e agroquímicos no
país (PALAU e KRETSCHMER, 2004).

A conflitualidade como produtora do futuro 97


No que tange a sua organização, a FNC é formada por um comitê executivo
distrital, sustentado por um grupo de seguidores, que seleciona representan-
tes para o conselho executivo departamental, que elege um comitê executivo
nacional, que realizada a cada dois anos o Congreso Nacional Campesino, que
possuí um caráter consultivo e deliberativo, que tem como objetivo delinear as
políticas de ação e eleger os líderes da federação (MORA, 2006).
Além das ocupações e manifestações, anualmente a FNC realiza a Marcha
del Campesinado Pobre, que em 2018 completou sua vigésima quinta edi-
ção, mobilizando 8.000 pessoas na capital paraguaia, reivindicando a refor-
ma agrária e a renúncia do então atual presidente do Paraguai Horácio Car-
tes (ago/2013-ago/2015). Nesta marcha a FNC mobilizou outros movimentos
socioterritoriais, acadêmicos e a população urbana na luta contra o modelo
desenvolvimento do agronegócio, tornando-se a principal ação da luta pela
terra no Paraguai. Ademais, a FNC possui outras pautas reivindicativas, como
produção, acesso a mercado, saúde e educação, contudo, são bastante pon-
tuais. A maior pauta do movimento continua sendo o acesso à terra, por meio
de ocupações. A Federação não compõe a Via Campesina.
Neste movimento de ascensão de novas estratégias e pautas de luta que a
Coordinadora de Mujeres Trabajadoras Rulares e Indígenas (CONAMURI) foi
constituída, em 1998. De acordo com Perla Alvarez8, líder e dirigente da CO-
NAMURI, o movimento foi criado com dois objetivos: inserção das mulheres
no cenário político e nas tomadas de decisões e luta pela soberania alimentar,
a principal bandeira do movimento, pois produção agroecológica é uma ferra-
menta política de protesto (AMARILLA, 2017).
O movimento utiliza o resgate de práticas produtivas ancestrais, preser-
vação de sementes crioulas e a luta contra sementes transgênicas, produtos
agroquímicos e as transnacionais que impõe o regime alimentar corporativo
no país, sobretudo a Monsanto. Atualmente a CONAMURI está territorializado
em dez departamentos do Paraguai.
As estratégias de luta da CONAMURI, além das manifestações, são eventos
(seminários, congressos e jornadas) e feiras agroecológicas em prol da sobe-
rania alimentar do povo paraguaio. A CONAMURI realiza manifestações em
cidades que apresentam visibilidade, como Asunción e capitais dos departa-

8. Perla Alvarez autorizou a entrevista e a divulgação do seu nome. A entrevista foi realizada pela pesquisa-
dora em dezembro de 2015 na sede do CONAMURI, em Asunción.

98 Territórios de esperança
mentos, reivindicando a soberania alimentar e contra os agroquímicos. É in-
teressante destacar que as atividades da CONAMURI, tanto individuais quan-
to conjuntas, são realizadas, majoritariamente, em praças públicas. Quando
questionada sobre a localização das ações, a dirigente do movimento nos rela-
tou que o objetivo das ações do movimento é agregar o maior número possível
de indivíduos e mobilizar a sociedade civil para o debate sobre a soberania
alimentar, partindo do princípio de que o acesso ao alimento saudável é direito
de todos. Todas estas ações são de extrema importância e dão voz à bandeira
de luta pela soberania alimentar.
Em muitas de suas ações, o CONAMURI atua em conjunto com a Orga-
nización de Lucha por la Tierra (OLT), especialmente na criação do Instituto
Agroecológico Latino Americano Guaraní (IALA GUARANÍ), criado em 2011
no Paraguai. De acordo com entrevista realizada com Perla Alvarez, o Insti-
tuto Agroecológico Latino Americano Guaraní está vinculado aos objetivos
da CLOC e da Via Campesina da América do Sul. É uma entidade científica,
humanística e democrática que defende os princípios da soberania alimen-
tar, proteção e multiplicação das sementes nativas, valorização da agricultura
campesina e preservação do meio ambiente.
A CONAMURI parte do entendimento de que os espaços pedagógicos em
agroecologia são resistências que formam novas resistências a médio e lon-
go prazo, pois “[...] son formas de garantizar también un futuro a partir de la
apuesta que significa formar la conciencia de la juventud, abrirles los ojos res-
pecto a la relación que existe entre los cultivos transgénicos que avanzan en el
campo y la proliferación de enfermedades en la comunidad, la relación entre
los desalojos en los asentamientos y el agronegocio” (AMARILLA, 2017, p. 12).
Durante a I Jornada de Agroecología – Agroecología: un proyecto de vida,
lucha y resistência, em 2015, o IALA Guaraní formou sua primeira turma. Dife-
rentemente da FNC, a CONAMURI não realiza ocupações de terra. Em entre-
vista em 2015 nos foi relatado a pouca experiência do movimento nesta estra-
tégia de luta, ao mesmo tempo o interesse por parte da CONAMURI em efetivar
este tipo de ação. Inclusive no momento da entrevista estava sendo realizada
uma oficina sobre ocupações, na qual o Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST) do Brasil era um parceiro. Porém, até o momento o movimento
não avançou nesta ação de resistência.
A resistência do campesinato paraguaio envolve a tradição e a inovação.
A análise das estratégias de luta da FNC e CONAMURI evidenciam isso. En-

A conflitualidade como produtora do futuro 99


quanto a FNC, movimento com maior poder de mobilização no Paraguai atua
historicamente por meio de ocupações de terra e manifestações, a CONAMURI
possui uma proposta de luta pelo território pela soberania alimentar, com a
utilização de novas estratégias, cujo intuito é a construção do território ima-
terial, mostrando para a sociedade civil paraguaia a importância da soberania
alimentar. A FNC e CONAMURI mostram como as resistências desde abaixo
são diversas, mesmo quando a luta é a mesma: contra o agronegócio e pelo
acesso ao território.

Considerações finais

Em um contexto de mudanças geopolíticas globais e convergência de múl-


tiplas crises – alimentar, ambiental, climática, energética e financeira –, é pos-
sível reproduzir a frase de Eduardo Galeano (2010, p. 10) “[...] passaram-se os
séculos e a América Latina aprimorou suas funções”. Observa-se no subconti-
nente o avanço do agronegócio, especialmente estrangeiro, caracterizado pelo
agroextrativismo9, cujo objetivo é o controle dos recursos naturais para atender
a demanda externa e garantir a acumulação do capital.
A América Latina apresenta singularidades, tais como as diferentes territo-
rialidades do agronegócio, importante presença do capital regional por meio
das translatinas e variadas formas de resistências frente a este modelo de de-
senvolvimento hegemônico.
Ademais, a América Latina viveu uma onda de governos pós-neoliberais
ou marea rosa (EZQUERRO-CAÑETE e FOGEL, 2018), ou seja, promoveu con-
comitantemente políticas neoliberais, programas e políticas de cunho sociais,
contudo não alterou a estrutura do sistema. Ambos os países aqui analisados
passaram por processos de impeachment: Fernando Lugo (Partido Frente Gua-
sú), em 2012; e Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores) em 2016. O golpe,
nos dois casos, teve uma participação direta do agronegócio. Após, observa-
mos um avanço do agronegócio com o apoio direto do Estado, mediante de
políticas públicas e legislações, que beneficiam o agronegócio e criminalizam
a luta camponesa no Brasil e no Paraguai.

9. Corresponde a agricultura orientada para o monocultivo, geralmente com alto grau de tecnificação, mas
com pouco ou nenhum processamento e com destino a exportação (GUDYNAS, 2009).

100 Territórios de esperança


Os três movimentos socioterritoriais analisados apresentam algumas dife-
renças. Dentre elas se destacam o fato de a FNC atuar com maior ênfase na luta
contra o latifúndio, enquanto a CONAMURI e o MST possuem uma agenda
de lutas mais ampla. Logo, diferentes desses dois movimentos que recriam as
suas resistências de acordo com os contextos de avanço do capital no campo,
as ações da FNC se concentram nas lutas contra a concentração da proprie-
dade da terra. A Federação, em suas ações, não tem buscado um diálogo com
o Estado10. Pode-se afirmar que ela é um movimento de caráter mais reivin-
dicativo, enquanto que CONAMURI e o MST são tanto reivindicativos como
propositivos. Com relação às semelhanças, os três movimentos conseguem
mobilizar uma grande quantidade de camponeses, com um grande poder de
articulação. Possuem como principal estratégia de luta pela terra a ocupação e
a manifestação. A a pauta a pauta que os une é a luta contra o latifúndio e pela
reforma agrária.

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10. Durante o processo eleitoral de Fernando Lugo (Partido Frente Guasú), a FNC não apoiou o candidato,
enquanto outros movimentos realizaram alianças. A postura da FNC em relação a eleição presidencial
de 2008 possibilitou o fortalecimento do movimento. Dirigentes daqueles movimentos que apoiaram a
candidatura de Lugo passaram a ocupar cargos públicos em seu governo, isso desestabilizou a luta destes
movimentos. Já a FNC foi o único movimento socioterritorial que se manteve articulado (Entrevista com
Quintín Riquelme, mai. 2018).

A conflitualidade como produtora do futuro 101


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A conflitualidade como produtora do futuro 103


Conflitos socioterritoriais na região do Bico do
Papagaio: reflexões e possibilidades de construção de
uma teoria dos conflitos na geografia
Patrícia Rocha Chaves

Introdução

E ste texto é um estudo sobre a região do Bico do Papagaio, a respeito de


seus inúmeros conflitos e os mais variados sujeitos que a luta pela terra
e território já configurou neste momento histórico, como demostramos nesta
pesquisa.
Parte-se da premissa de que o conflito social nesta região é resultado das
políticas de ocupação capitalista, e da concentração dos recursos nas mãos de
determinadas classes sociais, ou seja, do processo de produção e reprodução
ampliada do capital. A região é, dessa forma, fundamento histórico da luta de
classes antagônicas pelo território ou pela terra. Classes sociais que possuem
lógicas de apropriação do território opostas. Essa luta de classes na maioria das
vezes é travada entre as várias frações do campesinato e os grandes proprie-
tários de terra. Estes, podem ser fazendeiros e latifundiários ou empresas de
várias modalidades. Dentro do contexto da luta pelo território também estão
os povos indígenas e quilombolas.
Cada um desses sujeitos constrói suas estratégias de permanência ou de
conquista da terra e/ou do território. Os camponeses e indígenas, por serem as
principais vítimas da expropriação e do desapossamento na região, no momen-
to da resistência, entram em confronto com a classe dos grandes proprietários,
sofrendo uma série de violências. A Comissão Pastoral da Terra há mais de trin-
ta anos acompanha o campesinato e os povos indígenas nesses processos.
Há trinta e um anos, começou-se a publicar os registros de conflitos no
campo. Esses registros mostram, até certo ponto, o avanço e o retrocesso da
luta pela terra entre as classes e sociedades antagônicas. Com base nessa dis-

A conflitualidade como produtora do futuro 105


cussão, nosso objetivo foi compreender como se deram as situações de con-
flitos entre elas durante esse período nessa região, por meio dos registros de
conflitos no campo de 1985 a 2014.
Dessa forma, buscamos mobilizar recursos que nos auxiliasse na reflexão
acerca da síntese contraditória da relação entre as classes envolvidas e a atua-
ção do Estado. Surgiu a necessidade de delimitar os municípios que foram par-
te do objeto da investigação. Este foi então nosso primeiro desafio. Sader (1986)
demonstrou a espacialização e territorialização das economias e políticas de
estado que desencadearam os conflitos no campo nessa região, no início dos
anos 80.
Sua constatação foi a de que não eram presentes apenas na região do Bico
do Papagaio – Goiás – hoje Tocantins – mas se estendiam às fronteiras entre
os estados do Maranhão e Pará. Nosso principal questionamento foi: Qual o
limite socioespacial e socioterritorial dos conflitos no Bico do Papagaio?
Para análise inicial, foram selecionados os municípios dos três Estados a
partir das divisões, mesorregiões e microrregiões do IBGE – Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, ano de 2002. São regiões do IBGE que constituem a
fronteira entre os três Estados. O resultado foi a análise e o mapeamento dos
conflitos e sujeitos sociais de 111 municípios; os conflitos por terra, conflitos
trabalhistas, conflitos por água e violência contra a pessoa vivenciados por es-
ses camponeses, indígenas e quilombolas.
Na impossibilidade de realizar trabalho de campo contemplando todos os
municípios, tivemos que construir critérios que auxiliassem na seleção dos
municípios passíveis de realização dessa etapa do trabalho.
Então, optamos por fazê-lo onde houvesse o maior número de famílias en-
volvidas nos conflitos e onde houvesse registros recentes de violências e as-
sassinatos.
Um dos critérios foi escolher conflitos que apresentassem, no mínimo, 200
famílias envolvidas nos últimos quatro anos (2011, 2012, 2013 e 2014). Nossa
compreensão geográfica dos conflitos no campo nos levou a construção de
dois conceitos que podem auxiliar na reflexão do processo e essência dos con-
frontos ocorridos no campo brasileiro. Denominamo-os, portanto, conflitos
sociespaciais e conflitos socioterritoriais, no intuito de contribuir para a teoria
sobre esse assunto e na construção de uma geografia das lutas camponesas.

106 Territórios de esperança


Conflitos sociais e violência no campo: o corpus teórico

“Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

“É preciso que a sociedade civil acorde, desperte. Que as consciências gri-


tem. Diz-se que a consciência é muda. Pois convêm que a consciência não
seja muda, grite”. (José Saramago)

Ambas as mensagens foram proferidas por José Saramago. A primeira, em


seu Ensaio sobre a Cegueira, e a segunda em seu veredito no Tribunal Interna-
cional, no julgamento dos massacres de Eldorado dos Carajás e Corumbiara.
Podem ser vistas como uma invocação à sociedade e à necessidade de trans-
formação da consciência, em vista da situação de barbárie que os povos que
habitam o campo brasileiro sofrem, na atualidade, e, de todo modo, em sua
constituição histórica.
Também convém citar um termo utilizado no primeiro Caderno de Confli-
tos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado no ano de 1985.
“Pálida imagem” é como a CPT definiu o levantamento dos conflitos nesse
mesmo período, em seu primeiro ano de publicação.
Então se pode afirmar que ainda que haja esforços de instituições e mo-
vimentos para registrar e denunciar a violência contra esta grande fração da
sociedade brasileira, não se consegue descrever de fato o número exato das
situações de violência e conflitos ocorridos nas várias partes do Brasil.
Ainda assim, em virtude de ações de entidades como a Comissão Pastoral
da Terra e suas inciativas, torna-se possível construirmos observações sobre os
processos de violência no campo, sobre a resistência camponesa e suas formas
de combater o capitalismo rentista, a grilagem de terras, as variadas formas em
que o monopólio se instala no Brasil e a incessante luta pela socialização dos
recursos ou pela renda territorial.
Desta feita, são trinta e dois anos de levantamentos documentais, de regis-
tros e enfrentamentos perante o latifúndio. Eles nos dão a possibilidade, até
certo ponto, de constatar o panorama, e, ainda assim, “pálida imagem” – apesar
de pálida suficiente para demonstrar a dimensão da questão agrária no Brasil e
das lutas de classes no campo brasileiro. Constitui-se também a possibilidade
de uma contribuição teórico/metodológica/política para a construção de uma
“geografia do povo”.

A conflitualidade como produtora do futuro 107


Na perspectiva de Oliveira (1998), deve-se cunhar uma geografia das lutas
no campo, uma geografia de denúncia, ou uma geografia radical que possibili-
te a orientação da construção de uma sociedade menos desigual. E, para tanto,
é necessário partir da premissa que nos coloca diante do desafio de pensar as
contradições do modelo de desenvolvimento instalado por todo mundo. Ape-
nas o olhar sobre a contradição pode sugerir indagações e respostas que nos
aproximem do mundo real.

[...] o horizonte do campo no Brasil é contraditório na essência, é nessa con-


tradição, ou no conjunto de contradições que se deve desenvolver a compreensão
dessa realidade. Essa contribuição passa seguramente pela distribuição territorial
desigual dessas contradições e movimentos. Talvez aí esteja o espaço para a partici-
pação dos geógrafos e da geografia. Estudar o desenvolvimento econômico, social e
político da sociedade em que se inserem. (OLIVEIRA, 1994, p.18)

Isso significa estudar os marcadores sociais, as concepções que trafegam


pelas ideologias acerca do desenvolvimento e do progresso do país, instalados
pelas alianças de classes, por meio dos papéis sociais que estas alianças exer-
cem na construção de disputas pela apropriação do espaço e pela produção do
território. Estas questões marcam profundamente o debate sobre o passado,
o presente e o futuro da estrutura fundiária, no Brasil, e se estabelecem como
lócus teórico-político do discurso sobre o lugar das populações camponesas na
atualidade e seu devir. Como pode ser observado nos gráficos 01 e 02.
Neles, dois processos merecem destaque: o crescimento simultâneo dos
grandes e dos pequenos estabelecimentos. Esses dois processos contrariam
a tese amplamente divulgada no mundo da política e da academia de que a
expropriação das pequenas unidades seria o processo dominante no país.
Aqui, portanto, reside o ponto central da estrutura fundiária concentra-
da do Brasil: a luta histórica dos camponeses pela conquista da terra. Con-
sequentemente, a raiz fundante dos conflitos no campo. Soma-se à luta dos
camponeses pela terra, a luta dos povos quilombolas e indígenas pelo territó-
rio. Desenha-se, assim, nessa região, a essência dos conflitos como processo
constitutivo da região, e, com ela a possibilidade de se construir uma teoria
dos conflitos na geografia agrária. Esse processo gerador dos conflitos está, em
termos gerais, expresso no gráfico 03.

108 Territórios de esperança


Gráfico 01: Brasil: estrutura fundiária – número de estabelecimentos (1950 a 2006)

Fonte: IBGE (2006)

Gráfico 02: Brasil: estrutura fundiária – área ocupada (1950 a 2006)

Fonte: IBGE (2006)

A conflitualidade como produtora do futuro 109


Gráfico 03: Brasil: ocorrências de conflito no campo1 (1985 a 2014)

Fonte: Caderno de Conflitos no Campo 1985 a 2014 e Centro de Documentações Dom Tomás Balduíno, CPT
Comissão Pastoral da Terra. Elaboração: Patrícia Rocha Chaves.

Antes da análise do gráfico 03, é necessário estabelecer o marco concei-


tual referente aos dados propostos pelo Centro de Documentação Dom Tomás
Balduíno da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Nesta pesquisa serão adotadas
como base as concepções expostas pela CPT, associadas com os ajustes teó-
ricos, colocados entre colchetes, assumidos em nosso. Assim, será mantida a
base proposta pela Comissão com as alterações conceituais julgadas pertinen-
tes. O primeiro e principal conceito é o de conflitos, que será concebido como:

Conflitos são as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em dife-


rentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra [e território],
água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem
entre [sociedades diferentes,] classes sociais, entre os [sujeitos sociais em luta] ou
por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas. (CPT, 2015, p.13) (sem
correspondência integral com o original)

Os dados registrados pela CPT “[...] são catalogados por situações de dispu-
tas em conflitos por terra, conflitos pela água, conflitos trabalhistas, conflitos

1. Os dados de Amazônia Legal incluem o total do estado do Maranhão.

110 Territórios de esperança


em tempos de seca, conflitos em áreas de garimpo, e em anos anteriores foram
registrados conflitos sindicais.” (CPT, 2015, p.13)
Os conflitos por terra ocupam posição de destaque entre os dados catalo-
gados e são concebidos como:

Conflitos por Terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e
propriedade da terra e pelo acesso aos recursos naturais, tais como: seringais, baba-
çuais ou castanhais, dentre outros (que garantam o direito ao extrativismo), quando
envolvem [camponeses posseiros também denominados de ocupantes; campone-
ses proprietários incluindo os camponeses assentados e pequenos camponeses,
camponeses rentistas ou parceiros; camponeses sem terra; camponeses geraizeiros,
camponeses ribeirinhos e ou pescadores; camponeses seringueiros, camponeses
castanheiros, camponeses de fundo de pasto, camponesas quebradeiras de coco ba-
baçu, camponeses faxinalenses], e, os quilombolas e os povos indígenas, etc. (CPT,
2015, p.13) (sem correspondência integral com o original)

Como é possível verificar, não se adota, nesta pesquisa, a concepção assu-


mida pela CPT de comunidade tradicionais, em decorrência de sua formulação
nos termos das ações ideológicas do neoliberalismo em eliminar as diferenças
reais e teóricas entre os diferentes campesinatos e as sociedades indígenas e
quilombolas. Porém, mantém-se concordância com aqueles/as que utilizam
esta noção como instrumento de luta teórica e política em decorrência de sua
presença na Resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.
As ocupações e retomadas, e os acampamentos, são considerados, segun-
do a classificação da CPT, como conflitos por terra. Dessa forma, ocupações e
retomadas são:

Ocupações são ações coletivas das famílias [em geral de camponeses] sem-terra,
que por meio da entrada em imóveis rurais, reivindicam terras que não cumprem
a função social. [Retomadas] são ações coletivas de indígenas e quilombolas que
reconquistam seus territórios, diante da demora do Estado no processo de demar-
cação das áreas que lhe são asseguradas por direito [constitucional]. (CPT, 2015,
p.13) (sem correspondência integral com o original)

Por sua vez, os acampamentos são:

A conflitualidade como produtora do futuro 111


Acampamentos são espaços de luta e formação, fruto de ações coletivas, locali-
zados no campo ou na cidade, onde as famílias [em geral de camponeses sem terras]
organizadas reivindicam assentamentos. Em nossa pesquisa registra-se somente o
ato de acampar. (CPT, 2015, p.13) (sem correspondência integral com o original)

Assim, além dos conflitos por terra, ocupações e retomadas formam o cor-
pus teórico dos levantamentos de dados da CPT: os conflitos trabalhistas, tra-
balho escravo, superexploração, conflitos pela água, conflitos em tempos de
seca, conflitos em área de garimpo e conflitos sindicais. O aporte teórico destes
conceitos está assim construído pela Comissão e alterado pela autora desta
pesquisa:

Conflitos Trabalhistas compreendem os casos em que a relação trabalho X ca-


pital indicam a existência de trabalho escravo, superexploração.
Na compreensão do que é Trabalho Escravo, a CPT segue o definido pelo ar-
tigo 149, do Código Penal Brasileiro, atualizado pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003,
que o caracteriza por submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva,
ou por sujeitá-lo a condições degradantes de trabalho, ou quando se restringe, por
qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto, ou quando se cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho ou quando se mantém vigilân-
cia ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais
do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
As situações de superexploração acontecem na esfera salarial e dizem respeito
às ocorrências em que as horas de trabalho não pagas, excedem a taxa normal de
exploração do trabalho. Geralmente estes casos estão ligados a precárias condições
de trabalho e moradia.
Conflitos pela água são ações de resistência, em geral coletivas, que visam ga-
rantir o uso e a preservação das águas; contra a apropriação privada dos recursos
hídricos, contra a cobrança do uso da água no campo, e de luta contra a construção
de barragens e açudes. Este último envolve os [camponeses, trabalhadores assala-
riados, povos indígenas ou quilombolas que foram] atingidos por obras públicas
ou privadas, como por exemplo, barragens, rodovias ferrovias etc, que lutam pelo
direito as suas terras e/ou seus territórios, do qual são expropriados.

112 Territórios de esperança


Conflitos em Tempos de Seca são ações coletivas que acontecem em áreas de
estiagem prolongada e reivindicam condições básicas de sobrevivência e ou políti-
cas de convivência com o Semiárido.
Conflitos em Áreas de Garimpo são ações de enfrentamento entre garimpeiros,
empresas e o Estado.
Conflitos Sindicais são ações de enfrentamento que buscam garantir o acompa-
nhamento e a solidariedade do sindicato aos trabalhadores, contra as intervenções,
as pressões de grupos externos, ameaças e perseguições aos dirigentes e filiados.
(CPT, 201 p.13 e 14) (sem correspondência integral com o original)

Por fim, entre os conceitos presentes no levantamento de dados da CPT


utilizados nesta pesquisa estão os conceitos de manifestações e de violência.
Eles também foram parcialmente alterados.

Além disso, são registradas as manifestações de luta e as diversas formas de vio-


lência praticadas contra [os camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhado-
ras assalariados, povos indígenas e quilombolas, tais como:] assassinatos, tentativas
de assassinato, ameaças de morte, prisões e outras.
Por Violência entende-se o constrangimento e/ou a destruição física ou moral
exercidos sobre [os camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras, indí-
genas e quilombolas,] e seus aliados. Esta violência está relacionada aos diferentes
tipos de conflitos registrados e às manifestações dos movimentos sociais do campo.
(CPT, 2015, p.14) (sem correspondência integral com o original)

Esse conjunto de conceitos sobre conflitos e violência forma o corpus teó-


rico que será utilizado na interpretação dos dados sobre conflitos no campo,
levantados pela CPT, evidentemente, articulados com as transformações ocor-
ridas na estrutura agrária nacional. Inicialmente apresentamos os dados totais
destes conflitos entre 1985 e 2014.
De um modo geral, os conflitos no campo no Brasil, neste período históri-
co, apresentam tendências dominantemente crescentes. Em 1985, foram 712
conflitos totais no Brasil, dos quais 252 ocorreram na Amazônia Legal, ou seja,
mais de um terço, o equivalente a 35,4% dos conflitos no campo no país. Na
região do Bico do Papagaio, foram 73, o equivalente a 10,6% dos confrontos do
país, 30% dos conflitos da Amazônia Legal e 45,1% do total dos embates dos
estados: Pará, Maranhão e Tocantins.

A conflitualidade como produtora do futuro 113


Cabe destacar que, em 1985, foi o ano de início do processo de redemocra-
tização do país, após mais de 20 anos de ditadura civil militar. Coincidente-
mente/Justamente nesse momento de lançamento do I Plano Nacional de Re-
forma Agrária, no governo Sarney, o segundo ano da formação do Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), sigla que depois foi alterada para MST,
ocorreu também a primeira fundação da União Democrática Ruralista (UDR),
liderada pelo deputado federal de Goiás, Ronaldo Caiado, e a aprovação da
Constituição de 1988. Delineiam-se os novos componentes das lutas de classe.
O número elevado de conflitos, até 1988, refere-se aos enfrentamentos en-
tre ruralistas e os camponeses posseiros e sem-terra. No gráfico 03, pode ser
constatado, também, que enquanto, em termos de Brasil, até o ano de 1988, a
tendência apresentou um leve declínio, na do Bico do Papagaio houve eleva-
ção das ocorrências dos conflitos de forma significativa.
No Brasil, o número foi de 680 conflitos; na Amazônia Legal, 262; e nos es-
tados do Pará, Maranhão e Tocantins, 142. Já a região do Bico do Papagaio, que
havia também apresentado queda para 58 conflitos, nos anos de 1986 e 1987,
registrou 92 confrontos no campo, em 1988; 106, em 1989; e 125, em 1990. Os
dados de 1988, da região do Bico do Papagaio, representaram 13,5% do total
do Brasil;35,1% da Amazônia Legal; e 64,8% dos três Estados: Pará, Maranhão
e Tocantins. Quanto ao ano de 1990, que trouxe o número mais elevado de
conflitos, neste início da série histórica da CPT na região do Bico do Papagaio,
representou 27,9% do total do Brasil; 65,4% da Amazônia Legal; e 91,9% dos
três Estados: Pará, Maranhão e Tocantins.
Assim, a região do Bico do Papagaio consolidou-se enquanto região de
conflitos, inicialmente no período da ditadura, em decorrência do processo de
luta pela terra dos camponeses e pelos territórios dos quilombolas e indígenas,
como pudemos constatar.
No início dos anos 1990, ocorreu um leve descenso, equiparando-se ao rit-
mo de todo Brasil. Isto ocorreu em 1992, durante o governo Collor/Itamar. No
entanto, a tendência foi de elevação do número de conflitos. Esse período teve
seu maior pico em 1996, e, apesar da queda um tanto significativa em 1997,
nos anos seguintes voltaram a se agigantar. Isto ocorreu nas duas gestões do
governo FHC, quando aconteceram, no país, os massacres de Corumbiara, em
1995, em Rondônia; e o de Eldorado dos Carajás, em 1996, no estado do Pará e
região do Bico do Papagaio.

114 Territórios de esperança


Neste ano de 1996, na região do Bico do Papagaio ocorreram 183 confli-
tos, representando 24,4% do total do Brasil;71,5% da Amazônia Legal; e 85,1%
dos estados do Pará, Maranhão e Tocantins. Depois, no final dos anos 1999 e
início de 2000, ocorreu descenso do número de conflitos em decorrência das
políticas do governo FHC, no qual foi aprovada a Medida Provisória 2.183-56,
de 24 de agosto de 2001, criminalizando os movimentos sociais e famílias que
ocupassem terras.
Nos anos seguintes, houve o aumento gradativo dos conflitos em nível de
Brasil, particularmente entre 2003 e 2007, durante o primeiro mandato do go-
verno Lula e do II Plano Nacional de Reforma Agrária. Na verdade, 2005 repre-
senta o ano em que houve mais ocorrências de conflitos desde que se começou
a publicar os dados. A partir daí, ocorreu uma queda, em 2010, com aumento
nos dois anos seguintes, 2011 e 2012; no ano 2013, uma pequena queda; e novo
aumento em 2014, em nível de Brasil.
Em relação ao Bico do Papagaio, os anos que mais apresentaram conflitos
foram 2003, 2005 e 2007. A diferença do número de ocorrências nesses anos foi
mínima: 399 conflitos, em 2003; 412, em 2005; e 406, em 2007. Dessa forma, a
representatividade da região do Bico do Papagaio passou a ser a seguinte: no
Brasil, ano de 2003, foram 1.690 conflitos; Amazônia Legal, 895; Pará, Mara-
nhão e Tocantins, 522. Ou seja, a região do Bico do Papagaio, em relação a essas
escalas, representou 23,6%, 44,6% e 76,4%, respectivamente.
Para 2005, como já dito anteriormente, o maior número de todos os anos,
no Brasil houve 1881 conflitos; Amazônia Legal, 706; nos Estados Pará, Mara-
nhão e Tocantins, 596; e na região do Bico do Papagaio, foram 412 ocorrências.
Esse número representou 21,9% dos conflitos no Brasil, na Amazônia Legal,
42,7%, e 69,1% dos Estados do Pará, Maranhão e Tocantins.
Apesar de tal ano apresentar-se com maior adensamento dos conflitos, nos
três Estados, foi o ano de 2007 que se destacou mais com relação ao resto do
Brasil e da Amazônia, respectivamente, representando 26,4% e 56,5%. Ao passo
que nestas duas últimas, ocorreram 1.536 e 759 conflitos no campo, respecti-
vamente, enquanto que na região do Bico do Papagaio foram registrados 406.
Portanto, representou, consecutivamente, mais que um quarto dos conflitos de
todo Brasil e mais da metade dos conflitos de toda Amazônia.
No ano de 2014, observa-se no gráfico que no país o número de ocorrências
de conflitos voltou a aumentar; enquanto que nas áreas da Amazônia Legal,
Pará-Maranhão-Tocantins e região do Bico do Papagaio, houve certo decrés-

A conflitualidade como produtora do futuro 115


cimo. No Bico do Papagaio, esse declínio é bem menos acentuado. Ainda em
2014, o Brasil conheceu 3,5 conflitos por dia; a Amazônia Legal, 1,5 por dia; os
estados do Pará, Maranhão e Tocantins, um conflito a cada 1,3 dias; e a região
do Bico do Papagaio, um conflito a cada 2,6 dias.
Nem mesmo esse decréscimo foi suficiente para retirar da região do Bico do
Papagaio o título de maior região de conflitos do Brasil, como tem mostrado os
dados de conflitos no campo. Uma vez que, durante esses trinta anos de regis-
tros, somam-se, ao todo, no Brasil, 29.716 conflitos. Destes, 12.823 ocorreram
na Amazônia Legal; 8.600 nos Estados do Pará-Maranhão-Tocantins; e 5.433,
na região do Bico do Papagaio. Em termos de percentuais, estes últimos repre-
sentaram 18,3% dos conflitos, no Brasil; 42,4%, na Amazônia Legal; e 63,2%,
dos Estados Pará-Maranhão-Tocantins.
O mapa 01, a seguir, mostra que todos os municípios da região do Bico do
Papagaio sofreram ocorrências de conflitos, durante os trinta anos (1985-2014).

Mapa 01: Região do Bico do Papagaio: total de ocorrência de conflitos no campo


(1985 a 2014)

Fonte: IBGE; CPT – Cadernos de Conflitos no Campo, 1985 à 2014.

116 Territórios de esperança


Enfim, estamos diante da maior região de concentração dos confrontos no
Brasil. São, portanto, os conflitos no campo e a violência a marca dos processos
que a constituíram. É necessário colocar em discussão as políticas de governo
que serviram para fundamentar a eclosão das lutas no campo brasileiro, como
avaliado em Chaves (2015).
É evidente, como já salientado anteriormente, que o período da ditadura e
suas formas de opressão repercutiram no esmagamento dos movimentos so-
cioterritoriais e de suas conquistas, de um modo geral. A luta pela democracia
e pela liberdade possibilitou a reorganização das massas e movimentos sociais
no campo e na cidade. Apesar das várias conquistas dos movimentos indíge-
nas, camponeses, quilombolas e outros movimentos populares, e mais de uma
década em que a esquerda esteve no governo, a reforma agrária no Brasil foi
reduzida à política pública, vista como desnecessária, mesmo por partidos po-
líticos e intelectuais de esquerda que compreendem a revolução como possi-
bilidade histórica construída por meio da expropriação dos camponeses e de
outras sociedades que disputam a renda territorial.
Desta forma, a teoria se estabelece como elemento fundante da disputa po-
lítica e da construção de outro tipo de sociedade. Ainda que às vezes não repre-
sente o modo capitalista de pensar, não contribui para a construção conceitual
e política de uma geografia social que dê conta de pensar o lugar no mundo dos
vários sujeitos que vivem na sociedade contemporânea.

Considerações finais

A estrutura fundiária concentrada pode ser observada como força motriz


da violência na região. Quando observamos o mapa de ocorrências total de
conflitos, percebemos que os conflitos se elevaram profundamente nos últi-
mos governos. Tecendo um comparativo entre os governos de Luís Inácio e de
FHC, que foram governos que duraram oito anos cada um, o de Lula foi o mais
conflituoso.
O mapa comparativo de conflitos nos trinta e um anos mostra, também,
maior concentração de conflitos neste período de governo. Observando-se o
período do governo Dilma, conclui-se que são poucos os municípios que regis-
traram ocorrências em relação ao período anterior (2003-2010). As ocupações
apresentaram número maior de ocorrências no governo FHC, como se pode
verificar no mapa de ocupações. (Chaves, 2015)

A conflitualidade como produtora do futuro 117


Há que se destacar que, nesses governos, houve, por motivos diferentes, um
recuo dos movimentos sociais, principalmente nas ações de socioespacializa-
ção, acampamentos e ocupações. Centrais na compreensão da luta pela terra.
No período FHC, o recuo se deu por conta da repressão às famílias que
vinham buscando, principalmente o Movimento Sem-Terra, ingressar na luta
pela terra. Podemos citar, dentre elas, a “reforma agrária”2 por correios. No go-
verno Lula, a iniciativa dos movimentos socioterritoriais em recuar da luta pela
terra se deu por conta dos pactos políticos que os movimentos construíram
com o governo. Não foi por conta de repressão, foi opção.
A violência direta, assassinatos, ameaças de morte e tentativas de assassi-
natos, no início da década de 80 até os anos de FHC, tinham como alvo princi-
pal os grupos de posseiros e, depois, os camponeses sem-terra, por conta das
manifestações coletivas e recorrentes acampamentos e ocupações. Ou seja, a
possibilidade de destruir o movimento socioespacial podia constituir-se em
um impeditivo do próximo passo dos movimentos camponeses, a ação total
de territorializar-se, a conquista da terra, a conquista do assentamento de re-
forma agrária.
Então, a partir daí, construiu-se uma dinâmica de violentos extermínios
a grupos. Os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás são exemplos
disso. A ação coletiva dentro do MST foi construída sob o comando de lideran-
ças e, dependendo da orientação dessas lideranças, os grupos podem possuir
orientação mais combativa ou não.
A ação de ocupar ou acampar estão sob essas orientações.

A luta camponesa pela terra se construiu sob uma tríade que ainda não foi bem
entendida pelos movimentos organizados. De um lado, a ocupação como instru-
mento de negação da concentração da propriedade privada da terra e negação de
seu acesso aos camponeses. De outro, o acampamento como ação positiva de nega-
ção da negação, a fixação ainda que temporária dos camponeses na terra concentra-
da negada. E, por último, o assentamento como conquista irretorquível daquilo que
foi sempre negado, a territorialização camponesa na fração capitalista do território
capitalista mundializado. É luta de classes, é luta camponesa por um pedaço do

2. “A última medida, foi a inscrição para assentamentos de reforma agrária pelo correio, veiculada como
propaganda televisiva e impressa afirmando “a porteira está aberta para a reforma agrária é só entrar e
inscrever-se”, foi o estelionato das políticas do PSDB de FHC.”(OLIVEIRA, p. 144, 2007)

118 Territórios de esperança


mundo para fundar o território camponês da esperança e da partilha. É por isso
que o campesinato nunca cessou sua luta, apesar dos movimentos organizados dei-
xarem de ser socioterritoriais, para passarem a ser apenas socioespaciais. Porém,
permanece a luta da classe camponesa, esta sim sempre socioterritorial. É assim
que a história segue. (OLIVEIRA, 2015).

É por isso que com o recuo nas ocupações e acampamentos de reforma


agrária na região, os alvos da violência tornaram-se, sobretudo, as lideranças,
sejam as que denunciam ou as que tomam a frente nos confrontos. Um exem-
plo de que as ocupações e acampamentos podem resultar em choques com
os grupos de camponeses é o conflito em Bom Jesus do Tocantins, na Fazenda
Gaúcha, no ano de 2014, onde um grupo inteiro de camponeses da Fetagri foi
alvejado por dois pistoleiros da fazenda, seis foram feridos, dois deles vieram a
óbito. Trata-se de um conflito com camponeses ligados ao sindicato.
A dinâmica da violência depende da dinâmica de enfrentamento dos cam-
poneses. Desta forma, com o retrocesso das ações organizadas de massa nas
ocupações e acampamentos, as lideranças se constituíram em maior alvo das
violências. Como nos casos da Irmã Dorothy, em Anapú, e o do casal de cam-
poneses de Nova Ipixuna, Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo.
Normalmente essas lideranças são ameaçadas durante anos, denunciam
e manifestam-se sobre o ocorrido e, na maioria das vezes, as autoridades ne-
gligenciam, constroem um ambiente perfeito e seguro para os assassinos de
lideranças da luta camponesa pela terra.
Com a perspectiva da construção de maior número de hidrelétricas pos-
sível para a bacia Araguaia-Tocantins, certamente esse é um conflito que não
tende a cessar ou diminuir; ainda estamos vivenciando resultados dos impac-
tos de Tucuruí, obra da década de 1970. E os problemas dos reassentamentos
da UHE de Estreito não cessaram.
A cidade de Babaçulândia, que se localiza à margem do reservatório, foi
70% submersa. Construíram um bairro para a população que foi removida da
margem do rio. Todos os anos, no período de chuva, o bairro é alagado, as casas
alagadas têm sérios problemas nas estruturas, e nos reassentamentos a água é
inconsumível. O bairro de Palmatuba, uma vila de camponesas artesãs, que-
bradeiras de coco babaçu, vazanteiras e pescadoras, foi completamente alaga-
do. Algumas das camponesas optaram por serem realocadas para os bairros no
centro da cidade e outras receberam indenizações e se mudaram para outros

A conflitualidade como produtora do futuro 119


municípios. A atividade de coleta do coco e artesanato foi extinta, juntamente
com o babaçu que ficou imerso no reservatório.
As regionais da CPT e os agentes de pastoral continuam atuando, combati-
vos ao crime e violência contra os camponeses, suas propriedades e posses. A
atuação, denúncias e combate jurídico ao trabalho escravo são hoje uma prio-
ridade. Os números de ocorrência demonstram que a elevação do registro do
trabalho escravo pode ser também por conta de atenção profunda que a CPT
tem realizado no combate a esse conflito, assim como dos grupos de fiscaliza-
ção do Ministério do Trabalho.
As MPS 458/422 e o Programa Terra Legal, criados para legalizar os lati-
fúndios grilados em terras públicas, também podem ter influenciado para o
aumento do trabalho escravo, pois contribuem, significativamente, para ex-
propriação e desapossamento de camponeses. Com o processo de desterrito-
rialização de posseiros na região, por conta dessas medidas, há sempre a pos-
sibilidade de ingressarem nos trabalhos nas fazendas, pois ficam submetidos
à peonagem. Além disso, o recuo da luta pela terra por parte dos movimentos
sociais pode contribuir para este quadro.
Os sindicatos de trabalhadores rurais mostraram que têm exercido certa
atuação na região, embora o MST tenha maior força política em aglomerar
maior número de famílias nos acampamentos e ocupações.
No acampamento do MST Frei Henry, na Fazenda Marambaia, as 200 famí-
lias instaladas vivem entre a violência dos pistoleiros e a sobrevivência baseada
no plantio de suas roças e extrativismo da castanha. São plantações de feijão,
de milho e mandioca, canteiros de hortaliças, cebola, tomate, vários tipos de
alface, pimenta, melancia, laranja, e mamão. A destinação é o sustento das fa-
mílias, a feira e os restaurantes de Marabá. É, de certa forma, tradução perfeita
da existência camponesa nesse país.
Então, durante esses quatro anos e meio de pesquisa, dois sentimentos
foram comuns: tristeza e alegria comungaram-se constantemente. Alegria de
chegar às CPTs e encontrar os agentes de pastoral, que nos auxiliavam, mos-
trando e/ou expondo os (sobre) conflitos em auxilio pesquisa. Em Goiânia,
no Centro de Documentações Dom Tomás Balduíno, disponibilizaram-nos
vários documentos, os quais tivemos que selecionar. Sentimo-nos felizes por
nos depararmos com aquela quantidade de informações e registros históricos,
provas da violência nesse país, mas também prova da resistência ao avanço
do latifúndio.

