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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E

AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE


Coordenadores

Catherine Maia
Thiago Oliveira Moreira
Yara Maria Pereira Gurgel

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E


AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE
Vol. 3

Natal, 2022
CONSELHO CIENTÍFICO

Erivaldo Moreira Barbosa (Universidade Federal de Campina Grande) Fabio da Silva Veiga (Universidade
Lusófona do Porto - Portugal) Fabrício Germano Alves (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) José
Carlos de Medeiros Nóbrega (European Legal Studies Institute, Universität Osnabrück - Alemanha) José Orlando
Ribeiro Rosário (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) José Noronha Rodrigues (Universidade dos
Açores - Portugal) Juan Manuel Velázquez Gardeta (Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibertsitatea
- Espanha) Orione Dantas de Medeiros (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Ricardo Sabastián
Piana (Universidad Nacional de La Plata) Roberto Muhájir Rahnemay Rabbani (Universidade Federal do Sul
da Bahia) Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira (Centro Universitário Unieuro) Robson Antão de Medeiros
(Universidade Federal da Paraíba) Thiago Oliveira Moreira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Valfredo de Andrade Aguiar Filho (Universidade Federal da Paraíba) Yanko Marcius de Alencar Xavier
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte).

Coordenacão Editorial: Polimatia


Capa: Lamonier
Revisão ortográfica e gramatical: Responsabilidade dos autores

M217d

Maia, Catherine
Direito Internacional dos Direitos Humanos e as pessoas em situação de vulnerabilidade
– vol. 3 / Catherine Maia, Thiago Oliveira Moreira & Yara Maria Pereira Gurgel – 1. Ed.
– Natal – RN: Polimatia, 2022.
641 p.: v. 3 E-BOOK

Inclui Bibliografia
ISBN 978-65-84539-27-3

1. Direito. 2. Direito Internacional. 3. Direitos Humanos. I. Moreira, Thiago Oliveira. II.


Gurgel, Yara Maria Pereira. III. Título.

CDD: 341.481
CDU: 342.7/49

As opiniões externadas nas contribuições deste livro são de exclusiva responsabilidade dos autores.

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Polimatia


Rua Barão de Lucena, n. 62
Bairro Pitimbu | 59.066-285 | Natal-RN | Brasil
e-mail: editorapolimatia@gmail.com
Telefone: 84 99145-5262
SUMÁRIO

PREFÁCIO....................................................................................11

APRESENTAÇÃO....................................................................................13

SOBRE OS COORDENADORES................................................................15

SOBRE OS AUTORES...................................................................................17

PARTE I
PROTEÇÃO GLOBAL E GERAL DOS DIREITOS HUMANOS

O desenvolvimento contemporâneo de um constitucionalismo global.....27

Gabriel Diniz de Azevedo Godeiro


Thiago Oliveira Moreira

A disciplina pós-nacional da corrupção transnacional..................................55

Caíque Tomaz Leite da Silva


Daniel Ramos Pereira Ferreira

A perspectiva contemporânea da cidadania global.................................71

Claudia Loureiro
Juliana Aizawa
Aborto sob a perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos:
avanços e desafios para o Brasil..............................................................89

Daniela Bucci

PARTE II
PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS MIGRANTES

De uma crise migratória para a outra na Europa: análise jurídico-


comparativa das crises de 2021 e 2022.......................................................107

Catherine Maia
Shashaank Bahadur Nagar
Rafaela Mendel

A proteção dos refugiados através da implementação da cláusula


social nos acordos de comércio internacional celebrados no âmbito da
Organização Mundial do Comércio.......................................................131

Cláudio César Machado Moreno

A concretização dos Direitos Humanos dos migrantes haitianos no Sistema


Interamericano..............................................................................163

Lívia Carmélia Nascimento Costa


Thiago Oliveira Moreira

O Sistema Interamericano como locus de enfrentamento às


violações dos direitos de pessoas marginalizadas, em especial,
de refugiados LGBTI...................................................................................189

Antonio Teixeira Junqueira Neto


Tatiana Cardoso Squeff
“Mail-order brides” and their possible framework as International
Trafficking in Persons: a study in the light of the Palermo Protocol........233

Letícia Lopes Borja


Thiago Oliveira Moreira

PARTE III
PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A não discriminação da mulher na perspectiva do Sistema Interamericano


dos Direitos Humanos...................................................................................259

Luiza Fernandes de Abrantes Barbosa


Thiago Oliveira Moreira
Yara Maria Pereira Gurgel

O princípio da igualdade e não discriminação no combate a discriminação


em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões
da Corte Interamericana de Direitos Humanos.......................................287

Ygor Rafael Cassiano de Araújo


Thiago Oliveira Moreira
Yara Maria Pereira Gurgel

A tutela do meio ambiente no sistema interamericano de direitos


humanos: da proteção reflexa à proteção autônoma da natureza na
opinião consultiva nº 23/2017................................................................325

Thayana Bosi Oliveira Ribeiro


Ricardo Vinhaes Maluf Cavalcante

A vida da população tradicional da etnia xikrin frente ao empreendimento


S11D e o entendimento da Corte Interamericana de Direitos
Humanos........................................................................................................351

Natália Mascarenhas Simões Bentes


Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira
O direito à saúde no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos
Direitos Humanos.........................................................................................383

Thayná Raissa de Oliveira Chaves


Thiago Oliveira Moreira

PARTE IV
IMPACTO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS NO ÂMBITO DOMÉSTICO

Os reflexos da desigualdade de gênero em tempos de pandemia: as


estratégias internacionais de enfrentamento e as repercussões no Estado
brasileiro................................................................................................419

Camila Carvalho Ribeiro


Mariana Belchior Ribeiro Freire
Yara Maria Pereira Gurgel

Dignidade da pessoa humana como instrumento de humanização na


execução penal: uma análise da efetividade dos diplomas internacionais no
trabalho prisional brasileiro...........................................................................455

Raphaela Jéssica Reinaldo Cortez


Walter Nunes da Silva Júnior
Yara Maria Pereira Gurgel

Os Estados Unidos e a abertura constitucional ao direito interamericano


dos direitos humanos.....................................................................................481

André Eliésio Pedrosa Silva


Thiago Oliveira Moreira

A aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos pelo Tribunal


Regional Federal da 5ª Região.....................................................................507

Janine Praxedes do Nascimento Ribeiro de Andrade


Thiago Oliveira Moreira
A efetividade das Soluções Amistosas no âmbito do Sistema Interamericano:
um estudo à luz dos casos brasileiros..........................................................537

José Orlando Ribeiro Rosário


Josikleia Micharly do N. S. Bezerra
Thiago Oliveira Moreira

Pessoas Portadoras de Deficiência, Pessoas com Deficiência e/ou


Necessidades Educativas Especiais: o que dizem os tratados e a
jurisprudência?............................................................................................571

Charles de Sousa Trigueiro


Maria Creusa de Araújo Borges
Thiago Oliveira Moreira

A denúncia da Convenção n° 169 como mecanismo para inviabilizar a


presença migrante warao em solo brasileiro..................................................613

Beatriz de Sousa Perez


Joel Vidal de Negreiros Neto
Thiago Oliveira Moreira

POSFÁCIO..........................................................................................639
PREFÁCIO

É inegável que o elevado desenvolvimento tecnológico das últimas


décadas fez culminar o processo de globalização, o qual, assinala Jorge O. Bercholc1,
implicou na formação de três eixos dinâmicos com evidentes efeitos centrípetos,
consistentes na: a) centralização política, mediante a superposição de estruturas
administrativas frente aos Estados; b) concentração econômica, mediante a
imposição de uma racionalidade, com o propósito de estimular a competitividade
e eficácia na conquista de novos mercados; c) homogeneização cultural, a qual
adquire uma grande intensidade e aceleração, articuladas por uma tecnologia cada
vez mais moderna, que se manifesta por meios comunicativos de massa.
Considerando outro modo de ver, o autor2 expõe que o fenômeno
globalizante está distante de ser pacífico, enfrentando, ao invés, tensões contraditórias
com efeitos centrífugos. Além de afetar o sistema político democrático3, tem-se o
surgimento de problemas, tais como a exclusão social e da cidadania.
Uma análise crítica da globalização também adveio de Fariñas Dulce4,
para quem aquela não se constitui num processo neutro nem conduz a um grau
de harmonia, unidade e coesão mundial. Contraditoriamente, apresenta como
consequências um novo fenômeno de ocidentalização (perspectiva sociológica),
bem como o favorecimento do princípio jurídico da igualdade formal, a perda da
capacidade decisória dos Estados nacionais sobre matéria política e econômica, o
favorecimento do individualismo diante de processos de desregulação jurídica e a
perda do caráter central do conflito entre capital e trabalho.

1 Temas de teoría del Estado. 2. ed. Buenos Aires: La Ley, 2014, p. 356.
2 Ibid., p. 356-357. O autor emprega entre parêntesis o termo “desciudadanización”.
3 Chris Thornhill (Crise democrática e direito constitucional global. São Paulo: Contracorrente, 2021.
p. 281-337), ao tempo no qual afirma que a democracia ao final do século XX restou moldada pela
influência da legislação internacional de direitos humanos sobre o direito constitucional nacional,
aponta várias razões pelas quais tal fenômeno fez irradiar um populismo que se encontra a atentar
contra a experiência democrática.
4 De la globalización económica a la globalización del derecho: los nuevos escenarios jurídicos. De-
rechos y Libertades – Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, v. 8, p. 186-192, jan.-jun. de 2000.

11
Não por outro motivo que a autora5, em continuidade ao cenário
apresentado, propõe o desenvolvimento do campo jurídico transnacional, com
vistas à criação de mecanismos jurídicos que possam pretender o controle do novo
regime mundial de acumulação do capital.
Nesse contexto, não se pode deixar de ressaltar, ao nível da União
Europeia e, igualmente, da convivência dos países latino-americanos, as declarações
visando à tutela de direitos além do Estado nacional, propugnando o relevo de que
o ser humano, na sua dignidade, é o habitante do Mundo e, por isso, o destinatário
principal de uma proteção jurídica a mais igualitária possível.
Daí que merece destaque o trabalho de pesquisa que levaram a cabo
– e com indiscutível êxito – as Professoras Catherine Maia, da Universidade
Lusófona do Porto, Yara Maria Pereira Gurgel e o Professor Thiago Oliveira
Moreira, estes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ao organizarem
e desenvolverem pesquisa, conjuntamente com outros Professores Doutores,
alunos de Pós-Graduação e Graduação, a qual se tornou realidade com o livro
“DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E AS PESSOAS
EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE”, cujo terceiro volume virá à luz do
público pela iniciativa alvissareira da Editora Polimatia.
Repartidos em quatro partes, os artigos, fruto de uma densa investigação,
abordam temas sobre: a proteção global e geral dos direitos humanos; a proteção
internacional dos migrantes; a tutela regional dos direitos humanos; e ainda sobre
o impacto da disciplina dos direitos humanos no Brasil.
Os textos, sem exceção, vão – e muito – além do descritivo, enveredando
pelo exame crítico. Mostram que o pesquisador é quem faz a sua própria caminhada,
tornando mais rica a doutrina com o seu escrito e, portanto, merecedor da atenção
do leitor.
Recife (PE), 03 de outubro de 2022.

Edilson Pereira Nobre Júnior


Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife – UFPE
Desembargador do Tribunal Regional Federal da Quinta Região
Membro do Instituto Internacional de Derecho Administrativo – IIDA

5 Ibid., p. 193-194.
12
APRESENTAÇÃO

É com enorme satisfação que se apresenta o livro O DIREITO


INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E AS PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE – Vol. III. Trata-se de uma obra que conta
com 21 (vinte e um) artigos científicos, de autoria de discente da graduação e pós-
graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
além de artigos convidados de professores/pesquisadores do Centro Universitário
do Estado do Pará (CESUPA), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), da Universidade Estadual de Londrina
(UEL), da Universidade Federal de Uberlândia (MG), da Universidade Municipal
de São Caetano do Sul (USCS), do Centro Universitário Antônio Eufrásio de
Toledo de Presidente Prudente e da Universidade Lusófona do Porto (Portugal).
O presente livro decorre das atividades do Grupo de Pesquisa Direito
Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade
(CNPq/UFRN), do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN,
notadamente do Seminário Jurídico Avançado em Direito Internacional e
Concretização de Direitos I (2021.2), bem como da disciplina Direito Internacional
dos Direitos Humanos, que foi oferecida no semestre 2021.2, ao Curso de Direito
da UFRN, na qualidade de componente curricular optativo. Além disso, também
cabe destacar que parte dos capítulos foi produzida decorre do Projeto de Pesquisa
“A Relação entre o Direito Interamericano dos Direitos Humanos e o Direito
Estatal: um estudo à luz da heterarquia das normas” (PVE17718-2020).
O objetivo maior do presente livro é incentivar a produção acadêmica em
matéria de Direito Internacional dos Direitos Humanos, ainda na graduação, para
despertar o interesse acerca do tema e instigar que os autores busquem ingressar na
Linha 03 – Direito Internacional e Concretização dos Direitos – do Mestrado em
Direito da UFRN, já que parte dos coordenadores integram o referido Programa
e Linha.
Alguns pontos precisam ser destacados. Inicialmente, pensando em
tentar promover a internacionalização da obra, há um capítulo escrito em inglês,
bem como há capítulos escritos por pesquisadores de universidades estrangeiras,
como é o caso da Universidade Lusófona do Porto (ULP) e da Universidade de
13
Santiago de Compostela (USC). Além disso, a obra buscou integrar pesquisadores
de programas de pós-graduação de 08 (oito) instituições de ensino (UFRN, UFMA,
CESUPA, UFPB, UFPA, UFGD, UFU e USP), bem como atender aos requisitos
do Qualis Livros, da CAPES.
Cabe ressaltar que dos 35 (trinta e cinco) autores, 20 (vinte) são
mulheres, o que demonstra a preocupação dos coordenadores em ampliar o espaço
da produção científica feminina no âmbito jurídico.
Com efeito, registra-se o agradecimento ao Prof. Dr. Edilson Pereira
Nobre Júnior (UFPE e TRF5), pelo honroso prefácio; ao Prof. Dr. Marco Bruno
Miranda Clementino (UFRN e JFRN), pelo excelente posfácio; a Academia
Brasileira de Direito Internacional (ABDI), por apoiar a presente iniciativa; ao
Departamento de Direito Privado da UFRN, que abriga a disciplina Direito
Internacional dos Direitos Humanos; ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas
da UFRN, por sempre apoiar a pesquisa e produção científica; ao Colegiado do
Curso de Direito da UFRN, que aceitou incluir a mencionada disciplina no rol
dos componentes curriculares optativos do citado Curso; ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da UFRN; ao IBEROJUR (Instituto Iberoamericano de
Estudos Jurídicos), por também apoiar a presente iniciativa; ao Observatório de
Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI); aos autores e autoras que
contribuíram para o presente livro, em especial, aos que integram o Grupo de
Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação
de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN), e, por fim, é preciso um registro especial
de agradecimento em razão da participação da Profa. Dra. Catherine Maia, da
Universidade Lusófona do Porto (Portugal), por ter aceitado o modesto convite
para coordenar a obra conosco.
Espera-se que o livro em tela possa contribuir, ainda que modestamente,
para os estudos sobre o Direito internacional dos Direitos Humanos e sua
concretização no âmbito doméstico, notadamente no que concerne aos direitos
humanos das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Em nome dos coordenadores,

Prof. Dr. Thiago Oliveira Moreira


Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU)
Mestre em Direito pela UFRN
Chefe do Departamento de Direito Privado da UFRN
Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN
Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em
Situação de Vulnerabilidade
14 Integrante do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI)
SOBRE OS COORDENADORES

Catherine Maia
Professora Doutora em Direito Internacional da Faculdade de Direito e Ciência
Política da Universidade Lusófona do Porto, Portugal. Professora Visitante da
Sciences Po Paris e da Universidade Católica de Lyon, França. É consultora jurídica,
tendo participado em diversas missões junto de organizações internacionais,
representações diplomáticas e escritórios de advocacia.

Thiago Oliveira Moreira


Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação
e Mestrado). Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/
EHU). Mestre em Direito pela UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade
de Coimbra. Chefe do Departamento de Direito Privado da UFRN. Vice-
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN. Membro
do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI).
Professor/Pesquisador Visitante da Universidade Lusófona do Porto. Líder do
Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em
Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa
Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI/UFRN).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-
6010-976X. E-mail: thiago.moreira@ufrn.br.

Yara Maria Pereira Gurgel


Pós-Doutora em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa/FDUL. Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela PUC/SP.
Professora Associado III do Curso de Direito (Graduação e PPGD) da UFRN.
Advogada. Coordenadora Adjunta do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos
Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN).

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SOBRE OS AUTORES

Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira


Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pelo
Centro Universitário do Pará – CESUPA Belém – PA. Advogada. Bacharel em
Direito pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia – FIBRA. Membro do Grupo
de pesquisas CNPq MinAmazônia (Mineração e Desenvolvimento Regional na
Amazônia). E-mail: alsidealice@hotmail.com. https://orcid.org/0000-0002-4411-
2456.

André Eliésio Pedrosa Silva


Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq/UFRN) Direito Internacional dos
Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade.

Antonio Teixeira Junqueira Neto


Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU/MG), onde também graduou-se em Relações Internacionais. É consultor na
Assessoria Jurídica para Estrangeiros em Situação de Risco – AJESIR/UFU. Integra
o Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional – GEPDI/CNPq, na
qualidade de pesquisador. E-mail: antoniojunqueira.cg@gmail.com.

Beatriz de Sousa Perez


Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do
Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte. beatriz.desousa.
perez@outlook.com

Caíque Tomaz Leite da Silva


Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Pós-Graduação em Direitos Humanos, em 2010, pelo Centro de Direitos Humanos
da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae), com 15 valores. Pós-
Graduação em Direito Civil e Processo Civil, em 2014, pelo Centro Universitário
Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente, summa cun laude. É Professor

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Catedrático e Investigador Coordenador no Centro Universitário Antônio
Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente, Professor Visitante na Escola Superior
da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil e da Pós-Graduação do Centro
Universitário Unitoledo de Araçatuba. Foi Juiz na Inter-American Human Rights
Moot Court Competition no Washington College of Law da American University
em 2011 e 2012.

Camila Carvalho Ribeiro


Advogada. Mestranda em Direito pela UFRN. Pesquisadora no Projeto Direito
Estado e Feminismos nos 30 anos da Constituição: estudos sobre interseccionalidade
(UFRN). Pós-graduada em trabalho e processo do trabalho pela Damásio
Educacional. Pós-graduada em direito processual pela PUC/MG. Graduada em
Direito pela UFRN. E-mail: camilacribeiro_@hotmail.com. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/3531944918718939. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2234-5849.

Catherine Maia
Professora Doutora em Direito Internacional da Faculdade de Direito e Ciência
Política da Universidade Lusófona do Porto, Portugal. Professora Visitante da
Sciences Po Paris e da Universidade Católica de Lyon, França. É consultora jurídica,
tendo participado em diversas missões junto de organizações internacionais,
representações diplomáticas e escritórios de advocacia.

Charles de Sousa Trigueiro


Doutorando em Ciência Jurídicas e Sociais na Universidade de Santiago de
Compostela na Espanha em Cotutela com a Universidade Federal da Paraíba
UFPB. Doutoramento em Direito Público pela Universidade de Coimbra
Portugal. Bacharel e Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Servidor Técnico
Administrativo na UFPB.

Claudia Loureiro
Professora Permanente do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade
Federal de Uberlândia. Professora do Curso de Graduação em Direito da
Universidade Federal de Uberlândia. Estágio de Pesquisa Pós-Doutoral em Direitos
Humanos concluído pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Estágio de Pesquisa Pós-Doutoral em Direito Internacional e Comparado concluído
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutora e Mestre pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Membro da Nova Refugee Legal

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Clinic – Lisboa; Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Direitos
Humanos – UFU.

Cláudio César Machado Moreno


Doutorando em Direito Internacional e Direito Comparado pela USP –
Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela UNIVEM – Centro Universitário
Eurípedes de Marília, Professor de Direito Civil e Direito Internacional Privado da
Universidade Estadual de Londrina. Professor de Direito Civil, Direito Internacional
e Direitos Humanos da Universidade Pitágoras-Unopar e da Universidade Uniderp-
Anhanguera. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3549947656974130. E-mail:
cmoreno@uel.br

Daniela Bucci
Doutora e mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Coord. Observatório de Direitos Humanos do Grande ABC
(ODHUSCS) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul/SP (USCS).
Pesquisadora NETI/USP, coordenando o subgrupo das Cortes Internacionais
de Direitos Humanos. CV: http://lattes.cnpq.br/0786892225874329. E-mail:
daniela.bucci.db@gmail.com.

Daniel Ramos Pereira Ferreira


Representante discente do Conselho Superior de Administração da Toledo Prudente
(biênio 2022/2023). Bolsista do Programa de Iniciação Científica da Toledo (PICT)
pelo grupo de pesquisa “Sincretismo Constitucional”. E-mail: danielrpferreira62@
gmail.com.

Gabriel Diniz de Azevedo Godeiro


Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq/UFRN) Direito Internacional
dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade.

Janine Praxedes do Nascimento Ribeiro de Andrade


Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9150665095781493. E-mail: janinejp2010@gmail.
com.

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Joel Vidal de Negreiros Neto
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro
pesquisador na linha de Direito Internacional dos Direitos Humanos do Observatório
de Direito Internacional do Rio Grande do Norte. joelvidaldenegreiros@gmail.com

José Orlando Ribeiro Rosário


Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (1976).
Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/
SP (1998) e Doutorado em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São
Paulo – FADISP (2011). Atualmente é Professor Associado da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte e Chefe do Departamento de Direito Processual e
Propedêutica desta mesma instituição.E-mail: orlando09ribeiro@gmail.com.

Josikleia Micharly do N. S. Bezerra


Mestranda do programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, na área de concentração Constituição e Garantias de Direitos.
Graduada em Direito pela Universidade Potiguar do Rio Grande do Norte, com
Especialização em Teoria e Prática de Processo judicial – UNP. Advogada militante
em Direito Civil. Conciliadora na Justiça Federal do Rio Grande do Norte (JFRN)
e na Câmara de Conciliação de Mediação e Arbitragem do Rio Grande do Norte
(CCMEAR). E-mail: micharlyadv@yahoo.com.br.

Juliana Aizawa
Graduada em Direito UFMS/CPTL. Mestre em Fronteiras e Direitos Humanos
UFGD; Doutoranda em Geografia UFGD. Professora do curso de Direito da
UNIGRAN Dourados, Mato Grosso do Sul. Membro da Comissão de Direitos
Humanos para Migrantes e Refugiados da OAB Subseção Dourados.

Letícia Lopes Borja


Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Observatório de Direito Internacional
do Rio Grande do Norte (OBDI/UFRN). Lattes: http://lattes.cnpq.
br/6127647534294314. E-mail: leticialborja@gmail.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-2366-1069

Lívia Carmélia Nascimento Costa


Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e

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as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). E-mail: liviacarmelia@
outlook.com.

Luiza Fernandes de Abrantes Barbosa


Mestranda em Direito UFRN. Orientanda da Prof. Dra Yara Maria Pereira Gurgel.
Email luiizafab@gmail.com.

Maria Creusa de Araújo Borges


Professora Associada IV do Departamento de Direito Privado e do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Jurídicas do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB.
Líder CNPq do Grupo de Pesquisa Tribunais Constitucionais, Direito à Educação
e Sociedade.

Mariana Belchior Ribeiro Freire


Assessora Ministerial no Ministério Público do Rio Grande do Norte. MPRN.
Pós-graduada em Direito Constitucional pela Rede LFF. Graduada em Direito pela
UFRN.

Natalia Mascarenhas Simões Bentes


Doutora em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, Portugal. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
do Porto, Portugal. Professora da graduação e do Mestrado em Direito do Centro
Universitário do Estado do Pará. Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos
do CESUPA. Coordenadora Adjunta do Curso de Direito do Centro Universitário
do Estado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Mineração, Sustentabilidade,
Equidade e Desenvolvimento Regional. Sócia proprietária do escritório Simões,
Bentes & Medeiros Advocacia Internacional.

Rafaela Mendel
Graduada em Direito pela Universidade Lusófona do Porto (Portugal). Mestranda
em Direitos Humanos pela Universidade do Minho (Portugal).

Raphaela Jéssica Reinaldo Cortez


Advogada criminalista. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNI/RN.
Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.
Graduada em Direito pela Universidade Potiguar. Colaboradora do Projeto de

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Pesquisa Criminalidade Violenta e Diretrizes para uma Política de Segurança
Pública no Estado do Rio Grande do Norte.

Ricardo Vinhaes Maluf Cavalcante


Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade
Federal do Maranhão – UFMA. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-
graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da UFMA. Graduado
em direito pela UFMA. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade
– NUPEDD. E-mail: ricardovmc@hotmail.com.

Shashaank Bahadur Nagar


Jurista especializado em Direitos Humanos e Direito dos Refugiados em Nova
Deli, Índia. LL.M. da Academia de Direito Internacional Humanitário e Direitos
Humanos de Genebra, Suíça.

Tatiana Cardoso Squeff


Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e professora
adjunta de Direito Internacional da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora
em Direito Internacional pela UFRGS, com período sanduíche junto à University
of Ottawa. Mestre em Direito pela UNISINOS, com bolsa CAPES/DFAIT e
período de estudos junto à University of Toronto. Membro da ILA-Brasil e da
ASADIP. Orcid n. 0000-0001-9912-9047.

Thayana Bosi Oliveira Ribeiro


Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade
Federal do Maranhão – UFMA, em regime de cotutela com a Universidade de
Coimbra – UC. Mestra em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito
e Instituições do Sistema de Justiça da UFMA. Bolsista CNPq. E-mail: thayana_
bosi@hotmail. com.

Thayná Raissa de Oliveira Chaves


Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Thiago Oliveira Moreira


Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação
e Mestrado). Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/
EHU). Mestre em Direito pela UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade
de Coimbra. Chefe do Departamento de Direito Privado da UFRN. Vice-

22
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN. Membro
do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI).
Professor/Pesquisador Visitante da Universidade Lusófona do Porto. Líder do
Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em
Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa
Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI/UFRN).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-
6010-976X. E-mail: thiago.moreira@ufrn.br.

Walter Nunes da Silva Júnior


Juiz Federal, Mestre e Doutor, Professor Associado da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte – UFRN, Coordenador dos Projetos de Pesquisa O Direito
Criminal como corpo normativo construtivo do sistema de proteção dos direitos
e garantias fundamentais, nas perspectivas subjetiva e objetiva e a Criminalidade
violenta e diretrizes para uma política de segurança pública no Estado do Rio
Grande do Norte, Conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária – CNPCP e membro da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande
do Norte – ALEJURN.

Yara Maria Pereira Gurgel


Pós-Doutora em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa/FDUL. Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela PUC/SP.
Professora Associado III do Curso de Direito (Graduação e PPGD) da UFRN.
Advogada. Coordenadora Adjunta do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos
Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN).

Ygor Rafael Cassiano de Araújo


Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN).

23
PARTE I

PROTEÇÃO GLOBAL E GERAL DOS DIREITOS HUMANOS

25
O desenvolvimento contemporâneo de um constitucionalismo
global

Gabriel Diniz de Azevedo Godeiro1


Thiago Oliveira Moreira2

1 INTRODUÇÃO

No atual cenário globalizado, diante da constatação da existência


de fenômenos e dinâmicas que extrapolam territórios estaduais, da integração
dos Estados em sistemas políticos supranacionais e globalmente considerados, é
possível perceber a emergência de novas formas de organização político-jurídico
na comunidade internacional que sublevam concepções constitucionais além da
perspectiva clássica da Teoria da Constituição centrada no Estado.
Assim, em face da manifestação de um o crescimento quantitativo
e qualitativo do direito internacional baseado na identificação de elementos
constitucionais, questão essa que vem ganhando relevo nos debates e na agenda
internacionalista, a problemática a ser desenvolvida interpela: como se compõe o
atual desenvolvimento do Constitucionalismo Global?

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


2 Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Chefe do Departamento de Direito
Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN. Mem-
bro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Professor/Pesqui-
sador Visitante da Universidade Lusófona do Porto. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional
dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Coordenador
Adjunto do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI).

27
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Para responder a problemática exposta, alguns objetivos precisam ser


alcançados. Inicialmente, será realizado um panorama sobre a perspectiva da teoria
constitucional clássica. Em seguida, passa-se à observação da manifestação do
Constitucionalismo para além do Estado. Por fim, serão examinadas tendências e
aspectos do desenvolvimento do Constitucionalismo Global.
Para tanto, o trabalho fez uso do método de abordagem dedutiva, sendo
realizado o estudo do tema com base em pesquisa documental e bibliografia
especializada sobre o assunto, levando em consideração o leque de concepções
teóricas e correntes doutrinárias que buscam compreender o tema, uma vez que se
desenvolvem em um plano heterogêneo e complexo de abordagens.
Isto posto, considerando os desafios comuns do mundo globalizado que
transcendem as fronteiras estatais, a confusão entre os limites externos e internos,
bem como as transformações do direito na ordem internacional, faz-se mister
analisar a presente conteúdo em razão da necessidade de apontar rumos por onde
a reflexão em relação ao desenvolvimento do Constitucionalismo Global possa
trilhar. Nesse sentido, o presente estudo pretende encontrar tendências teóricas
que componham a identificação do processo de desenvolvimento do paradigma do
Constitucionalismo Global.

2 HORIZONTE DA TEORIA CONSTITUCIONAL CLÁSSICA

A Teoria da Constituição é integrada em um longo processo, evoluindo


a complexa ideia de “Constituição” em contextos diversos ao longo da História.
A noção pode ser rastreada até a antiguidade nos conceitos da Politeia grega
e a constitutio e status republicae romanos. Nos tempos medievais, a noção de
constituição se sobrepunha a outras, como o institutio, a lex fundamentalis e a
Verfassung3.
Na idade média, a partir da institucionalização do Direito Canônico,
a ideia de Constituição ganha um aspecto jurídico, determinando uma ordem
aos distintos poderes políticos da Igreja, reis e nobreza, delimitando as esferas de
atuação de cada por meio de regras, pactos e contratos, como meio de manutenção
do equilíbrio das relações. Adiante, com a instituição dos Estados modernos,

3 FASSBENDER, Bardo. International Constitutional Law: Written or Unwritten? Chinese Journal


of International Law. v. 15, n. 3. 2016. p. 494-495.

28
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

surgem normas que procuravam a estabilidade do poder, concebendo a ideia de


soberania, disciplinada a um núcleo fundamental estatal4.
Não obstante se reconheça a existência de conceitos embrionários de
constituição desde os tempos antigos, sua sistematização e concepção clássica
emergiu dos contextos revolucionários nos Estados Unidos da América e na França
no final do século XVIII. Apesar de diferenças importantes entre os dois fenômenos,
os conceitos de constituição que emergiram, na esteira do iluminismo, convergiram
na consagração de ideias como a separação de poderes, na instituição de freios
e contrapesos e na proteção dos direitos fundamentais do cidadão como pilares
fundamentais a serem resguardados pela ordem jurídica constituída5.
Ainda, tão importante quanto os fenômenos estadunidense e francês, a
experiência inglesa do common law observa uma ordem constitucional histórica,
baseada primordialmente no direito consuetudinário, que foi capaz de salvaguardar
uma segurança jurídica e garantir direito aos ingleses, sem a existência de uma
constituição escrita como em outros países6. Nesse sentido, é possível observar que
o movimento constitucionalista não depende meramente da existência escrita de
uma constituição de um Estado, pois existe independentemente da Constituição7.
Difundido o fenômeno do constitucionalismo nos séculos seguintes,
foi a partir do final da Segunda Guerra Mundial e das suas sequelas que o lugar
da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições
contemporâneas foram cimentadas. Ao longo da segunda metade do século XX,
uma das grandes mudanças de paradigma foi a atribuição à norma constitucional
do status de norma jurídica, superando o modelo que vigorava na Europa no
qual a Constituição era vista essencialmente como um documento político,
convidando à atuação dos Poderes Públicos, consolidando a noção de supremacia

4 TRINDADE, Otávio Cançado. A constitucionalização do direito internacional: Mito ou realidade?


Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 78, n. 45, ago. 2008. p. 274.
5 SAUNDERS, Cheryl. Constitution Transformation. Global Constitutionalism. v. 10, n. 2. Cambri-
dge University Press, 2021. p. 241-242.
6 FASSBENDER, Bardo. International Constitutional Law: Written or Unwritten? Chinese Journal
of International Law. v. 15, n. 3. 2016. p. 497-500.
7 LUZ, Eduardo Silva; SAPIO, Gabriele. Relativização da Soberania Estatal em da Possibilidade de
um Constitucionalismo Global. Actio – Revista de Estudos Jurídicos. v. 1, n. 28. 2018. p. 159.

29
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da Constituição. Tal onda constitucional produziu uma nova forma de organização


política, principalmente conhecido como Estado Constitucional de Direito8.
De tal modo, o Estado de Direito tornou-se o modelo predominante
de estruturação da ordem constitucional do Estado na era da globalização, com
alguns elementos essenciais, como a proteção aos direitos fundamentais e sua
promoção, incluindo os direitos sociais, a separação de poderes e o princípio da
legalidade, e, mesmo com variáveis, o Estado de Direito compõe-se por valores
reconhecidos em conformidade com fundamentos e determinações comuns da
sociedade internacional9.
Dessa maneira, considerando a multiplicidade de entendimentos
conceituais que a Teoria da Constituição enseja, faz-se necessário o esclarecimento de
termos-chaves como “constituição”, “constitucionalismo” e “constitucionalização”,
em razão da qualidade “avaliativa-descritiva” que essas possuem quando empregadas
no âmbito da discussão de um constitucionalismo global.
“Constituição”, tratando-se de um processo histórico que compõe formas
institucionais para acomodar a pluralidade de interesses, assume a noção de normas
legais básicas que regulam de forma abrangente a vida social e as dinâmicas de
poder de uma comunidade política10. Nesse sentido, para que um corpo de leis seja
reconhecido como constituição, determinadas funções e conteúdo são identificados
e devem estar presentes, como a organização e a instituição da entidade política
como entidade legal, a separação de poderes, estabelecer as linhas gerais da
política, da moral, da justiça e do governo, como também a presença dos direitos
fundamentais, e, mais recentemente, a garantia de segurança sociais mínimas11.
“Constitucionalismo”, é importante perceber, trata-se mais do que o
termo “constituição” carregado de conteúdo material, ou simplesmente a ter uma
constituição. Trata-se essencialmente de um quadro cognitivo sobre como agir em

8 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo


tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, 240. 2005. p.3.
9 LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. A Constitucionalização do Direito Internacional como Efeito
da Globalização. Revista Húmus, São Luís, MA. Vol. 8, n. 24, 2018, p. 97.
10 PETERS, Anne. Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental
Norms and Structures. Leiden Journal of International Law, n. 19, 2006. p. 581
11 CARVALHO, Leonardo Arquimino de. Constitucionalização do Direito Internacional: uma (re)
introdução ao tema. Revista Via Iuris, São Paulo, dez. 2012. p. 89.

30
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

um mundo político em um processo constitutivo12. Sustenta, assim, um complexo


de concepções políticas, de proceder jurídico e de valor moral, elaborado nas
condições do decurso de uma história, com o objetivo da imposição de limites,
controles e regras ao exercício do poder político13.
“Constitucionalização”, a saber, implica tanto para o surgimento
do direito constitucional dentro de uma determinada ordem jurídica, quanto
para a disseminação do constitucionalismo como uma mentalidade14. Nesse
enquadramento, ideia de constitucionalização examinada está associada a um efeito
expansivo de concepções constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se
irradia por todo o sistema jurídico15.
A partir desse panorama, na perspectiva da Teoria Constitucional
clássica, segue-se uma análise preliminar das formas e processos de manifestação
do Constitucionalismo para além do Estado, como meio a partir do paradigma do
Constitucionalismo Global.

3 MANIFESTAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO PARA ALÉM DO


ESTADO

Em face ao exposto, cumpre examinar a manifestação do


constitucionalismo para além do Estado nacional, através da operação de um
processo de constitucionalização do direito internacional, do desenvolvimento
da proteção dos direitos humanos na comunidade internacional, da introdução
de normas internacionais orientadas ao bem comum e da reportação ao caráter
constitucional da Carta das Nações Unidas.

3.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL

Sem embargo que se tenha por habitual o juízo de que o fenômeno


constitucional seja conexo a um quadro de Estado-nação, tal fato não significa

12 PETERS, Anne; ARMINGEON, Klaus. Introduction: Global Constitutionalism from an Inter-


disciplinary Perspective. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 16, n. 2. 2009. p. 388-389.
13 ALMEIDA, Lilian Barros de Oliveira. Globalização, constitucionalismo e os Poderes do Estado
brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa – RIL, v. 55, n. 219, jul./ set. 2018. p. 241-242.
14 PETERS, Anne; ARMINGEON, Klaus. Introduction: Global Constitutionalism from an Inter-
disciplinary Perspective. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 16, n. 2. 2009. p. 389-390.
15 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, 240. 2005. p. 12-13.

31
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

exclusiva e necessariamente que o Constitucionalismo e os elementos da noção


de Constituição não possam transcender as fronteiras estatais para tratar de
outras possibilidades de organização político-jurídica, inclusive da comunidade
internacional16.
Nessa circunstância, inserem-se as teorias acerca da constitucionalização
do direito internacional, que objetivam descrever o crescimento quantitativo
e qualitativo do direito internacional baseado na identificação de elementos
constitucionais, que podem ser verificados nas suas normas, interpretadas em
comunhão com o direito constitucional dos Estados, bem como na prática dos
tribunais e outras instituições internacionais17.
Diante o enfrentamento dos problemas comuns do mundo globalizado
que transcendem as fronteiras estatais, o estudo a respeito de uma ordem
internacional constitucionalizada encontra base na busca de compreensão do
problema da soberania e do papel dos Estados no mundo contemporâneo, do
crescimento no número de atores na esfera pública internacional, da proliferação
das fontes normativas e das instâncias decisórias internacionais, das normas de efeito
erga omnes e jus cogens, da necessidade de cooperação transnacional, dos desafios
dos assuntos de amplitude global e, até mesmo, em face da fragmentação do direito
internacional18. É propósito do direito internacional resolver essas preocupações
por meio da participação justa das partes interessadas relevantes, e é dever dos
Estados apoiar e sustentar o desenvolvimento de um direito internacional que seja
capaz de cumprir tal função19.
A comunidade jurídica inevitavelmente vê-se questionada pelas
transformações mundiais, e, nesse âmbito, o impacto da globalização afeta o
conceito de Constituição e se reflete em questões comparáveis sobre a repercussão
na instituição do Estado. Sendo a globalização um fenômeno multifacetado e

16 VIVIANI, Maury Roberto. Constitucionalismo Global: crítica em face da realidade das relações
internacionais no cenário de uma nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 169.
17 ROCHA, Isly Queiroz Maia. Limites da Constitucionalização do Direito Internacional no Sistema
Interamericano: uma Análise dos Modelos Teóricos do Pluralismo Constitucional e do Constitucio-
nalismo Multinível. Revista Vertentes do Direito. v. 8. n. 1. 2021. p. 133
18 VIVIANI, Maury Roberto. A Amplitude Constitucional da Carta Das Nações Unidas: Controvér-
sias de uma Proposta de Constituição para a Comunidade Internacional. Conpedi Law Review. Oñati,
Espanha. v. 2, n. 2. 2016. p. 3.
19 KUMM, Mattias. Constitutionalism and the Cosmopolitan State. Indiana Journal of Global Legal
Studies. v. 20, n. 2, 2013, p. 9-10.

32
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

policêntrico, ela também tem a peculiaridade de limitar a soberania dos Estados e


ressignificar suas funções20.
Configurando-se como elemento central no sistema de Estados, a soberania
se realiza na concepção interna como expressão da autoridade última legitimada a se
sobrepor sobre a população de determinado território, de forma a se configurar como
a expressão de governança do domínio21. No entanto, não pode haver legitimidade
constitucional nacional autônoma uma vez que a prática do autogoverno dentro
da estrutura do Estado soberano levanta a questão das externalidades negativas
relevantes para a justiça, como a expansão das comunicações, o terrorismo e as
correlatas medidas de sua contenção, o comércio e as finanças internacionais,
o fluxo migratório, o tráfico de drogas e a preocupação ambiental. Existindo a
possibilidade de haver um desacordo razoável entre os Estados sobre como essas
externalidades devem ser levadas em consideração, qualquer reivindicação de um
Estado para resolver essas questões de forma autoritária e unilateral equivale a uma
forma de dominação22.
Assim, o Estado encontra-se numa relativa crise de legitimidade em relação
a sua soberania e autonomia em suas políticas internas. Embora as Constituições
estatais continuem a regular o poder público, não detém mais a primazia dessa
tarefa, pois está em grande ampliação a concorrência com outros atores externos
ao ordenamento do Estado. Atualmente já se pode observar esta manifestação de
poder soberano em outras fontes não estatais, que buscam assegurar a segurança da
ação coletiva através de normas oriundas de novas escalas políticas, mais capazes de
lidar com estes novos processos globalizantes23.
O Estado então passa a atuar num campo mais fracionado de formulação
de decisões políticas, permeada por redes transnacionais. Rompe-se o estrito vínculo
entre território e poder político que existia de forma restrita. Novas instituições

20 SAUNDERS, Cheryl. Constitution Transformation. Global Constitutionalism. v. 10, n. 2, p. 244-


245. Cambridge University Press, 2021.
21 VIVIANI, Maury Roberto. Constitucionalismo Global: crítica em face da realidade das relações
internacionais no cenário de uma nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 98.
22 KUMM, Mattias. Constitutionalism and the Cosmopolitan State. Indiana Journal of Global Legal
Studies. v 20, n. 2, 2013, p. 9-10.
23 AZEVEDO NETO, Álvaro de Oliveira; VANDRESEN, Thaís. Desafios de um Constitucionalis-
mo Global: A Sobreposição de Espaços Normativos e o Estado Constitucional Cooperativo. Conpedi
Law Review, Oñati, v. 2, n. 2, jun. 2016. p. 180-182

33
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

internacionais e transnacionais vinculam Estados soberanos e transformam, em


parte, a soberania em um exercício compartilhado de poder24.
Dessa maneira, o Estado Constitucional aparece hoje correlacionado
com o chamado “Direito Constitucional Internacional”, observando uma
supranacionalização ou internacionalização das Constituições dos Estados,
implicando isso que os Estados se incorporam em comunidades políticas
supranacionais ou em sistemas políticos internacionais globalmente considerados25.
Com base nisso, há de se observar que a relação entre direito interno e
direito internacional não é de derivação nem de autonomia, mas de dependência
mútua. A legitimidade constitucional do direito nacional depende, em parte,
de ser adequadamente integrada ao sistema jurídico internacional, enquanto a
legitimidade do sistema jurídico internacional depende, em parte, de os Estados
terem uma estrutura constitucional adequada. O direito nacional e o internacional,
nesse sentido, são mutuamente coconstitutivos26. Tal perspectiva implica na ideia
de complementação e entrelaçamento entre ambas, que pode ser observada tanto
nos princípios e instrumentos em nível interno dos Estados que passam para a
esfera internacional, como também no sentido inverso, quando as disposições
internacionais influem no direito constitucional doméstico27.
Com efeito, é de notar que a globalização, as diversas formas de integração
entre os Estados e a cada vez maior intersecção entre o Direito Constitucional e o
Direito Internacional levaram ao surgimento de múltiplas concepções doutrinárias
sobre as formas de constitucionalismo para além do Estado, como por exemplo
o constitucionalismo multinível28, transconstitucionalismo29, constitucionalismo

24 STELZER, Joana. O fenômeno da transnacionalização da dimensão jurídica. In: STELZER, Joa-


na; CRUZ, Paulo Márcio (org.). Direito e Transnacionalidade, p. 39. Curitiba: Juruá, 2009.
25 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre
a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2012. p. 284-285
26 KUMM, Mattias. Constitutionalism and the Cosmopolitan State. Indiana Journal of Global Legal
Studies. v. 20, n. 2, 2013, p. 8-9.
27 VIVIANI, Maury Roberto. Constitucionalismo Global: crítica em face da realidade das relações
internacionais no cenário de uma nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 181.
28 PERNICE, Ingolf. La dimensión global del Constitucionalismo Multinivel: Una respuesta global a
los desafíos de la globalización. Madrid :Ceo Ediciones, 2012.
29 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

34
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

em rede30, constitucionalismo social31, interconstitucionalidade32 e pluralismo


constitucional33.
Entre as principais teorias que surgiram, estas podem ser agrupadas de
diversas maneiras, dependendo da perspectiva adotada para caracterizar o processo
de constitucionalização. Pode-se pensar em uma classificação em termos de sua
extensão, ou seja, como um constitucionalismo global, em um constitucionalismo
funcional, regional, multinível que se estrutura em torno de uma ou mais dessas
nuances. Pode-se também agrupar as ideias constitucionais de acordo com seu
alcance em termos normativos, ou seja, conforme a intenção seja formar um texto
constitucional único, ou reconhecer a natureza constitucional de várias normas
dispersas, ou assumir uma pluralidade de sistemas constitucionais. Da mesma forma,
poder-se-ia falar de um constitucionalismo orgânico, de um constitucionalismo
procedimental ou de um constitucionalismo fundacional, dependendo se o objetivo
é formar uma estrutura constitucional, ou constitucionalizar certos procedimentos,
ou se o constitucionalismo pretende funcionar como fonte legítima do direito
internacional34.
A constitucionalização do direito internacional aparece, ao mesmo tempo,
como fenômeno e processo. É um fenômeno já que na forma como é descrito ele
existe no mundo real e é um processo já que representa uma forma de agir, um
método que pretende certos fins. E, ao contrário do que se possa deduzir, apesar da
constitucionalização do direito estar afeita à edificação de uma norma integrativa
superior, não há uma equação que determine que a existência de uma constituição
esteja associada a um grupo de Estados ou a um “Estado Global”35.

30 SLAUGHTER, Anne-Marie, 2004. A New World Order. Princeton University Press, Princeton
and Oxford. 2004.
31 TEUBNER, Gunther. Societal Constitutionalism: Alternatives to State Centred Constitutional
Theory. Storrs Lectures, Yale Law School, 2003.
32 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre
a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2012.
33 MACCORMICK, Neil. “Beyond the Sovereign State”. The Modern Law Review, v. 56, n. 1,
jan/1993.
34 ACOSTA ALVARADO, Paola Andrea. Del diálogo interjudicial a la constitucionalización del dere-
cho internacional: la red judicial latinoamericana como prueba y motor del constitucionalismo mul-
tinivel. Tese (PhD in International Law and International Relations) – Complutense University of
Madrid, Ortega y Gasset University Research Institute, Madrid, 2013. p. 189.
35 CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. Constitucionalização do Direito Internacional: uma (re)
introdução ao tema. Revista Via Iuris, São Paulo, dez. 2012. p. 87-88.

35
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nessa perspectiva, o processo de constitucionalização do Direito


Internacional é, portanto, um movimento político e intelectual que tenciona dotar
o direito internacional de características constitucionais, ou seja, buscar fazer do
Direito Internacional um sistema que justifique, organize e limite o exercício do
poder e que respeita os princípios de legalidade, separação de poderes, estado de
direito e direitos humanos36.
Dessa forma, a constitucionalização pode ser evidenciada pelo surgimento
de instrumentos e estruturas de natureza constitucional na ordem internacional e a
consagração de valores e princípios constitucionais no cenário jurídico internacional
em que se estabelece limites ao poder irrestrito do Estado, busca instaurar as noções
de Estado de Direito, freios e contrapesos e proteção dos Direitos Humanos, como
forma de estabelecer parâmetros mínimos de coerência e eficiência aos interesses da
comunidade internacional37.

3.2 A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO PROCESSO DE


CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL

Nesse processo de constitucionalização do direito internacional, resta


evidente que os direitos humanos ocupam um papel relevante, pois é matéria
concernente tanto ao direito constitucional quanto ao direito internacional, o
que faz com que funcionem como um vínculo entre os sistemas jurídicos38. Nesse
âmbito, o reconhecimento da emergência e da existência de um interesse comum
da comunidade global na proteção dos Direitos Humanos, sejam eles individuais,
civis, políticos, sociais, econômicos ou culturais, é um fator chave no processo de
constitucionalização do Direito Internacional, pois através desse reconhecimento a
comunidade internacional começa a desenvolver normas e introduzir mecanismos
para garantir a implementação desses valores e direitos fundamentais39.

36 PETERS, Anne. Compensatory Constitutionalism: the function and potential of fundamental


international norms and structures. Leiden Journal of International Law, n. 19, 2006, p. 579-610.
37 CALIXTO, Angela Jank; CARVALHO, Luciani Coimbra de. The role of human rights in the
process of constitutionalization of international law. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica. v.
25, n. 1. 2020. p. 240-241
38 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Possível Formação de um Direito Constitucional Comum na
América Latina e os Direitos Humanos Sociais. In: MOREIRA, Thiago Oliveira; OLIVEIRA, Diogo
Pignataro de; XAVIER, Yanko (org.). Direito Internacional na Contemporaneidade. Brasília: CFOAB,
2018. p. 152.
39 CALIXTO, Angela Jank; CARVALHO, Luciani Coimbra de. The role of human rights in the process
of constitutionalization of international law. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica. v. 25, n. 1.

36
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Desde a segunda metade do século XX, aumentou a necessidade de


medidas concretas por parte da comunidade internacional, a fim de fortalecer a
proteção dos Direitos Humanos e prevenir novas atrocidades, como as cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial. Devido a essa necessidade de proteger os
direitos humanos em nível internacional, para evitar novos abusos por parte dos
Estados contra os indivíduos, o cenário jurídico global passou por um processo de
mudança permanente e acelerado40.
Este processo teve origem com a criação das Nações Unidas e dos seus
principais órgãos, bem como com a assinatura da Carta das Nações Unidas41. Mais
tarde, em 1948, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH)42. Desenvolvida com o objetivo de definir o rol dos Direitos Humanos
na Carta das Nações Unidas, a DUDH tornou-se um código e plataforma comum
de ação dos Estados e introduziu o conceito contemporâneo de Direitos Humanos
na ordem internacional, sendo tais direitos percebidos como uma unidade
interdependente e indivisível43.
A proliferação de documentos internacionais e regionais tem, portanto,
contribuído para o desenvolvimento da ideia de que a proteção dos Direitos
Humanos deve ir além das fronteiras, limitando a soberania absoluta dos Estados.
Ainda, a promulgação de normas internacionais para a proteção dos Direitos
Humanos e a criação de órgãos internacionais para garantir a prestação de contas
permitiram que a proteção dos Direitos Humanos em todas as partes do globo fosse
fiscalizada e monitorada, cumulando no reconhecimento do indivíduo não somente
como objeto de primordial importância, mas também a serem reconhecidas como
legítimas titulares dos direitos emanados do ordenamento jurídico internacional44.

2020. p. 246
40 CALIXTO, Angela Jank; CARVALHO, Luciani Coimbra de. The role of human rights in the process
of constitutionalization of international law. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica. v. 25, n. 1.
2020. p. 236
41 CARTA das Nações Unidas. 1945. Disponível em: http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/docu-
mentos/. Acesso em: 17 fev. 2022.
42 DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.unicef.
org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 9 maio 2021.
43 CALIXTO, Angela Jank; CARVALHO, Luciani Coimbra de. The Role Of Human Rights In The
Process Of Constitutionalization Of International Law. In: Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrôni-
ca. v. 25, n. 1. 2020. p. 243-244
44 CALIXTO, Angela Jank; CARVALHO, Luciani Coimbra de. The Role Of Human Rights In The
Process Of Constitutionalization Of International Law. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica.

37
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Foi nesse cenário, com a premente necessidade de proteção aos Direitos


Humanos, que surgiu e se consolidou o ramo especializado do Direito Internacional
dos Direitos Humanos (DIDH), com o objetivo primordial de garantir a proteção
do indivíduo e conferir plena efetividade aos Direitos Humanos por meio do
estabelecimento de normas internacionais que protejam a dignidade humana, a
liberdade e igualdade, bem como pela provisão de instrumentos jurídicos e políticos
para a implementação de tais direitos. Com essa expansão, foi criado um sistema
internacional de proteção dos Direitos Humanos, por meio do qual a comunidade
internacional pudesse monitorar e fazer cumprir a observância desses direitos por
todos os Estados45.
Haja vista que esse processo envolve uma tutela pela ordem externa
de matérias que antes eram de domínio exclusivo das jurisdições domésticas, a
proliferação de normas jurídicas internacionais destinadas a regular as tensões
do pós-guerra, levou a uma juridificação das relações internacionais e a expansão
quantitativa e qualitativa do Direito Internacional. A expansão quantitativa
decorreu da produção intensiva de normas internacionais nos mais diversos campos
da conduta social, enquanto a expansão qualitativa foi resultado do fortalecimento
dos procedimentos internacionais para interpretar e fazer cumprir o Direito
Internacional com a criação de organismos internacionais e órgãos parajudiciais,
superando assim a descentralização e a fragilidade na implementação das normas
internacionais46.
Além disso, com a instituição de um complexo corpus juris internacional
para a proteção dos Direitos Humanos e a assunção de características inerentes
ao Direito Constitucional, há uma redefinição do que antes era de competência
exclusiva dos Estados. Ao focar na proteção dos direitos das pessoas, o DIDH
passou a tratar de questões que tradicionalmente eram vistas como de natureza
constitucional, pois os direitos destinados a proteger a pessoa contra abusos eram
considerados de competência interna exclusiva. A consequência direta desse
entendimento é a formação da ideia de que, em razão desse processo, o Direito

v. 25, n. 1. 2020. p. 246-247


45 TAIAR, Rogério. Direito Internacional dos Direitos Humanos: uma discussão acerca da relativização
da soberania face à efetivação da proteção internacional dos Direitos Humanos. 2009. Tese (Direitos
Humanos) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 232.
46 CARVALHO RAMOS, André de. A relação entre o Direito Internacional e o Direito interno no
contexto da pluralidade de ordens jurídicas. In: BRANDT, Leonardo Nemer Caldeira (org.). Brazi-
lian Yearbook of International Law. Belo Horizonte: CEDIN, 2012, v. 1, n. 12, p. 103-104.

38
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Internacional pode ser concebido como um sistema jurídico vinculante para todos
os Estados, justamente por ser visto como um sistema constitucional autônomo47.

3.3 AS NORMAS DO DIREITO INTERNACIONAL ORIENTADAS AO


BEM COMUM

Ao considerar as normas do direito internacional atualmente enquadradas


em diferentes categorias, descobrem-se conteúdos comuns, correspondências
dos bens protegidos, que permitem empreender uma determinação material de
“bens comuns da comunidade internacional”. Trata-se em particular, primeiro, do
chamado “direito internacional imperativo” (jus cogens), segundo das obrigações de
um Estado perante todos os outros Estados (obrigações erga omnes), e terceiro dos
crimes do Estado definidos pelo direito internacional (“crimes internacionais dos
Estados”)48.
A primeira dessas categorias de normas especificamente orientadas para
o bem comum é a do “direito internacional obrigatório”. As normas de jus cogens
foram introduzidas no direito internacional positivo por meio de um dispositivo
da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que o define como
“norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida
pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual
nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior
de Direito Internacional geral da mesma natureza”49.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados não define o
conteúdo do jus cogens, de modo que a doutrina internacionalista traça o círculo
das normas que o compõem com um raio ora mais curto, ora mais longo. Mas há
consenso sobre as seguintes regras: a proibição do uso da força na Carta das Nações
Unidas, direitos humanos fundamentais (especialmente o direito à vida e proteção

47 TAIAR, Rogério. Direito Internacional dos Direitos Humanos: uma discussão acerca da relativização
da soberania face à efetivação da proteção internacional dos Direitos Humanos. 2009. Tese (Direitos
Humanos) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 196.
48 FASSBENDER, Bardo. La protección de los derechos humanos como contenido central del bien
común internacional. In: AZNAR, Mariano J. GUTIÉRREZ, Ignacio; PETERS, Anne (org.). La
Constitucionalización de la Comunidad Internacional. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 153
49 Artigo 53. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. 1969. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm. Acesso em 09 fev. 2022.

39
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

contra tortura e tratamentos degradantes) e as regras do Direito Internacional


Humanitário que proíbem represálias contra pessoas protegidas50.
A categoria normativa das chamadas obrigações erga omnes dos Estados
remonta a formulação da Corte Internacional de Justiça no julgamento do
caso “Barcelona Traction” de 197051. As obrigações para com todos os Estados
resultariam, diz a Corte Internacional de Justiça, por exemplo, da proibição da
guerra de agressão, da proibição do genocídio e dos princípios e regras que afetam
os direitos mais fundamentais da pessoa humana, incluindo a proteção contra a
escravidão e discriminação racial. Posteriormente, a Corte também considerou o
direito dos povos à autodeterminação como uma norma erga omnes52.
A categoria de obrigações erga omnes foi desenvolvida para tornar a
violação de certos deveres jurídico-internacionais fundamentais uma questão de
todos, não apenas do âmbito dos Estados imediatamente afetados53.
A terceira categoria normativa que abrange a criação dos crimes do
Estado definidos pelo direito internacional, remonta ao período imediatamente
posterior à Segunda Guerra Mundial, impulsionados para sancionar os crimes
cometidos pelos Estados contra a paz e segurança da humanidade54. O desenho de
um tribunal penal de vocação universal, nessa conjuntura, insere-se no contexto
da criação de um novo ordenamento jurídico internacional, traduzido, no campo
penal, na convicção de que determinados delitos, pela sua gravidade, afetam não
apenas um determinado Estado, mas interessam a toda sociedade internacional
porque afetam princípios primordiais da humanidade55.

50 FASSBENDER, Bardo. La protección de los derechos humanos como contenido central del bien común
internacional. In: AZNAR, Mariano J. GUTIÉRREZ, Ignacio; PETERS, Anne. La Constitucionali-
zación de la Comunidad Internacional. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 138.
51 BARCELONA TRACTION, Light and Power Company, Limited. Arrêt, CIJ, Recueil 1970.
Julgamento de 5.02.1970. Disponível em: https://www. icj-cij.org/public/files/case-related/50/
050-19700205-JUD-01-00-EN.pdf
52 FASSBENDER, Bardo. La protección de los derechos humanos como contenido central del bien
común internacional. In: AZNAR, Mariano J. GUTIÉRREZ, Ignacio; PETERS, Anne. La Constitu-
cionalización de la Comunidad Internacional. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 140.
53 Ibid., p. 141.
54 Ibid., p. 149.
55 LOPES FILHO, Francisco Camargo Alves; MOREIRA, Thiago Oliveira. Limites du Paradigme
Hiérarchique Dans L’incorporation du Statut de Rome Dans Les Expériences Française et Brésilienne.
In: MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em Expansão, v. XIX, p. 38. Belo Horizonte:
Arraes, 2020.

40
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse âmbito, o trabalho da Comissão de Direito Internacional levou


a uma Conferência de Estados em Roma e o acordo do “Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional” que buscava regulamentar a criação do Tribunal, os
fatos submetidos à sua jurisdição, os princípios gerais de direito penal que devem
ser respeitados, bem como a sua composição e ordenamento jurídico interno. O
artigo 5.1 do Estatuto limita a competência do Tribunal “aos crimes mais graves
[...] que afetam a comunidade internacional como um todo”, especificamente os
crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de
agressão”56.

3.4 A AMPLITUDE CONSTITUCIONAL DA CARTA DAS NAÇÕES


UNIDAS

Em decorrência da necessidade da consecução da paz e da segurança


mundial em face das sucessivas tragédias bélicas ocasionadas pela Primeira
e Segunda Guerras Mundiais, foi criado em 24 de outubro de 1945 na cidade
de São Francisco (EUA) a Organização das Nações Unidas (ONU) e assinada a
Carta das Nações Unidas, levando a uma redefinição dos valores fundamentais da
comunidade internacional.
Esse processo marcou o início de uma nova ordem internacional, em que
foram estabelecidos marcos legais e institucionais para limitar o poder do Estado,
caracterizando uma integração sistêmica do Direito Internacional com os direitos
internos dos Estados. Importantes princípios foram estabelecidos como o respeito
pela soberania do Estado e integridade territorial, solução pacífica de controvérsias
internacionais, autodeterminação dos povos e não ingerência nos assuntos internos
de outros países, por exemplo, que constituem a base do direito internacional
contemporâneo e das relações internacionais57.
Dessa forma, uma das principais abordagens ao escopo do caráter
constitucional da Carta das Nações Unidas mais evidenciadas na atualidade
busca identificar diversas características que a assemelham a uma Constituição.
Dentre essas características, pode-se apresentar, entre outras, a denominação como
uma Carta (Charter), ao contrário do habitual termo “tratado” ou “convênio”;

56 Artigo 5.1. Estatuto de Roma do Tribunal Internacional. 1998. Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 9 fev. 2022.
57 FASSBENDER, Bardo. International Constitutional Law: Written or Unwritten? Chinese Journal
of International Law, v. 15, n. 3. 2016. p. 512

41
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a expressão We the People of the United Nations, implicando um referimento a


um poder constituinte; o funcionamento e a estruturação da Organização, com
dispositivos próprios de governança semelhantes às Constituições dos Estados, em
que se observa a identificação de órgãos, a separação de poderes e a organização
da competência das instituições; a hierarquia normativa endereçada à comunidade
internacional, especialmente diante do disposto no art. 103 da Carta das Nações
Unidas, o qual estabelece a primazia sobre qualquer outro tratado ou acordo; o
caráter de universalidade, circunscrevendo não apenas os Estados membros; e a
história constitucional da comunidade internacional, que desde o ano de 1945
orbita em torno da ONU, que serve como locus privilegiado para temas globais
e facilitador para a consecução de valores comuns que comportam a essência da
dignidade da pessoa humana58.
No entanto, há inúmeros contrapesos para qualificar a Carta como
uma Constituição da comunidade internacional, como por exemplo a fragilidade
da legitimidade do Conselho de Segurança, tendo em vista que carece de
representatividade, gerando um déficit de legitimidade democrática, além de não
possuir órgãos de controle judicial, ocasionando uma violação ao equilíbrio de
poderes, típicos em um conjunto de normas constitucionais. Nesse sentido, ainda
parece prematuro atribuir à Carta das Nações Unidas o papel de Constituição
mundial59.
Sem embargo, a abordagem constitucional da Carta da ONU não leva
necessariamente a equiparação da Carta com uma constituição estadual. A noção
constitucional no direito internacional deve ser compreendida como um conceito
autônomo e não como uma extrapolação do direito constitucional nacional60.
Assim sendo, a Carta das Nações Unidas é inevitavelmente referenciada como
ponto de partida para o constitucionalismo global, uma vez que apresenta uma
maior amplitude de aspectos constitucionais que quaisquer tratados internacionais
multilaterais anteriores, denotando um aspecto de construção histórica, própria do

58 FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Com-
munity. Leiden (Netherlands): Martinus Nijhoff, 2009. p. 86-115.
59 VIVIANI, Maury Roberto. A Amplitude Constitucional Da Carta Das Nações Unidas: Contro-
vérsias De Uma Proposta De Constituição Para A Comunidade Internacional. Conpedi Law Review,
Oñati, v. 2, n. 2. abr. 2016. p. 5.
60 FASSBENDER, Bardo. International Constitutional Law: Written or Unwritten? Chinese Journal
of International Law, v. 15, n. 3. 2016. p. 510

42
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

constitucionalismo. A Carta é, portanto, a principal contribuição para a história


constitucional do mundo61.