120 Territórios de esperança


No entanto, no processo de seleção, o contato com esta história de massa-
cres camponeses causava-nos profunda tristeza. As bibliografias escritas sobre
a região, sobre os anos de nenhuma infraestrutura e a busca da esperança, co-
mum àqueles que veem sentido na reforma agrária e que desejam o cumpri-
mento da Constituição Federal.
Regina Sader visualizou a possibilidade de transformação da realidade
camponesa, na década de 1980, a partir da organização das roças coletivas dos
posseiros. Depois, foi o surgimento do MST que encheu de esperança os que
estavam no enfrentamento contra latifúndio. Quando tabulados os dados dos
últimos anos, a sensação de tristeza tomou conta, por observar que o movi-
mento socioterritorial da atualidade, onde muitos sustentavam a expectativa
de transformação, incluimo-me entre eles, recuara na luta pela terra.
No entanto, alguns fatos foram comuns à pesquisa de Regina Sader. A auto-
ra, sobre seu retorno no último ano de pesquisa, mencionou uma menina que
se juntava a ela quando a pesquisadora visitava uma certa vila de camponeses.
No último ano, a menina, já adolescente, havia transformado-se em uma pros-
tituta naquele vilarejo, tal era a pobreza na qual se encontrava.
Em nossa passagem pelo Pré-Assentamento Dalcídio Jurandir, que fica
próximo a Xinguara, deparamo-nos com esta mesma situação. Uma menina
de 13 anos de idade, que nos acompanhava dentro do acampamento, levou-
-nos à escola, e nos colocou em contato com lideranças. Fomos informados
que a ela costumava passar os dias em uma barraca que fica em frente ao pré-
-assentamento, onde caminhoneiros estacionam para dormir e se alimentar.
Esta menina, cuja mãe tem mais dez filhos, leva a mesma vida que a outra da
pesquisa de Sader.
Então, várias situações mudaram em trinta anos, e os vilarejos transforma-
ram-se em cidades. Intensificou-se o investimento econômico e a exploração
de empresas na região. Rodovias foram construídas, mas a rodovia BR-155, que
liga Eldorado dos Carajás a Xinguara, onde se localiza o Dalcídio Jurandir, con-
tinua intrafegável. No percurso, encontramos motoqueiros que provavelmente
são camponeses, que vivem nos assentamentos, ou trabalhadores das fazen-
das. ou, ainda, caminhoneiros que transportam madeira, gado e qualquer coi-
sa desse tipo. A pobreza continua presente para algumas frações sociais. Se
os sujeitos sociais que lutam pela terra e pelo território estão cada vez mais
diversos, os seus antagonistas também se diversificaram. Diversificaram-se

A conflitualidade como produtora do futuro 121


nos tipos de exploração, nas coalizões, alianças e pactos, inclusive nos pactos
de violências.
Não é de se surpreender que as mulheres venham constituindo-se cada
vez mais como líderes nos sindicatos, nas associações, nas aldeias indígenas.
O empoderamento delas mulheres também está ligado à violência que atinge
seus maridos e entes queridos e, sobretudo, a elas mesmas. Assim é a vida de
Maria Regina Gonçalves Chaves, presidente do Sindicato de Trabalhadores Ru-
rais de Marabá; Laísa Sampaio, irmã de Maria do Espírito Santo, assassinada
em Nova Ipixuna; Graciete Souza Machado, cujo pai foi assassinado em Breu
Branco e a mesma vive com bala alojada próxima a coluna; e Maria Joel, que
assumiu o Sindicato de Trabalhadores de Rondon do Pará desde que o marido
foi assassinado dentro de casa, por conta de ser líder desse mesmo sindicato.
Há algum tempo, mulheres vêm liderando os movimentos de luta na região
contra hidrelétricas, contra a exploração nas reservas extrativistas. Mulheres
indígenas tomam a frente da causa indígena em todos os cantos do país. Essas
personagens sempre foram vítimas da violência e, portanto, assumiram a frente
da luta contra a barbárie. Não devem mais ser invisibilisadas nos projetos po-
líticos, no protagonismo dos movimentos sociais e nos textos dos intelectuais.
Apesar desse declínio dos números da luta pela terra, nos últimos quatro
anos (2011 á 2014), a violência do latifúndio permanece, e, como afirmou Oli-
veira, (1998) “[...] se da violência nasce a morte, nasce também a vida”.
A utopia camponesa continua.

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A conflitualidade como produtora do futuro 123


Agronegócio, campesinato e contrarreforma agrária
no Baixo Jaguaribe (Ceará–Brasil)
Claudemir Martins Cosme1 • Marco Antônio Mitidiero Júnior2

Introdução

A realidade do espaço agrário brasileiro, nesse início de século XXI, marca-


da por conflitos e disputas territoriais entre classes/grupos antagônicos,
está na contramão do discurso hegemônico a favor do modelo agrário/agrícola
do agronegócio, que busca a todo custo negar a existência da questão agrária e
invisibilizar as lutas e as resistências por terra e território, levadas a cabo pelo
campesinato e demais sujeitos do campo.
Trata-se de uma visão social de mundo ideológica, onde o agronegócio,
com sua produção de commodities, é apontado como um modelo moderno e
que já atenderia as necessidades, sobretudo econômicas, da sociedade brasi-
leira atual. Nessa perspectiva, portanto, não haveria mais uma questão agrária
a ser pensada e solucionada, consequentemente, seria irrelevante uma política
de reforma agrária atualmente.
Não obstante, os movimentos e organizações sociais, que defendem e que
apoiam a agricultura camponesa, seguem resistindo e buscando explicitar os
antagonismos entre as classes sociais que atuam e que produzem o espaço agrá-
rio do país, pondo em relevo a questão agrária e colocando na agenda política
a reforma agrária como um processo necessário para o conjunto da sociedade.
Nesse contexto, o Estado do Ceará tem reproduzido no campo a realidade
nacional, ou seja, tem sido um lócus contraditório onde os conflitos têm se
acirrado nas últimas três décadas diante do avanço do agronegócio, sob os aus-

1. Professor do Instituto Federal de Alagoas. Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas


(NEABI). Diretor do Sindicato dos Servidores Públicos Federais da Educação Básica e Profissional no Es-
tado de Alagoas (Sintietfal).
2. Professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba.

A conflitualidade como produtora do futuro 125


pícios de grupos monopolistas nacionais e transnacionais, que encontra pela
frente diversas formas de resistências de setores organizados da sociedade,
especialmente, os movimentos e organizações sociais ligados ao campesinato.
Destarte, esse artigo visa discutir as lutas do campesinato cearense pela
reforma agrária, materializadas na conquista dos assentamentos rurais e na
busca pela permanência na terra, onde a centralidade da análise é o espaço
agrário da Microrregião do Baixo Jaguaribe (ver mapa 1). Essa reflexão tem por
base original, a pesquisa que desenvolvemos em nível de mestrado, entre os
anos de 2013 e 2015. No entanto, utilizamos para a atualização de dados e para
a problematização da temática as seguintes fontes: o Sistema de Informações
de Projetos de Reforma Agrária (SIPRA) do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA) e o relatório “Conflitos no Campo no Brasil”, da
Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Mapa 1: Microrregião do Baixo Jaguaribe, Ceará, Brasil.

Fonte: IBGE

126 Territórios de esperança


Analisamos a questão agrária a partir da vertente teórica do desenvolvi-
mento contraditório do capital e do caráter rentista assumido por este, onde
uma das suas contradições é a (re)criação de formas não capitalistas de pro-
dução, no caso aqui em análise, o campesinato assentado (MARTINS, 1999;
OLIVEIRA, 2001, 2007), bem como, partimos da análise que demonstra que
está em curso, historicamente, um processo de contrarreforma agrária no país
(THOMAZ JR, 2005; OLIVEIRA, 2010, COSME, 2017, 2016a, 2016b, 2015). Nes-
se sentido, buscaremos compreender e adentrar no universo da produção do
espaço agrário da Microrregião do Baixo Jaguaribe, centrando as atenções na
luta pela reforma agrária, nos conflitos territoriais, na violência que, em al-
guns casos, permeia a conquista dos assentamentos rurais e a espacialização
da agricultura camponesa no campo cearense.

A conflitualidade entre o agronegócio e o campesinato na produção do


espaço agrário do Baixo Jaguaribe

Não é exagero afirmar que a conflitualidade, consequentemente, a violên-


cia sejam uma marca presente no campo no estado do Ceará e, em especial, na
Microrregião do Baixo Jaguaribe. Microrregião essa marcada pela contradição
e pelas disputas territoriais entre a agricultura camponesa e o agronegócio,
onde os conflitos sociais passaram a eclodir a partir das transformações e res-
truturações pelas quais vem passando essa fração do território cearense, nas
últimas três décadas de aprofundamento das políticas neoliberais.
Soares (1999), já apontava, em seus estudos, em fins da década de 1990,
que as transformações espaciais em curso no Baixo Jaguaribe, guiadas pelo
planejamento estatal, era no sentido de transformá-la num polo agroindus-
trial centrado no agronegócio da fruticultura irrigada, onde o grande capital
foi eleito como o único a ter as credenciais para efetivar tal empreitada. Elias
(2002), afirmava não vislumbrar otimismo no dito desenvolvimento sustentá-
vel prometido nos programas governamentais e pelos teóricos neoliberais, res-
saltando a tendência ao beneficiamento do setor empresarial agroexportador
em detrimento da produção em base familiar no campo cearense.
De fato, o prognóstico realizado por esses autores foi e é exatamente o que
vem ocorrendo ao longo dos anos 2000 no Baixo Jaguaribe. O Estado e seus
últimos governos, sejam municipais, estaduais ou federais, atuaram e atuam
fortemente no sentido de transformar essa fração do espaço agrário cearense

A conflitualidade como produtora do futuro 127


em referência do agronegócio da fruticultura irrigada, atrelado aos interesses
do grande capital transnacional, em detrimento de possibilitar condições para
o protagonismo do campesinato e, muito menos, de implementar uma políti-
ca de reforma agrária, como podemos verificar nos estudos mais recentes de
Cosme (2015), Freitas (2010); Rigotto (2011) e Bezerra (2012).
Tido como referência na política de gestão das águas, através da Compa-
nhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH), criada em 1993, o estado do
Ceará, através dos diferentes governos, centrou seus esforços na implementa-
ção de grandes obras hídricas, sendo o Baixo Jaguaribe peça importante da en-
grenagem na gestão das águas para o agronegócio e o grande capital industrial.
Nele está localizado o Açude Público do Castanhão que, para ser construído,
removeu toda a população do município de Jaguaribara. Tudo arquitetado sob
o discurso do progresso e do desenvolvimento territorial para todos(as), en-
tretanto, forjado para atender e dar segurança hídrica aos interesses do agro-
negócio, representados por dois grandes projetos irrigados: o Distrito Irrigado
Jaguaribe-Apodi (DIJA) e o Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas (PITR).
Ambos foram implementados a partir da expulsão, da expropriação e da des-
truição de comunidades camponesas. Além do mais, fortemente marcados por
um modelo profundamente atrelado ao uso de agroquímicos (agrotóxicos e
adubos), colocando a Microrregião na lista das regiões com mais índices de
câncer, graves problemas ambientais e de intoxicação humana.
Segundo Elias (2007), ao analisar a realidade do Baixo Jaguaribe, a reestru-
turação da produção e do espaço agrário no semiárido, a partir do agronegócio,
não tem produzido benesses para todos como pregava o discurso governamen-
tal. Ao contrário, tem reproduzido as “[...] históricas desigualdades inerentes
ao capitalismo [...]. Tem se acirrado a oligopolização do espaço agrário, com
o fortalecimento da privatização da terra e da água [...]” (ELIAS, 2007, p. 453).
Na verdade, como afirma Porto-Gonçalves (2012), na sociedade capitalis-
ta moderna-colonial, como a brasileira, o desenvolvimento sempre significou
dominar privadamente a natureza. Para isso, mais do que nunca, determina-
das condições jurídicas e políticas precisam ser efetivadas. Na realidade do
Baixo Jaguaribe presenciamos um “des-envolvimento”, ou seja, a busca do
agronegócio é de “tirar o envolvimento (autonomia) que cada cultura e cada
povo mantêm com seu espaço, com seu território; é subverter o modo como
cada povo mantém suas próprias relações de homens (e mulheres) entre si e
destes com a natureza” (PORTO-GOÇALVES, 2012, p. 81).

128 Territórios de esperança


É preciso destacar, que o avanço insaciável do agronegócio no campo cea-
rense, em busca do lucro a qualquer preço, não se dá num contexto de pas-
sividade do campesinato. Não sendo diferente do restante do país, as lutas e
resistências das mulheres e dos homens que compõem esta classe são marcas
vivas na produção do espaço agrário do Ceará. No gráfico 1 podemos visualizar
o contexto de conflitualidade descrito. Nele, percebemos um pico no número
de conflitos no ano de 2001, para depois manter-se praticamente num mesmo
ritmo ao longo dos anos em análise, retrocedendo nos últimos três anos.

Gráfico 01: Ceará – Nº total de conflitos no campo (2000-2017)

Fonte: Conflitos no Campo Brasil, CPT (2000-2017)

A reflexão apenas dos dados do gráfico acima passa a impressão de que


existem baixa luta e resistência no campo cearense. Não obstante, é o gráfico
02, quando trata da quantidade de pessoas envolvidas nos conflitos, que nos
apresenta de perto o grau de conflitualidade no campo cearense. O ano de
2001 é o que se apresenta com o maior percentual de pessoas em conflitos,
atingindo a marca de 36.811 mil, seguido pelo ano de 2010, com 32.915 mil
pessoas. Os anos seguem com variações, apresentando um refluxo até 2013
(10.233 pessoas), quando ascende novamente. O relevante e que precisa ser
destacado é que há uma presença significativa de pessoas em conflitos, indi-
cando o acirramento nas relações entre as classes/grupos, consequentemente,
a existência da questão agrária no campo cearense.

A conflitualidade como produtora do futuro 129


Gráfico 02: Ceará – Nº total de pessoas em conflitos no campo (2000-2017)

Fonte: Conflitos no Campo Brasil, CPT (2000-2017)

Frente à luta e à resistência do campesinato, os latifundiários do agrone-


gócio respondem com a violência, que atinge sua face mais bárbara nos as-
sassinatos que ocorreram no Ceará. Nestes anos 2000, segundo dados da CPT
(2000-2017), foram 04 casos no Estado: Francisco Aldenir Mesquita, Sem Terra,
assassinado no dia 25 de julho de 2000 no município de Ocara; em 2007, mais
02 vítimas: Francisco Antônio da Silva, indígena, é assassinado no dia 11 de
fevereiro no município de Caucaia; e Francisco Cordeiro de Rocha, ribeirinho,
em 09 de abril, no município de Paraipaba. A luta pela terra e território sofre
mais um duro golpe quando, no dia 21 de abril de 2010, na Chapada do Apodi,
comunidade de Tomé, município de Limoeiro do Norte, é assassinado com 25
tiros de pistola José Maria Filho, reconhecida liderança camponesa. Militante
em prol de um projeto de agricultura camponesa agroecológica, Zé Maria do
Tomé, como era conhecido, fazia duras críticas às empresas do agronegócio,
especialmente, ao uso de agrotóxicos e à pulverização aérea, haja visto, os gra-
ves problemas para a saúde dos moradores das comunidades próximas, bem
como, a contaminação e morte dos trabalhadores das próprias empresas e a
devastação dos bens da natureza, como a água e o solo.
Vale salientar que a Chapada do Apodi é uma fração do território cearense
em disputa entre a burguesia latifundiária do agronegócio e o campesinato.
Essa disputa é absolutamente desigual, na medida em que os incentivos dos
governos do Ceará ao agronegócio potencializam esse setor. Esses incentivos

130 Territórios de esperança


são: construção de estradas, portos, isenção fiscal na compra de agrotóxicos e
o direcionamento de instituições educacionais para formar mão-de-obra es-
pecializada e realizar pesquisas que beneficiam o agronegócio da agricultu-
ra irrigada, a exemplo do Instituto Centro de Ensino Tecnológico (CENTEC),
atualmente, Instituto Federal do Ceará (IFCE) – Campus Limoeiro do Norte,
instalado no município de mesmo nome.
Conjugado a esse “impulso” estatal, as condições naturais, com solos de
elevada fertilidade, grande potencial de água subterrânea e condições climáti-
cas excelentes para o desenvolvimento do cultivo de frutas tropicais, chamam
a atenção do grande capital agroindustrial. Atualmente, nesse espaço estão ter-
ritorializadas grandes empresas do ramo frutícola, nacionais e transnacionais,
a exemplo da Frutacor e da Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda3.
A Frutacor é uma empresa nacional detentora do que se tem de mais mo-
derno no ramo do agronegócio praticado no Ceará, como: sistema de irrigação
localizado por gotejamento e micro aspersão, sistema de fertirrigação para au-
mentar a eficiência da adubação, assessoria técnica agronômica especializa-
da, variedades cultivadas de elevado padrão genético e utilização do pacote
químico (agrotóxicos e adubos). As ações desta empresa fortalecem as teses
de Oliveira (2012), quando percebemos sua atuação tanto na territorialização
via a produção de banana e mamão irrigados, como na ação de monopoliza-
ção do território quando a mesma faz as chamadas parcerias com agricultores
familiares irrigantes.
O contexto do espaço agrário no Baixo Jaguaribe é lido, nesse artigo, a partir
das análises de Porto Gonçalves (2006), quando defende a tese de que a vio-
lência não é um simples resquício associado ao velho latifundiário e/ou a um
mundo rural retrógrado. Ao contrário, para ele, a violência está visceralmente
ligada ao agrobusiness tido como moderno e eficiente. Parafraseando esse au-
tor, é justamente nessas frações territoriais, onde se materializa a reestrutura-
ção produtiva do espaço agrário sob os auspícios do agronegócio, a exemplo
da Chapada do Apodi, que se encontram os maiores índices de violência. A

3. Iniciou sua produção em fins do século XIX na região da Califórnia (EUA). Atualmente, a matriz localiza-se
em Miami, sendo um libanês o sócio majoritário. Sua atuação, com produção e sede estratégica, atende
todos os continentes, atingindo cerca de 58 países. Iniciou sua produção no Brasil em fins da década de
1980 no Rio Grande do Norte e, em 2000 e 2001, duas áreas no Ceará: em Quixeré (melão) e Limoeiro do
Norte (abacaxi). A empresa tem contribuído para o desencadeamento de problemas diversos, dentre os
quais a destruição de comunidades e o trabalho precarizado, com graves consequências para a sociedade
e o ambiente (FREITAS, 2010, p. 124)

A conflitualidade como produtora do futuro 131


realidade corrobora com os escritos desse autor, haja vista, segundo reporta-
gem do Jornal O POVO, intitulada: “Acusados do assassinato de Zé Maria Tomé
irão a júri popular”4, a investigação, que se arrasta há anos, com adiamentos
de julgamentos, aponta o proprietário da empresa Frutacor como um dos en-
volvidos no assassinato da referida liderança camponesa.
A empresa transnacional Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda, desenvol-
vendo uma agricultura intensiva em capital e tecnologia na produção da fruti-
cultura irrigada, também disputa o espaço agrário no Baixo Jaguaribe, a partir
da territorialização em grandes fazendas na Chapada do Apodi. Ao longo dos
últimos anos foi responsável pela expulsão e expropriação de comunidades
camponesas inteiras, além de oferecer trabalho assalariado em condições
precárias e degradantes (sobretudo no trabalho com a manipulação de agro-
tóxicos). Recentemente foi condenada pela morte do trabalhador Wanderley
Matos, contaminado por resíduos de agrotóxicos no período que trabalhou na
empresa, conforme o Jornal Diário do Nordeste, na reportagem “TRT mantém
decisão que condena multinacional”5. A partir das denúncias e mobilizações
sociais essa empresa tem reduzido sua presença na Chapada do Apodi ao se
transferir para outros espaços onde passa a iniciar novamente um ciclo de ex-
ploração do trabalho e da natureza.
Frente a esta conjuntura, de forma progressiva ao longo das últimas duas
décadas, estão sendo construídas no Baixo Jaguaribe lutas e resistências como
estratégia de (re)criação e resistência camponesa. São processos nos quais o
campesinato percebeu que, por meio da luta pela terra e território, conquis-
tarão a oportunidade de garantir a sua existência e reprodução, haja vista sa-
berem que: “o acesso à terra é condição essencial para o campesinato, pois é
[nela] que os camponeses asseguram seu meio de existência, constroem sua
identidade e reproduzem seu trabalho familiar” (FERNANDES, 2010, p. 174).
É sobre essa dinâmica que nos debruçaremos nas análises no próximo item.

4. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/ceara/limoeirodonorte/2015/08/25/notlimoeirodonor-


te,3493838/acusados-pelo-assassinato-de-ze-maria-tome-irao-a-juri-popular.shtml. Acesso em 31 ago.
2015.
5. Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/cidade/trt-mantem-decisao-que-
-condena-multinacional-1.1150525. Acesso em: 31 ago. 2015.

132 Territórios de esperança


A longa caminhada do campesinato para entrar e permanecer na terra
face a contrareforma agrária no Baixo Jaguaribe

Parafraseando Diniz (2008), é mister mergulharmos no universo do cam-


pesinato cearense se queremos entender o cotidiano das mobilizações nas
quais se deram a passagem da condição de Sem Terra à condição de assenta-
dos(as). São sujeitos, que em algum momento das suas vidas “[...] resolveram
resistir e lutar contra a dominação pelos latifundiários, registrando as estraté-
gias utilizadas nesse processo, em que o campesinato passou das lutas pelos
direitos à luta pela conquista da terra” (Ibidem, p. 13). Para Almeida (2006),
quando defende que apesar dos camponeses e camponesas não lutarem nem
entenderem a luta a partir de um mesmo formato, essa distinção não anula sua
identidade e sua consciência de classe, por conseguinte, seu habitus de classe
camponesa em meio à diversidade da luta.
É com essa compreensão que buscaremos demonstrar que a conquista dos
assentamentos rurais no Baixo Jaguaribe ocorreu por duas formas distintas de
acesso a terra: a) inicialmente por meio de uma reforma agrária negociada com
o latifundiário, tendo à frente os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR),
organizados em torno da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
Agricultoras Familiares do Estado do Ceará (FETRAECE); e b) através da luta
pela terra (ocupações e acampamentos), tendo o protagonismo do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conforme explicita o quadro 01.
No Estado do Ceará, conforme dados oficiais (INCRA, 2018), estão espacia-
lizados 457 Assentamentos Rurais Federais em uma área de 916.247,3485 mil
hectares, com capacidade para o assentamento de 26.371 mil famílias, onde
atualmente estão 21.537 mil famílias efetivamente assentadas. Na Microrre-
gião do Baixo do Jaguaribe estão pouco menos de 10% deste total, ou seja, 40
assentamentos em uma área de 78.610,05 mil hectares e com capacidade total
para 2.191 famílias, onde se encontram, atualmente, 1.882 mil famílias efetiva-
mente assentadas.
As mobilizações em torno da conquista da terra nessa Microrregião tive-
ram sua gênese a partir de experiências no município de Tabuleiro do Norte,
no fim dos anos de 1980, tendo à frente lideranças ligadas, simultaneamente,
ao STR e ao PT daquele município. Movimento que resultou nos primeiros as-
sentamentos rurais, em meados da década de 1990. Esse período é marcado
pela “reforma agrária negociada” (COSME, 2015), ou seja, uma tentativa de

A conflitualidade como produtora do futuro 133


implementação da política de reforma agrária sem luta pela terra, sem que os
camponeses fizessem uso das estratégias de ocupação e acampamento. Fruto
desse movimento de busca da conquista da terra de forma negociada, pacífica
e passiva, temos 70% dos 40 assentamentos rurais espacializados na Microrre-
gião, ou seja, são 28 assentamentos oriundos dessa via, que não se utilizou da
ocupação da terra e acampamento das famílias; e, apenas 12 (30%), a partir da
luta pela terra (ocupações/acampamento).
Trata-se de uma determinação ocasionada pelo contexto político dos anos
1990. Conforme o gráfico 03, percebemos que 30 dos 40 assentamentos foram
construídos no governo de Fernando Henrique Cardoso. Justamente, um pe-
ríodo no qual o MST, apesar de algumas tentativas, ainda não havia se consoli-
dado nessa fração do espaço agrário cearense e o referido governo incentivava
a negociação como forma de acesso a terra (COSME, 2015).
Por outro lado, os números do gráfico 3 demostram também, o quanto o
ranço conservador deste período se manteve nos governos do PT: anos nos
quais foram construídos apenas 10 assentamentos rurais e, justamente, de-
vido a luta do MST a partir do ano de 2004. Salientamos que estes 10 assen-
tamentos foram construídos nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, ou
seja, no governo Dilma Rousseff não foi conquistado nenhum assentamento
rural na Microrregião do Baixo Jaguaribe, o que explicita o poder das forças
latifundiaristas que dominaram os governos petistas. Contexto que não difere
dos anos recentes de Michel Temer. Aliás, registre-se que, segundo os dados
oficiais (INCRA, 2018), de 2013 a junho/2018, foram criados apenas 3 assen-
tamentos rurais no estado do Ceará, ou seja, a contrarreforma agrária segue
historicamente nesse século XXI.
Não é de se estranhar que o Presidente Fernando Henrique Cardoso, mes-
mo sem ter um Plano Nacional de Reforma Agrária, muito menos uma política
para implementação da mesma, escolhesse, justamente, o Baixo Jaguaribe,
para lançar o seu dito programa de reforma agrária6. Nesse sentido, O Jornal
O POVO, em matéria do dia 24/03/1995, estampava: “FHC instala programa

6. Os Projetos de Assentamentos: Charneca e Barra do Feijão, teve a imissão da posse em 24/03/1995 com
a presença do então Presidente da República na época, Fernando Henrique Cardoso e do Governador do
estado do Ceará, Tasso Ribeiro Jereissati, conhecido latifundiário, e uma caravana de políticos, desde mi-
nistros de Estado a políticos regionais, estaduais e locais, onde, na oportunidade, foi lançado o Programa
Nacional de Reforma Agrária do referido governo e materializado o início dos assentamentos rurais no
Baixo Jaguaribe.

134 Territórios de esperança


de reforma agrária”7, enaltecendo que Cardoso escolheu o Ceará pelo caráter
positivo dos assentamentos no Estado.

Gráfico 03: Assentamentos criados na Microrregião do Baixo Jaguaribe (1980-2018)

Fonte: INCRA (2018)

Cosme (2015) defende que a tentativa da reforma agrária negociada, na ver-


dade se efetivou como uma das faces da contrarreforma brasileira, haja vista
ter se materializado, de um lado, em um ótimo negócio para os proprietários
de terras, pois, em vez de penalizar o latifúndio, premiava-o com a renda da
terra fruto das indenizações dos imóveis rurais nos processos desapropriató-
rios, portanto, perpetuando o rentismo do capitalismo à moda brasileira, nos
termos defendidos por Martins (1999); de outro, se resumiu ao acesso a terra
no assentamento rural, deixando as famílias assentadas em situações de ex-
trema precariedade, quando não efetivou outras ações essenciais a vida, con-
sequentemente, a permanência das famílias assentadas na terra. Como bem
asseverou Thomaz Jr. (2005), o ranço latifundista dos governos anteriores ao PT
não foi abolido, fazendo com que as forças das contrarreforma agrária aden-
trassem nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff.
O Projeto de Assentamento Diamantina, localizado na Chapada do Apodi,
município de Tabuleiro do Norte, é um bom exemplo para fortalecer os argu-
mentos que desenvolvemos acima. Com capacidade para assentar 30 famílias,

7. LUQUE, Luciano. FHC elogia experiência cearense em programas de reforma agrária. Jornal O Povo, For-
taleza-Ce, p. 3, 24 mar. 1995. Política. CD – ROM.

A conflitualidade como produtora do futuro 135


ocupando uma área de 1.218,27 ha dos municípios de Tabuleiro do Norte, Es-
tado do Ceará e Governador Dix-Sept Rosado, Estado do Rio Grande do Norte,
sob a responsabilidade da Superintendência do INCRA-Ceará e com ligações
com os STR, foi criado em 2004 a partir da reforma agrária negociada.
O referido assentamento na pesquisa de mestrado e pudemos constatar,
desde a sua gestação as seguintes características, que dão concretude a con-
trarreforma agrária no Brasil: a) sua conquista não foi via luta (ocupação e
acampamento), mas uma negociação a partir dos interesses do latifundiário,
rendendo para este R$ 160.814,77 mil reais de indenização, segundo dados
oficiais do INCRA (COSME, 2015); b) a precariedade marca o cotidiano das
famílias nesses 11 anos de história ao percebermos situações como: a ausên-
cia de possibilidades de geração de renda; dificuldade e em certos momentos
inexistência de serviços básicos (saúde e educação); descontinuidade e perío-
dos sem serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER); inexistência
de infraestruturas sociais que proporcionem atividades culturais e religiosas,
marcantes na cultura camponesa; ausência de infraestruturas produtivas e de
espaços de práticas políticas (reuniões, assembleias) (COSME, 2015).
No caso específico do Assentamento Diamantina, somando as famílias ofi-
cialmente cadastradas pelo INCRA e aquelas que passaram pela comunidade
sem terem os seus cadastrados oficialmente homologados pelo referido órgão,
contabilizamos 143 famílias assentadas, sendo que 119 deixaram o assenta-
mento ao longo dos 11 anos, o que em nossa avaliação, foram expulsas pela
contrarreforma agrária, materializada em um contexto hostil no qual as famí-
lias foram submetidas anos a fio, sem as condições básicas para permanece-
rem na terra.
A construção dos assentamentos rurais no Baixo Jaguaribe, marcada pela
via da negociação conciliada com os interesses dos latifundiários foi rom-
pido, em parte, com a chegada e espacialização do MST nessa Microrregião
(COSME, 2015). Segundo esse autor, o rompimento foi em parte, uma vez
que mesmo com a ação do Movimento de pressionar os governos em busca
da conquista da terra, o rentismo, que é alimentado pelas indenizações pagas
aos latifundiários nas desapropriações dos imóveis rurais, não foi destruído.
Mas é preciso reconhecer a importância dos caminhos trilhados pelo MST que
contrariam o consenso aos interesses dos grandes proprietários, explicitando
o antagonismo de classes.

136 Territórios de esperança


As ações do Movimento na referida Microrregião deram-se em duas tenta-
tivas. A primeira, durante a segunda metade dos anos de 1990, a qual, diante
de dificuldades ocorridas e frente ao quadro de hegemonia da Organização
Sindical Rural, bem como à ação repressiva dos governos de Fernando Henri-
que Cardoso, não conseguiu a afirmação. Uma segunda tentativa, agora com
êxito, só iria ocorrer na primeira metade dos anos 2000. Foi com a ocupação
do Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas (PITR) em 2004 e, posteriormente,
criação do PA Bernardo Marim II, que o MST passa definitivamente a se es-
pacializar no Baixo Jaguaribe, via ocupações e acampamentos, inaugurando
o segundo processo histórico de acesso a terra pelos camponeses na referida
Microrregião (COSME, 2015).
A tática da ocupação de latifúndios improdutivos é defendida por Fernan-
des (1999), quando ele explicita a necessidade da ocupação como forma de
pressionar os governos para que, efetivamente, a reforma agrária possa aconte-
cer. Segundo ele, acampar sem realizar a ocupação, dificilmente, a luta obterá
êxito em transformar o latifúndio em assentamento rural. Parafraseando esse
autor, percebemos que no Ceará, os acampamentos se constituíram em espa-
ços e tempos de transição na luta pela terra para a luta na terra, pois, represen-
tam trunfos nas negociações.
Outro assentamento que estudamos na pesquisa de mestrado, sendo um
bom exemplo das ações de luta pela reforma agrária diferente da reforma agrá-
ria negociada, foi o Projeto de Assentamento Olga Benário, localizado no mu-
nicípio de Russas. Com uma área de 1.178,80 ha e capacidade para assentar
15 famílias, localizado no município de Russas e fazendo parte do MST, esse
assentamento vem sendo construído a partir do protagonismo dos assentados
e assentadas que ao mesmo tempo fazem o Movimento.
A compreensão da história de gestação do PA Olga Benário passa pelo en-
tendimento das contradições que marcam a produção do espaço agrário do
Baixo Jaguaribe. Nos termos de Fernandes (1999), percebemos que a gestação
e a construção desta comunidade é guiada pela: indignação, revolta, necessi-
dade, interesse, consciência, identidade, experiência e resistência camponesa,
como escreve o autor. Consciência e resistência contrária ao vínculo estreito e
espúrio entre o agronegócio e o Estado brasileiro em todas as esferas de gover-
no (municipal, estadual e federal).
Nessa experiência de luta e resistência, as camponesas e os camponeses
sem terra foram os protagonistas da ação de ocupação e não beneficiários pas-

A conflitualidade como produtora do futuro 137


sivos, à espera da boa vontade do Estado e dos governos em realizar a reforma
agrária. Processo que nos faz lembrar as palavras de Caldart (2004), quando
afirma que o MST incomoda não apenas pelo fato de trazer para a arena polí-
tica a questão agrária, mas pelos sujeitos sociais que faz entrar em cena. Como
diz Caldart (2004), um novo personagem entra em cena, qual seja: um sujeito
social que quer ser protagonista, que se encontra e se constrói na luta. Luta
essa em um contexto político profundamente hostil ao campesinato ante a
hegemonia do agronegócio, inclusive, com uma das bancadas mais fortes no
Congresso Nacional.
Nesse bojo, no PA Olga Benário, após seis anos de sua criação, sequer as
moradias foram construídas, não receberam a maioria dos créditos instalação
do INCRA, a ATER é um sonho distante. A realidade é de abandono e descaso a
exemplo do que foi destacado no PA Diamantina. Todo esse contexto corrobo-
ra e fortalece o pensamento de Fernandes (2010, p. 192), quando salienta que:
“A precariedade da reforma agrária e das políticas agrícolas para o setor cam-
ponês – marca iniludível de todos os governos que assumiram o Estado brasi-
leiro – está expulsando famílias assentadas”, como resultado disso enfatiza o
autor: “No lugar dessas famílias excluídas surgem novas famílias assentadas. O
problema não se resolve em si, se reproduz em si” (FERNANDES, 2010, p. 192).
Analisando a realidade do Assentamento Olga Benário a partir deste frag-
mento do autor, no tocante ao somatório das famílias oficialmente cadastradas
pelo INCRA e aquelas que passaram pela comunidade, sem terem os seus ca-
dastrados oficialmente homologados, contabilizamos 33 famílias assentadas,
sendo que 28 deixaram o assentamento ao longo dos seis anos, ou seja, reitera-
mos que foram expulsas pela contrarreforma agrária (COSME, 2015).
Face à continuidade da contrarreforma nos governos petistas, o MST segue,
atualmente, sua marcha em luta no campo cearense. Juntamente com outros
movimentos e organizações sociais, professores e outros militantes, organiza-
dos em torno do Movimento218, ocuparam no dia 05 de maio de 2014 o Perí-
metro Irrigado Jaguaribe-Apodi (DIJA) na Chapada do Apodi, município de
Limoeiro do Norte, núcleo central do agronegócio no Baixo Jaguaribe. Cerca

8. Movimento que nasce em homenagem a Zé Maria do Tome, assassinado no dia 21 de abril de 2010, forma-
do pela Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, MST, Central Sindical Popular (CONLUTAS), Faculdade
de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM)/Universidade Estadual do Ceará (UECE), Núcleo Trabalho,
Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade (TRAMAS) da Universidade Federal do Ceará (UFC), CPT
Ceará, STR do Apodi-RN.

138 Territórios de esperança


de 1.000 famílias passaram a construir o Acampamento Zé Maria do Tomé,
em tributo ao líder camponês. Hoje, aproximadamente 104 famílias seguem
acampadas, resistindo e lutando, agora para permanecer na terra, na travessia
acampamento – assentamento rural. Essa ação do campesinato cearense for-
talece os escritos de Oliveira (2007), de que o campesinato segue na sua longa
marcha de resistência para entrar e permanecer na terra.

Considerações finais

A chegada do PT ao governo da República, em 2003, reunindo nesse partido


militantes, intelectuais, movimentos e organizações sociais, que há décadas
lutavam em prol da agricultura camponesa e de uma reforma agrária massiva,
gestou um profundo sentimento de esperança de que havia chegado a hora da
mudança histórica no campo a favor do campesinato.
Entretanto, mais uma vez, assim como foi nos anos de governos do Partido
da Social Democracia Brasileira (PSDB), bem como, em outros contextos polí-
ticos da nossa história, a opção foi oferecer mais do mesmo, ou seja, fortaleceu
e expandiu um modelo latifundista moderno-colonial, perpetuando a concen-
tração fundiária no campo via um processo contrarreformista em detrimento
da agricultura camponesa. Processo esse que a partir de do governo Michel
Temer se aprofunda com grande velocidade.
Nesse bojo, há um fortalecimento do capital rentista brasileiro no seu movi-
mento contraditório e insaciável pela acumulação a qualquer preço, produzin-
do um espaço agrário onde a “modernidade e a barbárie” (OLIVEIRA, 2007),
efetivamente, são faces da mesma moeda. Assim, se produz, concomitante-
mente, de um lado, um discurso que prega a irrelevância da reforma agrária;
um suposto atraso/arcaísmo da agricultura familiar camponesa; que o campe-
sinato não existe ou é um sujeito em vias inexoráveis de desaparecimento; e de
outro, o discurso é de que o agronegócio trouxe a modernização e o progresso
para o campo; que seria o único caminho viável para a agricultura em tempos
de globalização, bem como solucionou a questão agrária brasileira e desenvol-
veu sustentavelmente o país.
No campo cearense, o poder do agronegócio, especialmente, com a fruti-
cultura irrigada está por todos os lados, mas não impede, não elimina e nem
impossibilita a rebeldia das mulheres e dos homens sujeitos das distintas for-
mas de agricultura camponesa. A identidade do campesinato cearense segue

A conflitualidade como produtora do futuro 139


sendo construída a partir das resistências em lutas contra hegemônicas, ape-
sar da desproporcionalidade de forças no espaço agrário do país, haja vista, o
papel do Estado e dos governos em apoio quase que irrestrito ao agronegócio,
assim como, pela ação da forte bancada ruralista no Congresso Nacional, re-
presentante dos interesses dos grandes proprietários de terras.

Agradecimentos

Trabalho financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-


fico e Tecnológico.

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A conflitualidade como produtora do futuro 141


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142 Territórios de esperança


A criminalização do MST no Governo Bolsonaro e as
novas estratégias de luta
Ronaldo Barros Sodré1 • José Jonas Borges da Silva2
Acácio Zuniga Leite3

Introdução

Q uando divulgados os resultados das eleições que levou Jair Messias Bol-
sonaro a presidência do Brasil, um sentimento de tristeza recaiu sobre
grande parte da população que desaprovava o projeto eleito, a frustração pela
derrota também era acompanhada pelo ao temor de um futuro agora inevitá-
vel, principalmente daqueles e por aqueles que durante meses de campanha
foram (e continuam sendo) ameaçados. Das redes sociais, uma ilustração logo
viralizou, ela captava o momento após o pleito e expressava a um só tempo
solidariedade e resistência: Ninguém solta a mão de ninguém.
Em pouco mais de seis meses de governo, os ataques generalizados a direi-
tos garantidos constitucionalmente nos levam a refletir sobre a importância de
resistir de forma conjunta. No momento que a educação, ciência e tecnologia
passam por ataques, desprezos e humilhações nunca antes vistos, acreditamos
em um projeto de Universidade pública descentralizada e transformadora, que
dê voz as classes populares e que construa caminhos de forma coletiva. Nesse
sentido, nós, membros da Rede DATALUTA, iniciamos um diálogo (em forma

1. Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), doutorando em Geo-
grafia pela Universidade Federal do Pará com com estágio sanduíche pela Universitat d’Alacant.
2. Mestrando em Geografia no Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Territorial da América La-
tina e Caribe (UNESP/SP). Graduado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP/Presidente Prudente) e Graduado em Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasilei-
ros, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
3. Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Incra. Doutorando em Desenvolvimento Sustentável
pela UnB. Possui graduação em Engenharia Florestal pela Universidade de São Paulo e mestrado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento Rural pela FUP/UnB.

A conflitualidade como produtora do futuro 143


de entrevistas) com o objetivo de provocar uma reflexão e discussão sobre a
criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e ao
mesmo tempo da conjuntura agrária brasileira. Dedicamos ainda uma segun-
da parte para discutir as estratégias de luta do MST na atual conjuntura, temos
como esteio o caso do MST no estado do Maranhão, que mesmo em tempos
de crise tem conseguido avançar em diversas pautas de interesse da população
do campo e da cidade.
Reforçamos a natureza do texto e ao mesmo tempo nos colocamos a intei-
ra disposição para continuar o necessário diálogo que não inicia e tampouco
finda nessas linhas.

O MST e o Governo Bolsonaro

Em evento realizado em Vitória (ES) em novembro de 2017, o então depu-


tado e presidenciável Jair Messias Bolsonaro, proferia as seguintes palavras:
“No que depender de mim, o agricultor, o homem do campo, vai apresentar
como cartão de visita para o MST um cartucho 762(mm) [...] àqueles que me
questionarem se eu quero que mate esses vagabundos, quero, sim. A proprie-
dade privada numa democracia é sagrada. Invadiu pau nele”. As palavras do
candidato anunciavam como seria conduzida a campanha eleitoral de 20184 e
sua relação com o mais longevo e proeminente movimento social brasileiro, o
MST (CANAL RURAL, 2018).
Essas declarações fazem parte de um processo constante de desqualifica-
ção e de criminalização dos movimentos sociais e de modo especial ao MST,
Movimento que em pouco mais de 30 anos organizou milhares de famílias na
luta pela terra. Territorializado em 24 estados nas cinco regiões do país, o MST
conquistou força política, chegando a apresentar e discutir reivindicações no
Palácio do Planalto com 4 ex-presidentes (Itamar Franco, Fernando Henrique
Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff ).
Ao longo de sua história, o MST dividiu opiniões distintas entre a mídia, o
Congresso, a Igreja e outras instituições. De acordo com Comparato (2001) no
início dos anos 2000, pesquisas de opinião pública mostravam que o MST con-
tava com o apoio da maioria da população brasileira. A reforma agrária tinha

4. Além do MST – para ficar somente nos movimentos sociais do campo – Bolsonaro proferiu em diversos
momentos frases ofensivas e posicionamentos ameaçadores aos povos originários e aos quilombolas.

144 Territórios de esperança


apoio entre 80% e 94%, enquanto aproximadamente dois terços da população
considerava o MST um movimento legítimo. A popularidade do movimento
esteve no seu auge, durante a marcha do MST a Brasília, em 1997, chegando
a 77% de apoio.
Pouco menos de duas décadas, a polarização política que levou Bolsonaro
a presidência do país tem realizado críticas que beiram a ataques de ódios ao
MST, principal símbolo de oposição ao modelo de agricultura que busca se
tornar hegemônico no campo brasileiro e que tem relações históricas na polí-
tica nacional.

Ronaldo Sodré – Embora não tenhamos atualmente pesquisas que mos-


trem o apoio da opinião pública ao MST, sabemos que o Movimento vêm sen-
do criticado e criminalizado por diversos setores da sociedade brasileira, prin-
cipalmente, pelo governo. Como explicar?

Jonas Borges – Mudou a correlação de forças no mundo, hoje vivemos um


conservadorismo a nível internacional, onde a direita vem assumindo proje-
ções políticas muito fortes e truculentas; as relações políticas; as ofensivas do
capital e a hegemonia no campo pelo agronegócio, então essas forças fizeram
com que nós buscássemos um comportamento diferente de debater a reforma
agrária, a lutar pela terra e buscar outras formas de dialogar com a sociedade
brasileira.
Como esse é um processo histórico, ele precisa de tempo, de maturação
política para que os resultados sejam consolidados, então esperamos que
essa tática do MST de buscar um diálogo permanente com a sociedade pos-
sa surtir efeito. Esse momento para nós é um momento de resistência, de
resistência para o nosso projeto de classe trabalhadora, resistência do nosso
projeto político e ideológico, resistência de um projeto de campo que resista
ao agronegócio.

Ronaldo Sodré – Sobre essa conjuntura, o governo que assumiu após o


golpe de 2016 trouxe consigo a destruição de uma série de políticas públicas,
cujos efeitos já se expressam em indicadores sociais. Em pouco mais de seis
meses, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem dado continuidade a esse
projeto neoliberal e dado maior celeridade na implantação de uma agenda

A conflitualidade como produtora do futuro 145


política que se traduz em retrocessos para a classe trabalhadora. Diante desse
quadro, qual a sua leitura desse momento?

Acácio Leite – Numa enorme síntese, do lado da classe trabalhadora vive-


mos um período de derrota de um projeto que arrasta os setores progressistas
e a esquerda brasileira como um todo. O capital aproveita esse momento para
colocar um conjunto de pautas que propiciem o avanço na captura de renda
e riqueza. Isso reverbera na agenda governamental e fica caracterizada não
somente uma continuidade, mas um aprofundamento das políticas empreen-
didas com o golpe: privatização, desmonte e desidratação do aparato estatal e
dos direitos são vociferados em diferentes agendas. Negar essa realidade nos
levaria a um aprofundamento da derrota. Urge, então, ajustar a tática de lutas
de forma a barrar esses ataques e garantir que a classe trabalhadora bloqueie
as pautas regressivas e volte a ter vitórias.

Ronaldo Sodré – Como já mencionamos anteriormente, na campanha


eleitoral de 2018, o atual presidente fez diversas críticas ao MST. O que vem
sendo repetido agora no governo. Como você avalia essas declarações?

Jonas Borges – Penso que o atual presidente da República, Jair Bolsonaro,


nos coloca em um patamar de luta muito maior do que talvez nós teríamos, o
fato de eleger o MST como um de seus principais inimigos, só demonstra que
o presidente não tem preocupação maior com o país.
A preocupação maior é em criar conflitos, em criar situações para fugir das
pautas principais e não atender as demandas da sociedade brasileira. Isso é
muito preocupante e demonstra como a direita vem se colocando nesse mo-
mento, elege inimigos, elege situações, elege questões que são secundárias,
para não responder a situações maiores: empregos, saúde pública, políticas
públicas em geral. Isso demonstra que desde o início o MST estava correto: o
atual presidente não representa o nosso país. O MST tem a clareza que temos
um inimigo no poder, ele representa diretamente os interesses do agronegócio,
da especulação imobiliária, do capital financeiro.

Ronaldo Sodré – Existem críticas, até mesmo dentro do MST, sobre a for-
ma como o Movimento vem agindo nos últimos anos. A luta pela conquista da
terra por meio de ocupações deixou de ser uma prioridade?

146 Territórios de esperança


Jonas Borges – A ocupação de terra é o principal instrumento de luta, de
defesa, de denúncia e de projeção da bandeira da reforma agrária. É tanto que
nossos acampamentos hoje espalhados pelo Brasil, somam mais de 80 mil fa-
mílias acampadas. Para se ter ideia, temos famílias que estão a meses, anos,
décadas. Aqui no Maranhão nós temos um acampamento lá no sul do Mara-
nhão, com 20 anos!
Mas, as forças reacionárias estão em uma ofensiva muito grande contra a
reforma agrária, contra os instrumentos políticos, contra as leis agrárias que
construímos na Constituição Federal e agora o atual governo começa a retroa-
gir e a querer anular qualquer instrumento de desapropriação no Brasil.
As ocupações permanecem, elas existem, no entanto, elas estão sem resul-
tados, porque o Estado brasileiro, não tem se colocado para dá resolutividade
aos acampamentos que estão aí e claro, se você não tem assentamentos, se não
tem conquistas de terras saindo, isso constitui um desafio muito grande para
mobilizar novas famílias para novas ocupações de terras, porque ninguém se
mobiliza sem conquistas.
O que nós estamos pensando é, nessa conjuntura, que não temos conquis-
tas [de terra], que o Estado não desapropria, não fazem esforços, como vamos
sair dessa encruzilhada? Fato é, que no Brasil não tem uma comunidade qui-
lombola, não tem uma terra indígena, não tem um assentamento de reforma
agrária, não tem uma comunidade ribeirinha que tenha conquistado, consoli-
dado seu território sem luta.

Ronaldo Sodré – Durante muito tempo houve um reconhecimento quase


que consensual entre movimentos sociais, academia e diversos setores da so-
ciedade sobre a importância de se fazer uma reforma agrária. Hoje o debate so-
bre reforma agrária é realizado de forma mais restrita entre alguns intelectuais
da academia e a alguns movimentos sociais. O que houve? A reforma agrária
deixou de ser importante?

Acácio Leite – Certamente perdemos a disputa de narrativa na sociedade


sobre a importância da reforma agrária no desenvolvimento brasileiro com o
aprofundamento do programa de modernização conservadora. Entre os inte-
lectuais essa mudança se deu também. Mas esse processo de disputa é per-
manente. Isso porque as contradições do agronegócio surgem a todo tempo:
expulsões, desemprego, violência, contaminação das águas e dos alimentos.

A conflitualidade como produtora do futuro 147


Agendas como a agroecologia, a defesa dos territórios de uso tradicional e a
campanha contra os agrotóxicos e pela vida colocam novos elementos nessa
disputa de narrativa que podem nos ajudar a reverter essa situação.

Ronaldo Sodré – Nesse contexto, como você analisa as políticas de criação


de assentamentos nos últimos governos?

Acácio Leite – Nos últimos 25 anos a política de criação de assentamentos


teve oscilações. Olhando o resultado numérico do período avalio que, apesar
de insuficiente perto do desafio de desenvolvimento nacional e do atendimen-
to das famílias acampadas em situação de alta vulnerabilidade, são resultados
relevantes. Existem cerca de 1.000 assentamentos espalhados pelo Brasil, re-
presentando uma fração importante da agricultura familiar e do território na-
cional. Ao mesmo tempo, devemos ver com preocupação o processo de redu-
ção da obtenção de terras, agravado a partir do golpe de 2016 e completamente
paralisado desde a posse de Bolsonaro.

Ronaldo Sodré – As políticas públicas voltadas para o campo que temos/


tínhamos são conquistas que vieram a partir do poder de pressão dos movi-
mentos sociais. Qual é o papel dos movimentos sociais diante do cenário po-
lítico brasileiro?

Acácio Leite – O desafio das forças progressistas é de interromper o atual


processo de perda de direitos e construir um projeto para o próximo período.
De imediato, manter acesas as lutas sociais, com a devida cautela, mas atacan-
do as fragilidades dos adversários.

Ronaldo Sodré – Quais são os desafios do MST diante da atual conjuntura


política?

Jonas Borges – Se fossemos eleger como desafio hoje, e aqui não é só do


MST, mas da sociedade brasileira, da esquerda... Primeiro é disputarmos a opi-
nião pública no sentido de enfrentar essa onda conservadora, direitista, esse
governo neofacista. Precisamos encontrar mecanismos que nos permita avan-
çar com diálogo nas cidades, na periferia, no campo, nos acampamentos.

148 Territórios de esperança


Precisamos consolidar aquilo que custou muito para o povo brasileiro, que
foi a democracia, o desafio nesse momento é defender, é garantir a democra-
cia, ela nos permite fazer o debate político e ideológico que hoje querem nos
negar. O MST não abre mão de assumir esse desafio frente a atual conjuntura.
Outro desafio é fazer com que a pauta da reforma agrária permaneça na
sociedade, nós entendemos que ela é um elemento fundamental para superar
as desigualdades no Brasil, ela é cada vez mais atual diante dessa ofensiva do
capital sobre a terra.

Ronaldo Sodré – Você esteve presente no Seminário Terra e Território:


Diversidade e Lutas, ocorrido em Guararema (SP) entre 6 e 8 de junho de 2019,
nesse Seminário foram debatidas questões como a defesa do campo e do meio
ambiente. O evento teve resultado material uma Carta de mesmo nome. No
que consiste esse documento?

Acácio Leite – Durante três dias debatemos com diversos setores os desa-
fios do período que estamos vivendo. Como resultado do seminário, realiza-
mos um ato político em que foi apresentada uma carta para a sociedade brasi-
leira. A carta denuncia o modelo da morte aplicado pelo governo brasileiro e os
demais agentes do capitalismo dependente, apresenta uma agenda de unidade
no meio rural baseada na defesa da educação, da cooperação e da agroecologia
e reafirma os compromissos desse campo político, em especial com a defesa da
soberania nacional e da função socioambiental da terra.
Após o Seminário, como parte da articulação popular agrária e ambiental,
movimentos e organizações se reuniram em julho de 2018 com o governador
do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), afim de consolidar uma agenda de traba-
lho para avançar regionalmente. Dentre os temas debatidos estão: educação
no campo, previdência, demarcação de territórios tradicionais, criminalização
dos movimentos populares, leis de terras, agricultura familiar, combate aos
agrotóxicos e avanço da reforma agrária. A escolha do estado foi em razão das
políticas progressistas do atual governo e da sua relação com o MST.

Os desafios do MST no Maranhão

No Maranhão o MST nasceu da organização de famílias que se juntaram


para retomar a luta pela terra após o término de vinte e um anos de regi-

A conflitualidade como produtora do futuro 149


me militar. As primeiras ocupações do Movimento no estado aconteceram
ainda na metade da década de 1980, na região Tocantina, espalhando-se de-
pois para outras regiões. Hoje são mais de sessenta áreas de assentamentos e
acampamentos, abrangendo mais de 9.500 famílias assentadas e acampadas
(ELIAS, 2008).

Ronaldo Sodré – Depois de mais de 30 anos de existência no Maranhão, o


MST deixou importantes marcas nas configurações social e territorial em todas
as regiões do estado, isso mostra seu papel enquanto sujeito de destaque no
campo político. Da redemocratização (que coincide com o período de gesta-
ção do Movimento), aos dias atuais, a política governamental a nível nacional
passou por distintos partidos de díspares orientações políticas e ideológicas.
No entanto, se considerarmos o período de dominação das oligarquias, a
nível estadual a alternância de poderes é recente. No terceiro mês do governo
Flávio Dino (2015 – 2018), centenas de militantes (em sua maioria, mulheres)
do MST estiveram em frente a sede governo para reivindicar diversas pautas.
O governador desceu as escadas do palácio e entre as bandeiras vermelhas
caminhou para discursar em praça pública e se comprometeu a atender as
reivindicações do Movimento. De lá para cá, como tem sido essa relação?

Jonas Borges – É importante demarcar que nós sempre pautamos junto


aos poderes públicos, os direitos dos trabalhadores do campo. A gente sem-
pre vai pressionar para que os governos possam garantir nossos direitos, as
políticas públicas da nossa base social, que nós representamos, que nós orga-
nizamos.
Nós do MST, no que tange a relação com o governo do estado do Maranhão,
podemos dizer que temos uma relação de parceria, já que temos uma abertura
para dialogar, para discutir as pautas dos movimentos sociais do campo e da
cidade. No caso do campo, a gente abriu esse canal de diálogo com o governa-
dor e temos buscado a discutir nossas pautas específicas.
Nós não podemos negar que o diálogo existe, as mesas de negociações
existem, mas a construção de relações com o Estado, com governos é sempre
demorada no sentido de dar resultados concretos. Temos uma boa educação
de jovens e adultos, com o Programa Sim eu Posso!5

5. O Programa faz parte do plano de ações “Mais IDH”, política de governo instituída com a finalidade de

150 Territórios de esperança


Alcançamos algumas obras em assentamentos: melhoria da água e de ou-
tras situações que eram problemas em alguns assentamentos. Mas ainda falta
muito pra gente avançar, agora claro, no contexto que temos hoje no Brasil,
essa onda conservadora, neofascista, ter um governador que senta na mesa,
que dialoga, a gente não pode dizer que não é significativo. É um avanço e nós
estamos lutando para que essa relação possa se construir, para que no final a
gente possa, além das nossas pautas específicas, contribuir com o processo
político do Maranhão e do Brasil.

Ronaldo Sodré – Você pode citar algumas dessas parcerias?

Jonas Borges – Temos várias, mas posso destacar em educação: o Progra-


ma Sim eu Posso! A construção de escolas; em parceria com a Secretaria de
Agricultura Familiar (SAF): recebimento de leite nos assentamentos, sementes;
além da melhoria da infraestrutura em alguns assentamentos: construção de
poços artesianos, estamos em negociação pela assistência técnica nos assen-
tamentos.
Tudo isso é resultado de um processo de luta, onde entregamos essas pau-
tas ao governador durante a mobilização das mulheres em São Luís, onde fo-
mos até o palácio e de lá pra cá nós temos feito muitas reuniões e realizado co-
branças. Essa relação não é de privilégio, pois para nós do MST, toda e qualquer
pauta deve ser apresentada, mas ao mesmo tempo pressionada para que ela
possa sair da retórica, da escrita para sua efetivação enquanto política pública.

Ronaldo Sodré – Como tem sido a relação do MST com a sociedade ma-
ranhense?

desenvolver ações para superar a pobreza extrema e as desigualdades sociais, nos 30 municípios com
menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM do estado. De acordo com Lopes e Vargas
(2019), em março de 2015, durante a jornada de luta das mulheres, o MST desafiou o governo Flávio Dino a
superar o analfabetismo. No mesmo contexto, houve a consulta ao MST, por parte do governo, se aceitaria
uma parceria com a Secretaria de Estado da Educação, utilizando o método cubano “Sim, eu posso!”. Na
primeira fase da Jornada (2016 e 2017), organizadas 628 turmas, com 9.492 educandos inscritos, tendo sido
alfabetizados 7.119. Entre educadores/as, coordenadores/as de turmas e brigadistas, foram envolvidas
10.217 pessoas envolvidas no processo, em oito municípios. Entre 2017 e 2018 a segunda fase da Jornada
de Alfabetização que foi ampliada para quinze municípios. Essa experiência mobilizou 20.075 alfabetizan-
dos/as, 1.332 alfabetizadores/as, 190 coordenadores/as de turma, 40 mobilizadores/as, 37 brigadistas, mi-
litantes do MST dos estados do Maranhão, Pará, Tocantins, Piauí, Ceará, Paraíba, Bahia, Rondônia, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. Ao todo, serão envolvidas diretamente 21.674 Pessoas.

A conflitualidade como produtora do futuro 151


Jonas Borges – Em nossas ações de trabalho buscamos firmar pessoas
para contribuir com a transformação da sociedade, temos construído cursos,
parcerias com instituições públicas para formação e qualificação das pessoas
que atuam em todas as frentes do Movimento, as universidades têm dialogado
com as questões dos povos do campo, da questão agrária.
Outra iniciativa tem sido o trabalho de comunicação junto à opinião públi-
ca buscando apresentar o resultado da Reforma Agrária Popular e a elaboração
de um projeto político para a sociedade brasileira que deve ser construído por
todos os sujeitos da classe trabalhadora. Hoje o MST tem construído espaços
como o Armazém do Campo, que se tem se constituído como lugar de diálogo
e debate sobre o que queremos para construção de um outro país. Hoje temos
seis armazéns do campo no Brasil, em São Luís temos o Solar Cultural da Terra
Maria Firmina dos Reis, onde temos espaços de venda dos produtos da reforma
agrária e da agricultura familiar, produtos agroecológicos e orgânicos; temos
de exposição e lançamentos de livros; uma livraria para democratizar a leitu-
ra; café literário, além de outros espaços que possibilitam maior diálogo com
grupos e o povo em geral.

Ronaldo Sodré – Quais seriam então os desafios do Movimento no es­


tado?

Jonas Borges – O primeiro desafio é manter a defesa de milhares de fa-


mílias camponesas que se sentem ameaçadas pelo avanço do agronegócio no
Maranhão. O segundo é criar e manter articulações em redes com outros mo-
vimentos sociais, considerando esse momento que estamos vivendo, é neces-
sário manter forças para fortalecer a luta.

Ronaldo Sodré – Para não finalizar...

Jonas Borges – Por fim, o MST ao longo de quase 4 décadas tem avançado
em muitas frentes graças a parcerias e colaboração de outras organizações e
claro com políticas públicas que só chegam com muita pressão e mobilização
social. Foi assim para consolidar a bandeira da terra e da reforma agrária e está
sendo para garantias de direitos que nos der vida digna no campo. Para termi-
nar, o MST tem clareza do momento difícil que estamos passando no Brasil,
mas já acumulamos muito em várias frentes da luta social e política, temos

152 Territórios de esperança


instituições fortes e consolidadas, o povo tem direitos adquiridos que vão lu-
tar para defende-los, e o mais importante que no último período construímos
uma democracia e dela não abrimos mão.

Referências

Canal Rural. “Quero que matem esses vagabundos”, diz Bolsonaro. Disponível em: https://
canalrural.uol.com.br/noticias/quero-que-matem-esses-vagabundos-mst-diz-bolsona-
ro-69789/. Acesso em 10 de setembro de 2019.
COMPARATO, Bruno Konder. A ação política do MST. São Paulo Perspec. Vol.15, N.4. São Pau-
lo Oct./Dec.2001.
ELIAS, Michelly Ferreira Monteiro. A cooperação agrícola na organização política do MST: um
estudo sobre as experiências desenvolvidas no Maranhão. 2008. 194 f. Dissertação (Mes-
trado em Políticas Públicas) – Centro de Ciências Sociais, Universidade Federal do Mara-
nhão, São Luís, 2008.
LOPES, Maria Divina & VARGAS, Maria Cristina. Do limite do possível ao inédito em cons-
trução: experiência das brigadas de alfabetização no MST. In: BERNAT, I. G; LIMA, J.B;
GUEDES, L. & PEREIRA, S.S. (Orgs.). Jornada de Alfabetização do Maranhão: Mobilização
Popular, Cultura e Emancipação. São Luís: Eduema, 2019. P 48 – 62.

A conflitualidade como produtora do futuro 153


Resistências na Amazônia: emergência e estratégias
de lutas da CPT e do MAB face à produção de
complexos portuários no oeste do Pará
Jondison Cardoso Rodrigues

Introdução

O território amazônico vem passando, principalmente a partir de 2013,


por um acelerado processo de transformação, territorialização e rees-
truturação local e regional, como resultado de novas estratégias empresariais
(multinacionais, bancos e fundos) e estatais (brasileira e chinesa), no sentido
de intensificar: as conexões econômicas, a fluidez territorial e a inserção da
Amazônia a uma teia do capitalismo global, marcado pelo protagonismo do
capitalismo financeirizado (finance)1.
Essa configuração estrutura-se a partir de grandes empreendimentos e
políticas públicas territoriais, pautadas em investimentos infraestruturais que
se assemelham ao período de intervenção militar, quando havia a perspectiva
de integrar a Amazônia às dinâmicas e políticas nacionais e, de certa forma
ainda, dinamizar a industrialização da região. Agora a intervenção desenha-
-se pela renovação de práticas coloniais, desenvolvimentista e neoextrativista
(CASTRO, 2016), estruturadas pela versão financeirizada do capital e inserção

1. Financeirizada do capital – pauta-se na compreensão cunhada por Chesnais (2016): “capital financeiro
designa o que as contas nacionais chamam de ‘oeganizações financeiras’, ou seja, bancos e fundos de in-
vestimento de todos os tipos, ampliadas para incluir os departamentos financeiros de grandes ‘empresas
não financeiras’ industriais ”(p. 5). “As organizações mencionadas centralizam a mais-valia na forma de
dividendos, juros do governo e da dívida corporativa e lucros retidos, bem como os fluxos de renda atuais e a
economia das famílias. Eles buscam valorizar o dinheiro que administram através de empréstimos e especu-
lações nos mercados financeiros. Os lucros financeiros pressupõem a centralização da mais-valia já criada.
A maior parte da atividade financeira, notadamente as operações de negociação nos mercados financeiros,
refere-se essencialmente à sua distribuição e redistribuição sem fim entre as empresas financeiras por meio
de especulações.” (CHESNAIS, 2016, p. 6).

A conflitualidade como produtora do futuro 155


competitiva aos circuitos financeiros globais, via políticas (neoliberais e ultra-
conservadora) para o aumento de exportações de commodities, principalmen-
te agrícolas.
É uma configuração também calcada em um movimento de mercantiliza-
ção da natureza e venda/leilão de ativos/patrimônios públicos. Tudo isso co-
nexo ao cenário de um excesso de créditos e liquidez que inundou o mundo,
possibilitou a expansão da insaciabilidade por consumo e produção (CHES-
NAIS, 2016; HARVEY, 2018); isso como forma de “forjar novos sistemas de
produção [lucros, por despossessão/espoliação] baseados em novas relações
sociais em novas regiões” (HARVEY, 2013, p.546).
Novos sistemas esses forjados por meio da articulação entre transnacio-
nais, bancos, fundos, carteiras de seguros e estados-nações, de maneira a des-
regulamentar e desbloquear barreiras para os fluxos financeiros e políticas que
favoreçam e facilitem: i) a centralização dos fundos líquidos de empresas e
das poupanças das famílias, venda de títulos de seguro de vida; e, ii) permita
bônus de tesouro nacionais, basicamente pautada sob o viés especulativo. Essa
articulação se configura como uma verdadeira estratégia para “articulação de
grandes empresas industriais e financeiras, visando ao funcionamento em
rede, resulta também da unificação, nos países mais avançados, dos mercados
financeiro, cambial, de títulos e de valores” (CASTRO, 2017, p. 22).
O terreno que se pavimenta na Amazônia é de uma “epítome da perfeição”
(HARVEY, 2018), que se relaciona à formação e conformação de um sistema
contínuo de mobilidade induzida e improdutiva de produção de demanda por
mercadorias/commodities. Mais particularmente uma (imposição) visão parti-
cular de desenvolvimento, pautada na construção de corredor de fluxos econô-
micos e na exportação de commodities agrícolas (projeto político hegemônico
do agronegócio) (RODRIGUES; RODRIGUES, LIMA, 2019).
A Amazônia Oriental, em especial o Oeste do estado do Pará, constitui a
materialização dessa política escalar hegemônica, de planejamentos relacio-
nados à construção de projetos de infraestrutura: ferrovias (Ferrogrão, Ferro-
via Paraense), hidrovias (Teles-Pires e do Tapajós), portos, rodovia (a BR-16/
pavimentação), termelétricas (duas termelétricas, em Barcarena), pequenas
centrais hidrelétricas (do Cupari/Rurópolis e Itapacurá/Itaituba, no total de
dez) e complexos hidrelétricos (com a construção na bacia do Tapajós, de 43
barragens nos Rios Tapajós, Jamanxim, Teles Pires e Rio Juruena). Além da hi-

156 Territórios de esperança


drelétrica em Oriximiná, no Oeste do estado do Pará (com a projeção de 15
hidroelétricas na Bacia do Rio Trombetas).
Os projetos de infraestrutura portuária são os que possuem maiores fon-
tes materializadas de investimentos, por exemplo, no estado do Pará. Mate-
rialização essa como expressão da política de territorialização, no caso, do
agronegócio; com vários portos em operação: Cianport (em Itaituba), Hi-
drovias do Brasil (Itaituba e Barcarena), ADM (Barcarena), Unitapajós (joint
venture da Amaggi e Bunge) (Itaituba e Barcarena), Cargill (Itaituba), Ipiran-
ga (Itaituba), Transporte Bertolini (Itaituba e Juruti) e Mineração Buritirama
(Barcarena) (RODRIGUES, 2018a; 2018b). No complexo Itaituba (Oeste do
estado do Pará), que envolve o distrito de Miritituba/Itaituba e Santarenzi-
nho/Rurópolis, estão planejados mais de 30 portos graneleiros (RODRIGUES;
RODRIGUES, LIMA, 2019).
Todas essas ações sinalizam (re)orientações e ajustes espaciais (HARVEY,
2005) do território amazônico que configuram ações de Grandes Projetos de
Investimento (GPI), dos quais também seriam vetores-portadores de um gran-
de potencial de organização e transformação dos espaços, um grande poten-
cial para decompor e compor regiões (VAINER, 2007).
Para Rodrigues (2018a), esses planejamentos e materializações de comple-
xos portuários, principalmente do Oeste do Pará, contribuiu para a “emergên-
cia”, em termos de lutas e resistência mais intensas, como a CPT (Comissão
Pastoral da Terra)- Prelazia de Itaituba e o MAB (Movimentos dos Atingidos
por Barragens); organizados como movimentos políticos, questionadores,
propositivos, com ampla solidariedade e cooperação sistêmica. Emergências
que “surgem” (em termos de choques e disputas mais intensas), em virtude
de disputas de “lógicas capitalistas” e “lógicas territoriais”, das quais os por-
tos, como elementos físicos expressariam as “lógicas capitalistas”, que impõe
conformações e deformações territoriais, políticas, socioambientais; além de
estabelecerem e instigarem: novos desejos, necessidades de cunho material e
novas temporalidades, de espaços-tempos de realização da vida.
Considerando essa discussão, este trabalho visa identificar a emergência da
CPT e do MAB, no Oeste do Pará, e, discutir algumas estratégias de resistência
face à produção de complexos portuários, em Itaituba e Rurópolis. O estudo
baseou-se por diálogos, entrevistas semiestruturadas e questionários realiza-
dos, junto a CPT e o MAB, de 2014 a 2018.

A conflitualidade como produtora do futuro 157


Resistência para (re)existir: ações da CPT-Prelazia de Itaituba e MAB

As práticas de resistências em/como todos os lugares se configuram no


pressuposto de disputas, tensões, choques e conflitos/conflitualidades por di-
mensões políticas e culturais contra-hegemônicas. Mas como criar estratégias
ou lutas anticapitalistas ou contra-hegemônicas no amplo terreno (em Itaituba
e Rurópolis) já acirrado de: i) conflitos fundiários, ii) trabalho escravo; iii) cri-
mes encomendados; iv) atividades de exploração de ouro e poluição (devido
o mercúrio); v) desmatamento; vi) um município territorialmente gigantesco/
área de: 62.042,472 km2; vii) elites muito bem articuladas2.
Como trabalhar no contexto mais recente de uma série de grandes projetos
sendo despejados rapidamente como mercadoria e ativos financeiros: portos,
ferrovia (Ferrogrão), pequenas centrais hidrelétricas (do Cupari e Itapacurá),
pavimentação da BR-163 e a utilização dos rios Tapajós e Teles Pires como Hi-
drovia articulada? Por fim, como trabalhar com a perspectiva que assombra o
imaginário, da máxima de Karl Marx, em O Capital: “Quem decide é a força”
(MARX, 2013, p. 309), isto é, quem decide tudo seria quem possui maior força
política e econômica (esses dois tipos de capitais).
Além disso, como trabalhar ou se autoestimular, quando se sofre silencia-
mentos (com supressões e invisibilidades) políticos e midiáticos, advindos,
imersos de/em “traços” de colonialidade, reducionismo e territorializações do
Estado, empresas, bancos, fundos e a “visão estrangeira a região”, por exemplo:
i) da colonialidade com relação não só asfixia a formação plural e histórica
dos povos e etnias das Amazônias, mas também o silenciamento da palavra de
outrem, das ações coletivas de alguém; ii) a redução dos grupos de resistências
aos índios Munduruku.
Por fim, como resistir em um território com base na dimensão autoex-
plicativa e mágica (discorridos dos bancos acadêmicos) acerca de fronteira,
que acabam por reduzir e simplificar as tensões, interesses, racionalidades e
agentes sociais múltiplos: o Estado, multinacionais, elites locais e regionais,
políticos, promotores imobiliários e fundiários, fazendeiros, madeireiros, pos-
seiros, grileiros, garimpeiros, palmiteiros, ribeirinhos, beiradeiros, indígenas,
movimentos sociais, sindicatos, associações e ONGs.

2. Não estamos afirmando que Itaituba se resume a isso, apenas apontando um cenário histórico e processo
de cunho macro.

158 Territórios de esperança


Há, pelo menos, três dimensões para refletir acerca dos agentes de resistên-
cia, aqui expostas nesse ensaio: i) a primeira noção básica, óbvia e clichê seria
a não paralisia; ii) a segunda, o questionamento e confronto; e a terceira, iii) a
formação de base. Essas três dimensões, aliás, serviram como critério científi-
co pela escolha da CPT e MAB, por realizarem essas dimensões nas práxis de
resistência. Mas antes de discutir as estratégias da CPT/Prelazia de Itaituba e
MAB, faremos algumas breves considerações sobre os movimentos de resis-
tência no Oeste do Pará.

A CPT-Prelazia de Itaituba e MAB–“Emergência(s)”

Antes de entender a resistência em si, da CPT-Prelazia de Itaituba e do


MAB, é preciso realizar um breve itinerário histórico da emergência desses
movimentos, pois como enfatiza Bourdieu (2014), há uma produção de uma
amnésia da gênese da instituição, que a história elimina e faz esquecer como
possíveis, e que até mesmo torna impensáveis os possíveis. Assim um antí-
doto é “despertar e organizar o retorno do que está recalcado” (BOURDIEU,
2014, p. 412), isto é, “contar” um pouco das suas histórias, ou, no mínimo, a sua
emergência no território brasileiro e em Itaituba, sobretudo, pelo processo de
criminalização das resistências (classificados como atores instigadores de atos
terroristas, segundo a Lei das Organizações Criminosas Nº 12.580/2013 e a Lei
Antiterrorismo Nº 13.260/20163).
A CPT nasce em junho de 1975, durante o Encontro de Bispos e Prelados da
Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
realizado em Goiânia, no estado Goiás. Foi fundada em plena ditadura militar,
como resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores e trabalhadoras ru-
rais, posseiros e peões, sobretudo, na Amazônia: explorados em seu trabalho e/
ou submetidos a condições análogas ao trabalho escravo e expulsos das terras.
A CPT foi criada com o intuito de se colocar a serviço à causa dos trabalha-
dores e trabalhadoras do campo e de ser um suporte para a sua organização.

3. Segundo Rasch (2017), na América Latina, as organizações de base e movimentos sociais “contra me-
gaprojetos” como mineração a céu aberto, extração de petróleo, obras de infraestrutura, hidrelétricas e
monoculturas (agronegócio) estão cada vez mais tendo de enfrentar o aumento da criminalização a ma-
nifestações, protestos sociais, mobilizações, reuniões e formações de grupo de base, com sistemáticos
casos de ameaças, intimidações e mortes. Quadro esse com legitimação de estados-nações, de caráter
ultraconservador e neoliberal.

A conflitualidade como produtora do futuro 159


Portanto, não se resumindo, em termos de atuação, na criação de novas for-
mas de viver, governar e relacionar-se com os outros, mas, sobretudo, apoiando
grupos subjugados, subvertendo a lógica dominante do sistema capitalista e
modernidade/colonialidade; e, desafiando o sistema mundial contemporâneo
(CHABOT; VINTHAGEN, 2015), que é baseado em aceitação/consenso sobre
o capitalismo predatório (e na modernidade), o Estado espoliativo, e seletivo,
neoliberiliberal e antidemocrático.
Esse serviço à causa dos trabalhadores e trabalhadoras do campo é desta-
cado na fala de Elmara Guimarães/CPT – Prelazia de Itaituba, em entrevista,
quando da seguinte indagação: “Quando e por que o CPT começa a atuar em
Itaituba e região?”: “Em 2007. A CPT começa a atuar na região reafirmando o
compromisso de uma pastoral social que visa o fortalecimento das comunida-
des e seu protagonismo, denunciando as ações do capital e sua violência ao
povo do campo”. As posições da CPT centram-se em: Defensores de direitos,
questionamentos aos grandes projetos, combate ao trabalho escravo e luta por
reforma agrária.
Além disso, a sustentação e luta para concretização das suas diretrizes ba-
ses populares e comunitárias visam: 1) fortalecimento das comunidades e seu
protagonismo; 2) a denúncia das ações que privilegiam o capital, em detri-
mento dos direitos das comunidades camponesas; 3) valorização e libertação
da mulher camponesa e de fortalecimento de iniciativas da juventude cam-
ponesa; 4) o desenvolvimento de processos de formação que contribuam ao
fortalecimento da CPT, sobretudo, das comunidades.
A CPT possui também um excelente instrumento para reforçar a luta pe-
los direitos, que é o setor de documentação: o Centro de Documentação Dom
Tomás Balduino. Centro este que registra os conflitos em que homens e mu-
lheres do campo estão envolvidos e a violência que sofrem; e, registra também
a publicação do relatório Conflitos no Campo Brasil, onde constam todas as
ocorrências de violência.
A Comissão de Pastoral da Terra está organizada em todo o território na-
cional, em 21 regionais, que correspondem basicamente aos estados da Fede-
ração. Sendo assim, configura-se dialogando com Gills (2000, p. 4), como uma
resistência “ uma forma de ação política que deveria representar o interesse
geral ou social e com potencial para transformar a situação política e produzir
uma alternativa real “. Isso face à mundialização neoliberal, financeira, econô-
mica e cultural.

160 Territórios de esperança


O posicionamento da CPT é de desmonopolizar o político e a ação política,
até então sob judice do Estado, para construção coletiva de agenda de cres-
cimento social, calcada em um movimento, uma campanha e ação coletiva
contestatória como forma de oferecer respostas políticas que são objetivas a
questões que são resolvidas, na maioria das vezes, seletivamente e atendendo
também frações hegemônicas de classes, sob o discurso de consensual no âm-
bito do Estado. Visa, também, quebrar ou lutar para desconstrução do “ima-
ginário de uma sociedade cuja prática dominante repousa sobre a extração de
recursos, e seu sistema econômico também se erige sobre ele, dando margem
a se expandir um imaginário de poder ‘rentista’” (CASTRO, 2017, p. 27).
O MAB constitui um movimento com uma pauta coletiva contestatória que
se desdobra em debates e questionamentos acerca da construção de barragens
no Brasil. Foi o que aconteceu, na década de 1970, por exemplo, com a UHE
de Sobradinho, no Rio São Francisco, em 1973, UHE de Itaipu, em 1975, UHE
de Tucuruí, em 1975, e UHE de Itaparica, em 1979, que juntas expulsaram ou
remanejaram mais de 265 mil famílias (CORREA, 2009).
Assim como a CPT, o MAB começou a estruturar-se em plena ditadura mi-
litar, período em que ocorreu a retirada forçada de direitos civis e políticos.
Portando, apoiar a lutas contra barragens seria uma forma de lutar contra: 1)
o sistema político e econômico; 2) desconstruir a suposta crise energética a
nível mundial; 2) questionar e negar o deslocamento de empresas altamente
poluentes e consumidoras de energia elétrica, como as empresas eletrointensi-
vas: indústrias de cimento, siderúrgica (aço), metalurgia (ferro-ligas, alumínio
e alumina), química, papel e celulose.
O MAB e, logicamente a CPT, na década de 1990, em suas lutas e resistên-
cias pelo Brasil, passaram a enfrentar grandes empresas do setor energético,
mineradoras e grandes bancos que passavam a ser “donos das barragens”. Isso
conexo ao avanço do neoliberalismo sobre a América Latina, de privatização
de hidrelétricas e todo o Sistema Interligado Nacional. Nesse contexto, em
março de 1991, ocorreu o I Congresso Nacional dos Atingidos por Barragens,
no qual se oficializou a constituição do MAB, que deveria ser um movimento
nacional, popular e autônomo, organizando e articulando as ações contra as
barragens, a partir das realidades locais, à luz dos princípios deliberados pelo
Congresso.
Em novembro de 1999, o MAB realizou, em Minas Gerais, seu IV Congresso
Nacional, onde foi reafirmado o compromisso de lutar contra o modelo capi-

A conflitualidade como produtora do futuro 161


talista neoliberal e por um projeto popular para o Brasil, com um novo modelo
energético. Além disso, o congresso veio reafirmar o “método de organização
de base do MAB”, por meio dos grupos de base: instância de organização, mul-
tiplicação das informações e resistência ao modelo capitalista.
Atualmente o MAB está organizado em dezesseis estados do Brasil: Rio
Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Minas Gerais,
Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Goiás, Tocantins, Maranhão, Pará
e Rondônia. Hoje segundo sua plataforma de luta, é um movimento nacional,
autônomo, de massa, com direção coletiva em todos os níveis, com rostos re-
gionais, sem distinção de sexo, cor, religião, partido político e grau de instru-
ção. Um movimento popular, reivindicatório e político.
Em Itaituba, segundo Frede Vieira/MAB, sua constituição começou em
2011:

O movimento inicia seus trabalhos na região em 2010, decide ter um núcleo


inicial de militantes no ano de 2011.
Para o movimento à uma disputa política, econômica e ideológica na sociedade,
de um lado a classe trabalhadora que é quem gera riqueza nesse país e de um outro
lado uma burguesia que não trabalha e mantem o controle sobre os meios de produ-
ção e sobre a força de trabalho do trabalhador, então não tem como fazer a disputa
de poder se não for atuando de forma direta nas contradições do sistema capitalista.
A região do tapajós tem um contexto histórico de exploração de riqueza que precisa
ser mudado, é inadmissível uma região com tanta riqueza viver ainda nos dias de
hoje o abandono do estado com relação a políticas públicas como educação, saú-
de, saneamento básico, cultura e lazer. O movimento vem então com o objetivo de
somar no processo de luta da região, reconhecendo e respeitando todo o potencial
de luta que já existe e com o objetivo maior de construir unidade de forma coletiva.