4 O DESENVOLVIMENTO DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL

Na atual ordem global emergente, marcado por diversos subsistemas


regionais e ao mesmo tempo globalizado, diversificado e localizado, caracterizado
pelo cruzamento e sobreposição de diferentes formas de governança doméstica e
práticas organizacionais, a busca do interesse nacional e das capacidades materiais
apontam para a ordenação de um equilíbrio de política de poderes que qualifica um
sistema multipolar62.
Em uma abordagem histórica e cultural, compreende-se que os países
têm o direito de constituírem independentemente os modelos de estado de direito
que sejam adequados às suas condições nacionais, que reconheça as trajetórias de
desenvolvimento sociais e econômicas, a importância de identidades culturalmente
específicas e a legitimidade de diferentes visões sobre a natureza da soberania, as
regras de comércio internacional e a relação entre Estado e sociedade63. Não obstante,
compreende-se também que países de diferentes sistemas e em variados estágios de
desenvolvimento estão entrelaçados em dependência mútua e interconectados em
uma comunidade de destino comum64.
Nesse contexto, a carência de uma autoridade centralizada na sociedade
internacional e a disputa de vários centros de poder pela legitimidade de questões
centrais de repercussão mundial indicam a necessidade de regulações internacionais
que evoquem a atribuição de responsabilidade e autoridade além dos Estados em
relação à governança global65.

61 VIVIANI, Maury Roberto. A Amplitude Constitucional Da Carta Das Nações Unidas: Contro-
vérsias De Uma Proposta De Constituição Para A Comunidade Internacional. Conpedi Law Review,
Oñati, v. 2, n. 2. abr. 2016. p. 18.
62 FLOCKHART, Trine. The coming multi-order world. Contemporary Security Policy. v. 37, n. 1.
2016. p. 6-11.
63 Ibid., p. 9.
64 AHL, Björn. Chinese Positions on Global Constitutionalism, Community of Common Destiny
for Mankind, and the Future of International Law. The Chinese Journal of Comparative Law, 2021.
p. 17.
65 AFONSO, Henrique Weil; CASTRO, Thales Cavalcanti. Constitucionalismo Além Do Estado:
Perspectivas Históricas E Demandas Emancipatórias. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM.
v. 10, n. 2, 2015. p. 520.

43
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Assim, diante das desafiadoras transformações que se operam no mundo


contemporâneo, a percepção de uma sociedade global sem uma juridicidade que
corresponda ao efetivo estágio de interdependência do pluralismo jurídico presente
faz com que ganhe relevo novas tendências na teoria constitucional e os esboços
teórico que vem atualmente sendo desenvolvidos na direção ao constitucionalismo
em âmbito global66.
Em diferentes magnitudes, a atual arquitetura geral do constitucionalismo
em evolução indica a coexistência de paradigmas diversos, tanto no nível nacional,
transnacional, quanto global. Levando em conta a necessidade de coerência
para o equilíbrio estrutural do esquema geral do constitucionalismo, a posição
compreensiva para abordar e alcançar as questões e preocupações do mundo
globalizado capacita o constitucionalismo global para atuar como um paradigma
abrangente de unidade na diversidade de manifestações desse esquema67.
Seguindo a premissa hermenêutica de que não existe significado de um
texto independente do leitor, a leitura constitucionalista do direito internacional
atual não é uma distorção de normas que são objetivamente outra coisa, mas uma
forma legítima de interpretação. Não é uma mera dedução do pensamento positivo,
mas uma construção intelectual induzida por múltiplos desenvolvimentos gerais no
direito internacional68.
Ainda, aferindo o sentido de que o direito e a política não devem ser vistos
como domínios distintos, mas sim como subsistemas estruturalmente acoplados,
pode-se dizer que o direito é ao mesmo tempo produto da atividade política e
organizador e limitador da ação política. Consequentemente, a dinâmica evolutiva
do constitucionalismo leva não somente à legalização da política, mas também a
uma politização mais forte do direito, e a introdução de princípios jurídicos e até
constitucionais contribui para a estabilidade das expectativas, segurança jurídica
e igualdade de tratamento dos atores relevantes69. Nesse sentido, a Constituição,

66 FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra de Carvalho; LIMA, Renata Albuquerque. Teoria constitu-
cional em mutação: perspectivas do constitucionalismo contemporâneo frente aos desafios da globa-
lização e transnacionalidade. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 13, n. 3, dez. 2017. p. 124.
67 CHEN, Wen Cheng; CHU, Shirley Chi. Taking Global Constitutionalism Seriously: A fra-
mework for Discourse. National Taiwan University Law Review, v. 11, n. 2. 2016. p. 402-404.
68 PETERS, Anne. Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental
Norms and Structures. Leiden Journal of International Law, n. 19, 2006. p. 605.
69 CARVALHO, Leonardo Arquimimo de. Constitucionalização do Direito Internacional: uma (re)
introdução ao tema. Revista Via Iuris, São Paulo, dez. 2012. p. 89.

44
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

na acepção moderna, é fator e produto do acoplamento estrutural entre política e


direito70.
Nessa perspectiva, o Constitucionalismo Global possui elementos
descritivos e prescritivos. Ele não pretende apenas descrever algumas características
do status quo das relações internacionais, mas também procura fornecer argumentos
para seu desenvolvimento posterior em uma direção específica71. A evolução
de valores constitucionais para o domínio internacional permite assentir um
caminho para moldar a governança global através do pensamento constitucional
de forma a facilitar a coordenação entre os sistemas jurídicos nacionais e o direito
internacional72.
Dessa maneira, o Constitucionalismo Global consiste num processo
constitutivo de emergência e deliberada criação de elementos constitucionais no
ordenamento jurídico internacional, de maneira gradual, embora não linear, por
atores políticos e jurídicos, amparado por um discurso acadêmico no qual esses
elementos são identificados e desenvolvidos73.
A percepção do Constitucionalismo Global se desenvolve num plano de
abordagens que procuram compreender as respostas adequadas ao enfrentamento
das complexas dinâmicas da sociedade mundial em face da globalização e das
transformações que se operam na comunidade internacional74. Dessa maneira,
as abordagens doutrinárias podem a um só tempo serem caracterizadas como
heterogêneas e interdisciplinares, uma vez que estruturam suas teses sobre diferentes
e contrastantes pressupostos, e na medida em que não limitam suas análises a
parâmetros somente legalistas75.

70 PETERS, Anne. The Merits of Global Constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies,
v. 16, n. 2. 2009. p. 407.
71 PETERS, Anne; ARMINGEON, Klaus. Introduction: Global Constitutionalism from an Inter-
disciplinary Perspective. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 16, n. 2, 2009. p. 388-389.
72 AHL, Björn. Chinese Positions on Global Constitutionalism, Community of Common Destiny
for Mankind, and the Future of International Law. The Chinese Journal of Comparative Law, 2021.
p. 16.
73 PETERS, Anne. The Merits of Global Constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies,
v. 16, n. 2. 2009. p. 397-398.
74 VIVIANI, Maury Roberto. A amplitude constitucional da Carta das Nações Unidas: controvér-
sias de uma proposta de constituição para a comunidade internacional. Conpedi Law Review. Oñati,
Espanha. v. 2, n. 2. 2016. p. 5-6.
75 AFONSO, Henrique Weil; CASTRO, Thales Cavalcanti. Constitucionalismo Além Do Estado:
Perspectivas Históricas E Demandas Emancipatórias. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM.

45
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em vista disso, é possível abranger três tendências propostas para abordar


a ambiência do Constitucionalismo Global, sendo elas funcionalista, normativa
e pluralista76. O elemento funcionalista responde pela análise dos processos de
constitucionalização que são revelados através de barganhas e negociações nos
ambientes institucionais que regulam estruturalmente as relações internacionais,
identificando institutos capazes de desempenhar funções tipicamente constitucionais
como controle e divisão do poder em nível global, controle jurisdicional de atos
normativos e proteção aos direitos humanos fundamentais77. O fator normativo
antevê um movimento para o progressivo desenvolvimento político e legal de
práticas além da esfera de influência dos Estados, determinando conteúdos
normativos de forma compensatória que tenham sido enfraquecidos em nível
estatal em decorrência das forças de globalização e governança global, preconizando
um comprometimento com standards constitucionais78. E o componente pluralista,
compreendendo o Constitucionalismo Global não numa perspectiva singular, mas
por intermédio de sistemas diferenciados e suas interações além dos limites do
Estado, visa reconhecer mutuamente diferentes padrões, em diferentes regimes,
respeitando um padrão mínimo que confira organicidade e sistematização para
viabilizar sua efetivação pelos Estados79.
A esse respeito, elencam-se três pontos característicos que embasam o
tratamento do Constitucionalismo Global: o alicerçamento de um sistema jurídico-
político em relação entre Estados/povos marcado pelo fundamento da Carta das
Nações Unidas; a emergência, através das declarações e documentos internacionais,
de um conjunto de normas orientadas ao bem comum da comunidade internacional,
reconhecidas nas normas jus cogens, do direito internacional imperativo, nas
obrigações erga omnes dos Estados, e na normatização de um direito penal

v. 10, n. 2, 2015. p. 525.


76 WIENER, Antje; LANG, Anthony F.; TULLY, James; MADURO, Miguel Poiares; KUMM,
Mattias. Global Constitutionalism: Human rights, democracy and the rule of law. Global Constitu-
tionalism, v. 1, n. 1, 2012, p. 1-15
77 AFONSO, Henrique Weil; CASTRO, Thales Cavalcanti. Constitucionalismo Além Do Estado:
Perspectivas Históricas E Demandas Emancipatórias. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM.
v. 10, n. 2, 2015. p. 526.
78 PETERS, Anne. Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental
Norms and Structures. Leiden Journal of International Law, n. 19, 2006. p. 579-610.
79 DANTAS, Iana Melo Solano; MOREIRA, Vaninne Arnaud de Medeiros. Análise da fragmenta-
ção do direito internacional à luz do constitucionalismo global orgânico. Revista Brasileira de Direito
Internacional. Brasília, v. 2, n. 1, 2016. p. 156.

46
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

internacional; e na consolidação dos direitos humanos e da proteção da dignidade


humana como pressuposto de todos os constitucionalismos80.
Ao se aceitar o conceito de que o Constitucionalismo Global consiste
não só numa ideia e perspectiva, mas numa agenda acadêmica e política que
pretende a aplicação de matrizes constitucionais, como estado de direito, freios
e contrapesos e proteção de direitos humanos na esfera jurídica internacional, de
fato, observa-se que, num sentido amplo, é admissível a existência de Constituição
na esfera internacional, pois podem ser encontrados naquela esfera elementos de
estruturação, organização e institucionalização81.

5 CONCLUSÃO

Conforme organizado no presente estudo, pode-se verificar que


conquanto o desenvolvimento de uma teoria constitucional concebida ao longo
da história de forma intrinsecamente centrada no Estado nacional, a intensificação
da globalização e o surgimento de problemas comuns que transcendem as
fronteiras estatais proporcionou que o Constitucionalismo e elementos da noção
de Constituição transcendessem para a ordem internacional.
Com efeito, observando uma relação de dependência mútua e cada vez
maior intersecção entre o direito constitucional interno e o direito internacional,
evidencia-se o processo de constitucionalização do direito internacional através
do surgimento de valores, princípios, instrumentos e estruturas de natureza
constitucional no cenário jurídico internacional, buscando instaurar noções
de freios e contrapesos, limitação ao exercício do poder e proteção dos direitos
humanos na ordem internacional.
Tal compreensão se deu através da consolidação da proteção dos direitos
humanos, antes vista como competência interna exclusiva, como vínculo entre os
diversos sistemas jurídicos na ordem internacional; da criação de normas do direito
internacional orientadas ao bem comum, particularmente as normas de jus cogens,
as obrigações erga omnes, e a definição de crimes internacionais dos Estados; e por
fim, a contribuição de caráter constitucional da Carta das Nações Unidas para a
redefinição dos valores fundamentais da comunidade internacional.

80 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constituciona e Teoria da Constituição. 7. ed. Coim-
bra: Almedina, 2008. p. 1370-1371.
81 VIVIANI, Maury Roberto. Constitucionalismo Global: crítica em face da realidade das relações in-
ternacionais no cenário de uma nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 173-176.

47
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Finalmente, conclui-se que tal construção verifica o desenvolvimento


de um Constitucionalismo Global através da emergência e deliberada criação de
elementos constitucionais no ordenamento jurídico internacional, que se desenvolve
num plano de abordagens que procuram compreender as respostas adequadas
ao enfrentamento das complexas dinâmicas da sociedade mundial em face da
globalização e das transformações que se operam na comunidade internacional, de
maneira gradual, embora não linear, por atores políticos e jurídicos, amparado por
um discurso acadêmico no qual esses elementos são identificados e desenvolvidos.

48
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A disciplina pós-nacional da corrupção transnacional

Caíque Tomaz Leite da Silva1


Daniel Ramos Pereira Ferreira2

1 INTRODUÇÃO

Dentre os problemas contemporâneos que têm apresentado significativo


impacto nas relações sociais, econômicas e políticas, são crescentes aqueles,
resultantes de externalidades positivas ou negativas da globalização da vida social,
com características e consequências que não se sobrepõe às dimensões territoriais de
uma particular soberania. Os problemas transnacionais reivindicam algum direito
pós-nacional que possa acompanhar, com seus instrumentos regulatórios, a mesma
natureza dos novos desafios da ciência jurídico-política.
Nesse contexto, as consequências da corrupção, outrora localizadas, têm
ampliado o seu círculo de difusão, e, igualmente, é crescente o número de agentes
econômicos e políticos que deliberam e barganham em espaços públicos de decisões
para além do estado-nação, como aquele da Organização das Nações Unidas, da
União Europeia, do Conselho da Europa, da Organização dos Estados Americanos,

1 Doutor em Direito Público, com distinção, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
com início da investigação no ano letivo de 2010/2011, extensão certificada pela Universidade de
Harvard (Justice, by Michael Sandel), em 2020, e pela Universidade de Yale, em 2021 (Moral Foun-
dations of Politics, by Ian Shapiro), e conclusão no ano letivo de 2020/2021, com arguição em provas
públicas em 2022. Concluiu a Pós-Graduação em Direitos Humanos, em 2010, pelo Centro de Di-
reitos Humanos da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae), com 15 valores. Concluiu
a Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, em 2014, pelo Centro Universitário Antônio
Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente, summa cun laude.
2 Representante discente do Conselho Superior de Administração da Toledo Prudente (biênio
2022/2023). Bolsista do Programa de Iniciação Científica da Toledo (PICT) pelo grupo de pesquisa
“Sincretismo Constitucional”. E-mail: danielrpferreira62@gmail.com.

55
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da Organização Mundial do Comércio, da Organização Mundial da Saúde, dentre


outros, sem um simétrico regime jurídico que possa apurar o limite da influência
no processo de tomada de decisões sem participação popular direta.
Inicialmente, analisou-se o conceito de corrupção e seus contornos
transnacionais a partir de tratados e estudo de casos em que os seus efeitos puderam
ser sentidos difusamente e em vários estados, para, em continuação, verificar se o
fenômeno normativo pós-nacional, da constitucionalização do direito internacional,
pode apresentar elementos políticos, com a Carta da ONU, de 1945, e normativos,
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos Internacionais de
Direitos Civis e Políticos e Econômicos, Sociais e Culturais, para responder às
exigências éticas de um modo de ser das relações entre os agentes políticos e os
atores privados com os quais se transaciona, e, também, se há lições decorrentes da
igualmente relevante constitucionalização do direito da União Europeia.
Por fim, após a identificação de estratégias para a prevenção e
repressão à corrupção transnacional, propôs-se a sua incorporação à teoria da
constitucionalização do direito pós-nacional como estrutura mais adequada e
potencialmente melhor desenvolta para o tratamento das causas, impactos e
consequências da corrupção transnacional.

2 A PROBLEMÁTICA DA CORRUPÇÃO TRANSNACIONAL

A corrupção é um problema inerente à atividade política em todos os


âmbitos da vida cívica. Com efeito, desde as fraudes em licitações de serviços
públicos municipais ao pagamento de propina por sociedades empresárias
multinacionais, a percepção de vantagens à margem do formal e regular processo
de contratações, conceções e privatizações e os agentes políticos e econômicos que
delas desfrutam, definem o âmbito territorial de incidência dessa prática, como
local ou transnacional.
Não obstante a sua prática em âmbito local seja notoriamente
problemática, dá-se, no contexto deste ensaio, ênfase aos atos que impactam sobre
vários estados e/ou organizações internacionais, para delimitar e/ou construir um
quadro normativo conceitual e sancionatório complementar àquele nacional e mais
adequado para a desterritorialização desse novo espaço público e à pluralidade de
atores que nele passa a interagir em relações jurídicas.
De forma preambular, identificou-se a Convenção Interamericana contra
a Corrupção. Essa convenção foi aprovada em março de 1996, em Caracas, na

56
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Venezuela, e internalizada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002, como


o primeiro instrumento jurídico internacional de enfretamento à corrupção pelos
estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), afirmador da
imperiosidade do combate à corrupção e da necessidade de promover a cooperação
entre os estados americanos para lidar com esse fenômeno3.
A Convenção estabelece, por exemplo, medidas preventivas para a
manutenção e fortalecimento de diligências de combate à corrupção transnacional
(artigo 3º); o dever de adoção de medidas para adequar a legislação interna com o
fim de tipificar os atos de corrupção elencados na Convenção (artigo 7º) e nuances
para a assistência e cooperação entre os estados-membros (artigo 14). Em particular,
merece destaque a definição de suborno transnacional, disposta no artigo 8º, in
verbis:

Oferecimento ou outorga, por parte de seus cidadãos, pessoas


que tenham residência habitual em seu território e empresas
domiciliadas no mesmo, a um funcionário público de outro
Estado, direta ou indiretamente, de qualquer objeto de valor
pecuniário ou outros benefícios, como dádivas, favores,
promessas ou vantagens em troca da realização ou omissão,
por esse funcionário, de qualquer ato no exercício de suas
funções públicas relacionado com uma transação de natureza
econômicas ou comercial4. (grifo nosso)

Por sua vez, em 15 de novembro de 2000, foi aprovada a Convenção das


Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo),
internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.015, de 12
de março de 2004. Segundo sua disciplina, a corrupção transnacional pressupõe
três elementos: (i) o envolvimento de um grupo criminoso ou organização (não
necessariamente criminosa); (ii) a existência de ao menos um elemento transnacional
e; (iii) o ato corrupto.
Portanto, em apertada síntese, o que distingue a corrupção praticada em
âmbito interno daquela definida pelos tratados internacionais dos sistemas regional

3 CASTRO, Tony Gean Barbosa de. Enfrentamento da Corrupção Transnacional: essencialidade da


cooperação internacional. Corpus Delicti – Revista de Direito de Polícia Judiciária. Brasília (DF), v. 2,
n. 4, p. 227-244, jul./dez. 2018, p. 231.
4 OEA. Convenção Interamericana contra a Corrupção. 1966.

57
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e global de proteção aos direitos humanos, como transfronteiriça, é a existência de


algum elemento transnacional.
Com efeito, exemplifica-se, assim, um ato que preenche referidas
características. A “lavanderia do Azerbaijão” (The Azerbaijani Laundromat) foi um
sistema complexo de corrupção e lavagem de dinheiro organizado por este país,
revelado pelo Projeto de Relatório de Crime Organizado e Corrupção (OCCRP,
na sigla em inglês). Segundo as investigações, entre 2012 e 2014, cerca de 2,9
bilhões de dólares foram desviados em favor de empresas e bancos europeus5, em
pagamento de políticos italianos e alemães, para que ignorassem o histórico de
violações aos direitos humanos no Azerbaijão na votação de moções de censura
contra o país, na assembleia parlamentar do Conselho da Europa6.
Igualmente, o caso Guptagate, na África do Sul, com início em 2013,
revelou uma associação entre as famílias do então Presidente da África do Sul,
Jacob Zuma, e dos Guptas, para que estes utilizassem a base aérea do país africano
para fins particulares, com autorização presidencial. Sem embargo, apurou-se que
os Guptas, por meio de uma empresa contratada, haviam tentado incitar a ira
racial na África do Sul, em uma época de crise política instalada pelas denúncias
de corrupção. Por último, um relatório divulgado em 2016, apresentou acusações
de que esta mesma família (Gupta) teria oferecido valores em dinheiro e cargos
ministeriais para determinados políticos7.
Validamente, os dois casos ilustram que as consequências da corrupção
transnacional não se limitam à perda do valor monetário apurado sob a perspectiva
econômica. Mais amplamente, a usurpação do interesse público objeto do processo
democrático, o vício do consentimento orientador da tomada de decisões políticas
de impacto social, as preferências orçamentárias de gestão dos escassos recursos
públicos e o escrutínio da atividade dos agentes políticos, revelam o potencial de
construção de um artificialmente coletivo e materialmente individual processo de
tomada de decisões políticas.
Nesse sentido, Habermas observa que nas tradicionais sociedades
capitalistas, a concentração de recursos econômicos é uma forma de poder que

5 OCCRP. The Azerbaijani Laundromat. Publicado em 04 de setembro de 2017.


6 HARDING, L. Azerbaijan Laundromat shows UK is choice of crooks and despots, says Hodge.
(19/10/2017). The Guardian, 2017.
7 CAVE, A. Deal that undid Bell Pottinger: inside story of the South Africa scandal. (5/9/2017). The
Guardian, 2017.

58
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

pode rivalizar (e cooptar), aquele tradicionalmente descrito como político8. No


mesmo sentido, Chevallier descreve tão larga margem de autonomia para agentes
econômicos sobre os quais os estados não têm conseguido impor sua supremacia (e
do interesse público subjacente), que as relações com as corporações multinacionais,
mesmo quando regulares, representam uma “contratualização da regulação
jurídica”9.
Nessa ordem de ideias, evidencia-se, pela complexidade que encampa
a corrupção transnacional, a necessidade de cooperação entre os estados para
prevenir atos corruptores e mitigar seus efeitos. Assim sendo, a máxima cooperação
deve servir de vetor axiológico para a redação, interpretação e aplicação de
instrumentos normativos internacionais anticorrupção10, e, mais amplamente, para
que a competição entre estados por recursos econômicos privados não constitua um
obstáculo à criação de instâncias de regulamentação mais adequadas à solução deste
problema de governação transnacional.

3 DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL

Ao analisar a história das relações internacionais (interestatais), verifica-


se desde a Antiguidade vários indícios de relações intergovernamentais existentes.
Porém, somente com os tratados de Münster e Osnabrück, em 1648, consagradores
da chamada “Paz de Vestefália”, a sistematização do direito internacional em torno
da autonomia e independência dos estados soberanos passou a dirigir, de forma
sistemática, as relações entre as nações11.
Por sua vez, o constitucionalismo surgiu como teoria de limitação
ao arbítrio estatal, a partir da concessão de direitos aos particulares e através da

8 HABERMAS, Jürgen. “Political Communication in Media Society: Does Democracy still have an
Epistemic Dimension? The Impact of Normative Theory on Empirical Research”. Europe. The Falte-
ring Project. Translated by Ciaran Cronin. Polily, 2009.
9 CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3. éd. 2008. p. 138-139.
10 CASTRO, Tony Gean Barbosa de. Enfrentamento da Corrupção Transnacional: essencialidade da
cooperação internacional. Corpus Delicti. Revista de Direito de Polícia Judiciária. Brasília (DF), v. 2,
n. 4, p. 227-244, jul./dez. 2018, p. 234.
11 JUBILUT, Liliana Lyra. Os Fundamentos do Direito Internacional Contemporâneo: da Coexis-
tência aos Valores Compartilhados. In: BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (coord.). Anuário Brasi-
leiro de Direito Internacional, v. 2, n. 9, jul., 2010. Belo Horizonte: CEDIN, 2010. Disponível em:
http://centrodireitointernacional.com.br/static/anuario/5_V2/anuario_5_v2.pdf#page=203. Acesso
em: 24 dez. 2021. p. 105.

59
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

delimitação da atuação estatal por normas pré-concebidas. Nessa toada, é pautado


por dois impulsos: (i) estabelecimento de um rol de direitos fundamentais,
contendor da ingerência do poder estatal na esfera privada do indivíduo; e (ii)
por meio da separação dos poderes, fazendo-se sobressair desta organização certa
previsibilidade e controle dos atos resultantes do exercício das distintas funções
soberanas.
Com o passar do tempo, verificou-se que a autolimitação erigida pela
teoria do constitucionalismo mostrou-se incapaz de fazer com que todos os seres
humanos tivessem sua dignidade reconhecida, a partir de iniciativa soberana. Desse
modo, o direito internacional dos direitos humanos passa a reconhecer os mínimos
direitos que todos os sujeitos ostentam, independentemente de sua origem12.
Assim, os direitos fundamentais (e posteriormente direitos humanos, em nível
internacional) passam a ser tutelados pela ordem internacional. Portanto, levando-
se em conta a necessidade de contenção do arbítrio estatal e as limitações naturais
decorrentes do modelo de autolimitação constitucional, foram conjugados esforços
políticos e jurídicos externos para a manutenção da paz e segurança internacionais
e promoção dos direitos humanos, por meio da criação da Organização das Nações
Unidas, em 1945.
Nesta direção, com a adoção da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, passa-se a entender a universalidade do ser humano e
vislumbrar-se a sua importância como ser dotado de direitos internacionais, através
dos parâmetros consagrados com a Declaração Universal13. Ademais, na medida
em que há o reconhecimento dos direitos dos seres humanos internacionalmente, a
Declaração marca uma “redefinição do conceito de soberania nacional”14, de modo
que a efetiva tutela dos direitos humanos deixa de ser dever exclusivo do direito
constitucional de cada estado15.

12 SILVA, Caíque Tomaz Leite da. Do realismo à constitucionalização do direito internacional. Revista
do Direito Público. Londrina, v. 9, n. 1, p. 135-162, jan/abr 2014. DOI: 10.5433/1980-511X.2014v9
n1p135. p. 141.
13 SILVA, Caíque Tomaz Leite da. op. cit., p. 148.
14 PENEBIANCO, Mario. Iura humanitatis: diritti umane e “nuovi” diritti fondamentali. Revista
Internazionale dei diritti dell’uomo. Ano XIV, 2001, p. 121 (tradução nossa).
15 ISA, Felipe Gómez. La protección de los derechos humanos. In: ISA, Felipe Gómes; PEREZA,
José Manuel (org.). La protección internacional de los derechos humanos en los albores del S. XXI. Uni-
versidad de Deusto: Bilbao, 2004. p. 23.

60
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Não obstante, muito embora se soubesse da importância da Declaração


Universal dos Direitos Humanos, não se lhe conferia, a princípio, força normativa16.
Desta feita, era premente a necessidade de que suas disposições fossem dotadas de
certa exigibilidade para melhor tutela dos direitos humanos. Portanto, em 1966,
foram aprovados o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conferindo-se contornos
contratualistas à Carta Internacional de Direitos, conforme o pacta sunt servanda
orientador da adesão dos estados a obrigações normativas internacionais.
Por força dos três documentos internacionais alhures mencionados, a
Organização das Nações Unidas afirma a constituição de uma International Bill
of Rights, que se reveste de poder normativo na tutela dos direitos fundamentais,
nos mesmos moldes daqueles desempenhados pelas constituições internas17. Assim
sendo, nota-se uma mudança de objeto nas relações internacionais, que no seu
período realista preservava o protagonismo da autonomia e independência dos
estados, e, no seu período humanista, passa a reconhecer a personalidade jurídica
internacional e a autonomia do indivíduo, enquanto sujeito de direitos e garantias
dissociadas do regime de proteção diplomática18.
Dessa forma, observa-se a existência do primeiro e mais importante
instrumento normativo de sustentação da constitucionalização do direito
internacional, pois a Carta Internacional de Direitos possui ao menos um dos seus
documentos descrito como universal e independente do princípio do consentimento,
tradicionalmente regente da vinculação às obrigações internacionais. Nesse sentido,
Lauterpacht observa que a Declaração Universal constituiu uma interpretação das
obrigações de direitos humanos previstas na Carta da ONU19 e o próprio Escritório
de Assuntos Legais da ONU define-a como costume internacional vinculante aos
estados, in verbis:

16 BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. 17 ed. Oxford University Press, 2008.
p. 565.
17 SILVA, Caíque Tomaz Leite da. Do realismo à constitucionalização do direito internacional. Revista
do Direito Público. Londrina, v. 9, n. 1, p. 135-162, jan/abr 2014. DOI: 10.5433/1980-511X.2014v9
n1p135. p. 154.
18 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A humanização do direito internacional. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2006. p. 119-128.
19 LAUTERPACHT, Hersch. International Law and Human Rights. New York: F. E. Praeger, 1950.
p. 408.

61
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Tendo em vista a maior solenidade e importância de uma


declaração, ela pode ser considerada para transmitir, em
nome do órgão que a adota, uma forte expectativa de que
os membros da comunidade internacional irão cumpri-
la. Consequentemente, na medida em que a expectativa é
gradualmente justificada pela prática dos Estados, a declaração
pode pelo costume tornar-se reconhecida como estabelecendo
regras vinculativas aos Estados20.

Por conseguinte, percebe-se a construção de uma estrutura constitucional


em simetria às responsabilidades constitucionais desempenhadas internamente, a
reivindicar novos parâmetros, não hierárquicos, para as relações de comunicação
normativa estabelecidas entre o direito constitucional e o direito internacional
constitucionalizado, cuja preferência aplicativa na solução de antinomias deve ser
identificada a partir das características dos problemas transconstitucionais21.
Não obstante, a criação de uma World Court of Human Rights22
contribuiria para a consolidação do referido processo, ao possibilitar o controle
de legalidade dos atos dos sujeitos de direito público subordinados, mediante
procedimentos jurisdicionais provocados por indivíduos, nos mesmos termos
daqueles disciplinados para os tribunais regionais de proteção aos direitos
humanos, que poderia também servir, no exercício da jurisdição contenciosa e
voluntária, para a construção de parâmetros de uniformização da jurisprudência
em matéria de direitos humanos. Deve-se reconhecer, contudo, que dentro das
limitações processuais correspondentes, a Corte Internacional de Justiça tem feito
grande esforço para a vinculação dos estados aos direitos humanos, por exemplo,
identificando obrigações internacionais erga omnes e desenvolvendo objeções à
preservação da imunidade de soberania.
Em apertada e conclusiva síntese, a constitucionalização do direito
internacional pretende constituir um alter ego do direito constitucional interno,
que possa, da mesma forma e com ele, vincular os exercentes das funções soberanas,
no caso, os estados.

20 UN doc.E/CN.4/L.610, 1962.
21 SILVA, Caíque Tomaz Leite da. Espaço “longo” tempo “breve”. Itinerários da metanarrativa cons-
titucional: o constitucionalismo sincrético. Revista Intertemas. Presidente Prudente, v. 15, p. 46-74,
nov. 2011, p. 57-60.
22 KOZMA, J.; NOWAK, M.; SCHEININ, M. A World Court of Human Rights – Consolidated
Statute and Commentary. Vienna: Neuer Wissenschaftlicher, 2010.

62
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4 O DIREITO PÓS-NACIONAL COMO PARÂMETRO DE REPRESSÃO À


CORRUPÇÃO TRANSNACIONAL

A corrupção transnacional produz atos jurídicos e políticos que


repercutem, em cadeia, sobre diversas outras relações jurídicas e/ou políticas
subsequentes e/ou consequentes disciplinadas pelos atos/fatos corruptos. Em
decorrência dessa rede de interdependência, verifica-se a necessidade de uma
atuação integrada para melhor desenvoltura no exercício das responsabilidades
constitucionais de prevenção e repressão aos atos ilícitos.
Na medida em que a globalização facilitou e integrou o crime organizado
transnacional, bem como as atividades lícitas que ilicitamente procuram a
construção de tratamentos mais favoráveis desestabilizando artificialmente as
funções regulatórias dos estados, uma ação coordenada para combater a corrupção
transnacional de forma eficaz passa a ser cada vez mais dependente da sinergia de
diversos agentes jurídico-políticos.
Com efeito, tem sido também comum a identificação de consequências
transnacionais da prática de atos locais, particularmente em decorrência da
integração do comércio e das relações comerciais internacionais, o que se pode
verificar, por exemplo, com as cadeias de manufatura têxteis em países da Ásia,
exploração de recursos minerais na África e de combustíveis fósseis na América
do Sul. Por sua vez, os conglomerados econômicos que exploram e desenvolvem
referidas atividades comerciais, com práticas regulares ou não, são sediados em
países desenvolvidos em que o controle jurídico costuma incidir apenas sobre os
atos praticados em seu próprio território, em atenção à limitação decorrente do
exercício da função soberana jurisdicional.
Nesse contexto, a constitucionalização do direito internacional e
do direito da União Europeia, associada à integração normativa com o direito
constitucional dos estados, pode apresentar abrangência suficiente, em razão de
seu desprendimento de território soberano específico, para funcionar como ordem
jurídica de prevenção e repressão à corrupção, possibilitando, por meio de relações
não hierárquicas com os sistemas normativos locais, o exercício de um juízo de
constitucionalidade conglobante sobre a legalidade de condutas, conforme o que se
tem chamado de “sincretismo constitucional”23.

23 SILVA, Caíque Tomaz Leite da. Espaço “longo” tempo “breve”. Itinerários da metanarrativa cons-
titucional: o constitucionalismo sincrético. Revista Intertemas. Presidente Prudente, v. 15, p. 46-74,
nov. 2011, p. 56-57.

63
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Para ilustrar as virtudes metódicas operativas desse sincretismo, o juízo


de legalidade pode identificar critérios de julgamento, por exemplo, no artigo
41 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, porquanto o direito
subjetivo à boa administração, nele consagrado, reprime amplamente “situações
como irregularidades e omissões administrativas, abusos de poder, favoritismos,
atrasos injustificados, ausência de informação”24, incluindo-se aquelas motivadas
por corrupção.
Sem embargo, pode-se apontar concretamente do dispositivo em
comento: (i) o direito à manifestação prévia do administrado sobre qualquer
decisão que lhe seja desfavorável; (ii) o direito de acesso a processos e documentos
que se encontrem em poder dos órgãos comunitários; (iii) o direito à reparação
por danos causados por esses órgãos; (iv) a obrigação, por parte da administração,
de fundamentar suas decisões e, por fim; (iv) o direito de se dirigir aos órgãos da
União Europeia em qualquer dos idiomas do tratado. Vê-se, assim, a promoção
da previsibilidade, da segurança jurídica e da transparência dos atos dos órgãos
políticos em razão da possibilidade de controle de seu teor e motivação.
Ressalta-se, ainda, que a titularidade do direito epigrafado é dissociada,
pela Carta, da cidadania europeia, e, como pontua Joaquim Freitas da Rocha, da
própria capacidade contributiva25, estimulando a construção de uma metanarrativa
constitucional de repressão à corrupção ao dissociar o estatuto do direito subjetivo,
de qualquer nacionalidade, em termos mais adequados à solução de problemas
transnacionais.
Também merece destaque, no direito da União, as competências
estatutárias do seu próprio Tribunal de Contas e a Oficina Europeia de Luta contra
a Fraude (OLAF), que desenvolve atividade investigativa recomendando sanções
aos tribunais nacionais ou à Comissão Europeia, quando identifica indício de atos
de corrupção.

24 SILVA, Clarissa Sampaio. O Direito Fundamental à Boa Administração: da Carta de Direitos


Fundamentais da União Europeia às perspectivas de sua efetivação e controle nas ordens constitu-
cionais de Portugal e Espanha – desenvolvimentos comparativos na realidade brasileira. Seqüência.
Florianópolis, v. 40, n. 82, p. 176-201, ago. 2019, p. 180/181.
25 ROCHA, Joaquim Freitas da. “Sustentabilidade e finanças públicas responsáveis. Urgência de um
Direito Financeiro equigeracional”. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes
Canotilho. V. I. Responsabilidade: entre Passado e Futuro. Boletim da Faculdade de Direito. Studia
Iuridica 102, Ad Honorem – 6. Coimbra, 2012. p. 628 e nota de rodapé nº 20.

64
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por sua vez, no âmbito do direito internacional em sentido estrito, a


Organização das Nações Unidas tem conduzido diversas iniciativas destinadas à
construção de parâmetros que sirvam à repressão da corrupção.
Com efeito, pode-se apontar o projeto de código de conduta para as
corporações transnacionais, como parte do programa para o estabelecimento de
uma nova ordem econômica internacional, abandonado em 1992; a iniciativa do
antigo Secretário-Geral, Kofi Annan, de um Pacto Global (Global Compact), lançada
no ano de 2000, que procurava estabelecer condições para a responsabilidade de
agentes privados nas áreas do direito do trabalho, do desenvolvimento, dos direitos
humanos e da luta contra a corrupção, com especial ênfase no modo de governação
das grandes corporações; e, por fim, a Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, que entrou em vigor em 2005, e dispõe que os estados-membros são
obrigados a proibir seus funcionários de receber suborno e suas empresas de subornar
funcionários públicos nacionais, estrangeiros e de organizações internacionais
públicas, e considerar, igualmente, a proibição de suborno privado a privado.
Convergindo, a Organização Internacional do Trabalho, com a Declaração
Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e Política Social, elaborada
em 1977 e revisada em 2006, assim como a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, por meio das Diretrizes da OCDE para as Empresas
Multinacionais, adotada em 2011, e a Convenção sobre o Combate ao Suborno
de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais
(a Convenção Antissuborno), que entrou em vigor em 1999, procuram o
estabelecimento de padrões de comportamento para as empresas multinacionais.
Assim sendo, evidencia-se que a constitucionalização do direito
internacional e do direito da União Europeia desenvolvidas através de relações entre
distintos sujeitos de direito e instrumentos normativos de fontes autônomas, pode
contribuir para a prevenção, repressão e sanção de fenômenos que podem causar
impactos transnacionais, como a corrupção.

5 CONCLUSÃO

Conclui-se que a globalização promoveu a desterritorialização das


relações jurídicas e jurídico-políticas, originando, espontaneamente, novos desafios
regulatórios para a prevenção e repressão dos problemas transnacionais. Claramente,
a sobreposição entre poder político e território nacional, nos termos desenvolvidos
pelo caráter absoluto e autônomo da soberania do período de realismo das relações

65
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

internacionais, tem revelado as suas limitações em decorrência da ascensão de novos


sujeitos de direito que, com autonomia normativa, desestabilizam a transcendência
da dimensão existencial coletiva vis-à-vis a individual.
Com efeito, a corrupção tem se aproveitado desta nova dinâmica de
relações, e, igualmente, das limitações dos instrumentos normativos, processuais
e institucionais desenvolvidos para a disciplina de problemas com dimensão
territorial geograficamente limitada. Há, assim, um fenômeno que pode apresentar
alta complexidade e se desenvolver em rede de diversos sujeitos que passam a
desempenhar atividade de protagonismo na criação do direito, muitas vezes, à
margem da tradicional teoria das fontes. Mais intensamente a partir da década
de 70, a sociologia26 e a teoria geral do direito27 têm denunciado que não é real o
monopólio estatal da atividade de produção do direito.
Nesse contexto, a ascensão desorganizada de sujeitos de direito privado,
com dinâmica transnacional, permite que o impacto de suas ações seja sentido
em cadeia, em diversos países e contextos econômicos e sociais e com intensidade
diferente. Já se tem dito, a propósito, que a diplomacia entre estados e corporações
multinacionais será mais importante e decisiva para o futuro da sociedade que
aquela desenvolvida entre estados28.
Assim sendo, a constitucionalização do direito pós-nacional revela uma
tentativa de assumir alguma responsabilidade constitucional pelos problemas
transnacionais e não pressupõe a substituição do direito constitucional interno.
Vê-se, por exemplo, que o direito internacional e o direito da União Europeia,
em simetria à tradicional teoria da constituição, pretendem a construção de
uma estrutura rígida de preservação de direitos fundamentais, com controle
judicial, desenvolvimento de critérios de legitimidade, tribunais de contas, órgãos
executivos e legislativos, sempre tendo em vista a instituição de um “fórum” no
qual a participação dos estados e organizações internacionais revela a crescente
consciência da nossa interdependência.
Concretamente, o direito da União Europeia apresenta instrumentos
sólidos de combate à corrupção, com a incorporação, à sua Carta de Direitos

26 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Droit: une carte de la lecture déformée. Pour une conception
post-moderne du droit”. Droit et société, 10, 1988, p. 382.
27 NEVES, A. Castanheira. “A redução política do pensamento metodológico-jurídico”. Digesta –
Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, v. 2. Coimbra, 1995.
p. 407.
28 STRANGE, Susan. States and Markets. London: Pinter Publishers, 1994. p. 62.

66
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Fundamentais, do direito à boa governação, com estatuto de direito subjetivo


desvinculado da própria nacionalidade europeia. Igualmente, com a Oficina
Europeia de Luta contra à Fraude e seu próprio Tribunal de Contas. Por sua vez, o
direito internacional global e regional também possuem instrumentos normativos
e de soft law que disciplinam a prevenção, repressão e sanção à corrupção,
considerando a possibilidade de que os agentes nela envolvidos e as consequências
dela decorrentes possam apresentar elementos transnacionais.
Vê-se, portanto, que a transnacionalidade de certos problemas sociais
é material, não ideológica como uma disputa sobre quais direitos podem ser
universais. Para estes problemas, a criação, o desenvolvimento e o fortalecimento
de algum direito pós-nacional não parece ser uma simples opção aos nacionalismos
apertados, a menos que a não solução do problema possa também ser descrita como
uma legítima opção política.

67
REFERÊNCIAS

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STRANGE, Susan. States and Markets. London: Pinter Publishers, 1994.

UN doc.E/CN.4/L.610, 1962.

70
A perspectiva contemporânea da cidadania global

Claudia Loureiro1
Juliana Aizawa2

1 INTRODUÇÃO

A cidadania global é um verdadeiro tabu para a comunidade internacional


e para as organizações internacionais, talvez pelo receio que exista de se relativizar
a perspectiva do Estado-nação, o que é um grande equívoco, pois, tanto os Estados
como os indivíduos são sujeitos de direito que desempenham papel relevante na
construção do direito internacional contemporâneo.
Desde o fim da II Guerra Mundial, percebe-se uma preocupação
contundente da comunidade internacional com a humanização do direito
internacional, o que, naturalmente, colocou o indivíduo em posição de destaque e
antagônica ao Estado, até então sujeito de direito internacional supremo.
Com o objetivo geral de alcançar uma perspectiva além da soberania
nacional, o artigo abordará a cidadania global com o objetivo específico de analisar
como a globalização influenciou a construção desse instituto jurídico, conferindo

1 Professora Permanente do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de


Uberlândia; Professora do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia;
Estágio de Pesquisa Pós-Doutoral em Direitos Humanos concluído pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra; Estágio de Pesquisa Pós-Doutoral em Direito Internacional e Comparado
concluído pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Doutora e Mestre pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo; Membro da Nova Refugee Legal Clinic – Lisboa; Coordenadora do
Grupo de Pesquisa em Biodireito e Direitos Humanos – UFU.
2 Graduada em Direito UFMS/CPTL; Mestre em Fronteiras e Direitos Humanos UFGD; Douto-
randa em Geografia UFGD; Professora do curso de Direito da UNIGRAN Dourados, Mato Grosso
do Sul. Membro da Comissão de Direitos Humanos para Migrantes e Refugiados da OAB Subseção
Dourados.

71
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a ele uma perspectiva contemporânea através da análise do caso Djokovic, a partir


da imigração e da vacinação como medida de justiça global, para contextualizar a
necessidade de harmonização entre a soberania nacional e a soberania popular.
A relevância e a justificativa do trabalho estão relacionadas aos recentes
fatos envolvendo o tenista Djokovic que, ao se negar a receber a vacina para o
Covid-19, foi impedido de entrar na Austrália, país que exigia o comprovante de
vacinação ou justificativa médica plausível para a não vacinação, o que o impediu
de jogar um dos mais conceituados campeonatos internacionais de tênis. jogar um
dos mais conceituados campeonatos internacionais de tênis.
A postura do tenista gerou desdobramentos no contexto da cidadania
global, precisamente na necessidade de vacinação, como medida de justiça global,
bem como na vulnerabilidade dos imigrantes que se deslocam para a Austrália.
Optou-se pelo método dedutivo, pela técnica de análise de documentação
indireta e pelo procedimento de análise da doutrina, da legislação e da jurisprudência.
Assim, o trabalho pretende analisar o seguinte problema: justiça global
e a imigração são situações que demonstram que a comunidade internacional deve
viver além da soberania e da cidadania nacional, ou seja, pode-se falar em cidadania
global?
Como resultado, o artigo pretende contribuir com a seguinte reflexão: a
pandemia e o deslocamento forçado de pessoas são pilares do instituto jurídico da
cidadania global.

2 A PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA DA CIDADANIA GLOBAL

O instituto jurídico da cidadania global, tema tratado de forma


incipiente, ainda desperta muitos debates, reflexões e preocupações na comunidade
internacional, devido à sua aparente antinomia com a soberania nacional.
A cidadania é usualmente definida como uma forma de membrancia a
uma dada comunidade política e geográfica e sua percepção se desdobra em quatro
acepções: status legal; aquisição e exercício de direitos; política e outras formas de
participação na sociedade3.

3 BLOEMRAAD, I; KORTEWEG, A; YURDAKAL, G. Citizenship and immigration: multicultur-


alism, assimilation, and challenges to the nation-state. Annual Review of Sociology, v. 34, p. 153-179,
2008. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/29737786. Acesso: 8 abr. 2022.

72
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse contexto, os desafios da pandemia e da imigração provocam


a ressignificação do conceito de cidadania para a realidade contemporânea,
provocando reflexões sobre identidade nacional, soberania e controle do Estado,
além de causar impactos dentro e fora das fronteiras de um Estado, ou seja, percebe-
se que existe uma tensão entre o conceito de cidadania centrado no Estado e a
cidadania para além das fronteiras, na medida em que os indivíduos passam a ter
de desenvolver capacidades de ação no contexto global.
Nesse sentido, a cidadania, sob a perspectiva legal, diz respeito ao vínculo
jurídico-político que um indivíduo tem com determinado Estado, o que o autoriza
a exercer o controle sobre as regras relativas à cidadania, como jus soli e jus sanguinis
e naturalização, ou seja, nessa perspectiva, a cidadania está intrinsecamente
ligada à nacionalidade, o que pode gerar um problema em relação ao exercício de
direitos fundamentais, uma vez que a globalização provocou uma transformação
na compreensão da cidadania centrada no Estado, com a criação de espaços
transnacionais de capacidade de ação dos indivíduos4.
Assim, destaca-se a seguinte passagem:

The evolution of different Western definitions of citizenship


has led to a conception of citizenship that includes four
different dimensions: legal status, rights, (political)
participation, and a sense of belonging (Bloemraad 2000,
Bosniak 2000). These dimensions can complement or stand
in tension with each other.
Scholars of citizenship as legal status examine who is entitled
to hold the status of citizen. Citizenship can be based on
place of birth (jus soli) or parental origins (jus sanguinis), or
both. For residents who cannot access citizenship through
birth – as is the case with the overwhelming majority of
international migrant – citizenship must be acquired through
naturalization5.

É nesse contexto que se pode afirmar que a imigração provocou uma


mudança de paradigma na forma de se compreender o instituto da cidadania, que
deixou de ser considerado apenas sob o viés da nacionalidade, expandindo sua

4 BLOEMRAAD, I; KORTEWEG, A; YURDAKAL, G. Citizenship and immigration: multicultur-


alism, assimilation, and challenges to the nation-state. Annual Review of Sociology, v. 34, p. 153-179,
2008. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/29737786. Acesso: 8 abr. 2022.
5 Ibid., p. 155-156.

73
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

amplitude para abarcar a situação de pessoas que não se encontram mais dentro das
fronteiras de seu Estado ou que não detêm nenhuma nacionalidade.
A esse respeito, é relevante destacar que:

Much of the discussion of citizenship – as legal status, rights,


full participation, or belonging – situates research and
analysis squarely within the borders of the country within
which immigrants settle. Over the past two decades an
expansive and growing literature questions such a bounded
approach, raising normative and empirical questions
about the relevance of state borders. Is state sovereignty
undermined by new supranational institutions and global
human rights norms, and if so, is the importance of formal
citizenship decreasing for today’s immigrants? At a normative
level, should state- based citizenship be the keyway of
understanding membership and allocating rights? Should
notions of belonging be exclusively tied to a single state, or
can they be promoted across state boundaries so that people
can live cosmopolitan or transnational lives? If individuals
increasingly see their lives and attachments spanning political
borders, how will this affect political participation and social
cohesion, topics so central to certain “within borders” debates
about immigrant citizenship? In this section we consider
citizenship as transcending the nation-state, in scholarship
on cosmopolitanism and post nationalism, and citizenship
as spanning multiple nation-states, in scholarship on
transnationalism and dual citizenship6.

Além disso, a pandemia, com a necessidade de vacinação, como medida


de justiça global, também contribuiu para essa mudança de perspectiva, com a
necessidade de adotar políticas e posturas em prol de todos, o que faz com que o
indivíduo tenha de agir no contexto supranacional de acordo com os interesses da
coletividade.
Assim, a cidadania global desencadeia a necessidade de desnacionalização
dos direitos humanos, que devem ser exercidos independentemente do vínculo
jurídico-político que um indivíduo detém com determinado Estado, nos casos que

6 BLOEMRAAD, I; KORTEWEG, A; YURDAKAL, G. Citizenship and immigration: multicultur-


alism, assimilation, and challenges to the nation-state. Annual Review of Sociology, v. 34, p. 153-179,
2008. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/29737786. Acesso: 8 abr. 2022. p. 164.

74
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

envolvem imigração, a apatridia e a necessidade de se promover a justiça global. A


desnacionalização dos direitos humanos, portanto, desloca a percepção dos direitos
humanos do Estado para a dignidade da pessoa humana, consagrando, assim, o
princípio da dignidade humana.
Logo, o cidadão passa a exercer seus direitos fundamentais no
âmbito do Estado, de acordo com a sua nacionalidade, mas também no âmbito
internacional, em outros níveis organizacionais e dentro de outras esferas de
ação, que foram construídas com a globalização. Assim, o cidadão conserva a sua
noção de pertencimento a determinado Estado, mas adquire uma nova noção de
pertencimento à comunidade global.
É nesse sentido que Habermas7 anuncia a construção de novas capacidades
de ação no âmbito supranacional diante de instituições de caráter democrático, nos
moldes da democracia cosmopolita, no sentido da imposição global de direitos
iguais para todos, a fim de que haja a incorporação institucional dos direitos na
comunidade nacional, o que também gerará um desdobramento no contexto da
soberania nacional e da soberania popular.
A esse respeito, Ferrajoli8 afirma que os significados de cidadania e de
soberania têm sido postos em discussão por conta da crise do Estado-nação, o
que não significa que novos tipos de soberania e de cidadania devam ser criados,
propondo uma mudança de paradigma no direito internacional e na estrutura dos
direitos dos Estados.
É nesse sentido que se destaca a seguinte passagem:

Los significados tradicionales de soberania y cidadania han


sido puestos in questión por la crisis total del estado nación
al que ambos estan ligados: el primero, em tanto designa
la completa independência del estado de vínculos jurídicos
internos y externos; el segundo, em tanto representa el status
subjetivo de pertinência a uma comunidade política dada. La
tessis que desenrrollaré aqui es que los câmbios associados com
estas crisis no puedem interpretarse como el advenimiento de

7 HABERMAS, Jurgen. Sobre a Constituição da Europa. Trad. Denilson Luis Werle, Luis Repa e
Rúrion Melo. São Paulo: Unesp, 2012.
8 FERRAJOLI, Luigi. Más allá de la soberania y ciudadanía: um constitucionalismo global. Isono-
mia – Revista de Teoria y Filosofia del Derecho, n. 9, p. 173-184, oct. 1998. Disponível em: https://bit.
ly/3O54yTc. Acesso em: 20 abr. 2020.

75
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nuevos tipos de soberanya e cidadania. Más bien, han supuesto


um cambio de paradigma em el derecho internacional y em
la estrutura de los derechos de los estados. Este cambio há
trastocado las viejas categorias de la visión estadoçéntrica
del derecho, dando lugar a profundas antinomias entre las
nociones tradicionales de soberania y cidadania por um lado
y constitucionalismo y derechos humanos por outro9.

Assim, referida mudança de paradigma transforma as velhas categorias da


visão estatocêntrica de um direito internacional baseado nas relações bilaterais entre
os Estados soberanos para uma ordem jurídica de caráter nacional ou supraestatal10.
Nesse sentido, todo ser humano é sujeito de direito internacional e, assim,
cidadão de um Estado e da comunidade internacional, seja ela regional ou global,
o que exige a superação do ideal da cidadania centrada no Estado, promovendo-se
a desnacionalização dos direitos humanos.
Nesse contexto, a imigração e a obrigatoriedade da vacina do Covid-19
para o enfrentamento da pandemia merecem ser estudados como situações que
promovem a perspectiva contemporânea da cidadania global, uma vez que trazem
à tona a capacidade de ação dos indivíduos no contexto global, o que será abordado
na seção seguinte.

3 A VULNERABILIDADE DOS IMIGRANTES, JUSTIÇA GLOBAL E O


CASO DJOKOVIC

Em meados de janeiro de 2022, Djokovic foi deportado da Austrália


para o seu país de origem após a Austrália ter rejeitado o recurso do tenista para
continuar no país, por não ter apresentado o comprovante de vacinação contra o
Covid-19 ou uma declaração médica válida11.
A postura antivacina do tenista o impediu de jogar um dos principais
campeonatos internacionais, mas, para além dessas questões, o caso provocou
diversos questionamentos sobre imigração, justiça global e cidadania global.

9 FERRAJOLI, Luigi. Más allá de la soberania y ciudadanía: um constitucionalismo global. Isono-


mia – Revista de Teoria y Filosofia del Derecho, n. 9, p. 173-184, oct. 1998. Disponível em: https://bit.
ly/3O54yTc. Acesso em: 20 abr. 2020. p. 173.
10 Ibid.,
11 CF. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59993397. Acesso: 8 abr.
2022.

76
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Além disso, os fatos também demonstraram que os cidadãos necessitam atuar no


ambiente global de acordo com os interesses da coletividade e, assim, a cidadania
global passou a ser a protagonista desse caso que culminou com a deportação do
tenista para o seu país de origem.
Enquanto Djokovic aguardava o resultado de seu recurso, ele foi
encaminhado para um abrigo de imigrantes na Austrália, o que revelou a realidade
sobre o acolhimento de imigrantes naquele país. Ademais, a Austrália tem um
considerável histórico de acolhimento dos imigrantes, considerando-se o fato de
estar inserida no contexto de investigações perante o Tribunal Penal Internacional
pelos centros de detenção de Nauru e Manus.
Para evitar que os imigrantes adentrem ao território australiano, a
Austrália mantém os centros de detenção nas ilhas mencionadas, onde os imigrantes
vivem em péssimas condições sanitárias, sob trabalho escravo e abusos sexuais, o
que chamou a atenção da comunidade internacional, fazendo com que o caso
chegasse ao Tribunal Penal Internacional12.
A postura da comunidade internacional em relação aos imigrantes do Sul
Global tem propagado a ideia da intolerância, inerente à imigração13, situação que
deveria ser conduzida pela perspectiva transcultural, com a construção de visões
alternativas a respeito do acolhimento dos imigrantes, mas não é o que acontece.
No mesmo sentido, Bauman14 retratou o pânico contra os imigrantes do
Sul Global, que são considerados como uma ameaça pela comunidade internacional,
o que os transforma em pessoas redundantes, em estranhos que batem às portas do
Norte Global.
Assim, os imigrantes se tornam vulneráveis diante da intolerância dos
Estados que protagonizam o ideal estatocêntrico ao considerar os imigrantes como
não nacionais e, portanto, não titulares dos direitos fundamentais e humanos
inerentes à condição humana, o que dá ensejo à desumanização15, diante da
desconsideração da cidadania em sua perspectiva global.

12 CF. Disponível em: https://www-cdn.law.stanford.edu/wp-content/uploads/2017/02/Communi-


qué-to-Office-Prosecutor-IntlCrimCt-Art15RomeStat-14Feb2017.pdf. Acesso: 8 abr. 2022.
13 ECO, Umberto. Migração e intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020.
14 BAUMAN, Zygmund. Estranos à nossa parte. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Zahar, 2017.
15 SMITH, David. L. Less than human. New York: St. Martin’s Griffin, 1953.

77
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No mesmo sentido, a vacinação, como medida de justiça global, contribui


para a consolidação do ideal do cidadão global, que passa a ter de atuar no ambiente
global, não somente como um detentor de direitos universais, mas também como
sujeito de deveres perante os demais cidadãos. Do mesmo modo, os cidadãos
globais têm o direito de não compartilhar do convívio dos que não conservam os
ideais de solidariedade global.
Assim, o acolhimento dos imigrantes e a vacinação contra o Covid-19
são posturas condizentes com o exercício da cidadania global que se destinam a
consolidar a justiça global. Por isso, a cidadania pode ser compreendida para além
do vínculo jurídico-político que um indivíduo mantém com determinado Estado,
uma vez que este também pertence à comunidade internacional.
A pandemia e a imigração são riscos produzidos pela vertente da
globalização dos riscos, delineada por Ulrich Beck16 como consequência da passagem
da sociedade industrial para a sociedade de risco. Nesse contexto, é comum que os
países ricos transfiram os riscos da globalização para a parte periférica do globo,
resguardando para si os lucros e os benefícios.
Essa realidade pacificada na comunidade internacional foi questionada
pela pandemia e tem sido colocada à prova pelos fluxos de deslocamentos forçados
que se verifica no mundo atualmente. Assim, a influência da globalização para a
construção do instituto da cidadania global, será analisada a seguir.

4 A CIDADANIA GLOBAL COMO CONSEQUÊNCIA DA


GLOBALIZAÇÃO

Uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar;


quando deixavam seu Estado, tornavam-se apátridas; quando
perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos:
eram refugo da terra17.

16 BECK, Ulrich Critical theory of world risk society: a cosmopolitan vision. Constellations, v. 16,
n. 1, p. 3-22, 2009. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228042862_Critical_
Theory_of_World_Risk_Society_A_Cosmopolitan_Vision. Acesso: 8 abr. 2022.
17 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012. p. 369.

78
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A cidadania global tem intrínseca relação com a globalização, que


provoca a revisitação dos conceitos de soberania e cidadania, o que será discutido
nesse capítulo.
Para Ulrich Beck18, a globalização denota o processo através do qual a
soberania nacional dos Estados se transforma em transnacionalidade, uma vez que
as relações entre os Estados ultrapassam as fronteiras. Por sua vez, Giddens19 afirma
que a noção de risco é inerente à modernidade, tanto no aspecto natural como
no sentido do risco fabricado pelo homem e, assim, risco é uma ideia inerente à
globalização.
Nesse contexto afirma-se que:

In questions of social inequality in the world risk society,


the issue is not how the risks are allocated but, rather, what
risks actually are or, more precisely, what they are for whom
– opportunities to be seized or threats imposed by others –
but, above all, who has the power to divert the hazardousness
of the risks they incur onto others. This is the structural
conflict built into the communicative logic of risk. There is
no ontology of risk. Risks do not exist independently, like
things. Risks are risk conflicts in which there is a world of
difference between the decision makers who could ultimately
avoid the risks and the involuntary consumers of dangers
who do not have a say in these decisions and onto whom
the dangers are shifted as “unintentional, unseen side effects.”
Risks disintegrate systematically into these antagonistic,
perhaps even incommensurable worlds: those who run risks
and define them versus those to whom they are allocated20.