A emergência (enquanto intensificação de ações) do MAB, no Oeste do


Pará, assim como a CPT, relacionam-se à expansão de planos e ações estatais
e empresariais, porém, não questionando o elemento físico em si (uma grande
obra), mas como o produto imaterial e invisível. Trata-se de discursos e ações
sociais/políticas hegemônicas – que reproduzem e refletem as relações sociais
de poder e capital: de força social e poder político, econômico e espoliativo.
Portanto, as resistências aos grandes projetos pensados e materializados no
Oeste do Pará são entendidas, dialogando com Cepeda-Másmela (2018), como

162 Territórios de esperança


resistência, isto é, “como práticas locais e globais que desafiam a ordem esta-
belecida e questionam seu caráter hegemônico, em um exercício que mostra
a existência de uma pluralidade de alternativas que se juntam no chamado
movimento de alterglobalização” (CEPEDA-MÁSMELA, 2018, p. 60).
Assim, a matriz de resistência é o questionamento sobre a seletividade de
ações políticas e as políticas públicas para o atendimento (afago) ao setor do
agronegócio e ao projeto modernizador conservador de constituição de esta-
do-nação, pautado na espoliação/despossessão: em perdas de direitos sociais,
em desterritorialização social e étnica, na degradação socioambiental, na pri-
vatização e na mercantilização/mercadorização da natureza, terra, territórios
e moradia.
As formas de resistência do MAB aproximam-se do que Chin e Mittelman
(2000, p. 37) pontuam como “formas cotidianas de resistência conduzida sin-
gular e coletivamente”; porém, a perspectiva mais clara de Cepeda-Másmela
(2015, p. 131) é de que “A resistência contra-hegemônica aparece então como
aquelas capazes de propor e construir alternativas concretas à ordem estabele-
cida, por um lado, e confrontar e desafiar o aparato estatal, por outro, em busca
de transformação política”.
Essa perspectiva de resistência relaciona-se com o contexto de territoria-
lização de multinacionais, bancos, agentes gestores de fundos e estados-na-
ções (Brasil, Holanda e China) e, em paralelo, causam: i) a intensificação de
conflitos; ii) violência urbana, de direitos humanos e étnicos; iii) espoliação
de territórios e culturas (formas de organização, reprodução e de tradição); iv)
perda de acesso e uso dos recursos naturais; e, v) ampliação da desigualdade
ambiental e social.
Nesse contexto de territorialização, houve também várias ações de resis-
tência que se intensificaram nos últimos quatro anos no Oeste do Pará, por
meio (mas não exclusivo) de Caravanas, Fóruns, Oficinas e Seminários, para
discutir direitos humanos, ações, experiências e proposições contra-hegemô-
nicas; com a busca de unidade/convergência dos movimentos de resistência e
construção de um discurso alicerçado na voz do amazônida, pensada por ama-
zônidas. Entre as ações desenvolvidas, em termos de unidade dos movimentos
de resistência no Oeste do Pará, podemos destacar:
• Caravana Agroecológica e Cultural de Santarém – com visita a comu-
nidades da Floresta Nacional dos Tapajós e na Reserva Extrativista Ta-
pajós – Arapiuns, nos municípios de Santarém e Belterra, entre 22 e 25

A conflitualidade como produtora do futuro 163


de outubro de 2013. As entidades responsáveis pela organização foram:
Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária (CEAPAC), Sindicato
de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém, Terra de Direi-
tos, Casa Familiar Rural de Santarém (CFR), FASE e Associação Agroe-
cológica Tijupá;
• I Caravana do Tapajós – realizada em 2014, reuniu cerca 700 pessoas
entre militantes e “sociedade civil”. Teve o objetivo de questionar o pla-
nejamento de construção de 43 usinas hidrelétricas projetadas para
a bacia do Tapajós. A Caravana contou com a presença de lideran-
ças Munduruku, CPT- da Prelazia de Itaituba, Movimento Tapajós Vivo,
MAB, Pastoral Social de Santarém, Associação Munduruku Pahihi do
Médio Tapajós, Associação Munduruku Pussuru do alto Tapajós, Asso-
ciação Munduruku Guerreiros do alto Tapajós e Pastoral Social da Dio-
cese de Santarém;
• Seminário sobre Mineração na Região do Tapajós – realizado dia 17 e
18 de setembro de 2015 – foi iniciativa do Instituto Brasileiro de Aná-
lises Sociais e Econômicas (IBASE), em parceria com a Pastoral Social
da Diocese de Santarém, Fórum da Amazônia Oriental (FAOR), Movi-
mento Tapajós Vivo, Programa de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e Fase Amazônia. Foram debatidos
temas relacionados à exploração de minério, conflitos que a atividade
tem gerado, com visibilidade internacional, e as resistências em defesa
dos territórios, frente à mineração no Oeste do Pará;
• II Caravana em Defesa do Rio Tapajós – realizada no período de 26 a 28
de agosto de 2016, na cidade de Itaituba. Evento/ato político coordenado
pelo Movimento Tapajós Vivo que envolveu organizações de movimen-
tos sociais dos municípios de Santarém, Itaituba, Jacareacanga e Aveiro.
Além de pescadores, barqueiros, garimpeiros, beiradeiros, indígenas,
agricultores, extrativistas, trabalhadores urbanos e rurais, associações
e sindicatos. O objetivo foi mobilizar, engajar e articular ações para que
movimentos sociais e “sociedade civil” estejam informados, atentos e
coesos acerca dos grandes projetos de empreendimentos nos rios da
Amazônia; ao mesmo tempo, propondo projetos contra-hegemônicos,
via oficinas e formação de base. Reuniu cerca de 1.100 pessoas;
• Pré-Fórum Social Panamazônico (FSPA) – encontro ocorrido dia 10 de
dezembro de 2016, em Santarém, com a participação de 130 pessoas,

164 Territórios de esperança


entre elas indígenas, quilombolas, jovens, mulheres, religiosos, repre-
sentantes sindicalistas e de associações comunitárias, professores, es-
tudantes e trabalhadores rurais. O tema do FSPA foi “Alternativas de
resistência à destruição do território”;
• Seminário Amazônia – territórios e significados em disputa – realiza-
do nos dias 9 e 10 de fevereiro de 2017, em Belém (PA), foi promovido
pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), em parceria com
o programa da FASE na Amazônia. O encontro reuniu pesquisadores,
acadêmicos, representantes dos movimentos sociais, lideranças comu-
nitárias, grupos de mulheres, indígenas, quilombolas, que dialogaram
sobre os problemas enfrentados tanto com os grandes empreendimen-
tos já concretizados quanto os planejados para a região;
• Seminário Indígenas, a floresta, o campo e as águas: vozes e políticas
no Baixo Tapajós – entre 5 e 6 de junho de 2017, representantes dos 13
povos indígenas do Baixo Tapajós estiveram reunidos com pescadores,
quilombolas, movimentos sociais, sindicatos, universidade, diocese e
pastorais sociais de Santarém, no Sindicato dos Trabalhadores e Tra-
balhadoras Rurais de Santarém. Seminário idealizado por membros do
Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) e estudantes indígenas da
UFOPA, com o objetivo de discutir a conjuntura política desfavorável às
populações do campo e das cidades; e de construir alianças com outras
comunidades tradicionais, setores da sociedade para enfrentar as ofen-
sivas desenvolvimentistas do Governo (Temer) e grandes empresas na
Amazônia, o desmonte, as violações dos direitos territoriais e sociais;
• Encontro dos Movimentos Sociais do Oeste do Pará - ocorrido de 14 a 17
de setembro de 2017, em Santarém. O encontro resgatou ricas experiên-
cias de luta e resistência da região: das Caravanas em Defesa do Tapajós;
da construção dos protocolos de consulta de indígenas, quilombolas,
pescadores(as) e ribeirinhos(as); da autodemarcação de territórios in-
dígenas; defesa das terras de agricultores(as) e por educação pública e
de qualidade; lutas das mulheres contra o patriarcado; mobilizações de
jovens; denúncias contra a violação de direitos humanos; do trabalho
de base desenvolvido nas comunidades; enfrentamento contra os mo-
nocultivos e as degradações ao meio ambiente, à saúde humana (pro-
vocadas pelos agrotóxicos);

A conflitualidade como produtora do futuro 165


• I Caravana do Oeste do Pará – no período de 29 de janeiro a 02 de fe-
vereiro de 2018, uma caravana com cerca de 60 pessoas que saiu de
Altamira passando por Brasil Novo, Medicilândia, Uruará, Placas, che-
gando até Rurópolis. Seu principal objetivo foi vivenciar as realidades
da Amazônia; intensificar a luta em defesa dos direitos territoriais de
povos e comunidades tradicionais ameaçadas pelo avanço do desenvol-
vimentismo econômico e da mercantilização da natureza. A realização
ocorreu por meio do Fundo Dema, representado por um Comitê Gestor,
do qual fazem parte a FASE Amazônia, Fundação Viver, Produzir e Pre-
servar (FVPP), Prelazia do Xingu, Comissão Pastoral da Terra (CPT) em
Itaituba, Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de
Itaituba, STTR de Santarém, Centro de Apoio a Projetos de Ação Comu-
nitária (CEAPAC), Fundo Indígena do Xingu (FIX), Coordenação das As-
sociações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Ma-
lungu) e Fundo de Mulheres Luzia Dorothy do Espírito Santo (FLDES).
Todos esses eventos/atos políticos têm eclodido na “cena pública” como
agentes de novos embates, renovação das lutas sociais coletivas e novas alian-
ças; é uma forma de reaproximação entre a base social de uma ação coletiva
e suas formas de ação ao âmbito societal, do qual seria: “uma noção compar-
tilhada de justiça social, construindo algum tipo de solidariedade entre seus
militantes de base e entre organizações, desenvolvendo propostas alternativas
a partir dela” (CEPEDA-MÁSMELA, 2015, p. 132), com a construção de uma
“identidade comum coletiva em termos de luta”. Todas essas lutas vêm questio-
nar diretamente as determinações gerais de projeto ideopolítico hegemônico
de sociedade e de perseguições, intimidações e ameaças.

Resistências e estratégias da CPT-Prelazia de Itaituba e MAB face


à produção de complexos portuários no oeste do Pará (Itaituba e
Rurópolis)

Apesar da mobilização e articulação enquanto coletividade e unidade, há


práxis diferenciadas de resistências, por exemplo, da CPT-Prelazia de Itaituba
e MAB. Grupos de resistência que vêm atuando “diariamente”, com questiona-
mentos/enfrentamentos que contribuem para a formação de base em Itaituba,
Rurópolis, Trairão, Jacareacanca e Novo Progresso.

166 Territórios de esperança


Os dois movimentos possuem eixos analíticos e de práxis comuns gerais
no que concerne ao entendimento de que não houve e não há desaparição de
classes e lutas de classes (apesar das lutas não serem só de classes), mesmo
com a “entrada no jogo” de outros jogadores, como multinacionais, bancos,
fundos de investimentos, agroindústria e estados-nações, no caso a China.
Essa demarcação de eixos analíticos e de práxis é um posicionamento po-
lítico que constitui o cerne de um movimento de resistência, permeado na
cena pública e/ou debates públicos, por exemplo, nas audiências públicas (no
qual há um embate político cognitivo), particularmente, acerca dos projetos
portuários, por exemplo, os portos: Unitapajós (Bunge/Amaggi), Cianport, Hi-
drovias do Brasil, Transporte Bortolini, Odebrecht e LDC. Além, audiências da
Ferrogrão e Pequenas Centrais Hidrelétricas, do Cupari e do Itapacurá (RO-
DRIGUES, 2018a; RODRIGUES; RODRIGUES; LIMA, 2019).
Tanto a CPT quanto o MAB fazem críticas profundas aos complexos por-
tuários, desde a construção e operação (com início em 2014) do porto da Uni-
tapajós (e a Fundação Bunge) e as compensações ambientais. Jurandir Silva/
CPT (em entrevista e descrita no nosso caderno de campo) não só enfatiza que
8 milhões de reais em compensações para Barcarena e Itaituba praticamen-
te não se concretizaram (até final de 2018) como também o acordo assinado
pelo Convênio Prefeitura e a Associação dos Terminais Portuários de Uso Pri-
vativo e das Estações de Transbordo de Cargas da Hidrovia Tapajós (ATAP)4
foram insuficientes para arcar com impactos negativos (prostituição, violên-
cia, desmatamento, inchaço populacional e estrangulamento do setor social)
(RODRIGUES; RODRIGUES, 2015, 2016; RODRIGUES, 2017, 2018b) desses em-
preendimentos. Jurandir Silva ainda destaca: “Essa pergunta ainda estar sem
respostas, pois não tenho conhecimento desta compensação”. Nossa pergunta

4. A ATAP foi fundada em 2013, associação sem fins lucrativos que congrega os Terminais Portuários (TUP)
e as Estações de Transbordo de Carga da Hidrovias Tapajós, com o objetivo de otimizar suas ações de
fomento e desenvolvimento da região onde se instalam; Defender a ampliação e a manutenção da malha
hidroviária; Enfrentar os desafios socioambientais; Fornecer suporte ao crescimento do setor portuário e
econômico-social de toda área de influência da Hidrovias Juruena –Teles Pires – Tapajós; Fomentar inicia-
tivas que visem o desenvolvimento da infraestrutura dos municípios portuários onde atua. Hoje a ATAP
se chama Associação dos Terminais Portuários e Estações de Transbordo de Cargas da Bacia Amazônica
(AMPORT). A AMPORT foi à fusão da ATAP e ATOC (Associação dos Terminais Portuários e Estações de
Transbordo de Cargas da Hidrovia do Tocantins). É composta por: Bunge, Cargill, ADM, Hidrovias do
Brasil, Cianport, LDC, Unirios (joint venture da Fiagril e Agrosoja), Chibatão Navegações, Brick Logística,
Mineração Butirama, Termogás, Hydro, Imerys, Odebrechet e Votorantim.

A conflitualidade como produtora do futuro 167


para ele foi: Como estão ocorrendo às compensações ambientais e ações da
Bunge (hoje Unitapajós)?
Frede Vieira/MAB destaca que:

[...] a fundação BUNGE no ano passado, nos, la dentro da câmara municipal as


vezes nos consegue algumas informações né, então algumas pessoas devem passar
algumas informações pra nós, então eles articularam uma reunião pra discutir sobre
a Fundação BUNGE tava disponibilizando, tava investindo KM 30 em Miritituba e
em Barcarena 8 milhões de reais, e nos conseguimos entrar nessa reunião, na doida
mesmo assim, fomos lá, eles estavam reunidos numa sala e a gente entrou pra gente
poder ouvi o que eles tavam conversando. Então tinha esse recurso e que inclusive
era pra ser investido a partir de novembro do ano passado, né, mas você chega em
Miritituba e continua não tendo nada. [...] E ai é assim, nós fica no questionamento
pra onde é que foi esse dinheiro, a fundação de fato, vai investir, ta investindo ou
aonde foi que botou esses 5 milhões, pra nós é muito pouco ainda, porque assim
não é 8 milhões que eles vão investir no prazo de dois anos, não, é 20 milhões que
eles tão dizendo que vão investir no prazo de cinco anos, aliás, 8 milhões no prazo
de cinco anos, e ai dividido entre Campo Verde que é lá o KM30, distrito de Mirititu-
ba e Barcarena a promessa da fundação Bunge é que desses 8 milhões, pelo menos
60% vai ficar entre Distrito de Campo Verde e Distrito de Miritituba, e pra nós é
muito pouco esse valor, por conta do tamanho do gargalo que tem ali, e também
por conta do lucro que essas empresas vão ter, né, quando esses portos começar a
funcionar ai com aquele número de circulação de carretas que eles tão colocando
ali (Entrevista com Fred Vieira, liderança do MAB em Itaituba – concedida a nós em
fevereiro de 2015).

Ainda para Frede Vieira/MAB:

[...] aumentou nesse último período nós temos muito mais carreta aí ... passan-
do na rodovia né ... então isso é um impacto maior nós temos agora um índice de
prostituição muito maior ...
[...] as mulheres, as meninas, as adolescentes principalmente ... tão vendo isso
como um mercado de trabalho [...] ganhar um dinheiro lá:: fácil ... mas pra nós assim
... o direito delas estão violados porque elas são adolescentes são crianças né.
[...] dia dez não dia oito de março de além de fazer a luta né ... em favor de di-
reitos das mulheres fizemos também uma luta é:::: questionando essa questão da

168 Territórios de esperança


violência no trânsito e aí denunciamos também que aí esse esse inchaço populacio-
nal já veio ocasionado tanto pelo anuncio das hidrelétricas quanto também agora
pela intensificação da construção de todos esses portos que tão aí ... então assim só
são impactos negativos até agora ... todos os impactos são negativos aqui na região
e agora a denúncia que nós tamô fazendo que:: é::: nós tamô dizendo assim ô “vai
ficar aqui também os filhos da soja” (Entrevista com Fred Vieira, liderança do MAB
em Itaituba – concedida a nós em maio de 2016).

Essas dinâmicas territoriais são fontes de “discussões-ações”, nas comuni-


dades, promovidas pela CPT, como assinalado por Egídio Sampaio/CPT-Pre-
lazia de Itaituba:

[...] então ... de principio é de discutir com os comunitários com os ribeirinhos


... impor no sentido de transmitir as informações que a gente tem e também tentar
trabalhar junto na busca do entendimento do que é realmente esses portos e quais
os impactos que eles vão causar na vida dessas populações desses ribeirinhos ...
essas pessoas que moram em Miritituba é::: eles ... a informação é de que os portos
chegou ... chegou os portos “ah:: isso é bom” mas bom pra quem? já começaram os
impactos ... então é nesse aspecto que a CTP questiona e que a gente faz questionar
também o governo os poderes constituintes ... no sentido do que esses portos vem
trazer pra essas populações que são ... mais fragilizadas (Egídio Sampaio/CPT-Pre-
lazia de Itaituba, entrevista realizada em maio de 2016, em Itaituba)

Seus posicionamentos (enquanto movimento social) foram e expressam o


que historicamente foram às políticas e planejamentos pensados e executa-
dos para região amazônica e oeste do Pará, por meio de consensos, acordos e
alianças forjadas entre o Estado e o grande capital, para criar uma espécie de
“capitalismo butre” (HARVEY, 2014). Esse “capitalismo butre” seria constituído
de práticas predatórias que se alimentaria e/ou retroalimentaria de ações cani-
balescas, de espoliação/despossessão e que canalizam, predominantemente,
sobre grupos sociais vulneráveis, os “resíduos”, as contradições e as degrada-
ções (HARVEY, 2018). As formas de lutas e resistências da CPT e do MAB, em
Itaituba, com relação aos grandes projetos (que inclui logicamente os projetos
portuários), são:
• Trabalho de base nas comunidades para que estas se empoderem e lu-
tem por seus direitos;

A conflitualidade como produtora do futuro 169


• Seminários sobre os grandes projetos na região do Tapajós;
• Formação/Oficinas sobre direitos e a Convenção no 169 da Organização
Internacional do Trabalho;
• Acompanhamento de Defensores de Direitos (Elmara Guimaráes/CPT-
-Prelazia de Itaituba).
O movimento tem desenvolvido junto aos parceiros da região lutas conjun-
tas como pressão em órgãos públicos em forma de ocupação, trancamento de
estradas como a transamazônica e BR 163, formação política com mulheres,
seminários em defesa dos rios e das florestas, formação com a juventude, ofi-
cinas sobre direitos nas comunidades, mobilização de rua nas áreas urbanas,
caminhadas, ocupações urbanas e construção de pautas coletivas em busca de
direitos básicos (Frede Vieira/MAB).
Essas formas de lutas e resistências da CPT e MAB (logicamente sintetiza-
da aqui no artigo, em virtude de processos de criminalização de movimentos
sociais), dialogando com Mészaros (2005), seriam negação radical da estrutura
completa de comando político do sistema – a negação é imprescindível e ade-
quada ao seu papel assumido de transformação social e de poder significativo
de transformação global.
Assim, a negação seria uma bússola de toda a caminhada. Contudo, acom-
panhada de ações objetivas (como formação de base, do qual CPT e MAB
realizam), buscando contrapor estruturas, ordens e políticas hegemônicas do
sistema capitalista e de um Estado com posicionamento de classe a favor de
frações de classes hegemônicas.
Esse processo de luta e de organização, que é essencialmente político,
vem sendo construído pela CPT e MAB, por meio, sobretudo, de laços sociais
e alianças (parcerias), seja pela busca para amadurecimento em termos de
aprendizagem constante (reuniões e/ou seminários), seja para abrir o debate
político e elaborar “projetos sociais/políticos” comuns.
Entre as parcerias para o amadurecimento em termos de aprendizagem
constante, houve a realização do Seminário Portos na Região do Tapajós, no
dia 21 de Junho de 2017, em Itaituba. Esse evento constituiu um espaço de
trocas de informações, debates e “afinamento” com relação à compreensão da
linguagem política, via tipologias e significações do âmbito portuário. Durante
o seminário tivemos a oportunidade de palestrar (Arco Norte, Portos e Itaitu-
ba). Discorremos acerca da política portuária brasileira, os investimentos fede-
rais, os portos planejados para o Oeste do Pará (Itaituba e Rurópolis), o projeto

170 Territórios de esperança


e o corredor Arco Norte, os “impactos” decorrentes do “Complexo Portuário
de Miritituba”, conflitos socioterritoriais, a relação dos portos e o agronegócio.
O seminário reuniu além de jovens militantes da CPT e do MAB, a ONG
Terra de Direitos, o Sindicato dos Trabalhadores de Educação Pública do Es-
tado do Pará de Itaituba (SINTEPP – Itaituba), Ministério Público, Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Itaituba (STTR – Itaituba) e Associação Indíge-
na Pariri - Munduruku. Além disso, o evento conseguiu atrair a mídia local, um
importante elemento, pois segundo Acselrad (2004), houve a acumulação de
força simbólica “no plano da legitimidade e colocando em causa o conteúdo
das noções prevalentes de justiça” (p. 29) e visibilidade na esfera pública (pres-
são aos organismos estatais e empresariais).
Esse Seminário contribuiu para traçar várias formas, legítimas, de “desobe-
diência” (política) ou a ação direta não violenta (RENOU, 2018), por meio do
processo formativo, de entendimento de jogos políticos, políticas infraestrutu-
rais, nomenclaturas e conceitos usados por racionalidades hegemônicas. Com
isso possuir discursos argumentativos críticos capazes de recusar práticas/po-
liticas desumanizadoras e espoliativas, com imperativo de implementar estra-
tégias políticas norteadoras de processos de reordenamento social, conforme
as condiciones ontológicas da vida. Além disso, enfrentando ou desconstruin-
do as formas jurídicas, a racionalidade econômica e a lógica do mercado.
Logicamente o fio condutor (estruturada) foi à luta por justiça social, sobre-
tudo, para mobilizar politicamente os jovens (que foram, aliás, no Seminário
em um número expressivo), analisar as questões políticas no cenário nacional
e global, as conexões e implicações nos territórios, nas comunidades de Itaitu-
ba e região. Por fim, compreender que a formação continuada (conscientiza-
ção) é componente fundamental para produção e construção: de arcabouços
operativo-instrumentais e laços formativos de identidade coletiva entorno de
experiências e lacunas compartilhadas, de maneira a alimentar retroativamen-
te ao processo de lutas.
Outro importante Seminário foi o Seminário Portos no Rio Tapajós, reali-
zado nos dias 19 e 20 de setembro de 2017, nos municípios de Itaituba e Ruró-
polis. Contou com a participação de CPT, MAB, Terra de Direitos, IBASE (com
apoio financeiro), Associação Indígena Pariri - Munduruku, estudantes de en-
sino médio, Associação de Remanescentes de Quilombos do Arapemã, ribeiri-
nhos, indígenas e moradores de Santarenzinho/Rurópolis.

A conflitualidade como produtora do futuro 171


Figura 1: Seminário Portos no Rio Tapajós, realizado nos municípios de Itaituba e
Rurópolis

Fonte: Jondison Rodrigues

Esses seminários também contribuíram para o lançamento da carti-


lha “Portos no Tapajós: o arco do desenvolvimento e da justiça social?” (Figura
2), desenvolvida pelo IBASE e de autoria de Jondison Rodrigues, no qual apre-
senta de forma sintética e crítica os impactos e conflitos decorrentes da insta-
lação de portos em Itaituba, além de mostrar as estratégias, os investimentos,
os portos planejados e o projeto sustentador, o Arco Norte.
A cartilha não foi apenas um retorno acadêmico e político, mas, sobretudo,
um instrumento de luta de movimentos sociais e associações. Instrumento que
se pautou nos discursos reiterados, principalmente CPT e MAB, acerca desses
projetos portuários, desde o início de territorialização de empresas nacionais
e multinacionais, ao longo da margem direita do Rio Tapajós (em termos de
funcionamento do complexo portuário), a partir de 2014.

172 Territórios de esperança


Figura 2: Cartilha Portos no Tapajós: O Arco do Desenvolvimento e da Justiça Social?

Essas parcerias da CPT e MAB estão muito distantes da velha dicotomia de


movimentos culturais e movimentos históricos. São “junções” e já há a com-
preensão enquanto movimentos políticos, questionadores e propositivos; e
que, apesar da peculiaridade de luta e caminhos de diferentes emergências
(SOBREIRO-FILHO, 2015), apresentam uma organização sistêmica, em termos
de solidariedade e cooperação sistêmica, possuindo ao que assinala Sobreiro-
-Filho (2017) como construção de pontos de luta comuns e commons agendas.
Solidariedade e cooperação sistêmica que vêm sendo tecidas lentamente,
por exemplo, com a parceria, o apoio na elaboração do protocolo de consulta
da comunidade de Pimental e São Francisco (que possui cerca de 320 famílias),
junto com a ONG Terra de Direitos (Figura 3) e o documentário ‘Protocolos de
Consulta no Tapajós: experiências ribeirinhas e quilombolas’, o qual sintetiza
como as comunidades ribeirinhas e quilombolas se organizaram para enfren-
tar as recentes ameaças aos territórios (Figura 4).

A conflitualidade como produtora do futuro 173


Figura 3: Imagens e fotografia do protocolo de consulta. Ato de lançamento do
Protocolo e fotografia dos membros apoiadores (MAB, Terra de Direitos e CPT)

Segundo Terras Direitos (2018), o protocolo comunitário das comunidades


ribeirinhas de Pimental e São Francisco reafirma o direito à consulta prévia,
livre e informada pautando-se, sobretudo, na Convenção 169 da OIT, a essas
duas comunidades, existentes há mais de cem anos. Tais comunidades reivin-
dicam o reconhecimento a seus modos ancestrais de vida e territorialidades
seculares, reinventam suas identidades e ressignificam seus mundos, por meio
da reflexão-ação, a síntese de reproduções das suas condições de existência

174 Territórios de esperança


(LEFF, 2018), da sua produção da vida presente e futura, do seu “patrimônio
comunitário” (SÁNCHEZ-JIMÉNEZ, 2018).

Figura 4: Imagens de folder e do vídeo do documentário “Protocolos de Consulta no


Tapajós: experiências ribeirinhas e quilombolas” (lançado em Santarém, dia 28 de
maio de 2018)

Ainda para Terras Direitos (2018), o protocolo comunitário das comunida-


des ribeirinhas, além de apontar de que maneira e com quais segmentos so-
ciais a consulta deve ser realizada, também enfatiza os direitos consuetudiná-
rios, que são os que surgem dos costumes e tradições de certa sociedade, não
passando por um processo formal de criação de leis, onde um poder legislativo
cria leis, emendas constitucionais e medidas provisórias.
A CPT e MAB (juntamente com a ONG Terras Direitos) são agentes que, ao
mesmo tempo, vêm contribuindo para a melhoria da organização, representa-
ção e coesão entre as comunidades. Mas também vêm buscando tensionar, por
meio (enfrentamentos) de debates, judicialização das ações/políticas e espolia-
tivas (empresariais e estatais) e a legitimação e/ou apoio por parte do Estado.
Portanto, a CPT e o MAB são agentes questionadores e propositores de
construção de um projeto societário-coletivo, a partir da transformação estru-
tural profunda das relações econômicas e políticas para uma sociedade radi-

A conflitualidade como produtora do futuro 175


calmente e realmente democratizada, promovedora de justiça social (STOKKE;
MOHAN, 2001).

Considerações finais

Esse artigo desenrolou-se na apresentação de resistências e estratégias


reais no Oeste do Pará, portanto, não é fundado em proposições ou abstrações
academicistas, por exemplo, de “papel político da utopia enquanto elemento
necessário para o empoderamento cidadão para uma ação social transforma-
dora” (LIMONAD, 2018, p. 82). O momento histórico constitui-se altamente
complexo, capitaneado pela lógica-par: finanças-neoliberalismo (ultraconser-
vador, antidemocrático e de militarização política e social, no caso brasileiro);
pautado em processos de acumulação por despossessão/espoliação (destrui-
ção de possibilidade de vida e da relação ontológica e cosmológica), desigual-
dades sociais e gênero e racismo ambiental: de povos tradicionais, indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e campesinos e campesinas de todo o planeta.
Trata-se de uma configuração que se insere sim em uma ampla global ine-
quality alicerçada na commodity chains (SELWYN, 2015), no entanto, na esca-
la “local” (Oeste do Pará, Itaituba e Rurópolis). Essa “economia de espoliação”
(HARVEY, 2012, p. 17) é mais intensa, com: i) aumento da especulação fundiária
e imobiliária e dos preços do alugueis de imóveis; ii) aumento da população e da
prostituição; iii) intensificação da violência urbana (roubos, furtos, violência a
mulheres e mortes); iv) proibição da atividade pesqueira; v) violação de diretos,
humanos, étnicos e territoriais (de indígenas/os munduruku, ribeirinhos, beira-
deiros); vi) destruição de sítios arqueológicos; vii) desmatamento nas áreas de
construção dos portos e nos postos e pátios de triagem; e, viii) assoreamento de
igarapés. Uma representação cabal da máxima de David Harvey: “Afinal, vive-
mos em um mundo em que os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro
superam todas as outras noções de direitos.” (HARVEY, 2008, p. 23).
Mostrar alguns pontos das estratégias de resistência da CPT e MAB não é
apenas evidenciar formas de “bloqueio” e/ou construção de arenas públicas
de enfrentamentos, mas também, evidenciar e compartilhar desafios, reivin-
dicações, questionamentos, mobilizações e proposições constantes, com um
vetor contra-hegemônico.
Acreditamos, sem dúvida (de forma óbvia), que qualquer movimento social
busca (ou deveria) ampliar redes de pressões, articulações e mobilizações, isto

176 Territórios de esperança


é, engajar-se em ações políticas multi-escalares (identidade política coletiva),
isto é, com interação e relacionamento multi-escalares (como assinalado por
Routledge (2003)), como forma de resistir a diversas formas espoliavas/des-
possessiva.
Porém, é fundamental e imprescindível, antes de formar redes globais de
base (ROUTLEDGE, 2003), alimentar a organização, formação e mobilizações
locais, regionais e nacionais, com padrões de relações sociais calcadas em so-
lidariedades comunitárias e solidariedades orgânicas sistêmicas (algo que CPT
e MAB vêm realizando), sobretudo, na Amazônia ou, aliás, nas Amazônias, de
mosaicos territoriais, onde predomina o latifúndio político, econômico e cul-
tural mais denso (em termos de complexidade) do Brasil, devido até sua for-
mação socioterritorial.
Portanto, o caminho natural, mais lento, será (ou deveria ser) de conver-
gência, de diversos movimentos sociais que articulam visões coletivas, todavia,
com prudência, já que o processo histórico evidencia uma face de colonialida-
de de relações sociais de poder na América Latina (econômico, político e até
acadêmica), e, mais particularmente, na Amazônia, onde o participar significa
apenas falar. Além disso, os processos de lutas sociais são ancorados no proces-
so de emancipação e autonomia de diversos modos de regulação, controle e in-
tervenção (e colonialidades) de “instituições/saberes/políticas hegemônicas”.
Por fim, também é a busca de enfrentar medos, parafraseando a música
Miedo, do cantor e compositor Linine: “Tenho medo de parar e medo de avan-
çar. Tenho medo de amarrar e medo de quebrar. Tenho medo de exigir e medo
de deixar” (LENINE, Miedo). A “violência, se outrora foi recurso civilizatório,
agora é naturalizada como sendo pacificadora” (PEREIRA, 2019, p.12), enrola-
da em pacotes anticrime e/ou por meio de ações dos que estão operando na
penumbra, nas “periferias” (do campo e da cidade) e contra jovens (principal-
mente negros), indígenas, migrantes, nordestinos, Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transgêneras, Travestis, Queer (LGBTTQ), mulheres e crianças.

Agradecimentos

Ao CNPQ e a FEPEAP/CAPES pela bolsa, respectivamente, de Doutorado


e Pós-Doutorado. Ao MAB, CPT, IBASE, Terras de Direitos, pelos diálogos e
entrevistas. À Elmara Guimarães/CPT e Fred Vieira/MAB pelos ensinamentos
sobre Itaituba e o Oeste do Pará.

A conflitualidade como produtora do futuro 177


Referências

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180 Territórios de esperança


Contradições, resistência e lutas sociais frente
aos desastres socioambientais da mineração em
Barcarena-PA
Marcel Theodoor Hazeu • Solange Maria Gayoso da Costa
Nádia Socorro Fialho Nascimento

Introdução

O sistema que articula todas as economias, modos de produção e socieda-


des, em torno da acumulação do capital, tem marcado, na acumulação
por espoliação (HARVEY, 2005) e na superexploração do trabalho (MARINI,
1973) e dos bens naturais, presença na Amazônia brasileira. Dentre os esta-
dos que compõem esta região destaca-se o Pará, lócus da acumulação de ca-
pital pela via da instalação de empreendimentos de infraestrutura e logística,
agronegócio e mineração; todos eles provocando conflitos socioambientais e
territoriais, envolvendo populações tradicionais e operários1, desde a fase de
instalação até a sua operacionalização plena e ampliação.
No estado do Pará, destaca-se o município de Barcarena2, onde a atuação
das empresas capitalistas, contando com o apoio do Estado, têm provocado
desastres sociais e ambientais desde a implantação do complexo portuário-in-
dustrial mineral da Albrás/Alunorte, ainda na década de 1980. A partir daque-
la desse período, foram identificados vinte e quatro desastres ambientais em
Barcarena, envolvendo naufrágios de navios de carga, derramamento de lama
vermelha, de caulim, de óleo, de soja, além da contaminação das águas, da ter-
ra e do ar. Todos estes processos trouxeram consequências gravíssimas, muitas
vezes irreversíveis e definitivas para a população e o meio ambiente. Além dos

1. Usamos o termo operário quando nos referimos a trabalhadores e trabalhadoras que vivem dos empregos
diretamente vinculados às empresas em Barcarena
2. O município de Barcarena se estende por 1 310,3 km² e conta com cerca de 99 800 habitantes, segundo o
último censo. Encontra-se a 15 km a Sul-Oeste do município de Belém, capital do estado do Pará.

A conflitualidade como produtora do futuro 181


efeitos da poluição dos rios, dos solos e do ar, as comunidades tradicionais
são submetidas às ações de deslocamentos compulsórios, como indicado por
Hazeu (2015), segundo o qual cerca de 2.582 famílias (cerca de 10 mil pessoas)
foram deslocadas compulsoriamente, dos seus lugares de moradia e subsistên-
cia. Ao mesmo tempo, os (as) trabalhadores (as) vinculados (as) ao complexo
industrial mineral de Barcarena sofreramas consequências dos processos de
reestruturação produtiva em curso, marcados por acréscimos na jornada de
trabalho e terceirização do trabalho.
Nesse contexto de desestruturação da vida social causada pelos desastres
socioambientais e laborais, a resistência, construída no cotidiano e tornada
pública em momentos decisivos ao enfrentamento do capital, mostrou-se forte
e importante à manutenção dos modos de vida e da saúde dos moradores (as)
e trabalhadores (as). Uma resistência que se constrói primeiro no cotidiano,
conforme Scott (2013), nos pequenos atos de desobediência, de contra discur-
sos e recusas públicas aos empreendimentos e atividades que coloquem em
risco o modo de vida local.
A partir de atividades realizadas por professores(as) da Faculdade de
Serviço Social (FASS) da Universidade Federal do Pará (UFPA)3, por meio de
programas/projetos de extensão e de pesquisa no município de Barcarena,
foi possível acompanhar o processo de resistência e luta dos sujeitos sociais
no enfrentamento aos efeitos devastadores provocados pela instalação do
complexo industrial mineral e pela infraestrutura portuária no município de
Barcarena. É com base nessas experiências e estudos que o presente artigo
traz uma reflexão sobre a organização das comunidades tradicionais e dos
(as) trabalhadores (as) das empresas mínero-metalúrgicas, frente às ofensi-
vas do grande capital com o apoio do Estado, evidenciando as contradições
presentes nos processos em curso na Amazônia brasileira, em particular, no
município de Barcarena.

3. Tais atividades estão vinculadas ao Programa de Extensão Meio Ambiente, Povos e Comunidades Tradi-
cionais (MAPCT) e ao Grupo de Estudos Sociedade, Território e Resistências na Amazônia (GESTERRA),
executados por professores/pesquisadores vinculados à Faculdade de Serviço Social (FASS) e ao Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA/UFPA).
Estes pesquisadores se articulam em parceria com o GETTAM/NAEA/UFPA, que desenvolve trabalhos no
município de Barcarena com lideranças das comunidades e sindicatos.

182 Territórios de esperança


Resistência e lutas sociais no município de Barcarena-PA

A partir de meados da década de 1960, as mobilizações sociais organiza-


das em movimentos intensificaram-se pela Europa, Estados Unidos e América
Latina, fazendo surgir, muito especialmente após 1968, os chamados novos
movimentos sociais. Do questionamento da ordem social, estes movimentos
colocaram-se, a partir da década de 1970 e início de 1980, no enfrentamento
dos regimes ditatoriais, tanto na América Latina quanto na Europa oriental.
Surgiram fora do âmbito dos partidos políticos, tornando-se protagonistas na
luta por direitos e justiça social; identifica-se, também, o surgimento de uma
diversidade de formas de lutas na cena pública, organizados em grupos sociais
denominados ou autodenominados povos originários ou povos/comunidades
tradicionais4.
No Brasil, especialmente na Amazônia, Almeida (2004) identifica a exis-
tência desse processo desde meados de 1988, a partir da aglutinação de gru-
pos sociais diferenciados, que têm se organizado em “unidades de mobili-
zação”5 em todo o país, com elevado grau de coesão em suas práticas. Tais
unidades de mobilização se compõem a partir de critérios diferenciados e
objetivam garantir o controle sobre determinados “[...] domínios representa-
dos como territórios fundamentais à sua identidade e, inclusive para alguns, à
sua afirmação étnica” (ALMEIDA, 2004, p. 23 -24). São grupos protagonizados
por indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros
e quebradeiras de coco, que lutam pela afirmação de suas identidades, defesa
de seus territórios e modos de vida, num movimento contínuo de organiza-
ção e resistência contra os agentes sociais que ameaçam sua existência como
povos tradicionais.

4. O Decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável dos Povos e Comunidades Tradicionais, em seu Artigo 3o , inciso I, assim define Povos e Comunida-
des Tradicionais: “[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-
ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
5. O conceito de “unidades de mobilização” é proposto por Almeida (2006, p. 25) e refere-se “à aglutinação de
interesses específicos de grupos sociais não necessariamente homogêneos, que são aproximados circuns-
tancialmente pelo poder nivelador da intervenção do Estado – através de políticas desenvolvimentistas,
ambientais e agrárias – ou das ações por ele incentivadas ou empreendidas, tais como as chamadas obras
de infraestrutura que requerem deslocamentos compulsórios”.