É no mesmo contexto das ideias anunciadas pelos autores que se pode


afirmar que a substituição da sociedade industrial pela sociedade de risco gerou uma

18 BECK, Ulrich Critical theory of world risk society: a cosmopolitan vision. Constellations, v. 16,
n. 1, p. 3-22, 2009. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228042862_Criti-
cal_Theory_of_World_Risk_Society_A_Cosmopolitan_Vision. Acesso: 8 abr. 2022.
19 GIDDENS, Anthony. Risk and responsibility. The Modern Law Review, v. 62, n. 1, p. 1-10,
jan/1999. Disponível em: https://bit.ly/3NWv6G9v. Acesso em: 8 abr. 2022.
20 BECK, Ulrich Critical theory of world risk society: a cosmopolitan vision. Constellations, v. 16,
n. 1, p. 3-22, 2009. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228042862_Critical_
Theory_of_World_Risk_Society_A_Cosmopolitan_Vision. Acesso: 8 abr. 2022. p. 8

79
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dicotomia entre países ricos e países pobres, países centrais e periféricos, inserindo
em situações de subalternidade aqueles que suportam as consequências das decisões
em face daqueles que tomam as decisões, o que fez com que o risco se expandisse
para o horizonte global, onde as fronteiras e os limites se tornam frágeis e porosos,
fazendo com que a justiça global seja uma emergência.
Assim, a pandemia e a colonialidade21 dos deslocamentos forçados
revelaram a existência de uma comunidade universal de cidadãos do mundo, com a
existência de unidades políticas organizadas através das organizações internacionais
e não governamentais, bem como por meio dos mecanismos de ação como
peticionamento individual e comitês dos tratados internacionais, entre outros.
A conceituação clássica de Estado-nação pode ser entendida, portanto,
como a centralização do poder político de um Estado territorialmente soberano,
socialmente representado pela “nação” que é composta por cidadãos com exercício
de direitos políticos ativos, quais sejam, capacidade de votarem e serem votados;
elegendo democraticamente seus representantes22.
A respeito, Rafestin assevera que: “É verdade que não vemos o Estado,
mas é também verdade que o Estado se mostra em todas as formas de manifestações
espaciais, da capital à fronteira, passando pelas malhas interiores hierarquizadas e
pelas redes de circulação”23.
Tal conceituação se tornou preponderante após as mazelas oriundas do
fim da II Guerra Mundial e o crescente período de interdependência de países ao
sul global, que ainda eram colônias dos países do norte global, especialmente, os
Estados Africanos que tiveram um número expressivo de países decolonizados após
1956.
A gestão financeira imatura, falta de permeabilidade de produtos postos
em mercado e habilidades restritas com as negociações internacionais trouxeram
aos “novos” Estados-nação o desafio em gerir seus territórios soberanos e assegurar a
tutela de direitos básicos aos nacionais. A soma dessas circunstâncias e o despreparo
das autoridades políticas, enfatiza “uma das características mais lamentáveis da época

21 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do sa-


ber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
Disponível em: https://bit.ly/3jrJmbC. Acesso: 19 out. 2021.
22 MARTIN, André Roberto. Fronteira e Nações. São Paulo: Contexto, 1992.; CANOTILHO, J.J.
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2010.
23 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993. p. 16.

80
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

[mundo contemporâneo] é ter gerado mais refugiados, imigrantes, deslocados e


exilados do que qualquer outro período da história”24.
A construção de uma nova identidade nacional, seguindo o signo da
decolonização, e como imigrantes fazem ou não para pertencerem a essa identidade,
não condiciona pessoas deslocadas territorialmente a indigência em “direitos a ter
direitos” somente por não pertencerem a uma determinada comunidade.
As desigualdades estruturais sedimentadas na sociedade global,
condicionam a vulnerabilidade econômica dos Estados principalmente no
hemisfério sul, desencadeando a escolha em migrar: “migra-se em busca de um
mundo melhor, mas não de um mundo perfeito”25.
As mudanças que emergiram a partir do século XX proporcionaram
novas condições técnicas e bases sólidas para ações humanas mundializadas26. No
entanto, tal avanço veio carreado com uma separação letal entre poder e política:

[...] em especial se for um Estado democrático, cuja


Constituição prometeu aos cidadãos deixá-los tomar parte
nas decisões comuns, que agora são tomadas por órgãos
não democraticamente designados nem controlados a partir
de baixo. A tragédia do Estado moderno reside em sua
incapacidade de implementar no âmbito global decisões
tomadas localmente27.

No mundo moderno, contemporâneo, “globalizado”, a circulação de


mercadorias, bens, empresas e capitais é desejada, mas as pessoas que, por vezes,
forçosamente se deslocam buscando chances mínimas de sobrevivência, a iniciar
pelo trabalho, são desprezadas.

24 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 406.
25 MARINUCCI, Roberto; MILESI, Rosita. Migrantes e Refugiados: Por uma Cidadania Universal.
In: IMDH (org.). Refúgio, Migrações e Cidadania. Brasília: Acnur, 2006. p. 53-80. Disponível em:
https://bit.ly/3gO1g72. Acesso em: 3 fev. 2022. p. 33.
26 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. 19.
ed. Rio de Janeiro: Record LTDA, 2010.
27 BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. p. 42.

81
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Neste sentido, Cançado Trindade28 contribui ao descrever o caráter dual


da globalização, cuja acepção se faz “em relação ao capital, inclusive o puramente
especulativo, o mundo se “globalizou”; em relação aos seres humanos, inclusive os
que tentam escapar de graves e iminentes ameaças a sua própria vida, o mundo se
atomizou em unidades soberanas”.
A função de controle e alta securitização das fronteiras contrafluxos
migratórios é uma alternativa recorrente. A amortização de barreiras tarifárias e
sanitárias fomentando o capital especulativo se expandiu de forma irrestrita dos
limites territoriais de cada soberania, principalmente nos países designados como
periféricos.
A crise quanto ao controle do Estado consiste no conjunto de [in]
certezas que foram provocadas com a abertura internacional das fronteiras, através
do intercâmbio cultural que não está atrelado as localidades e as linhas soberanas
pontilhadas, mas à rapidez da informação do âmbito mundial para local, recebendo
sugestões e comentários emergidos de qualquer lugar do planeta29.
Em um planeta conectado por redes de informações globais, cujas
fronteiras foram abertas involuntariamente, a “segurança” não pode ser garantida
de maneira confiável, muito menos ser assegurada por um país ou um conjunto
regional de países – “não por seus meios próprios e não independentemente do
estado das coisas no resto do mundo”30.
A nação restou incólume enquanto sua minoria mantinha-se em guetos,
campos para refugiados ou abrigos. Porém, quando os(as) imigrantes passam a serem
vistos como pessoas habilitadas para exigir o reconhecimento de sua “diversidade”,
de maneira isonômica, a unidade nacional começa a ruir31. Não porque sejam frutos
do contemporâneo, mas por resultarem de uma construção jurídica epistemológica
unitária de um mundo plural.

28 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Elementos para un enfoque de derechos humanos del fe-
nómeno de los flujos migratorios forzados. Guatemala: Oim, 2001. Disponível em: https://biblioteca.
corteidh.or.cr/tablas/13417.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022. p. 15.
29 BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
30 BAUMAN, Zygmund. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,
2008. p. 127.
31 BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. p. 41.

82
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A democracia e a liberdade não podem mais ser garantidas


num só país ou mesmo num só grupo de países. Sua defesa
em um mundo saturado de injustiça e habitado por bilhões
de seres humanos aos quais se negou a dignidade acabará
inevitavelmente corrompendo os próprios valores que
pretende proteger. O futuro da democracia e da liberdade tem
de ser assegurado em escala planetária – ou não será32.

No abismo de incertezas pela agilidade da conectividade global,


Boaventura de Souza Santos faz uma análise acurada dos expulsos globais –
imigrantes, mencionando o regresso do colonizado ao colonizador, alocados em
guetos e periferias metropolitanas, mas claramente reportando a transformação do
signo colonial33.
A repulsa da “nação” pelo medo e/ou insegurança dos expulsos globais,
desesperadamente, pressiona seus chefes de Estado que por despreparo ou falta de
habilidade recorrem a discursos de alteridade, chauvinismo, racismo e xenofobia;
na tentativa de estigmatizar nas localidades a mensagem global34. Segregando
humanos e não-humanos, os que pertencem a alguma comunidade e os que não
cabem em nenhuma comunidade.
A patologia global – Covid-19 mostrou em maior ou menor escala a qual
espécie pertencemos, entre soberanias e cidadanias que se cruzam em segundo ou
em linhas pontilhadas, independentemente do rótulo de imigrantes, estes devem,
por questão de perpetuação da espécie humana, serem vistos como pessoas.
A visibilidade de gentes que ultrapassam as linhas pontilhadas vem se
ventilando com movimentos epistêmicos, que a época do Tratado de Westfália,
cerne do Estado-nação, não estavam contextualizados. Isso porque a pluralidade de
sujeitos, culturas e identidades, fundadas em movimentos decoloniais, através da
informatização da globalização, conclama com maior tenacidade em soberanias e
assembleias globais a visibilidade das formas do ser humano.
Observa-se que os “novos” direitos humanos não negam a soberania dos
Estados, mas buscam a garantia da vida humana além do capital. No entanto,

32 BAUMAN, Zygmund. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,
2008. p.166.
33 SANTOS, Boaventura S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: B. S. SANTOS; M. P. MENESES (orgs.), Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, p.
23-72, 2009. Disponível em: https://bit.ly/3717L5z. Acesso em: 16 fev. 2021.
34 Ibid.

83
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

o Estado continua esgotando os recursos naturais, impondo barreiras tarifárias,


provocando o deslocando de milhões de pessoas. Nesse sentido, “muitos cidadãos
e a biosfera são usados e abusados sem consideração alguma por sua saúde ou
prosperidade35.
É importante lembrar que o marco do Direito Moderno foi a Declaração
Universal de Direitos Humanos em 1948, firmada pela principal necessidade em
tutelar pessoas, deslocados territoriais, imigrantes, gentes. A nova ordem econômica
mundial não pode perpetrar a relativização dos Direitos para Humanos, entre
merecedores e não merecedores de tais garantias.
O caso do tenista Djokovic demonstra a premente necessidade que os
cidadãos do mundo globalizado têm de mecanismos mínimos para a perpetuação
da vida comunal, a iniciar pela saúde. Sem integridade física humana e bem-estar
coletivo, inexiste Estado e/ou qualquer forma de produzir e mover capital.
A pandemia e a necessidade em se promover a saúde em nível global
lecionam que não basta uma lei branda (soft law) para a promoção da justiça global
sem justiça cognitiva global36. Assim, percebe-se que a cidadania global está imbuída
de um significado que busca romper o abismo entre Velho e Novo Mundo, dignos
e indignos, mas também visa manter a essência humana.

5 CONCLUSÃO

O caso estudado no artigo possibilitou a compreensão de que a cidadania


global é uma realidade na nova ordem global, marcada pelos traços das relações
transnacionais e por mecanismos de ação supranacionais.
A cidadania global, ao inserir o indivíduo como sujeito de direito global,
consolida a personalidade internacional, o que o torna sujeito de direitos e deveres
perante a comunidade internacional. É por essa razão que, ao mesmo tempo em
que os imigrantes têm o direito ao acolhimento nos países de destino, também
devem se comportar de acordo com as regras de convivência perante a comunidade
internacional, o que, com a pandemia, tornou a vacinação obrigatória, como
medida de justiça global.

35 SASSEN, Saskia. Expulsões: Brutalidade e complexidade na economia global. Trad. Angélica Frei-
tas. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2016. p. 245.
36 SANTOS, Boaventura S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: B. S. SANTOS; M. P. MENESES (orgs.), Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, p.
23-72, 2009. Disponível em: https://bit.ly/3717L5z. Acesso em: 16 fev. 2021.

84
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A aparente dicotomia entre cidadania global e soberania nacional precisa


encontrar seu ideal conformador para que os direitos humanos possam ser exercidos
além das fronteiras e concebidos pelo ideal da desnacionalização, uma vez que o
indivíduo é cidadão do Estado e da comunidade global, ao mesmo tempo.
A imigração proveniente do Sul Global é consequência da sociedade de
risco e, de acordo com o princípio da justiça global, o risco precisa ser compartilhado
de maneira solidária pela comunidade internacional. Por outro lado, a necessidade de
se erradicar o coronavírus fez com que os indivíduos se transformassem em cidadãos
globais, devendo agir em cooperação e em solidariedade para o enfrentamento da
pandemia.
Evidencia-se, assim, a necessidade de harmonização e de ressignificação
dos institutos jurídicos da soberania estatal e da cidadania, a fim de que possam ser
concretizados no contexto da nova ordem global.
A cidadania global, em sua perspectiva contemporânea, revela-se a partir
da necessidade de se desnacionalizar os direitos humanos dos imigrantes, bem
como pelas obrigações impostas aos cidadãos globais de agirem em consonância
com a perspectiva da solidariedade global.

85
REFERÊNCIAS

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Companhia das Letras, 2012.

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88
Aborto sob a perspectiva do Direito Internacional dos Direitos
Humanos: avanços e desafios para o Brasil

Daniela Bucci1

1 INTRODUÇÃO

As questões envolvendo o aborto no Brasil estão sob os holofotes,


especialmente em razão da possível mudança de rumo da liberação do aborto nos
Estados Unidos.
A histórica decisão da Suprema Corte americana da década de 70, em
Roe v. Wade, até hoje balisa a garantia dos direitos das mulheres nos Estados Unidos
e serve de inspiração não apenas no próprio solo norte-americano, mas em todo
o mundo. E os padrões estabelecidos nesta decisão encontram-se ameaçados,
colocando-se em xeque a questão. A Suprema Corte americana deve revisitar a
questão ao decidir o caso Dobbs v. Jackson Women’s Health, em que analisar-se-á
uma lei do Mississippi que proíbe abortos após 15 semanas2.
De acordo com alguns críticos, as recentes omissões por parte da Suprema
Corte, deixando de analisar uma lei do Texas de 2021 que proíbe o aborto após seis
semanas de gestação, encorajaram a criação de leis parecidas em outros estados, que,
inter alia, vinculam a proibição do aborto à constatação do “batimento cardíaco do
feto” e incentivam a denúncia por particulares contra médicos e clínicas que fazem

1 Doutora e mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP). Coord. Observatório de Direitos Humanos do Grande ABC (ODHUSCS) da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul/SP (USCS). Pesquisadora NETI/USP, coordenando o subgru-
po das Cortes Internacionais de Direitos Humanos. CV: http://lattes.cnpq.br/0786892225874329.
E-mail: daniela.bucci.db@gmail.com.
2 Assim como os estados do Arizona, Florida e Kentucky. Disponível em: https://www.guttmacher.
org/state-policy. Acesso em: 10 abr. 2022.

89
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aborto após essas seis semanas, como é o caso de uma recente lei de Idaho neste
sentido3.
Neste momento, centenas de projetos de lei a favor e contra o aborto
estão sendo apresentados pelos legisladores em diversos estados americanos. Além
disso, muitos estados não revogaram leis que criminalizavam o aborto anteriores
ao caso Roe v. Wade, de modo que, dependendo da decisão da Suprema Corte
em Dobbs v. Jackson, passarão a voltar a valer nos estados em que tinham sido
promulgadas, constituindo as chamadas “proibições de gatilho”, disparadas tão
logo a Suprema Corte mude sua postura a respeito do tema. Por outro lado, alguns
estados, antecipando-se à decisão de Dobbs v. Jackson, criaram leis para garantir o
aborto, como fez Washington4, por exemplo.
A recente liberação do aborto em outros países das Américas, como, por
exemplo, a Argentina, em 2020, o México, em 2021, e a Colômbia, em 2022,
comprova a necessidade de um amplo debate sobre o tema, e que a questão não está
pacificada no continente, assim como também não está no Brasil, considerado um
dos países mais restritivos ao aborto.
Pretende-se analisar com este artigo os parâmetros fornecidos pelas cortes
internacionais de direitos humanos à luz das normas internacionais de proteção
dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher no que dizem respeito ao aborto.
Em seguida, analisar como as questões levantadas podem impactar a proteção dos
direitos da mulher no Brasil, tendo-se como referência o caso da ADPF 442, em
trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF).
O método utilizado é empírico qualitativo por dedução, com base no
estudo da legislação e jurisprudência dos tribunais nacionais e cortes internacionais
de direitos humanos, a partir do estudo de teorias relevantes e análise descritiva e
crítica da realidade brasileira sobre o aborto no Brasil.

2 CASO ROE v. WADE X CASO DOBBS v. JACKSON

O recente furor sobre o debate a respeito do aborto nas Américas versa


especialmente sobre a possível mudança de posicionamento a respeito da liberação

3 Temporariamente suspensa pela Suprema Corte de Idaho. Disponível em: https://www.guttmacher.


org/state-policy. Acesso em: 10 abr. 2022. Disponível em: https://legislature.idaho.gov/wp-content/
uploads/sessioninfo/2021/legislation/H0366.pdf. Acesso em: 10 abr. 2022.
4 Disponível em: https://lawfilesext.leg.wa.gov/biennium/2021-22/Pdf/Bills/House%20Passed%20
Legislature/1009.PL.pdf?q=20210702092423. Acesso em: 10 abr. 2022.

90
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

do aborto pela Suprema Corte americana, nos Estados Unidos, inserida no contexto
do recente movimento contrário capitaneado por outros países da região, como
Argentina, México e Colômbia.
O histórico caso Roe v. Wade5 e seu sucessor, o também famoso caso
Planned Parenthood v. Casey6 foram essenciais para permitir o aborto até a viabilidade
fetal, que pode ocorrer por volta da 23ª/24ª semanas de gestação, mesmo critério
adotado pela Colômbia ao descriminalizar o aborto até a 24ª semana7.
No caso Roe v. Wade, a Suprema Corte Americana, com base no direito
à privacidade, ponderou a proteção da saúde da mulher e a proteção da vida
humana em potencial, protegendo-se gradualmente o feto. Com a definição de
“viabilidade”, Roe v. Wade considerou a potencialidade do feto de viver fora do
útero materno, ainda que com ajuda artificial, de modo que havendo viabilidade,
haveria igualmente um dever do estado de proteger essa vida. Assim, a partir do
terceiro trimestre da gravidez, os estados poderiam, a partir daí, proibir a prática do
aborto absolutamente.
Substancialmente, com fundamento na 9ª Emenda, a Suprema Corte
Americana entendeu que a lei texana que proibia o aborto era inconstitucional, pois
violara o direito à privacidade da mulher. Até o final do primeiro trimestre, o estado
não poderia interferir na decisão da mulher, tendo em vista a inviabilidade do feto
de viver fora do útero, de modo que os estados não poderia criminalizar a prática do
aborto até então. A partir do 2º trimestre de gestação, os estados poderiam legislar
para proteger a vida da mãe. Uma vez verificada a viabilidade extrauterina do feto,
o estado teria o dever de protegê-la, proibindo a prática do aborto.
Situação semelhante ao caso paradigmático, o caso Dobbs v. Jackson
Women’s Health analisa uma lei do Mississippi, criada em dezembro de 2021, que
proíbe abortos após 15 semanas.

5 EUA. Suprema Corte Americana. Case 410 US 113, de 1973.


6 EUA. Suprema Corte Americana. Case 05 U.S. 833, de 1992.
7 A sentença C-055-22, de 21 de fevereiro de 2021, proferida pela Corte Constitucional Colombia-
na, autorizou o aborto até a 24ª semana, podendo ainda ser realizado o aborto em três situações: i)
quando a continuidade da gestação colocar em risco a vida ou saúde da mulher, desde que atestado
por um médico; ii) má-formação grave do feto que cause sua inviabilidade de vida, igualmente ates-
tada por um médico e iii) em caso de relação sexual e inseminação artificial não consentidas e incesto.
Disponível em: https://oig.cepal.org/sites/default/files/2022_sentenciac05522_col.pdf. Acesso em:
29 mar. 2022.

91
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A relevância desse caso está no fato de que cerca de 54 a 63 mil abortos


ocorrem por ano por volta da 15ª semana ou depois nos Estados Unidos8, de
modo que a proibição do aborto nesse período atingiria um número expressivo de
mulheres.

3 PROTEÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NA


PERSPECTIVA DAS CORTES INTERNACIONAIS DE DIREITOS
HUMANOS

Destacaremos as principais normas internacionais e suas respectivas


interpretações, fornecidas pelas cortes internacionais de direitos humanos,
notadamente a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

3.1 ARCABOUÇO NORMATIVO INTERNACIONAL

Diversos textos normativos internacionais protegem os direitos sexuais e


reprodutivos da mulher, bem como, o direito à vida.
No âmbito onusiano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) de 1948, por exemplo, garante o direito à vida e o mínimo existencial a
todos, nos termos de seu artigo III9. No mesmo sentido, o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional Relativo aos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) também versaram sobre o direito à
vida, e protegem o ser humano contra a privação arbitrária da vida, e defendem
qualidade e condições mínimas de vida do indivíduo, com o objetivo de alcançar
“melhoria contínua” da vida humana em geral, tendo em vista o reconhecimento de

8 Correspondendo a 6-7% de todos os abortos praticados no país. JONES, Rachel K.; WITWER,
Elizabeth; JERMAN, Jenna. Abortion Incidence and Service Availability in the United States, 2017.
Disponível em: https://www.guttmacher.org/report/abortion-incidence-service-availability-us-2017.
Acesso em: 10 abr. 2022; Infográfico disponível em: https://www.guttmacher.org/infographic/2021/
estimated-54000-63000-us-abortions-year-occur-15-weeks-pregnancy. Acesso em: 10 abr. 2022.
9 Estabelece o artigo III da DUDH in verbis: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e
à segurança pessoal”. Disponível em: http://unicrio.org.br/img/DeclUDHumanosVersoInternet.pdf.
Acesso em: 10 abr. 2022.

92
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

que tais direitos “derivam da dignidade inerente à pessoa humana”10, exigindo que
os estados assegurem a concretização deste direito11.
Especificamente, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) reconhece o direito à igualdade
entre homens e mulheres e o princípio da não discriminação contra as mulheres,
determinando que os estados estabeleçam medidas que atinjam esses objetivos,
inclusive no que diz respeito à saúde das mulheres, conforme dispõe o artigo 12 do
documento12.
Na mesma linha, a proteção da vida encontra guarida nos sistemas
internacionais e regionais de proteção, como se depreende da leitura da Convenção
Europeia de Direitos Humanos (CEDH), em seu artigo 2º, e do artigo 4º da
Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)13. No âmbito da CADH,
está garantido o direito à vida, “em geral, desde a concepção”14.
Apesar da regulamentação internacional existente, a CADH não traz
claramente um “rol de exceções ao direito à vida, deixando, ainda, a critério dos
estados e de seus intérpretes estabelecerem as restrições do direito à vida”15. Por essa
razão, é mister buscar os parâmetros interpretativos sobre o tema no âmbito das
cortes regionais internacionais de proteção dos direitos humanos16.

10 BUCCI, Daniela. In Vitro Veritas: A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre
fecundação in vitro e possíveis consequências para a descriminalização do aborto. Boletim da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, v. 108, p. 95-120, 2020, p. 106. Disponível em: https://drive.goo-
gle.com/file/d/1n0hoq4idC2CUCoEIzEXFSkP7m0T-vg-7/view. Acesso em: 9 abr. 2022. p. 54-55.
11 PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direitos Humanos e Desenvolvimento: A Contribuição das Na-
ções Unidas. PERRONE-MOISÉS, Cláudia. (org.); AMARAL JUNIOR, A. (org.). O Cinqüentená-
rio da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 180.
12 CIDH. Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o Acesso à Serviços de Saúde
Materna na Perspectiva de Direitos Humanos, § 84.
13 Disponível em: http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm. Aces-
so em: 10 abr. 2022.
14 Ibid.,
15 BUCCI, Daniela. Dimensões jurídicas da proteção da vida e o aborto do feto anencéfalo. 1. ed. Curi-
tiba: Clássica, 2014. v. 1. p. 58.
16 Sobre o assunto ler: CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos:
análise dos sistemas de apuração de violações dos direitos humanos e a implementação das decisões
no Brasil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015; MENEZES, Wagner. Tribunais internacionais: jurisdição e
competência. São Paulo: Saraiva, 2013.

93
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3.2 O ABORTO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS


HUMANOS

Como tratado no ponto anterior, cabe, principalmente, aos intérpretes


judiciais buscar o sentido e o alcance das normas.
No Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
sobre o Acesso à Serviços de Saúde Materna na Perspectiva de Direitos Humanos17,
de 2010, foi reconhecido que o aborto é um “problema muito sério” relacionado
não apenas à saúde da mulher, mas à sua privacidade e integridade18. A CIDH
também chama a atenção para a falta de dados sobre saúde e saúde reprodutiva,
e ressalta que há dificuldades significativas com relação ao acesso à informação e
atendimentos médico e social19. Conforme a CIDH, a situação da mortalidade
materna “reflete o nível de pobreza e exclusão” das mulheres na região20. A CIDH
assevera que a existência de estereótipos de gênero impacta a proteção da saúde
sexual e reprodutiva da mulher, especialmente no tocante às escolhas sobre seu
próprio corpo21.
Em 2019, a CIDH afirmou que as leis que criminalizam o aborto
absolutamente possuem um “impacto negativo sobre os direitos à vida, à
integridade pessoal, à saúde e os direitos das mulheres de viverem livres de violência
e discriminação em casos de risco à saúde, inviabilidade do feto e em gestações
decorrentes de violência sexual ou incesto”22.

17 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Comissão Interamericana de Di-


reitos Humanos (CIDH). Relatório sobre Acceso a servicios de salud materna desde una perspectiva de
derechos humanos – Access to maternal health services from a human rights perspective. OEA/Ser.L/V/
II. Doc. 69 7 junio 2010. Disponível em: http://cidh.org/women/saludmaterna10sp/SaludMater-
na2010.pdf. Acesso em: 10 abr. 2022.
18 Ibid., § 42.
19 Ibid., § 41.
20 Ibid., § 42.
21 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos (CIDH). Principales estándares y recomendaciones en materia de violencia y discrimi-
nación contra mujeres, niñas y adolescentes. Violencia y discriminación contra mujeres, niñas y adoles-
centes: Buenas prácticas y desafíos en América Latina y en el Caribe. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 233 14
noviembre 2019. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/80.81sp/estadosunidos2141.
htm. Acesso em: 8 abr. 2022. § 34.
22 Ibid., § 201.

94
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A CIDH considera que uma disposição desta natureza favorece abortos


inseguros e consequentemente o aumento do número de mortes de mulheres e
sequelas, além de estar em desacordo com as obrigações internacionais assumidas
pelos estados de “respeitarem, protegerem e garantirem os direitos das mulheres
à vida, saúde e integridade”, uma vez que inexistindo “opções legais, seguras e
oportunas” as mulheres acabam se sujeitando à clandestinidade ou são forçadas a
continuar com a gestação, violando a sua integridade física e psíquica23, como ocorre,
por exemplo, em El Salvador, Honduras, República Dominicana e Nicarágua. Para
a CIDH, os estados devem garantir o acesso das mulheres ao serviço de saúde,
livre de estereótipos, considerando as peculiaridades como a vulnerabilidade das
meninas e mulheres em situações de exclusão, e que a proibição do aborto em
determinadas situações também podem violar o direito das mulheres e meninas24.
No âmbito da CIDH, vale destacar o famoso caso Baby Boy vs. Estados
Unidos , em que ela analisou o direito à vida no âmbito da Convenção Americana
25

de Direitos Humanos (CADH). Neste caso, a CIDH, em 1981, enfrentou pela


primeira vez o tema do aborto. O caso versou a respeito de um aborto causado
em uma adolescente, após a realização de um procedimento de remoção de útero.
A CIDH analisou o disposto nos artigos 1º da Declaração Americana de Direitos
Humanos (DADH) e 4.1 da CADH entendendo que não é possível extrair a
interpretação no sentido de que a vida estaria garantida desde a concepção, mas
em geral desde a concepção, de modo se deve harmonizar a proteção da vida com
a permissão do aborto em determinadas circunstâncias26. Desse modo, a CIDH
já sinalizou que há compatibilidade de normas permissivas da prática de aborto
e os dispositivos normativos interamericanos, entendendo, como vimos, em
contrapartida, que a impossibilidade do aborto em algumas situações violaria os

23 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Comissão Interamericana de Di-


reitos Humanos (CIDH). Principales estándares y recomendaciones en materia de violencia y discrimi-
nación contra mujeres, niñas y adolescentes. Violencia y discriminación contra mujeres, niñas y adoles-
centes: Buenas prácticas y desafíos en América Latina y en el Caribe. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 233 14
noviembre 2019. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/80.81sp/estadosunidos2141.
htm. Acesso em: 8 abr. 2022. Ibid., § 202.
24 Ibid., § 210.
25 Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/80.81sp/estadosunidos2141.htm. Acesso
em: 8 abr. 2022.
26 BUCCI, Daniela. In Vitro Veritas: A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre
fecundação in vitro e possíveis consequências para a descriminalização do aborto. Boletim da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, v. 108, p. 95-120, 2020, p. 106. Disponível em: https://drive.goo-
gle.com/file/d/1n0hoq4idC2CUCoEIzEXFSkP7m0T-vg-7/view. Acesso em: 9 abr. 2022.

95
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

direitos das mulheres, tais como o direito à integridade física e psíquica, direito à
vida e a saúde, dentre outros.
No caso Artavia Murillo e outros v. Costa Rica27, a corte interpreta de
forma “histórica, sistemática e evolutiva”28 o artigo 4.1 da CADH, ressaltando
que “o não nascido não tem um direito absoluto à vida”29, permitindo a prática
do aborto para proteger a vida e a saúde da mulher30. Além disso, a Corte ainda
assevera o direito à mulher às tecnologias médicas que sejam necessárias para o
acesso à saúde reprodutiva31.
Como vimos, os parâmetros no sistema interamericano não são muito
claros: i) exige-se uma harmonização da proteção da vida do feto e da vida e da
saúde da mulher; ii) leis muito restritivas podem favorecer a prática ilegal do aborto;
iii) ao passo que, leis que proíbem absolutamente o aborto atingem os direitos à
vida, à integridade pessoal, à saúde e os direitos das mulheres, quando se tem risco
à saúde da mulher, a constatação da inviabilidade do feto e nos casos de gravidez
decorrentes de violência sexual ou incesto.
Considerando esses poucos parâmetros, vale a pena analisar a situação do
Brasil, como a legislação regula o tema, se está em linha com aqueles encontrados
no sistema interamericano de direitos humanos e quais os desafios que recaem
sobre o tema no país.

4 CONCLUSÃO

Conforme análise dos dados oficiais no Brasil, uma das principais causas
de morte de mulheres são complicações decorrentes de aborto. Como o aborto é
prática ilegal no país, sendo permitido em apenas algumas poucas circunstâncias,
as mulheres se submetem frequentemente a abortos clandestinos, “inseguros”, e

27 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Artavia Murillo e outros.


(Fertilização in vitro) v. Costa Rica. Sentença de 28 nov. 2012 (Exceções Preliminares, Mérito, Repa-
rações e Custas).
28 BUCCI, Daniela. In Vitro Veritas: A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre
fecundação in vitro e possíveis consequências para a descriminalização do aborto. Boletim da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, v. 108, p. 95-120, 2020, p. 106. Disponível em: https://drive.goo-
gle.com/file/d/1n0hoq4idC2CUCoEIzEXFSkP7m0T-vg-7/view. Acesso em: 9 abr. 2022.
29 No caso, a Corte entendeu que a proibição da FIV, violava a vida privada e aos direitos sexuais e
reprodutivos. Ibid., p. 103.
30 Ibid., p. 107.
31 Ibid., p. 101.

96
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

acabam tendo complicações como infecção puerperal, hemorragias, septicemias,


dentre outras, consideradas essas algumas das causas típicas de suas mortes.
Somente no 1º semestre de 2020, foram realizados mais de 80 mil procedimentos
de curetagens e aspirações nas redes públicas de saúde, comumente usados após
abortos espontâneos ou provocados, conforme dados do datasus e os óbitos de
mulheres em idade fértil corresponderam em 2020 a mais de 73 mil em todo país32.
Seguramente, conforme Organização Mundial da Saúde, a região da
América Latina, na qual está inserido o Brasil, é a que tem maior proporção de
abortos inseguros do mundo33.
De fato, com base em outro estudo, as complicações moderadas e
leves decorrentes de aborto foram identificados em maior número no Brasil se
comparados a outros cinco países pesquisados da região, e que as complicações
graves e moderadas corresponderam a mais da metade dos casos estudados,
constituindo grave problema de saúde pública34.
Em razão da subnotificação dos casos, faltam dados precisos sobre
aborto no país e os dados encontrados nem sempre são confiáveis o suficiente para
servirem de base para criação de políticas públicas35 ou para traçar perfis, situação
que prejudica uma análise mais cuidadosa sobre o tema.
Como dito acima, o Brasil é considerado um dos países mais restritivos
em matéria de aborto. Atualmente, há três hipóteses permitidas: i) em caso de risco
à vida da mulher; ii) em caso de estupro, e iii) no caso de feto anencéfalo, previstos,
respectivamente, no Código Penal brasileiro em seu artigo 128, incisos I e II, e na
esfera da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54,
proferida pelo STF, respectivamente.
Se, de um lado, a legislação constitucional e a legislação infraconstitucional
protegem o direito à privacidade, intimidade, a integridade física, psíquica e a saúde
das mulheres, de um modo geral, por outro lado, também garante a proteção da vida

32 Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/mat10uf.def. Acesso em: 10


abr. 2022.
33 ROMERO M, GOMEZ PONCE DE LEON R, BACCARO LF, ET AL. Abortion related morbi-
dity in six Latin American and Caribbean countries: findings of the WHO/HRP multi-country survey
on abortion (MCS-A). BMJ Global Health 2021;6:e005618.doi:10. Disponível em: https://gh.bmj.
com/content/bmjgh/6/8/e005618.full.pdf, p. 5. Acesso em: 10 abr. 2022.
34 Ibid.,
35 Disponível em: https://gh.bmj.com/content/6/8/e005618. Acesso em: 10 abr. 2022.

97
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

desde a concepção, ainda que se tenha adotado a teoria natalista para determinar
a partir de qual momento a pessoa passa a ser considerada sujeito de direitos no
Brasil, isto é, com o nascimento com vida.
Embora tramitem no Congresso Nacional brasileiro inúmeras leis
contrárias e favoráveis ao aborto, fato que, como dissemos acima, reflete a
complexidade do tema no país, ressalta-se o anteprojeto de alteração do Código
Penal brasileiro, projeto este que prevê a possibilidade de liberação total do aborto
até 12ª semana de gestação, dentre outras excludentes36.
Com relação ao tema, novamente o Supremo Tribunal Federal, como
o fez na ADPF 54, deverá se pronunciar sobre a difícil celeuma entre o direito à
vida e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher e os demais direitos em jogo, na
ADPF 442, em que precisará decidir pela liberação ou não do aborto voluntário até
o terceiro mês de gestação37.
A ADPF 442/DF foi requerida pelo Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), com o objetivo de obter do STF a análise sobre os artigos 124 e 126 do
Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), baseando-se na violação dos
preceitos fundamentais contidos nos arts. 1º, I e II, 3º, IV, 5º, caput e I e III, 6º,
caput, 196 e 226, § 7º, da Constituição Federal, que versam sobre o princípio da
dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade
da vida, liberdade, igualdade, proibição de tortura ou tratamento desumano ou
degradante, saúde e planejamento familiar.
Dentre os principais argumentos apresentados, basicamente, o
requerente da ADPF 442/DF asseverou que as razões jurídicas que fundamentaram
a criminalização do aborto em 1940, hoje violariam os preceitos fundamentais
contidos na Constituição Federal de 1988. Destacou-se ainda a violação da
dignidade da mulher, no sentido de que não lhe teria sido reconhecida “a capacidade

36 BRASIL. Anteprojeto do novo Código Penal. Projeto de Lei do Senado n° 236, de 2012. Disponível
em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3515262&ts=1645029382318&dispo-
sition=inline. Acesso em: 20 abr. 2022.
37 Sobre o controle de Convencionalidade exercido pela Corte Interamericana, sugere-se a leitura da
análise crítica realizada por: MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convenciona-
lidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: Uma Década de Decisões Assimétricas. In:
MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em Expansão. Anais do XV CBDI, p. 251- 271.
Belo Horizonte: Arraes, 2017. p. 251- 271.

98
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu


projeto de vida”38.
Além disso, apontou que as “mulheres negras e indígenas, pobres, de
baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos” se sujeitam a abortos
mais inseguros, comparadas com as mulheres mais informadas e com mais poder
aquisitivo, violando-se, portanto, o princípio da não discriminação39.
Destacou ainda o requerente as violações ao direito à saúde, à integridade
física e psicológica das mulheres, bem como a proibição de submissão à tortura ou
a tratamento desumano ou degradante, enfatizando a necessidade de se lançar um
olhar atento às condições de vulnerabilidade que podem variar em cada caso, em
razão da “idade, classe, cor e condição de deficiência de mulheres, adolescentes e
meninas”40.
Apontou, ainda, a violação do direito à saúde e a inviolabilidade dos
direitos à vida e à segurança, em razão da submissão por parte das mulheres a
procedimentos ilegais e clandestinos que resultam em mortes e danos à saúde;
violação do direito ao planejamento familiar, por impedir a mulher de decidir
sobre sua vida sexual e reprodutiva, atingindo o direito fundamental à liberdade e
seus direitos sexuais e reprodutivos, bem como seus exercícios “sem risco de sofrer
coerção ou violência”41.
Por fim, ressalta a violação do princípio da igualdade de gênero e do
objetivo fundamental previsto na Constituição Federal da não discriminação
baseada no sexo, já que às mulheres são exigidas “condições mais gravosas, inclusive
perigosas à sua vida e saúde, para a tomada de decisões reprodutivas” e que tais
condições seriam “desproporcionais em comparação com as condições para a
tomada das mesmas decisões por parte dos homens”42.
A responsabilidade do STF é grande: em um país em que os índices de
mortes maternas são altíssimos, como vimos acima, será preciso enfrentar muitas
questões que até o momento não foram decididas pelo parlamento: Conforme bem
encapsulam ROMERO, GOMEZ, BACCARO e outros, a falta de informação

38 STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442/DF. Rel. Min. Rosa
Weber. p. 4.
39 Ibid., p 4-5.
40 Ibid., p. 5.
41 Ibid., p. 5.
42 Ibid., p. 6.

99
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

sobre os riscos do aborto e a falta de clareza a respeito das leis que tratam do aborto,
dificultam o acesso aos serviços disponíveis, seja no momento em que a mulher nota
um atraso na menstruação ou mesmo em situações pós procedimentos abortivos43.
Desse modo, ao lado da necessidade de mais informação, mais cuidado e acesso aos
serviços e políticas destinadas ao aborto, “o acesso à informação jurídica também é
fundamental”44.
Somados a esses aspectos, pesquisas direcionadas para conhecer o perfil
das mulheres que praticam o aborto ilegal são extremamente relevantes para
compreender o fenômeno e auxiliar a criação de políticas públicas. Conforme
analisam DINIZ, MEDEIROS E MADEIRO, é a “mulher comum” que aborta,
mas a “forma não é homogênea em todos os grupos sociais”45. O que se nota,
portanto, é que leis proibitivas ao aborto, de fato, atingem ainda mais as mulheres
jovens, negras, indígenas, baixa escolaridade e economicamente desfavorecidas46,
até mesmo no Brasil.
Finalmente, o STF também deverá avaliar o seu papel como corte
constitucional e se cabe a ela ampliar as hipóteses de permissão do aborto ou ao
parlamento47. O ponto é que, apesar de os parâmetros internacionais não serem tão
bem estabelecidos com relação às hipóteses em que o aborto pode ser admitido,
destaca-se, como bem o fez a Comissão Interamericana, que a proteção da vida
e saúde da mulher precisam ser ponderadas em relação à proteção da vida do
feto, devendo ser levado em consideração dentre outros aspectos que leis muito
restritivas – como é o no caso brasileiro – acabam propiciando abortos inseguros
que colocam em risco a saúde e a vida da mulher, impactando o sistema público de
saúde, exigindo-se, portanto, do estado o enfrentamento da questão com a criação
de políticas públicas específicas para diminuir as mortes das mulheres, ampliar o

43 ROMERO M, GOMEZ PONCE DE LEON R, BACCARO LF, ET AL. Abortion related mor-
bidity in six Latin American and Caribbean countries: findings of the WHO/HRP multi-country
survey on abortion (MCS-A). BMJ Global Health 2021;6:e005618.doi:10. Disponível em: https://
gh.bmj.com/content/bmjgh/6/8/e005618.full.pdf, p. 5. Acesso em: 10 abr. 2022.
44 Ibid.,
45 DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa nacional de
aborto 2016. Revista Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 653-660,
fev. 2017, p. 659. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1413-81232017000200653&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2022.
46 Ibid.,
47 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: Parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2015.

100
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

acesso à saúde e garantir a liberdade, os direitos sexuais e reprodutivos e demais


direitos das mulheres.

101
REFERÊNCIAS

BRASIL. Anteprojeto do novo Código Penal. Projeto de Lei do Senado n° 236, de


2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento


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Rel. Min. Rosa Weber.

104
PARTE II

PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS MIGRANTES


De uma crise migratória para a outra na Europa: análise jurídico-
comparativa das crises de 2021 e 20221

Catherine Maia2
Shashaank Bahadur Nagar3
Rafaela Mendel4

1 INTRODUÇÃO

Com o fim das duas grandes guerras mundiais, tornou-se evidente,


por razões humanitárias, a necessidade de proteção dos refugiados por parte da
comunidade internacional. Assim, em 1951, foi adotada a Convenção relativa ao
Estatuto dos Refugiados (Convenção de Genebra)5, que entrou em vigor em 1954,
determinando o conceito de refugiado, bem como esclarecendo os direitos dos
indivíduos aos quais é concedido o direito de asilo e as responsabilidades dos países
concedentes.
Apesar de a Convenção de 1951 ser o primeiro tratado a fornecer a nível
internacional a mais completa codificação do direito dos refugiados, cobrindo os

1 Uma análise da crise migratória entre a Polônia e a Bielorrússia foi publicada em inglês: MAIA,
Catherine, BAHADUR NAGAR, Shashaank, Poland-Belarus Border Crisis: A Vanishing Point of
International Refugee Law, Observatory on European Studies, 13 de dezembro de 2021.
2 Professora Doutora em Direito Internacional da Faculdade de Direito e Ciência Política da Uni-
versidade Lusófona do Porto, Portugal. Professora Visitante da Sciences Po Paris e da Universidade
Católica de Lyon, França.
3 Jurista especializado em Direitos Humanos e Direito dos Refugiados (Índia).
4 Graduada em Direito pela Universidade Lusófona do Porto (Portugal). Mestranda em Direitos
Humanos pela Universidade do Minho (Portugal).
5 ONU. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, 28 de junho de 1951. Disponível em: ht-
tps://www.unhcr.org/1951-refugee-convention.html. Acesso em: 12 maio 2022.

107
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aspetos mais básicos da vida dos mesmos, foi acusada de ser eurocêntrica por parte
principalmente de países do Oriente Médio e da Ásia do Sul e do Sudeste, cujos
vários ainda se abstêm de sua adesão6. Esses países frisam que a convenção foi
adotada após a Segunda Guerra mundial com o único objetivo de gerir o êxodo
da população europeia afetada pelas hostilidades armadas, pois geograficamente se
aplicava apenas às pessoas deslocadas dentro da Europa, enquanto temporalmente
se limitava aos deslocamentos causados pelos eventos ocorridos antes de 1 de janeiro
de 1951.
Com o propósito de ampliar o âmbito de aplicação da Convenção de
1951 a novas situações geradoras de conflitos e perseguições, foi adotado em 1967
o Protocolo de Nova Iorque7, que entrou em vigor no mesmo ano. Este Protocolo
veio retirar os entraves geográfico e temporal, bem como veio atribuir a natureza de
um princípio de direito internacional consuetudinário à não repulsão ou ao non-
refoulement, ou seja, à proibição do retorno forçado dos refugiados ou requerentes
de asilo para um país onde exista o risco de serem perseguidos e/ou sujeitos a tortura
ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Assim, consoante a Convenção de 1951, emendada pelo Protocolo
de 1967, os refugiados são aqueles que precisam buscar proteção em outro país
por se encontrarem em uma situação de perigosidade ou de perseguição em seu
território de origem, tal perseguição sendo exercida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opiniões
políticas8. Independentemente de se encontrar em um Estado que seja parte da
Convenção de 1951 ou do Protocolo de 1967, qualquer pessoa também poderá
ser reconhecida como refugiada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR) – organismo criado pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 1950 – cujo estatuto prevê que o seu mandato consiste em monitorizar

6 São partes na Convenção de 1951 146 Estados. Fonte: ONU, Treaty Series. Disponível em: https://
treaties.un.org/pages/ViewDetailsII.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=V-2&chapter=5&Temp=mtds-
g2&clang=_en. Acesso em: 12 maio 2022.
7 São partes no Protocolo de 1967 147 Estados, sendo este um instrumento independente da anterior
Convenção de 1951. Fonte: ONU, Treaty Series. Disponível em: https://treaties.un.org/pages/View-
Details.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=V-5&chapter=5&clang=_en. Acesso em: 12 maio 2022.
8 ACNUR. Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado de acor-
do com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. Genebra,
2011, p. 17 e seg. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/Publica-
coes/2013/Manual_de_procedimentos_e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_refugia-
do.pdf. Acesso em: 15 dez. 2021.

108
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e garantir a proteção internacional dos refugiados que se enquadram no âmbito da


sua competência.
Para ser considerado refugiado, o estrangeiro ou apátrida deve passar por
um processo de pedido de asilo junto do Estado em que busca refúgio, para a
análise da sua situação e, se tal pedido for deferido, para a atribuição desse estatuto.
Porém, se no início da fuga, os requisitos já estiverem preenchidos, o indivíduo
deve ser amparado pelo princípio da não repulsão e outros direitos garantidos
pelo estatuto consagrado na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967, sendo o
reconhecimento de sua condição jurídica de refugiado apenas uma formalização9.
Desde 1999, a União Europeia (UE) tem vindo a construir um sistema
comum de asilo. A fim de estabelecer um procedimento único de asilo, que
proporcionasse as mesmas garantias e o mesmo estatuto a quem fosse concedida
a proteção, a UE criou o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA). Nos termos
dos artigos 78º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE)10 e
18º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE11, o SECA é um instrumento da
UE, em matéria de política de asilo, que reconhece como basilar o princípio da
não repulsão, assim como o princípio da solidariedade e da partilha igualitária de
responsabilidades entre os Estados-Membros (artigo 80º do TFUE). Este sistema
visa “conceder um estatuto adequado a qualquer nacional de um país terceiro
que necessite de proteção internacional num dos Estados-Membros e assegurar a
observância do princípio da não repulsão”12, estabelecendo para este fim normas
mínimas para o tratamento dos requerentes de asilo em toda a UE.
As fragilidades do SECA na difícil conciliação dos valores comunitários
com os interesses diversificados dos Estados-Membros têm sido realçadas pela
chamada crise migratória ou crise de refugiados sem precedentes que o continente
europeu conheceu a partir do início da década de 2010, com um pico crítico em

9 OLIVEIRA, Lais Gonzales de. Barreiras fronteiriças contra o princípio de non-refoulement: a ina-
cessibilidade do território e a determinação do status de refugiado. Revista Brasileira de Estudos de
População, v. 34, 2017, p. 32.
10 UE. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (versão consolidada). 1957. Disponí-
vel em: https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-01aa75e-
d71a1.0019.01/DOC_3&format=PDF. Acesso em: 12 maio 2022.
11 UE. Carta dos Direitos Fundamentais. 2000. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-con-
tent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR. Acesso em: 12 maio 2022.
12 PARLAMENTO EUROPEU. Política de asilo. Fichas temáticas sobre a União Europeia, 2021.
Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/151/politica-de-asilo. Acesso em:
12 maio 2022.

109
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2015 causado pela guerra na Síria, sendo uma das maiores crises deste tipo da
história contemporânea da Europa. Tal crise, cujo fim ainda não está à vista, é
marcada por um aumento exponencial dos fluxos migratórios provenientes da
África, do Oriente Médio e da Ásia do Sul. Esses migrantes e refugiados alcançam
à UE pela rota do Mar Mediterrâneo e pela rota dos Balcãs, por vezes através de
redes de traficantes, causando milhares de mortes e sérias tensões diplomáticas
entre os países europeus, particularmente entre os países de chegada, que insistem
na solidariedade da comunidade, e os países de destino, que demostram mais
reticência em participar na gestão dos migrantes e refugiados.
Especialmente nos anos de 2021 e 2022, a Europa enfrentou duas grandes
crises migratórias. A de 2021 foi fomentada pelo governo da Bielorrússia com o
propósito de desestabilizar a UE. A de 2022, originou-se pelo ataque armado russo
à Ucrânia em fevereiro daquele ano, o que gerou a mais rápida crise de refugiados
desde a Segunda Guerra mundial, com um movimento massivo de ucranianos às
fronteiras polonesa, húngara, romena e moldava. O posicionamento da Europa
perante estas crises migratórias foi descaradamente díspar conforme se tratava de
europeus ou de não europeus13.
Nesta perspectiva, este estudo está centrado em uma análise jurídico-
comparativa da Europa frente aos refugiados ucranianos e os refugiados não
europeus, pertencentes nomeadamente ao Oriente Médio e a África. Deste modo,
para esta pesquisa foi feita uma revisão de literatura e, através dela, foi utilizada
uma metodologia qualitativa para a análise jurídica das normas e jurisprudências
internacionais.

2 CRISE MIGRATÓRIA NA FRONTEIRA ENTRE POLÔNIA E


BIELORRÚSSIA

Em novembro de 2021, um grande grupo de pessoas da Bielorrússia


aglomerou-se nas fronteiras da Polônia e, em uma menor extensão, da Lituânia e
da Letônia, com a intenção de tentar adentrar na UE. É pertinente mencionar que
essas pessoas são principalmente requerentes de asilo de países do Oriente Médio e
da África, fugindo de perseguições pelas suas autoridades nacionais, especialmente
do Afeganistão, Síria e Iraque.

13 FERNANDEZ, Julian; FLEURY GRAFF, Thibaut; MARIE, Alexis. Agression de l’Ukraine et exil
de guerre: l’Europe, toute l’Europe, rien que l’Europe? Le Rubicon, 10 de março de 2022. Disponível
em: https://lerubicon.org/publication/ukraine-exil-de-guerre. Acesso em: 12 maio 2022.

110
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

As autoridades polonesas se mostraram inflexíveis, pois suspeitavam de


uma conspiração do governo bielorrusso em facilitar este cenário, em particular
através da companhia aérea bielorrussa Belavia, em resposta às sanções impostas
à Bielorrússia por parte da UE após a repressão brutal aos protestos democráticos
de dezembro de 2020 pelas autoridades nacionais, e após o sequestro de um voo
que transportava um jornalista da oposição, forçado a desembarcar em Minsk
sob o pretexto de uma ameaça de bomba em maio de 2021. O presidente da
Bielorrússia, Alexander Lukashenko, no poder desde 1994, foi reeleito para um
sexto mandato em agosto de 2020, porém a sua eleição não foi reconhecida pelos
países da UE. Depois desta eleição, várias sanções europeias foram então adotadas
contra funcionários do regime, incluindo Alexander Lukashenko, consistindo
nomeadamente em um congelamento de ativos e uma proibição de entrada na UE.
Embora as autoridades polonesas não estejam a permitir que os requerentes
de asilo entrem no seu território, sendo esses afastados das fronteiras nacionais, foi
alegado pela UE e por alguns dos sobreviventes que o governo bielorrusso também
não está autorizando que os requerentes de asilo regressem à Bielorrússia. Como
resultado desta briga política, milhares de inocentes estão há meses encurralados na
fronteira da Polônia e nas florestas circundantes, sem qualquer ajuda ou assistência.
Ainda que a UE tenha demonstrado simpatia para com estas vítimas da política
internacional, recusou-se a curvar-se perante o governo bielorrusso.
Desde há alguns anos, a Polônia e a rota do Báltico têm sido o caminho
privilegiado de entrada na UE para os requerentes de asilo que sofrem perseguição
nos países do Oriente Médio e da África. Os requerentes de asilo também incluem
aqueles que estavam com vistos de estudante na Bielorrússia e que, depois de os
vistos expirarem, ficaram sem esperança de que os seus pedidos de asilo fossem
aceitos na Bielorrússia, temendo serem devolvidos aos seus países de origem e
virando-se, por conseguinte, para a UE. Outros requerentes de asilo ainda abarcam
aqueles que procuram o reagrupamento familiar com membros da família que se
estabeleceram como refugiados em diferentes partes da UE.
Ademais, para além daqueles que estão voluntariamente tomando a rota
da fronteira da Polônia através da Bielorrússia, o governo polonês e a UE alegam
que o governo bielorrusso está encorajando e forçando os requerentes de asilo dos
países do Oriente Médio e da África a tomarem a rota da Europa através da fronteira
polonesa. A Bielorrússia estaria a transportar estes requerentes de asilo dos seus
países para Minsk e até para Moscovo, mantendo-os em hotéis e, posteriormente,
encaminhando-os à força para a fronteira polonesa a fim de pressionar a UE. Por

111
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

outras palavras, cumprindo a sua ameaça de “inundar a Europa com migrantes”14,


a Bielorrússia foi acusada de instrumentalizar os requerentes de asilo como “armas”
em uma espécie de guerra assimétrica.
Esses requerentes de asilo, incluindo mulheres e crianças, ficaram presos
na fronteira durante meses sem qualquer ajuda até que o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) fosse autorizado a fornecer-lhes
ajuda humanitária do lado bielorrusso, enquanto a Polônia continuou firme na sua
decisão de não dar acesso ao ACNUR ou qualquer organização não governamental
na região ou nos arredores, inclusive aos jornalistas.
O governo da Polônia, assim como o da Bielorrússia, têm várias obrigações
internacionais em relação aos requerentes de asilo e refugiados, pelo que cada um
dos seus alegados atos viola gravemente esses deveres.

2.1 ANÁLISE JURÍDICA DAS VIOLAÇÕES

No que diz respeito à Polônia, o artigo 14°, nº 1, da Declaração Universal


dos Direitos Humanos (DUDH)15, garante o direito de requerer e gozar de asilo
como um direito humano básico, reforçado pela Convenção de 1951 à qual a
Polônia é um Estado Parte. Além disso, o direito de asilo também está previsto
no artigo 18° da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Existe todo um regime
que estabelece critérios e mecanismos para determinar a responsabilidade dos
Estados-Membros no exame de um pedido de proteção internacional edificado
pelo Regulamento (UE) nº 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho16,
que a Polônia violou claramente. De acordo com o artigo 3°, n° 1, do Regulamento
(UE) nº 604/2013, “[o]s Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção
internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no

14 CHUNG, Frank. ‘Grey-zone warfare’: Belarus accused of ‘weaponising’ migrants to flood Polish
border. News.com.au, 11 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.news.com.au/technolo-
gy/innovation/military/grayzone-warfare-belarus-accused-of-weaponising-migrants-to-flood-polish-
-border/news-story/d5da550dcd473b256fcc93bb97b13907. Acesso em: 12 maio 2022.
15 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 1948. Disponível em:
https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights. Acesso em: 12 maio 2022.
16 UE. Regulamento (UE) nº 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho
de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável
pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um
nacional de um país terceiro ou por um apátrida. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-con-
tent/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32013R0604. Acesso em: 12 maio 2022.

112
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de


trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro”. Assim, a
Polônia é obrigada a examinar o pedido de proteção internacional dos requerentes
de asilo que o solicitam a partir do seu território, incluindo na fronteira, o que este
país intencionalmente não fez no presente contexto.
Além disso, a Polônia tem sido repetidamente acusada de devolver
os requerentes de asilo em necessidade de proteção internacional de seu posto
fronteiriço de Terespol e de outras áreas de controle efetivo, sem realmente
examinar o pedido deles, iniciando assim uma “repulsão em cadeia”. Quanto ao
argumento de os requerentes de asilo estarem fora da jurisdição polonesa, está agora
bem estabelecido pela jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
(TEDH) no acórdão M.K. e outros c. Polônia17, proferido em 23 de julho de 2020, e
no acórdão D.A. e outros c. Polônia18, proferido em 8 de julho de 2021, que o posto
fronteiriço de Terespol, onde os requerentes de asilo são submetidos ao controle
de fronteira, está situado a 2.600 metros dentro do território polonês, e que os
guardas fronteiriços poloneses exercem a sua plena autoridade e controle sobre os
estrangeiros/requerentes de asilo que procuram entrada.
Assim, ao abrigo do artigo 33° da Convenção de 1951, o regresso ou o
afastamento de requerentes de asilo sem realmente permitir que o seu pedido seja
examinado constitui uma clara violação do princípio de não repulsão19, que proíbe
os Estados de transferirem ou afastarem indivíduos de sua jurisdição ou controle
efetivo quando existem motivos substanciais para acreditar que a pessoa estaria em
risco de danos irreparáveis no retorno, incluindo perseguição, tortura, maus-tratos
ou outras violações graves dos direitos humanos. Este princípio é reconhecido ao
nível do direito internacional consuetudinário, pelo que vincula indistintamente
todos os Estados20. A nível regional, as disposições do Direito da UE, incluindo o

17 TEDH. M.K. e outros c. Polônia, queixas nos 40503/17, 42902/17 e 43643/17, acórdão de 23 de
julho de 2020.
18 TEDH. D.A. e outros c. Polônia, queixa n° 51246/17, acórdão de 8 de julho de 2021.
19 VALE, Pedro Augusto Costa; MOREIRA, Thiago Oliveira. Implementation of the non-re-
foulement principle in the European Court of Human Rights’ jurisprudence. In: GURGEL, Yara
Maria Pereira; MOREIRA, Thiago Oliveira (coords.). Direito Internacional dos Direitos Humanos e
as pessoas em situação de vulnerabilidade. v. 1. Natal: Polimatia, 2021. p. 223: “O princípio da não
repulsão é a pedra angular do regime de proteção, pois somente por meio dele todos os demais direitos
podem ser alcançados, doravante esse princípio é a materialização do direito fundamental de buscar
asilo” (tradução nossa).
20 Ibid., p. 6.

113
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Código das Fronteiras Schengen e a Diretiva 2013/32/UE21, abraçam claramente


este princípio de não repulsão, e também o aplicam às pessoas que são submetidas
a controles fronteiriços antes de serem admitidas no território de um dos Estados-
Membros (M.K. e outros c. Polônia, supra). No mesmo sentido, o princípio da
não repulsão na jurisprudência do TEDH deriva diretamente do artigo 3º da
Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que proíbe a tortura. Não
se deve repulsar uma pessoa para um território onde há uma forte probabilidade
de que será torturada ou submetida a maus-tratos. Assim, o TEDH desenvolveu
uma jurisprudência fortemente protetiva, baseada numa ampla interpretação da
CEDH22, consagrando este princípio como absoluto e, portanto, não derrogável
pelos Estados-Membros23.
Não há dúvida de que a Polônia tem o direito de controlar a entrada,
residência e exclusão de estrangeiros de seu território, mas tal poder está sujeito
às suas obrigações convencionais, incluindo àquelas da CEDH. Em suma, tendo
estabelecido a jurisdição de que dependem os requerentes de asilo no presente
contexto, é bastante evidente que sua expulsão pela Polônia para a Bielorrússia
iniciaria uma “repulsão em cadeia”, e que os requerentes de asilo poderiam voltar
ao país de origem, onde temem ser alvos de perseguição, pelo que a Polônia não
pode expulsar os estrangeiros/requerentes de asilo para a Bielorrússia, uma vez que
violaria o artigo 3° da CEDH, que proclama que “[n]inguém pode ser submetido a
tortura nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”.
No presente contexto, onde há relatos de que a Bielorrússia estaria a
submeter estes requerentes de asilo a tortura e a tratamentos desumanos, a fim de
os forçar a atravessar a fronteira e não regressar, a mera repulsão desses requerentes
de asilo para a Bielorrússia constituiria uma violação do artigo 3º da CEDH, uma
vez que podem enfrentar tais atos de tortura e tratamentos desumanos nas mãos das
autoridades bielorrussas. Nestas circunstâncias, o artigo 3° implica uma obrigação
de não retornar, sendo o tratamento proibido por esta disposição absoluta, o que

21 UE. Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a procedimentos co-


muns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional, 26 de junho de 2013. Jornal Ofi-
cial L 180, 29 de junho de 2013, p. 60-95. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/
PT/ALL/?uri=CELEX%3A32013L0032. Acesso em: 12 maio 2022.
22 CONSELHO DA EUROPA. Convenção Europeia dos Direitos Humanos. 4 novembro de 1950.
Disponível em: https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022.
23 VALE, Pedro Augusto Costa; MOREIRA, Thiago Oliveira. Implementation of the non-re-
foulement principle in the European Court of Human Rights’ jurisprudence, op. cit., p. 223-224.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

significa que não pode ser derrogado pelo Estado (caso Saadi c. Itália24). À luz
dos factos mencionados, incumbe, portanto, à Polônia examinar os pedidos de
asilo individualmente e conduzir uma investigação adequada sobre o “risco real”
enfrentado pelos requerentes de asilo ao serem reenviados antes de os retornar
efetivamente.
Ademais, o recurso concedido aos requerentes de asilo pelas autoridades
polonesas no processo de análise deve corresponder a um “recurso eficaz” perante
as autoridades nacionais. Por outras palavras, mesmo que a decisão seja contra o
requerente de asilo, este deve ter o direito de interpor recurso junto das autoridades
polonesas. A negação deste direito seria uma clara violação do artigo 4° do Protocolo
n° 4 da CEDH. Além disso, quando está em causa um risco para o direito à vida
ou o direito a não ser torturado, a decisão de recusa de entrada deve ter um efeito
suspensivo automático, até que o requerente de asilo tenha esgotado todos os
recursos domésticos efetivos. Caso contrário, seria novamente uma violação do
artigo 4° do Protocolo nº 4 da CEDH. É importante apontar que essa violação
pelas autoridades polonesas pode vir a acontecer, uma vez que estas não preveem no
seu sistema interno um efeito suspensivo automático para os requerentes de asilo,
tais decisões tendo, pelo contrário, um efeito imediato.
Em 14 de outubro de 2021, o Parlamento polonês aprovou uma emenda
colocando mais lenha na fogueira. O artigo 33º, n° 1, alínea a) da Lei sobre a
Concessão de Proteção a Estrangeiros no Território da República da Polônia, de 13
junho de 200325, dispõe que as autoridades podem desconsiderar o pedido de asilo
apresentado por uma pessoa que atravessasse irregularmente a fronteira polonesa,
a menos que: i) tenha chegado diretamente do território em que sua vida ou
liberdade estava sob ameaça de perseguição; ii) apresentou uma causa credível para
a entrada ilegal no território da República da Polônia; e iii) submeteu um pedido de
concessão de proteção internacional imediatamente após ter atravessado a fronteira.
Por outras palavras, salvo nas circunstâncias restritivas acima mencionadas, as
autoridades polonesas teriam o direito de repelir qualquer requerente de asilo que
entrasse no território nacional de forma irregular, legalizando assim a repulsão em
casos de entradas irregulares, o que é uma nítida violação do princípio da não
repulsão.