A conflitualidade como produtora do futuro 183


Cruz (2013, p. 126-129) observa que os novos movimentos sociais, apesar
de sua diversidade de formas e sentidos de suas ações coletivas, compartilham
algumas características e traços em comum, quais sejam: i) uma diversidade
de origens sociais, culturais, étnicas, raciais e até civilizatórias em sua estrutu-
ração; ii) mantêm, na centralidade de suas ações e discursos, “[...] a politiza-
ção da cultura e uma revalorização das memórias” (CRUZ, 2013, p. 126). Isso
implica em agendas de luta com articulações mais complexas onde questões
étnicas, de gênero, ambientais, agrárias vão sendo articuladas visando práti-
cas sociais emancipatórias; iii) impõem o desafio de construção “[..] de uma
ideia de cidadania e de justiça que seja capaz, simultaneamente, de pautar-se
na igualdade e na valorização das diferenças” (CRUZ, 2013, p. 127); iv) outra
característica é a busca “[...] pela construção de uma autonomia política e eco-
nômico-produtiva” (CRUZ, 2013, p. 128); v) mantêm sua capacidade de formar
seus próprios intelectuais, formular seus próprios projetos educacionais fun-
dados em suas necessidades e experiências.
As pautas e agendas dos novos movimentos sociais enfatizam a premência
das lutas em defesa do território e da vida, assim como, a luta pela democra-
tização de conhecimentos, saberes e de valorização de outras epistemologias
que não aquelas forjadas pelo pensamento colonizador. Nesse sentido, são
também “[...] movimentos [...] de resistência à colonialidade, seja como grupos
que colocam em prática o pensamento decolonial ou que promovem moder-
nidades alternativas” (CARVALHO, 2015, p. 1).
Harvey (2005), ao refletir sobre o processo de resistência ao Capital, en-
fatiza que a “acumulação por espoliação” provoca dois tipos de resistência: a
histórica luta de classe dos e das operários, a partir de entidades sindicais e or-
ganização em partidos políticos, lutando por emprego, condições de trabalho e
salário, em última instância, pela propriedade coletiva dos meios de produção;
e a luta contra a expropriação dos territórios, devastação da natureza e o im-
pedimento da reprodução social de outros modos de vida, a partir de comu-
nidades tradicionais e povos indígenas, movimentos ecológicos e de reforma
urbana, lutando por territórios e modos de vida não pautados nos modos de
produção capitalista.
É nesse contexto geral que podemos falar da mobilização e organização das
lutas sociais em Barcarena, de sua história de enfrentamento contra os efeitos
da implantação do complexo industrial mínero-metalúrgico e de infraestrutu-
ra logística na vida cotidiana das comunidades tradicionais e dos trabalhado-

184 Territórios de esperança


res migrantes e não migrantes. Tal mobilização e organização de lutas sociais
estão intrinsecamente ligadas aos impactos socioambientais e ao sofrimento
humano vivenciado pelas comunidades tradicionais e de trabalhadores/tra-
balhadoras rurais, como resultado do processo de acumulação por espolia-
ção protagonizado pelas grandes empresas – com apoio do Estado – que, ao
invadir os territórios das populações, provocaram mudanças no modo de (re)
produção e de trabalho e nas formas de relações sociais que prevaleciam nas
comunidades (PALHETA, 2005).
Tal processo pode ser percebido tomando como referência as mudanças
significativas na organização do território e nas estratégias de lutas protagoni-
zadas pelas comunidades tradicionais e operários. Foram identificados, pelo
menos, quatro momentos dessas mudanças significativas: o primeiro, com
a implantação das empresas Albras e Alunorte, do Porto de Vila do Conde, e
núcleo urbano de Vila dos Cabanos, nas décadas de 1970 e 1980, momento
das desapropriações dos sítios localizados nas áreas onde as empresas seriam
instaladas, de atuação direta destas na organização comunitária, das grandes
manifestações e protestos por melhores condições de trabalho e moradia dos
trabalhadores contratados para a construção do complexo portuário-indus-
trial-urbanístico; segundo, a reorganização do distrito industrial, nas décadas
de 1990, 2000 e primeiros anos da década de 2010, visando à instalação de no-
vas empresas, o que gerou novos deslocamentos compulsórios, grandes desas-
tres ambientais e, contraditoriamente, aumento da consciência ambiental por
parte da população e trabalhadores; o terceiro momento caracterizado pela
retomada dos territórios e pela maior organização dos povos tradicionais na
defesa de seus direitos e a judicialização dos conflitos; o quarto – em período
mais recente – caracterizado pelo enfrentamento direto às empresas do com-
plexo industrial pelas comunidades tradicionais e o tensionamento entre as
pautas do sindicato e das comunidades tradicionais.

a) As primeiras mobilizações pós implantação das empresas Albras/Alunorte,


do Porto de Vila do Conde e Núcleo Urbano de Vila dos Cabanos.

A partir da década 1970, com as grandes transformações no território de


Barcarena, em função da implementação do complexo portuário-industrial-
-logístico e urbanístico, nasceram novas formas e lógicas de organização da
resistência. A formação dessas organizações ocorreu dentro de um campo

A conflitualidade como produtora do futuro 185


de forças, envolvendo agentes com interesses e estratégias muito diversas.
O Estado (militar) atuou na Amazônia por meio de uma política desenvolvi-
mentista autoritária (elaborada em planos de desenvolvimento), com inves-
timentos na “[...] industrialização da selva” (PORTO-GONÇALVES, 2017, p.
33). Esse modelo de desenvolvimento desconsiderou os modos de vida das
comunidades tradicionais, muitas das vezes entendidas como obstáculos à
instalação e ampliação de atividades econômicas como a exploração madei-
reira, agropecuária, mineração, além da implantação dos projetos de coloni-
zação e estímulo à migração.
Em Barcarena, o Governo Militar interviu por meio de instituições federais
e estaduais como a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do
Pará (CDI)6 e a Companhia do Desenvolvimento de Barcarena (CODEBAR),
que coordenaram a implantação e funcionamento das indústrias e portos,
assumindo a negociação e pressão junto às comunidades. A regularização
fundiária foi imposta para poder “des-apropriar” os territórios dos moradores
tradicionais, estimulou-se a organização de associações de moradores para fa-
cilitar o controle sobre as comunidades. Maia (2017, p. 61) afirma que “[...] o
ITERPA – Instituo de Terras do Pará -(1982) fez o levantamento dos sítios que
ocupavam esta área para os processos de indenização”. Tourinho (1991 apud
MAIA, 2017) afirma que o Estado do Pará (por meio da CDI e ITERPA) criou vá-
rios mecanismos jurídicos para equacionar a problemática da desapropriação:
nas terras devolutas promoveu a regularização fundiária, titulando-as para,
posteriormente, proceder com a desapropriação.
Na década de 1970, a organização social nas comunidades em Barcarena
se apresentava dentro de dinâmicas de relações familiares e territoriais, que se
expressavam por meio de atividades coletivas e participação em igrejas, garan-
tindo uma organização social particular entre os moradores. Segundo Maia e
Moura (1989), essas organizações sociais não se constituíram como movimen-
tos sociais ou associações. Essas formas de se organizar mudaram no início
da década de 1980, ainda em plena ditadura militar, com a implantação das
obras de construção do porto da Vila do Conde, Alunorte e Albras, Eletronorte,
Núcleo Urbano de Vila dos Cabanos e, posteriormente, as demais empresas,
quando mais de 500 famílias foram forçadas a sair dos seus territórios, perden-

6. Hoje denominada Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará/CODEC.

186 Territórios de esperança


do os laços de organização comunitária e sendo deslocadas para outros locais
de moradia.
Essa situação levou a uma reação daqueles moradores tradicionais por
meio da fundação, em 1984, da Associação dos Desapropriados de Barcarena
(ADEBAR), que, junto com o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Barcarena
(STRB), atuaram para renegociar os termos de desapropriação, deslocamen-
tos forçados, reassentamentos e indenizações, “[...] com o objetivo principal
de recuperar o valor justo de suas benfeitorias, congregar os expropriados e
repassar as experiências para outros moradores que se sentem ameaçados por
novas invasões nos sítios existentes no município” (PALHETA, 2005, p. 55).
Mesmo forçadas a sair, algumas famílias tradicionais permaneceram em suas
terras, sendo constantemente expulsas e retornando; outras, mesmo tendo
sido deslocadas, “[...] continuavam realizando seus roçados, fazendo sua fari-
nha e ‘batendo’ o seu açaí (proveniente de seu território) por muitas vezes às
escondidas” (MAIA, MARIN, 2014, p. 19). Nos “novos lugares” para onde foram
deslocados, como os bairros de Laranjal e Vila Nova, os moradores formaram
centros comunitários, enquanto o mesmo acontecia em comunidades amea-
çadas por desapropriações e deslocamentos forçados, como a comunidade
São Lourenço (HAZEU, 2015).
Além da atuação do Estado, as empresas também se fizeram ativamente
presentes nas desapropriações, nos centros comunitários e associações. Pa-
lheta (2005) e Maia & Moura (1995) concluem, em seus estudos que, nesse
período, a principal estratégia adotada pelas empresas foi de interferência e
controle das associações comunitárias, por meio da oferta de serviços, projetos
e favores, incluindo a fundação de centros comunitários e sua manutenção.
Esse fato é demonstrado por Vasconcelos (1996) sobre a ação da Alunorte no
Centro Comunitário de São Lourenço, onde as atividades se direcionavam ao
oferecimento de cursos, trabalhos coletivos (mutirões) e intermediação de ser-
viços entre comunidades e empresas, sem assumir um papel mais reivindica-
tório e combatente.
A relação das empresas com as comunidades visava (e ainda visa) tanto
a organização de produção subsidiária como a confecção de roupas e oferta
de alimentos para os trabalhadores nas empresas-, quanto a pacificação de
possíveis resistências. Àquela sedução pela possibilidade de emprego soma-se
também a atuação no sentido de intimidar e controlar a organização dos/as
operários e dos próprios movimentos sociais de resistência, com a intervenção

A conflitualidade como produtora do futuro 187


direta na criação e gestão de associações de moradores, centros comunitários
e sindicatos. Tal interferência provocou ainda a divisão interna entre as comu-
nidades, como relatou uma liderança comunitária:

[...] quando as comunidades conseguem se unir, vem a empresa e cria diver-


gências entre nós. As nossas pautas coletivas são derrubadas por projetos isolados
oferecidos pelas empresas. Em vez de despoluir os nossos rios poluídos, financiam
projetos de criação de galinhas, que no final vão beber água poluída (Trabalho de
campo 2018).

Paralelo ao processo de desapropriação das terras das comunidades tradi-


cionais e de trabalhadores/trabalhadoras rurais para instalação das empresas,
chegaram ao município um grande número de operários para a construção do
complexo portuário-industrial-urbanístico (Albras/Alunorte, Porto da Vila do
Conde, Eletronorte e Vila dos Cabanos). Estes operários formaram uma asso-
ciação que se transformou posteriormente em sindicato.
Na fábrica de alumínio Albrás, inaugurada em 1985, os operários eram li-
gados ao Sindicato dos Metalúrgicos (SIMETAL), inserindo-se no “novo sin-
dicalismo”, vinculado naquele momento à Central Única de Trabalhadores
(CUT), fundada em 1983. Sob o “[...] comando do SIMETAL com uma diretoria
comprometida com o que de mais avançado havia no sindicalismo brasileiro”
(SANTIAGO, 2007, p. 228), iniciaram-se greves maciças por melhores salários
e condições de trabalho7.

b) Reorganização do distrito industrial, nas décadas de 1990, 2000 e 2010:


novas empresas, reorganização sindical, novos deslocamentos compulsórios,
grandes desastres ambientais e aumento da consciência ambiental.

Nos anos 1990, com a chegada das novas empresas IMERYS Rio Capim
Caulim e Pará Pigmentos, a comunidade tradicional, autodenominada Monta-

7. É nesse período que os operários da Albrás vivenciaram as lutas mais importantes da história do movi-
mento sindical no Pará, principalmente a greve de agosto de 1990, onde conquistaram direitos econômi-
cos e sociais importantíssimos, com piquetes de greve, assembléias democráticas, apoio dos familiares
e solidariedade de sindicatos versus intransigência do Estado e dos patrões capitalistas. [...] Bem perto
dos operários da ALBRAS acontecia uma greve dos trabalhadores da construção civil, responsáveis pela
ampliação das instalações do complexo Albrás-Alunorte (SANTIAGO, 2007, p. 201, 202).

188 Territórios de esperança


nha, situada às margens do rio Pará, foi alvo da ação das empresas e do próprio
Estado para forçar o remanejamento das famílias. Sabendo dos resultados da
implantação do complexo Albras/Alunorte, no município de Barcarena, com a
expropriação da terra de cerca de quinhentas famílias, essa comunidade mo-
bilizou-se. Contando com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de um
Projeto de Extensão8 da Universidade Federal do Pará (UFPA), e do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Barcarena (STRB), teve início um longo processo
de negociações por meio do qual a comunidade da Montanha resistiu, espe-
cialmente à negociação de forma isolada proposta pelas empresas.
Diferentemente do que aconteceu com as famílias afetadas pelo Projeto
Albrás/Alunorte, as famílias da Montanha negociaram de forma coletiva e al-
cançaram a assinatura de um Termo de Compromisso entre a comunidade, as
empresas e o Estado. Este Termo continha parte de suas reivindicações, com
destaque para a possibilidade de escolha do local para onde desejavam ser re-
manejadas, garantindo, assim, minimamente, a reprodução das suas condições
de vida (FIALHO NASCIMENTO, 1999). Pelos laços de parentesco, as famílias
da Montanha escolheram ser reassentadas na área de uma comunidade deno-
minada Curuperé criando, desse modo, uma nova comunidade denominada
Nova Canaã, numa menção à terra bíblica. Em 1991 organizou-se a Associação
dos Trabalhadores Rurais de Curuperé (ASTRC) e, embora sua experiência
de resistência tenha se tornado referência para as comunidades próximas, a
restrição às suas práticas de subsistência inviabilizou a permanência no local.
Parte das famílias foi forçada a um novo deslocamento para outra área, onde
criaram a comunidade Nova Vida. Carmo (2010) chama a aprendizagem com
este processo de organização social de “pedagogia do deslocamento”, com di-
mensões de luta por direito, solidariedade e compreensão do mundo.
Nesse período, também foram identificadas mudanças na atuação sindical,
com destaque para o Sindicato dos Metalúrgicos do estado do Pará quevinha
passando, na década 1990, por uma transformação de rumo. A linha “aguer-
rida” do primeiro momento foi substituída, pouco a pouco, por uma linha da
negociação com a empresa, a tal ponto de se transformar em um “sindicalismo

8. O Projeto de Extensão “Assessoria às Organizações Sindicais e Comunitárias Rurais no município de Bar-


carena/Pa” era coordenado por docente da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará
e contava com parcerias da CPT e do STRB.

A conflitualidade como produtora do futuro 189


de resultados”9. No processo de divergência da atuação e rumos tomados pelo
sindicato, um grupo de operários forma o Sindicato dos Químicos de Barcare-
na, como iniciativa política de sindicalistas ligados à Central Única dos Traba-
lhadores (CUT), contando como apoio de vários sindicatos estaduais. O Sindi-
cato dos Químicos de Barcarena, fundado em 26 de junho de 1998 representa
os operários da fábrica Alunorte. Segundo Gilvandro Santa Brígida, que foi vi-
ce-presidente do sindicato em 2006 e é seu atual foi uma necessidade política,
visto que o Sindicato Estadual dos Químicos era atrelado à Força Sindical e se
manifestava apenas nos momentos de fechar o acordo coletivo dos operários
químicos, sem participar das grandes discussões na base (SANTIAGO, 2007).
Devido à força dos sindicatos, evidenciada nas décadas 1980 e 1990, os sin-
dicatos se tornaram alvo de forças conservadores (Força Sindical) e sofreram
com interferências diretas por parte das empresas, influenciando nas eleições
e nas decisões internas dele. Ao mesmo tempo, os sindicatos, além de repre-
sentar os interesses dos operários, foram solidários, em muitas ocasiões, e
atuaram junto com as associações de moradores e comunidades tradicionais,
assumindo conjuntamente a pauta pela redistribuição de recursos, na defesa
do território das comunidades.
No fim dos anos 2000 e nos primeiros anos da década 2010, um novo espa-
ço de resistência se constituiu em Barcarena, caracterizado por uma experiên-
cia de formação de lideranças de comunidades, movimentos e ONGs, com-
binados com um diálogo institucionalizado entre empresas, poder público e
sociedade civil. Depois de mais um desastre socioambiental provocado pela
empresa Imerys Rio Capim Caulim S/A, o Ministério Público Estadual (MPE)
convidou, em 2008, no âmbito de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), o
Instituto Internacional de Educação no Brasil (IEB) para apresentar um Projeto
de Fortalecimento Institucional, e também o Instituto Evandro Chagas, para
realizar pesquisas em Barcarena.
Durante oito anos foram realizadas atividades de “fortalecimento da so-
ciedade civil” e a formação de um Fórum Intersetorial de Diálogo com repre-
sentantes de empresas privadas, organizações da sociedade civil e diferentes
esferas de governo. Aquele fortalecimento foi estruturado em torno de proces-

9. A nova história do Sindicato começou, em 1994, com apoio à eleição de Almir Gabriel (do PSDB) e com-
pletou o seu ciclo em 2006, com a fundação do Sindicato dos Metalúrgicos de Barcarena (SIMEB), ligado
à Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, da Força Sindical (SANTIAGO, 2007).

190 Territórios de esperança


sos formativos, com oficinas e cursos temáticos, diagnóstico sobre a situação
legal das organizações da sociedade civil e levantamentos e mapeamentos
(MORAES; SILVA, 2013). A experiência do Fórum Intersetorial trouxe ganhos
significativos para a formação e capacitação de lideranças e representantes
da sociedade civil (comunidades, associações, sindicatos, movimentos), pos-
sibilitando uma aproximação e articulação entre as diferentes comunidades
e pessoas.
A estratégia de diálogo para mediar conflitos socioambientais e territoriais
entre interesses antagônicos parecia uma proposta de governança e mediação
entre forças desiguais, tanto para garantir certos benefícios às comunidades
quanto para garantir a continuidade da produção industrial e a ampliação
do modelo desenvolvimentista capitalista no município. No boletim do IEB,
a representante da Associação Brasileira de Organizações Não Governamen-
tais (ABONG), Aldalice Otterloo observou que: “O diálogo como forma de luta
social tem crescido muito. Porém, é necessário monitorar os desdobramentos
dos acordos celebrados no Espaço Público.” (IEB, 2011, p. 2). Novos conflitos
têm indicado que nem a articulação das lutas entre entidades sindicais com
os movimentos tradicionais nem a mediação de ONGs nos conflitos entre o
Capital e as Comunidades tradicionais têm diminuído os problemas e conflitos
socioambientais, ao contrário, parece haver um agravamento da situação.
Uma das disputas mais emblemáticas ocorreu nas décadas 2000 e 2010,
no chamado Distrito Industrial de Barcarena, criado para instalação de novas
empresas e onde ainda permanecem mais de 1500 famílias, ameaçadas por
novos empreendimentos10 e sofrendo com a poluição. Essa permanente amea-
ça de poluição, somada a deslocamentos forçados, levaram à formação de um
grupo de trabalho com lideranças e fortes divergências dentro das comunida-
des, e até entre as famílias, sobre os rumos as formas de luta, entre lutar por
permanecer na área, com garantia de direitos, e enfrentar as empresas, ou por
indenizações justas e reassentamentos negociados.

10. O município passou a sediar a VOTORANTIM, na fabricação de cimento; a USIPAR, na produção do ferro
gusa; a ALUBAR, na fabricação de cabos de alumínio;, a BUNGE, na fabricação de adubos a BURUTIRA-
MA, na fabricação de lingotes de manganês; a TECOP, na produção de coque de petróleo; e os mais recen-
tes portos da TERFRON e da HIDROVIAS DO BRASIL, para exportação de soja (FIALHO NASCIMENTO;
HAZEU, 2015).

A conflitualidade como produtora do futuro 191


c) Retomada dos territórios tradicionais

Nesse processo de enfrentamento das violações dos direitos humanos, das


famílias e operários, observam-se momentos diferenciados de organização da
resistência em que os agentes vão compondo velhas e novas estratégias de or-
ganização política e articulação de outros agentes sociais no apoio à sua luta,
alternando momentos de evidente protagonismo de um determinado grupo
social, com outros momentos de aglutinação de vários grupos em ações es-
pecíficas. Convém relembrar Cruz (2013, p.127), quando este chama atenção
para o fato de que esses movimentos colocam na pauta social uma ideia de “[...]
cidadania e justiça que seja capaz, simultaneamente, de pautar-se na igual-
dade e na valorização das diferenças”, lutando por uma melhor distribuição
material dos recursos e também por demandas de reconhecimento. É o caso da
luta protagonizada pelas comunidades tradicionais que começam a retomar
os territórios donde foram expulsos e que não foram ocupados e cercados por
fábricas ou portos.
Em anos mais recentes, a partir da primeira experiência de luta e conquis-
ta da comunidade quilombola denominada Burajuba, outras comunidades
quilombolas iniciaram uma organização de forma articulada para lutar pelo
reconhecimento de seus direitos à certificação11 e titulação de suas terras tra-
dicionalmente ocupadas. Segundo Maia e Marin (2015), os quilombolas de Bu-
rajuba esboçam uma força política no município por meio de sua associação,
uma “unidade de mobilização” que, por laços de solidariedade, aglutina gru-
pos em situações sociais diferenciadas de Barcarena. Nas sucessivas ações de
expulsão praticadas pela CODEBAR, a comunidade liderava as manifestações
nas vias públicas; enfrentava a polícia e conseguia, assim, aglutinar pessoas de
outras comunidades para fortalecer o movimento.
Depois de Burajuba, os quilombolas indígenas dos sítios São João, Concei-
ção e Cupuaçu retornaram também às suas terras às margens do rio Murucupi,
na década de 2010, e os quilombolas indígenas do Gibrié de São Lourenço, que
nunca saíram dali, mas viram seu território ser recortado e diminuído, junta-
ram-se na luta pelo reconhecimento como quilombola. Este movimento con-
seguiu garantir, em 2016, a Certidão de Autodefinição da Fundação Palmares

11. O § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, reserva à Fundação Cultural Palmares
(FCP) a competência pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro
geral.

192 Territórios de esperança


para todas estas comunidades, que enfrentam, ainda, muitos desafios, desde a
sua coesão e organização interna, a fim de garantir a afirmação legal de todos
seus direitos, atraso na demarcação dos seus territórios pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e resistência às constantes amea-
ças de invasão de seus territórios.
Em 2017, as comunidades quilombolas iniciam o processo de discussão
para elaboração de seus Protocolos de Consulta Prévia Livre e Informada, con-
forme a Convenção 16912 da OIT, como forma de fortalecer suas lutas contra o
avanço do capital e defender seus territórios e modos de vida, com o primeiro
protocolo13 elaborado pela comunidade Gibrié de São Lourenço. Outro exem-
plo de consciência do direito territorial pode ser expresso na organização da
comunidade de Tauá, formada por pessoas que retornaram ao seu território
em 2016, lugar de onde foram originalmente expulsas pelo Estado nos anos
1980. Este território é objeto de ação judicial entre a empresa Hydro, que se
declara proprietária embora, sem apresentar nenhum documento comproba-
tório, e os/as moradores/moradoras. Em 2017, houve a execução da reintegra-
ção de posse, momento em que as duzentas e quarenta famílias que estavam
reocupando a área foram retiradas (MENDES, 2017).
Contudo, alguns meses depois, cento e oitenta famílias voltaram a ocupar o
território e, embora vivendo sob a ameaça de nova expropriação de suas terras
tradicionais, têm retomado suas práticas agrícolas anteriores, como a instala-
ção de roças, pequenas criações, coleta de frutos e outras atividades, garantin-
do, assim, sua reprodução social e reforçando a resistência pela permanência
em seu território. Vale observar que a disputa por essa área ainda permanece,
pois este é o lugar onde a empresa Hydro pretende futuramente instalar novas
bacias de rejeitos.
Na revisão do Plano Diretor Urbano de Barcarena, várias áreas sofreram no
plano mudanças de função. As áreas onde as comunidades quilombolas e a co-
munidade de Tauá estão situadas eram de proteção ambiental e de ocupação
agrária e foram transformadas em zona industrial e urbana, para possibilitar
futuros planos das empresas e deslegitimar a presença das comunidades qui-

12. A Convenção 169 da OIT reconhece, ao lado dos povos indígenas, outros tantos grupos cujas condições
sociais, econômicas e culturais os distinguem de outros setores da coletividade nacional. Este instrumento
reconhece o direito à diferença, enunciando o reconhecimento de direitos étnicos.
13. A elaboração dos protocolos de consulta em elaboração, no município de Barcarena, faz parte das ações
coletivas da “Frente Contra a Ferrovia Paraense”, organizadas no segundo semestre de 2017.

A conflitualidade como produtora do futuro 193


lombolas. Observa-se, assim, o Estado e as empresas se articulando na ocupa-
ção do território e expulsão dos moradores tradicionais.

d) Tempo do enfrentamento direto às empresas: tensionamento entre as pautas


do sindicato dos/as operários/as das fábricas e das comunidades tradicionais.

Historicamente a organização e mobilização social, em Barcarena, con-


tra os impactos socioambientais e laborais gerados pelas empresas, em dife-
rentes momentos, agregou operários e comunidades tradicionais. Um desses
momentos representativos ocorreu no ano de 2016, quando uma articulação
entre comunidades tradicionais, o Sindicato dos Trabalhadores da Alunorte
(SINDIQUIMICOS), pesquisadores da Universidade Federal do Pará constituí-
ram um fórum de articulações denominado “Barcarena Livre”. As primeiras
inserções do Movimento Barcarena Livre parecem indicar a formação de um
movimento voltado à intervenção social que combina objetivos de afirmação
de identidade tradicional, organização social para conquista de direitos, ca-
pacitação organizativa e formação política, procurando desenvolver conheci-
mentos, competências e métodos necessários para a produção da luta social.
Nos anos 2016 e 2017, o movimento Barcarena Livre funcionou com a par-
ticipação de comunidades e sindicato, articulando pautas e ações coletivas
voltadas ao questionamento dos impactos socioambientais no município. En-
tretanto, uma nova disputa, envolvendo fortes resistências ocorreu em 2018,
quando a empresa Alunorte, que transforma bauxita em alumina, provocou
graves acidentes ambientais, colocando em risco a vida e permanência de vá-
rias comunidades ao redor das suas bacias de rejeitos de lama vermelha e ao
longo dos rios e igarapés (ALEPA, 2018).
Os protestos gerados por esta situação se fundamentam na resistência ba-
seada nos direitos territoriais das comunidades tradicionais e seus modos de
vida, questionando não somente os impactos gerados pela poluição, como
também a legitimidade da presença das empresas poluidoras. O posiciona-
mento político e as mobilizações de resistência resultaram, contraditoriamen-
te, numa cisão nos movimentos de resistência contra o capital, entre as co-
munidades tradicionais que rejeitam o modo de produção capitalista e suas
práticas expropriatórias, no seu território, e os sindicatos dos trabalhadores
das empresas, que defendem o emprego possibilitado pelo mesmo modo de
produção oferecido pelas empresas na região.

194 Territórios de esperança


O SINDIQUIMICO começou a se mobilizar a favor do emprego e a manu-
tenção das operações da empresa, ressalvando a preocupação com as comu-
nidades:

O Sindquimicos de Barcarena,ASSEB,CTB e demais Sindicatos da cadeia pro-


dutiva do Alumínio convidam toda a sociedade barcarenense para participarem da
caminhada com ato público pela suspensão do embargo da Hydro Alunorte. [...]
É hora de união entre toda as trabalhadoras e trabalhadores da cadeia produtiva
do alumínio, é momento de intensificarmos a mobilização para mantermos nossos
empregos”, afirma Gilvandro Santa Brígida, presidente do Sindicato dos Químicos
de Barcarena, no Pará (CTB, 2018a). O SindQuímicos e a CTB-PA têm feito propos-
tas alternativas para que a indústria tenha uma produção sustentável, garantindo o
emprego de todas e todos (CTB, 2018b, s/n)

Estas posições evidenciam contradições nas lutas sociais. A luta da classe


operária foca na garantia de emprego, condições de trabalho e até na posse
coletiva dos meios de produção; enquanto comunidades tradicionais ques-
tionam as intrínsecas determinantes do modo de produção (capitalista, mo-
derna e colonial) em relação a danos ambientais e sociais e o “extermínio” de
outros modos de produção, modos de vida, defendidas pelas comunidades
tradicionais.

Considerações finais

Em que pesem os tempos e espaços diferenciados, a organização e as lutas


dos movimentos sociais em Barcarena estão ligados à denúncia de violência
e destruição causada pelo capital e às estratégias de continuarem (re)existin-
do nos seus espaços em disputa territorial. Foi neste contexto de avanço da
reestruturação produtiva e do protagonismo de grupos sociais, comunidades
tradicionais e operários, que surgiram estratégias de resistência e formação de
grandes experiências de mobilização que já duram quatro décadas.
Interessante observar, no caso de Barcarena, que o enfrentamento ao avan-
ço do capital que viola direitos das comunidades tradicionais e dos operários,
em que pese a diferença de suas pautas específicas e conflitos decorrentes,
tenha se constituído, em alguns momentos, como força aglutinadora e forta-
lecimento da resistência local. Um fator explicativo pode estar no fato de que

A conflitualidade como produtora do futuro 195


muitos dos operários do complexo industrial eram membros de comunidades
tradicionais ou migrantes que fizeram de Barcarena seu lugar de moradia. Nes-
se sentido, a sua dupla condição de lugar de pertencimento na luta (como mo-
rador, povo tradicional e/ou trabalhador) lhe conferiu as condições de vivência
da dupla violação de seus direitos, reforçando o sentimento da organização
social e política nessas duas frentes. Em Barcarena, a nova organização do tra-
balho pelas empresas transnacionais, por meio de terceirização e da moradia
fora do município de grande parte de seus funcionários têm enfraquecido esta
solidariedade orgânica. Em 2013, dos 1.612 funcionários da Hydro, 717 (44,5%)
não residiam em Barcarena (HAZEU, 2015), número que tende a aumentar
com investimentos em vias e meios de transporte pendular entre Barcarena e
municípios vizinhos.
As próprias contradições do modelo de desenvolvimento, pautadas na “in-
dustrialização da selva”, exportação de commodities e domínio do espaço pelas
empresas transnacionais, têm apontado seus limites com a destruição do meio
ambiente, o “extermínio” de modos tradicionais de vida e a fragilidade na ofer-
ta de empregos nos países/regiões de periferia do sistema capitalista mundial.
Pode-se inferir que, em diferentes fases ou etapas históricas da organiza-
ção do movimento social local, as comunidades tradicionais e operários esti-
veram juntas em ações de mobilização social e enfretamento direto as ações
empesarias, nos fóruns de discussão. No contexto da restruturação produtiva,
o protagonismo de comunidades tradicionais e operários possibilitou forjar
uma organização social e política que fortaleceu as estratégias de resistência
frente ao avanço do grande capital na Amazônia.
Entretanto, é importante destacar que os dois movimentos de resistência,
o das comunidades e o dos operários via sindicatos, apresentam bandeiras de
luta diferentes, a partir de sua inserção no sistema capitalista global. De um
lado há a bandeira do emprego e do outro lado a bandeira do território. Os ope-
rários desterritorializados/as não sobrevivem sem emprego e as comunidades
tradicionais não sobrevivem sem território dependendo ambos de políticas
sociais quando perdem a essência dos seus meios de sobrevivência. Precisa-
mos reconhecer que o trabalho empregado e o trabalho de autossustentação
coexistem numa relação tensa, no contexto das lutas sociais e de resistência ao
Capital sendo necessário, como argumenta Harvey (2005, p. 144),“[...] cultivar
assiduamente a conectividade entre lutas no interior da reprodução expandida
e contra a acumulação por espoliação” e, ainda, “[...] reconhecer na acumula-

196 Territórios de esperança


ção por espoliação a contradição primária sem ignorar a relação dialética com
as lutas no plano da reprodução expandida”.

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198 Territórios de esperança


Mudanças e influências da contemporaneidade em
comunidades ribeirinhas na Amazônia brasileira1
Christian Nunes da Silva • Vicka de Nazaré Magalhães
Marinho • Gracilene de Castro Ferreira • Laís Melo
Lima • Monique Farias • Milena de Nazaré Silva Santos
• Adria de Melo Rosa

Introdução

O debate que apresentaremos aqui é fruto de aproximadamente dezesse-


te anos de estudos do Grupo Acadêmico Produção do Território e Meio
Ambiente na Amazônia (GAPTA). Nesse sentido, durante diversas pesquisas
realizadas na Amazônia paraense, temos observado a agregação/inserção/
ocupação e outros fenômenos de variados atores, assim como as modificações
que os acompanham e/ou geram. Sabemos que a análise não se encerra aqui,
porém temos o propósito de apresentar e contribuir com alguns debates que
vêm sendo gerados a respeito da região, principalmente no que se referem à
desmitificação de que o habitante amazônico, bem como suas cidades, estão
isolados, isto é, alheios aos efeitos que a globalização imprime a todos os povos
do planeta.
Desde já, é importante enfatizar que o modo de vida2 ribeirinho não pode
ser entendido sem seu território e as perspectivas de produzir e reproduzir o
próprio espaço – individual, coletivo e sobreposto- muito menos sem analisar
os aspectos culturais, pois estes desenvolvem e singularizam as comunidades
humanas. Tais modos de vida passam por processos de transformação no de-
correr do desenvolvimento demográfico e tecnológico social, que definirão
como as técnicas deverão progredir ou regredir, conforme a necessidade de

1. Uma versão desse texto foi publicada sob a referência: SILVA, C.N.; PALHETA, João Márcio; BARRA, J.;
SOUSA, H. P. “Progresso” Tecnológico e mudanças no modo de vida ribeirinho (Amazônia Paraense –
Brasil): Um breve debate. Revista SODEBRAS, v. 10, p. 44-47, 2015.
2. Modo de vida é analisado neste estudo de acordo com os ensinamentos de La Blache (1954) e Sorre (1984).

A conflitualidade como produtora do futuro 199


obtenção de produtos/objetos, para a execução de estratégias que determina-
rão sua reprodução social.
Nesse sentido, a organização espacial dos habitantes da região amazôni-
ca é definida pela oportunidade de recursos naturais locais, com ênfase para
ocupações em áreas de terras baixas (várzea, praias), áreas altas e secas (ter-
ra-firme) e áreas que englobam esses dois ecossistemas. Assim, as abordagens
aqui realizadas procuram relatar, brevemente, as principais transformações e
influências que as tecnologias contemporâneas vêm refletindo nas comunida-
des ribeirinhas da Amazônia brasileira.

Mudanças no modo de vida e territórios ribeirinhos

Ao pensar na Amazônia, devemos considerar as características ambien-


tais e sociais que integram esse importante território transnacional, desde o
período da ocupação humana anterior ao dito “descobrimento europeu” (LA
CONDAMINE, 2000). Assim, da ocupação pelos indígenas, até as comunidades
locais que habitam a região na atualidade, sejam elas de pescadores, agricul-
tores, extrativistas, foram incorporadas novas culturas/economias e criados
modelos e “ciclos econômicos” que refletem costumes próprios, inerentes à
região até os dias atuais.
É importante ponderar também a influência que os recursos naturais pre-
sentes no território3 amazônico imprimem às outras regiões, refletindo na im-
portância geopolítica e estratégica que a Amazônia tem para países e grandes
grupos econômicos, que se valeram da biodiversidade dessa região, como por
exemplo, durante o chamado “apogeu da borracha”, quando era utilizada não
somente a mão de obra escrava, mas também a indígena. Ambas, posterior-
mente, também foram incrementadas com a inserção dos primeiros grupos
de nordestinos (ditos soldados da borracha), utilizados no sistema de extra-
ção e aviamento da borracha para outros países do mundo. Todos os “usos” e
manejos dos recursos sempre contribuíram para o desenvolvimento de outras

3. Entendemos que a produção do território se dá a partir do espaço, por meio do uso que a sociedade faz de
seus potenciais sociais e ecológicos. No território, os atores sociais, ao realizarem suas ações político-eco-
nômico-sociais, territorializam práticas sociais para suas permanências nele. Mas nem sempre as práticas
territoriais se revelam como desejadas por todos os atores sociais no espaço geográfico, muitas vezes,
dependem de um conjunto de fatores de negociação e conflitos que envolvem quase sempre mais de um
interesse no território.

200 Territórios de esperança


atividades econômicas na região, como da extração do pescado dos pesqueiros
reais, da borracha, do chamado comércio de regatão, da madeira, ou, ainda,
durante a criação dos grandes projetos mínero-metalúrgicos e hidroelétricos
que são mais recentes, transformando a região em um palco onde uma grande
diversidade de atores interage (LITTLE, 2002)4.
Apesar dos diversos usuários da floresta amazônica que permanecem, ou
que habitaram esta região, é necessário enfatizar a importância da cultura ca-
bocla (SILVA; PALHETA DA SILVA; CHAGAS, 2014). O modo de vida tropical
analisado por Charles Wagley (1988), em meados do século passado, em visita
a uma comunidade amazônica, demonstra uma série de características que
singularizam este indivíduo, com suas técnicas e padrões culturais semelhan-
tes na Amazônia brasileira, pois o ambiente, aparentemente homogêneo, ne-
cessita de aparelhos e equipamentos que auxiliem na adaptação deste indiví-
duo ao seu entorno.
Para que ocorresse essa adaptação, diversas culturas, hábitos e técnicas
formaram o “tipo cultural caboclo” (ou caboco, como na verdade se fala na re-
gião), ou seja, que se deu por meio de uma mistura e hibridação cultural entre
o negro, europeu e, principalmente, o índio que já habitava a região (LIMA,
1999). Isso sem esquecer das influências que o caboco tolerou dos migrantes
nordestinos e de outras regiões brasileiras, que vêm ajudando no desbrava-
mento desta região nos últimos anos, e que também contribuíram para essa
miscigenação.
Desse modo, esse amálgama cultural que molda a identidade do habitan-
te amazônico vem constantemente sofrendo influência das novas tecnologias
exteriores ao meio rural amazônida, fazendo com que esse indivíduo absorva
novos paradigmas culturais, que influenciam em seus padrões comportamen-
tais. Exemplo disso são, por exemplo, a utilização de novos materiais na pesca
artesanal, como as redes de fio de naylon, o barco motorizado ou a aquisição
da televisão e outros eletrodomésticos, os quais são considerados, por alguns
moradores dessas comunidades amazônicas, como um “progresso”5 que alte-
ra o ritmo e a velocidade do cotidiano e da produção realizada pelos habitantes

4. Para Mello (2006), é preciso entender a região amazônica como um espaço que representa a simultanei-
dade de interesses nacionais e locais, regionais e globais. Um espaço construído por populações diversas.
5. A noção de ‘progresso’ é colocada aqui sob a ótica do capitalismo, na agregação de bens de consumo. Não
é objetivo deste manuscrito a discussão sobre os benefícios ou malefícios da atuação das comunidades
amazônicas no sistema capitalista.

A conflitualidade como produtora do futuro 201


da região. Essa relação com o meio exterior à realidade amazônica é inevitável
na atualidade, não só para os amazônidas, mas para qualquer outra cultura,
que está vulnerável aos efeitos da globalização.
Nesse sentido, os moradores ribeirinhos amazônicos6 – ou não, tiveram
nos últimos anos, modificações significativas em seu modo de vida, muito ex-
pressivas se considerarmos a inserção de tecnologias que vem mudando os
seus costumes e formas de convivência com o meio. É importante considerar-
mos que desde sua formação cultural, com influência do europeu, indígenas e
africanos, os estímulos foram constantes, com a assimilação de características
de todos os povos que criaram esse “amálgama cultural”, que, de alguma forma,
inseriram costumes gastronômicos, de trabalho, de vestuário ou linguísticos
que caracterizam o habitante da Amazônia.
Sem dúvida, as heranças indígenas que foram cooptadas à cultura ama-
zônica são numerosas, talvez mais do que outras, nas formas de falar, vestir e
se alimentar desses indivíduos. Essas características permaneceram, digamos,
imutáveis durante muitos anos, quando os contatos com as culturas externas
se davam com menor intensidade, sem modificações significativas nos meios
de locomoção (canoas movidas a remo/força humana), alimentação (açaí com
peixe, carne, “xerimbabos”, etc...), o modo de vestir (sem “marcas” ou grifes
específicas de roupas, mas feitas a partir da compra de “panos”) ou na comu-
nicação (o rádio como meio principal de comunicação, juntamente com as
informações coletadas a partir de relações pessoais diretas). Essas característi-
cas não se modificavam com a rapidez que se vê hoje. Com o chamado período
de globalização, em que os estímulos externos são mais intensos, em todos os
sentidos, no vestir, comer, locomover e se comunicar.
Ao analisarmos as formas de transporte dos habitantes ribeirinhos da Ama-
zônia, vemos que os antigos meios de locomoção mais lentos, caracterizados,
principalmente, por canoas sem e com motor (canoas movidas por força hu-
mana ou por pequenos motores), que eram tão usuais há alguns anos, muito
disso pela falta de opção ou acesso a recursos que possibilitassem a compra
de motores maiores, foram substituídos por equipamentos mais velozes nos
dias de hoje.

6. Vamos nos referir aos moradores das margens dos rios da Amazônia como “ribeirinhos”, pois trata-se de
um conceito conhecido na região para denominação desses indivíduos. Não pretendemos discutir a ques-
tão política do termo.

202 Territórios de esperança


O uso de meios lentos de locomoção refletia diretamente na demora do
deslocamento de uma cidade/comunidade a outra, diferente de hoje em que
os barcos mais velozes, como lanchas e rabetas, são uma realidade visível, o
que dá mais velocidade e mobilidade ao antigo “modo de vida lento” desses
habitantes, uma “realidade de cidade”, no vai e vem dos rios, tidos como ruas
que ligam as casas e comunidades dos habitantes à beira-rio. Algumas dessas
rabetas (pequenas canoas motorizadas) podem ser comparadas aos jet-skis
daqueles que possuem poder aquisitivo maior. Mas, asseguradas as devidas
proporções de custos, são igualmente importantes para o amazônida, quando
consideradas sua velocidade e agilidade na água.
A alimentação, cujo principal expoente tem o açaí como prato principal,
misturado com qualquer outro complemento (peixe, carne de frango, gado,
ovo, enlatados/embutidos), teve alterações significativas derivadas, principal-
mente, da inclusão dos pratos fast-food na dieta alimentar do amazônida. Esse
progresso nos modos de se alimentar ficou mais comum nas pequenas cidades
que refletiram nas comunidades afastadas, e que derivam de uma necessidade
de tornar mais rápido o dia a dia das pessoas, dando mais agilidade na forma
de se alimentar e mais tempo para o trabalho e acumulação de riqueza. Fatos
importantes, sem dúvida, mas que vêm contribuindo para deixar de lado pra-
tos típicos da cultura amazônica, com a valorização, novamente, para o que é
de fora: inserção de novos ingredientes, como a própria adaptação do famoso
pato no tucupi, agora transformado em peru no tucupi, ou a Coca-Cola, que
substitui o suco de frutas tropicais.
Em se tratando de alimentação e sua forma de preparo e armazenamento,
outros equipamentos surgiram para facilitar o modo de vida amazônico, pois
se antes a salga da carne era comum, hoje com o uso de geladeiras e freezers
se tem a possibilidade de conservar os alimentos por mais tempo para o con-
sumo posterior. Além disso, a inserção do fogão a gás também trouxe um alívio
para aqueles que tinham que “rachar a lenha” para garantir o alimento cozido
o qual, aliado aos alimentos pré-prontos, incrementaram a dieta familiar das
comunidades da região.
Ao se verificar o vestuário desses indivíduos, também é possível notar
mudanças significantes, pois as grifes ou “marcas” de roupas globalizadas e
propagandeadas pelos meios de comunicação tornaram-se objetos de desejo
de muitos daqueles que buscam novidades no seu modo de vestir, acompa-
nhando tendências exteriores e que nem sempre são adequadas ao clima da

A conflitualidade como produtora do futuro 203


região. Mas, como o “bonito vem de fora”, ou se acha que vem, os padrões de
“beleza magra” são copiados pela população para a qual a moda não foi feita,
refletindo, novamente, nos tipos de alimentos que são consumidos, que antes
não tinham o estímulo de “nutricionistas”, mas que hoje seguem um padrão
nem sempre saudável.
Outra característica cultural da região amazônica, que teve uma modifica-
ção importante, foram os meios de comunicação que tinham como principal
representante o rádio a pilha. Os avanços nos últimos anos, com a inserção do
processo de globalização no modo de vida amazônico, trouxeram, juntamente
com a energia elétrica, a antena parabólica (canais abertos e fechados), e o rá-
dio (emissoras nacionais e internacionais), que difundem as notícias e culturas
externas (locais, nacionais e internacionais), para tornar os indivíduos mais
informados. Esses “novos meios de comunicação”, notados em cada residência
na Amazônia, nos confins da região, que também são importados do exterior e
são caracterizados por equipamentos pequenos e potentes, com alto som, dei-
xaram o uso da “pilha palito” e as emissoras locais de rádio de lado e se ligam a
outras formas de armazenagem, mais modernas, como o Sd Card, o Pen Drive
ou outras formas de acesso a comunicação, como os aplicativos de mensagens
instantâneas WhatsApp, Viber, entre outros.
Todos esses progressos causados pelo contato cultural com hábitos exte-
riores moldam igualmente os valores individuais e coletivos dos habitantes
da região, trazendo novos objetivos e anseios, diferentes de anos anteriores.
Contudo, em uma observação mais atenta, apesar desse chamado progresso
econômico e tecnológico, é possível notar que não houve a popularização do
bem-estar social e a melhoria dos serviços públicos, como, por exemplo, no
que tange à melhoria na acessibilidade a serviços bancários, transporte coleti-
vo, informática/internet, etc.
Nesse sentido, todas essas mudanças que ocorreram/ocorrem na vida do
amazônida, e que foram aqui citadas, na maioria das vezes, não vieram acom-
panhadas de práticas ligadas a avanços na melhoria das condições de saúde,
educação (pois ainda existem as escolas “de palha”, com classes multisseriadas
e sem infraestrutura), mas trouxeram a reboque a falta de segurança nas ci-
dades e no campo, com aumento do índice de violência e a falta de aparelha-
mento policial. Esses fatores, que ocultam os benefícios trazidos pelos avan-
ços tecnológicos que citamos, mostram as mazelas que vivem as comunidades

204 Territórios de esperança


amazônicas que estão próximas às benfeitorias oferecidas pela globalização,
mas alheias aos mecanismos que melhorem suas condições de vida.

O valor do território ribeirinho

A partir do que foi exposto, por meio dos debates que geraram a elaboração
deste trabalho – e sem pretender atribuir valor a uma relação de territorialida-
de existente no modo de vida das comunidades estudadas, podemos observar
que, a partir da percepção e vivência ribeirinha, é possível identificar uma no-
ção de importância relativa aos costumes e ao modo de vida que os habitantes
das margens dos rios da Amazônia mantêm com seu território de convivência
e trabalho. Assim, verificamos que existe um tipo de “percepção de valoração7”,
aqui utilizada como sinônimo de importância e reconhecimento do território
pelos habitantes ribeirinhos, entendida com o mesmo sentido, observadas a
partir de conversas e relatos com esses indivíduos, que percebem e represen-
tam seus territórios (SILVA; PALHETA DA SILVA; CHAGAS; CASTRO, 2014),
juntamente com os seus modos de vida e suas territorialidades.
Essa percepção valorativa8, de reconhecimento e/ou importância, leva em
consideração o modo de vida e as relações territoriais estabelecidas pelos ri-
beirinhos, podendo ser expressa da seguinte forma:
Valor cultural: é a importância que o indivíduo atribui ao território, con-
siderando aspectos como identidade, costumes e hábitos. É neste aspecto, de
manutenção cultural, que o reconhecimento cultural deve ser enfatizado, le-
vando em consideração como o habitante sobrevive e não impondo uma rea-
lidade que não pode ser simplesmente transportada e agregada ao modo de
vida ribeirinho. Contudo, objetos e outros tipos de aparatos não dotados de
uma simbologia tradicional para estes indivíduos, passam a ser utilizados de
forma mais frequente, como apresentado anteriormente, visto que esse am-
biente está aberto a novos atores e processos, mais ainda com o processo de
globalização. A esse respeito, as organizações governamentais e não -gover-
namentais apresentam-se como um importante incentivador da cultura local,
mais especificamente, da manutenção de tradições que pareçam únicas no

7. Ignacy Sachs (1993), em seu trabalho, apresenta uma noção de importância ecológica que pode ser iden-
tificada com a percepção territorial-ambiental dos moradores ribeirinhos.
8. Como discutido em Silva (2008).

A conflitualidade como produtora do futuro 205


ambiente amazônico, em áreas que abarquem populações com tradição na
utilização dos recursos naturais.
Valor econômico: é a importância atribuída ao território e seus recursos
na possibilidade de obtenção de renda para a subsistência; está relacionada
à qualidade de vida do habitante amazônico. Desse modo, estes indivíduos
devem ter um padrão de renda garantido economicamente para atender seus
desígnios de subsistência. As verificações acerca dessa temática geram diver-
sas divagações sobre como o habitante amazônida pode melhorar seu padrão
de vida, seja por meio do extrativismo dos recursos naturais ou com o uso e
manejo racional destes recursos. É possível que para os próximos anos os re-
flexos de uma nova política sobre a atividade extrativa, incluindo a pesca e os
produtos da floresta devam se fazer sentir não somente sobre um estilo de pro-
dução baseada no extrativismo, mas também sobre a melhoria das condições
de vida das populações engajadas nessas atividades. É importante salientar
que a viabilidade de uma determinada territorialidade depende de sua capaci-
dade de satisfazer a necessidade de seus usuários, caso contrário, estes tendem
a procurar outros meios e/ou territórios para atender os seus anseios;
Valor espacial-ecológico: diz respeito à questão de espacialidade, relacio-
nada à produção espacial dos ribeirinhos e ao uso racional de seus territórios,
também como sinônimo de uso dos recursos naturais. Deve-se considerar a
relação entre campo e cidade, evitando a concentração geográfica exagerada
de populações ribeirinhas, atividades e de poder, orientada por processos de
utilização que respeitem os ciclos temporais de equilíbrio natural e pela pre-
servação das fontes de recursos energéticos e naturais. Esta concepção implica
na intensificação do uso dos potenciais inerentes aos variados ecossistemas,
compatível com a mínima deterioração.
Valor social: é o reconhecimento da importância de se participar ativamen-
te das questões de interesse das comunidades ribeirinhas. O reconhecimento
social estaria relacionado à redução das diferenças sociais a partir da partici-
pação comunitária, incrementada pelo maior acesso à educação, em busca de
uma sociedade cada vez mais equitativa. Segundo essa concepção, é necessá-
rio investimento em educação, para que os ribeirinhos se sintam dignos de sua
condição e não procurem outras formas de sobrevivência que os obriguem a
deixar seus espaços de convivência e seus modos de vida.
A partir desses aspectos da percepção valorativa do ambiente, e do que foi
apresentado no decorrer desse trabalho, foi possível verificar que os mora-

206 Territórios de esperança


dores ribeirinhos da Amazônia paraense estabelecem seus comportamentos
com o espaço que os circunda buscando, quando possível, o melhor relacio-
namento com os recursos naturais pois, de seu uso, depende a continuidade
da existência mútua.

Considerações finais

As principais conclusões às quais podemos chegar nesta breve análise,


que nunca serão finais, pois a realidade na Amazônia se transforma a todo o
momento, gerando mais conclusões esporádicas, é de que esta região, com
seus recursos minerais, habitantes e sua biodiversidade florística e faunística,
são, e sempre serão de fundamental importância para a sociedade como um
todo. Assim, a sociedade local, e também a sociedade exógena, devem sempre
procurar a melhor forma de gerir e ordenar este importante espaço natural e
humanizado. Diante desta complexidade, as ciências geográficas ou “geografi-
zadas” constroem um campo profícuo de análise, interpretação e intervenção,
elaborando trabalhos em que as dinâmicas do “jogo” podem ser descortinadas
para a compreensão da realidade.
O aparente “progresso tecnológico” pelo qual vem passando o modo de
vida do ribeirinho amazônico não significa a melhoria do bem-estar social,
para isso, basta ver índices que medem a qualidade de vida desses habitantes,
como o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, por exemplo, que mostra
os menores números para as cidades à beira dos rios, próximos às capitais. Es-
ses indivíduos sofrem com a falta de políticas públicas reais, que representem
o aumento do número de empregos e não somente o acréscimo de políticas
assistencialistas, que não dão a opção às populações amazônidas de garantir
a produção individual e seu modo de vida tradicional, mas corroboram com a
triste sina de viver sob pena da implantação de políticas territoriais que desco-
nhecem a realidade regional.
O reconhecimento e a visibilidade do modo de vida e das territorialidades
do homem, na Amazônia, fornecem os indícios do que pode ser elaborado en-
quanto política pública, para que possam ser executados projetos e programas
para a melhoria da qualidade de vida dessa importante parcela da população
brasileira. Esse (re)conhecimento permitirá prever algumas das reações que
não poderão deixar de provocar a introdução de novos elementos na cultura
amazônica. Nessa perspectiva, o estudo de populações amazônidas ajuda a

A conflitualidade como produtora do futuro 207


entender o comportamento e a buscar benefícios para os moradores de toda
a região, onde os problemas enfrentados são similares como, por exemplo, a
ausência de infraestrutura técnica para a resolução, problemas relacionados
com o meio ambiente, a falta de saneamento básico, entre outros.

Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-


nológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amapá
(FAPEAP) que, em convênio com a Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal
do Nível Superior (CAPES), financiaram o projeto “Novos ordenamentos terri-
toriais na Amazônia: análises dos impactos gerados a partir da implantação de
empreendimentos hidroelétricos no estado do Amapá”.

Referências

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MELLO, N. A. Políticas territoriais na Amazônia. São Paulo: Annablume, 2006.
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208 Territórios de esperança


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.

A conflitualidade como produtora do futuro 209


Territórios de esperança e política agrária no Brasil
Bernardo Mançano Fernandes1

Introdução

N o Brasil, as lutas pela terra e pela reforma agrária são produtoras de terri-
tórios de esperança e de políticas agrárias por meio de permanente con-
flitualidade na disputa por modelos de desenvolvimento. Considerando essa
discussão, neste artigo analiso esse processo em três partes. Inicio com um
ensaio teórico – conceitual sobre as tipologias de espaços e territórios, para
ler territórios de esperança construídos na espacialização da luta pela terra.
A esperança produz o conflito que cria novas esperanças. Começo a segunda
parte discutindo o mundo agrário por meio do debate paradigmático, que é o
método que utilizo para analisar a questão agrária e o capitalismo agrário. Mos-
tro como podemos ler o mundo agrário a partir das diferentes interpretações
produzidas pelas teorias que analisam os modelos hegemônico e alternativo de
desenvolvimento da agricultura. Também apresento o conceito de conflituali-
dade para compreender as múltiplas disputas: teóricas, conceituais, políticas,
territoriais. Por último analiso a política agrária em construção/destruição para
confrontar como agronegócio que se estabeleceu como modelo hegemônico.
A luta camponesa pela terra é hoje uma das mais intensas contra o capita-
lismo. E o sentido está na sua natureza, camponeses existem no capitalismo
sempre subordinados pela construção de perspectivas de desenvolvimento
autônomo. Essa é a razão que faz com que os camponeses produzam um mo-
delo alternativo de desenvolvimento baseado na agroecologia e que tem a Via
Campesina como uma das organizações que mais defende este modelo. O Bra-
sil agrário recente produziu um conjunto de experiências que tem promovido

1. Professor do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Pesquisador do Nú-


cleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA) e Coordenador da Rede DATALUTA.

A conflitualidade como produtora do futuro 211


o modelo alternativo e confrontado o modelo hegemônico. Estamos conven-
cidos que esta disputa é a disputa do futuro.

Territórios de esperança

Territórios de esperança não são uma analogia, são realidades em movi-


mento. São espaços concretos, onde há desde o trabalho familiar na terra, o
campesinato produz seus modos de vida. São territórios camponeses conquis-
tados na luta pela terra e pela reforma agrária. O sentido da esperança está na
luta pela existência, na resistência contra o capitalismo que destrói constante-
mente os territórios camponeses.
No Brasil, a reforma agrária está em desenvolvimento há pelo menos qua-
renta anos. Este longo tempo é resultado da dependência política dos gover-
nos ao projeto neoliberal e da persistência política dos sem-terra. Enquanto
os projetos governamentais de reforma agrária não são finalizados, a luta pela
terra acontece todos os dias com ocupações e acampamentos até a criação de
um assentamento. Definitivamente são estes os territórios de esperança a que
nos referimos2. É muito difícil compreender esse processo que se movimenta
e parece não sair do lugar. É preciso ver, estar nos territórios, para entender
como são formados os movimentos que criam frações do território camponês,
territórios de esperança.
De fato, a reforma agrária é uma luta permanente e, no Brasil, não tem data
para acabar. Ela se faz no dia a dia pela luta dos sem-terra e os governos, o que
traz como consequência os movimentos de resistência. Minhas leituras sobre
a reforma agrária estão baseadas no trabalho de campo, nas minhas pesquisas
e nas pesquisas de meus orientandos da graduação e da pós-graduação, no
trabalho com a REDE DATALUTA; uma rede de pesquisadores que acompanha
e coleta, todos os dias, os dados da luta pela terra e da criação dos assentamen-
tos, publicando mensalmente o Boletim DATALUTA, produzindo relatórios3
e reuniões anuais, onde dezenas de pesquisadoras e pesquisadores refletem
sobre este processo. Também realizei viagens permanentes, conversando com
membros dos movimentos camponeses, visitando espaços de resistências e
territórios de esperança.

2. Esta definição de território de esperança é compartilhada com Moreira e Targino, 2007.


3. O boletim DATALUTA e os relatórios DATALUTA (português, espanhol e inglês) estão disponíveis em:
www.fct.unesp.br/nera

212 Territórios de esperança


A luta pela terra tem diferentes momentos que são definidos pela conjun-
tura política e pela correlação de forças. A resistência pode crescer, diminuir,
cessar, mas não acaba nunca, porque é uma luta pela vida. A luta pela terra é
uma luta camponesa, porque terra é território de esperança, espaço de vida,
lugar da existência, do trabalho e da moradia. A ocupação da terra é uma das
formas de luta pela terra. Mas a ocupação da terra não é o começo da luta
pela terra. Quando as famílias sem-terra ocupam uma grande propriedade é
porque há vários meses essas famílias estão se organizando para que este mo-
mento acontecesse. (FERNANDES, 2000).
A ocupação da terra começa com o trabalho de base, quando os sem-terra
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST visitam as casas de
famílias, nas periferias das pequenas, médias e grandes cidades, inclusive nas
regiões metropolitanas, para convidar pessoas interessadas em participar na
luta pela terra e pela reforma agrária. Essas pessoas reúnem-se em diferentes
lugares: salões paroquiais, escolas, sedes de sindicatos ou na própria casa de
uma das famílias participantes. Com esse ato, inauguram um espaço de sociali-
zação política. Neste espaço discutem as possibilidades da luta pela terra e pela
reforma agrária. Com essa atitude, criam a primeira dimensão do espaço de
socialização política, que chamamos de espaço comunicativo. Neste espaço, as
pessoas apresentam-se, conhecem as suas histórias, discutem suas trajetórias,
pensam as possibilidades de seus destinos.
A proposta do MST de ocupar a terra aparece como esperança e medo. Es-
perança porque é uma possibilidade apresentada por quem lutou e conquistou
a terra. Medo porque a luta pode levar a conquista da terra, mas também pode
levar a outros caminhos, inclusive à morte no enfrentamento com os latifun-
diários, as corporações e com a polícia.
Esse processo cria a segunda dimensão do espaço de socialização políti-
ca, que denominamos de espaço interativo. A interação acontece porque as
pessoas se identificam, compreendem que têm trajetórias semelhantes: são
migrantes, camponeses expropriados há anos ou décadas, desempregados do
campo e da cidade, sem perspectiva de trabalho estável. Ao mesmo tempo em
que têm vontade de mudar o rumo de suas histórias, eles têm a insegurança
porque são apenas possibilidades.
A interação também acontece porque essa experiência possibilita a cons-
trução de conhecimentos sobre a luta pela terra, abrindo novas perspectivas
para suas vidas. Já não existe apenas a possibilidade do assalariamento. As

A conflitualidade como produtora do futuro 213


reuniões do trabalho de base podem durar meses. Elas acabam quando os
coordenadores apresentam a proposta de ocupar uma ou mais propriedades
e as famílias decidem pela ocupação. Até esse momento, viviam os efeitos da
conflitualidade gerada pelo desemprego e exclusão social. Com essa decisão,
abrem uma nova dimensão do espaço de socialização política: o espaço de luta
e resistência, que se materializa por meio da ação das famílias que ocupam
uma propriedade privada ou uma propriedade pública, ou apenas acampam
nas margens de uma rodovia.
A partir dessa ação mudam o sentido da conflitualidade e transferem o
espaço de socialização política para esse novo lugar, onde agora as famílias
organizadas tentarão manter-se reunidas pelo tempo curto ou longo. A perma-
nência dessas famílias naquele espaço político cria um “prototerritório”, que
dependerá da conjuntura política e econômica, do seu poder de mobilização
para permanecer resistindo. A criação de territórios de esperança são, portan-
to, resistências permanentes.
Agora, o espaço de luta e resistência chama-se acampamento. A inversão
do sentido da conflitualidade criou um novo fato e ganha as páginas dos jor-
nais. Essa forma de organização espacial causa um impacto na paisagem, de-
monstrando que aquelas famílias querem mudar suas realidades. Agora, nin-
guém pode ignorar essas pessoas. Elas estão juntas reivindicando condições
dignas de vida. Nem as estatísticas, nem os discursos políticos, nem as teorias
poderão ignorá-las. Todavia, se não é possível ignorar, é possível reprimir, re-
pelir, rechaçar, despejar. Assim nasce o conflito e aí estão. Um dos conflitos
mais antigos da história do Brasil: latifundiário contra o sem-terra. E um dos
conflitos mais modernos da história do Brasil: as corporações do agronegócio
contra os sem-terra. Os grandes proprietários querem manter seus privilégios
em nome da propriedade privada. Os sem-terra querem conquistar os seus
direitos em nome da democratização do acesso à terra.
Os conflitos, portanto, envolvem privilégios, interesses, direitos, reivindica-
ções e luta. A instituição competente para solucionar esse conflito é o Estado.
As respostas dos governos para a luta pela terra e pela reforma agrária depen-
dem de seu alinhamento político: neoliberal ou pós-neoliberal4. Os governos
neoliberais tratam a reforma agrária como política compensatória, residual e
criminalizam a luta pela terra; os governos pós-neoliberais tratam a reforma

4. Governos pós-neoliberais também são denominados de neodesenvolvimentistas.

214 Territórios de esperança


agrária como uma política de desenvolvimento territorial, embora realizem
apenas políticas setoriais. Outra diferença é que não criminalizam a luta pela
terra, mas também não agem para descriminalizar (FERNANDES, 2013). Por
meio das ocupações de terra, os sem-terra mantêm na pauta política a questão
da reforma agrária.
As ocupações de terra tornaram-se uma das principais formas de acesso à
terra. É, portanto, uma forma de criação e recriação do campesinato e seu ter-
ritório. Ainda, a pressão política das ocupações de terra obriga o Estado a pro-
curar soluções para os conflitos, ora com o assentamento das famílias, ora com
a repressão política. A ocupação de terra é uma afronta aos princípios da so-
ciedade capitalista. Portanto, não existe tolerância política com as ocupações.
As ocupações são rechaçadas, as famílias despejadas de modo que o con-
flito aumenta e tais ocupações se repetem até que as famílias são assentadas
ou desistem da luta. Essas medidas têm contido as ocupações de terra. Mas
contenção não significa solução, o Estado pode mudar o rumo das ações dos
movimentos camponeses: fazê-lo refluir e até desmobilizá-los. Ainda assim o
problema agrário persiste.
O problema agrário, também conhecido como questão agrária é produzi-
do pela disputa territorial. Começo minha reflexão teórica sobre o conceito
de território, tomando como referências os trabalhos de Oliveira, 1991 e 1999,
compreendendo-o como totalidade, como síntese contraditória. A partir de
Lefebvre (1991), Raffestin (1993) e Santos (1996), analisei tanto as diferenças
e relações entre espaço e território e suas multidimensionalidades. Além de
Haesbaert (2004), os textos de Souza (1995) e Saquet (2007), foram referências
para compreender as articulações e as multidimensionalidades dos diferentes
tipos de territórios. Com Gottmann (1973) pude reler o processo de coloniza-
ção pelos impérios no século XIX e sua leitura sobre a importância do território
neste contexto, com destaque para a questão da soberania. Todavia, Gottmann
se propôs compreender o território como espaços de governança, o que não
era suficiente para minhas análises, pois a escala das disputas territoriais que
eu analisava estava inserida nos territórios das nações. Era evidente que os
territórios das nações estavam em disputa, mas esta compreensão era insufi-
ciente para entender as disputas territoriais entre campesinato e agronegócio.
As escalas territoriais das disputas foram minha principal preocupação para
superar a ideia de espaço de governança que domina a maior parte das con-
cepções de território na geografia e fora dela.

A conflitualidade como produtora do futuro 215


Para construir uma compreensão das escalas das disputas, utilizei como
ponto de partida a ideia de frações do território de Oliveira (1991) para analisar
o processo de monopolização do território camponês pelo agronegócio e a ter-
ritorialização do capital. Outro autor que contribuiu para esta ideia foi Delaney
(2005) que talvez, por não ser geógrafo, não limitou sua análise territorial ao
espaço de governança.
No pequeno livro de Delaney encontrei uma breve discussão sobre terri-
tório e propriedade, outra publicação que discute a relação terra e território é
Paulino e Almeida (2010) e Elden (2010) que discute a diferença entre território
e terreno. Há três elementos essenciais dessas discussões sobre terra, território
e propriedade: a síntese contraditória, a multidimensionalidade e a multiesca-
laridade. Quero lembrar que nos trabalhos de Haesbaert (2004) e Saquet (2007)
encontramos diferentes perspectivas, amplitude, abordagens e concepções de
território, mas faltava pensar o território a partir de suas múltiplas escalas, de-
finidas por relações de poder, o que garante ao território sua permanência e
sua indefinição.
Nessa concepção, entendo o território como espaço apropriado por rela-
ções sociais que o produzem em sua multidimensionalidade. Este território
também é fragmentado e uma de suas frações é a propriedade da terra.
Pensar o território, a partir dessa concepção, deve-se considerar dois pres-
supostos: primeiro que o conceito de território não deve ser pensado como
uno, mas sim como totalidade, por meio de suas múltiplas escalas e dimen-
sões; segundo que a terra é a base do território, sendo espaço limitado por
relações de poder e sob a forma de propriedade ou como um fragmento de-
nominado de terreno, constitui-se em fração do território que é disputada por
distintos interesses das classes sociais (FERNANDES, 2008; ELDEN, 2010).
É dentro desses espaços que se produzem diferentes relações e classes so-
ciais, construindo diferentes territórios e territorialidades. Espaços, relações,
classes e territórios são conceitos inseparáveis, pois a destruição de uma classe,
significa o desaparecimento de seu território e vice-versa. No desenvolvimento
da agricultura há uma permanente disputa territorial por causa dos interesses
do campesinato, do agronegócio e dos governos. Mas não há somente dispu-
tas entre campesinato e agronegócio, há também disputas entre camponeses,
entre camponeses e indígenas e entre indígenas e agronegócio.
Para explicitar melhor a multiescalaridade, elaborei a ideia de tipologia de
territórios, a partir de distintas relações: o primeiro território é o espaço de

216 Territórios de esperança


governança, tendo o Estado como instituição fundamental e os governos como
gestores principais; e contém o segundo e o terceiro territórios. A propriedade
e qualquer outra fração é uma referência que uso como exemplo de segundo
território, mas não me limito aos vários tipos de propriedades, porque os se-
gundos territórios são formados dentro do primeiro e também por meio de
relações de poder; são, portanto, frações do primeiro. O terceiro território é
um espaço relacional, considerado a partir de suas conflitualidades, é fluxo
e, portanto, move-se sobre os segundos territórios, assim como no primeiro.
Talvez, o terceiro território represente melhor a definição de poder como
potencial de ação, que pode se manter ou se diluir de acordo com a organi-
zação das relações sociais (ARENDT, 1981, p. 212). Enquanto o primeiro e o
segundo são fixos, o terceiro território é fluxo, mas estas não são as únicas qua-
lidades dos territórios, seu uso implica em outras propriedades, assim como
seu estado físico e material contém a imaterialidade que o produz. A produção
do território imaterial parte de uma ideia situada tanto em um ponto no estilo
de pensamento, que é um espaço imaterial, quanto em um ponto no espaço
geográfico que é o território material.
Talvez, o último segmento do parágrafo anterior possa ter confundido o
leitor no que se refere ao que é espaço e o que é território. Santos (2004, p. 34)
recusa “o debate da diferença entre espaço e território”, já Raffestim (1993, p.
144) afirma que “o espaço preexiste a qualquer ação” e Lefebvre (1991, p. 102)
afirma que “o espaço social é a materialização da ciência humana”. Entende-
mos que o espaço contém o território que são produzidos pelas relações sociais
que os produzem. Para trabalhar com estes conceitos nos territórios do debate
paradigmático é preciso compreender que “todo conceito tem um contorno
irregular, definido por seus componentes” (DELEUSE; GUATTARI, 1992, p. 27).
Para analisar o território material em todas as suas escalas, em todas as
suas dimensões, é preciso um território imaterial, que é o próprio conceito de
território. O território imaterial (conceito) e o território material (espaço físico)
multidimensional e multiescalar é disputado por correlações de forças. Con-
ceitos e realidades em disputa são melhor compreendidos, quando considera-
mos a imprescindibilidade do debate paradigmático (FELÍCIO, 2011).
O contorno irregular dos conceitos no plano teórico e paradigmático pos-
suem zonas de superposição no processo de disputa por diferentes interpreta-
ções. Assim concluímos esta primeira parte de nosso ato intelectual para con-

A conflitualidade como produtora do futuro 217


tribuir com a conceito de território de esperança, que é disputado no mundo
agrário. E, no caso do Brasil, esta é uma luta secular.

O Brasil agrário

O mundo agrário do século XXI contém rugosidades, cujas marcas são


expostas pelas análises dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo
agrário. Uma das referências que contribuem para uma melhor compreensão
do mundo agrário na atualidade é “História das agriculturas no mundo” de
Mazoyer & Roudart, (2008). Esta obra evidencia que o novo mundo agrário não
pode ser compreendido sem sua história, como fazem os ideólogos do paradig-
ma do capitalismo agrário.
O Brasil agrário é um exemplo das marcas do passado gravadas nos terri-
tórios. A permanência da estrutura fundiária concentrada e controlada pelas
corporações capitalistas, constituindo-se em secular modelo hegemônico e
a persistência das lutas camponesas que resistem, cunhando suas pequenas
unidades de produção, espaços de vida e territórios de esperança, por meio
do milenar modelo alternativo: familiar, cooperativo, associativo. O hegemô-
nico e o alternativo são modelos de desenvolvimento da agropecuária que
disputam territórios. Os respectivos modelos, problemas e disputas são ana-
lisados pelo debate paradigmático que defendem posições antagônicas e po-
sições combinadas.
A incompatibilidade dos modelos pode ser compreendida ao se analisar
as relações sociais que os produzem e determinam suas escalas, tecnologias,
ordenamento territorial e relações com a natureza. Por se constituírem em re-
lações sociais capitalistas e familiares, produzem diferentes territórios e, por-
tanto, distintas territorialidades. As leituras que que cada tendência dos para-
digmas faz das diferenças está apresentado na figura 01.
Paradigmas são modelos interpretativos compostos por tendências. Pro-
mover o debate paradigmático é um procedimento para analisar suas diferen-
ças, relações e proposições. A construção do conhecimento por meio das ela-
borações teóricas constitui em visões de mundo, sendo, portanto, uma opção
política para desenvolver os modelos alternativo e ou o hegemônico.
O paradigma da questão agrária interpreta que as relações capitalistas
produzem desigualdades que provocam a destruição do campesinato, por-
tanto, o problema está no sistema que pela concentração fundiária e renda

218 Territórios de esperança


capitalizada da terra mantêm há séculos o modelo hegemônico de produção
monocultora em grande escala para exportação. O paradigma do capitalismo
agrário interpreta que o problema não está no sistema, ou seja, nas relações
capitalistas, mas sim na agricultura camponesa que não é competitiva, embora
haja uma fração, em torno de 10%, que pode parcialmente estar subordinada
ao agronegócio (Fernandes et al, 2013). De acordo com a visão do paradigma
do capitalismo agrário seria necessário desterritorializar 90% dos camponeses
brasileiros, de modo que o agronegócio ou modelo hegemônico possa se apro-
priar desses territórios, intensificando a concentração fundiária. Os impactos
desses modelos podem ser ler lidos em escala mundial, ao se analisar as ques-
tões agrárias de cada país.

Figura 01: Tendências do debate paradigmático

Organização: Bernardo Mançano Fernandes

A partir da figura 01, apresentamos as visões e argumentos de cada tendên-


cia do debate paradigmático. Importante lembrar que as disputas teóricas e

A conflitualidade como produtora do futuro 219


políticas sobre os problemas e viabilidade dos modelos alternativo e hegemô-
nico são a questão central deste debate, de onde são produzidas políticas para
o desenvolvimento dos modelos, que alimentam o próprio debate, por essa
razão, consideramos esse debate imprescindível. Para o paradigma da questão
agrária (PQA), o modelo do agronegócio somente intensifica o problema agrá-
rio, que não é somente social, mas econômico, político, cultural, ambiental, ou
seja, territorial; e o modelo camponês ou alternativo é estratégico para superar
a fome e promover a produção de comida saudável. Para o paradigma do ca-
pitalismo agrário (PCA), o modelo do agronegócio é o único modelo possível,
enquanto o modelo camponês é residual, que pode, no limite, parcialmente
ser um anexo ao modelo do agronegócio.
Observe a figura 01, comecemos pelos extremos dos círculos: a tendência
proletarista do PQA acredita no processo de destruição do campesinato pelas
relações capitalistas que podem levar a um processo revolucionário de trans-
formação do sistema capitalista para o socialista. As últimas produções teóri-
cas dessa tendência são da década de 1980, portanto é uma tendência que não
está sendo renovada; a tendência do agronegócio do PCA, que tem mantido
produção teórica e política constante, acredita que o agronegócio é o modelo
de desenvolvimento e que agricultura familiar/camponesa poderia até ser um
apêndice; a tendência campesinista do PQA acredita na importância estraté-
gica do campesinato para o desenvolvimento de um modelo alternativo ao
capitalismo e sua produção teórica e política é permanente; outra tendência
que mantém produção teórica e política atualizada é da agricultura familiar,
acreditando que a “integração” ao capitalismo é a única forma de existência.
Há uma zona de sobreposição entre as tendências campesinista do PQA
e agricultura familiar do PCA, em que seus argumentos, teorias e políticas se
misturam, demonstrando que a agricultura camponesa é familiar, que a fami-
liar é camponesa e que a resistência à subordinação ou “integração” ao capi-
talismo é a questão. Surge deste ponto a possibilidade de pensar a superação
(FERNANDES, 2013).
Este é o debate que expressa as disputas por modelos de desenvolvimen-
to: o agronegócio como criação das corporações capitalistas e da agroecolo-
gia como (re)criação das organizações camponesas. O poder hegemônico do
agronegócio e os discursos de seus ideólogos não conseguem impedir a emer-
gência e a insurgência da agroecologia. Estes são, evidentemente, distintos
modelos de desenvolvimento territorial em que para cada um o uso da terra e

220 Territórios de esperança


do território é pensado, planejado de modo diferente. São necessárias diversas
escalas, relações, tecnologias, saberes, configurações, inovações etc. São visões
de mundo que apontam para direções opostas e, em parte, sobrepostas, com
perspectivas antagônicas em que a natureza e a sociedade são compreendidas
como mercadoria e como vida, onde se destrói e se constrói, onde o produto
pode ser commodity ou comida. Neste debate a ideia de consenso não contém
o sentido da harmonia, mas o sentido do avesso, do embate gerado pela con-
flitualidade (FERNANDES, 2008).
A conflitualidade é um conceito essencial para compreender as disputas
territoriais por modelos de desenvolvimento e as políticas agrárias que os pro-
duzem. A superação do atual mundo agrário não acontecerá por consenso,
porque os modelos são antagônicos e qualquer acordo possível significa mu-
dar ambos. Este conceito permite compreender que os conflitos gerados não
são empecilhos, pois são imprescindíveis para que as mudanças aconteçam.
Elas serão disputadas em escalas micro e macro, na construção de tecnologias,
recursos, políticas agrárias etc.
A conflitualidade é um constante processo de enfrentamento, produzido
pelas contradições e desigualdades do sistema capitalista, evidenciando a ne-
cessidade do debate permanente, nos planos teóricos e práticos, a respeito das
disputas por modelos de desenvolvimento e dos territórios. Estas disputas se
manifestam por um conjunto e conflitos no campo das ideias, na construção
de conhecimentos, na elaboração de políticas de desenvolvimento, na correla-
ção de forças para a implementação dos modelos e em seus resultados.
A conflitualidade se manifesta: pelo posicionamento das classes ante aos
efeitos da globalização capitalista, marcados pela exclusão das políticas neo-
liberais, produtoras de desigualdades que ameaçam a consolidação da demo-
cracia; pela complexidade das relações sociais construídas de formas diversas
e contraditórias, produzindo espaços e territórios heterogêneos; pela histori-
cidade e espacialidade dinamizadoras e não determinadas; pela possibilidade
persistente da construção política das classes sociais, em trajetórias divergen-
tes e diferentes estratégias de reprodução territorial; pelo reconhecimento da
polarização regra/conflito como contradição em oposição à ordem e ao “con-
senso”; pela disputa das definições dos conteúdos dos conceitos e das teorias,
dos sentidos e direções, em que a oposição e incompatibilidade serão expostas.

A conflitualidade como produtora do futuro 221


Mapa 01: O Brasil agrário

Organização: Eduardo Paulon Girardi

As desigualdades do Brasil agrário podem ser melhor analisadas no mapa


01. As disputas territoriais estão cartografadas na sobreposição das agriculturas
camponesas e o agronegócio, inclusive com a predominância de cada modelo
pelo território brasileiro, como é o caso das regiões Nordeste e Centro-Oeste.
Ambos territorializam-se em direção à fronteira agrícola na Amazônia, onde

222 Territórios de esperança


concentra-se o maior número de conflitos violentos contra os trabalhadores
rurais. Para superar a intensificação das desigualdades, será preciso enfren-
tar questões como: impacto territorial da monocultura em grande escala para
exportação, concentração fundiária, reforma agrária, preservação das flores-
tas, qualificação do trabalho, soberania alimentar, qualidade dos alimentos,
tecnologias apropriadas, modos de produção, diferentes tipos de mercados. A
superação não acontecerá com políticas agrárias homogêneas, porque a agro-
pecuária é diversa. A luta pela terra é expressão da conflitualidade nas disputas
por modelos de desenvolvimento.
Nos últimos vinte anos, o Brasil produziu um conjunto de políticas agrárias
que são referências para a América Latina e África. Estas políticas estão volta-
das exatamente para as questões do atual Brasil agrário. Elas não são suficien-
tes, mas são criações originais que confrontam com o modelo estadunidense
que criou o agronegócio. Estamos gerando um modelo baseado na agropecuá-
ria sustentável e podemos avançar no sentido da superação das desigualdades.
Pensar o mundo agrário é pensar o desenvolvimento territorial na perspectiva
multidimensional e multiescalar. É pensar agropecuária em todas as dimen-
sões e escalas, a produção de alimentos, fibras e energia não está separada
da educação e dos investimentos, da saúde e da tecnologia, do trabalho e do
conflito, da moradia e da indústria, da preservação e do mercado, do campo e
da cidade, é preciso unir o que o capitalismo separou.

A política agrária que precisamos construir

O capitalismo produziu um modo de ver o mundo como mercadoria, ques-


tionado, entre tantos, por Bové & Dufour (2001), ao defenderem a luta contra a
comida ruim. A visão do mundo como mercadoria transformou a agricultura
em agronegócio, isso significa que a substituição da cultura pelo negócio criou
um modelo de desenvolvimento que artificializa cada vez mais os alimentos,
por meio do uso intensivo de agrotóxicos e mudanças genéticas. A agricultura
camponesa persiste com suas raízes na agroecologia, produzindo comida sau-
dável numa relação mais próxima da natureza.
Os impactos desses modelos podem ser analisados em escala planetária,
mas com diferenças proporcionais: pela grande escala e artificialização, a par-
ticipação do agronegócio nos impactos é muito mais intensiva. Em pouco mais
de dois séculos, a ação humana alterou metade da paisagem, afetando quase

A conflitualidade como produtora do futuro 223


toda superfície do planeta, provocando mudanças climáticas (RIBEIRO, 2011,
p.40).
Esse impacto é resultado da forma como a sociedade capitalista organi-
zou o campo e a cidade, e essa forma de organização territorial está associada
ao modelo agrário e industrial. Pensar a produção de alimentos numa relação
mais próxima da natureza, significa repensar o modelo agrário e industrial e,
portanto, as formas de organização territorial do campo e da cidade, ou seja, é
preciso pensar o próprio sistema.
A produção de comida artificial é produto de uma sociedade cada vez mais
artificializada. Pensar o mundo agrário significa pensar as escalas dos impac-
tos, de modo a compreender quais as formas de participação do campo e da
cidade nas mudanças necessárias para um mundo agrário menos artificial.
Pensar a qualidade da comida no século XXI é uma forma de mudar o mun-
do, mudando a nós mesmos. Para fazer esta reflexão é preciso estar atento às
tendências dos paradigmas. O ponto essencial, reafirmamos, é entender que o
mundo, as pessoas e a comida não podem ser compreendidas como mercado-
rias. Os mercados e as mercadorias são importantes para o desenvolvimento
econômico, mas não podem estar acima da política e do Estado.
A mercantilização e artificialização dos alimentos produzem desigualdades
sociais com problemas de saúde e ambiental em escala mundial. A história da
agricultura tem demonstrado que não é a natureza que cria limites para que a
agricultura possa alimentar o mundo. A fome é uma produção de um sistema
político e econômico que gera desigualdades permanentes, com a concentra-
ção da terra e da riqueza, impedindo que as pessoas tenham acesso à terra, ao
trabalho e à comida, entre outros direitos essenciais.
Sermos mais de sete bilhões de pessoas no planeta não é argumento para
justificar a persistência da fome, tampouco das desigualdades. A questão não
é menos pessoas, mas sim, mais comida, e, de qualidade. O problema está
no sistema capitalista e não nas pessoas. Embora pouco mais da metade da
população mundial seja urbana, os níveis de consumo e de exploração dos
recursos naturais, entre o norte e o sul, são desproporcionais, sendo que a
metade rural tem acesso restrito à terra, por causa da intensa concentração
fundiária em quase todo o mundo, intensificada nos últimos anos por causa
do crescimento de aquisições de terras por estrangeiros, incluindo corpora-
ções, fundos e governos.