24 TEDH. Saadi c. Itália, queixa nº 37201/06, acórdão de 6 de fevereiro de 2018.


25 POLÔNIA. Lei nº 65076 sobre a Concessão de Proteção a Estrangeiros no Território da República
da Polônia, 13 de junho de 2003. Disponível em: https://isap.sejm.gov.pl/isap.nsf/download.xsp/
WDU20031281176/T/D20031176L.pdf. Acesso em: 12 maio 2022.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Esta emenda também penalizou esses requerentes de asilo com uma


proibição de entrada que varia de 6 meses a 3 anos e que é de efeito imediato.
É importante notar que o Direito Internacional dos Refugiados, ao abrigo da
Convenção de 1951, não diferencia entre o requerente de asilo que entra regular
ou irregularmente, e obriga cada Estado-Membro a não repelir, deter ou mesmo
penalizar os requerentes de asilo que entram irregularmente. Todavia, o Parlamento
polonês, a fim de racionalizar a referida emenda, utilizou indevidamente o artigo
31° da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, interpretando de
forma excessivamente estrita palavras como “diretamente”, “sem demora”, “boa
causa”, violando assim também o Regulamento (UE) nº 604/2013 do Parlamento
Europeu.
A ação do Parlamento polonês ao aprovar a tal emenda legislativa foi
intencional, o que é evidenciado pelo facto de que, ainda em 16 de setembro de
2021, o ACNUR havia apresentado observações contra a referida emenda legislativa
(que era então apenas um projeto de lei). Em suas observações, tinha solicitado ao
Parlamento polonês que não adotasse uma interpretação tão restrita do artigo 31º
da Convenção de Genebra de 1951, uma vez que a mesma nunca foi endossada pelo
Direito Internacional dos Refugiados e que só poderia ter consequências terríveis26.
Ainda assim, o Parlamento polonês mostrou uma completa desconsideração à
referida observação.
No que diz respeito à Bielorrússia e às suas obrigações internacionais –
embora a Bielorrússia não seja membro do Conselho da Europa, nem seja parte da
CEDH – o país aderiu à Convenção de Genebra de 1951 e ao Protocolo de 1967
no ano de 2001 sem quaisquer reservas. Além disso, a Bielorrússia é parte, inter
alia, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1966,
da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes (CAT) de 1984, da Convenção sobre os Direitos da Criança
(CRC) de 1989, bem como da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra a Mulher de 1979.
Vale ressaltar que, como frisado no último processo da Revisão Periódica
Universal (RPU) sobre a Bielorrússia do Conselho de Direitos Humanos das Nações

26 ACNUR. Observações do ACNUR sobre o projeto de lei que altera a Lei sobre os Estrangeiros e
a Lei sobre a Concessão de Proteção a Estrangeiros no Território da República da Polônia (UD265).
16 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/61434b484.html. Acesso
em: 24 maio 2022.

116
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Unidas (CDHNU)27, o país tinha um sistema jurídico favorável aos refugiados,


tendo transposto em sua lei interna as suas obrigações ao abrigo da Convenção de
Genebra de 1951, inclusive o princípio da não repulsão. De acordo com a RPU, não
houve um único caso de repulsão na Bielorrússia de 2007 a 2014. Os requerentes
de asilo de países do Oriente Médio eram facilmente aceitos como refugiados, e
gozavam de direitos iguais aos dos cidadãos da Bielorrússia. É importante salientar
que, desde o ano de 2013, não havia uma política desfavorável aos requerentes
de asilo sírios. Além disso, os refugiados podiam solicitar a cidadania após 7 anos
de obtenção do estatuto de refugiado. Todavia, parece que o governo bielorrusso
deu uma reviravolta completa, passando de uma postura de protetor para uma
postura de violador. Como mencionado anteriormente, as autoridades bielorrussas
foram acusadas de forçar os requerentes de asilo, pela via de atos de tortura e
tratamentos desumanos, a atravessar a fronteira polonesa, e depois de os impedir
de regressar à Bielorrússia, o que novamente é uma violação nítida da Convenção
sobre Refugiados de 1951 e do princípio da não repulsão.

2.2 INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DOS REFUGIADOS

Conforme referido em uma Declaração Conjunta28 adotada em 11 de


novembro pelos Estados Unidos da América e pelos membros europeus do Conselho
de Segurança das Nações Unidas, o governo bielorrusso é acusado de organizar
uma “instrumentalização cínica dos migrantes”. Os objetivos da orquestração deste
afluxo sem precedentes de requerentes de asilo na fronteira entre a Polônia e a
Bielorrússia consistem em “desestabilizar os países vizinhos e a fronteira externa da
União Europeia e desviar a atenção de suas próprias crescentes violações dos direitos
humanos”. É também uma forma de exortar a UE a retirar as sanções impostas
à Bielorrússia após a violenta repressão do governo a manifestações pacíficas em
2020.
Essa tática de utilizar os refugiados como uma arma política não é nova.
Um exemplo recente é o da Turquia e da Grécia, após a crise de refugiados de 2015
que se manifestou por um afluxo de refugiados sírios na fronteira grega através da

27 CDHNU. Revisão Periódica Universal – Bielorrússia, 2020. Disponível em: https://www.ohchr.


org/EN/HRBodies/UPR/Pages/BYindex.aspx. Acesso em: 12 maio 2022.
28 UNITED STATES MISSION TO THE UNITED NATIONS (USUN). Joint Statement on the
Belarusian Authorities’ Activities with regard to the Instrumentalization of Migrants, 11 de novembro
de 2021. Disponível em: https://usun.usmission.gov/joint-statement-on-the-belarusian-authorities-
-activities-with-regard-to-the-instrumentalization-of-migrants/. Acesso em: 12 maio 2022.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Turquia. Logo após, a UE firmou um acordo com o governo turco para fechar as
suas fronteiras, a fim de impedir o influxo, em troca de ajuda financeira. No entanto,
nos anos de 2019 e 2020, alegando que a UE não tinha cumprido a sua promessa, e
depois de várias ameaças, o governo turco decidiu reabrir as suas fronteiras, levando
imediatamente a que milhares de pessoas se aglomerassem na fronteira grega, por
terra e mar, forçando a UE a renovar as suas relações diplomáticas com a Turquia
com vista a limitar esses refugiados ao território turco. Também no passado, vários
regimes autoritários, nomeadamente Cuba, Líbia, ex-Jugoslávia, Uganda, Coreia
do Norte e muitos outros, usaram essa tática de guerra, a fim de exercer pressões
sobre outros países.
Enquanto a intenção da Bielorrússia por trás da alegada instrumentalização
política dos refugiados parece evidente, o intuito da Polônia, que exacerbou a
situação através das violações mencionadas, e mais recentemente através de sua
emenda legislativa, é ambíguo. De acordo com o relatório de Agnieszka Dudzińska
e Michał Kotnarowski29 de 2019, baseado na opinião pública do povo polonês, foi
concluído que este último tem uma atitude geralmente desfavorável em relação aos
muçulmanos e, portanto, se opõe à aceitação de refugiados de países do Oriente
Médio e da África. A política do governo de recusar pessoas daquelas regiões do
mundo corresponde à atitude de seus eleitores, sendo que o atual governo direitista
também teme ser substituído pela direita radical de seu país se eles irem contra
as aspirações de seus eleitores. Assim, à luz dos factos mencionados, parece que o
atual partido político no poder na Polônia deseja agradar aos seus eleitores para
ser reeleito nas próximas eleições polonesas de 2023, podendo-se fazer aqui um
paralelo com a estratégia de outros partidos políticos em todo o mundo para chegar
ao poder, especialmente a do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, em relação
aos imigrantes mexicanos.
O cenário atual requer soluções políticas. Para tanto, a Polônia como a
Bielorrússia devem negociar pacificamente, na presença da UE e da Rússia, a fim
de alcançar uma solução amigável. Entretanto, o ACNUR e outras organizações
não governamentais deveriam ter um acesso total à região com vista a fornecer
ajuda humanitária, a Polônia deveria considerar os requerimentos de atribuição
do estatuto de refugiado, enquanto a Bielorrússia deveria parar de usar a violência
física e moral contra os refugiados e imigrantes sob sua jurisdição.

29 DUDZIŃSKA, Agnieszka, KOTNAROWSKI, Michał. Imaginary Muslims: how the Polish right
frames Islam. Brookings. 24 de julho de 2019. Disponível em: https://www.brookings.edu/research/
imaginary-muslims-how-polands-populists-frame-islam. Acesso em: 12 maio 2022.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3 CRISE MIGRATÓRIA DECORRENTE DA GUERRA NA UCRÂNIA

Desde o início da invasão russa da Ucrânia a 24 de fevereiro de 2022 até


maio de 2022, o número de pessoas deslocadas internamente pela guerra ultrapassou
a marca de 8 milhões, enquanto o número de pessoas que fugiram do país para
escapar às hostilidades armadas passou de 6 milhões30, no que é considerado
como a pior crise de refugiados que a Europa testemunhou desde a Segunda
Guerra mundial31. Apesar de a Polônia ser conhecida pela sua política de migração
intransigente, encontrou-se rapidamente na primeira linha do acolhimento dos
refugiados ucranianos, recolhendo mais de metade de todos os refugiados que
fugiram da Ucrânia, país vizinho como o qual partilha laços culturais e religiosos.
Mais globalmente, no meio desta tragédia, houve uma atitude acolhedora dos
países europeus no seu conjunto para com os refugiados ucranianos, atitude
que permanece sem precedentes na medida em que se pode dizer que assumiu o
papel de modelo para uma implementação exemplar do Direito Internacional dos
Refugiados.
Os refugiados fugiram da Ucrânia através de 31 postos de controle
fronteiriço no oeste do país, entrando na Polônia, Eslováquia, Hungria, Romênia
e Moldávia. Logo depois, esses países permitiram a permanência sem visto para os
ucranianos por até 90 dias, mas o destino daqueles que não são ucranianos e que
atravessaram as fronteiras não foi o mesmo. Pois, enfrentaram obstáculos ao cruzá-
las e foram tratados de forma discriminatória no sentido de que, primeiro, não
foram autorizados a entrar nesses países sem visto, ao contrário dos seus homólogos
ucranianos e, mais tarde, foram diferenciados em termos de políticas de visto. Por
exemplo, a Polônia permitiu vistos temporários de 15 dias, a Romênia vistos de
trânsito de 90 dias e a Hungria uma permissão de residência até 30 dias para quem
não fosse ucraniano.
Inicialmente, surgiram vários relatórios afirmando que residentes não
brancos, incluindo nigerianos, indianos e libaneses, estavam presos nas fronteiras
porque, ao contrário dos ucranianos, muitos não europeus precisavam de visto
para entrar nos países vizinhos. Também alguns cidadãos de países africanos foram
impedidos de embarcar nos trens para fora da Ucrânia, a fim de dar preferência

30 ACNUR. Operational Data Portal: Ukraine Refugee Situation. Disponível em: https://data.unh-
cr.org/en/situations/ukraine. Acesso em: 22 maio 2022.
31 VIERLINGER, Julian. UN: Ukraine refugee crisis is Europe’s biggest since WWII. Atlantic Coun-
cil, 20 de abril de 2022. Disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/blogs/ukrainealert/un-ukrai-
ne-refugee-crisis-is-europes-biggest-since-wwii. Acesso em: 22 maio 2022.

119
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aos cidadãos ucranianos32. Neste aspeto, é pertinente mencionar que o artigo 2° do


Protocolo nº 4 da CEDH reconhece a todos (incluindo os estrangeiros) a liberdade
de deixar qualquer país sem serem discriminados.
Além disso, as regras da UE preveem a obrigação de os refugiados poderem
solicitar asilo no primeiro país europeu em que entrarem. Todavia, diante de um
afluxo maciço de refugiados que impossibilita avaliações individuais, em 4 de março
de 2022, ou seja, apenas oito dias após o começo da invasão russa, a UE decidiu
ativar a Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, dita Diretiva
de Proteção Temporária (DPT)33. Esta diretiva, que tinha sido adotada no rescaldo
da guerra no Kosovo, estabelece normas mínimas para a concessão de uma proteção
imediata e temporária “no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas de países
terceiros impossibilitadas de regressar ao seu país de origem, e contribuir para uma
repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-Membros ao acolherem
estas pessoas e suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento” (artigo
1°). Também permite o acesso ao emprego, habitação ou alojamento, tratamento
médico, assistência social, reagrupamento familiar, entre outros direitos, por um
período de 1 a 3 anos, sem a exigência de preencher um pedido de asilo.
No entanto, a Diretiva 2001/55/CE está manchada pela discriminação
contra os não ucranianos, uma vez que se limita exclusivamente aos ucranianos com
estatuto de residente permanente na Ucrânia e aos nacionais de países terceiros já
com o estatuto de refugiado. Se tal aplicação diferenciada de um diploma concebido
com o objetivo de proteger e enfrentar a afluência maciça de requerentes de asilo é
discutível, também o é a sua não ativação em 2015, ano em que a Europa conheceu
um afluxo em massa de refugiados, principalmente sírios, fugindo igualmente
de um contexto nacional de guerra, bem como iranianos, afegãos, sudaneses, ou
ainda eritreus, tantas pessoas que temiam a perseguição. Enquanto teria sido do
interesse especial da Alemanha – o país que recebeu em 2015 o maior número

32 ZHOU, Youyou; NAREA, Nicole; ANIMASHAUN, Christina. Europe’s embrace of Ukrainian


refugees, explained in six charts and one map. Vox. 19 de março de 2022. Disponível em: https://
www.vox.com/22983230/europe-ukraine-refugees-charts-map. Acesso em: 12 maio 2022.
33 UE. Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, relativa a normas mínimas em
matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medi-
das tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-Membros ao
acolherem estas pessoas e suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento. Jornal Oficial L
212, 07/08/2001, p. 12-23. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=-
CELEX:32001L0055. Acesso em: 12 maio 2022.

120
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de requerimentos de asilo na UE34 – que a DPT fosse ativada, nem ela nem os
demais Estados-Membros que admitiram requerentes, fizeram quaisquer tentativas
para desencadear esta diretiva de 2001. Na época, os benefícios resultantes de
uma aplicação da dita diretiva apareceram como mínimos face aos custos elevados
de transação para se chegar a um acordo sobre a partilha das responsabilidades
entre os diversos países europeus35, em particular porque os eleitores não teriam
aceito o facto de que fluxo de pessoas de diversas origens culturais e religiosas
(independentemente de seu estatuto de refugiados) fossem indiscriminadamente
autorizadas a ficar, sobrecarregando assim os recursos nacionais limitados. Este
episódio tende assim a demonstrar que, mesmo quando a ativação pode parecer
teoricamente justificada, a decisão final depende sempre da vontade política.
Para acionar a DPT, é necessário que haja um “afluxo maciço” e que seja
relacionado a um grupo específico de “pessoas deslocadas”36. Todavia, a definição
destas duas noções é demasiado vaga, deixando espaço suficiente para uma
interpretação conforme o objetivo político desejado. O “afluxo maciço” é definido
pela DPT como a:

Chegada à Comunidade de um número importante de pessoas


deslocadas, provenientes de um país ou zona geográfica
determinados, quer tenham chegado à Comunidade por
sua espontânea vontade, quer tenham sido, por exemplo,
assistidas por um programa de evacuação37.

Aqui, a expressão “um número importante”, usado na definição, é tão


abstrato que parece impossível determinar com precisão quando se justifica a
ativação da DPT.
Além disso, as “pessoas deslocadas” são determinadas como:

Cidadãos de países terceiros ou apátridas que tiveram


de deixar o seu país ou região de origem, ou tenham sido

34 CONNOR, Phillip. Number of refugees to Europe surges to record 1.3 million in 2015. Pew Re-
search Center. 2 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.pewresearch.org/global/2016/08/02/
number-of-refugees-to-europe-surges-to-record-1-3-million-in-2015. Acesso em: 12 maio 2022.
35 GLUNS, Danielle; WESSELS, Janna. Waste of paper or useful tool? The potential of the temporary
protection directive in the current “refugee crisis”. Refugee Survey Quarterly, v. 36, 2017, p. 57-83.
36 UE. Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, op. cit., artigo 1°.
37 Ibid., artigo 2°, alínea d).

121
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

evacuadas, nomeadamente em resposta a um apelo de


organizações internacionais, e cujo regresso seguro e
duradouro seja impossível devido à situação nesse país, e
que possam eventualmente estar abrangidas pelo âmbito
de aplicação do artigo 1°, A, da Convenção de Genebra ou
outros instrumentos internacionais ou nacionais de proteção
internacional e, em especial:
i) pessoas que tenham fugido de zonas de conflito armado e
de violência endémica;
ii) pessoas que tenham estado sujeitas a um risco grave ou
tenham sido vítimas de violações sistemáticas ou generalizadas
dos direitos humanos38.

Assim, o fluxo de requerentes de asilo sírios de 2015 claramente cumpria


as condições necessárias para acionar a DPT.
Embora a atitude hospitaleira durante a crise atual deva ser saudada,
não se pode negar a diferença gritante no tratamento dado aos refugiados não
ucranianos, especialmente aqueles vindo do Oriente Médio e da África. Assim, no
episódio da crise dos refugiados sírios de 2015, a política de acolhimento defendida
inicialmente por países como a Alemanha e a Suécia, cessou rapidamente perante
o impossível acordo dos países da UE quanto à partilha das responsabilidades.
Diversos países da Europa Central e Oriental, como a Polônia e a Hungria,
mostraram-se particularmente reticentes, levando toda a Europa a endurecer as
suas políticas de migração e asilo39.
A Grécia, em particular, tem sido repetidamente acusada de recorrer a
técnicas de pushback ou de “retorno forçado” para afastar os requerentes de asilo do
Oriente Médio e da África. Em fevereiro de 2022, o ACNUR lamentou os horrores
do pushback a que o governo grego tem recorrido em sua fronteira com a Turquia
tanto em terra e como no mar. Nesse mesmo mês, 19 migrantes foram encontrados
mortos congelados nas terras limítrofes da Turquia e da Grécia, alegando-se que
as autoridades gregas haviam retirado suas roupas e sapatos para induzi-los a
regressar40. Há pouco tempo, o mundo testemunhou os horrores do pushback por

38 Ibid., artigo 2, al nea c).


39 BRITO, Renata. Europe welcomes Ukrainian refugees – others, less so. Ap News. 28 de fevereiro
de 2022. Disponível em: https://apnews.com/article/russia-ukraine-war-refugees-diversity-230b0c-
c790820b9bf8883f918fc8e313. Acesso em: 12 maio 2022.
40 PAPHITIS, Nicholas. UN alarmed at increasing reports of Greek migrant pushbacks. Ap News. 22
de fevereiro de 2022. Disponível em: https://apnews.com/article/europe-middle-east-greece-turkey-

122
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

meio de gás lacrimogêneo, granadas atordoantes e canhões de água nas mãos dos
gregos, quando a Turquia abriu a sua fronteira para a Europa, supostamente para
pressionar a UE a se submeter à sua demanda de lhe oferecer mais apoio para lidar
com as consequências da guerra na Síria41.
É um princípio bem estabelecido que quando um requerente de asilo
chega à fronteira para apresentar um pedido de asilo, esse indivíduo não deve ser
sumariamente afastado para o país terceiro de onde pretende entrar. Qualquer
afastamento sumário, sem avaliação do risco incorrido pelo Estado requerido não
só violaria o princípio da não repulsão, como também o artigo 3° da Convenção
de 1951, conforme consagrado pelo TEDH nos casos Ilias e Ahmed c. Hungria42,
M.A. e outros c. Lituânia43, e Sharifi e outros c. Itália e Grécia44. Mesmo quando um
requerente de asilo é interceptado pelo Estado requerido antes de chegar à fronteira
ou no alto mar, ainda assim tal requerente deverá ser considerado, para os efeitos
do artigo 1° da Convenção de 1951, dentro da jurisdição do Estado em causa por
exercer um controle sobre ele. Aliás, mesmo quando o requerente não pede asilo ou
não descreve o risco que corre, ainda assim o Estado requerido não fica isento de
sua obrigação nos termos do artigo 3° da Convenção de 1951, não tendo o direito
de o repelir, conforme indicado no caso Hirsi Jamaa e outros c. Itália45.
Além disso, a exclusão coletiva de requerentes de asilo ou migrantes é
proibida por força do artigo 4° do Protocolo nº 4 da CEDH. No caso N.D. e N.T.
c. Espanha46, o TEDH estabeleceu um sistema de dois níveis no qual: em primeiro
lugar, deve verificar-se se o Estado demandado proporcionou uma efetiva entrada
ao seu território, e se o procedimento fronteiriço previsto para a apresentação do
pedido de asilo por parte daqueles que fogem à perseguição está em conformidade
com o artigo 3° da Convenção de 1951, entre outras normas internacionais,
incluindo a CEDH; em segundo lugar, avaliar se há alguma razão convincente

-migration-b6eb4527f91ef2b695d119ae3fc2d753. Acesso em: 12 maio 2022.


41 KANTOURIS, Costa; FRASER, Suzan. Tensions between Greece and Turkey rise over migrant
clashes. Ap News. 4 de março de 2020. Disponível em: https://apnews.com/article/syria-turkey-in-
ternational-news-recep-tayyip-erdogan-business-1e035ccd7098ab6735ea9f11de9401a0. Acesso em:
12 maio 2022.
42 TEDH, Ilias e Ahmed c. Hungria, queixa n° 47287/15, acórdão de 21 de novembro de 2019.
43 TEDH, M.A. e outros c. Lituânia, queixa n° 59793/17, acórdão de 11 de dezembro de 2018.
44 TEDH, Sharifi e outros c. Itália e Grécia, queixa nº 16643/09, acórdão de 21 de outubro de 2014.
45 TEDH, Hirsi Jamaa e outros c. Itália, queixa nº 27765/09, acórdão de 23 de fevereiro de 2012.
46 TEDH, N.D. e N.T. c. Espanha, queixas nos 8675/15 e 8697/15, acórdão de 3 de dezembro de
2017.

123
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

(atribuível ao Estado) para um requerente não utilizar os meios fornecidos a nível


nacional. Se não houver razão convincente para o mesmo, o Estado fica livre de sua
obrigação e pode até recusar o acesso a tais indivíduos, o que não constituiria uma
violação do artigo 4° do Protocolo nº 4 da CEDH. Neste sistema de dois níveis, o
ônus da prova recai sobre o Estado demandado e não sobre o requerente de asilo.
Ademais, é útil mencionar que os artigos 3° e 4° do Protocolo nº 4 da CEDH
devem ser articulados com o artigo 13° da mesma CEDH, que consagra o direito a
um recurso efetivo. Por conseguinte, os países receptores não podem escapar à sua
responsabilidade simplesmente recorrendo ao pushback.

4 CONCLUSÃO

Em linhas conclusivas, no trabalho foi explanada uma análise jurídico-


comparativa sobre as crises migratórias na Europa nos anos de 2021 e 2022, e o seu
posicionamento frente aos refugiados ucranianos e aos não europeus.
O mundo testemunhou como requerentes de asilo (incluindo mulheres,
crianças e idosos) oriundos do Afeganistão, Iraque, Síria e África ficaram presos
na fronteira entre Polônia e Bielorrússia durante um inverno rigoroso, como a
Bielorrússia foi acusada de instrumentalizar os requerentes de asilo, facilitando-lhes
a passagem da fronteira polonesa para a UE, enquanto a Polônia reagiu ao adotar
medidas legislativas draconianas de pushback em violação das suas obrigações
convencionais. Poucos meses depois, o mundo também testemunhou, desde o
início da guerra na Ucrânia, como as autoridades polonesas fizeram uma reviravolta
completa na sua política migratória inflexível e como a Europa conseguiu afirmar
sua unidade na adoção de sanções contra a Rússia pela sua invasão da Ucrânia, bem
como na gestão do acolhimento dos refugiados.
Por um lado, é evidente a violação dos direitos dos refugiados oriundos
de países do Oriente Médio e da África. Por outro, é exemplar o resguardo dos
mesmos direitos perante os refugiados ucranianos através de uma mobilização
de toda a Europa para acolhê-los. Diante desse contraste, não só se constatou a
violação às normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos em geral, e do
Direito dos Refugiados mais especificamente, como foi demonstrado nitidamente o
quanto a vontade política influencia de forma decisiva a implementação do Direito
Internacional, e que se o mesmo não é efetivo como deveria não é por escassez de
normas, mas sim pela falta de vontade política em segui-las.

124
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Cabe, portanto, aos países da Europa encontrarem medidas de aplicação


para cumprirem seus compromissos aos níveis internacional e regional, a fim que
os direitos dos refugiados sejam efetivos em seus territórios. Cabe igualmente às
organizações, sejam governamentais como o ACNUR, ou não governamentais,
conscientizar a sociedade civil sobre os direitos dos refugiados, seu acolhimento e
os meios de os integrar. Com a observância destas recomendações, os direitos dos
refugiados encontrar-se-ão mais perto de ser efetivos.

125
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130
A proteção dos refugiados através da implementação da cláusula
social nos acordos de comércio internacional celebrados no âmbito
da Organização Mundial do Comércio

Cláudio César Machado Moreno1

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto de pesquisa a confluência entre


o fenômeno do deslocamento forçado, em especial o refúgio, e a utilização do
dumping social pelas grandes empresas como forma de redução de custos com mão
de obra e a consequente redução do valor final de bens destinados à exportação.
Os deslocados forçados existentes no mundo, em especial os refugiados,
buscam melhores condições vida em Estados diferentes da sua nacionalidade,
contudo, uma das grandes barreiras encontrada nessa busca diz respeito
especialmente a garantia dos direitos sociais, em especial os direitos trabalhistas.
Várias são as denúncias, no Brasil e em outros Estados, contra empresas
que se utilizam de trabalho escravo ou análogo à escravidão, impulsionadas pela
concorrência que as leva a praticar ou aceitar que seus fornecedores pratiquem o
chamado dumping social, ou seja, a utilização de mão de obra em Estados com
pouco ou nenhuma proteção aos trabalhadores, em especial refugiados que, por

1 Doutorando em Direito Internacional e Direito Comparado pela USP – Universidade de São Paulo.
Mestre em Direito pela UNIVEM – Centro Universitário Eurípedes de Marília, Professor de Direito
Civil e Direito Internacional Privado da Universidade Estadual de Londrina. Professor de Direito
Civil, Direito Internacional e Direitos Humanos da Universidade Pitágoras-Unopar e da Universi-
dade Uniderp-Anhanguera. Pesquisador do NETI – Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais
da Faculdade de Direito da USP. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3549947656974130. E-mail:
cmoreno@uel.br.

131
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

necessidade e/ou desconhecimento, são obrigados a se submeter a condições


precárias de trabalho.
Como forma de coibir a prática de dumping social, se discute no âmbito
internacional, a implementação da chamada cláusula social, regras a serem inseridas
nos acordos de comércio internacional, que estabeleçam a obrigatoriedade de
padrões trabalhistas mínimos, os quais se aplicariam a toda a cadeia produtiva dos
bens destinados ao comércio internacional.
Consequentemente, a aplicação de tais padrões trabalhistas mínimos
acarretaria a proteção dos trabalhadores, entre eles os refugiados, possibilitando aos
Estados a adoção de medidas e a retirada de benefícios dos acordos de comércio
internacional, forçando ao cumprimento e a aplicação de regras trabalhistas.
Neste contexto o presente trabalho, em seu ponto 2 apresenta a atual
situação dos refugiados no mundo, bem como os documentos internacionais e
nacionais de proteção. No ponto 3 são apresentadas as condições de trabalho às
quais são submetidos os refugiados. O ponto 4 trata da figura do dumping no
comércio internacional, seu aparecimento e configuração. A figura do dumping
social e a discussão sobre a cláusula social serão apresentadas no ponto 5.

2 REFÚGIO – DADOS ATUAIS, DOCUMENTOS INTERNACIONAIS E


LEGISLAÇÃO NACIONAL

Segundo o relatório “Tendências Globais 2021”, elaborado pelo ACNUR


(Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), nesta última década o
mundo vive o maior período de migrações da história. A Venezuela aparece com o
segundo maior número de nacionais que se deslocaram para o exterior (4,6 milhões)
atrás somente da Síria (6,8 milhões). A Colômbia aparece em segundo lugar na
recepção de deslocados (1,8 milhões), estando à sua frente a Turquia (3,8 milhões)2.
Dados do ACNUR em 2019 já estimavam que o número de venezuelanos
deslocados já havia ultrapassado a casa dos 5 milhões3, tendo como destino principal
outros Estados da América Latina e do Caribe. Este é considerado o maior êxodo da

2 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Ten-


dências Globais – Deslocamento forçado em 2021, junho de 2022. Disponível em: https://
www.acnur.org/stats/globaltrends/62aa717288e/tendencias-globales-de-acnur-2021.html#_
ga=2.161592700.1913821043.1655745886-169480580.1655745886. Acesso em: 21 jun. 2022.
3 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Venezue-
la. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/venezuela/. Acesso em: 8 set. 2020.

132
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

história na região e uma das maiores crises de deslocamento do mundo4. A situação


também é preocupante na América Central, sendo que em 2017 foram registradas
mais de 294 mil solicitações de refúgio de nacionais desta região5.
No ano de 2021 a situação mais preocupante ocorre na Nicarágua onde,
a escalada da crise sócio-política e a perseguição política, levou a fuga de mais de
100.000 nicaraguenses6.
Em 2020 o mundo viu 89,3 milhões de pessoas se deslocarem à força,
destes 36,1 milhões tiveram que se deslocar para outros Estados e 27,1 milhões
estavam na condição de refugiados7.
Outras milhares de pessoas estão se deslocando em decorrência de
situações que não se enquadram especificamente em hipóteses de perseguição ou
em virtude de guerras. Verifica-se que milhares estão fugindo da pobreza, chamados
de deslocados econômicos e outros fugindo de desastres ambientais, chamados de
ecomigrantes, que tentam reconstruir suas vidas longe de seus Estados, uma vez que
não lhe são concedidas condições mínimas de existência digna.
O desenvolvimento do instituto do refúgio está ligado ao fim da Segunda
Guerra Mundial, coincidindo com a origem dos sistemas gerais de proteção dos
direitos humanos na primeira metade do século XX, porém, antes mesmo da
Primeira Guerra Mundial, “grandes contingentes de refugiados dos Impérios Russo
e Otomano dirigiam-se à Europa central e à do oeste, assim como para a Ásia”8.

4 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Nota de


Orientação sobre Considerações de Proteção Internacional para Venezuelanos. Atualização I, maio
2019. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/5cd1950f4.html. Acesso em: 7 set. 2020.
5 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Acnur
expressa preocupação diante do grande aumento do deslocamento forçado na América Central. 22 mai.
2018. Disponível em https://www.acnur.org/portugues/2018/05/22/acnur-expressa-preocupacao-
-diante-do-grande-aumento-do-deslocamento-forcado-no-norte-da-america-central/. Acesso em: 7
set. 2020.
6 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Ten-
dências Globais – Deslocamento forçado em 2021, junho de 2022. Disponível em: https://
www.acnur.org/stats/globaltrends/62aa717288e/tendencias-globales-de-acnur-2021.html#_
ga=2.161592700.1913821043.1655745886-169480580.1655745886. Acesso em: 21 jun. 2022.
7 Ibid.,,
8 SILVA JÚNIOR, Eraldo. Direito internacional dos refugiados no século XXI: desafios ao Estado
brasileiro. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión. v. 5 n. 10. Asunción. Oct. 2017.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.16890/rstpr.a5.n10.p196. Acesso em: 10 set. 2020.

133
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No âmbito internacional três são os documentos de maior importância


em relação ao instituto do Refúgio: a) Convenção de Genebra relativa ao Estatuto
dos Refugiados (1951)9; b) Protocolo de Nova Iorque adicional à Convenção relativa
ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (1967)10; e c) A Declaração de Cartagena
(1984)11, os dois primeiros com alcance mundial e o último um documento
regional não vinculante.
No âmbito do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) existe uma
busca pela a harmonização das legislações e dos procedimentos de concessão
das solicitações de refúgio, fato esse que pode ser verificado pela aprovação da
Declaração do Rio de Janeiro (2000), da Declaração de Fortaleza (2012), bem
como pela sua própria natureza.
Contudo, em que pese todos os esforços realizados através das declarações
do Rio de Janeiro e de Fortaleza, o MERCOSUL não possuí um sistema de
tratamento aos refugiados de caráter regional, existindo diferenças no tratamento
concedido nos Estados-parte do bloco.
Além do mais, os Estados-parte originários do bloco têm diferentes
percepções e orientações a respeito da discussão migratória, o que dificulta a
possibilidade de aproximação legislativa e, consequentemente, o reconhecimento
da condição de refugiado intrabloco.
No Brasil, o desenvolvimento da proteção aos refugiados somente foi
possível a partir de meados dos anos 1980 com a redemocratização. Contudo, seu
maior desenvolvimento ocorreu nos anos 1990 com a ratificação da Convenção
das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e do Protocolo

9 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Con-


venção Relativa ao Estatuto do Refugiado de 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/
Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf?view=1. Aces-
so em: 8 set. 2020.
10 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Con-
venção Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Protocolo_de_1967Relativo_ao_Estatuto_dos_Refugiados.
pdf. Acesso em: 8 set. 2020.
11 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – AC-
NUR. Declaração de Cartagena. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/
Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf?-
view=1#:~:text=Augusto%20Ramirez%20Ocampo%2C%20ao%20Alto,e%20realiza%C3%A7%-
C3%A3o%20deste%20importante%20evento. Acesso em: 11 set. 2020.

134
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

relativo ao Estatuto dos Refugiados (1967), bem como a elaboração do Estatuto


dos Refugiados (Lei 9474/97).
Os documentos internacionais mencionados, foram a base para a
elaboração da Lei 9474/9712, mais conhecida como “Estatuto dos Refugiados”,
demonstrando, na prática, a lição de Wagner Menezes:

Mediante essa nova dimensão oportunizada por este conjunto


de fatores, o Direito Internacional penetra em muitas esferas
de competência do Direito Interno e influência cada vez
mais a produção de normas para conformação dos objetivos
traçados nos foros internacionais. As instituições legislativas
dos Estados se obrigam a cumprir, sem dúvida, diretivas
originadas de compromissos de governo no exercício das
relações internacionais13.

Assim, vislumbrasse na elaboração do Estatuto do Refugiado, o fenômeno


do movimento de deslocalização de produção de normas jurídicas, onde, os
Estados, através dos poderes constituídos, reproduzem textos de normas elaboradas
em documentos internacionais como se fossem nacionais, mas não deixam de ser
internacionais14.
Por outro lado, essa interação normativa, que caracteriza as relações de uma
sociedade transnacional, propicia o desenvolvimento de um sistema de interação
jurídica entre o internacional e o local, relação essa que pode ser denominada de
transnormativa entre o Direito Internacional e o Direito Interno15.
Além dos documentos citados, vale ainda ressaltar que a Lei 13.445/1716,
Lei de Migração, estabeleceu, entre seus princípios, a acolhida humanitária, o
fortalecimento da integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina e, também, a cooperação internacional com Estados de origem,

12 BRASIL. Lei n.º 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do
Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília: Presidência da República,
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13 MENEZES, Wagner. Ordem global e transnormatividade. Ijuí: Unijuí, 2005. p. 200.
14 Ibid.,, p. 201.
15 Ibid.,, p. 203.
16 BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília: Presidência
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135
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de trânsito e de destino de movimentos migratórios, objetivando garantir efetiva


proteção aos direitos humanos.
O refugiado ou apátrida, impossibilitado de viver em seu país, perde a
sua religião, a língua, costumes e leis, o que gera graves consequências jurídicas
em sua personalidade. Por isso, é preciso que seja acolhido em qualquer parte do
mundo e que tenha seus direitos enquanto pessoa preservados17.
Outrossim, a proteção internacional dos refugiados está estruturada nos
direitos individuais e na responsabilidade estatal que tem a mesma base filosófica
da proteção internacional dos Direitos Humanos, sendo este considerado a fonte
dos princípios de proteção dos refugiados, ao mesmo tempo que complementa tal
proteção18.
É considerado refugiado, nos termos do Artigo 1.º da Lei 9474/97,
qualquer pessoa que tenha sofrido perda da proteção de seu estado e que tenha um
fundado temor de perseguição em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo
social, opinião política ou grave e generalizada violação dos direitos humanos. Deste
modo, o Brasil aplica o conceito ampliado de refugiado, nos termos da Declaração
de Cartagena.
Assim, refugiado é o indivíduo que tem um fundado temor de perseguição
em seu Estado de origem, por atos praticados pelo próprio Estado ou por atores não
estatais, com base nas cinco categorias citadas: raça, religião, nacionalidade, filiação
a grupo social, opinião política. Neste sentido, a busca pelo refúgio, reflete a fuga
dos indivíduos das condições precárias que existem no próprio Estado de origem. 19
Em que pese o cenário atual, o Brasil, por muitos anos, manteve-se
afastado de grandes discussões e polêmicas sobre o assunto, pois a distância das

17 LOUREIRO, Claudia Regina Magalhães. Refugiados e apátridas no Direito Internacional. Belo


Horizonte: Arraes, 2018. p. 88.
18 VALÉRIO, Alana Fagundes. Refugiados e políticas públicas no Brasil. 2018. 146 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Jurídicas) Centro de Ciências Sociais Aplicadas do Campus de Jacarezinho da
Universidade Estadual do Norte do Paraná. Disponível em: https://uenp.edu.br/pos-direito-teses-dis-
sertacoes-defendidas/direito-dissertacoes/12565-alana-fagundes-valerio/file. Acesso em: 9 set. 2020.
19 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – AC-
NUR. Declaração de Cartagena. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/
Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf?-
view=1#:~:text=Augusto%20Ramirez%20Ocampo%2C%20ao%20Alto,e%20realiza%C3%A7%-
C3%A3o%20deste%20importante%20evento. Acesso em: 11 set. 2020. p. 70.

136
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

rotas de migração acarretava uma busca reduzida do país para concessão das figuras
protetivas.
A partir de 2015, a discussão sobre o assunto relativo aos deslocados e
refugiados passou a ser pauta da mídia no Brasil, bem como passou a preocupar o
Governo Federal, pois milhares de venezuelanos passaram a buscar um padrão de
vida melhor, fugindo da crise venezuelana que causa a escassez de alimentos.
Visando conceder mais celeridade aos pedidos de refúgio que têm sido
formulados pelos venezuelanos, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)
reconheceu, em junho de 2019, que a Venezuela passa por um momento de
existência de grave e generalizada violação de direitos humanos, prevista no inciso
III, do artigo 1° da Lei n° 9.474/97, conforme destaca a Nota Técnica n.º 3/2019/
CONARE20 aditada pela Nota Técnica n.º 12/2019/CONARE21.
Assim, com o reconhecimento da existência de grave e generalizada
violação de direitos humanos na Venezuela, com a consequente simplificação dos
procedimentos, o Brasil passou a ter o maior número de venezuelanos reconhecidos
como refugiados, alcançando, em 2020, a marca de cerca de 46 mil pessoas.
Contudo, se estima que cerca de 260 mil venezuelanos vivam no Brasil, tendo sido
registrados mais de 130 mil pedidos de refúgio22.

3 DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS REFUGIADOS

Diante da realidade migratória narrada, a maior dificuldade para os


Estados e, consequentemente, para os refugiados é a inserção social, cultural e
econômica. A dificuldade com a língua portuguesa, com os novos costumes nos
quais foram inseridos, a religião professada e a necessidade de auferir renda para as
necessidades básicas, tornam-se, em muitos casos, barreiras instransponíveis.

20 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Nota Técnica n.º 3/2019/CONARE.


Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1564080197.57/sei_mj-
-8757617-estudo-de-pais-de-origem-venezuela.pdf. Acesso em: 30 set 2021.
21 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Nota Técnica n.º 12/2019/CONARE.
Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/anexos/SEI_MJ10407688NotaTc-
nicaVenezuela_aditamento.pdf. Acesso em: 30 set. 2021.
22 ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS – ACNUR. Brasil
reconhece mais 7,7 mil venezuelanos como refugiados. 28 ago. 2020. Disponível em: https://www.acnur.
org/portugues/2020/08/28/brasil-reconhece-mais-77-mil-venezuelanos-como-refugiados/. Acesso
em: 15 out. 2020.

137
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A entrada no mercado de trabalho é um dos principais motores quando


da entrada do refugiado no Estado estrangeiro, se estabelecendo como uma das
principais bases, uma garantia contra a exclusão.
O mercado de trabalho, ao contrário do que se imagina, mostra
características específicas para a entrada dos refugiados, concentrando-se as
oportunidades nos ramos de atividades de pior situação ou com mais acidentes de
trabalho, tendo sido definidos como os trabalhos dos três P’s: os mais penosos, os
mais perigosos e os mais precários, o que demonstra a vulnerabilidade que atinge
tais trabalhadores e que os empurra para a exclusão social, acarretando uma taxa de
pobreza muito maior que das populações indígenas23.
Contudo, em que pese a realidade vivenciada pelos refugiados no Brasil,
a Constituição garante aos estrangeiros aqui residentes, não somente os direitos
estabelecidos pelo artigo 5.º, mas todos os direitos sociais, entre eles os direitos
trabalhistas.
Não bastasse a proteção constitucional, que por si só deveria ser suficiente,
a República Federativa do Brasil ratificou a Convenção de Genebra de 1951, a
qual, impõe aos signatários o dever de tratamento igualitário aos refugiados no que
se refere ao trabalho. No mesmo sentido, foi ratificada a Convenção 97 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho), que estabelece o mesmo tratamento a
trabalhadores brasileiros e estrangeiros aqui residentes.
Contudo, em que pese o arcabouço legislativo existente, assecuratório
de todas os direitos sociais, entre eles os trabalhistas, é comum que a exploração de
refugiados seja notícia e ainda necessite de intervenção do Ministério Público do
Trabalho e da Justiça do Trabalho.
No ano de 2014 várias foram as notícias envolvendo trabalhadores
bolivianos e a situação descrita do local, realizada em uma das fiscalizações do
Ministério do Trabalho, concede uma dimensão da realidade:

A sala de costura era no subterrâneo, com fiações expostas,


sem janela, restos de comida e botijões de gás espalhados
pelos quartos e mofos nas paredes, ambiente insalubre de

23 MENEZES, Daniel Francisco Nagao. Economia solidária e migrações em um mundo globaliza-


do. In: MENEZES, Daniel Francisco Nagao; CONTIPELLI, Ernani de Paula; VEDOVATO, Luis
Renato (org.). Migração, mudança climática e economia social em um mundo globalizado, p. 23. Belo
Horizonte: Arraes, 2018. p. 23.

138
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

moradia e trabalho no mesmo local. As jornadas eram das 7h


às 22hs, chegando até às 23h ou meia noite. Recebiam como
pagamento somente alimentação e moradia24.

Tem sido muito comum empresas terceirizadas, que prestam serviços


para marcas famosas de vestuário no Brasil, serem autuadas por empregarem
trabalhadores estrangeiros, muitos deles refugiados, em condições precárias, tais
como M.Officer25, Zara26, que foi condenada em 201727, Lojas Renner, Casas
Pernambucanas, Coca Cola e Lojas Marisa28.
Dados apontam que entre 2006 e 2020 em torno de 860 estrangeiros
foram resgatados de trabalho escravo no país, sendo que 46% atuavam no setor
de confecção de roupas, advindos de 11 nacionalidades diferentes, sendo, na sua
maioria bolivianos, paraguaios e haitianos29.
Um dos casos que mais chamou a atenção da mídia no Brasil envolve
a empresa Sadia, hoje BR Foods, maior empresa alimentícia brasileira e uma das
maiores do mundo. No ano de 2012 a empresa foi investigada por utilizar de
serviços análogos à escravidão na contratação de mulçumanos estrangeiros para

24 ROLLI, Claudia. Fiscalização encontra bolivianos em condições insalubres de trabalho em oficina


que costurava para grife. Folha de São Paulo, 16 maio 2015. Disponível em: https://m.folha.uol.com.
br/mercado/2014/05/1455728-imigrantes-sao-flagrados-em-condicoes-insalubres-em-confeccao-de-
-roupas-de-grife.shtml. Acesso em: 29 jan. 2022.
25 Ibid.,,
26 PYL, Bianca; HASHIZUME, Maurício. Roupas da Zara são fabricadas com mão
de obra escrava. Repórter Brasil. 16 ago. 2011. Disponível em: https://reporterbrasil
.org.br/2011/08/roupas-da-zara-sao-fabricadas-com-mao-de-obra-escrava/. Acesso em: 29 jan. 2022.
27 O GLOBO. Justiça decide que Zara é responsável por trabalho escravo flagra-
do em 2011. 14 nov. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia
/justica-decide-que-zara-responsavel-por-trabalho-escravo-flagrado-em-2011-22070129. Acesso em:
29 jan. 2022.
28 NAVARRO, Amanda. Trabalho escravo – Conheça 9 marcas famosas envolvi-
das com trabalho escravo. Esquerda Diário. 18 out. 2017. Disponível em: https://www.
esquerdadiario.com.br/Conheca-9-marcas-famosas-envolvidas-com-trabalho-escravo. Acesso em: 29
jan. 2022.
29 BRASIL DE FATO. Nos últimos 14 anos, 860 estrangeiros foram resgata-
dos de trabalho escravo. 20 jul 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br
/2021/07/20/nos-ultimos-14-anos-860-estrangeiros-foram-resgatados-de-trabalho=-escravo#:~:text-
Entre%202006%20e%202020%2C%20pelo,03005.058385%2F2021%2D85. Acesso em: 29 jan.
2022.

139
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

trabalharem em frigoríficos no Paraná e no Distrito Federal no corte halal30 de


frangos31.
Contudo, como acentuam Danielle Annoni e Joanna de Angelis Galdino
Silva, no transcorrer dos anos, somente houve mudança quanto a nacionalidade
dos explorados:

Com o passar dos anos o que mudou, infelizmente, foi apenas


a nacionalidade dos explorados. Em agosto de 2014 o MPT-
PR criou um fórum para investigar as condições de trabalho
dos imigrantes haitianos na construção civil, tendo sido
constatadas irregularidades desde o meio ambiente de trabalho
até a discriminação de empresas deste ramo. Esperava-se,
então, que as ilegalidades fossem sanadas, mas a realidade é
que, a partir de dezembro de 2014, as empresas paranaenses
determinaram, de forma completamente discriminatória,
que não mais se admitissem haitianos em seus quadros de
empregados32.

A situação é a mesma em outros Estados, sendo que várias empresas são


acusadas por utilizar ou pactuar que fornecedores utilizem mão de obra escrava ou
em condições análogas à escravidão, com utilização de deslocados forçados ou não.

30 Essa carne ou corte é chamada de halal, pois segue princípios do Islã tanto na produção quanto no
abate. Em árabe, a palavra significa legal, permitido. E os muçulmanos só podem consumir alimentos
que foram produzidos seguindo esse ritual islâmico. Os requisitos mais importantes são verificar e se
certificar de que as aves estejam vivas, apresentando sinais vitais, e fazer a degola da forma que manda
o Islã. Os sangradores devem ser muçulmanos praticantes. A degola deve ser realizada cortando as
jugulares, as veias e artérias, para poder fazer o sangramento correto da ave, escoando o sangue para
que o alimento seja próprio para a consumação; G1. Conheça o processo de criação e abate de frango
‘halal’, que segue preceitos islâmicos. 18 nov. 2011. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/
agronegocios/globo-rural/noticia/2018/11/18/conheca-o-processo-de-criacao-e-abate-de-frango-ha-
lal-que-segue-preceitos-islamicos.ghtml. Acesso em: 29 jan. 2022.
31 FELLET, João. Refugiados denunciam maus-tratos em fábrica da Sadia. BBC Brasil. 26 jan. 2012.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/01/120125_refugiados_maus_tra-
tos_sadia_jf. Acesso em: 29 jan. 2022.
32 ANNONI, Danielle; VALDES, Lysian Carolina. O direito internacional dos refugiados e o Brasil.
Curitiba: Juruá, 2013.

140
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No ano de 1996 a Nike foi associada ao trabalho infantil no mundo, após


ser divulgada, pela Revista Life, a foto de um paquistanês de, apenas, 12 anos de
idade costurando uma bola de futebol da transnacional33.
Em 2012 a Coca-Cola foi denunciada por trabalho escravo, uma vez que
importava laranjas de uma fazenda em Rosarno, na Itália, que trabalhava com mão-
de-obra escrava de imigrantes vindos da África, que atravessavam o oceano rumo à
costa europeia para tentar uma vida melhor34.
Em 2021, a Apple foi acusada de compactuar com fornecedores chineses
que utilizam trabalhos forçados, que incluíam o uso de muçulmanos uigures35 da
região de Xinjiang e outros grupos de populações oriundas dessa região36.
Grande parte do cacau utilizado pela Hershey’s vem da África Ocidental,
incluindo a Costa do Marfim, onde, segundo inúmeras denúncias da Unicef e de
outros grupos de direitos humanos, o trabalho escravo infantil é bastante comum.
É sabido que crianças são constantemente traficadas de Estados vizinhos para
trabalhar em plantações de cacau da Costa do Marfim, mas a Hershey’s não se
pronuncia sobre o assunto37.
Verifica-se que as empresas citadas estão diretamente ligadas ao fenômeno
da globalização, baseada na livre circulação de mercadorias e de capital, que, aliada
ao crescimento industrial, a facilidade de transporte ente os Estados e a defesa do

33 SPITZCOVSKY, Débora. 5 empresas envolvidas com trabalho escravo. The Greenest Post. Dis-
ponível em: https://thegreenestpost.com/5-empresas-envolvidas-com-trabalho-escravo/. Acesso em:
29 jan. 2022.
34 Ibid.,,
35 Os uigures são muçulmanos que habitam predominantemente a região autônoma de Xinjiang, no
noroeste da China, que faz fronteira com o Paquistão e o Afeganistão. Sua língua é parente da língua
turca e os uigures se veem culturalmente e etnicamente mais ligados à Ásia Central do que ao resto da
China; BBC BRASIL. Entenda a questão dos uigures na China. 7 jul. 2009. Disponível em: https://
www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/07/090707entendauigurestp. Acesso em: 29 jan. 2022.
36 ISTO É DINHEIRO. 7 fornecedores da Apple acusados de usar trabalho forçado na China. 11 maio
2021. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/7-fornecedores-da-apple-acusados-de-usar-
-trabalho-forcado-na-china/. Acesso em: 29 jan. 2022.
37 SPITZCOVSKY, Débora. 5 empresas envolvidas com trabalho escravo. The Greenest Post. Dis-
ponível em: https://thegreenestpost.com/5-empresas-envolvidas-com-trabalho-escravo/. Acesso em:
29 jan. 2022.

141
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

livre comércio, tem como consequência uma concorrência nunca vista no comércio
internacional, levando tais empresa a se digladiar na disputa por mercados38.
Pode-se citar que a globalização tem um caráter fragmentador e
segmentador, uma vez que sua velocidade tem potencial de gerar mais exclusão
social. Além do mais, grande parte dos migrantes que buscam trabalho tem baixa
qualificação e não tiveram a possibilidade de se adaptar a era das novas tecnologias.39
Dois pontos são de suma importância neste cenário: a) a globalização
da produção que envolve a promoção dos produtos em vários Estados para se
conquistar o mercado internacional e b) a divisão internacional do trabalho, que
se traduz pela alocação mais favorável e a menores custos da mão de obra pelas
empresas40.
Desta forma, verifica-se que na divisão internacional do trabalho, as
empresas têm optado pela redução dos custos com mão de obra, como demonstrado
pelos vários casos citados anteriormente, promovendo uma precarização da condição
dos trabalhadores migrantes, para que possam competir no mercado internacional,
praticando, reiteradamente, o chamado dumping social.

4 COMÉRCIO INTERNACIONAL E DUMPING

Após o término da Segunda Guerra Mundial os Estados se viram diante


de um grande objetivo: a criação de uma organização com abrangência mundial,
que buscasse a manutenção da paz e pudesse impedir os horrores ocorridos durante
as duas grandes guerras, momento marcado pelo surgimento da ONU (Organização
das Nações Unidas), com o objetivo primordial de manter a paz entre as nações.
No âmbito da própria ONU, foram criadas várias organizações
internacionais, como objetivos específicos de atuação, destacando-se, nesse
contexto, o acordo de Bretton Woods, o qual previa a criação de três organizações
internacionais de natureza econômica: o FMI (Fundo Monetário Internacional);
o BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento), hoje

38 LAU, Ana Isaballa. A cláusula social no comércio internacional: A interação entre a OMC e a OIT
no combate ao dumping social. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa. v. 6. n.11, p. 189-206,
jan/jun. 2015. p. 191
39 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 246.
40 GUIMARÃES, Priscila de Brito Ataíde. A imigração e a proteção do trabalho: o dilema entre a
aplicação do Estatuto do Estrangeiro e a proteção trabalhista dos imigrantes bolivianos e haitianos.
(dissertação – mestrado). Universidade Católica de Brasília, 2015. p. 23

142
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

mais conhecido como Banco Mundial, e a OIC (Organização Internacional do


Comércio).
As duas primeiras organizações foram criadas, mas, por problemas
relacionados à sistemática de ratificação dos diversos Estados e, principalmente,
pela posição americana, a OIC não saiu do papel41.
O projeto da carta da OIC era ambicioso para a época e, além de
estabelecer disciplinas para o comércio mundial, continha normas relacionadas
aos empregos, convênios sobre produtos básicos, práticas comerciais restritivas,
investimentos internacionais e serviços.
Contudo, frente a posição norte-americana, a criação da OIC, fracassou,
exercendo o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), por mais de quatro
décadas, a regulamentação do comércio mundial.
Com o avanço do comércio internacional, impulsionado por novas
práticas de produção e comercialização, geraram um grande crescimento da
econômica internacional, provocando, consequentemente, um aumento da
concorrência entre as empresas, que passaram a se digladiar por melhores mercados,
surgindo, neste contexto, a figura do dumping, termo utilizado para designar a
concorrência desleal, caracterizada pela drástica redução do preço de produtos e
serviços, com o objetivo primordial de ganho de mercado42.
Com a criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) e
considerando a concorrência desleal que se instalou na ordem internacional,
também foi aprovado o Código Antidumping, instrumento convencional que
regula o assunto no âmbito internacional e impôs aos Estados membros da referida
organização a adequação de seus ordenamentos internos43.
Nos termos do GATT, se reconhece dumping como:

1. As Partes Contratantes reconhecem que o “dumping” que


introduz produtos de um país no comércio de outro país por

41 Para uma maior explanação do impasse envolvendo a criação da OIC ver: BARRAL, Welber.
Dumping e comércio internacional: A regulamentação antidumping após a Rodada Uruguai. Rio de
Janeiro: Forense: 2000. p. 76/82.
42 LAU, Ana Isaballa. A cláusula social no comércio internacional: A interação entre a OMC e a OIT
no combate ao dumping social. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa. v. 6. n.11, p. 189-206,
jan/jun. 2015. p. 191
43 Ibid.,, p. 192.

143
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

valor abaixo do normal, é condenado se causa ou ameaça


causar prejuízo material a uma indústria estabelecida no
território de uma Parte Contratante ou retarda, sensivelmente
o estabelecimento de uma indústria nacional. Para os efeitos
deste Artigo, considera-se que um produto exportado de
um país para outro se introduz no comércio de um país
importador, a preço abaixo do normal, se o preço desse
produto:
a) é inferior ao preço comparável que se pede, nas condições
normais de comércio, pelo produto similar que se destina ao
consumo no país exportador; ou
b) na ausência desse preço nacional, é inferior:
I) ao preço comparável mais alto do produto similar destinado
à exportação para qualquer terceiro país, no curso normal de
comércio; ou
II) ao custo de produção no país de origem, mais um
acréscimo razoável para as despesas de venda e o lucro44.

O dumping pode ser definido como a discriminação de preços entre


dois mercados nacionais, entre o mercado exportador e o mercado importador.
Em outras palavras, o preço demandado por um determinado bem, pelo mesmo
produtor, difere entre dois mercados, desconsiderando-se os fatores relacionados a
transporte, tributos, etc45.
Sobre o tema leciona Juliana Machado Massi:

Compreende-se dumping como uma forma de concorrência


desleal de caráter internacional, que consiste na venda de
produtos pelo país exportador com preços abaixo do valor
normal, não necessariamente abaixo do preço de custo,
praticado no mercado interno do país exportador, podendo
causar ou ameaçar causar danos às empresas estabelecidas no
país importador ou prejudicar o estabelecimento de novas
indústrias no mesmo ramo neste país46.

44 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO COMÉRCIO – OMC. Acordo Geral sobre ta-


rifas aduaneiras e comércio (GATT 47). Disponível em: http://siscomex.gov.br/wp-content/
uploads/2021/05/OMC_GATT47.pdf. Acesso em: 25 jan. 2022.
45 BARRAL, Welber. Medidas Antidumping in O Brasil e a OMC (Organizador) Welber Barral. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2002. p. 217.
46 MASSI, Juliana Machado. O dumping e a concorrência empresarial. Disponível em: https://scholar.
google.com.br/citations?view_op=view_citation&hl=pt-BR&user=iSK8Ej4AAAAJ&alert_preview_

144
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Deste modo o dumping tem como objetivo a eliminação dos fabricantes


que produzem produtos similares, concorrentes direitos ou indiretos, para
dominação do mercado e posterior aumento de preços47.
Contudo, para configuração do dumping não basta somente que o
preço praticado no mercado produtor é inferior ao preço praticado no mercado
importador, necessário a existência de outros elementos, como leciona Welber
Barral:

Neste caso, o país importador poderá demonstrar que a


prática constitui um dano, ou ameaça de dano, à sua indústria
doméstica, e que existe um nexo causal entre este dano e o
dumping praticado pelo exportador estrangeiro. Comprovada
a existência destes elementos (dumping, dano, nexo causal), o
país importador poderá impor medidas antidumping sobre o
produto importado, as quais se materializam com a cobrança
de direito antidumping, normalmente um percentual ad
valorem sobre o produto importado48.

Assim, presentes os elementos citados, estamos frente a possibilidade


de aplicação de medidas antidumping pelos Estados importadores que se
sentirem lesados, contudo, a competitividade no comércio internacional levou ao
desenvolvimento do dumping social, uma espécie do gênero dumping.

5 DUMPING SOCIAL E CLÁUSULA SOCIAL

Em que pese o termo ter sua origem no comércio internacional e ser


utilizado para designar operações de venda realizadas abaixo do custo de produção,
e ser muito utilizado no direito concorrencial, sempre designando fixação de preços
predatórios49, passou-se a utilizá-lo, também, para representar os danos causados
pelas práticas comerciais ao direito do trabalho.

top_rm=2&citation_for_view=iSK8Ej4AAAAJ:d1gkVwhDpl0C. Acesso em: 3 jan. 2022.


47 LAU, Ana Isaballa. A cláusula social no comércio internacional: A interação entre a OMC e a OIT
no combate ao dumping social. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa. v. 6. n.11, p. 189-206,
jan/jun. 2015. p. 191.
48 BARRAL, Welber. Medidas Antidumping in O Brasil e a OMC (Organizador) Welber Barral. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2002. p. 217.
49 CARISTINA, Jean Eduardo Aguiar; SAYEG, Ricardo Hasson. Dumping social: infração da or-
dem econômica humanista. Lex Humana, Petrópolis, v. 6, n. 1, p. 73, 2014.

145
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Assim, a partir do gênero dumping, se desenvolveu o dumping social,


que parte dos danos causados, de forma reincidente, aos direitos trabalhistas e ao
mercado, a fim de combatê-los50.
O denominado dumping social consiste na acusação de que a
vantagem econômica, resultante do baixo custo da mão-de-obra em Estados em
desenvolvimento, decorre da inobservância de regras básicas do direito internacional
de proteção do trabalhador, desarmonizando o sistema internacional51.
No mesmo sentido é o entendimento de Ana Isabella Lau:

O dumping social, como espécie do gênero dumping,


representa uma prática reincidente e reiterada de
descumprimento da legislação e de preceitos fundamentais
trabalhistas, como meio de majoração dos lucros e de angariar
vantagem sobre a concorrência. Dessa forma, praticando uma
concorrência desleal, esse fenômeno não atinge somente a
pessoa humana do trabalhador, mas também toda a sociedade
e a própria ordem econômica, vez que causa um intenso
desajuste em todo o modo de produção52.

Além do mais, como lecionam Jean Eduardo Aguiar Caristina e Ricardo


Hasson Sayeg:

O dumping social não desenvolve a economia de uma


empresa, tampouco o de um Estado, pois ao idealizar um
desenvolvimento econômico utilitarista, nega a justiça
e equidade, e ao negá-las, deixa de reconhecer o direito
subjetivo inato à propriedade e ao trabalho que o permita
alcançar a propriedade e obtenha, por seu intermédio, o valor
que o trabalho garante a todos os indivíduos, valores estes
que, numa interpretação livre de seu conteúdo, resultam na

50 VIEIRA, Beatriz Meneses Frambach; OBREGÓN, Marcelo Fernando Quiroga. O fenômeno do


dumping social: Impactos no Mercado Internacional e no patamar de direitos civilizatórios dos traba-
lhadores. Revista Juridica Derecho y Cambio Social, v. 53, p. 1-16, 2018.
51 TAIAR, Rogério; CAPUCIO, Camila. Organização Mundial do Comércio e os direitos humanos:
Uma relação possível? Revista da Faculdade de Direito da USP. jan/dez 2010, v. 105, p. 156.
52 LAU, Ana Isaballa. A cláusula social no comércio internacional: A interação entre a OMC e a OIT
no combate ao dumping social. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa. v. 6. n.11, p. 189-206,
jan/jun. 2015. p. 193.

146
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dignidade daquele que produz e que serve ao efetivo, justo,


equitativo e pacífico desenvolvimento53.