224 Territórios de esperança


Uma das regiões com maior investimento estrangeiro no Brasil é o território
conhecido como MATOPIBA, formada por 31 microrregiões com aproxima-
damente 73 milhões de hectares nos estados de Tocantins, Maranhão, Piauí e
Bahia. Pesquisas realizadas por mais de uma década, mostram que, em 2003,
havia 1,2 milhão de hectares cultivados. Dez anos depois, o agronegócio con-
trolava 2,5 milhões de ha. Três quartos da territorialização ocorreram sobre
vegetação nativa, a maior parte no Cerrado. A partir de análise das imagens de
satélite foi avaliada que a evapotranspiração é em média 60% maior nas áreas
com vegetação nativa do que nas áreas cultivadas. A escala deste impacto res-
seca o cerrado, adiando a estação chuvosa e a circulação das correntes de ar,
que pode atingir inclusive a Amazônia (Fapesp, 2016).
Em dez anos a exploração da terra e da água pelo modelo do agronegócio
impactou uma região com possíveis desdobramentos para outra região. O mo-
delo hegemônico tem que ser repensado e esta atitude não virá dele mesmo,
mas sim do modelo alternativo.
A concentração da terra, a produção em grande escala para exportação está
diretamente vinculada à concentração da riqueza. Desde 2009, a riqueza de 1%
da população subiu de 44% do total de recursos mundiais para 48%, em 2015.
Em 2016, pode superar 50% se o atual ritmo de crescimento for mantido. O que
significa que a riqueza de 1% deve ultrapassar a riqueza de 99% da população
mundial (OXFAM, 2016). Mas nem todos os estudiosos da desigualdade são
contra este modelo concentrador, há quem defenda esse nível de desigualda-
de, como é o caso de Mankiw, (2013).
Nesse processo de crescimento desigual, pela concentração da riqueza, as
corporações do agronegócio usam seu poder econômico como estratégia geo-
política para garantir e ampliar seus mercados e territórios. Em escalas nacio-
nal, regional e local, as corporações articulam-se com senadores, deputados,
presidentes, governadores, prefeitos, por meio de lobbies para obter subsídios
e isenções fiscais, dominando territórios, impondo o modelo hegemônico,
impedindo governos, quando necessário para bloquear a territorialização das
alternativas agroecológicas. Com a produção intensiva de monocultivos na
forma de commodities para exportação, exploram mão de obra barata e os re-
cursos naturais ao esgotamento, para depois abandonar a região e se transferir
para novas áreas e continuar o ciclo predatório.
As disputas por territórios e recursos para produção de alimentos e ener-
gia é a conflitualidade do século XXI, por causa da apropriação territorial:

A conflitualidade como produtora do futuro 225


terra e água, recursos cada vez mais sob controle das corporações. Por causa
deste cenário, pessoas em todo mundo têm debatido o desenvolvimento ter-
ritorial agrário no sentido de confrontar o modelo hegemônico e fomentar o
modelo alternativo. São pessoas do campo e da cidade que não aceitam ali-
mentos cada vez mais envenenados, produzidos em outras partes do mundo,
distante de seus lugares, e decidiram promover a agroecologia. Estas expe-
riências estão acontecendo em todo o mundo e crescem a cada dia propondo
um mundo sustentável.
A política agrária brasileira destina somente 10% dos recursos para a agri-
cultura camponesa, portanto 90% está concentrado no agronegócio que con-
trola 76% das terras agrícolas, mas que produz somente 68% do valor bruto da
produção (FERNANDES et al, 2013). Ignorando os dados dos censos agrope-
cuários, os ideólogos do paradigma do capitalismo agrário questionam a parti-
cipação do campesinato na produção de alimentos como estratégia para evitar
o reconhecimento de sua importância. Em seus devaneios eles conseguem ver
apenas o agronegócio e uma agricultura familiar residual.
O desafio do modelo alternativo é enfrentar o poder político e econômi-
co do agronegócio. Não há governo no mundo que tenha interesse em con-
frontá-lo. Quais são as possibilidades de avançar com o modelo alternativo,
agroecológico? A força e a fraqueza desses modelos estão neles próprios, nas
suas instituições, nos governos e na sociedade. Seu poder político e econômico
é confrontado pela fraqueza revelada na insustentabilidade do modelo hege-
mônico, como por exemplo: o envenenamento cada vez mais intenso da terra,
da água e da comida, a destruição crescente de espécies vegetais e animais, o
transporte de sedimentos causado pela produção em grande escala, a apro-
priação da maior parte da água doce, a produção e aplicação de nitrogênio na
agricultura em quantidade maior que a fixada naturalmente e as mudanças
climáticas (RIBEIRO, 2011). Outras forças que que confrontam o agronegócio
são os movimentos camponeses do mundo, principalmente a Via Campesina.
Além dessas duas frentes que confrontam o agronegócio: a sua insustenta-
bilidade e o modelo sustentável da agroecologia, em desenvolvimento pelos
movimentos camponeses há frações dos mundos urbano e agrário praticando
a agroecologia e inovando em relações e políticas públicas, como as Commu-
nity Supported Agriculture (CSA). Mesmo que estas experiências estratégicas
sejam ignoradas pelos governos ou consideradas somente como “políticas de
desenvolvimento social”, por meio de ações compensatórias e secundárias,

226 Territórios de esperança


esta realidade comprova que apesar dos governos estarem subordinados ao
agronegócio e praticarem uma política agrária que financia e fortalece o mo-
delo hegemônico, há movimentos socioterritoriais construindo um novo re-
gime alimentar. Os regimes alimentares determinam como os alimentos são
produzidos e consumidos, suas instituições, políticas agrárias, possibilidades
e limites para o seu desenvolvimento.
A literatura especializada mostra que os regimes alimentares têm muda-
do de acordo com o desenvolvimento de políticas agrárias constituídas pela
correlação de forças que podem abandonar e construir regimes alimentares.
A defesa do regime alimentar das corporações só é defendida por seus ideólo-
gos, cada vez em menor número, seguindo a lógica da concentração de terra,
riqueza, poder e ideias. O regime alimentar das corporações sucedeu o regime
alimentar do processo de colonização, baseado nas platantions. O que ocorreu
de fato foi a modernização da agricultura capitalista que tem se utilizado da ex-
ploração do trabalho e da terra em formas cada vez mais intensivas e exclusivas
(MCMICHAEL, 2013).
Ao constituir o agronegócio, o capitalismo organizou os sistemas agrícola,
pecuário, industrial, mercantil, tecnológico, financeiro em um complexo de
sistemas ampliando seu poder político e econômico, territorializando-se para
todos os países do mundo. Ao mesmo que se expande, este modelo enfrenta
cada mais resistência de parte da sociedade com a insurgência de um novo
regime alimentar.
Para se propor um Brasil agrário agroecológico, é preciso compreender o
mundo como existência, onde os recursos naturais são essenciais, de modo que
preservar a natureza significa simplesmente existir. As experiências da agroeco-
logia e da soberania alimentar têm reaproximado a comida da natureza e da co-
munidade (WITTMAN et al, 2010), subtraindo a ideia de mercadoria. Estas ex-
periências acontecem há pelo menos vinte anos e constituem um novo regime
alimentar, não aceitam a dependência às grandes corporações, a persistência
da fome, defendem a soberania das nações em garantir a produção de alimen-
tos para seus povos (RODRIGUEZ, 2016). Estas ideias estão se multiplicando
em diversos os países e, na disputa por modelos de desenvolvimento, têm com-
parecido na elaboração de nova leis. A disputa central é com a ideia de segu-
rança alimentar, que procura garantir o direito à alimentação, mesmo que o
alimento venha do outro lado do mundo. As ideias de escalas de produção e da
produção separam as políticas de segurança alimentar e soberania alimentar.

A conflitualidade como produtora do futuro 227


Uma política agrária com base na soberania alimentar e na agroecologia
precisa tratar da reforma agrária, porque regime alimentar e questão agrária
são indissociáveis. A base desta política é um ministério da agricultura campo-
nesa, que não tratará somente de negócio, numa perspectiva setorial, mas sim
da produção de alimentos numa perspectiva multidimensional e multiescalar.
Trata-se de perspectivas da agricultura como arte (PLOEG, 2013). Aumentar
o número de agricultores em torno das cidades é condição fundamental para
garantir o abastecimento a partir da diversidade agroecológica.
A agricultura precisa se tornar cada vez mais urbana a ponto de fazer de-
saparecer a divisão campo cidade, formando um único território. Será preciso
também investir na produção de tecnologias apropriadas, na formação esco-
lar, técnica dos agricultores empobrecidos pelo agronegócio. A política agrária
que precisamos tem que tratar de novos mercados institucionais, populares,
domésticos, criando novos espaços de relações mercantis com base na solida-
riedade e sustentabilidade e não na desigualdade. A política agrária que preci-
samos tem que criar uma fase de transição, dos agricultores subordinados ao
agronegócio, para a agroecologia. Precisa reordenar os territórios, criar territó-
rios de esperança e definir áreas para a produção de fibras e agroenergia. A po-
lítica agrária que precisamos já começou a ser construída com as experiências
que ocorrem em vários países e que têm o Brasil como referência.

Considerações finais

Estamos vivendo um momento em que as perspectivas de superação pare-


cem estar suspensas. Há um vácuo na esperança por causa das consecutivas
derrotas que sofremos contra o império do agronegócio. As crises produzidas
pelo capitalismo fazem com que sua continuidade seja cada vez mais artifi-
cial, apropriando-se dos recursos naturais para expropriar povos indígenas e
camponeses, dominar cada vez mais os territórios dos povos que resistem à
sua expansão.
A luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil é uma luta produtora de
territórios de esperança, como demonstramos neste artigo por meio da espa-
cialidade, da produção de espaços de socialização política, onde vive a espe-
rança, porque o vazio desaparece, quando se decide mudar o destino. E só é
possível ver estas mudanças acompanhando as realidades, os movimentos, os
processos que mudam, transformam, principalmente as lutas camponesas e

228 Territórios de esperança


indígenas. Não há um lugar no mundo em que a resistência destes povos não
possa ser observada. É uma resistência pela existência contra a subsistência,
contra o modelo hegemônico do agronegócio e em defesa do modelo alterna-
tivo, da agroecologia. Para superar este momento de “suspenção”, tomamos
como referências os territórios de esperança, e propomos pensar políticas
agrárias para o desenvolvimento da agroecologia, como um modelo susten-
tável da agricultura.
As recentes experiências brasileiras evidenciam que podemos sair do esta-
do de letargia em que vivemos e avançarmos como propõe a Via Campesina.
Agricultores e pesquisadores têm condições de produzir superações.

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230 Territórios de esperança


Questão agrária, massacre de Pau d’Arco e violência
na Amazônia: entrevista com Ulisses Manaças1
José Sobreiro Filho2

J osé Sobreiro Filho: Gostaria que você caracterizasse como ocorreu a con-
centração de terras no Pará, as relações oligárquicas e, também, as relações
com o capital estrangeiro para entendermos um pouco mais o que é essa Ques-
tão Agrária do Pará.
Ulisses Manaças: Primeiro, nós estamos vivendo um contexto mundial de
um processo cada vez mais crescente de oligopoliozação da agricultura, da
produção agrícola no mundo. A agricultura no planeta inteiro passou a ficar
refém, na verdade, do capital financeiro no plano internacional. O capital fi-
nanceiro que é, digamos assim, o capital hegemônico na sociedade acabou
absorvendo esse capital menor e então a agricultura passou a ser muito mais
um elemento de mercado. Com as definições sobre os investimentos na agri-
cultura, sobre a própria produção agrícola, não são definidas mais nas micror-
regiões. Elas são definidas no mercado internacional, no Banco Mundial, no
Fundo Monetário Internacional e com isso decorre a chamada divisão interna-
cional do trabalho e, consequentemente, da produção. O Brasil ficou muito
mais com essa tarefa de ser um grande produtor de commodities agrícolas, um
produtor de matérias-primas primárias para o abastecimento do capitalismo
central. O país hoje retrocedeu. Da década de 1930 até a década de 1990 era um
país que tinha um processo de industrialização. A década de 1990 gera um
colapso nesse processo de industrialização dependente, mas era um país que

1. Entrevista concedida em 29 de maio de 2017 e publicada originalmente em 2018 na Revista Nera. Dispo-
nível em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/5700/0
2. Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB). Professor do Programa de
Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe do IPPRI/UNESP. Vice coor-
denador da Rede DATALUTA.

A conflitualidade como produtora do futuro 231


se industrializou e virou a oitava economia mais importante do mundo e, de
repente, acontece um processo, com o advento do neoliberalismo, de retroces-
so e desindustrialização do Brasil. Com a desindustrialização, o Brasil volta a
ser, na verdade, como na origem do processo de colonização, um país que pro-
duz matérias-primas para o centro do Capital de um modo que a gente hoje a
gente produz e exporta para o mundo matéria-prima bruta como suco de la-
ranja, café, gado em pé, carnes e frangos, ferro bruto (ainda para ser processa-
do fora do Brasil). O Brasil voltou a ser um país que depende basicamente do
saldo da balança comercial destes produtos que são as commodities e isso jo-
gou para o território um reordenamento do processo fundiário, ou seja, o Ca-
pital precisava de uma grande reforma interna para poder dar base para esse
modelo ser implantado e nessa passagem da década de 1990 é que com o Go-
verno do Fernando Henrique Cardoso que se consolida esse modelo. O Gover-
no do FHC consolidou o que se chama de Novo Mundo Rural, que tinha várias
subpolíticas para consolidar essa reforma agrária que o Capital precisava. Isso,
de certa forma, se consolidou num país que tinha várias empresas nacionais
no campo agrícola e agrário e que foram sendo transnacionalizadas. As empre-
sas internacionais entraram, chegaram no território, tiveram incentivos fiscais
do Estado brasileiro e foram comprando um conglomerado de empresas. En-
tão, hoje o Brasil está conectado ao capital internacional através das transna-
cionais no campo da produção e isso, obviamente, precisava da consolidação
de um campo auxiliar. O Pará e, especificamente, a região Amazônica é tida
pelo capital como a última grande fronteira a ser expandida no território. Se
você pegar os grandes biomas brasileiros, todos eles estão articulados com o
grande Capital. Se pegar os Pampas, tem grande produção de soja, de milho e
outras commodities. Eles avançam no Cerrado Brasileiro, que está completa-
mente dominado por setores do Agronegócio, mais especificamente a soja. A
Mata Atlântica brasileira é um espaço completamente dominado pelo grande
Capital, se pegar naquele eixo São Paulo-Minas Gerais, a produção de cana-de-
-açúcar para a produção dos agrocombustíveis. O Nordeste também monopo-
lizado e hegemonizado pelo grande capital. E a região Amazônica por ser ainda
esse grande reservatório de matérias-primas de um ecossistema muito mais
complexa e por consequência também das dificuldades de transportes e in-
fraestrutura nessa região acabou relativamente preservada. E hoje para o Ca-
pital, para esse modelo do chamado Agronegócio, que é a junção dos grandes
fazendeiros com a composição por estados com o Capital financeiro interna-

232 Territórios de esperança


cional, para poder esse modelo se sustentar, que hoje representa mais de 40%
do saldo da balança comercial brasileira e grande parte das exportações brasi-
leiras, e para se consolidar precisa de mais quantidade de terras. Por que? Por-
que é um modelo que leva rapidamente a terra à exaustão. Então precisa de
novas terras para se reproduzir. Então a Amazônia é esse grande espaço. Pri-
meiro porque se tem reservas ambientais que o Estado garantiu a proteção
para ninguém destruir e o Capital precisa dessas áreas. Você tem uma grande
quantidade de terras que são pertencentes à Federação/União e ao Governo do
Estado do Pará, e são relativamente protegidas. Ao mesmo tempo você tem
nessa região uma das menores densidades demográfica do Brasil. E o Pará se
destaca nessa região, por que? Porque é o Estado que tem mais facilidade de
acesso do ponto de vista do transporte. Você tem aqui o eixo hidroviário Ara-
guaia-Tocantins, eixos hidroviários da ilha do Marajó, que conectam com o
Oceano Atlântico, a possibilidade de chegar através da Bacia do Amazonas
para aquela região do Baixo Amazonas no Estado do Pará e isso sem contar o
aspecto rodoviário, pois é o estado que tem o melhor acesso de toda a Região
Amazônica. Portanto, o Pará se projetou ao longo das décadas de 1940, 1950,
1960 e 1970 como um grande escoador de todos os conflitos e tensões sociais
no Brasil. Por que? Porque a própria Ditadura Militar incentivou, organizou e
financiou a vinda de setores econômicos e empresariais do Brasil inteiro para
essa região como forma primeiro de colonizar a região amazônica. Criaram
então um lema – “Uma terra sem homens para homens sem terras” – para es-
timular o fluxo migratório para a região como forma, primeiro, de garantir a
salvaguarda da fronteira pretensa de um inimigo externo. Segundo, para dimi-
nuir a tensão porque aconteceram lutas camponesas em várias regiões do Bra-
sil como no Centro-Oeste, Nordeste e no Sul do Brasil também, especialmente
no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Como forma de diminuir essas
tensões foram dadas vastas quantidades de terras num processo de coloniza-
ção na época da Ditadura na Região Amazônica e, especificamente, no Estado
do Pará. Essa migração trouxe um conjunto grande de camponeses pobres,
mas, ao mesmo tempo, grandes proprietários de terras que foram agraciados
pela Ditadura Militar, inclusive o Capital financeiro internacional. Aqui, ban-
cos como o Bradesco e o Bamerindus (hoje HSBC) garantiram grandes quan-
tidades de terras doadas pela Ditadura Militar com fortes incentivos fiscais e
que foram promotores também de gravíssimos crimes ambientais na região.
Com todo esse cenário de concentração fundiária, de migração em massa para

A conflitualidade como produtora do futuro 233


a região Amazônica e para o Estado do Pará gerou todo esse caldeirão de ten-
são fundiária no Estado, sem contar nisso a falta de agilidade e o desinteresse
político do Estado em organizar o processo de ordenamento fundiário. Nós
sempre tivemos aqui um caos fundiário, que é um grande responsável por todo
esse processo de explosão de violência. Ou seja, latifundiários e grileiros de
terras que avançam sobre terras onde residem populações camponesas como
ribeirinhos, quilombolas, camponeses sem-terra, pequenos agricultores, ex-
trativistas, como os povos das florestas. Então essas grandes corporações, esses
grandes empresários capitalistas que vieram em busca de terra na Região Ama-
zônica avançam sobre essas terras e exatamente lá na ponta começam grandes
conflitos fundiários. Primeiro porque a maioria das propriedades de terras
aqui no Pará, mesmo com o ordenamento fundiário feito no chamado Terra
Legal, são terras do Estado que são griladas. Então essas terras ainda exigem
um processo de disputa que desrespeitando a constituição e o Estado não con-
segue resolver. Isso gera, obviamente, diversos casos de explosão de violência.
Então o Pará tem vários cenários montados. Você tem, por exemplo, o processo
de migração mais antigo do Estado que são as regiões Sul e Sudeste do Pará
quando vieram para cá durante as décadas 1960 e 1970 grandes proprietários
de terras. Terras que foram griladas, terras que foram dadas para 20 anos de
exploração e depois repassaram do Estado e latifundiários se apropriaram des-
sas terras de forma indevida e comercializaram essas terras. Isso se reproduz
como um caos fundiário. Você tem a Região do Baixo Amazonas, a Região do
Xingu também como uma região onde avança o processo de migração interna
e, também, com o processo de explosão do conflito. Também uma região de
grande colonização, especialmente nas décadas de 1960 e 1970 onde enviaram
uma quantidade gigantesca de camponeses especialmente do Centro-Sul bra-
sileiro e dos estados do Nordeste. E lá também criaram esses problemas por-
que também são terras que não foram regularizadas. Tanto que o Pará, por
conta desse caos fundiário, é o único estado que tem três superintendências
regionais do INCRA. Você tem a SR 27, que fica em Marabá, a SR 01, que tem
sede em Belém, e a SR 30, tem sede em Santarém. Isso para o INCRA tentar
garantir o ordenamento fundiário de realização da Reforma Agrária e mesmo
assim não tem conseguido dar conta de toda essa demanda e isso tem explodi-
do numa situação de violência. Então é todo esse cenário. Primeiro temos o
papel da iniciativa privada, que avança desrespeitando a legislação ambiental,
desrespeitando a legislação trabalhista e desrespeitando a própria constituição

234 Territórios de esperança


brasileira. Segundo, temos a leniência e a participação do Estado que em parte
foi colaborador e organizador desse processo na região e, ao mesmo tempo,
por conta da sua incompetência não consegue resolver os conflitos. No nosso
entendimento, tem origem no processo de ordenamento fundiário e na reali-
zação da Reforma Agrária.

José Sobreiro Filho: É possível perceber que há uma dependência crôni-
ca do Capital em relação ao Estado aqui na região da Amazônia e, sobretudo,
aqui no Pará por ser uma fronteira conflituosa? Isso me leva a pensar, com
base no par ofensiva-resistência, se nós teríamos uma tipologia de conflitos e
se teríamos uma mobilidade desses conflitos, visto o avanço do capital rumo à
floresta. Como isso tem se dado nos últimos tempos?
Ulisses Manaças: Nós temos feito muitos debates dentro dos movimentos
sociais para tentar caracterizar o que são esses conflitos. Pode-se dizer que
temos conflitos de natureza estulta quase especificamente que é o problema
fundiário, mas que, ao mesmo tempo, temos vários ciclos onde esses conflitos
explodem. Essas regiões, Norte e Nordeste do Pará, foram a primeira fronteira
aberta do processo mais recente. Nós tivemos no período do processo de colo-
nização da região os rios as grandes estradas. Eram por meio dos rios que você
desenvolvia a região, tanto que as grandes cidades, as mais antigas do estado
do Pará e da Amazônia são nas margens dos rios porque o processo de adentrar
na floresta, dominar a floresta e criar um processo de colonização é muito mais
difícil. Só que na década de 1950, com a abertura da Belém-Brasília, especial-
mente, teve um processo de expansão generalizada desse grande latifúndio na
região. Inicialmente, a ideia do Presidente Juscelino Kubitschek era abrir a Be-
lém-Brasília e nas margens criar um grande processo de reforma agrária. Co-
nectar os produtores rurais, os trabalhadores pequenos e médios garantindo
lotes de propriedade de terras para garantir um processo para o mercado inter-
no de consumo de massa. A ditadura militar rompeu esse processo e agraciou
ao entorno das rodovias grandes latifundiários, grandes empresas nacionais e
internacionais. Então isso gerou um palco de conflito e tensão. Se analisar da
década de 1950 até 1980, as pessoas que eram assassinadas, eram por confli-
tos nessa região Norte e Nordeste do Pará. Depois disso, na década de 1980 é
aberta a transamazônica e o palco do conflito migra também para essa região.
No Sul e Sudeste do Pará teve a implantação de grandes projetos do Estado bra-
sileiro como, por exemplo, a Mineração no caso da Serra dos Carajás: o projeto

A conflitualidade como produtora do futuro 235


Grande Carajás; a abertura da Serra Pelada, um grande garimpo na região; e a
construção da Hidrelétrica de Tucuruí. Toda a criação daquele parque mineral,
da produção de energia e da mineração gerou, sem contar a consolidação do
latifúndio pela Ditadura Militar que cedeu terras para grandes empresas, gerou
um fluxo migratório gigantesco para essa região. Ou seja, milhares de trabalha-
dores pobres oriundos da seca no Nordeste, dos conflitos agrários no Centro-
-Oeste migram para essa região em busca de terra e em busca de trabalho, e
vão para esses projetos. Só que esses grandes projetos, alguns ao serem fecha-
dos e ao concluírem a sua realização como é o caso da hidrelétrica de Tucuruí
e Serra Pelada. Quando fecham esses grandes projetos se gera uma população,
uma massa sobrante que não tem, na verdade, espaço no meio desses grandes
projetos porque a mineração exige uma formação qualificada desse trabalha-
dor. Então essas pessoas que margeiam esses grandes projetos não têm essa
possibilidade. Ou seja, grandes cidades vão surgindo nessa região num espaço
muito pequeno de tempo como é o caso de Parauapebas, uma cidade que não
tem trinta anos e já tem duzentos mil habitantes, você tem o caso de Canaã dos
Carajás, uma cidade que não tem vinte anos e é uma cidade que ultrapassa os
cinquenta mil habitantes, e com perspectiva de chegar a cem mil habitantes,
ou seja, as cidades foram crescendo e expandindo na região por conta desse
fluxo migratório na região e o grande Capital não absorve essa mão de obra.
É exatamente essa massa de sobrantes, de pessoas que vieram do campo, a
grande maioria veio do campo, que é o tecido social que os movimentos sociais
da região organizam para a ocupação de terras ocupando o grande latifúndio e
gera o caos e tensão muito grande. Então é uma região muito rica do ponto de
vista dos recursos naturais, mas, ao mesmo tempo, muito pobre do ponto de
vista da assistência e políticas sociais. Então, toda essa massa é o combustível
necessário para a explosão das ocupações de terras e ao mesmo tempo para a
repressão do Estado, porque o Estado paraense ele se elegeu e se consolidou
através de uma violência muito brutal contra o seu povo. Então essa região do
Oeste e Sudoeste do Pará tem a origem do conflito através do processo de fluxo
migratório em massa e, também, do incentivo do próprio Estado paraense. No
Baixo Amazonas, na região do Xingu, tivemos a abertura da Transamazônica,
a consolidação de grandes projetos na região também, mas é um processo de
abertura da fronteira agrícola mais recente. Na década de 1970 houve em toda
a Transamazônica e na Santarém-Cuiabá um grande palco do conflito, mas
agora o grande Capital se consolida de forma gigantesca e brutal. Primeiro

236 Territórios de esperança


porque teve o incentivo do Estado, projetos como o Novo Mundo Rural do go-
verno FHC, o Plano de Aceleração do Crescimento nos governos do PT, desde
2003, fizeram o capital se consolidar na região e ao mesmo tempo explodir
em novos conflitos como é o caso de Belo Monte, o caso da soja na Santarém-
-Cuiabá na BR 163, o caso da instalação de grandes infraestruturas como o
caso da Cargill no Porto de Santarém, que é um porto maior inclusive que a
Companhia Docas do Estado. Grandes projetos se consolidaram na região e
agora as Hidrelétricas, com cerca de trezentas, sendo projetadas somente para
a região Amazônica. Então esses grandes projetos estão sendo assentados em
terras onde já existem pessoas, sejam comunidades indígenas, quilombolas e
comunidades extrativistas como os chamados povos das florestas. Então isso
tem gerado um deslocamento dessa violência para onde o grande Capital vai
se consolidar. Então o mapa da violência e da explosão dos conflitos está exata-
mente onde o Capital se assenta, se consolida e gera uma disputa por território
com populações que já moram lá por centenas de anos inclusive. No caso dos
povos originários, os indígenas, há milênios, já estão. Então, o mapa do conflito
está exatamente onde o Capital avança. No Sul e Sudeste do Estado do Pará,
onde explodiu agora um caso de violência gravíssimo onde morreram, só nessa
região 16 trabalhadores nos últimos dois meses, se tem um latifúndio antigo,
mas ao mesmo tempo uma modernização do consórcio entre o latifúndio e
as empresas de mineração. Só para se ter uma ideia, os grandes projetos do
latifúndio, como o caso da Fazenda Maria Bonita e Fazenda Cedro na região
de Marabá, Eldorado, Curionópolis, Canaã dos Carajás e Parauapebas, grandes
fazendas de produção de gado já tem pedido no DNPM (Departamento Nacio-
nal de Produção Mineral) direito de lavra dessas terras nessa região. Ou seja,
o capital destrói a floresta numa primeira frente, depois vem a agropecuária
ou a produção de monocultivo, e depois tem a mineração conjugada a esse
mesmo processo. Então o Grande Capital não tem contradição na sua lógica
de dominação e atua de forma conjugada em uma grande frente. Então, isso
tem gerado uma explosão de conflitos que tem ceifado a vida de milhares de
pessoas atualmente.

José Sobreiro Filho: Quando olhamos a história do Pará, sobretudo pen-


sando os conflitos no campo, podemos fazer algumas diferentes alusões às
guerras civis, com esmagadora desigualdade de correlação de forças, que não é
reconhecida pelo Estado. Temos um processo extremamente hostil relaciona-

A conflitualidade como produtora do futuro 237


do ao campesinato associado ao amplo processo de expropriação e exploração
intensa do trabalho e que vem sofrendo alterações, criando mais capilaridade,
e se complexificando ao longo do tempo. Mas como poderíamos compreender
o nosso tempo atual? Qual a atualidade desse processo conflituoso?
Ulisses Manaças: Na verdade, os conflitos no campo, primeiro eles têm
uma origem na forte atuação do Estado. O Estado, nós não podemos dizer
que ele é conivente com esse processo porque ele também é organizador do
processo brutal de violência no campo. Desde a colonização aqui, passando,
por exemplo, pela Cabanagem que foi uma grande tentativa do povo de to-
mar iniciativa e tomar o poder para mudar os rumos da organização política,
democratizando o acesso à terra, se teve uma resposta muito dura do próprio
Estado. O Estado reprimiu violentamente esses trabalhadores por conta das
suas lutas que são direitos constitucionais, direitos civilizatórios da população
do campo na Amazônia e no Pará procuraram buscar. Mas teve, por outro lado,
primeiro, o Estado nunca se comprometeu com uma efetiva Reforma Agrá-
ria aqui. No máximo, o que nós tivemos foi uma política de assentamentos
e de colonização. Isso passando da Ditadura Militar, o processo de abertura
democrática e os atuais momentos de tensão social no país. Então, o Estado
nunca se comprometeu efetivamente com uma reforma agrária do ponto de
vista de democratizar o acesso à terra e criar um mercado interno de consumo
de massa. Tivemos, no máximo, políticas de assentamento e colonização. Isso
gerou todo esse caos de tensão social. Existem milhares de camponeses po-
bres na região que dependem de políticas públicas, especialmente de reforma
agrária e isso não é efetivado. Isso gera luta social. No entorno da luta social
tem a resposta do latifúndio. Por outro lado, tem, digamos assim, outros seto-
res do campesinato que são os povos originários, povos da floresta, indígenas,
extrativistas e quilombolas que já vinham a milênios e centenas de anos nesse
território aqui que sempre viveram, sempre produziram e nunca receberam
nenhuma política pública do Estado para fazer isso aí. Essas pessoas resistem
no território há muito tempo e são exatamente essas pessoas que são alvos da
cobiça, esses territórios que são alvos da cobiça do grande Capital. Por quê?
Porque são territórios protegidos. São territórios preservados. Porque esses
povos resistem, vivem, garantem a sua subsistência e não depredam o grande
meio ambiente e esse grande Capital sabe que tem uma riqueza natural muito
grande nesse território. Água, a biomassa, o subsolo, e isso é alvo de cobiça.
Então esse é um dos elementos de conflito e tensão na região. O outro é desse

238 Territórios de esperança


grande Capital privado que, em busca de expansão do seu modelo chamado
Agronegócio, disputa palmo-a-palmo o território com essas populações daqui
do campo. No momento, nós temos um processo de espacialização do conflito.
Por que espacialização? Não é em um território localizado qualquer, o conflito.
Hoje você tem no Sul e Sudeste do estado a disputa com o grande capital, a
disputa com a mineração e tem ao mesmo tempo os territórios tradicionais
de comunidades de quilombolas e indígenas onde o agronegócio avança, mas
organizado pelo Estado brasileiro e pelo Estado paraense. Um exemplo são as
chamadas hidrovias que procuram agora garantir um grande escoadouro de
transporte e produção do eixo Centro-Sul brasileiro que vai conectar os portos
de Vila do Conde, que está sendo triplicado, ao novo porto dos Pardais, que
está sendo projetado para as regiões de Curuçá e ao próprio porto de Belém;
as grandes hidrovias Araguaia-Tocantins; a hidrovia do Marajó; a hidrovia do
Tapajós. Irão, na verdade, passar pelas comunidades tradicionais por grandes
territórios de comunidades tradicionais gerando um grande conflito. As cha-
madas hidrelétricas com um processo de inundação porque aqui os rios são
de planície, portanto se você represa um rio pega um território muito grande
que é inundado e vão acabar também com grandes sítios arqueológicos, comu-
nidades indígenas, comunidades quilombolas e isso também gera conflito. O
asfaltamento e a distribuição de terra, por conta do Estado, a grandes empresas
para exploração da floresta na Santarém-Cuiabá e na própria Transamazônica
também tem gerado conflitos com as populações tradicionais, os povos das
florestas da região. As ferrovias, como a empresa Vale pretende duplicar a sua
ferrovia que vem da Serra dos Carajás até o porto de Barcarena à Vila do Conde
ao mesmo tempo fazendo uma nova rota de ferrovia, minerodutos como caso
de Moju passando no meio de comunidades quilombolas. Toda essa tensão
que não é iniciativa pura e simplesmente privada, é a inciativa do Estado patro-
cinando essas iniciativas que gera essa tensão muito grande. Ou seja, o conflito,
se pegar agora aqui na região da ilha do Marajó a consolidação do modelo de
produção de monocultivo de arroz por parte dos arrozeiros que estão migran-
do em massa para essa mesma região, ou seja, aqui na região Norte e Nordeste
do Pará que foi escolhido pelo governo brasileiro na época do governo Lula
como o melhor microclima para a produção da palma de dendê para os agro-
combustíveis, para a indústria de alimentos também tem gerado conflitos com
os assentados, sem-terra, pequenos agricultores, comunidades quilombolas e
indígenas na região. Ou seja, tem por conta não só do avanço do agronegócio,

A conflitualidade como produtora do futuro 239


mas ao mesmo tempo o patrocínio do próprio Estado na consolidação desse
modelo predatório na região. Isso é na verdade um grande combustível. Por-
tanto, o conflito, ele não está localizado em uma determinada região, ele está
completamente especializado aqui no Pará exatamente onde está a trajetória
de expansão desses projetos.

José Sobreiro Filho: É possível perceber que a situação do conflito é


ampla. É possível identificar ela especializada por toda a Amazônia e que se
descortina para a sociedade a partir do momento que o capital se territoria-
liza, sobretudo, através de uma relação promiscua com o Estado. Trazendo
essa contextualização para o plano atual de violência crescente e dos fatos que
ocorreram recentemente, eu gostaria de saber quantos ameaçados nós temos
hoje no campo, quantas pessoas foram vítimas de violência e quais os tipos de
violência que nós temos e que não se restringem à violência física, mas tam-
bém ao território, à cultura etc.
Ulisses Manaças: Aqui, nós temos, segundo os números da CPT, num
cálculo bem mais recente que fizemos desde 1996 que foi o ano do massacre
dos Carajás até o ano de 2016, tivemos 801 assassinatos. Isso sem contar os 36
assassinatos que nós tivemos agora em 2017. Até agora em 2017 foram então
837 assassinatos no campo no Brasil e desses, no Estado do Pará, foram mais
de 300 assassinatos até meados de 2017. Por que nós pegamos só desde a con-
tabilidade de 96? Porque 96 foi o ano do massacre de Eldorado dos Carajás e
foi na verdade um marco, um divisor de águas. Porque o movimentos social foi
se dando conta ao mesmo tempo de que as forças de repressão do Estado são
colaboradoras do processo de violência. Segundo, porque o Estado fez uma
autocrítica pela participação daquela chacina, mas ao mesmo tempo especia-
lizou na sua forma de tratar os conflitos no campo. Então, o Estado se equipou
e criou tropas específicas para fazer as reintegrações de posses. Então, o Estado
se reorganizou para enfrentar os conflitos no campo. O que supunha para nós
que teríamos uma diminuição da violência e nós não tivemos. Há vários ciclos
sazonais de explosão de violência. Nós tivemos diminuição dos assassinatos,
mas não a diminuição dos conflitos. Então há uma grande contradição nisso.
Os conflitos se multiplicaram. Os casos de tortura, os casos de despejos violen-
tos sejam por parte do Estado ou sejam por parte dos despejos clandestinos
organizados pelos latifundiários, os atentados, as iniciativas de tentar ceifar a
vida dos trabalhadores e os deslocamentos forçados de populações inteiras.

240 Territórios de esperança


Então isso gerou vários processos de violência, seja a violência psicológica com
despejos de famílias inteiras que não tem para onde ir e são jogados na rua com
uma atuação parcial do judiciário que garante a reintegração de posse para o
latifundiário, para o grileiro de terras em terras ilegais sem ao mesmo tempo
convocar para um diálogo a população que está disputando a terra. Então um
processo de atuação parcial do judiciário. Ao mesmo tempo você tem a coni-
vência do judiciário por conta do processo de não condenação dos mandantes
e dos executores dos assassinatos no campo. Se for analisar, nós não temos
condenações nos últimos casos. Pouquíssimos os que tiveram. Somente seis
mandantes foram a julgamento. Você teve o caso emblemático da irmã Doro-
thy e os assassinos, no caso o mandante Bida e o Taradão estão na região provo-
cando, inclusive, novas ameaças contra os trabalhadores na região de Altamira
e na região de Anapú. Então são casos emblemáticos de violência. Mesmo no
caso de Eldorado dos Carajás você teve a condenação do Coronel Pantoja e do
Major Oliveira, mas eles estão respondendo em liberdade e recorrendo com a
possibilidade que lhes é cabível dentro da legislação. E você teve a absolvição
de todos os soldados que participaram do massacre. Isso demonstra o caso da
impunidade. Então, toda essa onda de violência que está aqui tem uma atua-
ção direta do Estado por patrocinar essa onda de violência. Mas ao mesmo
tempo você tem a atuação da pistolagem que é um braço, digamos assim, clan-
destino do grande capital que atua perseguindo seletivamente trabalhadores
e trabalhadoras do campo, assassinando. Nos casos dos assassinatos, o que
colabora com o processo de violência, o que amplia a possibilidade da impu-
nidade, em cerca de 70% de todos os casos de assassinatos no campo, é que
você não tem um inquérito policial concluído. Se você não tem um inquérito
policial concluído, você não tem a condenação. Você não tem a quem acusar,
não tem um crime solucionado. Então esse é o grande amparo para as ações.
Uma outra questão é que no caso dos ameaçados de morte não tem um progra-
ma, na realidade tem um programa estadual de proteção à vítima de violência,
mas ele não está implementado, não está regulamentado. Está aprovado na
assembleia legislativa no Estado do Pará, mas não está regulamentado e se tem
no campo, com o governo Federal, um programa de proteção às vítimas de
violência no campo que não tem cobertura nem de 10% de todos os problemas
de ameaças de morte. Nós fizemos uma contabilidade e a última era de 2007
em que você tinha mais de 113 trabalhadores ameaçados de morte. Na maioria
dos casos eram quem? Lideranças de movimentos sociais, posseiros, garimpei-

A conflitualidade como produtora do futuro 241


ros, indígenas e quilombolas. São essas as principais pessoas ameaçadas e não
tem sequer nenhuma proteção do Estado. Hoje, na contabilidade nós tivemos,
na última reunião com os movimentos sociais e eles estão fazendo um novo
levantamento para fazer uma nova lista de ameaçados de morte. Se pegar uma
lista bem parcial, tem no mínimo entre 100 e 200 lideranças e trabalhadores
rurais ameaçados de morte aqui no Estado do Pará com toda certeza. Qual o
grande problema? Se você comparar os assassinatos no campo com os assas-
sinatos que ocorrem na cidade, obviamente que o número é muito maior, mas
aqui, diferente dos assassinatos urbanos, aqui a violência é seletiva. As pessoas
que morrem são lideranças forjadas em anos e anos de ocupação e em luta em
defesa dos direitos humanos. Então o processo de assassinato aqui é seletivo,
ou seja, se assassina para eliminar o processo de luta social no campo.

José Sobreiro Filho: Observamos ao longo das últimas duas décadas uma
transferência da estratégia em alguns lugares do país, da pistolagem para a ju-
dicialização. Então tivemos um processo de perseguição política de diferentes
lideranças e muitas sendo presas injustamente. Mas quando chegamos no caso
do Pará, nos parece que isso não é ainda a atualidade. Por que que ainda temos
tão forte as práticas como pistolagem, assassinatos e ameaças aqui no Pará?
Ulisses Manaças: Esse processo de judicialização está presente também
no estado. Nós temos um forte processo de criminalização da luta social. Por
quê? Primeiro porque a luta pela terra no Pará, na década de 1980, quando há
o processo de abertura democrática, a retomada dos grandes sindicatos aqui
das mãos dos chamados pelegos, se teve um processo de lutas massivas na
região. O novo sindicalismo emergiu aqui, que não era mais aquele sindica-
lismo ligado ao Estado, à Ditadura Militar na década de 1980. Especialmente
grandes sindicatos foram retomados aqui em Conceição do Araguaia, Mara-
bá, Santarém etc. Sindicatos importantes. Toda essa região norte e nordeste
do Pará, região de luta intensa da retomada da luta camponesa você tem um
processo de repressão também muito brutal, mas é o grande latifúndio que a
gente disputava terra, que morava aqui na região Amazônica, foi se transfor-
mando no chamado grande Agronegócio e a disputa com as grandes empresas
transnacionais. Então esse latifúndio também não tem mais sede aqui, esse
grande Agronegócio ele não mora mais aqui na Região. Com exceção de um
setor periférico, digamos assim da concentração fundiária. O setor periférico
ainda mora aqui, ainda reside aqui. Então esses promovem organizações mais

242 Territórios de esperança


brutais, são esses que contratam pistoleiros, são esses que são mais insanos na
sua forma de atuação, que contratam jagunços para espancar e para torturar
os trabalhadores rurais. Como é o caso mais específico aqui da fazenda Santa
Lucia. Ali são latifundiários grileiros de terra que procuram mesmo consoli-
dar na brutalidade um no processo mais primitivo da posse da terra, são esses
que contratam a pistolagem. As grandes empresas estão migrando para um
processo mais modernizado da chamada “pistolagem’’ que são as empresas
de segurança que a gente fala né, as grandes empresas de segurança que estão
sendo controladas aqui por latifundiários, por processo de migração de mo-
dernização da repressão do campo. Mas ao mesmo tempo tem aliado a isso,
o processo de judicialização da disputa pela posse da terra. Se você pegar as
ocupações de terras que aconteceram em áreas dominadas pela Vale do Rio
Doce em fazendas do Banco Oportunity, aqui você tem um número gigantes-
co com o número grande de lideranças do movimento sem-terra do MST que
sofre um processo na justiça. Nós tivemos três trabalhadores que foram con-
denados pela Vale com o Martins de Carvalho e mais dois garimpeiros, que
foram condenados a pagar 5 milhões de reais de indenização para a Vale por
conta de interdição da ferrovia. Lutas sociais para que a Vale fizesse reparos aos
seus danos ambientais na região. Condenação. Você tem advogados como Zé
Batista, que é da Comissão Pastoral da Terra, também condenados pela Vale
por conta da atuação das lutas camponesas da região. E você tem agora só do
MST, que nós tivemos só do MST, são 18 trabalhadores que sofrem processos,
entre os quais eu, sofrem processos da Vale do Rio Doce também por conta de
mobilização de massa na ferrovia da Companhia exigindo da Vale toda a repa-
ração da atuação predatória na região dos crimes ambientais, dos crimes tra-
balhistas que ela comete e não tem reparação com os trabalhadores. Inclusive
em terras do próprio MST, passando por dentro de assentamentos nossos e não
tem nenhuma reparação e não tem nenhum compromisso com a população
da região. Então tem um processo de judicialização muito forte também, muito
severo, mas ao mesmo tempo a desordem, o caos fundiário do Estado por con-
ta da inoperância, da incompetência e do patrocínio do Estado é o palco das
principais tensões aqui. Segundo, é que o Estado do Para está completamente
desorganizado do ponto de vista da organização das políticas públicas. Se pe-
gar os piores indicadores sociais do Brasil, o Pará está no topo desta listagem.
Pior índice da Educação Básica, os crimes ambientais do Pará encabeçando a
lista dos piores estados em relação aos crimes ambientais, os crimes em rela-

A conflitualidade como produtora do futuro 243


ção desrespeito à legislação trabalhista. Portanto, o Para é campeão nacional
de trabalho escravo. Então o Pará é, na verdade, um estado completamente
desorganizado do ponto de vista das políticas civilizatórias e que é isso que
as populações exigem. Então isso é, digamos, assim, um grande amparo, um
grande combustível para essa explosão de violência generalizada.

José Sobreiro Filho: Nas palavras dos movimentos, como ocorreu o Mas-
sacre de Pau D’Arco?
Ulisses Manaças: Bom, agora nós estamos vivendo em um processo de
espera da perícia, do resultado da perícia, que os setores públicos estão fazen-
do em relação ao conflito. Mas, de certa forma, o que que já está segundo o
depoimento dos sobreviventes? Essa área foi reocupada agora recentemente
depois dos dois processos de reintegração de posse na fazenda Santa Lucia. Foi
reocupada recentemente por esses mesmos trabalhadores. Ainda não tinham
conseguido nem montar o acampamento na área. Estavam na área, estavam
ainda montando o acampamento, quando teve uma operação da polícia mili-
tar de Redenção, que não é uma polícia especializada para conflitos agrários,
muito menos para reintegração de posse. Não foram fazer reintegração de pos-
se, foram, segundo a polícia, cumprir quatro mandados de prisão e quatorze de
busca e apreensão. Foram para a região. Segundo os relatos dos sobreviventes,
a polícia chegou atirando, humilhando e espancando os trabalhadores que não
conseguiram fugir. Vários conseguiram fugir ainda, outros foram capturados e
foram massacrados por conta da operação da polícia. Massacrados literalmen-
te. Esse foi o relato de quem conseguiu fugir e ainda viu os policiais sorrindo,
espancando, humilhando os trabalhadores e escutavam vários disparos. Esses
trabalhadores fizeram esse depoimento e a imprensa, inclusive, teve acesso a
esse depoimento dos que relataram esse fato. A polícia já chegou atirando, o
que desmente completamente a tese inicial do sistema de segurança pública
de que a polícia foi recebida com balas. Segundo, não há comprovação ainda
de que aquelas armas que eles apresentam supostamente dos trabalhadores
sejam dos trabalhadores. Você teve, segunda a própria OAB – Ordem dos Ad-
vogados do Brasil -, uma manipulação do cenário, do chamado Teatro do IBR,
como eles falam como uma linguagem militar. Uma completa manipulação e
alteração do cenário do conflito. Então, eles retiraram completamente os cor-
pos da região, impediram a autopsia na própria região, um levantamento na
própria região. Eles retiraram completamente todas as capsulas de bala. En-

244 Territórios de esperança


tão isso alterou completamente o cenário da chacina. Mas, de certa forma, os
movimentos sociais afirmam que houve uma matança generalizada. Há de-
núncias de que foram financiados pelos próprios fazendeiros da região para
cometer esse tipo de ação, mas isso só uma investigação mais, digamos assim,
delicada vai conseguir apurar. Mas na visão dos movimentos sociais foi uma
cachina, um massacre, previamente deliberado pela polícia militar, pelas for-
ças de repressão do Estado. Não há, em hipótese alguma, a possibilidade de
conflito. No conflito você coloca conflitantes em pé de igualdade, o que não
ocorreu em hipótese alguma.

José Sobreiro Filho: Pensando ainda essa conjuntura do Massacre, eu


peço que nos dê uma contextualização da área, que nos dissesse quantos so-
breviventes nós tivemos e quantas pessoas que não foram mortas, mas sofre-
ram algum tipo de violência.
Ulisses Manaças: Essa área que nós estamos falando, a fazenda Santa Lú-
cia pertence ao Estado. São terras públicas estaduais. Segundo uma das in-
formações que nós temos, são cerca de 5 mil hectares de terra. Uma fazenda
grande, são 5 mil hectares de terra, ou seja, um módulo acima do permitido
aqui na região. O fazendeiro, tinha conseguido o título de 600 hectares somente
e o restante era terra grilada. Então foi pedida a regularização dessa área, mas
não foi garantida. Portanto, uma área completamente ilegal, completamente
irregular. É completamente irregular que eles permaneceram, como é típico na
região. E ali chegaram a ter acampamentos de cerca de 200 famílias antes do
primeiro despejo. Só que teve uma primeira reintegração de posse. Aí o pessoal
fez mobilização, voltou para a área. Houve novamente uma reintegração de
posse e agora voltaram para a terra e não tinha ainda tempo hábil para uma
nova reintegração de posse. Mas, segundo relato das pessoas, foram 10 assas-
sinados. Dentre eles uma mulher, uma brutalidade terrível né. Foram 7 de uma
mesma família e ficaram 14 feridos. Feridos em estado grave inclusive, ainda
permanecem 2 feridos em estado grave no hospital em Redenção. Então esse é
o cenário e esses 2 inclusive estão sob proteção policial infelizmente por conta
da possibilidade de ameaça. Hoje acontece lá em Redenção uma mobilização
de fazendeiros, de empresários, organizada pelo sindicato de policiais e por
dois deputados federais completamente irresponsáveis que estão incitando
a violência. Eles que estão puxando, estimulando essa mobilização, inclusive
dizendo que eram bandidos, estimulando de verdade essa violência. Então o

A conflitualidade como produtora do futuro 245


clima na região está de completa tensão e a CPT permanece fazendo um acom-
panhamento disso também como proteção policial por conta das ameaças que
estão acontecendo lá. Então hoje as famílias estão completamente dispersas,
dispersaram. Estão dispersas e aí como eles eram, na verdade, ligadas à FE-
TRAF, os movimentos sociais estão reunindo aí para ver quais são os procedi-
mentos que vão tomar, mas um dos procedimentos de encaminhamento é a
exigência imediata da retomada das áreas por conta do Estado para a criação
do assentamento. Uma saída honrosa. E nós estamos responsabilizando dire-
tamente o INCRA, para nós a responsabilidade é inteiramente do Instituto Na-
cional da Reforma Agrária por conta da origem do conflito. Não tem resolução
do conflito, não teve vistoria na área e não teve sequer a desapropriação para a
criação do assentamento. Segundo a responsabilidade completa do Estado, do
seu sistema de segurança incompetente e que tem na verdade atuar como um
braço armado do grande latifúndio aqui na região. Então, a responsabilidade
é completa do Estado. Eles já se eximiram da irresponsabilidade, dizendo que
foram recebidos a balas. Mesmo se fossem recebidos a balas, eles tinham o
dever moral de optar por um caminho mais preparado para evitar uma chacina
dessa natureza. Foi na verdade patrocinado, tanto que já afastaram imediata-
mente um policial.

José Sobreiro Filho: Não houve nenhum tipo de diálogo em que o INCRA
pudesse prever a possibilidade desse tipo de conflito? Alguma informação que
foi passada anteriormente, algo nesse sentido para que eles que eles tivessem
a noção de que isso viria a ocorrer?
Ulisses Manaças: Tudo era plenamente evitável. Primeiro, porque o Es-
tado, ele é um mediador dos conflitos sociais. Na acepção do termo, o Estado
precisa mediar os conflitos dos diversos interesses de uma determinada socie-
dade. Qual o problema? É que o Estado atua como um dos colaboradores do
conflito, tomando posição sempre pelo lado do latifúndio e do Agronegócio. O
que que acontece? Foi criado um instrumento entre o governo brasileiro, que
é a chamada Comissão Nacional de Mediação de Conflitos Agrários. Essa mes-
ma comissão foi desmantelada, desmontada por esse governo que assumiu a
Presidência da República na atualidade, no governo Temer. Então se tinha um
desembargador, que era o desembargador Gercino Filho que era o grande res-
ponsável por essa comissão nacional de mediação de conflitos agrários. Qual
era o papel da comissão? Onde tinha conflito, onde tinha áreas ocupadas essa

246 Territórios de esperança


comissão chamavam os diversos atores. O pretenso proprietário ou proprietá-
rio da terra e aqueles que estavam disputando a propriedade da terra, no caso
posseiros ou sem teto. Chamavam os setores, conversava e procurava junto
às autoridades tomar medidas para poder primeiro fazer um levantamento
cartorial das propriedades, fazer vistoria da propriedade para ver se ela tinha
possibilidade ou não de ser passível de reforma agrária. Essa mesma comissão
que atuou no Brasil inteiro minimizando e diminuindo conflitos. Foi desman-
telada quando assumiu a mais de um ano atrás, esse governo do Michel Temer
que não tem compromisso absoluto nenhum com ninguém. Então o governo
demitiu essa mesma comissão, nomeou algumas pessoas para assumir a co-
missão, mas efetivamente a comissão não está mais atuando. Então isso gerou
toda a explosão de violência no Brasil inteiro, que são esses 36 assassinatos
na atualidade. Segundo o governo, também tem uma comissão Estadual de
mediação de conflitos agrários que não está atuando na atualidade. O que sig-
nifica dizer que o Estado poderia sim atuar, que o Instituto Nacional de Colo-
nização e Reforma Agraria poderia pegar das suas atribuições para primeiro
fazer um levantamento também cartorial da situação, fazer uma vistoria e logo
da propriedade para saber se ela era ou não passível de reforma agrária. Então
isso já dá pelo menos. E a outra era buscar saber se a área era completamente
regularizada, o que não é o caso dessa propriedade. Se ela fosse, se o proprie-
tário tivesse seus direitos, era o dever do INCRA buscar uma alternativa para
assentar as famílias. Só que isso não tem operação, não tem atuação e isso ge-
rou obviamente a explosão dos conflitos.

José Sobreiro Filho: Bom, de um lado nós temos uma mediação dos inte-
resses, com capilaridade inclusive por meio de figuras que tem difundido pelas
redes sociais alguns vídeos fazendo ataques diretos. E, do outro lado, nós não
temos então a mediação dos conflitos à favor dos movimentos. Além disso, nós
temos esse massacre, mas temos também outros potenciais. Quais são esses
outros potenciais e, também, quais são esses protagonistas dessa mediação de
interesses que não são populares dentro do Estado?
Ulisses Manaças: Bom, primeiro é importante destacar quem são aqueles
que cometem crime na região. Se tem, por exemplo, em relação aos conflitos
no Pará, primeiro os interesses do Capital privado, que eu já falei. Latifundiá-
rios que atuam de forma criminosa na marginalidade da lei, atuando, perse-
guindo e contratando pistoleiros. Existe, na verdade, uma atuação decisiva do

A conflitualidade como produtora do futuro 247


que a gente chama de consórcio da morte aqui. Se você pegar todos os casos
de assassinatos no campo aqui, por exemplo, você tem o caso da irmã Dorothy
de 2005 em que se teve reuniões previamente marcadas com fazendeiros da
região que colaboraram, patrocinaram e que, os mesmos, esconderam os man-
dantes dos assassinatos em suas propriedades. Você teve, no caso o massacre
do Eldorado dos Carajás no Sindicato dos Produtores Rurais de Parauape-
bas, que se reunião previamente dizendo como iriam patrocinar, financiar a
própria polícia para atuar. No caso, a polícia de Parauapebas e Marabá, para
promover a chacina do massacre de Eldorado dos Carajás. Por isso ele já foi
um assassinato, uma chacina previamente articulada. Na região do sudeste do
Pará, naquela região que vai de Marabá até Canaã dos Carajás, Parauapebas,
Eldorado e Curionópolis, tiverem reuniões prévias agora dos fazendeiros di-
zendo que existe uma lista e nós fomos alertados dessa reunião que existiu
entre os sindicatos que eles chamam de Produtores Rurais (sindicato de fa-
zendeiros). Fizeram reuniões prévias dizendo que existe uma lista de marca-
dos para morrer, que era para todos nós lideranças do MST tomarmos muito
cuidado. Essa reunião aconteceu em menos de dois meses atrás, tanto que nós
fizemos uma denúncia formal na secretaria de Segurança Pública do Estado
do Pará. Reunimos com o secretário de segurança, que é o Coronel Janot. Fi-
zemos essa denúncia listada para a secretaria de segurança pública alertando
do clima de conflito na região toda. Não foi tomada nenhuma providência e
aconteceu novamente assassinatos seguidos na mesma região, ou seja, os cri-
mes são cometidos por agentes do setor privado. Nós sabemos quem são, nós
denunciamos às autoridades e não há medidas nenhuma em relação a isso.
Na região do Baixo Amazonas também, nós sabemos quem são. Latifundiá-
rios da região, sojeiros que migram para aquela região de Santarém-Cuiabá e
fazem consórcio também. E fizeram denúncias há pouco mais de dois anos.
Ameaçados de morte em redes sociais, Padre Boini e Padre Gilberto. Pessoas
que atuam defendendo os direitos humanos na região. Na região do Marajó, os
mesmos arrozeiros também fazem consórcio para assassinar, para perseguir,
para intimidar os trabalhadores, ou seja, existe todo um contexto, um contexto
de ameaças que já são previamente estabelecidos, fazem as reuniões e pro-
movem isso aí. Então há uma, o rastro desta situação está muito claro, basta o
Estado atuar na perseguição e na repressão desses crimes. Acontece que isso
não é, digamos assim, implementado.

248 Territórios de esperança


José Sobreiro Filho: Podemos notar que há uma certa arquitetura da
violência aqui, uma engenharia da violência e que nós temos também alguns
protagonistas como, por exemplo, o caso do deputado Eder Mauro que tem
sido um Think Tank do latifúndio e do Agronegócio no tocante à defesa da
“propriedade privada”. Como nós poderíamos pensar algo mais ou menos nes-
se sentido?
Ulisses Manaças: Isso aqui seria basicamente aquela engenharia, a ope-
ração por baixo desse processo todo. A gente fala muito de assassinato no Pará
e na Amazônia. A gente sabe que é o conflito fundiário e a falta de resolução
do ordenamento fundiário a raiz do problema, mas você tem os operadores do
sistema, né. Quem é que opera? Ninguém morre por acaso. Quem é que ope-
ra? Primeiro, quem assassina quem? Quem assassina objetivamente? Quem
executa são pistoleiros, empresa de segurança e a polícia. Você tem aqui esses
três, digamos assim, os operadores desse sistema. Mandatos por quem? Quem
manda assassinar em primeiro plano? Quem manda assassinar em primeiro
plano são os grandes proprietários de terra, latifundiários e grileiros de terra;
empresas mais, digamos assim, organizadas do chamado Agronegócio, que
são aquelas que já contratam as empresas de segurança. Nós tivemos vários
conflitos. Por exemplo, nos tivemos conflito na fazenda Maria Bonita, que é do
Banco Oportunity. Portanto, um banco de sistema financeiro para empresa de
segurança. Nós tivemos os conflitos na fazenda Cedro, também propriedade
do Daniel Dantas que é o principal acionista do banco Oportunity e que é na
verdade um grande ladrão que grilou terra na região, que comprou diversas
propriedades de terra com a porteira fechada. Esse grande capital também
contrata e contrata de forma especializada. Teve o caso de um deputado fe-
deral, que é deputado federal do PTB, se envolvendo no esquema da máfia
das Sanguessuga, que foi a máfia das ambulâncias. Denunciado por desvio de
dinheiro público, grilou 7 mil hectares de terra em Santa Luzia do Pará, aqui na
chamada fazenda Cambará. Sua empresa de segurança com jagunços armados
assassinaram um trabalhador rural, torturaram um segundo trabalhador cha-
mado José Valmeresco Soares no ano de 2014. Você teve aí a impunidade até
hoje. Ficou 40 dias preso o mandante, filho do pastor que permaneceu pouco
tempo na cadeia. Você tem uma engenharia. Quem são aqueles que coope-
ram nesse sistema? Primeiro, quem opera no sistema são os pistoleiros. Quem
contrata, são os chamados fazendeiros. De onde vem o grosso da pistolagem
do Estado do Para? Vem dos Estado do Maranhão. A maioria dos pistoleiros,

A conflitualidade como produtora do futuro 249


pistoleiros clássicos que a gente conheceu na luta pela terra aqui, como o cha-
mado Sebastião da Terezona, o chamado Zé Mucura que atuava na Região do
Tucuruí. A maioria desses pistoleiros vieram do Estado do Maranhão por conta
da miserabilidade do Estado e por conta dessa fronteira aberta aqui no Estado
do Pará. São contratados na região porque a fronteira é aberta, depois fogem
para a mesma região, ou seja, esses pistoleiros atuam em diversas regiões, mas
inclusive tem escalas, por exemplo, de preços de cabeças de dirigentes, pa-
dre custa determinada quantidade, advogado defensor dos direitos humanos
custa determinada quantidade, lideranças dos trabalhadores rurais sem terra
custa determinada quantidade, ou seja, existe, inclusive, tabela de preço em re-
lação a isso. Esses pistoleiros atuam em forma clandestina, tem uma sequência
grande de assassinatos que cometem não só no Estado do Pará, mas em outros
Estados e transitam especialmente nessa região nossa. Especialmente no Pará,
no Tocantins e no Maranhão. Quem mais atua para as chamadas empresas de
segurança, como já falamos? Então é muito frequente agora na atualidade a
atuação de empresas de segurança que nós dizemos que é a profissionaliza-
ção da antiga pistolagem. Essas empresas de segurança atuam nessas fazen-
das mais modernas. O chamado setor do agronegócio que atuam inclusive
de forma oficial algumas, outras utilizando arma de grosso calibre que não é
atribuição dessas empresas de segurança, como é a doze de repetição, pisto-
las também que são de utilização exclusiva da polícia e das forças armadas,
ou seja, armas de alcance longo, que não são de atribuições de empresas de
segurança. Empresas de segurança só podem atuar no máximo com uma 38,
um revólver de calibre 38. Então essas empresas atuam com cartucheira, arma
de repetição enfim. Então, essas empresas que atuam oficialmente e, também,
na clandestinidade, que são empresas contratadas do chamado agronegócio.
E um outro setor que executa as operações é exatamente a polícia militar, que
atua de forma oficial no caso da chacina de Eldorado do Carajás, dessa chacina
agora de Pau D’Arco, mas ao mesmo tempo também atua de forma clandestina
sendo contratada das mesmas empresas de segurança. Um exemplo disso? Vá-
rios dos policiais que participaram do assassinato do Fusquinha, que é Onalí-
cio Araújo Barros, e do Doutor, chamado Valentin Serra na fazenda Goiás II em
Parauapebas no ano de 1998, já haviam participado do Massacre de Eldorado
dos Carajás como oficiais, ou seja, há uma repetição da atuação da polícia de
forma oficial, mas ao mesmo tempo sendo contratada para fazer determinadas
ações de forma clandestina por proprietários de terra. Então, digamos assim,

250 Territórios de esperança


são esses ou aqueles por conta da operação da chamada pistolagem na região
e nos conflitos no Estado do Pará.

José Sobreiro Filho: Durante o primeiro golpe que estabeleceu a ditadura


militar nós tivemos uma forte participação dos latifundiários. Tem até um pro-
fessor amigo que trabalha com a ideia do Agrigolpe, Clifford Welch, e ele vem
recentemente destacando essa relação do Agronegócio com o Temer e como
ocorreu essa aproximação. Isso passa muito despercebido para a maior parte
da população. Diante disso, eu fico pensando quais são as fronteiras novas que
são abertas para o Capital e para o conflito? E, no caso da Amazônia, quais são
os próximos pontos onde podem explodir os conflitos? Onde é iminente? Qual
a consequência desse Agrigolpe para a Amazônia, sobretudo, para o Pará?
Ulisses Manaças: Isso é importantíssimo. Como a gente está falando que
há um processo de expansão do Agronegócio na região e espacialização do
conflito, nós teremos obviamente novos conflitos explodindo no Pará e na
região Amazônica. Isso é no nosso entendimento, o entendimento do MST e
dos movimentos sociais, isso é inevitável. Inevitável. Basta ver que primeiro o
Estado, através do governo e esse governo golpista que assumiu o Brasil não
é o governo de partido político, não é um governo que representa todos os
interesses da sociedade Brasileira. Pelo contrário, para nós, está caracterizado
como um governo de classe. Ele representa os grandes setores do empresa-
riado Brasileiro, o Agronegócio, o setor industrial da FIESP, da FIEPA no caso
do Pará, da FAEPA (Fundação da Agricultura do estado do Pará). Esses setores
do empresariado nacional e dos interesses dos internacionais. Então é um go-
verno de classe definido para implementar o desmantelamento da máquina
pública em detrimento da consolidação do modelo do grande capital. Então
esse governo tem um lado, definiu o seu lado e está desmontando toda a es-
trutura jurídica Brasileira consolidada e construída com a luta social, com o
processo democrático Brasileiro, com a participação do povo brasileiro nessas
lutas e conquistas. Essa é a característica do momento. Por quê? Porque este
governo não representa o interesse da maioria da população Brasileira. Por
isso eles têm então financiado e colaborado com todo o desmonte daquilo que
era que o Brasil construiu de mais avançado no aspecto da legislação. Seja de
proteção do trabalho, ou seja, de proteção ambiental, esse Estado começou
a desmantelar isso para pavimentar a consolidação do chamado modelo do
Agronegócio. Basta ver o código florestal que não começa com esse governo.

A conflitualidade como produtora do futuro 251


Começa com o governo anterior do presidente Lula e da presidenta Dilma, co-
meçaram a relativizar o próprio código florestal Brasileiro. O Congresso Na-
cional Brasileiro, na verdade quem organizou e patrocinou a flexibilização da
legislação ambiental para poder o latifúndio e o agronegócio se consolidarem
no Brasil e especialmente na região Amazônica. Você vê agora a MP 759 que
foi aprovada no Congresso Nacional que prevê a titulação das terras dos assen-
tamentos para criar um processo de mercantilização dos lotes agrícolas para
o agronegócio reconcentrar terra. É uma grande ameaça para os trabalhado-
res e trabalhadoras rurais. O processo de emancipação dos assentamentos, ou
seja, o Estado abre mão, se isenta das responsabilidades dos assentamentos,
da criação e consolidação dos assentamentos para que os assentamentos se-
jam territórios autônomos. Portanto, com o título de propriedade na mão, você
pode inclusive comercializar, ou seja, para o agronegócio avançar ele precisa
de terra e território. Então ele visa também os milhões de hectares de terra con-
quistados pela luta social dos trabalhadores na região Amazônica. Então, por
outro lado você tem com essa, digamos assim, abertura, o desmantelamento
da legislação ambiental, da legislação trabalhista, da legislação Brasileira que
protege as áreas da região Amazônica. Inclusive com a abertura da fronteira,
com a compra, com a possibilidade agora com a convocação do Congresso
Nacional para a compra de terras por estrangeiros. E aqui na região Amazônica
quem concentra propriedades são: Norte Americanos, Chineses e Franceses,
que concentram cerca de 3 milhões de hectares de terra. Com essa possibili-
dade concreta aberta agora com esse governo golpista você tem então a possi-
bilidade de uma expansão do agronegócio que já vinha sendo consolidada no
governo brasileiro. O que acontece? Nós temos várias frentes abertas de conso-
lidação do modelo. O que o grande capital e o governo brasileiro pretendem?
Primeiro criar um sistema grande de comunicação aqui na região Amazônica.
Então, a proposta da consolidação deles é um grande modelo de comunicação
e interligar a região através da comunicação. Segundo um grande e comple-
xo sistema viário, ou seja, de hidrovia. Hidrovia Araguaia-Tocantins, hidrovia
do Marajó e hidrovia do Tapajós, para conectar a grande produção de soja, de
commodities para o centro sul brasileiro, do sul e sudeste do Pará, do Nordes-
te Paraense e da região do Baixo Amazonas através da Santarém-Cuiabá e da
Transamazônica, que está em expansão com os portos de Santarém, com uma
saída para o pacifico, com o porto de Vila do Conde que está sendo triplicado
em Barcarena e há perspectiva de ampliação com a construção do Porto dos

252 Territórios de esperança


Pardais. Seria uma ligação mais direta ainda com o Oceano Atlântico no litoral
paraense, ou seja, esse sistema de hidrovias. Um sistema de ferrovias. A Vale
já está com plena duplicação da ferrovia que vai desde a Serra dos Carajás até
o porto da Vila do Conde. A Vale pretende ainda criar um outro sistema de
ferrovia que vai da serra dos Carajás até região de Santarém. A Vale pretende
ampliar o seu mineroduto que vai da Serra dos Carajás, passa por Paragominas
que é produtor de Salobo, e que vai passar pelo por regiões de Moju, toda essa
região nordeste do Estado e que vai conectar com porto de Vila do Conde. Você
tem a expansão e consolidação do modelo dos agrocombustíveis e da indústria
alimentícia através da palma de dendê no território norte e nordeste Paraense,
ou seja, há toda uma espacialização e consolidação do modelo do agronegócio
e ao mesmo tempo são nessas regiões que começam a explodir conflitos. E no
caso da região do Xingu com a indústria da pecuária, chamada terra do meio,
avança a indústria da pecuária para a região, conflitos fundiários na região co-
meçam a explodir, a instalação das hidrelétricas, seja de Belo Monte que já é
uma região extremamente conflituosa com os indígenas e com as populações
tradicionais da região, pescadores e tudo mais, você tem ao mesmo tempo
agora a mineração com um grande projeto de mineração que está sendo con-
solidado agora por empresas internacionais. Também a consolidação dos ar-
rozeiros na região do Marajó, ou seja, onde avança o agronegócio, se consolida
também o conflito e são nessas regiões que inevitavelmente irão se multiplicar
em novos conflitos na região.

José Sobreiro Filho: Qual é, na visão dos movimentos socioterritoriais e


nessa conjuntura de golpe e de conflito iminente, a importância do território?
Ulisses Manaças: Primeiro, fazendo uma avaliação crítica. A grande crí-
tica que o MST faz em relação aos movimentos sociais, primeiro que os mo-
vimentos atuam de forma muito isoladas, atomizadas e dispersas porque são
movimentos de massa. Então o movimento de massa, pela sua natureza, a
pauta é a evidentemente econômica. Então a pauta é basicamente a existên-
cia, sobrevivência e a sua subsistência. Então, por exemplo, os indígenas não
querem nada mais do que o governo que já vivem né, essa forma de relação
diferenciada com a natureza, com o território, com as suas divindades e com
as suas culturas. E isso é fortemente, brutalmente ameaçado quando chega
o colonizador através do modelo da pecuária, do garimpo e da expansão do
agronegócio. Os movimentos sociais de luta pela terra querem terra e a terra

A conflitualidade como produtora do futuro 253


em um primeiro momento também é vista como uma forma de reprodução da
sua existência como camponeses, uma existência econômica. Só que depois a
gente percebe que só a terra não basta, a gente precisa de outras políticas que aí
passam a ser Reforma Agrária e aí já passa a ser território. Então é a passagem
da luta pela terra pura e simplesmente como um viés econômico para a luta
como um território onde as comunidades têm que ter autonomia, tem que ter
autogoverno e autogestão, ela passa a ser uma medida preferencial dos pró-
prios movimentos. Porque se você for analisar, os governos brasileiros criaram
assentamentos, mas ao mesmo tempo não implementaram políticas públicas.
Você não tem um assentamento sequer que foi completada 100% a implemen-
tação de políticas públicas. Então essa transição da mega luta pela terra para a
luta pelo território como um espaço de poder, como um espaço de criação de
uma nova cultura política, o espaço de criação de uma nova cultura produtiva,
como um espaço de contradição com a matriz do grande capital e do agrone-
gócio. É, na verdade, o projeto político que o MST encampa e que o MST acha
que os outros movimentos sociais também devem promover. Porq ue que eu
digo que acha? Porque isso é um projeto em transição. Por quê? Porque para
criar autonomia dos territórios você precisa mudar a matriz tecnológica de
produção. Não basta ganhar terra e reproduzir pequenos minifúndios aquilo
que o agronegócio produz A roça no topo, a roça de queimada, isso é preda-
tório para a própria região Amazônica. Muito embora seja a tecnologia que
está à disposição da agricultura, mas é preciso mudar a matriz tecnológica de
produção e para nós, a matriz tecnológica de produção chama-se agroecologia.
O problema é que a agroecologia, como é uma ciência nova, é um tema aberto.
É um tema em construção e a mesma experiência para o MST rica, vitoriosa da
agroecologia que é implementada no sul do Brasil, não pode ser implementa-
do na Amazônia. Deve ser utilizada as boas experiências, mas a Amazônia é
um bioma extremamente complexo. Então é um termo em construção a partir
de toda a vivência. Os saberes que as comunidades indígenas já têm aqui são
fundamentais para construir essa nova matriz tecnológica de produção. Uma
coisa é certa, nós já estamos experimentando isso em diversos territórios nos-
sos. Hoje nós já temos várias experiências multiplicadas de agroecologia e nós
queremos que ela se multiplique, se massifique porque para nós, agroecolo-
gia não é produzir alimentos saudáveis para colocar no mercado alternativo e
vender 40% mais caro. Nós não queremos isso, nós queremos vender alimentos
baratos. Para vender alimentos baratos para o grosso da população e não só

254 Territórios de esperança


para aqueles que tem recursos para poder comprar, que é para a população
pobre mesmo, você tem que multiplicar e massificar essa produção. Esse é o
grande objetivo do MST, que é a autonomia na produção de alimentos e criar
respeito a esses territórios. Então esse é o nosso projeto político e para nós isso,
de fato, colocará em cheque esse modelo predatório do agronegócio.

José Sobreiro Filho: Antes de finalizar eu gostaria que você falasse da sua
participação dentro do MST, da Via Campesina e da CLOC para que pudésse-
mos compreender a articulação das escalas.
Ulisses Manaças: Antes disso, eu vou falar que nós entendemos a seguinte
questão. O capital hoje ele está muito mundanizado, o capital globalizado. O
chamado capital financeiro submeteu a agricultura e a agricultura é um supor-
te desse capital financeiro no mundo inteiro. Portanto, a ideia é mercantilizar
tudo, inclusive todas as formas. Inclusive a própria natureza. Eles atuam nessas
diferentes escalas no mundo inteiro, por isso que a gente acha os agricultores
não só no Brasil, não só do Pará e na Amazônia, têm que atuar nas diferen-
tes escalas também. Então por isso, por essa necessidade, surgiu a necessi-
dade dessas grandes articulações internacionais do próprio MST como, por
exemplo, a criação da Via Campesina na década de 1990 foi uma necessidade
de articular essas lutas em escala planetária que nos fez criar a Via Campe-
sina, que é uma experiência vitoriosa. Hoje se trata da maior organização de
trabalhadores e de camponeses, camponeses do mundo inteiro, uma grande
articulação global para enfrentar o grande capital também nessas diferentes
escalas. Na América Latina, a criação da Coordenadoria Latino Americana da
Organizações do Campo, que é a CLOC e também atuando em escalas Latino-
-americana, articulando as lutas, criando uma unidade campesina na região,
intercambiando em diversas experiências organizativas fortalecendo cada ex-
periência a partir disso. Então a gente acha que esse capital hoje é a suprema-
cia não só no ponto de vista econômico. Ele é a supremacia, a hegemonia na
sociedade no ponto de vista político. A política hoje é refém desse mini projeto.
Então no Brasil não existe partido político, com exceção de alguns partidos
políticos de esquerda que tem semelhanças na estrutura partidária clássica.
Você tem grupos de interesses. Então o governo, esse governo que assumiu
o Brasil, ele é um governo que ele é uma expressão dos interesses do grande
capital. Como ele, esse grande capital atua em diversas frentes. Nós também
temos que atuar em diversas frentes. A gente acha que os movimentos sociais

A conflitualidade como produtora do futuro 255


do campo têm que atuar primeiro ocupando, lutando pelo desenvolvimento,
pelo poder político do próprio território ao mesmo tempo se articulando com
as iniciativas das cidades. O que existe de experiência importante de diálogo
democrático nas academias e na academia em diversas formas subsidiando de
conhecimentos os camponeses, fazendo esse tipo de diálogo com os saberes
do próprio campesinato. Nós temos que criar um braço, mesmo com as con-
tradições do parlamento burguês, mas fazendo também um debate ampliado
com parlamentares que tem compromisso com a luta e com a causa social,
com os partidos políticos de esquerda, com setores urbanos massivos, espe-
cialmente a juventude que vive essa contradição nas grandes periferias, com a
população das periferias que serão beneficiadas com o processo massivo de re-
forma agrária. Esses são os desafios postos na conjuntura. Se o capital atua em
diferentes escalas, em diversas frentes, nós dos movimentos sociais também
não podemos também viver somente na resistência. Temos que passar contra
a ofensiva nessas diferentes escalas e isso requer um grau de unidade superior
ao alcance do governo na atualidade. Esse é o grande desafio colocado e posto
para a gente. Por isso a gente tem atuado dessa forma. Hoje eu sou assentado,
no assentamento Martins de Abril, fica a 74km de Belém, faço parte da dire-
ção Estadual dos movimentos dos trabalhadores do Movimento Trabalhadores
Rurais Sem Terra no Estado do Pará, também faço parte da direção nacional
do MST e atuo na coordenação da Via Campesina Amazônia aqui também da
região articulando com diversos movimentos sociais.

José Sobreiro Filho: Qual a importância dessa articulação e, sobretudo,


da educação do campo, e do IALA Amazônico não só nos contextos das lutas
aqui mais locais, mas também em termos de América Latina e mundo?
Ulisses Manaças: Primeiro que nós, à partir dessas experiências, que
tiramos várias estratégias de ação global. A gente acha que o MST tem sido
uma experiência vitoriosa no ponto de vista organizativo. Tem sido, digamos
assim, não um exemplo, porque exemplo eu acho que é muito presunçoso na
verdade. Mas o MST é uma experiência vitoriosa do ponto de vista da organi-
zação dos camponeses e pode ser uma experiência que pode se multiplicar e
se reproduzir de formas diferentes obviamente, mas encorajando o nível de
organização superior do campesinato. À partir disso, várias estratégias. Se o
capital atua em diferentes escalas, temos que atuar também em diferentes es-
calas. Então, a Via Campesina se tornou o grande ecoador dessa política no

256 Territórios de esperança


plano internacional e a CLOC na América Latina. Mas o que nós entendemos?
Para consolidar um projeto mais ou menos unificado de luta, onde fortaleça as
diversas experiências à partir das particularidades regionais, mas com linhas
políticas unificadas, era preciso criar experiências de formação do ponto de
vista dos trabalhos unificados. Então à partir dessa experiência da Via Campe-
sina, da CLOC, mas também da articulação latino-americana de organização
do campo, a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da América) com a par-
ticipação de movimentos sociais, fomos criando experiências de formação em
escala ampliada que, são os Institutos Latino Americano de Agroecologia, o
Instituto Latino Americano de Agroecologia Guarani, o Instituto Latino Ameri-
cano de Agroecologia no Chile e o Instituto Latino Americano de Agroecologia
na própria Venezuela. Aqui para Bioma Amazônico nós lançamos o desafio de
criar o IALA que é o Instituto Latino Americano de Agroecologia para o bioma
amazônico, no assentamento do Palmares II, num assentamento do MST na
cidade de Parauapebas. Então à partir dessa experiência nós fomos ampliando
a relação com a academia, que se dispôs a fazer um diálogo conosco e a partir
disso várias turmas de formação do campo da agroecologia para multiplicar a
experiência, o conhecimento e a própria experiência em todo território foi se
consolidando. A partir disso, aquilo que a gente já vinha discutindo desde a dé-
cada de 90 com a consolidação de uma visão ampliada dos movimentos sociais
de educação do campo. Primeiro que o Estado sempre teve uma educação para
o mundo rural. Na lógica deles era o mundo rural tendo em vista a formação
de mão de obra para o mercado capitalista e nós vimos que o processo seria
diferente. A ideia era partir do conhecimento e de saberes não de fora para
dentro, mas partindo dos conhecimentos que as populações do campo já acu-
mulam e já tenham seu histórico de vida e sistematizando com a experiência
da própria academia das escolas, das universidades. Nós fomos consolidando
a ideia da Educação do Campo, os saberes que partem dos próprios sujeitos
com seus conhecimentos. Aí foi consolidando esse modelo, conectando essa
lógica de formação ampliada que não é só a formação do estudo formal, mas
também conhecimentos no campo político e nós fomos então multiplicando
essas experiências e isso criou em 2010 um programa que virou lei e que é
chamado PRONERA. Multiplicando a possibilidade de ampliação do acesso a
essa universidade e isso vai empoderando, dando poder, conhecimento para
as populações do próprio movimento sociais. Então essa estratégia para nós é
central. Sem educação, com seres humanos ignorantes do ponto de vista do

A conflitualidade como produtora do futuro 257


acúmulo de conhecimento, nós jamais conseguiremos construir uma estraté-
gia de poder. Então, estratégia de poder passa necessariamente pela multipli-
cação e ampliação do conhecimento e essas estruturas estão a serviço da mas-
sificação do conhecimento e do saber no meio dos camponeses e camponesas,
e que isso potencializa também a nossa forma de fazer. Ciência, conhecimento
e técnica são fundamentais para ampliar as experiências vitoriosas dentro do
campesinato.

258 Territórios de esperança


A conflitualidade como produtora do futuro 259
Trazemos, aqui, diferentes formas de pensar, analisar, teorizar, interpretar e
representar as ações coletivas de políticas contenciosas, dialogando, igual-
mente, com temas pertinentes à atualidade do Brasil. Por que? Na contramão
do que os coachs da política têm defendido, temos entendido que as pessoas
se organizam, cada vez mais, em torno de seus interesses e configurado ações
coletivas com distintas formas e práticas políticas. Tais formas têm surpreen-
dido, por irem além das escolas mais consolidadas na Geografia e nas demais
Ciências Humanas. Classe, Gênero, Raça/Etnia, Hemisfério, Idioma/Dialeto,
Ideologia/Cosmovisão, Modo de Vida, Corpo, Lugar, Episteme e outros ins-
trumentos, categorias e objetos de análises, passaram a pautar as pesquisas
sobre ações coletivas, como próprias consequências da realidade.

ISBN 978-65-86640-39-7

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