Desta forma, verifica-se que o dumping social pode ser compreendido


como uma forma de dano social, pois além de ferir as esferas jurídicas dos
trabalhadores, ferindo a estrutura democrática, representa, de maneira muito
clara, a obtenção de vantagem indevida frente à concorrência, uma vez que afeta
diretamente empregadores que cumprem suas obrigações trabalhistas e são forçados
a agir de igual modo54.
A prática reiterada por parte das empresas acarreta prejuízos para os
trabalhadores dos países em desenvolvimento com a precarização do trabalho, bem
como aos trabalhadores dos países desenvolvidos com o aumento do desemprego
diante da transferência de empresas para Estados com custos trabalhistas menores55.
A constante prática de dumping social, na busca por obtenção de
vantagem frente aos concorrentes, não passou desapercebido pelos organismos
internacionais, mesmo que tardiamente.
No âmbito da ONU, por muito tempo, a relevância do sistema GATT-
OMC e mesmo do comércio internacional como forma de garantia dos direitos
humanos, foi ignorada. O cenário alterou-se em 1999, quando Kofi Annan, então
secretário geral, lançou o “Pacto Global”, através do qual chamou a atenção da
comunidade empresarial internacional para o apoio e respeito à proteção de valores
fundamentais e direitos humanos em suas práticas empresariais56, além do mais:

Essa nova abordagem (a) estabelece a promoção e proteção dos


direitos humanos como objetivos precípuos do comércio; (b)
examina o efeito da liberalização do comércio sob indivíduos

53 CARISTINA, Jean Eduardo Aguiar; SAYEG, Ricardo Hasson. Dumping social: Infração da or-
dem econômica humanista. Lex Humana, Petrópolis, v. 6, n. 1, p. 73, 2014. p. 90.
54 LAU, Ana Isaballa. A cláusula social no comércio internacional: A interação entre a OMC e a OIT
no combate ao dumping social. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa. v. 6. n.11, p. 189-206,
jan/jun. 2015. p. 194.
55 RODRIGUES, Mônica Nogueira; GASPAR, Renata Alvares. A atuação da OMC frente aos de-
safios de concretização dos Direitos Humanos, em especial no tocante aos direitos trabalhistas: uma
perspectiva desde os países em desenvolvimento (BRICS). Revista de Estudos Jurídicos UNA, v. 5, n.
1, p. 29-59, 2018. p. 39.
56 TAIAR, Rogério; CAPUCIO, Camila. Organização Mundial do Comércio e os Direitos Huma-
nos: Uma relação possível? Revista da Faculdade de Direito da USP, jan/dez 2010, v. 105. p. 147.

147
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e determina que as regras do comércio internacional levem


em consideração o direito de todos os indivíduos, e m especial
aqueles indivíduos e grupos vulneráveis; (c) enfatiza o papel
do Estado no processo de liberalização - não somente como
negociadores das regras de comércio e emanadores de políticas
comerciais, mas também como garantidores primários dos
direitos humanos; (d) busca consistência entre a progressiva
liberalização do comércio e a progressiva realização dos
direitos humanos; (e) requer um exame constante do impacto
da liberalização do comércio no gozo dos direitos humanos e
(d) promove cooperação internacional para a realização dos
direitos humanos e liberdades no contexto da liberalização do
comércio.

No âmbito da OMC, a incorporação de um viés humanitário à estrutura


institucional e à interpretação de suas regras ocorreu graças ao trabalho de Ernst-
Ulrich Petersmann, ex-assessor jurídico da organização, que sempre defendeu a
constitucionalização da OMC, com a necessidade da incorporação de parâmetros
de direitos humanos no entendimento do direito da OMC e a necessidade de
incorporação do direito ao livre comércio como um direito fundamental57.
Diante das discussões sobre as relações entre direitos humanos e comércio
internacional, o dumping social ganhou destaque e inúmeras discussões foram
realizadas no âmbito da OMC. Contudo, a grande polêmica envolvendo o assunto
ocorreu quando das discussões sobre a inclusão da cláusula social nos acordos
internacionais de comércio.
A cláusula social é uma tentativa de minimizar os efeitos selvagens das
práticas concorrenciais nesta era globalizada, estabelecendo padrões trabalhistas
mínimos a serem observados nas relações comerciais58 .
O principal objetivo da cláusula social é reprimir a prática do dumping
social, além de regulamentar e suspender as vantagens, os benefícios e as concessões

57 TAIAR, Rogério; CAPUCIO, Camila. Organização Mundial do Comércio e os Direitos Huma-


nos: Uma relação possível? Revista da Faculdade de Direito da USP, jan/dez 2010, v. 105. p. 149-150.
58 LAU, Ana Isaballa. A cláusula social no comércio internacional: A interação entre a OMC e a OIT
no combate ao dumping social. Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa. v. 6. n.11, p. 189-206,
jan/jun. 2015. p. 195.

148
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

às importações de produtos e serviços que se originem de Estados com padrões


trabalhistas que se utilizem de trabalho servil, infantil ou semiescravo59.
Também, vislumbra-se na cláusula social a possibilidade de atingir
diversas vertentes:

O conteúdo dessas cláusulas pode assumir os mais diversos


delineamentos: pode se fundar na concessão de benefícios
tributários entre países signatários de determinado
tratado, pode limitar ou recusar a importação de países ou
empresas que não respeitem os direitos sociais insculpidos
em documentos internacionais, ou estabelecer diversos
mecanismos de sanção comercial. É possível, ainda, pactuar-
se a incidência de tributos adicionais a tributação alfandegária
das mercadorias produzidas sem observância dos labour
standards convencionados60.

Em outras palavras, a cláusula social é a inclusão obrigatória de regras,


nos tratados internacionais de comércio internacional, objetivando garantir
ao trabalhador, com o estabelecimento de modelos mínimos, que devem,
obrigatoriamente, serem aplicados pela legislação interna de cada Estado, na
regulamentação do contrato de trabalho na cadeia produtiva de bens destinados à
exportação61.
Contudo, a adoção da clausula social, no âmbito da OMC, gerou grandes
discussões, mas não houve consenso sobre a sua adoção e aplicação. Os Estados
Unidos lideraram um grupo que tentou implementá-la aos padrões trabalhistas
junto à OMC, contudo não houve apoio de todos os Estados e os países em
desenvolvimento se mostraram contrários62.

59 RIBEIRO, Daniela Menengoti; NOVAES, Milaine Akahoshi. Dumping social – Os reflexos da


globalização nos direitos humanos. 1. ed. Ebook. Toledo: Vivens, 2016. Disponível em: www.vivens.
com.br. Acesso em: 20 jan. 2022.
60 FERNANDEZ, Leandro. Dumping social. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 101.
61 ROCHA, Dalton Caldeira. Clausula Social. In: BARRAL, Welber (org.). O Brasil e a OMC. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2002. p. 326.
62 RIBEIRO, Daniela Menengoti; NOVAES, Milaine Akahoshi. Dumping social – Os reflexos da
globalização nos direitos humanos. 1. ed. Ebook. Toledo: Vivens, 2016. Disponível em: www.vivens.
com.br. Acesso em: 20 jan. 2022. p. 53

149
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Também membros da União Europeia defendem o estabelecimento


da clausula social, sob a alegação de que os países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento obtém injustas vantagens competitivas, uma vez que se valem
de mão de obra em condições degradantes de trabalho, fato esse que prejudica os
países desenvolvidos, uma vez que não são adotados direitos trabalhistas mínimos,
possibilitando a produção e comercialização de produtos com preços menores63.
Por outro lado, os países em desenvolvimento entendem que a adoção
de padrões trabalhistas mínimos, aliados a imposição de sanção comerciais pela sua
não adoção, acarretariam o protecionismo e, consequentemente, o favorecimento
dos países mais fortes, a saber:

Esta é a opinião de parte da doutrina, quando afirma que a


cláusula sócia pela sua feição impositiva e arbitrária poderia
levar à adoção de medidas protecionistas, uma vez que se
penderia para o alto custo econômico e social da mão de obra
nos países industrializados.
Nos países em desenvolvimento também existe um forte
sentimento de que a imposição de padrões trabalhistas é
apenas mais uma forma de justificar o protecionismo contra
suas exportações e, como tal, um obstáculo a seu tão necessário
desenvolvimento econômico64.

Outra corrente defende que a preocupação da aplicação de sanções


comerciais aos Estados, que não cumprirem uma legislação laboral mínima, pode
gerar mais pobreza e exclusão, uma vez que estes ficariam excluídos dos benefícios
decorrentes dos acordos comerciais65.
As discussões sobre as cláusulas sociais foram sistematizadas por Alberto
do Amaral Júnior em quatro dimensões, a saber:

a) a preocupação com as práticas desleais de comércio; b)


a busca de soluções que reduzam os níveis de desemprego

63 RIBEIRO, Daniela Menengoti; NOVAES, Milaine Akahoshi. Dumping social – Os reflexos da


globalização nos direitos humanos. 1. ed. Ebook. Toledo: Vivens, 2016. Disponível em: www.vivens.
com.br. Acesso em: 20 jan. 2022. p. 53
64 Ibid.,, p. 54
65 BARZOTTO, Luciane Cardoso. Direitos Humanos e Trabalhadores: atividade normativa da Or-
ganização Internacional do Trabalho e os limites do Direito Internacional do Trabalho. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 58-59.

150
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nas economias que sofrem as consequências do processo de


globalização; c) a expansão do desconforto ético e moral
com a violação dos direitos humanos; d) o temor de que
tais argumentos favorecerão o protecionismo, afetando as
exportações dos países em desenvolvimento66.

Assim, em que pese ser de extrema importância a adoção de padrões


mínimos para uma legislação trabalhista, através da implementação de cláusula
social, verifica-se que a posição dos países em desenvolvimento não permite que
a discussão consiga o apoio necessário à sua aprovação e inclusão nos acordos
multilaterais de comércio gerenciados pela OMC.

6 CONCLUSÃO

Nas últimas décadas o deslocamento forçado de pessoas atingiu números


nunca imaginados, vivenciamos o maior êxodo indivíduos em busca de melhores
condições de vida ou somente de sobrevivência, em decorrência de guerras, extrema
pobreza, situações climáticas, e, também, de grave e generalizada violação de
direitos humanos.
Dentre os deslocados forçados, ganha destaque a figura do refugiado,
considerado aquele que tenha fundado temor de perseguição em seu Estado de
origem, por atos praticados pelo próprio Estado ou por atores não estatais, em
decorrência de raça, religião, nacionalidade, filiação a grupo social, opinião política,
razão pela qual perdem sua religião, sua língua, seus costumes e suas leis, com clara
afetação da personalidade.
No Brasil, além das categorias acima citadas a Lei 9474/97 incluiu como
causa para o reconhecimento da condição de refugiado a grave e generalizada
violação de direitos humanos, por influência da Declaração de Cartagena.
Inúmeras barreiras se impõem aos refugiados quando admitida a sua
condição pelo Estado estrangeiro, contudo, a maior delas é a inserção no mercado
de trabalho, sendo que as oportunidades se concentram nos serviços mais penosos,
mais perigosos e mais precários, fato esse que os impulsiona para a exclusão social e
acarreta uma enorme taxa de pobreza.

66 AMARAL JÚNIOR, Alberto do. A OMC e o comércio internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2002.
p. 317.

151
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em que pese a Constituição garantir a todos os brasileiros e estrangeiros


aqui residentes o direito ao trabalho; a ratificação da Convenção de Viena de 1951;
a ratificação da Convenção 97 da OIT, que garantem a não discriminação dos
trabalhadores em decorrência de nacionalidade, a realidade existente no Brasil se
mostra longe da letra da lei.
Há décadas os refugiados sofrem no Brasil com a exclusão social
decorrente das condições de trabalho às quais são submetidos. Inúmeros são os
casos noticiados de refugiados que são submetidos a serviços escravos ou análogos
à escravidão.
Pessoas que por desconhecimento da lei, por não terem domínio da língua
portuguesa ou mesmo por não terem outro tipo de oportunidade, são obrigadas a
se submeter a condições desumanas, tais como a) jornada de trabalho excessiva; b)
locais de trabalho sem ventilação; c) trabalho em meio ao mofo e restos de comidas;
d) ausência de pagamento de salário; e) recebimento de comida e moradia como
pagamento; e f ) salários aviltantes, situação essa verificada com empresas de vários
setores, inclusive com grandes exportadores de bens.
A situação não é diferente em outros Estados onde grandes empresas,
inclusive transnacionais, também são acusadas de utilizar ou compactuar com o
trabalho escravo ou análogo à condição de escravo, como na Itália, na China e em
vários Estados do Continente Africano.
A utilização ou a compactuação com o trabalho escravo é efeito indireto
da globalização, uma vez que, pautada na livre circulação de mercadorias e capital,
permitiu um crescimento industrial muito forte e, consequentemente, gerou uma
concorrência por mercados nunca vista.
Não há dúvidas que a globalização tem um caráter fragmentador e
segmentador, que exclui os trabalhadores refugiados no mercado de trabalho em
decorrência da baixa qualificação e por não estarem adaptados às novas tecnologias.
Neste contexto de grande concorrência entre as empresas por novos
mercados, a busca por menores preços se tornou comum, afetando diretamente a
divisão internacional do trabalho, uma vez que a redução dos custos passou a afetar
a alocação da mão de obra, passando a mão de obra a ser transferida para Estados
com menores custos.
A transferência da mão de obra estrangeira para Estados com menores
custos gerou grandes discussões na ordem internacional, especialmente por, para

152
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

alguns autores, configurar a ocorrência de dumping, compreendido como uma


forma de concorrência desleal.
Como consequência desta discussão surge a figura do dumping social,
espécie do gênero dumping, contudo relacionado os danos causados, de forma
reiterada, pelas práticas comerciais ao direito do trabalho, fato esse que acarreta
a acusação de que a vantagem econômica auferida decorre da não observação das
regras básicas do direito internacional de proteção do trabalhador.
No dumping social, verifica-se que o aumento dos lucros e a vantagem
concorrencial são frutos do descumprimento de preceitos fundamentais trabalhistas,
acarretando, de maneira clara, uma concorrência desleal, danoso à pessoa humana,
à sociedade como um todo e, também, à ordem internacional, produzindo um
desenvolvimento econômico utilitarista.
Na prática do dumping social, não há vencedores, pois ela acarreta a
precarização do trabalho para os trabalhadores de países desenvolvidos e o aumento
do desemprego em países desenvolvidos.
No âmbito da OMC a discussão sobre o dumping social passou, num
primeiro momento, pela incorporação de um viés humanitário tanto à sua estrutura
quanto à interpretação de suas regras, possibilitando uma ampla discussão sobre o
tema e a inclusão da cláusula social como forma de combater a prática.
A cláusula social, resumidamente, consiste na inclusão obrigatória de
regras nos acordos de comércio internacional, objetivando garantir ao trabalhador
um padrão mínimo trabalhista, que deve ser aplicado pelos ordenamentos jurídicos
dos Estados.
A inclusão de cláusula social nos acordos de comércio internacional, têm
por objetivo combater o dumping social, regulamentando a forma de suspensão de
vantagens, benefícios e concessões a produtos que utilizem trabalho servil, infantil
ou semiescravo.
Mesmo sendo extremamente necessário que a cláusula social seja
implementada junto aos acordos de comércio internacional, tal discussão não
conseguiu consenso entre os membros da OMC, em especial, pelo medo dos
países subdesenvolvidos e em desenvolvimento de que possíveis sanções comerciais
acarretem o protecionismo, não sendo aprovada até a presente data.
Em que pese a não aprovação da clausula social junto à OMC, pode-
se observar que as condições de trabalho dos trabalhadores refugiados poderiam

153
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ser bem menos precárias, caso referida cláusula fosse adotada e implementada nos
acordos de comércio internacional.
Caberia a OMC, junto com a OIC, estabelecer o padrão mínimo de
direitos trabalhistas que devem ser observados pelas empresas na produção de bens
e serviços que estejam na cadeia de produção. Por outro lado, caberia a OMC
regulamentar a forma de suspensão de vantagens, benefícios e concessões a produtos
produzidos em desconformidade com o padrão mínimo.
De forma geral, a adoção de cláusula social contra a prática do dumping
social, possibilitaria, de maneira direta, a proteção de todos os trabalhadores e, de
maneira indireta, protegeria todos os refugiados que, na atualidade são obrigados a
se submeter a condições precárias de trabalho.

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162
A concretização dos Direitos Humanos dos migrantes haitianos
no Sistema Interamericano

Lívia Carmélia Nascimento Costa1


Thiago Oliveira Moreira2

1 INTRODUÇÃO

O Haiti é marcado por um colapso social permanente, seja ele


político, social ou ambiental. A colonização, os golpes de Estado, as intervenções
internacionais e os terremotos fazem parte da lista de catástrofes que assolam o país
latino-americano. Desse modo, a imigração sempre foi uma rota de fuga para os
nacionais desse Estado que abandonam seu país de origem em busca de uma vida
melhor.
Nesse viés, os direitos humanos dos haitianos em situação de
vulnerabilidade passam a ser matéria do interesse do Direito Internacional, mais
precisamente, do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
(SIPDH), ultrapassando as barreiras do direito local haitiano. Nesse contexto,

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisadora do Grupo
de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade
(CNPq/UFRN). E-mail: liviacarmelia@outlook.com.
2 Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Chefe do Departamento de Direito
Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN. Mem-
bro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Professor/Pesqui-
sador Visitante da Universidade Lusófona do Porto. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional
dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Coordenador
Adjunto do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI).

163
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

surge o questionamento: de que forma os imigrantes haitianos têm seus direitos


humanos protegidos pelo SIPDH?
Visando sanar a indagação, será analisado, ainda que brevemente, o
impacto da colonização, da pobreza extrema, do cenário político conturbado e das
catástrofes ambientais na imigração haitiana. Além disso, sob um viés histórico,
serão observados os ciclos migratórios desse povo.
Ademais, essa pesquisa discorrerá sobre o surgimento dos sistemas
internacionais e regionais de proteção aos direitos humanos. Com o foco no
Sistema Interamericano, serão estudadas suas principais cartas e as previsões de
direitos humanos voltadas para as pessoas em mobilidade, além de pesquisar sobre
os órgãos que integram o SIPDH, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH e Corte IDH, respectivamente).
Por fim, será avaliado como são protegidos os direitos humanos dos
migrantes haitianos no caso analisado pela CIDH e nos casos já sentenciados pela
Corte IDH. A partir dessa avaliação, será possível dimensionar o papel do SIPDH
na concretização dos direitos humanos dos migrantes haitianos.
Para tanto, serão realizadas pesquisa em produções acadêmicas, sendo
analisadas obras de nomes como Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Thiago Oliveira
Moreira e Handerson Joseph. Somando-se a esse estudo, serão analisados o relatório
e as decisões de casos que envolvam haitianos já emitido pela CIDH e já proferidas
pela Corte IDH, respectivamente, notadamente escolhidos pela ligação do litígio
com a imigração.
Finalmente, a relevância desse trabalho revela-se no entendimento final
de como o SIPDH vem atuando para a proteção dos direitos humanos dos haitianos
em situação de mobilidade, diante da atualidade do assunto e dos reflexos na
sociedade. Assim, espera-se que esse trabalho influencie o debate acadêmico sobre
o comportamento do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
diante da violação de direitos humanos de migrantes haitianos e as medidas
impostas ou recomendadas por ele aos países responsáveis por tais transgressões.

2 BREVES CONTORNOS DA DIÁSPORA HAITIANA

A migração é um fenômeno propulsor de mudanças sociais e que


desde os primórdios esteve presente na história da evolução humana. De modo
geral, um dos principais impulsionadores dos movimentos migratórios são as

164
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

divergências em concentração de população e riquezas3 entre os países mais e os


menos favorecidos. Nesse viés, em um mundo cada vez mais globalizado, tal feito
aumentou vertiginosamente desde o início do século XXI4, o que coloca, cada vez
mais, pessoas em uma situação de vulnerabilidade.
Nas Américas, uma migração que merece destaque é a haitiana.
Percorrendo a linha histórica do país, observa-se que os seus antecedentes políticos5
contribuíram para a instauração do caos social que seu povo enfrenta atualmente,
cominando nos altos índices migratórios.
Assim, a partir 1697, a França passou a comandar a produção açucareira
na parte Oeste da ilha de São Domingos, após assinar o Tratado de Ryswick.
Desse ponto em diante, o território, que virou o Haiti, tornou-se palco de diversos
conflitos armados em inúmeros momentos, entre eles, durante a proclamação de
sua independência6, além das diversas trocas de governo, dos golpes militares e
intervenções dos Estados Unidos e da Organização das Nações Unidas (ONU).
No entanto, é inegável que o fluxo migratório se intensificou, de modo
abrupto, com o terremoto ocorrido em 2010. Após esse acontecimento, o que fazia
parte da história do país, virou realidade no dia a dia do haitiano que, se não
for imigrante, tem na família alguém que seja. Vale destacar que a imigração se
tornou um negócio fundamental para o país latino, tendo em vista que boa parte
da população que lá reside é sustentada por familiares imigrantes, que conseguiram
empregos melhores nos países de acolhida7.

3 SILVA, João Carlos Jarochinsk. BÓGUS, Lúcia Maria Machado. SILVA, Stéfanie Angélica Gimenez
Jarochinski. Os fluxos migratórios mistos e os entraves à proteção aos refugiados. Revista Brasileira
de Estudos de População. Associação Brasileira de Estudos Populacionais, v. 33, n. 3, 2016. p. 16-30.
4 LAZCANO, Alfonso Jaime Martínez. Parámetros de protección del Sistema Interamericano de De-
rechos Humanos a la movilidad humana. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla, México,
v. 15. n. 47, ENERO, jun. 2021, p. 37-62.
5 MATOS, Izabella Barison. Haitianos para o Brasil e o oeste de Santa Catarina: autopercepção acerca
da sua inserção e do acesso aos direitos fundamentais na comunidade brasileira. In: ROMAN, Darlan
José; MATOS, Izabella Barison (org.). Imigração haitiana: perfil, ambientação social e organizacional
no oeste catarinense, política migratória e aspectos da história do Haiti, p. 43-60. Unoesc, 2018.
6 DURANS, Cláudia Alves. SANTOS, Rosenverck Estrela. HAITI: significado histórico, realidade
e perspectivas. Revista Especial de Políticas Públicas, n. especial da VII JOINPP – Para além da crise
global: experiências e antecipações concretas, v. 20, 2016, p. 130.
7 MATOS, Izabella Barison. Haitianos para o Brasil e o oeste de Santa Catarina: autopercepção acerca
da sua inserção e do acesso aos direitos fundamentais na comunidade brasileira. In: ROMAN, Darlan
José; MATOS, Izabella Barison (org.). Imigração haitiana: perfil, ambientação social e organizacional
no oeste catarinense, política migratória e aspectos da história do Haiti, p. 43-60. Unoesc, 2018.

165
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse contexto, a história de tal povo pode ser dividida, conforme ensina
Handerson Joseph, em quatro grandes fluxos migratórios8. O primeiro desses ciclos
ocorreu no período em que os Estados Unidos ocuparam o Haiti e a República
Dominicana. Nessa a mesma época, o crescimento das indústrias de cana de açúcar
comandadas pelo país interventor na América caribenha cominou na escassez de
mão de obra nessas regiões, fazendo com que cerca de 35 mil haitianos deixassem
seu país de origem entre 1915-1934.
Seguindo na análise histórica do país, o segundo fluxo ocorreu quando
o Haiti se encontrava sob forte influência da cultura norte-americana. À época,
uma das medidas tomadas pelo presidente Élie Lescot foi tornar a língua inglesa
uma matéria obrigatória nas escolas haitianas. Somado a esse fato, o número de
templos protestantes cresceu abruptamente na década de 1950. Nesse contexto,
as famílias mais abastardas enviaram seus filhos para os Estados Unidos em busca
de uma melhor qualidade de vida e da possibilidade de ascender socialmente com
mais facilidade.
A terceira saída em massa, por sua vez, foi contemporânea do golpe
sofrido pelo então presidente Jean-Bertrand Aristide. Ocorre que, na década de
1990, diversas pessoas utilizavam de botes para fugir do Haiti motivadas pela
perseguição política que os militares faziam contra os apoiadores de Aristide.
Durante esse período, cerca de 45 mil boat people foram interceptados em alto-mar,
além das diversas pessoas que foram deportadas ao ingressar nos Estados Unidos,
sem o devido processo legal.
Por fim, o último ciclo se deu com o terremoto que atingiu a ilha em
2010. Embora o país já se encontrasse em um estágio de caos social instalado, o
sismo agravou ainda mais a situação, fazendo com que o Haiti entrasse em uma fase
de migração forçada causada prioritariamente por questões ambientais.
Assim, pode-se afirmar que o Haiti vive em um constante colapso social,
da colonização9 até os dias atuais, sendo agravada pelo terremoto ocorrido em 2021

8 JOSEPH, Handerson. A historicidade da (e)migração internacional haitiana. O Brasil como novo


espaço migratório. PERIPLOS – Revista de Investigácion sobre Migraciones, v. l, n. 1, 2017, p. 7-26.
Dossiê: Imigração Haitiana no Brasil: Estado das Artes.
9 SILVA, César Augusto Lopes S. da; MORO, Marcos Caio Lopes. Imigração haitiana e o brasil:
considerações sobre a negativa de caracterização do refúgio. Revista Videre – Dourados, v. 6. n. 11.
jan./jul., 2014, p. 16-33.

166
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e pela pandemia da COVID-1910. Vale destacar que, antes do sismo, mais de 2/3
da população não tinha acesso ao sistema de saúde, sendo esse fato agravado pela
destruição de cerca de 60% das estruturas após o terremoto de 201011. Ademais,
cerca de 80% da população vive abaixo da linha de pobreza e apenas 10% têm
acesso à energia elétrica12.
Diante desse contexto, principalmente durante o primeiro e o terceiro
fluxos migratórios, a República Dominicana foi um destino procurado pelos
haitianos. No entanto, a acolhida não foi receptiva, como será detalhado na análise
dos casos concretos, o que gerou diversos transtornos até as gerações atuais de
descendentes de haitianos.
A seguir, serão brevemente detalhados o surgimento do Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, principais documentos e órgãos
de monitoramento e controle.

3 CONTORNOS BÁSICOS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE


PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

As guerras mundiais do século XX tornaram cristalino o entendimento


de que os indivíduos necessitavam de uma proteção internacional dos Direitos
Humanos. Nesse contexto, a principal herança desses tempos sórdidos deixada
para o globo foi o Direito Internacional dos Direitos Humanos, responsável por
discutir a ineficácia da soberania estatal para a proteção dos direitos fundamentais
do indivíduo13.

10 CIDH. Res. 02/2021. Protection des personnes haïtiennes en mobilité humaine: solidarité intera-
méricaine. Disponível em: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Resolucion-2-21-fr.
pdf. Acesso em: 27 dez. 2021.
11 SILVA, Leda Maria Messias da; LIMA, Sarah Somensi. Imigração Haitiana no Brasil: os Motivos
da Onda Migratória, as Propostas para a Inclusão dos Imigrantes e a sua Proteção à Dignidade Hu-
mana. Direito, Estado e Sociedade, 2016, p. 167-195.
12 COSTA, Lívia Carmélia Nascimento. MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos Direitos
Humanos dos haitianos no Brasil após a vigência da Nova Lei de Migração. VIII Simpósio de Direito
Internacional da Universidade Federal do Ceará.
13 “Mais os limites à liberdade e à autonomia dos Estados não foram trazidos apenas pelo Direito
Humanitário. Um passo a mais foi dado para a construção da tese da relativização da soberania dos
Estados com a criação, após a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), da Liga ou Sociedade das
Nações, cuja finalidade era a de promover a cooperação, paz e segurança internacional, condenando
agressões externas contra a integridade territorial e independência política de seus membros. Como
efeito concreto da limitação do Poder do Estado, a Convenção da Liga estabelecia sanções econômi-

167
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Assim, promulgou-se a Carta das Nações Unidas em 1945, instituindo,


por meio desse documento, a Organização das Nações Unidas (ONU), com o fito
de assegurar os direitos humanos de todas as pessoas do globo, independentemente
de sua nacionalidade. Seguindo a mesma linha, em 1948, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH) reafirmou, em um contexto global, os princípios
a serem seguidos para consolidar a dignidade da pessoa humana como marco
universal14. Para completar o Bill of Rights, mais dois pactos foram promulgados no
alcance do Sistema Global de proteção aos Direitos Humanos, sendo eles o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).
Na mesma época, foi diagnosticado que, diante das divergências
culturais e históricas de cada região do globo, fazia-se necessário regionalizar tal
proteção internacional. Nesse fulcro, em 1948, após a proclamação da Carta de
Bogotá, é instituída a Organização dos Estados Americanos (OEA). Também na
9ª Conferência Interamericana foi adotada a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem (DADDH)15.
Em 1969, o Sistema Interamericano tomou um forte impulso com a
promulgação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), que
entrou em vigor apenas em 197816. Nesse contexto, surge um sistema regional
composto pelas normas interamericanas de proteção aos direitos humanos. Nesse
enfoque, serão estudadas, a diante, mais especificamente, as normas que tratam
sobre pessoas em mobilidade social e o funcionamento da CIDH e da Corte IDH.

cas e militares a serem impostas pela comunidade internacional contra os Estados que violassem suas
obrigações. Redefinia-se, desse modo, a noção de soberania absoluta do Estado, que passava a incor-
porar em seu conceito compromissos e obrigações de alcance internacional no que diz respeito aos
Direitos Humanos”. MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de Direitos
Humanos pela jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015.
14 CORTEZ, Laura Maria Silva. MOREIRA, Thiago Oliveira. A tutela dos direitos humanos dos
migrantes pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Cadernos de Dereito Actual, n. 8, p.
440, 2017.
15 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2019.
16 TIGROUDJA, Hélène. Migrations, vulnérabilité et dignité dans la jurisprudence de la Cour inte-
raméricaine des droits de l’homme. Conseil constitutionnel, Titre VII. n. 6, 2021, p. 77-85.

168
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3.1 PROTEÇÃO INTERAMERICANA DAS PESSOAS EM MOBILIDADE


INTERNACIONAL

De princípio, vale destacar que os direitos humanos de um indivíduo


independem de sua nacionalidade, conforme anuncia o preâmbulo da Carta
Americana de Direitos Humanos17. O artigo 1° confirma essa ideia, de modo que
atribui aos Estados o dever de defender os direitos fundamentais de todas as pessoas,
sem fazer qualquer distinção entre elas. Ademais, o artigo 24° da mesma carta traz a
previsão do princípio da isonomia, de modo que as leis têm o dever de ser executadas
de modo igual para todas as pessoas18. Dessa forma, conclui-se que independente
de ser proveniente de um país que não seja membro do SIPDH, o indivíduo deve
ter seus direitos assegurados pelo Estado em que se encontra. Corroborando com
essa conclusão, na Opinião Consultiva (OC) 18/2003, a Corte IDH entendeu que
toda pessoa deve ter respeitado o princípio da dignidade humana pelo simples fato
de pertencer à humanidade.
Embora a Corte não tenha vetado a possibilidade de um Estado estabelecer
diferenças entre um nacional e um imigrante, ela aponta que tais divergências de
tratamento devem ser razoáveis, proporcionais e não podem ofender os direitos
humanos19, consagrando o princípio da não discriminação no meio Interamericano.
Ainda segundo a OC 18/2003, tal preceito é norma de jus cogens, de modo que
qualquer tratamento discriminatório por parte dos Estados Partes já o vincula a
responder por isso perante a Corte IDH20. A CIDH, por sua vez, ainda dispôs que

17 MARTINI, Sandra Regina. SIMÕES, Bárbara Bruna de Oliveira. Estudo do Sistema Interameri-
cano de Proteção dos Direitos Humanos: Aspectos da Fraternidade em Casos de Migração na Corte
Interamericana. Revista direitos humanos e democracia, Unijuí, ano 6. n. 11. jan./jun. 2018, p. 379-
405.
18 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
19 BOLOGNA, Agostina Hernández. LEIVA, María José Jara. JORDÁN, Angela Peralta. Nacionali-
dad y apatridia. Análisis del caso Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Domini-
cana ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos. PÉRIPLOS – Revista de Investigación sobre
Migraciones, ano 3, n. 2, 2019. p. 89-116.
20 MARTINI, Sandra Regina. SIMÕES, Bárbara Bruna de Oliveira. Estudo do Sistema Interameri-
cano de Proteção dos Direitos Humanos: Aspectos da Fraternidade em Casos de Migração na Corte
Interamericana. Revista direitos humanos e democracia, Unijuí, ano 6. n. 11. jan./jun. 2018, p. 379-
405.

169
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a não discriminação se dá em duas faces21: a primeira diz respeito à obrigação de


não haver diferenciação arbitraria em nenhuma hipótese; a segunda, por seu turno,
está ligada ao dever estatal de criar condições para dirimir condições históricas que
favorecem a discriminação.
Somando-se a essa lista, um direito basilar consagrado pelo SIPDH é o
direito à vida, assegurado no artigo 4° CADH. As principais regras que se extraem
desse artigo e que estão diretamente ligadas com às pessoas em vulnerabilidade
social são (i) a impossibilidade de se aplicar pena de morte em delitos políticos e (ii)
a garantia de que ninguém será privado desse direito de forma arbitraria, de modo
que esses dois tópicos são comumente desrespeitados, conforme depreende-se da
jurisprudência interamericana.
Nesse contexto, o artigo 27 dessa Carta possibilita a supressão de alguns
de seus artigos em períodos excepcionais, como em caso de guerra. No entanto,
revelando a importância do direito à vida para o SIPDH, sua supressão é proibida
até nos casos mais remotos. Tal impedimento é justificado pelo fato de que a vida é
fator existencial essencial para a garantia dos demais direitos, de modo que suprimi-
la seria relativizar todos eles.
O artigo 5° da CADH traz ao ordenamento interamericano a garantia
de que todos terão suas integridades física, psíquica e moral protegidas. Para tanto,
segundo o próprio artigo, ninguém será submetido a tortura ou outros tipos de
penas cruéis e degradantes. Dessa forma, além de não violar a integridade pessoal dos
indivíduos, os Estados ainda devem fornecer meios que impeçam os particulares de
cometer tais violações22. No entanto, no contexto dos migrantes haitianos, diante
do seu desconhecimento da Lei e da posição vulnerável de migrantes, a garantia da
integridade, como será visto nos casos analisados, é quase um evento mitológico.
Outro importante direito assegurado às pessoas mobilidade é o direito
à nacionalidade. Diversos documentos asseguram tal direito como fundamental,
entre eles a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção sobre

21 CORTEZ, Laura Maria Silva. MOREIRA, Thiago Oliveira. A tutela dos direitos humanos dos
migrantes pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Cadernos de Dereito Actual, n. 8, p.
440, 2017.
22 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

170
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Direitos das Crianças (1989)23. No âmbito do SIPDH, o artigo 20 da CADH


garante o direito a nacionalidade a todos e o artigo 27 do mesmo documento torna
tal direito inderrogável. Outrossim, a OC 4/1998 reconheceu a nacionalidade
como “um estado natural do ser humano”24, sendo ele fundamental para o exercício
dos direitos civis e políticos.
Intrínsecos ao direito à nacionalidade, estão o direito ao nome e à
identidade, ambos são indispensáveis para o reconhecimento perante a sociedade
e o Estado. O primeiro é previsto pela CADH, em seu artigo 18°, que atribui à lei
o dever de regular o modo como todos terão acesso a esse direito. Ao sentenciar o
caso Irmãs Serrano Cruz vs. El Salvador, a Corte IDH concluiu que o direito ao
nome tem um viés duplo25: (i) o primeiro está relacionado ao direito de a pessoa ter
seu nome e registrá-lo conforme a lei local, para que possa existir civilmente; (ii) o
segundo liga-se ao direito individual de preservar a identidade própria, juntamente
com sua nacionalidade e descendência familiar.
Somado a essas prerrogativas, tem-se o direito de circular e fixar residência
como um dos pilares da proteção do imigrante. O artigo 8 da Declaração Americana
de Direitos e Deveres Humanos assegura o direito de circular e de fixar residência
em seu país de origem. O artigo 27, por seu turno, assegura o direito de asilo, de
acordo a legislação pátria do país que o irá conceder.
Faz-se mister destacar que o direito de migrar, embora não seja absoluto,
mas sim submisso à soberania estatal, para alguns autores, está diretamente ligado
ao direito de circular e fixar residência26, vez que o supramencionado artigo 8
também garante o direito de sair de seu país de origem por vontade própria. Além
disso, o artigo 22 da CADH garante uma malha de direitos relativos à residência e
circulação. Em seu tópico 1 traz o direito de circulação ao indivíduo que se encontre

23 BERNARDES, Pedro Henrique Dias Alves. A apatridia dentro do regime interamericano de di-
reitos humanos: o caso de dominicanos de ascendência haitiana. Anais do II Simpósio Internacional
Pensar e Repensar a América Latina, p. 1-15, 2016.
24 BOLOGNA, Agostina Hernández. LEIVA, María José Jara. JORDÁN, Angela Peralta. Nacionali-
dad y apatridia. Análisis del caso Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Domini-
cana ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos. PÉRIPLOS – Revista de Investigación sobre
Migraciones, ano 3, n. 2, 2019. p. 89-116.
25 PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
26 CORTEZ, Laura Maria Silva. MOREIRA, Thiago Oliveira. A tutela dos direitos humanos dos
migrantes pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Cadernos de Dereito Actual, n. 8, p.
440, 2017.

171
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

legalmente em um território, mesmo que esteja em uma situação de mobilidade,


desde que siga as disposições legais estabelecidas pelo país27. Dessa forma, deve-se
entender que a expulsão arbitraria de imigrantes, no contexto acima exposto, é
proibida.
O tópico 2 do artigo 22 da CADH, por sua vez, prevê a garantia do
indivíduo de sair do país em que se encontra, livremente. Assim, cabe aos Estados
facilitarem a emissão de documentos que possibilitam tal saída, tal como o
passaporte. No entanto, o retromencionado direito encontra limite no artigo 22.3
da mesma Carta, que traz a possibilidade de limitar a saída do cidadão do território
nacional por motivos de segurança pública.
Outro importante direito garantido pelo artigo 22 da CADH é o
princípio do non refoulement, segundo o qual, o imigrante não pode ser devolvido a
um país onde sua liberdade ou sua vida sejam colocadas em risco em consequência
de perseguições políticas, sociais, religiosas ou em decorrência de sua nacionalidade.
Nesse contexto, proteção à família é direito previsto no artigo 17 da
CADH. Segundo ele, a família é o elemento natural28 por meio do qual a sociedade
se organiza, devendo por isso, ser protegido por ela. A Corte IDH decidiu que
a criança deve permanecer com sua família, salvo nos casos em que os motivos
de os separar estejam baseados na busca do interesse maior do jovem, sendo essa
separação excepcional e temporária prioritariamente29.
No mesmo sentido, o artigo 11° da CADH, visando proteger a honra e
a dignidade de todos, assegura que ninguém pode ser objeto de abusos arbitrários
em sua vida pessoal e familiar. Em outras palavras, o Estado encontra um limite
para invadir o âmbito pessoal, no qual a família poderá se desenvolver livremente,
conforme entender ser o adequado.
O artigo 7° da CADH prevê o direito à liberdade pessoal, de modo que
ninguém pode ser submetido à prisão arbitrária. Dessa forma, a liberdade dos
indivíduos só poderá ser limitada por condições previamente estabelecidas por leis

27 LAZCANO, Alfonso Jaime Martínez. Parámetros de protección del Sistema Interamericano


de Derechos Humanos a la movilidad humana. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla,
México, v. 15. n. 47, ENERO, jun. 2021, p. 37-62.
28 PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
29 LAZCANO, Alfonso Jaime Martínez. Parámetros de protección del Sistema Interamericano
de Derechos Humanos a la movilidad humana. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla,
México, v. 15. n. 47, ENERO, jun. 2021, p. 37-62.

172
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dos Estados-parte. No entanto, como será visto, perseguições políticas são motivos
em destaque pelos quais os haitianos saem em migração, de modo que tais direitos
se encontram perenemente ameaçados. Se aproximando desse entendimento,
o artigo 9° traz o princípio da legalidade. Segundo o tal, para que alguém seja
condenado por algum crime, seus atos, ao tempo em que sejam praticados,
precisam, necessariamente, já serem tipificados.
Seguindo essa linha, outro direito que merece destaque é o acesso à
justiça, previsto no artigo XVIII da DADDH e no artigo 25 da CADH. Para além
do acesso ao sistema judiciário, a Corte já decidiu pela garantia de procedimentos
baseados no devido processo legal até em vias administrativas, de modo que as
decisões que determinarem a expulsão, extradição ou deportação de migrantes deve
ser determinada por um juiz30, com o devido direito ao contraditório. Ainda sobre
essa temática, a Corte IDH, por meio da sentença do caso La Cantuta vs. Peru,
também se manifestou no sentido de que o acesso à justiça é uma norma imperativa
inderrogável31.
Outro ponto que garante o acesso à justiça é a necessidade da expulsão de
qualquer migrante que ingressou legalmente ao país ser motivada por lei32. Ainda
sobre o tema, a OC 18/2033 determinou que não basta que ordenamento jurídico
se adeque ao SIPDH, sendo essa obrigação estendida aos poderes legislativo e
executivo33. Ademais, segundo a OC 16/1999, o indivíduo não nacional deve ter
acesso à assistência consular para que seja exercido o devido processo legal.
Por fim, no artigo 8° da CADH prevê as garantias judiciais as quais
todos devem ser submetidos. Dentre elas estão: (i) a publicidade do processo; (ii)
direito de defesa; (iii) presunção de inocência e (iv) presença de intérprete, quando
necessário. Somado ao artigo 25° do mesmo documento, o artigo 8° concretiza
o devido processo legal e o acesso à justiça. Dessa forma, por meio de instruções
procedimentais, a arbitrariedade no processo é contida34. No entanto, como será

30 LAZCANO, Alfonso Jaime Martínez. Parámetros de protección del Sistema Interamericano


de Derechos Humanos a la movilidad humana. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla,
México, v. 15. n. 47, ENERO, jun. 2021, p. 54
31 PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 342
32 Ibid.,, p. 42
33 Ibid.,, p. 55
34 PIOVESAN, Flávia. FACHIN, Melina Girardi. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 174

173
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

analisado mais a diante, é notório o desrespeito às garantias processuais notadamente


nos casos dos migrantes haitianos.
Nesse contexto, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos têm forte influência na garantia dos direitos humanos na América,
utilizando para isso seus diversos mecanismos. Seguindo essa linha, torna-se
cristalina a importância de entender de que forma elas atuam para a concretização
dos direitos das pessoas em mobilidade, tendo em vista a situação de vulnerabilidade
que esse grupo se encontra.

3.2 INTRODUÇÃO AOS ÓRGÃOS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE


PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

De início, faz-se necessário entender que a Comissão Interamericana


de Direitos Humanos (CIDH) é um órgão formado por sete membros, situado
em Washington (EUA) e que representa todos os países que assinaram a Carta da
OEA35. Em 1970, o Protocolo de Buenos Aires entrou em vigor possibilitando que
o referido órgão fosse legitimamente institucionalizado e se tornasse, de fato, uma
organização36.
Nesse viés, essa entidade tem um papel essencial no Sistema
Interamericano haja vista que, além de ser a última intérprete do Pacto de San
José37, ela busca promover os direitos humanos por meio de sua competência que
pode ser bifurcada: no (i) recebimento de petições individuais e na (ii) elaboração
de relatórios com recomendações sobre a proteção dos direitos humanos em cada
Estado-membro.
Nesse contexto, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade
governamental legalmente reconhecida pode apresentar denúncias à CIDH, que,

35 MARTINI, Sandra Regina. SIMÕES, Bárbara Bruna de Oliveira. Estudo do Sistema Interameri-
cano de Proteção dos Direitos Humanos: Aspectos da Fraternidade em Casos de Migração na Corte
Interamericana. Revista direitos humanos e democracia, Unijuí, ano 6. n. 11. jan./jun. 2018, p. 379-
405.
36 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos. São Paulo: EDUSP, 2001.
37 LOPES FILHO, Francisco Camargo Alves; MOREIRA, Thiago Oliveira. O Emprego da Con-
venção Americana de Direitos Humanos na Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Norte. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 14, n. 3, 2021, p. 112-139.

174
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

por sua vez, apresentará recomendações aos Estados, em um viés educacional38.


Dessa forma, a priori, a Comissão tem um papel conciliatório39, buscando uma
solução amistosa entre as partes ou, ainda, apontando recomendações capazes
de sanar a violação em questão. No entanto, caso não haja acordo ou caso as
recomendações não sejam respeitadas, o caso poderá ser levado à Corte IDH.
A Corte Interamericana, por sua vez, é o órgão jurisdicional desse
sistema. Formada por sete juízes e sediada em São José (Costa Rica), somente pode
analisar e julgar processos submetidos pelos Estados-partes e pela Comissão, sendo
seu acesso, portanto, mais limitado. Esse órgão, tem duplo caráter, consultivo e
contencioso, e cabe a ele ser a última instância nos pleitos sobre direitos humanos
nas Américas40.
Assim, em sua função consultiva, a Corte exerce seu papel por meio da
interpretação da CADH ou de qualquer outro tratado de Direitos Humanos das
Américas e a legislação local de algum Estado, analisando se há compatibilidade
entre as normas. Já a função contenciosa é exercida ao julgar os casos a ela
submetidos decidindo se houve ou não violação aos direitos humanos e, caso tenha
havido, quais as medidas deverão ser tomadas para contornar a problemática.
Uma das diferenças entre as funções é que para suscitar um parecer
consultivo não é necessário que o Estado seja parte da Convenção Americana,
bastando apenas que ele seja membro da OEA41. Assim, as opiniões consultivas
vinculam o Poder Judiciário dos Estados-partes da OEA e as sentenças emitidas
pela Corte são imperativas para os Estados que são parte da Convenção. Outrossim,
a decisão emitida pela Corte IDH ainda serve como título executivo judicial para os
Estados que ratificaram a CADH42.

38 VERAS, Nathália Santos; SENHORAS, Elói Martins. Direito dos migrantes e a Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos. Boa Vista: UFRR, 2018.
39 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 37.
40 ESIS, Ivette. PALUMA, Thiago. SILVA, Bianca Guimarães. Os parâmetros de proteção das mi-
grações no sistema interamericano de direitos humanos. Revista Jurídica Unicuritiba, Curitiba, v. 2,
n. 59. abr./jun. 2020, p. p. 427
41 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 160
42 COSTA, Luiz Rosado. Os direitos humanos dos migrantes na jurisprudência da corte intera-
mericana de direitos humanos. Congresso Internacional de Direitos Humanos. Migração e Direitos
Humanos nas fronteiras, p. 1-18. Universidade Católica Dom Bosco. Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, 2016. p. 5

175
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por meio das sentenças, a Corte passa a decidir quais serão as modalidades
de reparação adequadas para remediar o problema causado, sendo possíveis cinco
espécies de reparação: restituição do direito, compensação econômica, reabilitação,
medidas de satisfação e medidas de não repetição43. Dessa forma, o artigo 68.1 da
CADH prevê a obrigatoriedade da implantação da sentença da Corte no âmbito
interno de cada país, contudo, cabe é da discricionariedade do condenado quais
serão as autoridades internas responsáveis por isso44.
Outro importante ponto, diz respeito à vinculação da decisão aos Estados
que não estavam diretamente envolvidos no caso inicial, mas são Estados-membros,
de modo que, a partir da sentença, estão vinculados a ela, devendo seguir, desde de
logo, as orientações determinadas45. No momento pós-sentença não há espaço para
recursos, cabendo, apenas, pedido de interpretação. A função da Corte IDH, no
entanto, não acaba nesse momento, pois ainda haverá a supervisão de cumprimento
da sentença.
Nessa etapa, que tem como fulcro o artigo 65 da CADH, a Corte irá
analisar os relatórios estatais que fornecem informações acerca das medidas adotadas
para solucionar as violações debatidas no caso. Aqui, será possível a solicitação de
dados, informações e até a realização de audiências46 com o fito de averiguar se a
problemática ainda persiste ou se as medidas tomadas pelo Estado foram suficientes.

4 O SISTEMA INTERAMERICANO E A DIÁSPORA HAITIANA

Conforme exposto, o SIPDH tem um indispensável papel na proteção


dos direitos humanos dos migrantes. No caso dos haitianos, três casos concretos
julgados pela Corte IDH e um pela CIDH merecem uma análise mais cautelosa,
conforme será visto a seguir.
A priori, vale destacar que a República Dominicana, país que violou os
direitos humanos dos migrantes haitianos em três dos quatro casos analisados mais
a frente, é um Estado-Parte da OEA, signatário da Corte IDH e da CADH, além

43 KLUGE, Cesar Henrique. A Atuação do Ministério Público Brasileiro no Âmbito do Sistema Inte-
ramericano de Proteção dos Direitos Humanos: perspectiva nacional e internacional. Belo Horizonte:
D’Plácido, 2021.
44 Ibid.,, p. 129
45 Ibid.,, p. 129
46 Ibid.,, p. 130

176
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de reconhecer a jurisdição da Corte47. Assim, por força do artigo 68 da Convenção


Americana, as sentenças proferidas pela Corte IDH terão força vinculante em
relação ao Poder Judiciário dominicano.
De outro turno, os Estados Unidos, país acusado de violar os direitos
humanos dos migrantes no caso analisado pela Comissão, não é um Estado-Parte
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tendo adotado apenas a
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Assim, para o país, a
jurisdição da Corte IDH não é contenciosa, por isso, submete-se apenas à atuação
da CIDH, por ser parte da OEA.
Ato contínuo, será analisada a da Comissão sobre o caso Boat People. Em
seguida, serão comentadas as decisões da Corte proferidas nos casos Ninãs Yean Y
Bosico, Nadege Dorzema e outros, além do caso Pessoas dominicanas e haitianas
expulsas, todos vs a República Dominicana.

4.1 BOAT PEOPLE

De início, será analisado um relatório da Comissão IDH, tendo em vista


que o caso não chegou a ser julgado pela Corte. Isso ocorreu porque a parte ré do
caso, os Estados Unidos, não reconhece a jurisdição contenciosa desse órgão.
O caso Boat People versa sobre diversas ocorrências no mesmo sentido:
pessoas que chegavam aos Estados Unidos em barcos precários tinham sua entrada
no país impedida, sendo negado a elas o devido processo legal e a proteção ao dever
de não devolução de pessoas que, ao retornar ao seu país de origem, terão sua vida
ou sua liberdade colocada em risco em virtude de sua raça, religião, grupo social ou
opinião política48. Assim, esses haitianos não tinham direito de solicitar asilo, nem
de comprovar o fundamento das solicitações.
Apesar dos apelos feitos aos Estados Unidos pela Comissão, em 1993,
as expulsões de haitianos e as interdições dos barcos continuaram a ocorrer. Em
audiência realizada no ano de 1994, as testemunhas dos ocorridos alegaram que

47 CRUZ, Viviane Xavier de Araújo; GARCIA, Luciana Silva. MIRANDA, Juliana Gomes. Efetivi-
dade do sistema interamericano de direitos humanos no contexto do conflito na ilha de são domingos:
reflexões sobre os casos apresentados contra a república dominicana. Caderno de Relações Internacio-
nais, v. 11. n. 21. jul./dez. 2020, p. 313-345.
48 CIDH. Relatório n.º 51/1996. Disponível em: https://cidh.oas.org/annualrep/96port/Caso10675.
htm. Acesso em: 27 jan. 2022. p. 1

177
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

sofriam perseguições políticas no Haiti e estariam tentando ingressar no destino


fugindo dos militares haitianos, tendo, portanto, direito ao asilo.
Ocorre que, ao terem seus barcos interceptados, eles não tiveram a
oportunidade de solicitar asilo e foram devolvidos ao Haiti, sob forte ameaça de
perseguição militar, que veio a acontecer.
Diante desse contexto, a Comissão opinou que a decisão dos Estados
Unidos violou o direito de igualdade, previsto no artigo II da Declaração Americana,
vez que, na mesma situação, os cubanos foram acolhidos, enquanto os haitianos
foram interceptados. Além disso, houve violação ao direito à vida, à liberdade e à
segurança, tendo em vista que as pessoas expulsas retornariam para um país onde
eram perseguidas politicamente.
Ademais, foi violado o direito de procurar e receber asilo, previsto no
artigo XXVII da Declaração Americana, tendo em vista que os haitianos expulsos
não tiveram direito à entrevista, logo, não puderam solicitar o asilo. Por fim, a
CIDH reconheceu o não cumprimento do direito de recorrer aos tribunais (artigo
XVIII da mesma Declaração), já que os migrantes não tiveram acesso ao sistema de
justiça para recorrer da interceptação dos barcos.
Nesse contexto, em 1997, o então presidente dos Estados Unidos, Bill
Clinton, determinou que o Procurador-Geral concedesse o Deferred Enforced
Departure (DED)49, uma espécie de garantia de não expulsão, aos haitianos, por um
ano. Seguindo essa linha, em 1998, foi promulgada a Lei de Imigração de Refugiados
do Haiti (HRIFA) no território estadunidense, possibilitando a solicitação de asilo
pelos migrantes haitianos, a fim de legalizar sua residência.

4.2 CASO NIÑAS YEAN Y BOSICO VS REPÚBLICA DOMINICANA

A partir desse ponto, serão analisadas sentenças proferidas pela Corte IDH.
Nesse caso, as meninas Dilcia Yean e Violeta Bosico, filhas de mães dominicanas
e pais haitianos, tiveram sua cidadania dominicana negada e, consequentemente,
tornaram-se apátridas por mais de quatro anos50. Isso ocorreu como consequência

49 U.S. Immigration Policy on Haitian Migrants. p. 4-5


50 COSTA, Luiz Rosado. Os direitos humanos dos migrantes na jurisprudência da corte intera-
mericana de direitos humanos. Congresso Internacional de Direitos Humanos. Migração e Direitos
Humanos nas fronteiras, p. 1-18. Universidade Católica Dom Bosco. Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, 2016. p. 11

178
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de uma política migratória pautada em um genocídio civil51, na qual a República


Dominicana matou civilmente milhares de pessoas que, em virtude de seu status de
apátrida, não podiam estudar, votar, trabalhar ou ter acesso ao sistema de saúde de
modo formal. Essa política pautou-se em dificultar ao máximo ou até negar, como
no caso em tela, o título de dominicano aos descendentes de haitianos, em uma
clara atuação desigualitária e de discriminação contra o povo do Haiti.
Em 2005, a decisão da Corte IDH foi de que o processo administrativo
e as leis que impossibilitavam o registro das crianças como dominicanas as deixava
em uma situação de vulnerabilidade extrema, além de as afastar de direitos previstos
na CADH como o direito à igualdade e à nacionalidade. Ademais, ficou fixado o
entendimento de que a condição de migrante não poderia passar dos ascendentes
para os descendentes que, pelo princípio do jus soli, seriam nacionais por terem
nascido naquele território52.
Embora essa tenha sido a primeira decisão da Corte contra a República
Dominicana, o país não a recebeu de maneira amigável. Além de não acatar as
medidas propostas pelo julgado, ainda agravou a situação dos migrantes ao decidir
que a política migratória nacional era legal. Em 2007, a Junta Central Eleitoral
passou a instruir seus funcionários a negar a emissão dos documentos das crianças
filhas de migrantes não documentados.
Seguindo essa linha, em 2010, por meio de uma alteração na Constituição,
um novo critério foi anexado ao jus soli: a partir de então, só é considerado
dominicano as crianças nascidas no país e que os pais não estejam em trânsito, ou
seja, não estejam no país de forma ilegal, sem visto ou não tenham casa e emprego
formal53.
Segundo a resolução de cumprimento de sentenças do caso em tela,
algumas medidas restaram cumpridas, sendo elas: (i) a publicação da sentença em

51 SILVA, Karine de Souza; AMORIM, Luísa Milioli de. Migração haitiana e apatridia na República
Dominicana: intersecções entre racismo e colonialidade. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curi-
tiba – PR, Brasil, v. 64, n. 2, p. 15
52 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (COIDH). Casos das crianças Yean
e Bosico vs. República Dominicana. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de
8 de setembro de 2005. Série C.
53 CRUZ, Viviane Xavier de Araújo; GARCIA, Luciana Silva. MIRANDA, Juliana Gomes. Efetivi-
dade do sistema interamericano de direitos humanos no contexto do conflito na ilha de são domingos:
reflexões sobre os casos apresentados contra a república dominicana. Caderno de Relações Internacio-
nais, v. 11. n. 21. jul./dez. 2020, p. 332.

179
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

jornal de circulação nacional e no Diário Oficial; (ii) o pagamento da indenização


por danos imateriais às meninas Dilcia Yean e a Violeta Bosico e, (iii) o pagamento
da quantia referente às custas processuais. No entanto, ainda não foi realizado
o ato público de reconhecimento de reponsabilidade internacional e pedido de
desculpas às vítimas e não foi adotado algum meio mais célere de regulamentar o
procedimento para a concessão da nacionalidade dominicana, segundo o relatório
de reparações pendentes.
Assim, pode-se perceber que, mesmo diante de uma decisão imperativa
da Corte IDH, a situação continuou agravando-se e, cada vez mais, os migrantes
haitianos são colocados em situação de vulnerabilidade e acabam tendo direitos
humanos privados na República Dominicana.

4.3 CASO NADEGE DORZEMA E OUTROS VS REPÚBLICA DOMINCANA

Esse caso, por seu turno, resultou de uma perseguição armada dos
militares dominicanos contra imigrantes haitianos que estavam sendo transportados
em um caminhão que não parou em um posto de controle em Botoncillo54. Em
decorrência dos disparos efetuados pelos dominicanos, quatro haitianos morreram,
diversas pessoas ficaram feridas, além da expulsão, sem o devido rito processual, de
alguns migrantes envolvidos no acontecimento55.
Em 2012, a Corte IDH concluiu que houve diversas violações de
direitos humanos, dentre elas, a violação do direito à vida dos migrantes, de suas
integridades físicas e de sua liberdade56. Somada a elas, ainda houve transgressão no
direito de circulação, tendo em vista que houve uma expulsão em massa e no acesso
à justiça, vez que os militares que interviram na investigação dos fatos57. Outrossim,

54 ANGEL, Ramiro Avilés Miguel. El derecho a la vida en el caso Nadege Dorzema et al V República
Dominicana. In: Defending the Human Rights of Migrants in the Americas: The Nadège Dorzema et
al v Dominican Republic Case. Revue Québécoise de droit international, p. 363, 2013.
55 CRUZ, Viviane Xavier de Araújo; GARCIA, Luciana Silva. MIRANDA, Juliana Gomes. Efetivi-
dade do sistema interamericano de direitos humanos no contexto do conflito na ilha de são domingos:
reflexões sobre os casos apresentados contra a república dominicana. Caderno de Relações Internacio-
nais, v. 11, n. 21. Jul./dez. 2020. p. 327-328
56 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (COIDH). Caso Nadege Dorzema
e outros v. República Dominicana. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24
de outubro de 2012. Série C.
57 LESPINASSE, Colette. L’affaire nadège dorzema et al: le sens d’une participation comme pétition-
naire. Quebec Journal of International Law, 2013, p. 20

180
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a sentença também determinou que o estado deveria adequar a legislação pátria no


que tange ao uso da força58, com o intuito de evitar situações que aumentem ainda
mais a vulnerabilidade do cidadão diante da força estatal.
No entanto, a vida dos migrantes não foi amenizada na República
Dominicana, e a sentença, por sua vez não foi cumprida. Segundo o relatório de
supervisão de sentença59, restam a cumprir: (i) a reabertura das investigações; (ii)
a repatriação das pessoas falecidas; (iii) o fornecimento de tratamento médico e
psicológico para as vítimas; (iv) o ato público de reconhecimento de responsabilidade
internacional e desculpas; (v) a realização dos programas de capacitação das forças
armadas e agentes fronteiriços; (vi) a campanha de conscientização dos direitos das
pessoas em migração; (vii) a adequação da legislação interna quanto ao limite do
uso da força e (viii) o pagamento à título de dano material, imaterial e das custas
processuais.
Outrossim, em 2013, a sentença 168-13 do Tribunal Constitucional
determinou que cerca de 300 mil pessoas, até então, dominicanas, seriam, a partir
dessa data, considerados apátridas, por serem descendentes diretos de imigrantes
irregulares60. Assim, mesmo com a coercitividade da sentença proferida pela Corte
IDH, nota-se um longo caminho a ser percorrido para que o migrante haitiano
tenha seus direitos garantidos na República Dominicana.

4.4 PESSOAS DOMINICANAS E HAITIANAS EXPULSAS VS REPÚBLICA


DOMINICANA

Esse caso versa sobre uma série de expulsões coletivas e da separação de


famílias domínico-haitianas61. Durante a detenção, os membros desses núcleos
familiares que tinham documentos comprovando serem dominicanos não tiveram
a oportunidade de apresentá-los. Os descendentes de haitianos não documentados,

58 CRUZ, Viviane Xavier de Araújo; GARCIA, Luciana Silva. MIRANDA, Juliana Gomes. Efetivi-
dade do sistema interamericano de direitos humanos no contexto do conflito na ilha de são domingos:
reflexões sobre os casos apresentados contra a república dominicana. Caderno de Relações Internacio-
nais, v. 11. n. 21. jul./dez. 2020, p. 328.
59 https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/SCS/republicadominicana/nadegedorzema/nade-
gedorzemap.pdf
60 Ibid.,, p. 333
61 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (COIDH). Caso das pessoas do-
minicanas e haitianas expulsas v. República Dominicana. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e
Custas. Sentença de 28 de agosto de 2014. Série C.

181
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

por sua vez, relataram dificuldades impostas pelo Estado para a emissão de
documentos oficiais, que comprovariam suas nacionalidades, tendo em vista que
nasceram na República Dominicana e lá vigora, pelo menos em tese, o princípio
do ius soli.
Em 2012, a CIDH submeteu esse caso à Corte alegando ter havido
detenção e expulsão arbitrarias de haitianos e dominicanos de descendência haitiana
da República Dominicana, sem que houvesse sido seguido o rito para expulsar
migrantes previsto no direito interno do país. Outrossim, ainda foi constatado pela
CIDH um conjunto de impeditivos para que os registros dos filhos de haitianos
nascidos dominicanos fossem realizados.
A Comissão ainda apontou que tais dificuldades em registrar os filhos
dos haitianos em território dominicano além de impedir que esses descendentes
tivessem uma nacionalidade, negou o reconhecimento do direito à identidade e ao
nome, sendo esses três elementos protegidos pelo SIPDH.
Outro ponto observado pela CIDH foi que a expulsão das vítimas
gerou uma situação de separação e incomunicabilidade familiar, o que culminou,
consequentemente, com a ruptura desses vínculos, além de dificultar a garantia
das necessidades básicas dessas famílias que, ao serem desintegradas, tiveram de
reformular seus postos, impossibilitando, por exemplo, as crianças de estudar.
Somando-se a isso, tem-se o fato de que tais núcleos foram expulsos de seu país,
estando em um local totalmente desconhecido, gerando mais um entrave ao
conseguir meios de subsistência.
Diante desse caos gerado pelas expulsões em massa, a Corte IDH decidiu
que a República Dominicana violou os direitos de personalidade e nome previstos
na CADH ao não permitir os seus registros como dominicanos por eles serem
descendentes de haitianos. Em decorrência desse último fato, também foi violado
o direito à não discriminação.
Ainda, foram infringidos os direitos a proibição de expulsão coletiva e
expulsão de nacionais, sem mencionar a proteção à família e o acesso à justiça, que
foi desrespeitado ao não ser seguido no momento das detenções e expulsões. Por
fim, a Corte entendeu que o direito à proteção da honra e dignidade das pessoas
expulsas também foi ferido durante o ocorrido.
Nesse contexto, em 2014, a Corte IDH sentenciou o Estado a adotar
medidas necessárias para regular um procedimento de inscrição de nascimento
acessível e simples, buscando evitar a apatridia. Ademais, ele deve garantir a

182
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

capacitação da população, para que não haja discriminação nas ações de expulsão e
que, durante elas, seja respeitado o devido processo legal, além de evitar as expulsões
coletivas.
No entanto, mais uma vez, a República Dominicana não cumpriu a
sentença proferida pela Corte, segundo o relatório de reparações pendentes de
cumprimento62. Na verdade, aconteceu o oposto: o país declarou que não iria
implementar a sentença inoportuna e tendenciosa. Outrossim, em novembro
de 2014, foi emitida a sentença TC 0256/14, reconhecendo a ilegitimidade da
competência contenciosa da Corte IDH para a República Dominicana, sob a
argumentação de que o instrumento de aceite estaria, supostamente, violado
formalmente. Assim, percebe-se que o posicionamento dominicano ao recepcionar
as decisões do SIPDH é extremamente negativo para a proteção dos migrantes
haitianos e a garantia de uma vida digna a esse povo fica prejudicada.

5 CONCLUSÃO

Diante do exposto, fica evidente que os haitianos são forçados a migrar,


em alguns casos, para sobreviver, em outros, para fugir da miséria e do caos social
que assola o país de origem. Nesse viés, os direitos humanos desses migrantes
tornam-se matéria de proteção do Direito Internacional e, mais precisamente, do
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
Dessa forma, pode-se perceber que as principais Cartas, Declarações
e normas de soft law do SIPDH garantem, em tese, a proteção dos Direitos
Humanos dos migrantes haitianos. No entanto, ao vislumbrar os casos concretos
expostos, percebe-se que a realidade migratória haitiana é abarcada de dificuldades,
discriminação e violação de uma enorme lista de direitos garantidos pelo SIPDH.
Assim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos vêm intervindo em tal realidade, por meio de
pareceres consultivos e julgamentos, respectivamente, com o objetivo de concretizar
os direitos dos haitianos em situação de mobilidade social.
Nesse contexto, os órgãos supramencionados têm buscado corrigir as
condutas dos países receptores, que, conforme demonstrado no decorrer desse
trabalho, além de não seguir as normas do SIPDH, nem sempre cumprem suas

62 https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/SCS/republicadominicana/dominicanashaitianas/
dominicanashaitianasp.pdf.

183
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

decisões, mesmo aquelas dotadas de coercitividade. Tal feito torna a vida – já


demasiadamente vulnerável – dos migrantes haitianos, ainda mais penosa.
Nesse viés, vale destacar os standares interamericanos em matéria de
migração haitiana. Por conseguinte, a Corte decidiu reiteradas vezes que os Estados
podem controlar a entrada de migrantes em seu território, desde que os direitos
humanos dessas pessoas sejam respeitados. Em vista disso, o direito à vida deve
ser preservado, até mesmo na atuação médica que deve ser ofertada ao migrante,
inclusive ao que se encontrar em situação irregular. Ademais, o devido processo
legal deve ser garantido a toda pessoa independente de seu status migratório, o que
inclui ser levado sem demora a presença de um juiz após decretada a prisão.
Outrossim, o processo que possa ter como resultado a expulsão do
migrante deve ser individual, cumprindo a proibição de expulsão coletiva e não
pode pautar-se em causas discriminatórias como raça, língua, origem social ou
nacionalidade. Do mesmo modo, os Estados não devem produzir mecanismos
regulamentadores discriminatórios, além de terem o dever de combater as práticas
discriminatórias em todos os sentidos. No caso de migrantes infantes, além das
garantias já apontadas, a Corte traz como standar a proteção da união familiar,
sendo a separação das crianças uma última ratio.
Além disso, os Estados não podem adotar uma política migratória que
seja arbitrária e não garanta informações detalhadas de todo processo de migração
em uma língua que os migrantes possam compreender, além de certas assistências
especificas como a presença de tradutor e/ou intérprete. Ademais, outro importante
estándar definido pela Corte é a limitação do uso da força por parte dos agentes
estatais em casos de embate com migrantes. Por fim, merece destaque o standar que
assegura que o único requisito para a concessão da nacionalidade é o de ter nascido
naquele local, o que evita casos de apatrídia.
Assim, conclui-se pela importância da Corte IDH e da CIDH para
a concretização dos direitos dos migrantes haitianos. No entanto, além da
intervenção interamericana, é cristalino que os Estados-parte precisam cooperar
para tornar realidade e cumprirem as normas, os pareceres consultivos e as decisões
do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. De certo, tal
mudança acarretará uma vida abarcada por mais direitos humanos garantidos para
os migrantes haitianos.

184
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188
O Sistema Interamericano como locus de enfrentamento às
violações dos direitos de pessoas marginalizadas, em especial,
de refugiados LGBTI

Antonio Teixeira Junqueira Neto1


Tatiana Cardoso Squeff2

1 INTRODUÇÃO

O Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos (SIDH) tal


como hoje se conhece foi inaugurado a partir da adoção da Convenção Americana
de Direitos Humanos (CADH), em 1969, forjada sob os auspícios da Organização
dos Estados Americanos (OEA). Trata-se de um importante incremento no que diz
respeito a proteção dos diretos humanos dos indivíduos, vez que garante às pessoas,
aos grupos de pessoas e às organizações não-governamentais outras ferramentas
para buscar a proteção integral de seus direitos, notadamente quando o Estado é o
seu violador, seja porque não oferece mecanismos internos efetivos para parar ou
mesmos reparar integralmente o dano ocasionado, seja porque ele diretamente o
causara.

1 Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU/MG), onde


também graduou-se em Relações Internacionais. É consultor na Assessoria Jurídica para Estrangeiros
em Situação de Risco – AJESIR/UFU. Integra o Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacio-
nal – GEPDI/CNPq, na qualidade de pesquisador. E-mail: antoniojunqueira.cg@gmail.com.
2 Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de
Uberlândia, onde também atua junto à graduação na disciplina de Direito Internacional. Doutora
em Direito Internacional pela UFRGS, com período sanduíche na Universidade de Ottawa. Mestre
em Direito Público pela UNISINOS, bolsista CAPES, com período de estudos junto à Universidade
de Toronto, com fomento DFAIT. Realiza estágio pós-doutoral em direitos e garantias fundamentais
na FDV. Atuou como Expert brasileira junto à HCCH. Membro da ILA-Brasil, ASADIP e ABRI.
E-mail: tatiafrcardoso@gmail.com.

189
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

O SIDH se mostra ainda mais central quando se trata de grupos


marginalizados, ou seja, de pessoas menos favorecidas que em virtude de suas
condições socioeconômicas ou mesmo identitárias acabam não obtendo a plena
atenção do Estado, necessitando, portanto, de uma proteção diferenciada, a
ser conferida pelo plano regional. Este, no caso, passa a ter um dever derivado
da própria ratificação do Estado de fiscalizar a conduta do país, exigindo-lhe a
adequação de seu sistema e de suas condutas aos parâmetros internacionais, ao que
se convencionou chamar de controle de convencionalidade3.
Ocorre que os parâmetros internacionais aos quais aqui se discute, isto
é, aqueles provenientes do Sistema Interamericano, mais especificamente, aqueles
contidos na CADH, não são estáticos, de maneira que eles vão sendo renovados
na medida em que a própria sociedade se transforma. Logo, se a Convenção
apresenta-se como um living instrument4 o controle de convencionalidade também
se modificar ao longo dos anos. Quer isso dizer que temas não explicitamente
abordados pelo texto convencional citado podem acabar sendo declarados no
âmbito do Sistema, terminando por assim formular novos parâmetros que devem
ser igualmente acatados por todos aqueles que compõe a Organização.
Ao se olhar para a CADH, há certas regras cujo bojo não fora plenamente
desenvolvido ainda em 1969, mas que, hoje em dia, já se encontram mais apuradas.
Esse é justamente o caso da proteção estendida às pessoas marginalizadas, como às
mulheres, às pessoas privadas de liberdade, às crianças, aos povos indígenas, aos
migrantes, refugiados e apátridas, e à população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Intersexos), haja vista a atenção conferida pela Comissão Interamericana
Direitos Humanos (CIDH) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CtIDH) nos últimos anos às crescentes vulnerabilidades apresentadas por estes
grupos.
À vista disso, o presente estudo tem como escopo compreender e ressaltar
a importância do SIDH na proteção de pessoas marginalizadas. Outrossim,
considerando especificamente o problema da rotineira da desproteção de refugiados
LGBTI, que deriva não só da criminalização de pessoas de orientação sexual e/ou
identidade de gênero diversas ao redor do globo, como também da discriminação

3 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo


modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do “diálogo das fontes”. Argumenta
Journal Law, n. 15, 2011, p. 77-114.
4 PIOVESAN, Flávia. Proteção dos direitos sociais: desafios do ius commune sul-americano. Rev. TST,
Brasília, v. 77, n. 4, out/dez 2011, p. 102-139.

190
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

sofrida por essas pessoas quando buscam da tutela de outro Estado em virtude
de uma perseguição sofrida (a qual pode ou não estar igualmente relacionada à
orientação sexual), este estudo busca igualmente observar se o SIDH oferece uma
proteção específica a este grupo.
Em termos mais objetivos buscar-se-á analisar se esse Sistema atua de
maneira eficaz na promoção da tutela de pessoas marginalizadas e, diante disso,
se essa proteção abarca refugiados de orientação sexual e/ou identidade de gênero
diversas. No caso de a hipótese ser negativa, questionar-se-á a preparação do Sistema
para uma eventual abordagem do tema em casos futuros. Para tais fins, pontua-
se a realização de um estudo monográfico por meio da metodologia hipotético-
dedutiva de abordagem, a qual utiliza do modelo analítico-explicativo de análise
dos objetivos e das ferramentas documental (incluindo-se a jurisprudencial) e
bibliográfica de procedimento.

2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A


TUTELA DE PESSOAS MARGINALIZADAS

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) foi constituído


pela Convenção Americana de Direitos Humanos no ano de 1969, e é composto
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH). Apesar desse sistema regional ter
sido criado com o objetivo de promover e garantir o respeito aos direitos humanos
nas Américas5, esse propósito já estava disposto na própria Carta de fundação da
Organização dos Estados Americanos (OEA), ainda em 1948, celebrada em Bogotá.
No seu preâmbulo, encontra-se que o sentido da solidariedade americana e da boa
vizinhança reside em consolidar no continente “um regime de liberdade individual
e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem”6, Na
Carta, ainda, se estabelece a não-discriminação em termos de raça, nacionalidade,
credo ou sexo como princípio norteador da atuação dos Estados Membros7.
No que concerne à tutela de pessoas marginalizadas8, cumpre debater
o tratamento da vulnerabilidade como um conceito do direito internacional

5 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Nova edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
6 OEA. Carta da Organização dos Estados Americanos. 1948. preâmbulo.
7 Ibid.,, art. 3.
8 Aqui importa fazer algumas considerações sobre o termo “marginalidade”. Este teve o seu sentido
atrelado, nas ciências sociais, aos processos de urbanização posteriores à Segunda Guerra Mundial em

191
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dos direitos humanos. De acordo com Morawa9, os termos “vulnerável” e


“vulnerabilidade” são, usualmente, utilizados para designar indivíduos que são
ou devem ser tratados com cuidado e atenção especiais. Essa situação decorre
em função destas pessoas “se encontrarem em situação de desigualdade”, a qual
lhes transformam em sujeitos (hiper)vulneráveis10, requerendo a adoção de ações
específicas dos Estados, das Organizações Internacionais e, porque não, dos entes

países latino-americanos em que começaram a brotar bairros marginais, sub standard, situados “nas
bordas ou margens do corpo urbano tradicional das cidades”. E com estes, constitui-se o “o problema
das ‘populações marginais’” ao sistema social usual (QUIJANO, Aníbal. Notas sobre o conceito de
marginalidade. In: L. Pereira (org.). Populações marginais. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 18-19).
Logo, em seu princípio o termo referia-se a populações menos favorecidas em termos não apenas
estritamente econômicos como também de direitos sociais; afinal, segundo o citado autor: “[o pro-
blema] não era unicamente a moradia ou a habitação como tais que se encontravam em precariedade,
mas todo o conjunto de ‘serviços comunais’ (água, esgoto, luz elétrica, transportes) de certas áreas da
cidade”. Assim é que se desenvolve o termo ‘marginalidade’, hoje contemplando o próprio sentido
de identidade psicossociocultural, em que certos grupos de pessoas não apresentam um sentimento
de pertencimento ao todo, ao tradicional, e, ao mesmo tempo, dependem deste para serem/vive-
rem (MAIOLINO, Ana Lúcia G.; MANCEBO, Deise. Análise histórica da desigualdade: margina-
lidade, segregação e exclusão. Psicologia & Sociedade, v. 17, n. 2, p. 14-20, 2005. DOI: https://doi.
org/10.1590/S0102-71822005000200003).
9 MORAWA, Alexander H. E. Vulnerability as a Concept of International Human Rights Law. JIRD,
v. 6, n. 2, 2003, p. 139-155. Disponível em: https://ciaotest.cc.columbia.edu/olj/jird/jird_jun03_
moa01.pdf. Acesso em: 1 abr. 2022.
10 A hipervulnerabilidade decorre de aspectos múltiplos do entorno social que terminam por agravar
a situação de vulnerabilidade de certo sujeito. No Brasil, o termo deriva de um julgado do Superior
Tribunal de Justiça, o REsp 586.316/MG, quando o Min. Herman Benjamin expressou que, in
concreto, a pessoa está sujeita a diversos fatores que fazem com que a sua situação de vulnerabilidade
transcenda a visão já prejudicada de certo indivíduo, agravando-a, devendo o Estado preocupar-se
ainda mais com o mesmo. Nesse passo, o uso do termo tem sido alargado para diversas áreas, como,
por exemplo, para a situação de refugiados, os quais já estão em situação de vulnerabilidade pela
perseguição sofrida ensejadora do deslocamento, mas que, no país de destino, são rotineiramente
expostos a outras situações que agrava a sua situação, transformando-lhes, desta forma, em hipervul-
neráveis (GARBINI, V. G.; SQUEFF, T. A. F. R. C.; SANTOS, T. F. S. A vulnerabilidade agravada
dos refugiados na sociedade de Consumo. Revista de Direito do Consumidor, v. 119, ano 27, p. 19-47.
São Paulo: RT, set./out. 2018.).

192
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

privados11, para o reestabelecimento do equilíbrio e da retirada destes de sua


situação marginalizada na sociedade12.
Em que pese não exista uma lista oficial que determine exatamente quais
são aqueles grupos vulneráveis. No bojo do SIDH, não há, também, qualquer
delimitação do que seriam considerados grupos vulneráveis ou indivíduos que
devem receber tratamento diferenciado. Desta forma, tem-se na prática dos
tribunais internacionais e domésticos a possibilidade de verificar quais são
esses grupos vulneráveis, haja vista a atenção especial por eles demandada para
o reestabelecimento da igualdade em meio a sociedade. Quer isto dizer que a
jurisprudência tem promovido a delimitação ampla de categorias e subcategorias de
grupos vulneráveis, além de ter sido um espaço de busca pela efetivação de direitos.
Particularmente, tem-se que os foros regionais de proteção de direitos
humanos, tal como o SIDH, têm sido notadamente essenciais para essa delimitação
e tutela. Afinal, os Estados (e os entes privados que operam dentro destes), apesar
de serem requisitados direta e indiretamente a buscar pela efetivação dos direitos de
todos os cidadãos que estejam dentro de suas jurisdições, eles não têm se mostrado
efetivos na garantia dos direitos dessas pessoas vulneráveis, muito em razão da
própria marginalidade das mesmas, as quais fazem com que a sua realidade e as
suas pautas não sejam apreciadas ou resolvidas (mas sim, rotineiramente silenciadas
e oprimidas).
Desta forma, o foro regional mostra-se como um ‘guardião último’, ou
seja, um espaço em que é possível chamar a atenção dos Estados para que os mesmos
corrijam as suas falhas em termos de defesa de igualdade entre os indivíduos,
exigindo que eles garantam, materialmente, os direitos aos quais eles concordaram
ao tornarem-se parte de organismos internacionais (como a OEA) e de seus
documentos (como a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH – e
demais instrumentos interamericanos). Entretanto, para além dessa efetivação de

11 Aqui, frisa-se o papel não apenas da aplicação horizontal dos efeitos dos direitos humanos, ensejan-
do que todos da sociedade operem para a proteção dos direitos fundamentais (e não apenas o Estado)
(SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006), como também os próprios Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que igualmente induz
os atores privados a atuarem em prol da realização dos objetivos listados na Agenda 2030 (cf. SQUE-
FF, Tatiana Cardoso; D’AQUINO, Lúcia Souza. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e Covid-19:
impactos e perspectivas. Londrina: Thoth, 2022.).
12 GARBINI, V. G.; SQUEFF, T. A. F. R. C.; SANTOS, T. F. S. A vulnerabilidade agravada dos
refugiados na sociedade de Consumo. Revista de Direito do Consumidor, v. 119, ano 27, p. 19-47. São
Paulo: RT, set./out. 2018. p. 21.

193
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

direitos, no caso dos sujeitos marginalizados, por certo que reconhecer o grupo
em si e as vulnerabilidades que estes especificamente apresentam/enfrentam é
igualmente primordial para a busca da sua plena tutela.
Assim sendo, a CIDH, em seus relatórios, e a CtIDH, em suas decisões,
apresentam critérios de definição do que seriam essas pessoas marginalizadas diante
do contexto específico em que elas se encontram13. As duas instituições que formam
o SIDH têm tratado de casos de pessoas e grupos vulneráveis de maneira a formar
uma base documental e jurisprudencial relevantes sobre o tema. Dentre estes estão
as mulheres, as pessoas privadas de liberdade, as crianças, os povos indígenas, os
migrantes, refugiados e apátridas, e a população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Intersexos). Logo, nesta seção, apresentar-se-ão os debates atinentes aos
quatro primeiros grupos citados, deixando as duas últimas categorias para serem
abordadas na seção subsequente pelas razões que serão posteriormente expostas.

2.1 A PROTEÇÃO ÀS MULHERES NO SIDH

Quando se trata da proteção da mulher, a Convenção Interamericana


para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada em 1994
em Belém do Pará, representa um importante marco. Trata-se do documento
interamericano que recebeu o maior número de ratificações – 32 até o momento14;
muito mais que a própria CADH, que hoje tem 2415. Além de definir a violência
contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause
morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera
pública como na esfera privada16”, a Convenção reconhece uma relação entre
gênero e discriminação, identificando esse tipo de violência como manifestação
de relações historicamente desiguais entre homens e mulheres17 e definindo que o
direito de ser livre de violência envolve, dentre outros fatores, o direito de ser livre
de todas as formas de discriminação18.

13 LEAL, M. C. H.; LIMA, S. S. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a proteção de


minorias e de grupos vulneráveis. Revista de Direito Brasileira, Florianópolis, v. 29, n. 11, p. 144-163,
p. 200, maio/ago. 2021.
14 OEA. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher,
“Convenção De Belém Do Pará”. 1994.
15 OEA. Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. 1969.
16 OEA, 1994. art. 1.
17 Ibid.,, preâmbulo.
18 Ibid.,, art. 6.

194
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em termos práticos, a Convenção19 determina que os Estados ajam de


forma a prevenir, investigar e impor penas em casos de violência contra a mulher,
tenha ela ocorrido na esfera pública ou na esfera privada, seja ela perpetuada por
agentes estatais ou indivíduos. Regra esta que merece especial atenção porque ela
é autonomamente justiciável20, logo, permitindo que pessoas, grupos de pessoas
ou Organizações Não-Governamentais apresentem casos perante o SIDH quando
violada no âmbito de um Estado-Parte, sem haver a necessidade de vinculá-las
diretamente à CADH.
Para além disso, no que concerne às múltiplas vulnerabilidades que
podem enfrentar as mulheres, o instrumento reconhece o risco que determinados
grupos de mulheres podem enfrentar pelas diferentes identidades que representam,
quais sejam, sua raça ou etnia ou seu status migratório. Mulheres privadas de
liberdade, grávidas e com deficiência, por exemplo, também são consideradas nesse
leque de exposição a maiores riscos21. Os Estados-parte também são responsáveis
por implementar medidas, como o treinamento de servidores públicos e a criação
de medidas educacionais, para promover o conhecimento sobre a temática e mudar
padrões sociais de conduta22.
Em relação ao Brasil, por exemplo, os avanços em termos de violência
e discriminação contra a mulher podem ser observados no relatório de mérito

19 OEA, 1994. art. 7.


20 Questão reconhecida pela CtIDH no caso de 2009 Gonzáles e outras (Campo Algodoeiro) vs. Méxi-
co, que, aliás, é um caso paradigmático não apenas pelo fato de permitir essa justiciabilidade direta do
art. 7, senão também por debater a situação agravada da mulher na sociedade (mexicana). No ponto,
esta decisão reconhece a existência de padrões desiguais de poder entre homens e mulheres e exige dos Estados
que cumpram com o seu dever de prevenção da violência contra a mulher, que considere o dever de inves-
tigar adequado às particularidades da condição de mulher (SQUEFF, Tatiana Cardoso; ROSA, Marina.
Subalternidade e Emancipação da Condição de Mulher: um exame dos avanços no Sistema Intera-
mericano de Direitos Humanos. In: TOLEDO, Claudia M.; CANOTILHO, Mariana; ARNAUD,
Wanda Maria. Direito internacional dos direitos humanos I. Braga, PT/Florianópolis, BR: CONPEDI,
2017. Disponível em: site.conpedi.org.br/publicacoes/pi88duoz/02b02e50/TV7I37IJdYwH3oSI.
pdf. Acesso em: 30 mar. 2022). Cf. também ABRAMOVICH, Victor. Responsabilidad estatal por
violencia de género: comentarios sobre el caso “Campo Algodonero” en la Corte Interamericana de
Derechos Humanos. Anuário de Derechos Humanos. Santiago: Universidad Nacional de Chile, 2010.
p. 167-182, p. 167-182.
21 OEA, 1994. art. 9.
22 Ibid.,, art. 8.

195
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da CIDH23 do caso Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil, que decorreu da
omissão do Estado brasileiro não só em relação da demora processual para ver o seu
caso de violência doméstica, que lhe causou paraplegia irreversível, apreciado pelo
Poder Judiciário Estado, como também pela inexistência, à época, de medidas que
prevenissem que tal situação de violência ocorresse em solo brasileiro. Nesse caso,
a CIDH considerou que o país violou o direito de proteção jurídica por não ter
punido o perpetuador das agressões e ter agido com negligência diante da situação.
Em acompanhamentos posteriores, a Comissão identificou a criação da Lei Maria
da Penha, em 2006, como instrumento normativo interno no país e alertou ao
Estado sobre a urgência de aplicar tal legislação efetivamente, além de continuar a
aplicar políticas públicas voltadas para prevenir, punir e erradicar a violência contra
a mulher24.
Apesar disso, deve-se pontuar que mesmo havendo tais desdobramentos,
ainda visualizam-se agressões sofridas por mulheres no Estado brasileiro. Exemplo
disso é o recente caso julgado pela CtIDH, Barbosa de Souza e outros vs. Brasil,
em 2021, que novamente evidencia a necessidade de o Estado agir para proteger
a mulher, mais especificamente, a mulher preta, pobre e nordestina (logo,
hipervulnerabilizada)25. Isso porque, o caso trata do homicídio e da ocultação de
cadáver praticados contra Márcia Barbosa de Souza, em João Pessoa em junho de
1998, por um deputado estadual.
Este caso apontou a existência de um padrão nos países latinos – haja vista
o que também foi observado no caso julgado pela CtIDH contra o México26 – de
questionar-se a vida pregressa da vítima, além da ocorrência de outros estereótipos
de gênero, na tentativa de justificar a violação perpetrada, o que não se poderia
admitir27. Ademais, assinalou a existência de um contexto de violência contra a
mulher no Brasil que, em que pese aprovada a Lei Maria da Penha, ainda se verifica

23 CIDH. Relatório Nº 54/01. Caso 12.051. Mérito. Maria da Penha Maia Fernandes. Brasil. 16
de abril de 2001. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso
em: 30 mar. 2022.
24 Ibid
25 CIDH. Barbosa de Souza e outros. Brasil. Sentença. 7 de setembro de 2021. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
26 CIDH. González e outras (“Campo Algodoeiro”). México. Sentença. 16 de novembro de 2009.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_205_por.pdf. Acesso em: 30
mar. 2022.
27 CIDH. Barbosa de Souza e outros. Brasil. Sentença. 7 de setembro de 2021. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022. p. 48.

196
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a existência de muito espaço para o Estado agir, sobretudo, frente a este grupo
específico marginalizado de mulheres hipervulnerabilizadas28. E justamente nesse
ponto é que se destaca o papel da CtIDH (e do SIDH como um todo), em notar a
existência dessas (hiper)vulnerabilidades, e demandar que o Estado as corrija.

2.2 A PROTEÇÃO ÀS PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE NO SIDH

As pessoas privadas de liberdade também são consideradas grupos


marginais, os quais são amparados por documentos e pela jurisprudência do SIDH.
Ao delimitar princípios e boas práticas na proteção desses indivíduos nas Américas
através da aprovação da Resolução n. 1/200829, a CIDH, por exemplo, reconheceu
explicitamente a importância do tratamento humano e do respeito à dignidade
dessas pessoas. Além das preocupações com direitos e liberdades fundamentais como
o direito à vida e à integridade física, moral e mental, reconheceu-se especificamente
a relevância da proteção efetiva desses direitos desse grupo para além daquilo que
é encontrado na própria CADH30 e na Convenção Interamericana para Prevenir
e Punir a Tortura31, especialmente considerando a sua situação de particular

28 CIDH. Barbosa de Souza e outros. Brasil. Sentença. 7 de setembro de 2021. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022. p. 47, 51-53.
29 Este documento foi gerado no âmbito da Relatoria sobre os Direitos das Pessoas Privadas de
Liberdade nas Américas e o seu nome completo é ‘Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das
Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas’. Enquanto ato de organização internacional, aprovado
pelos comissários da CIDH, ele é uma fonte com natureza obrigatória para os membros da OEA.
Todavia, servirá para fins interpretativos quando usada pela CtIDH quando analisando um pedido,
especialmente diante do art. 29(c) da CADH. Ela, inclusive, citou o referido documento na outorga
de medidas provisórias no caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho vs. Brasil, ao referenciar o
princípio XII sobre questões relativas ao alojamento, condições de higiene e vestuário dos apenados
que estariam sendo desrespeitados e, logo, seriam incompatíveis com a citada Resolução (CIDH.
Assunto do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Medidas Provisórias a respeito do Brasil. Resolução
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 2018, p. 68. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/placido_se_03_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.). Já o
princípio X, sobre a saúde de pessoas encarceradas, foi apreciado em outra Medida Provisória, nova-
mente contra o Brasil, no caso do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em que determinou que os
apenados com tuberculose não poderiam voltar aos seus pavilhões dada a lata transmissibilidade da
doença (CIDH. Assunto do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Medidas Provisórias a respeito do
Brasil. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 14 de outubro de 2019, p. 52.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/pedrinhas_se_03_por.pdf. Acesso em: 30
mar. 2022.).
30 OEA. Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. 1969. art. 5.
31 OEA. Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura. 1984. art. 2.

197
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

vulnerabilidade32 que é derivada da precariedade dos estabelecimentos prisionais


latino-americanos33.
Ademais, avultou-se a preocupação específica do Sistema com as mulheres
e meninas privadas de liberdade e o seu direito de acesso a tratamento médico
especializado em concordância com suas características físicas e biológicas (OEA,
2008, princípio X). Aliás, sobre esse ponto, importante referir o caso Presídio
Miguel Castro Castro vs. Peru, de 2006, logo, anterior à adoção de tal Resolução
(quiçá, porém, instigando a adoção dos princípios que seriam elaborados na CIDH
dois anos depois), em que a CtIDH manifestou-se sobre a conduta violenta de tal
Estado frente às apenadas, suspeitas de pertencer ao grupo Sandero Luminoso,
cunhado como terrorista, durante uma intercorrência violenta havida no âmbito
do Presídio Miguel Castro Castro por parte das autoridades estatais e da omissão
do país em acudi-las posteriormente ao que se denominou de massacre34. Esse caso
restou conhecido por debater a hipervulnerabilidade das mulheres apenadas35, e da
necessidade de o Estado assegurar-lhes a sua integridade pessoal, não submetendo-
as à tortura ou tratamento degradante36.
Dentre as outras situações apreciadas sobre o tema pelo SIDH, por
exemplo, avulta-se o caso Víctor Rosario Congo vs. Equador, apreciado em 1999 pela
CIDH, em face de um tratamento desumano a indivíduos privados de liberdade,

32 OEA. Principles and Best Practices on the Protection of Persons Deprived of Liberty in the Americas.
2008. preâmbulo.
33 ONU. ONU preocupada com piora em prisões na América Latina após pandemia. ONU News, 5
maio 2020. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/05/1712612. Acesso em: 1 abr. 2022;
HRW. América Latina: Reduza a superlotação nas prisões para combater a COVID-19. HRW, 2 abr.
2020. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2020/04/02/340125. Acesso em: 1 abr. 2022.
34 CtIDH. Presídio Miguel Castro Castro. Peru. Mérito. 25 de novembro de 2006, p. 186.a.1. Dis-
ponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/7ef9a6d58703704d6c5e9a8a-
04cb09e9.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
35 Interessante notar que a foram os juízes da Corte que trouxeram a questão da mulher para a
apreciação, pontualmente, do dever do Estado em zelar para que as autoridades e agentes estatais se abs-
tenham de qualquer ação ou prática de violência contra a mulher (referindo-se ao art. 7 da Convenção
de 1994) (CtIDH, 2006, para 292), não se limitando, assim, a debater apenas os direitos das pessoas
privadas de liberdade, porquanto configurando o uso do princípio iura novit curia (CtIDH, 2006,
para 162), mas não sem críticas, tal como se absorve do voto do Juiz Sergio García Ramírez, que
condenou largamente essa medida por parte da Corte, entendendo que esta Convenção não deveria
ter sido considerada pelos magistrados para fins interpretativos (rememora-se que a confirmação da
justiciabilidade do citado art. 7, como aludido supra, só ocorreu em 2009 na CtIDH).
36 CtIDH, 2006. p. 413 e 432.

198
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

quando se reconheceu a violação da CADH. No caso, o peticionário era deficiente


mental e estava detido no Social Rehabilitation Center, em Machala, Equador. Tendo
sua deficiência sido observada em alguns comportamentos, Congo foi movido
para uma cela de isolamento, onde foi atacado por um guarda e tratado de forma
desumana até ser levado ao hospital, em situação crítica. Diante dos atos comissivos
e omissivos do Equador, a CIDH recomendou que o país tomasse todas as medidas
apropriadas para evitar situações como a presente de ocorrerem novamente no
Estado, promovesse compensação para a família de Congo, que acabou em óbito,
e conceder tratamento físico e psicológico para indivíduos privados de liberdade e
com deficiência37.
Assim sendo, nota-se que o tema da proteção das pessoas apenadas
já é recorrente no SIDH, e que este tem sido essencial para fazer com que os
estados observem as vulnerabilidades dos mesmos, agindo no sentido de tutelá-
los, indiferentemente da condição de liberdade que eventualmente a pessoa se
encontre. Inclusive, este tema foi central no contexto da pandemia de Covid-19,
quando a CIDH recomendou aos Estados (a) adaptarem as condições de detenção
no que diz respeito à alimentação, saúde, saneamento e quarentena; e (b) adotarem
medidas de combate a superlotação nos estabelecimentos prisionais forte na alta
transmissibilidade do vírus, anotando a necessidade de especial atenção para
grupos hipervulneráveis (nomeados como ‘grupo de risco’) como idosos, pessoas
com doenças crônicas, mulheres grávidas ou com crianças sob seus cuidados e para
aqueles que estão em estágio avançado de cumprimento de suas sentenças pela
fragilidade em que podem se encontrar em função disso38.

2.3 A VULNERABILIDADE DE CRIANÇAS PERANTE O SIDH

O SIDH também reconhece a vulnerabilidade de crianças e as formas de


proteção a esse grupo. Cruz39 entende que as sentenças da CtIDH nesta temática

37 CIDH. Relatório Nº 63/99. Caso 11.427. Victor Rosario Congo. Equador. 1999, p. 6 10,103.
Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/98eng/Merits/Ecuador%2011427.htm. Acesso
em: 30 mar. 2022; HILLMAN, Alison A. Protecting Mental Disability Rights: A Success Story in the
InterAmerican Human Rights System. Human Rights Brief, v. 12, n. 3, 2005, p. 25-28, p. 3.
38 CIDH. Resolução 1/2020. Pandemia y Derechos Humanos en las Américas. 2020. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022.
39 CRUZ, Elisa Costa. A vulnerabilidade de crianças na jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos: análise de casos e de formas de incorporação no direito brasileiro. Revista dos Tri-
bunais [recurso eletrônico]. São Paulo, n. 999, jan. 2019, p. 71. Disponível em: https://dspace.almg.
gov.br/handle/11037/32259. Acesso em: 4 jul. 2019.

199
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

como importantes fontes de análise devido ao seu potencial de se tornar parâmetros


para a construção de instrumentos “para a efetiva proteção e prevenção de violação
a direitos da criança”. Apesar de as sentenças serem, de fato, importantes justamente
por serem obrigatórias aos Estados que aceitaram a jurisdição da CtIDH, nos termos
do art. 68 da CADH, tem-se que as opiniões consultivas igualmente exercem um
papel importante a cumprir, notadamente quando se refere a antecipar novidades
interpretativas e/ou engajar-se em temas que, diante casos concretos, o espaço seria
mais limitado para fazê-lo4041.
Nesse diapasão, cumpre ressaltar duas Opiniões Consultivas de extrema
relevância no plano interamericano sobre a proteção das Crianças. A primeira,
é a Opinião n. 17/02, solicitada à CtIDH pela CIDH, em que se questionava
a abrangência do art. 19 da CADH42, mais especificamente, se as medidas ali
contidas constituem limites ao arbítrio ou à discricionariedade dos Estados em
relação às crianças. Isso porque, algumas legislações domésticas de países que
compõe o Sistema tratavam-nas como objetos de protección y control, y se establecen
jurisdicciones especiales, las cuales resultan excluyentes y discriminatorias, niegan a los
niños la condición de sujetos de derecho y vulneran sus garantías fundamentales43, de
modo que os jueces de niños, estabelecidos para apreciar temas relativos a estes,
tinha ampla discricionariedade para solucionar os problemas atinentes a esse grupo,
operando, muitas vezes, sem balizas pré-determinadas.
E neste ponto é que resta a importância desse documento, pois ele
estipula algumas diretrizes para os países da região, dividindo-se em cinco tópicos:

40 SQUEFF, Tatiana Cardoso; FREITAS, Felipe Simor de. Segurança jurídica na jurisdição contenciosa
da Corte Interamericana de Direitos Humanos através da sinalização-alerta de interpretações em Opiniões
Consultivas. 2022. No prelo.
41 Sobre o tema, a Corte, na OC 17/02, teceu que a Opinión Consultiva no constituye una mera espe-
culación académica y que el interés en la misma se justifica por el beneficio que pueda traer a la protección
internacional de los derechos humanos (CtIDH. Opinião Consultiva OC-17/2022. Condición Jurídica
y Derechos Humanos del Niño. 28 de agosto de 2002, p. 35. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/opiniones/seriea_17_esp.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022).
42 Este está assim redigido: Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor
requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado (OEA, 1969, art. 19).
43 CtIDH. Opinião Consultiva OC-17/2022. Condición Jurídica y Derechos Humanos del Niño.
28 de agosto de 2002. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_17_esp.pdf.
Acesso em: 30 mar. 2022. p. 9.

200
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

(a) a definição de criança44, (b) o direito à igualdade perante a lei45, (c) o princípio
do interesse superior do menor46, (d) os deveres da família, sociedade e Estado, em
que discutiu a excepcionalidade47 da separação da criança de sua família justamente
por ser ela o núcleo central da proteção do menor, além da necessidade de adequar
as instituições estatais e qualificar os seus funcionários para lidar com crianças e os
seus interesses48, e (e) as diretrizes para procedimentos judiciais/administrativos que
tenham crianças como partes, ressaltando a necessidade de observar-se o devido
processo legal, a presunção da inocência e a ampla defesa e contraditório, que inclui
a participação da criança no procedimento enquanto sujeito49.
Outra Opinião Consultiva de destaque é a n. 21/14, solicitada pela
Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai em 2014, almejando determin[ar] com maior
precisão quais são as obrigações dos Estados com relação às medidas passíveis de serem
adotadas a respeito de meninos e meninas, associadas à sua condição migratória, ou à
de seus pais50. Importante essa Opinião, sobretudo, em função da prática de alguns
Estados em criminalizar a condição migratória e, além disso, promover a separação
das famílias, ocasionando prejuízos de ordem psíquica a ambos – condutas essas
rechaçadas pela Corte no documento em comento51.
Ademais, a Opinião, ao visualizar a hipervulnerabilidade a qual as
crianças migrantes são submetidas, relembra que os Estados estão obrigados

44 CtIDH. Opinião Consultiva OC-17/2022. Condición Jurídica y Derechos Humanos del Niño.
28 de agosto de 2002. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_17_esp.pdf.
Acesso em: 30 mar. 2022. p. 38-42.
45 Ibid.,, p. 43-45.
46 Ibid.,, p. 56-61.
47 Esse foi o ponto discutido no caso Fornerón e filha vs. Argentina, julgado pela CtIDH em 2012,
tendo a Corte defendido a necessidade de se favorecer, sempre, a manutenção da criança no núcleo
familiar, pois esta medida é que estaria de acordo com o princípio do superior interesse da criança. O
caso dizia respeito a separação de uma criança de sua família biológica, cuja excepcionalidade não foi
comprovada, logo, violando a CADH, em seu art. 17.
48 CtIDH, 2022. p. 62-91.
49 Ibid.,, p. 92-136.
50 CtIDH. Opinião Consultiva OC-24/17. Identidade de gênero, igualdade e não discriminação a
casais do mesmo sexo. 19 de agosto de 2014. p. 1. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
opiniones/seriea_21_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
51 Sobre o tema, cf. de maneira mais detalhada o estudo de Squeff e Orlandini (SQUEFF, Tatiana
Cardoso; ORLANDINI, Marcia Leonora. Is there a latin american child migration law? Revista Vi-
dere, Dourados/MS, v. 11, n. 21, p. 121-134, jan./jun. 2019.), notadamente frente ao contexto e
práticas estadunidenses.

201
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a amparar integralmente todos os menores que estão sob sua jurisdição, não
podendo a condição migratória prejudicar a sua ação/resposta no caso concreto,
notadamente pelo direito à igualdade e não discriminação52. Ainda, a Corte
aproveita a oportunidade para listar 10 diretrizes básicas que os Estados devem
respeitar quando agindo em relação às crianças migrantes, a saber:

(i) o direito de ser notificado da existência de um procedimento


e da decisão que se adote no âmbito do processo migratório;
(ii) o direito a que os processos migratórios sejam conduzidos
por um funcionário ou juiz especializado; (iii) o direito
da criança a ser ouvida e a participar nas diferentes etapas
processuais; (iv) o direito a ser assistido gratuitamente por um
tradutor e/ou intérprete; (v) o acesso efetivo à comunicação
e assistência consular; (vi) o direito a ser assistido por um
representante legal e a comunicar-se livremente com este
representante; (vii) o dever de designar um tutor no caso
de criança desacompanhada ou separada; (viii) o direito a
que a decisão adotada avalie o interesse superior da criança
e seja devidamente fundamentada; (ix) o direito a recorrer
da decisão perante um juiz ou tribunal superior com efeitos
suspensivos; e (x) o prazo razoável de duração do processo53.

Por fim, nesse documento, a Corte reiterou a impossibilidade de o


Estado praticar atos arbitrários que contrariem esse corpus iuris internacional já
estabelecido em torno das crianças em virtude de suas vulnerabilidades (no caso,
agravadas pela condição migratória54)55.
Para além de Opiniões, a Corte também se manifestou sobre o tema
em casos contenciosos. Por exemplo, Cruz56 cita o caso da Comunidade Indígena

52 CtIDH, 2014. p. 61.


53 Ibid.,, p. 116.
54 Importa ressaltar que no caso Crianças Yean e Bosico vs. República Dominicana, julgado em 2005,
a Corte já havia se debruçado ao debate da situação de (hiper)vulnerabilidade que crianças migrantes
tem no país de destino, especialmente as duas meninas do caso, as quais foram despidas de sua nacio-
nalidade em virtude de sua ascendência haitiana, tornando-se apátridas, e impossibilitadas de gozar de
certos direitos sociais, em particular, o direito à educação, em uma situação notória de marginalização
promovida pelo Estado Dominicano.
55 CtIDH, 2014. p. 56-59.
56 CRUZ, Elisa Costa. A vulnerabilidade de crianças na jurisprudência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos: análise de casos e de formas de incorporação no direito brasileiro. Revista dos

202
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Sawhoyamaxa vs. Paraguai, como um exemplo, vez que, neste, foi identificada
a transferência progressiva de terras indígenas a não indígenas, culminando em
um prejuízo na subsistência dos primeiros (água, alimentação adequada, etc.).
Diante desse cenário, a Corte apontou para a ocorrência de violações aos direitos
das crianças. Isso porque, além de garantir a vida – obrigação comum a todas as
pessoas –, o Estado tem a responsabilidade de atuar como especial garantidor do
princípio do superior interesse da criança. Não obstante, as medidas reparatórias
recomendadas pela CtIDH não foram direcionadas especificamente às crianças da
comunidade57. Semelhante foram as suas conclusões no caso Comunidade Indígena
Xákmok Kásek vs. Paraguai, julgado pela Corte em 2010, denotando também a
ligação entre dois grupos marginalizados que são as crianças e os indígenas58.
Ao cabo, sobre o tema, interessante avultar que, por ocasião do Dia da
Infância e da Adolescência nas Américas, em 2020, a CIDH reiterou o seu papel de
acompanhamento de medidas adotadas pelos Estados na temática em questão. A
Comissão reforçou a necessidade de se manterem os esforços na tratativa das questões
concernentes às crianças e adolescentes, especialmente devido à desigualdade que
permeia o grupo, fazendo com que muitos desses indivíduos sejam privados de
direitos básicos, como a vida e o acesso à saúde e à educação. Finalmente, foram
reconhecidos fatores interseccionais que colocam pessoas desse grupo em situação
de especial vulnerabilidade, como gênero, etnia e/ou deficiência, além da Covid-19,
que intensificou os desafios para a sua proteção59.

2.4 A QUESTÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO SIDH

Os povos indígenas foram, em virtude de sua vulnerabilidade, objeto de


atenção no SIDH. Em 1997, a CIDH aprovou o Projeto de Declaração Americana
sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Nele, foi estabelecido que tais povos teriam
direito a garantias especiais contra a discriminação de modo a possibilitar a proteção

Tribunais [recurso eletrônico]. São Paulo, n. 999, jan. 2019. Disponível em: https://dspace.almg.gov.
br/handle/11037/32259. Acesso em: 4 jul. 2019.
57 CtIDH. Comunidad Indígena Sawhoyamaxa. Paraguai. Sentença. 29 de março de 2006. Disponí-
vel em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_146_esp2.pdf. Acesso em: 2 abr. 2022.
58 CRUZ, 2019, p. 73-74; CtIDH. Comunidade Indígena Xákmok Kásek. Paraguai. Setença. 24 de
agosto de 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_214_por.pdf.
Acesso em: 30 mar. 2022.
59 CIDH. Resolução 1/2020. Pandemia y Derechos Humanos en las Américas. 2020. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022.

203
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de seus direitos nacional e internacionalmente60. Ademais, a proteção que o Projeto


visava prover aos grupos especialmente vulneráveis se fez evidente, principalmente
na delimitação do seu escopo de proteção. O documento, que viria a se tornar
Declaração em 2016 por ocasião da sua aprovação durante a terceira sessão plenária
da Organização, buscou ampliar a sua abrangência àquelas pessoas cujas condições
sociais, culturais e econômicas os distingam de outros segmentos da comunidade nacional
e cujo status jurídico é, parcial ou totalmente, regulado por seus próprios costumes e
tradições ou por regulamentos ou leis especiais61.
Os esforços para o desenvolvimento da Declaração Americana sobre
os Direitos dos Povos Indígenas também moveram a Assembleia Geral da OEA,
que criou, em 1999, um Grupo de Trabalho para continuar o desenvolvimento
do Projeto de Declaração com a participação de representantes de comunidades
indígenas62. Contando, também, com a participação e considerações dos Estados
americanos, a Declaração, de 2016, reconhece a importância cultural e histórica
dos povos indígenas nas Américas63. Uma mudança fundamental do Projeto para
a Declaração aprovada se concentra no seu escopo de aplicação. Estabeleceu-
se o critério da autoidentificação como fator delimitador dos destinatários do
instrumento. Deste modo, cumpre a cada indivíduo ou ao grupo de indivíduos
se autoidentificar, ou não, como indígena e, portanto, gozar da proteção prevista
na Declaração. Aos Estados, se incube a responsabilidade de respeitar tal direito64.
Ainda mais recentemente, no contexto da pandemia, a Comissão
afirmou a importância de um olhar especial aos povos indígenas durante a crise
sanitária global. Por meio da Resolução 1/202065, recomendou-se aos Estados
a disponibilização de informações sobre a pandemia da Covid-19 no idioma
tradicional de cada povo com vistas a facilitar a sua compreensão acerca das medidas
de combate e proteção adotadas no cenário corrente. Ademais, foi reiterado o
direito que essas populações têm de ter um acesso à saúde que leve em conta suas
especificidades culturais e tradições66.

60 OEA. Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. 1997. art. 4.
61 Ibid.,, art. 1.
62 OEA. Declaração Americana sobre o Direito dos Povos Indígenas. 2016. p. 1.
63 Ibid.,, preâmbulo.
64 Ibid., art. 1.
65 CIDH. Resolução 1/2020. Pandemia y Derechos Humanos en las Américas. 2020. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022. p. 56.
66 Ibid.,

204
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em 2021, a CIDH adotou medidas cautelares em favor de membros dos


Povos indígenas Guajajara e Awá da Terra Indígena Araribóia vs. Brasil. Os solicitantes
alegaram que tais Povos encontravam-se em particular risco não apenas devido à
pandemia, mas também à violência histórica que vêm sofrendo nos últimos anos67.
Soma-se a isso a presença de terceiros não autorizados no território indígena e o
isolamento voluntário adotado pelo povo Awá. A Comissão identificou as medidas
brasileiras como insuficientes e ineficazes na proteção desse grupo em situação
de especial vulnerabilidade. Nesse cenário, foi solicitado ao Brasil que adote as
medidas necessárias de proteção dos direitos à saúde, vida e integridade pessoal
dos membros desses Povos, bem como de enfrentamento à Covid-19, levando em
consideração suas especificidades culturais68.
Outrossim, tal como analisado no ponto anterior sobre o direito das
crianças, essa não foi a primeira vez que o SIDH se manifestou sobre o direito de
comunidades indígenas, sendo este um tema de especial atenção e repetida ação no
que tange a tutela de direitos no continente69. Em relação ao Brasil, por exemplo,
pode-se citar também o caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros, julgado
em 2018. Neste imbróglio, a Corte condenou a demora do Estado brasileiro
para reconhecer a propriedade coletiva das terras da comunidade, situada no
município de Pesqueiras, no estado de Pernambuco, mais especificamente sobre
a insegurança jurídica que ainda paira em torno do título “concedido” em 2005,
haja vista a imprecisão total da área70. No ponto, ela explicitamente trouxe que é
indispensável que os Estados ofereçam uma proteção efetiva que leve em conta suas
particularidades e suas características econômicas e sociais, além de sua situação de
especial vulnerabilidade, seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes71,

67 CIDH. Resolução 1/2021. Miembros de los Pueblos Indígenas Guajajara y Awá de la Tierra Indí-
gena Araribóia respecto de Brasil. 2021. p. 4. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/
pdf/2021/1-21MC754-20BR.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022.
68 Ibid.,, p. 52.
69 Para mais casos, cf. Squeff (SQUEFF, Tatiana Cardoso. Estado Plurinacional: a proteção do indígena
em torno da construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Curitiba: Juruá, 2016. p. 58-60), comentando
os casos Comunidade Mayagana Awas Tigni vs. Nicarágua, julgado em 2001; Povo Saramaka vs. Suri-
name, julgado em 2007, Povos Indígenas Kichwa de Sarayaku vs. Equador, julgado em 2012, além do
caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, comentado no ponto do direito das crianças,
julgado em 2006.
70 CtIDH. Povo Indígena Xucuru e seus membros. Brasil. Sentença. 5 de fevereiro de 2018. p. 102,
148-149 e 162. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf.
Acesso em: 2 abr. 2022.
71 Ibid.,, p. 131.

205
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

sendo este um dos pontos mais marcantes desse caso para o que se está discutindo
neste texto, isto é, acerca do reconhecimento da vulnerabilidade e do dever do
Estado frente a isso.
Ressalta-se, porém, que mesmo diante desse caso contencioso, o Brasil
parece ainda insistir em não assegurar os direitos das comunidades tradicionais
situadas em sua jurisdição. Afinal, no dia 5 de janeiro de 2022 foi apresentado
à Corte outro caso envolvendo o descaso do Estado para com as comunidades
quilombolas de Alcântara, as quais foram desprovidas de suas terras para a
instalação de uma base aeroespacial, logo, já transgredindo o direito a propriedade
destacado no parágrafo anterior, fazendo-o, porém, sem consulta prévia ou mesmo
a existência de mecanismos judiciais domésticos específicos que possam utilizar
para fins de remediar a situação72. De toda sorte, uma questão que se sobressai
dessa situação é o envolvimento do SIDH na tentativa de fazer cessar as violações,
especialmente em relação a pessoas marginalizadas, tal como se observou em todos
os outros exemplos anteriores a este, quando do descaso estatal.
Em vista disso, tem-se que a tutela de indivíduos e grupos marginalizados
resta consagrada ao se considerar que a CADH impõe aos Estados Partes, sob o
princípio da responsabilidade internacional, o dever de reparação integral. Isto
é, os Estados violadores têm a responsabilidade de reparar adequadamente a(s)
vítima(s) e seus familiares pelos danos causados pela violação de seus direitos73.
A responsabilidade internacional levada à cabo por meio do SIDH, portanto,
conforme assinala Ramos74, mostra ser o mecanismo apropriado para fazer com
que o equilíbrio entre os indivíduos na sociedade seja (re)estabelecido.
Sendo assim, cabe, a partir de então, explorar como o SIDH tem tratado
a realidade de outros grupos igualmente marginalizados, como os migrantes,
refugiados e apátridas e a população LGBTI, buscando verificar se, explicitamente,
ela também tutela opera no que concerne à condição migratória, orientação sexual
e identidade de gênero, mais especificamente, os refugiados LGBTI.

72 ALMEIDA, Paula Wojcikiewicz; PORTO, Gabriela Huhne. A polêmica sobre o Centro de Lan-
çamento de Alcântara chega à Corte IDH. Conjur, 2 fev. 2022. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2022-fev-02/opiniao-polemica-centro-alcantara-chega-corte-idh. Acesso em: 5 abr. 2022.
73 OEA, 1969. art. 63.1.
74 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade Internacional do Estado por violação dos Direitos
Humanos. CEJ, Brasília, n. 29, abr./jun. 2005, p. 53-63, p. 58. Disponível em: https://revistacej.
cjf.jus.br/cej/index.php/revcej/article/view/663/843. Acesso em: 5 abr. 2022

206
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3 OS REFUGIADOS LGBTI SOB A PROTEÇÃO DO SISTEMA


INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A NECESSÁRIA
VISÃO INTERSECCIONAL

A interseccionalidade tem cumprido um importante papel analítico de


traçar a interdependência existente nas relações entre as mais diversas identidades.
Kimberlé W. Crenshaw75 é quem cunha o termo na tentativa de elaborar acerca
dessa mesma interdependência no que tange às relações de poder de raça, sexo e
classe. Pensado e aplicado no contexto do feminismo preto, com vistas a apontar as
diferentes realidades e vivências existentes nos recortes de raça, classe e da própria
normatividade (incluindo não só a sua formulação senão também a sua aplicação)76,
o conceito se mostra essencial para compreender o impacto das situações em que
as vulnerabilidades se entrelaçam, como nos casos de vulnerabilidades agravadas,
notadamente quando ainda não existe nenhum direcionamento específico sobre o
tema. Afinal, ao entrelaçar as vulnerabilidades, pode-se trazer à baila a existência de
cenários opressores77 e a própria necessidade de revertê-los.
Salienta-se que a interseccionalidade não é um tema novo perante o
SIDH. Ainda em 2015, ao mover esforços para tratar a problemática da violência
contra as pessoas LGBTI, a CIDH procurou ressaltar a abordagem interseccional
ao buscar compreender o impacto das violências sofridas por pessoas que compõe
tal grupo à luz das diversas identidades que podem compor a sua vivência, tais
como a sua etnia, a sua raça, o seu sexo e, porque não, a sua situação migratória78.
No caso específico de refugiados LGBTI, parece que existe um crescente
consenso acerca da necessidade de se abordar o tema, especialmente quando, ao redor
do globo, “73 países [possuem], em seu corpo legislativo, leis que criminalizam a

75 CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist
Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chi-
cago Legal Forum, n. 1, p. 139-167, 1989. Disponível em: https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/
viewcontent.cgi?article=1052&context=uclf. Acesso em: 28 ago. 2018.
76 HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações so-
ciais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, jun. 2014, p. 62. DOI: https://doi.org/10.1590/
S0103-20702014000100005.
77 CRENSHAW, Kimberlé W. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discri-
minação Racial Relativos ao Gênero. Estudos Feministas, a. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.
78 JUNQUEIRA NETO. Políticas migratórias e o refúgio lgbti durante a pandemia da Covid-19 nas
américas: um estudo interseccional a partir da necropolítica. 2022. Trabalho de conclusão de curso,
Curso de Relações Internacionais, Instituto de Economia e Relações Internacionais, Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022.

207
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

homossexualidade – o que é chamado de “homofobia de Estado”. Desses 73 países,


13 condenam a homossexualidade com pena de morte (Sudão, Irã, Arábia Saudita,
Yemen, 12 estados da Nigéria e partes do sul da Somália)79. Ou seja, a possibilidade
de pessoas terem de refugiar-se em outras nações devido a uma discriminação
pautada em sua orientação sexual é grande. Veja-se, por exemplo, o caso do Brasil,
onde “entre os anos de 2010 e 2016, pelo menos 369 solicitações de reconhecimento
da condição de refugiado com base em orientação sexual e identidade de gênero
foram feitas ao Comitê Nacional para Refugiados (CONARE)” – número este que
apenas entre janeiro a julho de 2018, quando foi feito tal levantamento, já havia
deferido 134 solicitações com essa fundamentação80.
Apesar disso, parece que tal movimento brasileiro se trata de uma exceção,
reforçando a necessidade de se utilizar da lógica interseccional de análise na medida
em que ela pode auxiliar na compreensão das violências que refugiados LGBTI
perpassam, para que, assim, possa-se buscar diminuir as hipervulnerabilidades
por eles sentidas noutras localidades através dos mecanismos judiciais estatais e
regionais, em especial, o interamericano. Entretanto, a inexistência de um conjunto
normativo ou mesmo de jurisprudência específica neste espaço também pode
ser um problema à primeira vista para demandar-se a realização do controle de
convencionalidade aos Estados.
Assim sendo, tem-se que a análise dos grupos específicos de migrantes,
refugiados e apátridas e das pessoas LGBTI desde a ótica interseccional pode
ser uma saída necessária para a identificação das conexões existentes, com vistas
à proteção das pessoas refugiadas LGBTI no continente. É justamente este o
caminho, portanto, que se seguirá a análise nesta seção.

3.1 OS MIGRANTES, REFUGIADOS E APÁTRIDAS SOB A TUTELA DO


SIDH

O continente americano é a região mais desigual do planeta. Caracterizado


por disparidades sociais e elevados índices de violência, especialmente por razões
de gênero, raça ou etnia, ele é também marcado pelo fenômeno de migrações, de

79 NASCIMENTO, Daniel Braga. Refúgio LGBTI: panorama nacional e internacional. Porto Alegre:
Fi, 2018. p. 26.
80 ACNUR. Brasil protege refugiados LGBTI, mostra levantamento inédito do ACNUR e do Mi-
nistério da Justiça. ACNUR, Brasília, 29 nov. 2018. Disponível em: https://www.acnur.org/portu-
gues/2018/11/29/brasil-protege-refugiados-lgbti-mostra-levantamentoinedito-do-acnur-e-do-minis-
terio-da-justica/. Acesso em: 11 abr. 2022.

208
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

pessoas refugiadas e de apátridas. De modo a enfrentar esses aspectos da realidade


americana, o SIDH igualmente tem dado atenção a estes grupos marginalizados,
na tentativa de combater a discriminação estrutural pela qual perpassam81. No que
tange aos migrantes, refugiados e apátridas, isso ocorre desde os primórdios do
SIDH.
A Convenção Americana sobre os Direitos Humanos82, por exemplo, já
anteviu pontualmente que é um direito inerente a toda pessoa é o de “procurar
e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição que não seja
motivada por delitos de direito comum, e de acordo com a legislação de cada país
e com as convenções internacionais”.
Não apenas isso, na década de 1980, uma necessidade que surgia e afetava
constantemente a realidade americana se tratava da situação da América Central
e o grande número de refugiados gerado por esse contexto. Assim, em 1984,
realizou-se sob os auspícios da OEA o “Colóquio Sobre a Proteção Internacional
dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e
Humanitários”, quando se estabeleceu a Declaração de Cartagena. Em observação
às particularidades emergentes na região, estendeu-se a proteção do refúgio àquelas
pessoas que fugiam de seus países de origem por conta de ameaças à sua vida,
segurança ou liberdade, em função de violência generalizada, agressão estrangeira,
conflitos internos, violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias
que representassem grave perturbação da ordem pública83.
Trata-se de importante instrumento normativo, pois, como avultou a
CtIDH,84 ela ratificó la naturaleza pacífica, apolítica y exclusivamente humanitaria
de la concesión de asilo o del reconocimiento de la condición de refugiado. Ademais,
em que pese seja um instrumento declaratório, tipicamente citado como sendo de
natureza soft, na medida em que a definición ampliada de refugiado contenida en
esta Declaración ha sido adoptada en 14 diferentes legislaciones nacionales en la región

81 CIDH. Resolução 1/2020. Pandemia y Derechos Humanos en las Américas. 2020. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022. p. 3.
82 OEA, 1969. art. 22.7.
83 OEA. Cartagena Declaration on Refugees. 1984. p. 3.
84 CtIDH. Família Pacheco Tineo. Brasil. Sentença. 25 de novembro de 2013. Disponível em: ht-
tps://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2013/9390.pdf. Acesso em: 2 abr. 2022. p. 141.

209
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

latinoamericana85, pode-se considerar que a mesma já detém de prática repetida e


opino iuris suficiente para ser considerada uma regra costumeira regional.
Não apenas isso, a Corte já se manifestou inúmeras vezes sobre o
tema das migrações, refúgio e apatridia. Conforme Esis, Paluma e Silva86, são 12
manifestações entre casos contenciosos e opiniões consultivas, a saber:
Tabela 1 - Casos envolvendo Migrações, Refúgio e Apatridia no SIDH

Fonte: ESIS, Ivette; PALUMA, Thiago; SILVA, Bianca G. Os parâmetros de proteção das migra-
ções no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Revista Jurídica, v. 2, n. 59, 2020, p. 423-
452, p. 428-429. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/
view/4099/371372412. Acesso em: 1 abr. 2022.

85 A CtIDH (2013a, o. 47 – nota 173) listou os 14 países, quais sejam: Argentina, Belize, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru e
Uruguai.
86 ESIS, Ivette; PALUMA, Thiago; SILVA, Bianca G. Os parâmetros de proteção das migrações no Sis-
tema Interamericano de Direitos Humanos. Revista Jurídica, v. 2, n. 59, 2020, p. 423-452, p. 428-429.
Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/4099/371372412.
Acesso em: 1 abr. 2022.

210
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Destes documentos, destaca-se alguns. Primeiramente, cabe avultar


a OC-18/03 solicitada pelo México87, que versou sobre a condição jurídica e os
direitos dos migrantes indocumentados. De forma unânime, a Corte entendeu que
os Estados devem respeitar e garantir os direitos básicos dos mesmos, sob pena de
responsabilidade internacional. Ademais, ao considerar que o princípio de igualdade
e não-discriminação possui um caráter fundamental para a proteção dos direitos
humanos internacional e internamente à luz da evolução do Direito Internacional,
a Corte determinou que este princípio ingressou no domínio das normas jus cogens.
Deste modo, ele passa a acarretar obrigações erga omnes de proteção, as quais são
vinculantes a todos os Estados Membros da Organização e “geram efeitos com
respeito a terceiros, inclusive particulares”88.
Logo, interessante notar que mesmo não possuindo efeito vinculante
como um todo, afinal, tratar-se-ia de uma opinião consultiva, tal como a própria
Corte aludiu na OC-01/8289, não se pode negar que a sustentação feita por ela no
bojo desse documento em 2003 quanto ao direito a igualdade e não-discriminação
ultrapassa tal barreira, pois atribui à regra a natureza obrigatória – e não à opinião
como um todo –, sendo, por isso, de fundamental relevância para a promoção da
redução de vulnerabilidades as quais os migrantes indocumentados se encontram
fora de seus países de origem.
Outro caso de destaque é o caso da República Dominicana, a qual já teve
as suas condutas contra migrantes haitianos ou com ascendência haitiana apreciadas
por três vezes pela Corte.90 O mais recente, de 2014, é o caso Pessoas Dominicanas
e Haitianas expulsas vs. República Dominicana, em que se questionava a detenção
arbitrária e a expulsão sumária de haitianos e dominicanos de descendência haitiana

87 CtIDH. Opinião Consultiva OC-18/03. A condição jurídica e os direitos dos migrantes indo-
cumentados. 17 de setembro de 2003. p. 68. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/
uploads/2016/04/58a49408579728bd7f7a6bf3f1f80051.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
88 Ibid., p. 110.
89 CtIDH. Opinião Consultiva OC-1/82. “Otros tratados” Objeto de la Función Consultiva de la
Corte (Art. 64 Convención Americana sobre Derechos Humanos). 24 de setembro de 1982. p. 51.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_01_esp1.pdf Acesso em: 30 mar.
2022.
90 Para uma análise dos três casos, cf. (SQUEFF, T. C.; PALUMA, T.; AYZAMA, A. C. ¿Justicia a
través de la Corte? La (in)efectividad de contestar la discriminación de los haitianos en la República
Dominicana. Revista Jurídica, Curitiba, v. 3, n. 60, 2020). Os autores concluem no texto que o fato de
a República Dominicana ter sido levada à Corte em três ocasiões denota a falta de eficácia do SIDH
na imposição do controle de convencionalidade, particularmente pela inexistência de mecanismos de
implementação de sentenças, restando, desta forma, dependentes do power of shame.

211
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

do país, sem seguir o devido processo legal para estes casos. Indagou-se, ainda,
as dificuldades enfrentadas por tais migrantes no registro de crianças nascidas em
território dominicano e na obtenção de nacionalidade91.
Diante dessa situação, a CtIDH reiterou a impossibilidade de os
descendentes herdarem a condição de irregularidade de seus genitores imigrantes.
Ademais, a Corte atestou a ilegalidade dos atos praticados pela República
Dominicana, solicitando que fossem tomadas as medidas necessárias para
que as normas internas que discriminavam pessoas haitianas e descendentes de
haitianos não mais continuassem produzindo efeitos jurídicos92, o que implicava,
numa necessidade de modificar-se a própria Constituição do país, recentemente
modificada para excluir tal grupo de migrantes93.
Por fim, nota-se que, diante da pandemia da Covid-19, o SIDH também
focou esforços na proteção de pessoas migrantes nas Américas. Durante o período
de crise sanitária global, a CIDH ordenou que os Estados americanos protegessem
esse grupo de pessoas vulneráveis, especialmente diante do fechamento de
fronteiras e, logo, do aumento no número de retornos forçados que, em alguns
casos, estavam sendo realizados sem a implementação de medidas sanitárias de
proteção. Portanto, se enfatizou a necessidade de respeito ao princípio da não-
devolução (non-refoulement) e de promover a regularização de pessoas migrantes no
território desses Estados, garantindo-lhes documentação de identificação e outras
condições necessárias para a sua permanência no Estado, garantindo, desta forma,
a condição de igualdade94.

91 CtIDH. Pessoas dominicanas e haitianas expulsas. República Dominicana. Sentença. 28 de agosto


de 2014, p. 1. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/edc3cfd3cdfbb-
8cb73bdf425abbf85c9.pdf. Acesso em: 2 abr. 2022.
92 Ibid., p. 468.
93 FEITOZA, Daniel Urias; SQUEFF, Tatiana Cardoso. A sentença 168/13 do Tribunal Consti-
tucional Dominicano: consequências acerca das regras de aquisição de nacionalidade e a sua (in)
compatibilidade com o SIDH. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 130,
n.1, p. 233-255, 2022.
94 CIDH. A CIDH urge os Estados a proteger as personas migrantes na recuperação da pandemia.
CIDH, 18 dez. 2021b. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/
notas/2021/345.asp. Acesso em: 1 abr. 2022.

212
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Ademais, ressalta-se também as medidas provisórias outorgadas pela


Corte no âmbito do caso Velez Loor v. Panamá em 202095 e em 202196 em virtude
do contexto pandêmico. Muito embora seja este um caso julgado ainda em 2010
pela Corte, o qual lidava essencialmente a crimigração97, ele está em fase de
implementação de sentença, tendo sido solicitado ao Panamá que adotasse todas
as medidas adequadas para proteger efetivamente os direitos à saúde, integridade
pessoal e vida das pessoas migrantes que estavam sendo mantidas nas Estações de
Recepção de Imigração La Peñita e Lajas Blancas, especialmente pelos surtos de
Covid-19 nesses estabelecimentos.
Mais especificamente, o Estado foi requerido a realizar testes de detecção
precoce do SARS-COV-2, assim como o fornecimento de tratamento adequado
aos infectados, respeitando os princípios da igualdade e não-discriminação98. Em
2021, tais ordens foram ampliadas para outros dois estabelecimentos, a saber: San
Vicente e Bajo Chiquito, especialmente em virtude do fechamento do centro La
Peñita99. Esses mecanismos mostram-se de extrema relevância para questionar-se
não só a necessidade de se assegurar os direitos das pessoas privadas de liberdade
no contexto pandêmico, como também dos próprios migrantes, que, em virtude
da ainda recorrente crimigração em certos países, como no Panamá, tem a sua
vulnerabilidade agravada e devem, por isso, receber uma atenção/proteção mais
adequada por parte do Estado.

95 CtIDH. Vélez Loor. Panamá. Provisional Measures. 29 de julho de 2020. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/velez_se_02_ing.pdf. Acesso em: 23 out. 2021.
96 CtIDH. Vélez Loor. Panamá. Provisional Measures. 24 de junho de 2021a. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/velez_se_03_ing.pdf. Acesso em: 23 out. 2021.
97 CtIDH. Vélez Loor. Panamá. Sentença. 13 de fevereiro de 2013. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/docs/supervisiones/Velez_13_02_13_ing.pdf. Acesso em: 23 out. 2021; SQUEFF, Ta-
tiana Cardoso; SILVA, Bianca G. O caso Vélez Loor vs. Panamá da Corte Interamericana de Direitos
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98 CtIDH. Vélez Loor. Panamá. Provisional Measures. 29 de julho de 2020. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/velez_se_02_ing.pdf. Acesso em 23 out. 2021.
99 CtIDH. Vicky Hernández y otras. Honduras. Sentença. 26 de março de 2021. Disponível em:
https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_422_esp.pdf. Acesso em: 23 out. 2021.

213
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3.2 AS PESSOAS LGBTI SOB A TUTELA DO SIDH

O SIDH também se ocupou, ao longo do tempo, de tratar a questão


de pessoas LGBTI sob a égide da marginalização e da vulnerabilidade. Ainda
em 2008, a Resolução 2435/2008 da OEA foi aprovada pela Assembleia Geral
abordando as temáticas de direitos humanos, orientação sexual e identidade de
gênero com amparo na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem e na Carta da OEA. Tais instrumentos
internacionais, por seu turno, preveem a liberdade e igualdade em termos de
dignidade e direitos, reconhecem como inerente ao ser humano o direito à vida,
liberdade e segurança, e proclamam que a missão histórica da América é oferecer ao
ser humano uma terra de liberdade e um ambiente favorável ao desenvolvimento de
sua personalidade e à realização justa de suas aspirações, respectivamente100.
Nesse documento, a Assembleia expressou a sua preocupação em relação
à violência e às violações de direitos humanos motivados pela orientação sexual
e pela identidade de gênero. Em termos práticos, encarregou-se a Comissão de
Assuntos Jurídicos e Políticos (CAJP) da Organização de incluir em sua agenda a
temática da presente Resolução, garantindo a utilização dos seus recursos alocados
para a execução dessa proposta101. Esse trabalho persistiu: desde 2008, todos os anos
se aprova uma resolução de mesmo nome, trazendo à tona conteúdos concernentes
à erradicação da violência com base em orientação sexual e/ou identidade de gênero
nas Américas102. Desta forma, em 2009 a Resolução 2504103 chamou os Estados a
investigar tais atos de violência e assegurar a proteção de defensores dos direitos
humanos. Já em 2011, a CIDH criou uma Unidad para los derechos de las personas
LGBTI, com o objetivo de observar a situação desses direitos nas Américas104.
Ato contínuo, em 2012, o tema chega indiretamente à CtIDH no caso
Atala Riffo e crianças vs. Chile, em que se discutiu se o bem estar e o desenvolvimento

100 OEA. Principles and Best Practices on the Protection of Persons Deprived of Liberty in the Americas.
2008. p. 1.
101 Ibid.,
102 BAHIA, Alexandre G. M. F. Homofobia no Brasil, resoluções internacionais e a Constituição de
1988. Jus.com.br, 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21999/homofobia-no-brasil-reso-
lucoes-internacionais-e-a-constituicao-de-1988. Acesso em: 30 mar. 2022.
103 OEA. Resolução 2504. Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de gênero. 2009. p. 1.
104 BAHIA, Alexandre G. M. F. Homofobia no Brasil, resoluções internacionais e a Constituição de
1988. Jus.com.br, 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21999/homofobia-no-brasil-reso-
lucoes-internacionais-e-a-constituicao-de-1988. Acesso em: 30 mar. 2022.

214
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

físico e emocional de três crianças estariam em risco pelo fato de elas estarem sendo
criadas por sua mãe biológica e por sua companheira105. No plano interno, o pai
das três crianças obteve guarda unilateral provisória das mesmas em virtude da
orientação sexual da senhora Atala, mãe, que antes detinha a guarda unilateral das
mesmas, fundamentando tal decisão no fato de que ela teria colocado os “seus
interesses e bem-estar pessoal acima do bem-estar emocional e do adequado
processo de socialização das filhas106”.
Essa decisão provisória, em que pese tenha sido revertida no curso do
processo Chile, ao cabo, em sede recursal, foi mantida, de maneira que o pai das
crianças obteve a guarda definitiva delas, ocasionando o peticionamento para o
SIDH, haja vista a discriminação sofrida pela senhora Atala. A Corte, dessa
forma, entendeu que o Chile havia violado as suas obrigações internacionais, mais
precisamente, o artigo 1 da CADH, o qual impõe o dever de igualdade e não-
discriminação, tecendo que ele também abarcaria a proteção contra a discriminação
oriunda da orientação sexual107.
A Corte entendeu que a guarda foi atribuída indiretamente em virtude
da orientação sexual da senhora Atala – e não no melhor interesse do menor, como
arguiu o Chile. E mesmo se tal princípio fosse ponderado, tem-se que a sentença
jamais poderia ter sido minimamente discriminatória108. Isso porque, para que as
decisões domésticas serem consideradas discriminatórias perante o SIDH, não é
necessário que ela tenha sido “baseada ‘fundamental e unicamente’ na orientação
sexual da pessoa, pois basta constatar que de maneira explícita ou implícita se levou
em conta, até certo grau, a orientação sexual da pessoa para adotar determinada
decisão”, que ela já seria atentatória aos preceitos interamericanos109.

105 CtIDH. Atala Riffo e crianças. Chile. Mérito. 24 de fevereiro de 2012. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
106 Ibid.,
107 Ibid., p. 81.
108 CRUZ, Elisa Costa. A vulnerabilidade de crianças na jurisprudência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos: análise de casos e de formas de incorporação no direito brasileiro. Revista dos
Tribunais [recurso eletrônico]. São Paulo, n. 999, jan. 2019. Disponível em: https://dspace.almg.gov.
br/handle/11037/32259. Acesso em: 4 jul. 2019. p. 76-77.
109 CtIDH. Atala Riffo e crianças. Chile. Mérito. 24 de fevereiro de 2012. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022. p. 94.

215
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Ademais, em passagem importante dessa decisão, a Corte apontou que:

[...] os Estados devem abster-se de realizar ações que de


alguma maneira se destinem, direta ou indiretamente, a criar
situações de discriminação de jure ou de facto. Os Estados
são obrigados a adotar medidas positivas para reverter ou
modificar situações discriminatórias existentes na sociedade
em detrimento de determinado grupo de pessoas. Isso implica
o dever especial de proteção que o Estado deve exercer com
relação a ações e práticas de terceiros que, com sua tolerância
ou aquiescência, criem, mantenham ou favoreçam as situações
discriminatórias110.

Desta feita, tem-se que os Chile estaria obrigado a evitar atos ou


condutas discriminatórias contra pessoas LGBTI, devendo promover ações que
combatam a (re)produção de estereótipos e preconceitos. Essa questão foi abordada
novamente de maneira mais efusiva em outro documento da Corte em 2017, agora
em sede de opinião consultiva. Trata-se da OC-24/17 da CtIDH que, à luz dos
questionamentos costarriquenhos111, portanto, passou a servir como um parâmetro
para os países americanos na adoção de medidas e posicionamentos em relação à
orientação sexual e identidade de gênero.
Nesta Opinião, a Corte versa sobre o direito à mudança de nome de
acordo com a identidade de gênero dos indivíduos112, independentemente da
realização de operações cirúrgicas e hormonais113. Ademais, também é abordada a
responsabilidade dos Estados em garantir os direitos patrimoniais provenientes do
vínculo familiar entre pessoas do mesmo sexo114, reiterando que:

[...] os Estados devem garantir o acesso a todas as figuras já


existentes nos ordenamentos jurídicos internos, para assegurar
a proteção de todos os direitos das famílias formadas por

110 CtIDH. Atala Riffo e crianças. Chile. Mérito. 24 de fevereiro de 2012. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022. p. 94.
111 CtIDH. Opinião Consultiva OC-21/14. Direitos e Garantias de Crianças no Contexto da Migra-
ção e/ou em Necessidade de Proteção Internacional. 24 de novembro de 2017. p. 3. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.
112 Ibid., p. 33-47.
113 Ibid., p. 54.
114 Ibid., p. 75.

216
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

casais do mesmo sexo, sem discriminação com respeito às que


estão constituídas por casais heterossexuais115.

Assim, Leal e Lima116 entendem que esta Opinião Consultiva em questão


é de importante valor aos países que compõem o SIDH. Isso porque, o que está nela
disposto permite se pensar em diferentes interpretações e abordagens na criação de
políticas públicas, no desenvolvimento de legislações internas e no exercício da
função judicial, por exemplo. Deste modo, seria possível alcançar um diálogo entre
o direito interno e o direito internacional a fim de fortalecer o próprio SIDH e as
instituições internas e proteger os direitos humanos.
Nesse ínterim, sobre a limitada existência de políticas públicas, importa
igualmente salientar o caso Luiza Melinho vs. Brasil, sob a apreciação da117. A
contenda, em resumo, referia-se à inacessibilidade de uma pessoa à cirurgia
de redesignação sexual pelo sistema público de saúde, além da negativa em
conceder-se ressarcimento à Melinho após a execução do procedimento em um
hospital privado. Nesse caso, apesar da posição do governo brasileiro acerca da
inadmissibilidade do caso diante da não exaustão de todos os recursos legais a nível
doméstico, a Comissão considerou aplicáveis as possibilidades de relativização da
necessidade de esgotamento de recursos internos, presentes na CADH e no seu
próprio regulamento. Assim, o caso segue para apreciação dos méritos.
Finalmente, deve-se ainda avultar o caso mais recente a Corte sobre
a temática LGBTI. Trata-se de um caso em que a CtIDH declarou o Estado de
Honduras como responsável pela violação do direito à vida e à integridade pessoal
de Vicky Hernández, mulher transexual e defensora dos direitos humanos. Diante
desse cenário e do contexto de violência sistemática a pessoas LGBTI no país,
especialmente por parte da força pública118, tem-se que tal violação ocorreu durante

115 CtIDH. Opinião Consultiva OC-21/14. Direitos e Garantias de Crianças no Contexto da Mi-
gração e/ou em Necessidade de Proteção Internacional. 24 de novembro de 2017. p. 3. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022. p. 228.
116 LEAL, Mônia Clarissa Hennig; LIMA, Sabrina Santos. A atuação da Corte Interamericana
de Direitos Humanos no que tange a grupos em situação de vulnerabilidade: Análise da Opinião
Consultiva 24/2017. IUS ET VERITAS, v. 1, n. 61, dezembro 2020, p. 194-205. DOI: https://doi.
org/10.18800/iusetveritas.202002.012. p. 61.
117 CIDH. Relatório Nº 11/16. Petição 362-09. Admissibilidade. Luiza Melinho. Brasil. 14 de abril
de 2016. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/2016/brad362-09po.pdf. Acesso
em: 23 out. 2021.
118 CtIDH. Vicky Hernández y otras. Honduras. Sentença. 26 de março de 2021b, p. 89. Disponível
em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_422_esp.pdf. Acesso em: 23 out. 2021.

217
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

o toque de recolher no país, no qual a força pública era a única autorizada a circular
pelas ruas. Dessa forma, a Corte determinou que Honduras teve responsabilidade
direta sobre a morte da ativista, estabelecendo o pagamento de compensação à
família da vítima119.
Outrossim, importa dizer que não há nenhum caso no SIDH até o
momento abordando a vulnerabilidade agravada de refugiados LGBTI, muito
embora saiba-se que este grupo enfrenta diversas dificuldades no que tange a tutela
de seus direitos. Nesse escopo, mostra-se relevante apreciar a interseccionalidade
existente entre as duas pautas – refugiados e pessoas LGBTI – no âmbito do SIDH,
na tentativa de avultar a preparação do sistema para a recepção de casos nesse
sentido.

3.2 A PROTEÇÃO DE REFUGIADOS LGBTI NO SIDH: UMA ANÁLISE


INTERSECCIONAL

O termo interseccionalidade surge pela primeira vez nos escritos de


Kimberlé W. Crenshaw120 que busca traçar a interdependência entre as relações
de poder de raça, sexo e classe. Sua origem, todavia, remonta ao movimento Black
Feminism, da década de 1970, com o objetivo de fazer frente ao feminismo branco,
de classe média e heteronormativo pelos meios críticos121. Esse conceito, então,
descreve a interação entre sistemas de opressão. Weldon122 o exemplifica por meio
do debate emergente a partir do movimento supracitado:

Black feminists argued that their problems and experiences could


not be described as the problems of black men plus the problems
of white women. Black women face many problems as black wo-
men, and their unique perspectives, identities, and experiences,
cannot be derived from examination of the experiences and posi-
tion of either black men or white women.

119 CtIDH. Vélez Loor. Panamá. Provisional Measures. 24 de junho de 2021. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/medidas/velez_se_03_ing.pdf. Acesso em 23 out. 2021. p. 189.
120 CRENSHAW, 1989.
121 HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações
sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, jun. 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/
S0103-20702014000100005. p. 62.
122 WELDON, S. Laurel. Intersectionality. In: GOERTZ, Gary; MAZUR, Amy G.; Politics, Gen-
der, and Concepts: Theory and Methodology. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008. p.
193-218, p. 194.

218
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No SIDH, por meio do relatório “Violência contra pessoas LGBTI”123,


a Comissão se preocupou em ressaltar os atos de violência praticados contra esse
grupo enquanto uma violência social contextualizada motivada pelo preconceito.
Por conseguinte, a interseccionalidade foi abordada ao analisar essa mesma violência
sistematizada que afeta as pessoas LGBTI que se encontram na intersecção com
outras identidades, tais como etnia, raça, sexo, gênero, situação migratória, situação
de defensor ou defensora de direitos humanos; e pobreza, por exemplo. Logo, a
CIDH confirmou como a vulnerabilidade estrutural que perpassa esse grupo de
indivíduos é especialmente agravada pela sua condição migratória. Visualiza-se,
assim, um aumento no número de pedidos de refúgio. Por vezes, perseguições
por orientação sexual e/ou identidade de gênero forçam a migração, “o que por
sua vez pode resultar em diversas formas de discriminação contra estas pessoas em
países de trânsito e destino”124. Essa perspectiva interseccional se repete no relatório
“Reconhecimento dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e
Intersexo (LGBTI) nas Américas”125, que também ressalta tais violências.
A questão da interseccionalidade, à vista disso, tem feito parte das análises
e interpretações que concernem à situação de refugiados e pessoas LGBTI durante
a pandemia da Covid-19. Na Resolução de n. 1/2020 da CIDH126, se reconhece a
existência de grupos em especial condição de vulnerabilidade diante da crise sanitária
global. Diante disso, a Comissão recordou a necessidade de os Estados da região
americana tomarem medidas, frente a tal cenário, que sejam frutos de perspectivas
interseccionais, atentando-se ao impacto diferenciado que tais ações podem exercer
sobre grupos historicamente marginalizados. É neste ponto, então, que se traça a
interseccionalidade como um fator fundamental a ser levado em consideração na
delimitação de políticas por parte do Estado, especialmente quando se trata de
pessoas LGBTI, migrantes, indígenas, pessoas com deficiência e afrodescendentes,
dentre outros.

123 CIDH. Violência contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas. 2015.
p. 11. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/docs/pdf/violenciapessoaslgbti.pdf. Acesso em: 3
abr. 2022.
124 Ibid., p. 180.
125 CIDH. Avances y Desafíos hacia el reconocimiento de los derechos de las personas LGBTI en las
Américas. 2018. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/LGBTI-Reconocimiento-
Derechos2019.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022.
126 CIDH. Resolução 1/2020. Pandemia y Derechos Humanos en las Américas. 2020. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022. p. 6-7.

219
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A interseccionalidade também tem feito parte dos debates na CtDIH


durante o período pandêmico. No caso Vicky Hernández y otras vs. Honduras, discutido
anteriormente neste escrito, essa questão foi levantada pelas representantes da vítima
– que alegaram que a sua morte ocorreu em um contexto de interseccionalidade
não apenas de vulnerabilidades, mas também de discriminações127. A Corte, por seu
turno, acatou tal interpretação, reconhecendo que a condição de transexualidade
pode contribuir de modo a intensificar a violência de gênero pela qual passam as
mulheres. Desta forma, entendeu-se que o Estado de Honduras falhou em garantir
o direito à vida de Hernández sob o contexto de violência sistêmica que pode ser
fomentada pelas múltiplas identidades que perpassam a sua realidade128.
Finalmente, de volta a Weldon129, ignorar a natureza interseccional dos
sistemas de opressão implica negligenciar as experiências de grupos de mulheres
marginalizadas, colocando sob foco apenas o contexto daquelas em posição de
privilégio. Logo, o ato de se organizar politicamente enquanto uma categoria política
homogênea, como “mulheres”, acaba por excluir aquelas mulheres que se veem
como diferentes desse grupo homogêneo. De maneira análoga, considerando as
múltiplas identidades que perpassam o ser migrante, refugiado e o ser de orientação
sexual e/ou identidade de gênero diversas, adotar políticas e/ou interpretações que
levem em consideração apenas uma das identidades que compõem esses indivíduos
é excluir do ambiente político, da formulação de políticas públicas e dos próprios
espaços de direito aquelas pessoas que não são representadas pelo privilégio que
representa a homogeneidade.
Portanto, tem-se que mesmo não tendo o SIDH apreciado o tema do
refúgio LGBTI até o presente momento, ele mostra-se preparado para fazê-lo
desde os debates havidos no campo das vulnerabilidades de refugiados e de pessoas
LGBTI, já tendo, inclusive, adotado uma abordagem interseccional das vivências
e violências pelas quais passam pessoas de orientação sexual e/ou identidade de
gênero diversas. Noutros termos, as intersecções já realizadas constituem uma
base importante para que o Sistema, quando vier a apreciar o tema, não hesite em
demandar a reparação integral ao refugiado LGBTI e as mudanças necessárias por
parte dos Estados violadores.

127 CIDH. Resolução 1/2021. Miembros de los Pueblos Indígenas Guajajara y Awá de la Tierra Indí-
gena Araribóia respecto de Brasil. 2021. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pd-
f/2021/1-21MC754-20BR.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022. p. 129.
128 Ibid., p. 135.
129 WELDON, S. Laurel. Intersectionality. In: GOERTZ, Gary; MAZUR, Amy G.; Politics, Gen-
der, and Concepts: Theory and Methodology. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008. p.195.

220
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4 CONCLUSÃO

Ao se propor a compreender a importância do SIDH na proteção de


pessoas marginalizadas, o presente escrito revelou a recorrência da abordagem tanto
da CIDH quanto da CtIDH em relação a tais indivíduos, forte nas violências que
estes perpassam nas suas realidades cotidianas. Desde o tratamento dado àquelas
violências perpetradas contra mulheres até àquelas sofridas por pessoas LGBTI,
o SIDH tem se mostrado essencial ao monitorar e buscar melhorar a atuação dos
Estados americanos de modo a fazer com que estes levem em consideração as
vulnerabilidades das pessoas com vistas a tutelá-las efetiva e plenamente – mais
ainda quando diante de situações introduzidas pela atual crise sanitária global
causada pelo (não tão) novo coronavírus, a qual termina por agravar ainda mais a
vulnerabilidade de muitos grupos periféricos.
Isso decorre tanto do princípio da responsabilidade internacional
imposto aos Estados Partes transgressores da CADH, como o da reparação integral
às violações de direitos humanos sofridas pelas vítimas e seus familiares, ou
mesmo por comunidades inteiras (tal como no caso de povos indígenas). Afinal,
desta maneira não só se demonstra quais pontos que os países falharam em suas
obrigações internacionais, como também se exige que os mesmos busquem corrigir
os seus erros, seja por meio de obrigações de não-repetição, de fazer ou mesmo de
compensar àqueles que foram vítimas diretas ou indiretas do desrespeito para com
os documentos interamericanos.
A diferença notada por meio desta pesquisa, porém, é que, quando se trata
de violações sofridas por populações marginalizadas, entende-se que a promoção
da tutela desses grupos é uma realidade percebida e reafirmada a cada novo caso
perante o SIDH, tanto no no âmbito da CIDH quanto da CtIDH. Por vezes, não
se trata de um grupo explicitamente abarcado pelos documentos interamericanos
ou, mesmo quando são, é possível que um aprimoramento seja perquirido a fim de
que se atinja uma plena proteção diante do atual desenvolvimento da sociedade,
exigindo-se, portanto, sempre uma atenção diferenciada.
E se esta situação, no passado foi a das mulheres, a dos apenados ou
mesmo a das crianças, para falar de alguns grupos abordados neste estudo, acredita-
se que, em um futuro próximo este será o caso dos refugiados LGBTI. Identifica-se
em muitos Estados uma rotineira desproteção em relação a este grupo específico de
pessoas que saem de seus países de origem em virtude de perseguições e violências
atreladas a sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. Deste modo, o que

221
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

se observa é que o SIDH também poderá num futuro próximo vir a se ocupar de
situações que ensejam um enfrentamento a tais violações. Frente a isso, o que se
vislumbrou é que existem bases protetivas aos migrantes, refugiados e apátridas,
assim como há fundamentos normativos para a tutela de pessoas LGBTI – mas não
uma abordagem que reúna ambas.
Outrossim, isso não significa que o SIDH não está preparado para
lidar com este tema caso venha a enfrentá-lo, especialmente desde o caso Vicky
Hernández vs. Honduras. Isso, pois, neste caso se encontra um aspecto relevante
que é, por vezes, mencionado tanto pela Comissão quanto pela Corte: a questão
da interseccionalidade. Ela pode ser apreciada de modo a tratar as duas pautas –
refúgio e orientação sexual/identidade de gênero –, bem como as discriminações
e as hipervulnerabilidades a elas relacionadas, como questões tangenciais no bojo
do SIDH. Até mesmo porque, ignorar a natureza interseccional dos sistemas de
opressão impostos a esses grupos implicaria em negligenciar as experiências de
violência e violação de direitos sofridas por pessoas refugiadas LGBTI.

222
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“Mail-order brides” and their possible framework as International
Trafficking in Persons: a study in the light of the Palermo Protocol

Letícia Lopes Borja1


Thiago Oliveira Moreira2

1 INTRODUÇÃO

Far from being restricted to the soap operas scenario, international


human trafficking – understood as one of the most aggressive types of human
rights violations – is still a reality in the contemporary world, undeniably marked
by connectivity, inequalities and the relativization of borders.
From this horizon of confluence between poverty, technology and
migratory flows, the phenomenon of “mail-order brides” arises, which consists of
the displacement of women to other countries with the objective of establishing
marriage through specialized virtual agencies, which, in general, enter into
marriages without any prior relationship between the betrothed. Most of these

1 Undergraduate at Universidade Federal do Rio Grande do Norte, majoring in Law. Researcher


in the Grupo de Estudos em Direito da Internet e das Inovações Tecnológicas (GEDI) and in the
Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI). Lattes: http://lattes.cnpq.
br/6127647534294314. E-mail: leticialborja@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
2366-1069.
2 Adjunct Professor IV at the Federal University of Rio Grande do Norte (Undergraduate and Mas-
ters). Doctor and Master in Law from the University of the Basque Country (UPV/EHU). Master in
Law from UFRN. Doctoral candidate in Law at the University of Coimbra. Head of the Private Law
Department at UFRN. Vice-Coordinator of the Graduate Program in Law at UFRN. Member of
the National Council of the Brazilian Academy of International Law (ABDI). Visiting Professor/Re-
searcher at the Lusófona University of Porto. Leader of the Research Group on International Human
Rights Law and People in Vulnerable Situations (CNPq/UFRN). Member of the Observatory of In-
ternational Law Research Group of Rio Grande do Norte (OBDI/UFRN). Lattes: http://lattes.cnpq.
br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail: thiago.moreira@ufrn.br.

233
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

unions – as will be shown throughout the research – usually occur between men
from the Global North and brides from underdeveloped countries, who are often
in a situation of economic and social vulnerability.
In this scenario, uncertainties arise regarding the vision of this
commodification of international marriages, in the sense of seeing it as a mere
transnational matrimonial migration – the result of free will and the search for social
mobility – or as a situation of international trafficking in women. After all, cases in
which the consent of travelers is conditioned to their contexts of hyposufficiency
are not uncommon, leading them to resort to unions that often trigger domestic
violence, sexual exploitation and servile marriages.
Faced with this situation of helplessness, the present research elects the
following questioning as problematic: Based on the criteria established by the
Palermo Protocol, can the phenomenon of “mail-order brides” be framed as a kind
of international trafficking in persons?
In order to answer this question, it was selected as objectives of the
work, firstly, the analysis of the main characteristics, causes and consequences of
the phenomenon of mail-order brides. Next, the issue of consent to international
trafficking in persons will be examined in light of the provisions of the Palermo
Protocol. And, finally, a parallel will be drawn between the results obtained, in the
sense of verifying, or not, the possibility of framing the phenomenon of “mail-
order brides” in the concept of international trafficking agreed by international
regulations.
Regarding the methodology used, a qualitative research will be developed,
with an exploratory objective and theoretical nature, in view of the chosen conceptual
object. In this bias, it will seek to employ, as research techniques, the bibliographic
and documentary study of articles, doctrines, theses and dissertations, both by
national and foreign authors, focused on the topic of international trafficking in
persons and mail-order brides. The justification for the use of such techniques
comes from the theoretical nature of the research, which seeks to verify the legal
framework for the phenomenon of mail-order brides. Due to this characteristic,
the aforementioned procedures were chosen as they were considered more adequate
to the speculative object of the investigation.
Furthermore, the present study is justified in view of the divergence
of perspectives around the theme, which disagree on the understanding of the
phenomenon of “mail-order brides” as an expression of female autonomy or a
violation of their human rights from their situations of vulnerability. Moreover,

234
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

it is also worth noting that, despite finding a fertile territory in the face of the
expansion of the internet, this event is still poorly explored by scientific literature,
which makes it even more urgent to carry out studies that seek to develop this
problem, in order to uncover prejudices and outline general lines of protection and
guarantee of rights.
At the end of the research, it is expected to contribute to the identification
of the international regulatory framework of the phenomenon of “mail-order
brides”, enhancing improvements in the elaboration of joint plans to protect the
rights of the actors involved.

2 THE PHENOMENON OF “MAIL-ORDER BRIDES” IN THE


INTERNACIONAL SCENARIO

In general terms, the phenomenon of “mail-order marriages” refers to


matrimonies signed between two people who meet each other through international
online matchmaking networks – that is, websites or virtual agencies specializing in
engagements – without having had any preview personal relationship. In this way,
most of the unions promoted, in addition to being exogamous and heterosexual3,
are performed by a market process4.
Despite having found fertile ground on the World Wide Web, this
phenomenon is not a recent event. On the contrary, there were already records of
its practice in the American colonial period, when European women were sent to
marry the colonizers and assist in the occupation of the new territory5.
The emergence and popularization of the Internet, however, generated
undeniable impacts on this activity. Previously, “brides” were advertised and
recruited through letters, portraits and newspaper advertisements, relying on the
time-consuming international postal system to connect with potential stakeholders.

3 RICORDEAU, Gwenola. Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de mu-
lheres do Terceiro Mundo: mulheres filipinas e migração matrimonial. Cadernos Pagu, [S.l.], n. 51,
p. 1-28, 8 jan. 2018.
4 BÉLANGER, Danièle; FLYNN, Andrea. Gender and migration: Evidence from transnational
marriage migration. International Handbook on Gender and Demographic Processes, Dordrecht, p. 183-
201, 2018.
5 CUDOWSKA, Maria. Mail-Order Brides and Marriage Migration: a comparative study of the
problems in the U.S., Great Britain and Ireland. Miscellanea Historico-Iuridica, [S.L.], v. 15, n. 1, p.
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235
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Today, differently, entry into the wedding market can occur through a simple
“click”, using websites and virtual agencies specializing in international weddings6.
Such ostensive procedural changes have even generated questions about
the use of the term “mail-order brides”, considered outdated by authors such as
Jones7, who considers the expression “brides through the internet” to be more
appropriate in relation to the current dissemination of the practice in virtual zones.
In this context, according to research commissioned by the Committee
on Women’s Rights and Gender Equality of the European Parliament8, the use of
most of these virtual matchmaking agencies requires some kind of payment from
the “husbands”. These, as a rule, only need to enter basic personal information
– such as name, age, country and email address – to create their profiles on the
platforms. Online registration of women, on the other hand, commonly involves
more requirements, such as passport copies, webcam photos, or filling in long and
intrusive questionnaires9. In addition, male consumers are in control of initiating
conversations, and it is up to women to wait for the processions10. In this way,
men generally have much more information about their bride than she has about
them11, revealing a certain degree of gender inequality even in the users’ records.
When investigating the reasons that lead men and women to seek the
services of virtual marriage agencies, it is mentioned, in the first place, the economic
and social inequalities usually present among the engaged couples. In general, the

6 FOX, Bryanna; REID, Joan. Human trafficking and the darknet: technology, innovation, and
evolving criminal justice strategies. In: Fox B., Reid J., Masys A. (eds). Science Informed Policing: ad-
vanced Sciences and Technologies for Security Applications. Cham: Springer, 2020. p. 77-96.
7 JONES, J. Trafficking internet brides. Information & Communications Technology Law, [S.l.], v. 20,
p. 19–33, 2011; apud FOX, Bryanna; REID, Joan. Human trafficking and the darknet: technology,
innovation, and evolving criminal justice strategies. In: Fox B., Reid J., Masys A. (eds). Science In-
formed Policing: advanced Sciences and Technologies for Security Applications. Cham: Springer, 2020.
p. 77-96.
8 EUROPEAN PARLIAMENT’S COMMITTEE ON WOMEN’S RIGHTS AND GENDER
EQUALITY. International Marriage Brokers and Mail Order Brides: analysing the need for regulation.
European Union, Bruxelas, 2016.
9 JACKSON, Suzanne H. Marriages of Convenience: International Marriage Brokers, ‘Mail-Order
Brides,’ and Domestic Servitude. University of Toledo Law Review, [S.l.], v. 38, p. 895-922, 2007.
10 BASTOS, Isabel Cordeiro Cid. Noivas por encomenda: atualizando estereótipos. 2015. 63 f. TCC
(Graduação) – Curso de Bacharelado em Relações Internacionais, Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Florianópolis, 2015.
11 JACKSON, Suzanne H. Marriages of Convenience: International Marriage Brokers, ‘Mail-Order
Brides,’ and Domestic Servitude. University of Toledo Law Review, [S.l.], v. 38, p. 895-922, 2007.

236
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

men who use the services of virtual matchmaking agencies come from developed
nations in the Global North, while the brides tend to be nationals of developing
countries, especially East Asia, Latin America and Eastern Europe12.
In this context of economic disadvantage, custom-made marriages
usually represent an opportunity for social mobility for brides, who can use it as
a strategy to achieve economic security. Thus, as currency discrepancies between
countries increase, it is estimated that the search for commodified marriages is also
at risk of growing13, especially in the face of economic instability caused by the
COVID-19 pandemic.
As a rule, mail-order marriages signed through matchmaking agencies
result in the bride’s migration to the husband’s country of residence, preceded
by few or no previous face-to-face meetings between the two. Arriving at the
destination, aspects such as the difficulty of communicating in the foreign language
of the place and lack of knowledge about their rights can generate a legal and
interactional dependence on the man, which deepens the imbalances of power
within the marital relationship14.
Of course, many mail-order marriages prove to be real successes. The
apprehension of these cases as a rule, however, does not prove to be reasonable.
After all, such a process of commoditization of brides, combined with the usual
financial disparity between the parties and the removal from the family residing in
the country of origin, ends up making women extremely vulnerable to situations
of domestic violence, servile marriage and various other abuses committed within
the relationship. marital relationship15.
As Anderson16 argues, despite the fact that cases of domestic aggression are
hardly accounted for – due to the secrecy that involves the domestic environment –

12 JACKSON, Suzanne H. Marriages of Convenience: International Marriage Brokers, ‘Mail-Order


Brides,’ and Domestic Servitude. University of Toledo Law Review, [S.l.], v. 38, p. 895-922, 2007.
13 BÉLANGER, Danièle; FLYNN, Andrea. Gender and migration: Evidence from transnational
marriage migration. International Handbook on Gender and Demographic Processes, Dordrecht, p. 183-
201, 2018.
14 ANDERSON, Michelle J. A License To Abuse: The Impact of Conditional Status on Female
Immigrants. The Yale Law Journal, [S.l.], v. 102, p. 1401-1430, 1993.
15 YAKUSHKO, Oksana; RAJAN, Indhushree. Global Love for Sale: divergence and convergence of
human trafficking with “mail order brides” and international arranged marriage phenomena. Women
& Therapy, [S.l.], v. 40, n. 1-2, p. 190-206, 2016.
16 ANDERSON, Michelle J. A License To Abuse: The Impact of Conditional Status on Female
Immigrants. The Yale Law Journal, [S.l.], v. 102, p. 1401-1430, 1993.

237
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

it is possible to affirm that marital migrants face higher rates of this type of violence
when compared to non-migrants.
Among the reasons for this discrepancy, it is worth mentioning the
difficulty in accessing immigration assistance; strong linguistic and legal dependence;
and the illusion of purchase provided by matchmaking agencies, which can be seen
as a true “license to abuse” by husbands, both physically and psychologically17.
Furthermore, upon arriving in the country of their husbands, many mail-
order brides may be subjected to situations of “servile marriage”, which occur when
the woman is kept in domestic and sexual servitude as if this were the definition of
her role as a wife, without the possibility of becoming economically independent
from her husband18. In this way, migration is accompanied by the transfer of female
labor to reproductive work, which includes household chores, child and elderly
care, procreation and sexual assignment19.
However, it is worth mentioning that many brides fully accept the risk
of submitting to such a circumstance, a behavior that is the result of the cultural
erasure of the boundaries between “marriage” and “domestic employment”. In
this sense, it is curious to note that Filipino mail-order brides, for example, have
an anecdote in which the aforementioned approach echoes, namely: “I would
continue to wash the bathrooms, but at least they would be mine”20.
Such dangers arising from mail order marriages, however, are unequally
highlighted by matchmaking agencies, among which 27.59% do not mention
any risk, 51% mention the risks for the husband and only 20.69% report the
risks for both the spouses. The main warning, far from being the difficulties of the

17 JACKSON, Suzanne H. Marriages of Convenience: International Marriage Brokers, ‘Mail-Order


Brides,’ and Domestic Servitude. University of Toledo Law Review, [S.l.], v. 38, p. 895-922, 2007.
18 CUDOWSKA, Maria. Mail-Order Brides and Marriage Migration: a comparative study of the
problems in the U.S., Great Britain and Ireland. Miscellanea Historico-Iuridica, [S.L.], v. 15, n. 1, p.
351-370, 2016.
19 BAIL, Hélène Le; LIEBER, Marylène; RICORDEAU, Gwenola. Migrations par le mariage et
intimités transnationales. Cahiers du Genre, [S.l.], n. 64, p. 5-2018.
20 RICORDEAU, Gwenola. Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de
mulheres do Terceiro Mundo: mulheres filipinas e migração matrimonial. Cadernos Pagu, [S.l.], n.
51, p. 1-28, 8 jan. 2018.

238
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

relationship itself, refers to scamming practices, that is, when men send money to
finance their brides’ trip, and they never arrive21.
In view of these data, platforms are much more concerned with male
financial losses than with the safety and well-being of brides, who are, in general,
in a more critical position of vulnerability than that occupied by husbands, in view
of the aforementioned aspects.
Despite the numerous harmful aspects involved in mail-order marriages
– among which is the commercialized treatment of brides by various matchmaking
agencies and by the purchasing husbands themselves – more and more authors are
bringing a different perspective to the debate, emphasizing the need to consider the
autonomy and capacity for action of women who choose to be mail-order brides.
For Bail, Lieber and Ricordeau22, international marriage should also be
seen as a mean of female emancipation, and can be part of individual migration
strategies. In this bias, the reduction of mail-order brides to the category of naive
and victimized by predatory and violent men could be understood as a disdain for
their autonomy, both in terms of the decision to enter and to remain within such
marital arrangements23.
Such a process of victimization of mail-order brides may even be
related to official government measures to control matrimonial migration, usually
portrayed by the media as a “problem” for the receiving countries24. By defaming
and victimizing certain categories of migrants, State activities move away from
criticism and come to be framed as savior, glorious and heroic, aimed at protecting
an idealized “victim”25.

21 EUROPEAN PARLIAMENT’S COMMITTEE ON WOMEN’S RIGHTS AND GENDER


EQUALITY. International Marriage Brokers and Mail Order Brides: analysing the need for regulation.
European Union, Bruxelas, 2016.
22 BAIL, Hélène Le; LIEBER, Marylène; RICORDEAU, Gwenola. Migrations par le mariage et
intimités transnationales. Cahiers du Genre, [S.l.], n. 64, p. 5-18, 2018.
23 YAKUSHKO, Oksana; RAJAN, Indhushree. Global Love for Sale: divergence and convergence of
human trafficking with “mail order brides” and international arranged marriage phenomena. Women
& Therapy, [S.l.], v. 40, n. 1-2, p. 190-206, 2016.
24 BÉLANGER, Danièle; FLYNN, Andrea. Gender and migration: Evidence from transnational
marriage migration. International Handbook on Gender and Demographic Processes, Dordrecht, p. 183-
201, 2018.
25 FAULKNER, Elizabeth A. The victim, the villain and the rescuer: the trafficking of women and
contemporary abolition. The Journal of Law, Social Justice & Global Development, [S.l.], n. 21, p. 1-14,
2018.

239
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Therefore, it can be seen the emergence of a more dynamic interpretation


of the phenomenon of mail-order marriages, taking into account the existing
tension between commodification and the ability of the actors involved to act. On
the one hand, it is not coherent to launch widespread persecution against such a
practice solely on the basis of traditional representations of ideal marriage. After all,
part of the prejudice directed at matchmaking sites is motivated by the “rational
choice” offered by these agencies, which goes against the emotional nature of what
would traditionally be marriage26. Furthermore, it cannot be ignored that many of
these unions are examples of harmony and mutual respect, which makes it difficult
to draw a clear moral judgment with regard to paid arranged marriages. On the
other hand, it is not acceptable to set aside any type of control and regulation under
the pretext of respecting women’s ability to choose, in view of the series of risks to
which they are subjected when they arrive in the country of destination.
Such divergent perspectives also influence the very definition of mail-
order marriages, which may correspond to a situation of international trafficking
in persons or to a simple matrimonial migration, depending on the perspectives
developed and the aspect highlighted by the analyses, that is, the commodification
or female autonomy, as will be further explored in this research.

3 INTERNATIONAL TRAFFICKING IN PERSONS AND THE ISSUE OF


CONSENT IN THE PALERMO PROTOCOL

Firstly, it is worth remembering that, before talking about migrants,


subjects in a situation of displacement are inherently protected by the norms
of human rights27. The main one, the Universal Declaration of Human Rights
(UDHR), already provided for in its art. 1 that “all human beings are born free
and equal in dignity and rights. They are endowed with reason and conscience and
should act towards one another in a spirit of brotherhood”.28

26 RICORDEAU, Gwenola. Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de


mulheres do Terceiro Mundo: mulheres filipinas e migração matrimonial. Cadernos Pagu, [S.l.], n.
51, p. 1-28, 8 jan. 2018.
27 MOREIRA, Thiago Oliveira. A (necessária) concretização dos direitos humanos dos migrantes
pela jurisdição brasileira. In: MENEZES, Wagner. Direito Internacional em Expansão. v. XIII. Belo
Horizonte: Arraes, 2018. p. 401-423.
28 UNITED NATIONS. Universal Declaration of Human Rights. Paris, 1948.

240
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Thus, central principles of human rights are enshrined, whose contents


– along with numerous rights provided for by the UDHR – are invariably violated
by the practice of international trafficking in persons29.
Although it is an inhumane practice, the human trafficking industry
represents one of the most profitable in the world, accumulating around 2.5
million victims and 32 million dollars a year, according to data released by the
United Nations Office on Drugs and Crime30. The realization of this crime implies
a commodification and objectification of the human being, who is deceived by false
promises that culminate in his transport to another country, where he or she will
be used for the purposes of sexual exploitation, labor or for the removal of organs31.
That said, it is noted that economic inequality between countries emerges
as one of the main risk factors for human trafficking, so that subjects in a position
of social, economic, cultural, family, labor or psychological vulnerability are more
easily deceived by seductive proposals of social and financial ascension abroad.
Weakened by these contexts, they are not truly free to make their choices, so they
are recruited and coerced by international criminal networks in the expectation of
better destinations and opportunities abroad. That includes accepting offers without
much questioning and faithfully believing in what it is proposed immediately. With
contemporary technological advances, this approximation between traffickers and
targets has become increasingly easier and faster32, which can enhance the criminals’
ability to reach.
In view of this situation, several international instruments were
developed, both general and specific, to protect victims of trafficking in persons33.
Among them, the Additional Protocol to the United Nations Convention against
Transnational Organized Crime on the Prevention, Suppression and Punishment

29 MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição
brasileira. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. v. 1. p. 658.
30 UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIMES (UNODC). Global Report on Traf-
ficking in Persons. Viena, 2018. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analy-
sis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf. Acesso em: 16 set. 2021.
31 ABREU, Célia B.; ORDACGY, Fabrízia da F. P. B. O enfrentamento ao tráfico de pessoas: avanços
e dificuldades no Brasil. Pensar – Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 21, n. 1, p. 94-122, 2016.
32 ARAÚJO, Thainara Fraga. Vinculação do Brasil às normas internacionais de combate ao tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual. 2019. 26 f. TCC (Graduação) – Curso de Bacharelado em
Direito, Universidade Católica de Salvador, Salvador, 2019.
33 MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição
brasileira. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. v. 1. p. 658.

241
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

of Trafficking in Persons, especially Women and Children, popularly known as the


“Palermo Protocol”, which has as priority combating and punishing transnational
organized crime34.
The great innovation of this document, which came into force on
December 25th 2003, was the establishment of a broad definition of trafficking,
which, far from being exhaustive or being restricted to sexual exploitation,
encompasses forms of abuse such as forced labor, organ removal, servitude, slavery,
among others35.
From this expansion, a new paradigm regarding international trafficking
in persons is inaugurated, which breaks with the moralizing perspective of previous
treaties and starts to recognize the self–determination of subjects to choose the
work that suits them, which includes the voluntary prostitution36.
Thus, in accordance with the provisions of art. 3 of the Palermo Protocol,
international trafficking in persons occurs from the verification of three elements,
namely, the act, the means and the purpose. The act includes the recruitment,
transport, transfer, housing or reception of persons. The means, in turn, corresponds
to the threat or use of force, coercion, abduction, fraud, deception, abuse of power
or vulnerability, or payments or benefits in exchange for control of the victim’s life.
And the purpose, ultimately, is equivalent to exploitation, whether sexual, labor,
for the removal of organs or other similar practices.
Regarding the issue of consent, paragraph “b” of the aforementioned
article makes it clear that the consent of the victim will be considered irrelevant
if any of the aforestated means has been used, which can be classified as violent,
fraudulent, financial and abusive means. Thus, the analysis of the dissent or

34 DANTAS, Beatriz Lodônio; MOREIRA, Thiago Oliveira. A (não) concessão de refúgio às vítimas
de tráfico internacional de pessoas no Brasil. In: GURGEL, Yara Maria Pereira; MOREIRA, Thiago
Oliveira (coords.); LOPES FILHO, Francisco Camargo Alves (org.). O Direito Internacional dos Di-
reitos Humanos e as pessoas em situação de vulnerabilidade. Natal: Polimatia, 2021.
35 VELHO, Caroline de Azevedo; DIAS, Jadison Juarez Cavalcante; ROCHA, Mário Henrique da.
O combate ao tráfico de pessoas e a adequação da legislação nacional às normas internacionais. In:
SCAMPINI, Stella Fátima (org.). Tráfico de pessoas. Brasília: MPF, 2017. p. 10-19.
36 MOURA, Samantha Nagle Cunha de. O tráfico internacional de mulheres para exploração sexual:
a questão do consentimento no protocolo de Palermo. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.8, n.3, p. 2009-2028,
2013.

242
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

consensus of the victim starts to assume a fundamental position for the adequacy
of the fact to the norm37.
In this bias, the Protocol innovates by recognizing the existence of
voluntary prostitution, removing liability in cases where the woman consented
of her own free will to exercise prostitution in another country. In summary, if
the aforementioned means are not used, the subject’s consent will be taken into
account and there will be no configuration of international trafficking in persons,
as provided for in the Protocol. After all, it is not appropriate to talk about
exploitation or violation of human rights when dealing with a conscious choice38.
The great challenge posed by this change is the difficulty of distinguishing
the particular desire to migrate and the exploitation with the victim’s consent,
since the exploited subject rarely confirms his or her state of vulnerability. In this
horizon, the conciliation between individual freedom, on the one hand, and the
protection of minority groups, on the other, becomes complex, bringing out the
need for objective criteria that identify the situation of vulnerability – an inherently
subjective condition – and that protect the victim even in the face of their own
manifestation of will39.
Thus, it is essential to investigate the psychological, financial, social and
family circumstances of the victims, with the objective of verifying the existence
or not of a real situation of vulnerability exploited by traffickers for the purpose of
enticement.
However, it should be considered that the right to migrate is also a
consequence of human rights40. In this sense, those considered “trafficked” should
not be seen as “victims-objects” that must be rescued, but rather as subjects who

37 BIROL, Alline Pedro Jorge; MEDEIROS, Thamara Duarte Cunha. Entre dissensos e consensos:
tráfico de pessoas e situações de vulnerabilidade. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; PINTO, Felipe
Chiarello Desouza; ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia; ANDREUCCI, Ana Claudia Pom-
peu Torezan; JUNQUEIRA, Michelle Asato (org.). Pessoas invisíveis: prevenção e combate ao tráfico
interno e internacional de seres humanos. Londrina: Thoth, 2020. p. 278-289.
38 MOURA, Samantha Nagle Cunha de. O tráfico internacional de mulheres para exploração sexual:
a questão do consentimento no protocolo de Palermo. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.8, n.3, p. 2009-2028,
2013.
39 ABREU, Célia B.; ORDACGY, Fabrízia da F. P. B. O enfrentamento ao tráfico de pessoas: avanços
e dificuldades no Brasil. Pensar – Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 21, n. 1, p. 94-122, 2016.
40 Ibid.,

243
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

need to have their rights and entitlements recognized41. Therefore, attention is paid
to the risk of returning to moral hierarchies that denied the freedom of subjects and
the sexual autonomy of women42.
The legal framework and the advances established by the Palermo
Protocol, however, are not free from criticism. Firstly, it should be noted that the
document still reproduces the vision of the actors of human trafficking as being
reduced to three pre-defined roles, namely: the victim, the villain and the savior. In
this scenario, there is an eternal framing of women in the classification of “victims”,
which enshrines the need for protection and authorizes state actions – such as
stricter border control – to prevent or dissuade women and girls from migrating,
with the objective of “protecting them from danger”43.
The Palermo Protocol itself reflects the paternalistic nature of the
international community by explicitly identifying “women and children” as
inherently vulnerable beings in need of a heroic savior, that is, the state. Such
rhetoric becomes the basis for transnational legal and policy responses against
trafficking in persons, following a structure that serves specific state interests44.
In this context, the political construction of women as passive and naive
victims, rather than migrants in their own right, can also hide phenomena such as the
so-called “intentional matrimonial migration”, which occurs when displacement to
another country and marriage with a foreigner arises from an intentional search for
a spouse across national borders due to the subject’s particular needs and desires45.
As presented, this phenomenon is constantly made invisible by the
aforesaid salvationist discourses that ignore the female capacity for action, which

41 CHUANG, Janie A. Using global migration law to prevent human trafficking. American Journal
of Internacional Law, [S.l.], v. 111, p. 147-152, 2017.
42 BIROL, Alline Pedro Jorge; MEDEIROS, Thamara Duarte Cunha. Entre dissensos e consensos:
tráfico de pessoas e situações de vulnerabilidade. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; PINTO, Felipe
Chiarello Desouza; ATCHABAHIAN, Ana Cláudia Ruy Cardia; ANDREUCCI, Ana Claudia Pom-
peu Torezan; JUNQUEIRA, Michelle Asato (org.). Pessoas invisíveis: prevenção e combate ao tráfico
interno e internacional de seres humanos. Londrina: Thoth, 2020. p. 278-289.
43 FAULKNER, Elizabeth A. The victim, the villain and the rescuer: the trafficking of women and
contemporary abolition. The Journal of Law, Social Justice & Global Development, [S.l.], n. 21, p. 1-14,
2018.
44 Ibid.,
45 BÉLANGER, Danièle; FLYNN, Andrea. Gender and migration: Evidence from transnational
marriage migration. International Handbook on Gender and Demographic Processes, Dordrecht, p. 183-
201, 2018.

244
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

reaffirm a rhetoric in which migrant women “had to marry” foreign men, instead
of “wanted to marry”. As a result, the boundaries between “trafficking victims”
and “migrant women through marriage” become increasingly indiscriminate in
the face of imperialist foreign policies of the receiving countries46, which clearly
demonstrates the problem of “consent” for the definition of “trafficking” under the
Palermo Protocol.
This construction of the silenced and infantilized victim is also
responsible for diverting international attention from structural issues that motivate
migration and trafficking, such as inequality, poverty and discrimination, which
disproportionately affect women. This perpetuates a stereotyped scenario formed
by the villainous organized crime, the helpless victim, and the heroic savior state47.
It is against this background that arises the difficulties of framing the
phenomenon of “mail-order brides” as “international human trafficking” or as a
simple “intentional matrimonial migration”. This problem implies, in this context,
a need to verify issues such as consent, vulnerability and the ability to choose of the
women involved in such enterprise, taking into account the legal framework of the
Palermo Protocol.

4 THE “MAIL-ORDER BRIDES” IN FRONT OF THE PALERMO


PROTOCOL

As seen, the realization of mail-order marriages through the matchmaking


agencies involves the active registration of profiles on the platform, both by the
potential husband and the future bride, which allows the assumption of the
existence of a certain consent of the victim for his/her relationship. recruitment
and transfer to another country.
The Palermo Protocol, however, is clear in establishing – in its art. 3 –
that the victim’s consent will be considered irrelevant when given under “threat or
use of force or other forms of coercion, of abduction, of fraud, of deception, of
the abuse of power or of a position of vulnerability or of the giving or receiving
of payments or benefits [...]”. In this way, it is possible to speak of “trafficking

46 RICORDEAU, Gwenola. Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de


mulheres do Terceiro Mundo: mulheres filipinas e migração matrimonial. Cadernos Pagu, [S.l.], n.
51, p. 1-28, 8 jan. 2018.
47 FAULKNER, Elizabeth A. The victim, the villain and the rescuer: the trafficking of women and
contemporary abolition. The Journal of Law, Social Justice & Global Development, [S.l.], n. 21, p. 1-14,
2018.

245
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

in persons” even when there is consent from the trafficked person, as long as the
means set out above are verified.
In this spectrum, it is worth remembering that, as discussed in the second
section of this research, mail-order brides are often from poor countries, finding
themselves in situations of lack of opportunities and difficulty in accessing basic
services. Thus, being married to men from wealthy nations represents a chance to
achieve a better economic situation than that existing in their country of origin48.
This pattern closely reflects the one that is also found in the phenomenon
of international trafficking in persons, in which economic inequality between
countries emerges as one of the main risk factors, in accordance with the
considerations made in the previous session. In this vein, it is worth noting that
the underlying force that drives the mail-order industry itself is also this same
economic inequality seen in transnational crime. After all, as O’Rourke49 attests,
both the wealth of the groom’s country and the poverty of the bride’s country are
necessary elements for carrying out a mail-order marriage. While the rich man of
a developed nation has the financial power to “buy” a wife, the potential bride has
an incentive to leave her impoverished nation and have a higher standard of living
available in a developed country.
Not much different is what happens to victims of human trafficking who,
finding themselves in unfavorable situations, are deceived by misleading promises
and moved to other countries to be exploited. Consequently, it can be seen that the
geographical distribution of the countries of origin of the “brides” and “mail-order
brides” closely mirrors the receiving and sending countries portrayed by human
trafficking, that is, developing nations and developed nations, respectively50.
It is evident, therefore, that the economic difficulties of women in
developing countries have a strong influence on entry into the mail order-industry51,

48 YAKUSHKO, Oksana; RAJAN, Indhushree. Global Love for Sale: divergence and convergence of
human trafficking with “mail order brides” and international arranged marriage phenomena. Women
& Therapy, [S.l.], v. 40, n. 1-2, p. 190-206, 2016.
49 O’ROURKE, Kate. To Have and to Hold: A Postmodern Feminist Response to the Mail-Order
Bride Industry. Denver Journal of International Law and Policy, [S.l.], v. 30, n. 4, p. 476-497, 2020.
50 YAKUSHKO, Oksana; RAJAN, Indhushree. Global Love for Sale: divergence and convergence of
human trafficking with “mail order brides” and international arranged marriage phenomena. Women
& Therapy, [S.l.], v. 40, n. 1-2, p. 190-206, 2016.
51 EUROPEAN PARLIAMENT’S COMMITTEE ON WOMEN’S RIGHTS AND GENDER
EQUALITY. International Marriage Brokers and Mail Order Brides: analysing the need for regulation.
European Union, Bruxelas, 2016.

246
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

which could be considered a situation of vulnerability for purposes of defining the


practice as human trafficking. After all, given the financial coercion exerted by
brides’ local circumstances, women’s choice cannot often be seen as a free impulse,
but rather a product of the differences in power used as the engine of matchmaking
agencies.
In line with this, Bastos52 emphasizes that the lack of opportunities for
women in developing countries allows them to question their autonomy, not in the
sense of an inability to make decisions, but in the context of a scarcity of options
to achieve better living conditions. Therefore, for these women, the proposal to
improve their economic situation, even if this comes along with dependence and
vulnerability towards the husband, can be considered an attractive option53.
In this sense, states Ahmad54 that, in many cases, traffickers use marriage
as a pretext to gain access to women from poor and unsuspecting communities.
In this way, the bridal industry emerges as a unique form of exploitation, as it
legitimizes human trafficking through the respectable institution of marriage55.
In view of the exposed dynamics of power and inequality, the presence
of one of the three elements established by the Palermo Protocol for the definition
of human trafficking would remain identified, based on the observation that the
phenomenon of mail-order marriages is anchored in a situation of vulnerability
based on the fragility and economic need of the victims.
However, a divergent perspective is raised by authors such as Ricordeau56,
who found, as a result of her research carried out in the Philippines, that most
mail-order brides interviewed were professionals with higher education, rarely
devoid of economic and cultural capital. In this sense, skills such as computers
and languages, for example, were common as a way of qualifying within the
global marriage market. Thus, unlike the recurrent image conveyed by the media

52 BASTOS, Isabel Cordeiro Cid. Noivas por encomenda: atualizando estereótipos. 2015. 63 f. TCC
(Graduação) – Curso de Bacharelado em Relações Internacionais, Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Florianópolis, 2015.
53 Ibid.,
54 AHMAD, Afkar. Trafficking: a mockery to women empowerment. Jharkhand Journal of Develop-
ment and Management Studies, [S.l.], v. 16, n. 2, p. 7757-7772, 2018.
55 SICO, Rachelle. In the Name of “Love”: Mail Order Brides-The Dangerous Legitimization of
Sex, Human and Labor Trafficking. Public Interest Law Reporter, [S.l.], v. 18, n. 3, p. 199-206, 2013.
56 RICORDEAU, Gwenola. Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de
mulheres do Terceiro Mundo: mulheres filipinas e migração matrimonial. Cadernos Pagu, [S.l.], n.
51, p. 1-28, 8 jan. 2018.

247
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

and by government foreign policies, it was noted that not all participants in the
commercialized marriage industry corresponded to the usual representation of
poor and illiterate young people from underdeveloped countries.
At this point, it appears that the situation of vulnerability, although
common, is not a rule among mail-order brides. For many, there is a legitimate
desire to marry foreign men and migrate to other countries, including taking the
risks that may arise from marriage57.
The informed decision verified in the situations analyzed by the author,
however, is far from being a rule within the wedding industry. As previously
mentioned, most matchmaking agencies, in addition to providing little data on
the potential husband, do not usually warn about the risks involved in carrying
out a transnational union, which can contribute to many women entering the
marriage market without to be aware of the dangers they run or of the history
of their partners, based on decisions guided by the need and the desire for better
opportunities abroad.
In short, there would be a biased consent, taking into account the
omission of important information58. In this scenario, one could point to the use
of fraud or deceit as a means, fulfilling, again, one of the constituent elements of
the definition of trafficking by the Palermo Protocol.
Starting with the analysis of another element necessary for the
characterization of trafficking in persons, it has what the Palermo Protocol defines as
an “act”, that is, the “recruitment, transport, transfer, accommodation or reception
of people”, as provided in its art. 3. According to the European Parliament’s
Committee on Women’s Rights and Gender Equality59, such an item is easily
satisfied by the mail-order bride industry, as there is a transfer of brides from their
country of origin to the nation of the groom and their welcome on the arrival.

57 RICORDEAU, Gwenola. Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de


mulheres do Terceiro Mundo: mulheres filipinas e migração matrimonial. Cadernos Pagu, [S.l.], n.
51, p. 1-28, 8 jan. 2018.
58 BASTOS, Isabel Cordeiro Cid. Noivas por encomenda: atualizando estereótipos. 2015. 63 f. TCC
(Graduação) – Curso de Bacharelado em Relações Internacionais, Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Florianópolis, 2015.
59 EUROPEAN PARLIAMENT’S COMMITTEE ON WOMEN’S RIGHTS AND GENDER
EQUALITY. International Marriage Brokers and Mail Order Brides: analysing the need for regulation.
European Union, Bruxelas, 2016.

248
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Finally, the last element provided for by the Palermo Protocol is the
purpose, which includes, at a minimum, “the exploitation of the prostitution of
others or other forms of sexual exploitation, forced labour or services, slavery or
practices similar to slavery, servitude or the removal of organs”. As highlighted
above, this list is not exhaustive, and may include other forms of exploitation, such
as servile marriage, already explained.
Obviously, many mail-order marriages prove to be true examples
of marital harmony. However, it cannot be denied that the migratory status of
these women, together with their frequent financial incapacity, highlights their
vulnerability to situations of domestic violence, sexual exploitation and domestic
servitude in the country of destination. After all, the marketing itself developed by
wedding agencies is responsible for commodifying brides. In this way, instead of
projecting them as wives, agencies advertise them as if they were created, contrary
to what, ideally, should be a conventional relationship platform. In addition, a
husband’s unilateral payment for the use of the site can allow men to feel as if they
have “bought” their wives, having rights and dominion over them60.
Given the frequency of such exploitation contexts, the “purpose”
described by the Palermo Protocol would be verified, which would allow the
mail-order marriage industry to be considered, in general terms, as a practice
of international trafficking in persons, once the presence of the three elements
necessary for such a definition were verified.
However, as highlighted several times throughout the research, the items
identified, despite being common, are not an absolute rule in the face of several
cases of mail-order marriage. Hasty and general statements about the phenomenon
would run the risk of disregarding the particular experience of each couple, as well
as the autonomy and ability to choose brides, who are not always in situations of
vulnerability, fraud or coercion.
The opposite statement could reveal a reproduction of the previously
mentioned roles of victim, villain and savior, often used as protectionist and
paternalistic justifications for restricting the mobility of these migrant women.

60 EUROPEAN PARLIAMENT’S COMMITTEE ON WOMEN’S RIGHTS AND GENDER


EQUALITY. International Marriage Brokers and Mail Order Brides: analysing the need for regulation.
European Union, Bruxelas, 2016.

249
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

According to O’Rourke61, postmodern feminist currents already see the


mail-order industry as a representation of the multiplicity of female experiences,
given that the reasons for choosing a mail-order marriage are as numerous as the
brides themselves, which prevents the appointment of a single legal solution capable
of recognizing the interaction of all the variables involved and, simultaneously,
meeting the needs and freedoms of users.
Thus, a more open and multi-level approach is needed, which denies the
protectionism of developed nations while recognizing the inherent dangers of the
industry. This type of action would demand, in turn, a high level of international
cooperation between the countries of supply and demand for brides, with a view to
promoting a positive multilateral state intervention that protects and informs these
women before and after they make the decision to marry through a matchmaking
agency. Thus, it is evident that, until the inequalities between countries and
between men and women are leveled, there is a need for regulation and monitoring
of the mail order industry, recognizing both the potential for victimization and the
women’s capacity and legal right to make decisions about their marital, economic
and nationality status62.
In this horizon, in view of the results found, it is noted that reducing the
phenomenon of mail-order brides, on the one hand, to a situation of international
human trafficking or, on the other hand, to an intentional matrimonial migration
is not capable of absorbing the variety of contexts involved in such practice. The
consequences of this kind of generalization could fall – depending on the position
taken – in the weakening of the protection of victims or in the contempt for female
autonomy.
Thus, it is impossible to ignore the emergence of a more diverse approach,
which recognizes the particularities of each specific case and the series of variables
that impact on the definition or not of a situation of human trafficking. Therefore,
in short, the need to investigate the phenomenon and its framing to the Palermo
Protocol on a case-by-case basis is perceived, given that the results obtained in this
research are not capable of encompassing the plurality and complexity of conditions
involved in the decision to enter the mail-order marriage industry.

61 O’ROURKE, Kate. To Have and to Hold: A Postmodern Feminist Response to the Mail-Order
Bride Industry. Denver Journal of International Law and Policy, [S.l.], v. 30, n. 4, p. 476-497, 2020.
62 Ibid.,

250
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

5 CONCLUSION

Based on what has been presented, it remains demonstrated that the


emerging mail-order marriage industry operates through a complex phenomenon,
capable of representing both a path of opportunity and female empowerment and
a means of facilitating international trafficking in persons through the institution
of marriage.
In this sense, when outlining the main characteristics of the mail-order
bride phenomenon, it was understood that it revolves around the performance of
the so-called “matchmaking agencies”, whose payment, information and control
procedures generally reveal serious imbalances of power between women and men
users, as well as the instrumentalization of female national stereotypes. It was also
seen that one of the main causes for the registration of brides on the websites is
the desire for emancipation and social mobility, which can lead to situations of
financial, legal and linguistic dependence on their husbands upon arrival in the
countries of destination.
Then, when examining the Palermo Protocol and the issue of consent, it
was seen that this document inaugurated a new paradigm regarding international
trafficking in persons, breaking with the previous moralizing bias and giving
centrality to the consensus or dissent of the victim. However, difficulties were
observed regarding an objective delimitation of the situations of vulnerability of
the victims, whose subjectivism has been frequently used by paternalistic policies
that reproduce the roles of “victim-object”.
Subsequently, analyzing the general characteristics of the mail-order
market in parallel with the provisions of the Palermo Protocol, it was possible
to identify, in general terms, the existence of the three elements necessary for
the definition of human trafficking established by art. 3 of the aforementioned
international document, that is, the act, the means and the purpose.
With regard to the “act”, it was found that the essence of mail-order
marriages, by itself, already presupposes the “recruitment, transport, transfer,
accommodation or reception” of brides by matchmaking agencies and potential
husbands. As for the “means”, it was found that most women who register as future
wives are in vulnerable situations, in addition to being poorly warned by companies
about the risks involved with international marriage and their fiancés, which could
result in a context of fraud or deception. Regarding the purpose, finally, it was found
that many brides, upon arriving at their destinations, are subjected to conditions

251
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

of servile marriages, sexual exploitation and domestic violence, remaining in this


position due to fear of deportation and complete financial dependence on their
husbands.
However, it was also possible to verify that such characteristics are
not a constant in all cases involving mail-order brides, since some of them, for
example, do not come from situations of vulnerability and freely exercise their
ability to choose when deciding to register with companies of marriage to establish
relationships with foreign men.
Thus, it was noted that the absolute statement that all mail-order
marriages fall within the concept of human trafficking established by the Palermo
Protocol would not be able to encompass the complexity of contexts arising from
the particular experience of each couple. On the contrary, such a declaration could
culminate in a reproduction of the traditional stereotypes of the “helpless victim”
commonly attributed to mail-order brides and migrant women in general.
In this sense, it was noted that the frameworking or not of the mail-order
marriages to the definition of trafficking need to be carried out according to each
specific case, analyzing the variables involved and the existence or non-existence of
the three elements – act, means and purpose – listed in this research. Only then
it will be possible to reach an adequate response to the phenomenon, capable of
promoting both the protection of the victims’ human rights and the capacity for
action of those who freely chose to enter this growing industry.

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256
PARTE III

PROTEÇÃO REGIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

257
A não discriminação da mulher na perspectiva do Sistema
Interamericano dos Direitos Humanos

Luiza Fernandes de Abrantes Barbosa1


Thiago Oliveira Moreira2
Yara Maria Pereira Gurgel3

1 INTRODUÇÃO

O homem e a mulher são seres humanos e em razão dessa mesma


condição humana são dotados de igual dignidade, de modo que todo ser humano,
independentemente do seu gênero, detém equivalente dignidade e os mesmos
direitos em razão da sua natureza humana.
Ocorre que em sociedades historicamente marcadas pelo patriarcalismo
e pela subordinação da mulher ao homem, essa igual dignidade é cotidianamente

1 Advogada Trabalhista. Mestranda em Direito Constitucional pela UFRN, linha 3 “Direito


Internacional e Concretização dos Direitos”. Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho pela UNYEAD Educacional S.A. Graduada em Direito pela UFRN. Email: luiizafab@
gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/9535204282378077. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7721-2501.
2 Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Chefe do Departamento de
Direito Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Doutor e Mestre em Direito pela Universidad del País Vasco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em
Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210.
https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail: thiago.moreira@ufrn.br.
3 Pós-Doutora em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/
FDUL. Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Professora Associado III do Curso
de Direito (Graduação e PPGD) da UFRN. Advogada. Coordenadora Adjunta do Grupo de Pesquisa
Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/
UFRN).

259
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

violada pela existência de um glass ceiling, isto é, uma barreira imaginária que
impede as mulheres de terem as mesmas oportunidades que os homens nas mais
variadas vertentes da sua vida (educação, trabalho, saúde, participação política),
assim como são constantes vítimas da discriminação de gênero.
No intuito de combater ou ao menos mitigar essa barreira da desigualdade
e discriminação de gênero é que se deu início a tutela da mulher no âmbito do
Direito Internacional, em seu sistema global e nos regionais como é o caso do
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH) que será
objeto de análise desse estudo.
Diante desse cenário, o presente estudo tem como objetivo geral
responder a seguinte problemática: como o Sistema Interamericano de Proteção
aos Direitos Humanos (SIPDH) tutela a não discriminação em razão do gênero?
No intuito de responder a essa problemática será examinado o tema
da tutela normativa e jurisdicional da não discriminação em razão de gênero no
SIPDH, analisando os principais instrumentos normativos, como a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem (e da Mulher), a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção
de Belém do Pará, bem como a concretização do princípio da não discriminação
de gênero no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em especial no que
tange aos direitos políticos, econômicos e sociais da mulher.
De modo que pesquisa objetiva avaliar como ocorre a proteção normativa
e jurisdicional da mulher no SIPDH, essencialmente quanto à concretização do
princípio da não discriminação. E para isso ser possível são adotados como objetivos
específicos discorrer sobre a teoria geral da igualdade e da não discriminação
no âmbito do Direito Internacional e sua configuração enquanto norma de jus
cogens; analisar a normativa interamericana de proteção à mulher e de combate à
discriminação em razão de gênero; examinar a tutela jurisdicional interamericana de
concretização da não discriminação em razão de gênero, com fixação de estândares.
A fim de cumprir esses objetivos, adota-se como metodologia uma pesquisa
de natureza teórico prática, com adoção do procedimento técnico da pesquisa
bibliográfica de obras de Fabián Salvioli, Antônio Augusto Cançado Trindade,
Yara Maria Pereira Gurgel, Maria José Franco Rodriguez, dissertações e teses, além
da análise exploratória das normativas e decisões da Comissão Interamericana

260
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de Direitos Humanos (CIDH) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos


(Corte IDH) sobre o tema objeto de pesquisa através do método empírico.
Acrescenta-se ainda que, por recorte metodológico, serão analisados casos
da CIDH e Corte IDH do período de 2011 a 2021 pesquisados nos próprios sites
dos órgãos jurisdicionais mencionados e compêndios de estândares e com recorte
temático sobre direitos políticos, econômicos e sociais da mulher.
Ademais, pode-se dizer que o método de abordagem a ser adotado será
o dedutivo e o propósito da pesquisa é aplicado, visto que pretende trazer soluções
práticas ao problema da discriminação de gênero a partir da perspectiva da tutela
normativa e jurisdicional do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Cumpre dizer que tema em questão apresenta relevância fática
quando o Fórum Econômico Mundial (2021) estima que, considerando as ações
governamentais adotadas até o momento, ainda demorará cerca de 135,6 anos para
se eliminar a discriminação de gênero e no que tange a diferença econômica de
gênero deve levar mais de 267 anos para ser fechada, o que significa que o problema
objeto da pesquisa proposta é atual e latente em toda a sociedade4.
No caso específico da América Latina essa diferença econômica faz com
que em média 28,6% das mulheres não tenham renda própria, enquanto para os
homens o percentual é de 10,4%. E essa ausência de autonomia econômica faz com
que haja mais mulheres do que homens em situação de pobreza, sendo em média
112,7 mulheres nessa situação para cada 100 homens5.
Além disso, o tema apresenta grande contribuição jurídica perante o
Sistema Interamericano de proteção a mulher quando a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH) vêm se posicionado perante o combate à discriminação de gênero,
defendendo a importância do papel da educação para combater a discriminação
de gênero, proteger os direitos de todas as pessoas e promover a igualdade entre
homens e mulheres.

4 WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2021. Disponível em: https://
movimentomulher360.com.br/wp-content/uploads/2021/04/WEF_GGGR_2021.pdf. Acesso em:
21. ago. 2021.
5 OBSERVATÓRIO DE IGUALDADE DE GÊNERO DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE.
Autonomia econômica. Disponível em: https://oig.cepal.org/pt/autonomias/autonomia-economica.
Acesso em: 12 out. 2021.

261
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por fim, a pesquisa proposta espera identificar como os órgãos


jurisdicionais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos vem concretizando
a tutela normativa internacional da não discriminação em razão de gênero, em
especial pelo reconhecimento do princípio da não discriminação enquanto norma
de jus cogens feito pela Corte IDH.

2 TEORIA GERAL DA IGUALDADE E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO NO


ÂMBITO INTERNACIONAL

Como ponto de partida para a compreensão do tema da não


discriminação da mulher no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos
Direitos Humanos é necessário compreender o princípio basilar da igualdade, a
vedação da discriminação e o direito a diferença no âmbito do direito internacional
de modo mais amplo.
O princípio da igualdade encontra-se consolidado nos diversos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos e nas Constituições de países democráticos,
sendo oportuno destacar que a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU),
em seu preâmbulo, bem como no seu artigo primeiro, parágrafo terceiro, estabelece
a igualdade de direitos dos homens e das mulheres e declara que os Direitos
Humanos devem ser para todos sem qualquer discriminação, de modo a positivar a
vertente negativa da igualdade, isto é, o princípio da não discriminação6.
Essa igualdade pode ser concebida enquanto igualdade formal ou perante
a lei e como igualdade substancial ou material. A primeira refere-se à aplicação do
direito vigente de forma igualitária a toda a sociedade, sem fazer qualquer distinção
ou exceção7, já a segunda busca considerar a realidade fática social para reduzir
diferenças sociais e minimizar falhas históricas de distribuição de oportunidades8.
A aplicação exclusiva da igualdade perante a lei implicaria na própria
relativação desse princípio fundante dos Direitos Humanos, pois seria omissa as

6 ONU. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: https://iusgentium.ufsc.br/wp-content/


uploads/2016/08/CARTA-DA-ONU.pdf. Acesso em: 10 out. 2021.
7 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto
Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1998. p. 330.
8 LEVE, Clèmerson Merlin e FREIRE, Alexandre (coord.). Direitos fundamentais e jurisdição
constitucional. São Paulo: dos Tribunais, 2014. p. 25.

262
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

desigualdades sociais prevalentes na sociedade e consequentemente indiferente a


eliminação dessas desigualdades9.
De modo que essa visão da igualdade formal remete a uma ideia da
existência de um sujeito universal e abstrato, que na verdade não existe, pois na
realidade fática não estão todos os seres humanos em iguais condições de exercer os
direitos legalmente previstos10.
Nessa perspectiva, a aplicação da igualdade perante a lei causaria uma
reafirmação de privilégios e manutenção das desigualdades, sendo essencial
a aplicação do princípio em sua perspectiva material que passa a destacar a
diferenciação de tratamento entre as pessoas para superar as desigualdades fáticas e
promover uma verdadeira concretização do tratamento justo na sociedade11.
A igualdade material, ainda deve ser compreendida pela sua dupla vertente,
uma positiva e outra negativa. A negativa tem o papel de proibir diferenciações
injustificadas e o tratamento igualitário de pessoas que se encontram em situações
desiguais, já a positiva estabelece o dever de tratar de modo diverso aquelas situações
que requerem a compensação da desigualdade de oportunidades12.
Assim, pode-se dizer que o ponto nevrálgico do princípio da igualdade
consiste na proibição do tratamento discriminatório, na medida que o ato de
discriminar é sinônimo de injustamente, distinguir pessoas ou grupos segundo um
juízo de desvalor em associação ao rebaixamento do discriminado a uma situação de
inferioridade, em nítida violação do princípio da igualdade de modo injustificado
e arbitrário13.

9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed.


Coimbra: Livraria Almedina, 2002. p. 350.
10 PRATA, Ana Rita Souza. Igualdade e não discriminação de gênero contra as mulheres no direito
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Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. p. 40-41. Disponível em: https://tede2.pucsp.
br/bitstream/handle/22016/2/Ana%20Rita%20Souza%20Prata.pdf. Acesso em: 16 nov. 2021.
11 PAIANO, Biltis Diniz. Da igualdade à ação afirmativa: uma análise jurídico constitucional
luso-brasileira. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídico Políticas) – Universidade de Coimbra,
Coimbra, 2015. p. 19-20. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/30070/1/
Da%20igualdade%20a%20acao%20afirmativa.pdf.cesso em: 23 jan. 2021.
12 GOLDSCHMIDT, Rodrigo; RENCK, Maria Helena. Discriminação contra as mulheres no
trabalho e ações afirmativas. Curitiba: Multideia, 2016. p. 20.
13 COUTINHO, Maria Luiza Pinheiro. Discriminação no trabalho: mecanismos de combate à
discriminação e promoção de igualdade de oportunidades. Brasília: OIT, 2006. p. 13-14.

263
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Acrescenta-se que para a concretização da igualdade material não


é suficiente estabelecer a proibição da discriminação, pois essa proibição é uma
política neutra que não leva em consideração as particularidades e diferenças da
população14.
A sua concretização requer adoção de ações afirmativas, que consiste
em um instrumento jurídico de recuperação de direitos que são historicamente
negados a grupos vulneráveis, como as mulheres, de modo a se consubstanciar
em verdadeira “desigualação positiva” devidamente justificável pelas desigualdades
fáticas, a fim de concretizar a “igualação jurídica”15.
É, portanto, um verdadeiro instrumento de inclusão e transformação
social que requerer a aceitação do outro como sujeito de direito, o respeito as
diferenças, bem como na implantação de políticas públicas pautadas na promoção
de redistribuição de bens e benefícios para garantir a igualdade de oportunidades
que foi historicamente negada aos mais vulneráveis16.
Ademais, a igualdade também deve ser observada sob o ponto de vista do
direito a diferença, que em hipótese alguma se traduz em direito a desigualdade ou
discriminação. O direito a diferença consiste no verdadeiro respeito e aceitação de
cada indivíduo tal qual ele ou ela é, sem querer impor padrões ou querer concertar
e sim concretização o direito a ser diferente e ser tratado dignamente17.
Inclusive, é relevante ressaltar que a distinção estre desigualdade e
diferença é de crucial importância para o Sistema de Proteção dos Direitos Humanos,
podendo-se dizer que a diferença é decorrente da rica diversidade e complexidade
que é inerente ao ser humano e deve ser respeitada, enquanto a desigualdade e
a descriminação remete-se ao tratamento pautado em posições de superioridade-

14 GURGEL. Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 69.
15 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação Afirmativa – O conteúdo democrático do princípio da
igualdade jurídica. Revista de informação legislativa, v. 33, n. 131, jul./set. 1996. p. 286.
16 GURGEL. Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 71-73.
17 Ibid., p. 59.

264
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

inferioridade, o que implica na negação da igualdade material e na própria negação


da dignidade de um grupo x por outro18.
Por fim, para finalizar essa abordagem teórica geral, é necessário dizer que
os princípios da igualdade e da não discriminação possuem relevância tão crucial para
o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), que eles são reconhecidos
pela Comunidade internacional como norma de jus cogens, sendo, portanto, a
proibição da discriminação imperativa, inderrogável para toda a Comunidade
internacional, de modo que a sua observância é de natureza vinculadora e sua
violação é apta tornar nula qualquer disposição em sentido contrário19.
Em relação a igualdade de gênero que será mais detalhada nos próximos
capítulos é necessário mencionar o pensamento da feminista Martha Nussbaum
que de modo claro expressa que a igualdade abstrata ou formal é insuficiente
para concretizar a igualdade entre homens e mulheres, pois a simples existência
de uma proteção normativa não é meio apto para evitar e combater as restrições
de oportunidades que as mulheres vivenciam nos mais variados setores de suas
vidas, como é o caso de uma vaga de emprego cujas exigências são mais acessíveis a
uma pessoa que não é a principal responsável pela educação dos filhos e atividades
domésticas, de modo a favorecer candidatos do sexo masculino em detrimento de
mulheres que são mães e donas de casa, apesar de não haver nenhuma restrição
formal quanto ao sexo do candidato20.
A autora revela que como a simples existência do direito nominal e
formal ao acesso das mulheres aos Direitos Humanos não é suficiente para assegurar
igualdade de gênero é essencial que os Estados garantam os meios materiais e
institucionais para que esses direitos sejam implementados em favor das mulheres21.

18 PRATA, Ana Rita Souza. Igualdade e não discriminação de gênero contra as mulheres no direito
internacional dos direitos humanos: Análise da jurisprudência consultiva interamericana. 2018. 185
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. p. 43. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/
bitstream/handle/22016/2/Ana%20Rita%20Souza%20Prata.pdf. Acesso em: 16 nov. 2021.
19 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; LOPES, Ana Maria D’Ávila; SPOSATO, Karyna Batista. Direito
internacional dos direitos humanos. Florianópolis: CONPEDI, 2015. p. 412-413. Disponível em:
http://site.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/phc1kv31/odarX8Y2vzSWjYtV.pdf. Acesso em: 5
nov. 2021.
20 NUSSABUM, Martha. Sex and social justice. Oxford: Oxford University, 1999.
21 NUSSBAUM, Martha. Capabilities as fundamental entitlements: Sen and social justice. Feminist
Economics, v. 9, p. 33–59, 2003. Disponível em: https://philpapers.org/archive/NUSCAF.pdf. Acesso
em: 2 fev. 2022.

265
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Essa situação decorre do fato da liberdade e exercício de direitos pelas


mulheres não é uma questão de ter apenas o direito no papel, como também as
condições materiais para que possam exerce-los. Assim, para que as mulheres
possam desfrutar de Direitos Humanos em pé de igualdade com os homens elas
precisam ter a capacidade e as condições concretas necessárias para que possam
decidir suas vidas de modo livre e autônomo22.
Logo, diante de sociedades historicamente machistas e patriarcais só
haverá a promoção da igualdade enquanto justiça de gênero quando houver a
desconstrução das práticas misóginas e adoção de prática disruptivas de gênero
que sejam aptas a reparar as desvantagens que por muitos anos subordinaram as
mulheres em face dos homens e que simultaneamente as capacitem para exercer
plenamente suas capacidades humanas e serem verdadeiras donas de suas vidas23.
Ante o exposto, pode-se dizer que a proteção normativa da igualdade
de gênero e da proibição da discriminação no âmbito internacional trata-se de
um importante ponto de partida para a materialização dessa igualdade, como será
analisados os principais instrumentos normativos do Sistema Interamericano no
próximo capítulo. No entanto é necessário que os Estados atuem ativamente para
correção das desigualdades, bem como é necessário um controle jurisdicional para
que as medidas estatais estejam em compatibilidade com o Direito Internacional,
como será analisado mais a frente.

3 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO A MULHER E O


PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO

A igualdade material e a não discriminação consistem em princípios


basilares do DIDH, especialmente pelo fato da tutela aos Direitos Humanos ser
pautada na proteção dos mais necessitados, em busca de remediar as desigualdades
da sociedade.
Enfatiza-se que os Direitos Humanos são direitos essenciais a todo e
qualquer ser humano, independente de gênero, nacionalidade, raça, religião,
orientação sexual ou qualquer tipo de discriminação. São direitos diretamente

22 IWAMOTO, Helga Midori. Igualdade de gênero: uma revisão de literatura nacional e


internacional. In.: Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 57, p.165-187, jul./dez. 2020. Disponível
em:https://www.researchgate.net/publication/345453905_Igualdade_de_genero_uma_revisao_de_
literatura_nacional_e_internacional. Acesso em: 15 jan. 2022.
23 Ibid.,

266
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

decorrentes do princípio da dignidade da pessoa e cujo único pressuposto para o


seu gozo é a condição humana.
Segundo Hannah Arendt, a condição humana deve ser compreendida
por uma perspectiva da ética universal segundo a qual a todo e qualquer indivíduo,
seja homem ou mulher, são garantidos um rol de direitos pelo simples fato de
pertencerem a humanidade. Logo, é notório que homens e mulheres são igualmente
sujeitos de Direitos Humanos e devem ter seus direitos igualmente respeitados e
concretizados pelo Direito Internacional24.
Ocorre que essa tutela internacional aos Direitos Humanos é abarcada
por mais de um sistema, podendo ser pelo âmbito da ONU ou sistema global, no
qual coexistem os sistemas geral e o especial que se complementam na medida que
o primeiro se destina a toda e qualquer pessoa e o segundo se volta para sujeitos
mais específicos, como é o caso da mulher. Há também os sistemas regionais como
é o caso do SIPDH, que consiste no recorte metodológico deste artigo ou ainda no
âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT)25.
Quanto a essa dupla proteção entre os sistemas global e regional é
importante destacar que esses sistemas são complementares e não opostos, o que
permite a aplicação da norma de Direitos Humanos que seja mais favorável ao seu
titular independente do sistema que ela pertença26.
Perante o Sistema Regional de Proteção há um recorte geográfico para
a proteção dos Direitos Humanos, sendo objeto de estudo deste artigo o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, do qual fazem parte os países
das Américas e do Caribe, nos quais se incluem o Brasil.
Esse sistema foi inaugurado no contexto de pós-Segunda Guerra Mundial
e é o principal mecanismo de proteção e promoção dos Direitos Humanos nas
Américas, no qual existem instrumentos de proteção gerais, como Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem e Convenção Americana de Direitos
Humanos. E há também instrumentos de proteção especial, destinado a grupos
mais vulneráveis para discriminação, como é o caso das mulheres que é tutelada
pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
mulher.

24 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
25 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 62-81.
26 Ibid., p. 67.

267
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Acrescenta-se que para assegurar a obediência e adequação nas leis


internas dos países membros, o sistema interamericano possui em sua organização
dois órgãos jurisdicionais, quais sejam a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
A fim de compreender melhor a normativa interamericana de proteção
a mulher passa-se a analisar dois instrumentos normativos que abordam sobre
a igualdade e não discriminação de modo mais geral, quais sejam a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, para em seguida examinar o instrumento normativo do
SIPDH que tutela de modo específico as mulheres, que é justamente Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher.

3.1 DECLARAÇÃO AMERICANA DE DIREITOS E DEVERES DO HOMEM


(E DA MULHER)

A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem aprovada em


1948 na IX Conferência Interamericana consiste no verdadeiro ponto de partida
da proteção do Sistema Interamericano, por ter sido o primeiro instrumento desse
sistema a ser aprovado em conjunto da criação da própria OEA27.
Essa Declaração, apesar de referir-se a direitos e deveres do “homem”
deve ser corretamente interpretada como “do homem e da mulher”, pois na verdade
esse documento reconhece como fundamento dos Direitos Humanos a própria
condição humana, que é inerente aos homens e mulheres, sem qualquer distinção.
No que se refere à questão da igualdade e não discriminação, já em seu
preâmbulo é estabelecido que os Direitos Humanos decorrem dos atributos da
pessoa humana e mais especificamente em seu artigo II é expressamente afirmada a
igualdade de todas as pessoas perante a lei apresenta cláusula aberta de proibição de
distinção discriminatória através da expressão “qualquer outra”, na qual inclui-se a
discriminação em razão de gênero28.

27 SALVIOLI, Fabián. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos: Instrumentos,


Órganos, Procedimientos y Jurisprudencia. 1. ed. México: Instituto de Estudios Constitucionales del
Estado de Querétaro, 2020. p. 59.
28 OEA. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948. Disponível em: https://www.
cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm. Acesso em: 1 nov. 2021.

268
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3.2 CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada em 1969


consiste no primeiro tratado regional genérico de Direitos Humanos no âmbito do
sistema interamericano e foi responsável pela criação da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (Corte IDH), cuja jurisprudência vem garantido a efetivação
desses direitos nas Américas29.
Ainda no seu preâmbulo, esta Convenção, de modo similar a Declaração,
reconhece que o fundamento dos Direitos Humanos é em razão da condição humana
e no seu artigo primeiro estabelece o dever de respeito de todos os Estados-partes
da Convenção em relação aos direitos nela prescritos para toda e qualquer pessoa
que esteja sujeita a sua jurisdição, fazendo ainda vedação expressa a discriminação
em razão de sexo (gênero)30.
Esse referido artigo positiva expressamente o princípio da não
discriminação e o dever de respeito dos Estados, o qual se consubstancia em
norma fundante do sistema interamericano, que conjugado ao artigo segundo
condicionam os Estados-Partes a efetivarem os direitos da Convenção em seus
territórios em perfeita harmonia do Direito Interno com os Direitos Humanos. De
modo que um Estado ao ratificar essa convenção tem o dever legal de fazer cumprir
suas determinações e não poderá alegar existência de direito interno como pretexto
para descumprir o que foi internacionalmente acordado31.
O artigo 17, por sua vez, estabelece o dever dos Estados em adotar
medidas para garantir a igualdade de direitos e equivalência de responsabilidade de
ambos os cônjuges, de modo a evidenciar a aplicação do princípio da igualdade de
gênero no arranjo matrimonial32.
De modo mais amplo, o artigo 24 estabelece a igualdade perante a lei e
a proibição a discriminação. Ressalta-se que esse princípio da igualdade deve ser

29 SALVIOLI, Fabián. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos: Instrumentos,


Órganos, Procedimientos y Jurisprudencia. 1. ed. México: Instituto de Estudios Constitucionales del
Estado de Querétaro, 2020. p. 65.
30 OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.
org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 2 nov. 2021.
31 PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melinda Girardi; MAZZUOLO, Valerio de Oliveira. Comentários
à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.. p. 54-56.
32 OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.
org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 2 nov. 2021.

269
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aplicado em sua conceção valorativa, isso significa que a lei não pode discriminar
qualquer pessoa a não ser que exista um fator razoável e plenamente justificável que
permita uma discriminação lícita para garantir a igualdade substancial e nesses casos
excepcionais não há que se falar em responsabilidade internacional do Estado33.
Acrescenta-se ainda que essa Convenção em seu artigo 29 estabelece a
aplicação do princípio pro persona no que tange aos Direitos Humanos, isso pois
ela afirma expressamente que nenhuma de suas disposições podem ser aplicadas em
detrimento de outra norma que conceda maior proteção ao ser humano34.
O princípio pro persona consiste em critério hermenêutico que busca pela
prevalência da norma que conceda maior proteção ao ser humano, o que contribui
para reduzir os conflitos de normas, aumentar a coordenação e cooperação entre
normas de direito internacional e destas com as de direito interno e ainda para
demonstrar que a coexistência desses instrumentos deve ser observada no sentido
de ampliar e fortalecer a proteção a pessoa humana35.
Assim, na busca da mais ampla proteção a mulher e no combate efetivo
à discriminação de gênero é necessária aplicação do princípio pro persona para
que haja aplicação da norma que conceda maior proteção a mulher e concretize
em maior grau a igualdade de gênero independente de onde essa norma esteja
positivada, seja na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em outro
instrumento normativo do sistema interamericano ou outro tratado ou fonte de
Direitos Humanos.

3.3 CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E


ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER (CONVENÇÃO DE
BELÉM DO PARÁ)

No campo da proteção específica da mulher no Sistema Interamericano,


foi aprovada em 1994 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar

33 PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melinda Girardi; MAZZUOLO, Valerio de Oliveira. Comentários


à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 338.
34 OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.
org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 2 nov. 2021.
35 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto . Direito internacional e direito interno: sua interação
na proteção dos direitos humanos. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1996. Disponível em:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/introd.htm. Acesso em: 7
nov. 2021.

270
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a Violência contra Mulher, mais conhecida como Convenção Belém do Pará. Esse
tratado consiste no marco jurídico interamericano de reconhecimento da existência
de violência enquanto resultado da discriminação contra a mulher nas esferas
pública e privada36.
Logo em seu preâmbulo, a Convenção estabelece que a eliminação da
violência contra a mulher é condição indispensável para o pleno desenvolvimento
individual e social da mulher e para o exercício de condições de igualdade para
participar em todos os âmbitos da vida, como educação e trabalho37.
Cumpre dizer que o conceito de violência desse tratado internacional
refere-se a todo e qualquer ato ou conduta baseado em discriminação de gênero que
implique qualquer tipo de dano ou sofrimento a mulher, tanto na esfera pública
quanto na privada38.
De modo a ampliar a sua proteção esta Convenção estabeleceu que
toda mulher tem direito a uma vida livre de violência (artigo 3°), que tem direito
ao exercício e proteção de todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
cultural, bem como todos os direitos consagrados nos instrumentos regionais e
internacionais de direitos humanos, incluindo o direito a igualdade (artigo 4°, caput
e alínea f ) e ainda descreveu expressamente que o direito à vida livre de violência
abrange uma vida livre de toda e qualquer forma de descriminação, reforçando a
vedação a discriminação de gênero e vai mais além ao dizer que toda mulher deve
ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados que sejam baseados em
inferioridade e subordinação (artigo 6°)39.
Ademais, a Convenção relatou a necessidade de realizar avaliações sobre
discriminação e violência intersetorial, isto é, situações de maior vulnerabilidade

36 GURGEL. Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 148.
37 OEA. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 5 nov.
2021.
38 Ibid.,
39 Ibid.,

271
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da mulher em razão de outros fatores como etnia, deficiência, nacionalidade, baixa


renda, privação de liberdade, entre outros40.
Outrossim, é importante frisar que o Brasil ao ratificar essa Convenção
se obrigou internacionalmente a realizar o due dilligence (devida diligência) quanto
a adoção das medidas necessárias para prevenir, investigar e punir todas as formas
de violência contra a mulher41.

4 A CONCRETIZAÇÃO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO


ÂMBITO JURISDICIONAL INTERAMERICANO

Os Estados tem o dever internacional de respeitar e fazer cumprir em seus


respectivos ordenamentos internos os tratados internacionais por eles ratificados,
em decorrência prática do princípio basilar do pact sunt servanda, assim como estão
submetidos independentemente de qualquer ratificação a um conjunto de normas
internacionais denominadas de jus cogens, justamente por protegerem valores caros
a comunidade internacional e a pessoa humana42.
As normas de jus cogens são as normas protetivas de Direitos Humanos
que gravitam mais próximo da dignidade da pessoa humana e por isso devem ser
reconhecidas como normas imperativas, inderrogáveis e inatingíveis. De modo que
essas normas se consubstanciam em verdadeiro elemento de limitação da vontade
estatal e fazem com que surja uma obrigação negativa para o Estado de não editar
normas ou proferirem decisões que violem esse núcleo de proteção essencial a
dignidade humana43.
No entanto, a simples existência de normativas internacionais não
é suficiente para garantir a concretização dos princípios da igualdade e da não
discriminação na realidade social.

40 SALVIOLI, Fabián. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos: Instrumentos,


Órganos, Procedimientos y Jurisprudencia. 1. ed. México: Instituto de Estudios Constitucionales del
Estado de Querétaro, 2020. p. 156.
41 VERAS, Érica Verícia Canuto de Oliveira; ARAUJO, G. N. S. S. Controle da convencionalidade
dos artigos 181 e 182 do código penal (escusas absolutórias) nos crimes patrimoniais de violência
doméstica e familiar contra a mulher. Revista FIDES, v. 9, n. 2, p. 37-49, 9 dez. 2018.
42 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 19, 25, 30-35.
43 MOREIRA, Thiago Oliveira. O direito internacional e as normas de jus cogens: uma questão
filosófica. Revista FIDES, v. 3, n. 1, 2012. p. 24 - 42.

272
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em razão disso, no Sistema Interamericano foram criados mecanismos


jurisdicionais para combater o descumprimento das obrigações internacionais e
concretizar a proteção aos Direitos Humanos, quais sejam a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH), como consta no artigo 33 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.
A principal função da CIDH é promover a observância e defesa dos
Direitos Humanos, podendo para tanto exigir dos Estados membros relatórios
periódicos sobre a situação vigente em seu território acerca da matéria de Direitos
Humanos, proporcionando assim uma fiscalização da efetivação da proteção dos
Direitos Humanos44. Além disso, a Comissão pode receber denúncias de violações
de Direitos Humanos por qualquer pessoa ou entidade não governamental
legalmente reconhecida, que serão examinas pela Comissão e compreendendo a
existência de uma violação buscará inicialmente uma solução amistosa, se não tiver
sucesso emitirá recomendações ao país, que caso não sejam cumpridas poderá a
Comissão submeter o caso a jurisdição da Corte IDH45.
Nesse ponto cumpre ressaltar que a Comissão possui uma abordagem
mais construtivista e adota mecanismos de Soft Law, visto que as medidas por ela
elaboradas não são vinculativas, mas possuem forte conteúdo político decorrente
da imagem internacional do país que pode coagi-lo a cumprir a determinação46.
Já a Corte IDH possui uma dupla função, sendo uma consultiva e outra
jurisdicional. No âmbito consultivo, qualquer Estado poderá consultar a Corte
sobre a interpretação da Convenção ou outro tratado interamericano de Direitos
Humanos, já na função jurisdicional a Corte julgará casos submetidos pelos Estados
e pela Comissão e poderá atribuir responsabilidade internacional acerca de violação
de Direitos Humanos, determinando medidas para evitar novas violações e que

44 OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.
org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 2 nov. 2021.
45 PRATA, Ana Rita Souza. Igualdade e não discriminação de gênero contra as mulheres no direito
internacional dos direitos humanos: Análise da jurisprudência consultiva interamericana. 2018. 185
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. p. 92-96. Disponível em: https://tede2.pucsp.
br/bitstream/handle/22016/2/Ana%20Rita%20Souza%20Prata.pdf. Acesso em: 16 nov. 2021.
46 VARELLA, Marcelo D; MACHADO, Natália Paes eme. A dignidade da mulher no direito
internacional: o Brasil face à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Revista IIDH, ISSN
1015-5074, Nº. 49, 2009. p. 480. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r24591.pdf.
Acesso em: 10 out. 2021.

273
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

sejam feitas reparações quanto as já realizadas. Salienta-se que no âmbito da Corte


a sentença é inapelável e o Estado será obrigado a cumpri-la desde que reconheça
a jurisdição obrigatória da Corte, como é o caso do Brasil que a reconhece desde
1998, consubstanciando em verdadeiro caso de hard law47.
Além dessa vinculação da sentença ao Estado réu, é importante frisar que
todos os demais integrantes do SIPDH ficam vinculados ao critério interpretativo
estabelecido pela Corte, criando assim estândares de proteção mínima e de
adequação convencional. De modo que, todos os países desse sistema devem em
regra assegurar o cumprimento desses padrões normativos fixados no âmbito
jurisdicional do Sistema Interamericano, admitindo-se como única exceção a
existência de outra legislação ou entendimento interpretativo que seja ainda mais
protetivo a pessoa humana48.
No caso específico da concretização da não discriminação de gênero é
necessário dizer que a efetiva proteção dos Direitos Humanos requer adoção de
políticas específicas de proteção a mulher para que possam alcançar a igualdade
material em relação aos homens, possuindo a CIDH e a Corte IDH papeis essenciais
para concretização desses direitos das mulheres através desses seus estândares.
A fim de observar a relevância da atuação jurisdicional para a concretização
da igualdade material de gênero serão analisados casos da CIDH e Corte IDH do
período de 2011 a 2021 que versam sobre direitos políticos, econômicos e sociais
da mulher, a fim de destacar os estândares e sua tutela a igualdade de gênero.

4.1 ESTÂNDARES DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS

Desde a sua jurisprudência mais antiga, o Sistema Interamericano


evidencia que o direito a igualdade é decorrente da própria natureza humana e
inseparável da dignidade da pessoa humana, por esta razão compreende que todo

47 VARELLA, Marcelo D; MACHADO, Natália Paes eme. A dignidade da mulher no direito


internacional: o Brasil face à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Revista IIDH, ISSN
1015-5074, Nº. 49, 2009. p. 480. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r24591.pdf.
Acesso em: 10 out. 2021.
48 PRATA, Ana Rita Souza. Igualdade e não discriminação de gênero contra as mulheres no direito
internacional dos direitos humanos: Análise da jurisprudência consultiva interamericana. 2018. 185
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. p. 101-102. Disponível em: https://tede2.
pucsp.br/bitstream/handle/22016/2/Ana%20Rita%20Souza%20Prata.pdf. Acesso em: 16 nov. 2021.

274
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ser humano é dotado de igual dignidade e que não se pode admitir relações de
inferioridade/superioridade e a consequente discriminação quanto ao gozo de
direitos49.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos vem reiteradamente
definindo que a não discriminação é uma das bases fundamentais do sistema de
proteção de direitos humanos da OEA e que os principais instrumentos normativos
do Sistema Interamericano são inspirados pelo ideal de que “todos os homens (e
mulheres) nascem livres e iguais em dignidade e direitos”50.
Acrescenta-se que a jurisprudência desta Comissão também estabelece que
a Convenção Americana não proíbe todas as distinções de tratamento, podendo ser
feitas distinções compatíveis com Sistema Interamericano e que representem uma
forma razoável, objetiva e proporcional de combate das discriminações existentes
na realidade social. Em contrapartida a proibição se refere as discriminações que
consistem em critérios de distinção arbitrários e que resultem em detrimento de
direitos51.
Além disso, a Comissão afirma que para concretizar os princípios da
igualdade material e da não discriminação é necessário que os Estados atribuam
uma proteção e cuidado especial com aqueles indivíduos e grupos que são
historicamente sujeitos a discriminação. Inclusive, a CIDH reconhece as mulheres
como um grupo tradicionalmente discriminado do pleno exercício de direitos e
por isso destaca a necessidade urgente dos Estados atuarem ativamente no combate
dessa discriminação e na concretização da igualdade de gênero, como se pode
observar no exame de alguns dos estândares desde órgão no que tange a direitos
políticos, econômicos e sociais da mulher52.
Em relação aos direitos políticos, a CIDH em seu informe denominado
El camino hacia una democracia substantiva de 2011 concebeu que a participação
e representação adequada de mulheres na política é requisito imprescindível para

49 CIDH. Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interamericanos. OEA/Ser.L/V/


II.171 Doc. 31 12 febrero 2019. p. 12. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/
Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.pdf. Acesso em: 8 out. 2021.
50 Ibid.,
51 CIDH. Informe No. 75/15. Caso 12.923. Fondo. Rocío San Miguel Sosa y otras. Venezuela. 28
de octubre de 2015.
52 CIDH. Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interamericanos. OEA/Ser.L/V/II.171
Doc. 31 12 febrero 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-
IgualdadNoDiscriminacion.pdf. Acesso em: 8 out. 2021.

275
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

o fortalecimento da democracia nas Américas e que para isso ser concretizado é


necessário que os Estados promovam as medidas necessárias, incluindo a adoção de
ações afirmativas, para eliminar a discriminação contra as mulheres na vida pública
e possam promover condições de igualdade para o pleno exercício de seus direitos
políticos53.
No que tange aos Direitos sociais e econômicos, como o trabalho,
educação e acesso a recursos econômicos, a CIDH reconheceu no informe El
trabajo, la educación y los recursos de las mujeres que as mulheres continuam a serem
discriminadas e que para promover a efetiva igualdade de direitos é necessário que
os Estados promovam o acesso e permanência das meninas e mulheres nas escolas
e universidades, garantam a plena liberdade de escolha de carreira livre de qualquer
discriminação em razão de ser mulher, bem como criem condições que facilitem a
inserção e permanência das mulheres nos postos de trabalho54.
A Comissão ainda enfatiza que é através da adequada garantia do direito
ao trabalho para a mulher, livre de todas as formas de discriminação e em condições
de igualdade, entre as quais se destaca o respeito, a igual remuneração e ocupação
de cargos de gerência, é que será possível gerar a efetiva autonomia da mulher,
inclusive financeira, de modo a repercutir em todos os seus direitos econômicos,
sociais e culturais em geral. Destaca-se ainda que as leis estatais não podem ser
neutras quanto a questão da discriminação de gênero existe, caso contrário ela
implicará em verdadeira discriminação indireta55.
Quanto à questão do direito a saúde materna e a liberdade reprodutiva,
a CIDH estabeleceu em seu informe n° 72/2014 que para concretizar o direito a
igualdade e não discriminação é de vital importância que os Estados garantam o
acesso e adaptação dos serviços de saúde as necessidades particulares das gestantes
e mães. E restou ainda consolidado o entendimento de que as mulheres devem ter
o poder de decidir sobre sua própria saúde e inclusive ter autonomia reprodutiva56.

53 CIDH. El camino hacia una democracia sustantiva: la participación política de las mujeres en
las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 79. 18 abril 2011. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/
pdf%20files/mujeres%20participacion%20politica.pdf. Acesso em: 1 nov. 2021.
54 CIDH. El trabajo, la educación y los recursos de las mujeres: La ruta hacia la igualdad en la garantía
de los derechos económicos, sociales y culturales. OEA/Ser.L/V/II.143 Doc. 59. 3 noviembre 2011.
Disponível em: https://www.cidh.oas.org/pdf%20files/mujeresdesc2011.pdf. Acesso em: 3 nov. 2021.
55 Ibid.,
56 CIDH. Informe No. 72/14. Caso 12.655. Fondo. IV. Bolivia. 15 de agosto de 2014.

276
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por fim, acrescenta-se que a CIDH reconhece a existência da discrimina-


ção múltipla ou interseccional, que ocorre quando há uma confluência de fatores
de vulnerabilidade e risco de discriminação, como é o caso da mulher e indígena,
levando a uma discriminação ainda mais agravada e que por isso demanda adoção
de leis e políticas que tenham uma abordagem holística, para ser assim possível
prevenir, investigar, processar e punir todas as formas de violência e discriminação
sofridas pelo grupo hipervulnerável, como é o caso de mulheres indígenas, mulhe-
res trans, mulheres deficientes, entre outras57.

4.2 ESTÂNDARES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS

Perante a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos


foram selecionados quatro paradigmas jurisdicionais para evidenciar estândares de
concretização da não discriminação de gênero em especial em relação a direitos
sociais e ao final será analisada a Opinião Consultiva n° 27/2021 que versa
especificamente sobre o combate à discriminação contra a mulher no âmbito
laboral e sindical.
No que se refere ao direito à saúde da mulher e sua autonomia
reprodutiva é relevante dizer que a Corte IDH estabeleceu padrão normativo de
que como a mulher tem a particularidade biológica de poder gestar uma vida,
somente a ela cabe à decisão de forma livre e informada sobre se terá filhos, quantos
e quando. De modo que o procedimento da esterilização não consentida afeta de
maneira desproporcional as mulheres e fere sua liberdade sobre seu corpo e saúde
reprodutiva, só podendo tal procedimento ser realizado se houver consentimento
informado. Para isso ser possível, os Estados devem garantir o acesso aos serviços
de saúde reprodutiva, a informação e educação para que a mulher possa exercer sua
liberdade reprodutiva58.
Acrescenta-se que em caso de gestação de portadora do vírus HIV, esta
corte já se posicionou que há discriminação em razão de gênero quando o Estado
se omite em fornecer os cuidados médicos necessários para evitar os riscos de

57 CIDH. Las mujeres indígenas y sus derechos humanos en las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 44/17.
17 abril 2017.
58 CORTE IDH. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 30 de noviembre de 2016. Serie C No. 329.

277
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

transmissão do vírus da mãe para a criança59. Além disso, ela já se manifestou que
no caso de mulheres com HIV a perspectiva de gênero demanda uma compreensão
de como essa doença afeta sua vida, escolhas e interações sociais60.
Em relação ao dever estatal perante o combate à violência e toda forma
de discriminação de gênero, a Corte IDH afirmou que o artigo 7° da Convenção
Belém do Para deve ser interpretada para alcançar todas as funções do poder público
(legislativo, executivo e judiciário) e ainda na espera privada. Assim, o combate à
violência de gênero requer a criação de normas jurídicas, de políticas públicas e
adoção de medidas para erradicar os estereótipos e as práticas que dão causa a toda
e qualquer forma de violência por razão de gênero contra a mulher61.
Já em referência ao direito à educação, a Corte IDH fixou o estândar do
direito a educação para meninas livre de violência, especificando que o conceito
de violência deve ser compreendido como qualquer ação ou conduta, com base
em questão de gênero e que cause qualquer tipo de sofrimento ou dano à mulher.
Para esse direito ser concretizado, a corte ainda estabeleceu o dever estatal de adotar
medidas que promovam o empoderamento das meninas, desconstruam estereótipos
de gênero e ainda reformas legais para enfrentar as discriminações diretas e indiretas
contra as meninas62.
Por sua vez, perante a vertente consultiva da Corte, passa-se a analisar
a Opinião Consultiva n° 27/2021, que versa sobre direitos trabalhistas, como a
liberdade sindical, sob a perspectiva do gênero. Nesse opinativo, a Corte defendeu
o direito das mulheres a igual remuneração dos homens por trabalho igual e que
para isso ser concretizados os Estados devem estabelecer por lei sistemas de fixação
de remuneração, promover tal igualdade em acordos coletivos e adotar medidas que
permitam a avaliação objetiva do emprego63.

59 CORTE IDH. Caso Cuscul Pivaral y otros Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de agosto de 2018. Serie C No. 359., Párrafo 137.
60 CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy y otros Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 01 de septiembre de 2015. Serie C No. 298, Párrafo 288.
Ecuador, 2015.
61 CORTE IDH. Caso Mujeres Víctimas de Tortura Sexual en Atenco Vs. México. Excepción Preliminar,
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2018. Serie C No. 371.
62 CORTE IDH. Caso Guzmán Albarracín y otras Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 24 de junio de 2020. Serie C No. 405, Párrafo 142.
63 CORTE IDH. Derechos a la libertad sindical, negociación colectiva y huelga, y su relación con otros
derechos, con perspectiva de género. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021. Serie A
No. 27.

278
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse mesmo parecer, a Corte IDH revelou que a concretização da não


discriminação em matéria sindical requer que as mulheres possam participar de
sindicatos em igualdade de circunstâncias e livres de atos discriminatórios. Assim,
não basta permitir o exercício dos direitos sindicais para as mulheres, é necessário
que os Estados promovam ações afirmativas que permitam as mulheres desfrutar
de igualdade material no trabalho e nos sindicatos, em especial aquelas ações que
combatam construções sociais acerca de estereótipos e papeis de gênero que acabam
por coibir a plena autonomia sindical da mulher64.

5 CONCLUSÃO

Ao longo do artigo foi apresentada uma abordagem do direito a igualdade


e da não discriminação da mulher sob a ótica do Sistema Interamericano de Proteção
dos Direitos Humanos. Como foi bastante evidenciado, o dito Sistema possui
ampla previsão normativa do princípio da igualdade perante a lei e a proibição da
não discriminação e ainda possui um tratado específico no que tange a prevenção,
punição e erradicação da violência contra mulher, na qual se abarca toda e qualquer
discriminação em razão de gênero.
Ocorre que a simples existência de normativas internacionais de proteção
à mulher não são mecanismos suficientes para garantir a concretização da não
discriminação contra a mulher na realidade fática da sociedade. Diante disso, o
Sistema Interamericano criou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que
consistem justamente em mecanismos jurisdicionais para concretizar a proteção da
igualdade e da não discriminação.
Como já foi exposto, as decisões destes órgãos jurisdicionais produzem
estândares, isto é, padrões normativos de proteção mínima e de adequação
convencional, que no caso da Corte IDH são verdadeiramente vinculantes a todos
os países membros da OEA. Estândares estes que podem ser aplicados em outros
casos, exceto se houver outra norma ou interpretação ainda mais protetiva pela
aplicação do princípio pro persona.
No que se refere aos estândares de concretização da igualdade e não
discriminação da mulher quanto aos direitos políticos, econômicos e sociais, que foi

64 CORTE IDH. Derechos a la libertad sindical, negociación colectiva y huelga, y su relación con otros
derechos, con perspectiva de género. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021. Serie A
No. 27.

279
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

o recorte de análise do estudo em questão, foi observada a necessidade da atuação


Estatal em adotar ações afirmativas para assegurar a igualdade material das mulheres
na participação política, nas escolas, nos sindicatos, no mercado de trabalho, bem
como para combater todas as formas de violência em razão de gênero.
Além disso, pela análise de questões referentes ao direito a saúde é possível
afirmar que as mulheres são diferentes dos homens por questões biológicas, com a
capacidade de gerar uma vida, assim para concretizar a igualdade perante o direito a
saúde é imprescindível que se conheça e respeite as particularidades das gestantes e
mães devendo a rede de saúde ser adequada a essas particularidades, concretizando
assim o direito a diferença e de ser aceita tal qual ela é. Ressalta-se ainda que por essa
capacidade de gerar vidas ser uma particularidade da mulher só a ela cabe decidir se
terá ou não filhos, devendo o Estado fornecer todas as informações necessárias para
que ela possa exercer sua autonomia reprodutiva livre de qualquer discriminação.
Por isso, afirma-se que é patente a relevância dos órgãos jurisdicionais
para assegurar a tutela da não discriminação da mulher e que para assegurar a sua
concretização devem ser adotadas ações afirmativas que dentro dos casos concretos
poderão corrigir as desigualdades estruturais através, por exemplo, de políticas de
incentivo ao acesso e permanência das mulheres no mercado de trabalho.
Ante todo o exposto, pode-se dizer que a tutela da não discriminação
em razão de gênero no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
ocorre mediante a conjugação das suas normativas internacionais e a sua aplicação
e interpretação por seus órgãos jurisdicionais que cumprem o seu papel de
concretização das normativas e fixam estândares de interpretação que podem servir
para casos similares

280
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285
O princípio da igualdade e não discriminação no combate a
discriminação em razão de orientação sexual e identidade de
gênero a partir das decisões da Corte Interamericana de Direitos
Humanos

Ygor Rafael Cassiano de Araújo65


Thiago Oliveira Moreira66
Yara Maria Pereira Gurgel67

1 INTRODUÇÃO

No mês de março de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos


(Corte IDH) proferiu uma decisão emblemática para a comunidade LGBTQIA+.
Trata-se do caso intitulado Vicky Hernández e outros vs. Honduras, em que, pela
primeira vez, um Estado foi responsabilizado pela participação no assassinato de
uma pessoa transexual. Este caso se soma a outros importantes apreciados pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelo Tribunal Interamericano,
que detém como objeto de discussão os direitos humanos das pessoas que compõem
a comunidade LGBTQIA+.

65 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista
em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
66 Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Chefe do Departamento de
Direito Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Doutor e Mestre em Direito pela Universidad del País Vasco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq/UFRN) Direito Internacional e as Pessoas em Situação
de Vulnerabilidade. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. E-mail: thiago.moreira@ufrn.
br.
67 Professora Dra. Associada III da UFRN. Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela
PUC/SP. Pós Doutora em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lis-
boa. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8686260157736966 E-mail: ygurgel@uol.com.br

287
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse contexto, é importante destacar que a violência contra a população


LGBTQIA+ se faz presente de forma estrutural em muitos Estados nacionais, e
que alguns dos países que compõem a OEA detém as estatísticas mais alarmantes
de assassinatos. A origem do cometimento desses crimes, por muitas vezes não é
investigada e se traduz em impunidade, fruto de um frágil sistema normativo de
proteção dos direitos de igualdade e não discriminação.
Face ao exposto, eis que surge a seguinte problemática: quais as deficiências
e violações de direitos observadas nos casos submetidos à Corte IDH que tratam de
violência decorrente da discriminação em razão de orientação sexual e identidade
de gênero, e como tal identificação pode contribuir para o fortalecimento das
normas internas e concretização dos princípios da igualdade e não discriminação
no âmbito dos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA)?
A problemática em questão se esteia na quantidade de subnotificações
dos casos de violência contra a comunidade LGBTQIA+, cuja motivação é
exclusivamente a identidade de gênero ou a sexualidade da vítima. Muitos desses
casos têm suas motivações pouco investigadas ou encobertas, e só foram devidamente
investigados após denunciados ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos (SIPDH).
Partindo dessa problemática, se levanta a hipótese da contribuição
positiva do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, quando
este se debruça sobre diversos casos que se correlacionam com a violência sofrida
pela população LGBTQIA+ e identifica, nas diferentes situações, quais direitos são
corriqueiramente ignorados pelos Estados, e como tal inércia e impunidade pode
manter relação direta com a discriminação e o preconceito contra a orientação
sexual e identidade de gênero das vítimas. A partir dessa identificação, se infere
que as decisões e punições impostas pela Corte IDH figuram como paradigma de
mudança legislativa para aqueles Estados, e fortalecem o respeito aos princípios da
igualdade e não discriminação em caráter regional.
Na tentativa de responder a problemática imposta no presente estudo
e de validar a hipótese levantada, é necessária a observância de alguns objetivos.
O objetivo central do estudo é identificar padrões de violações de direitos e de
atuação (ou não atuação) estatal nos casos apreciados pela Corte IDH que tratam
de violência contra as pessoas LGBTQIA+, os reflexos dessas decisões nas normas
internas e na concretização dos princípios da igualdade e não discriminação.

288
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Para satisfazer o propósito central da pesquisa, objetiva-se também,


de forma mais específica, estabelecer um panorama geral interamericano sobre
a violência contra as pessoas LGBTQIA+ a partir de dados estatísticos colhidos
de organizações estatais e não governamentais - estas últimas podendo ser de
abrangência nacional ou regional -, a fim de estabelecer um perfil das genérico
das violações. Posteriormente, serão abordados os princípios da igualdade e não
discriminação, sua inserção no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos (SIPDH). Por último, o presente estudo se debruça sobre a análise de
cinco decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que se
referem a proteção das pessoas LGBTQIA+ em face da inércia de alguns Estados
Nacionais, a fim de identificar suas características comuns.
No mais, a pesquisa científica proposta no presente artigo científico
é orientada pelo método hipotético dedutivo, partindo-se da premissa de que
a atuação do SIPDH, por meio de suas manifestações normativas e decisões
do Tribunal jurisdicional, vêm adotando um posicionamento consolidado em
salvaguardar os direitos fundamentais dos indivíduos vítimas de preconceitos em
razão de sua orientação sexual e identidade de gênero, quando há omissão ou
inércia de seu Estado nacional.
Também será adotado o método indutivo, no qual, por meio da
generalização fundamentada na experiência dos casos anteriores, vislumbra-se
deduzir um posicionamento dos órgãos consultivos e institucionais, baseado na sua
interpretação dos marcos normativos do SIPDH.
No que diz respeito aos métodos auxiliares, traremos o método auxiliar
estatístico para fundamentar a problemática da violência contra a comunidade
LGBTQIA+, e o método auxiliar histórico, com dados históricos acerca das
perseguições e violações de direitos que tais grupos são submetidos.

2 PANORAMA GERAL INTERAMERICANO SOBRE VIOLÊNCIA


CONTRA PESSOAS LGBTQIA+

A sigla que designa a luta política em razão do respeito à diversidade de


orientações sexuais e identidades de gênero está em constante mutação, assim como
a complexidade humana de se relacionar, e atribuir significados linguísticos para
tais relações. Ao longo deste trabalho, será utilizada a sigla LGBTQIA+, atualmente
bastante difundida e resumida, que engloba as pessoas que se identificam como
lésbicas, gays, transgênero, transexuais, travestis, queer, intersexuais, assexuais.

289
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Outrossim, deixando de lado as finalidades didáticas da sigla adotada, é importante


relatar que a presença do símbolo de “+” diz respeito exatamente a outras formas de
entendimento da sexualidade e identidade de gênero, que merecem igual respeito e
igual consideração, onde deixamos aqui registrado que o presente estudo também
se refere às pessoas pansexuais, polissexuais, agênero, curiosos, questionando-se e
aliados.
Em um primeiro momento, antes de analisar os dados da violência
e da repressão moral em razão da orientação sexual e identidade de gênero,
se faz necessária a apresentação de um panorama histórico que fundamenta tal
preconceito. Historicamente, as sociedades ocidentais fundamentaram suas bases
na heteronormatividade, na função procriativa da sociedade e na monogamia, que
se refletem em repressões morais e tentativas de restrição da sexualidade.68
O preconceito, por si, ocorre por meio da desqualificação das sexualidades,
identidades e comportamentos que se diferencial da heteronormatividade,
de forma a valorar de forma diferente as pessoas que não são heterossexuais
e cisgêneras.69 Por sua vez, a violência é concebida como um fenômeno mais
complexo, polissêmico e multifatorial, que pode ser retratada sob a forma física
ou sob a forma psicológica sobre suas vítimas.70 Durante o regime nazista, onde
a população LGBTQIA+ foi acusada de ameaçar a evolução da população alemã,
inúmeras pessoas foram submetidos a experimentos de castração química, privação
de direitos básicos, privação de liberdade, dentre outras barbáries que dizimaram
cerca de 15 mil indivíduos que, na visão dos nazistas, representavam a imagem de
um comportamento degenerativo.71

68 MARINO, Tiago Fuchs; CARVALHO, Luciani Coimbra de; NASCIMENTO, João Pedro Rodri-
gues. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a proteção dos direitos LGBTI: construindo um
ius constitituonale commune baseado na diversidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília,
v. 11, n. 2, p. 715-735, 7 nov. 2021. Centro de Ensino Unificado de Brasília. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.5102/rbpp.v11i2.7382.
69 COSTA, Ângelo Brandelli; NARDI, Henrique Caetano. Homofobia e preconceito contra diver-
sidade sexual: debate conceitual. Temas psicol., Ribeirão Preto, v. 23, n. 3, p. 715-726, set. 2015.
Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X201500030
0015&lng=pt&nrm=is. Acesso em: 10 out. 2021. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-15.
70 ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+; GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório: observatório
de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil – 2020. Florianópolis, 2021. p. 79. ISBN: 978-65-994905-
0-7.
71 SIQUEIRA, D. P., MACHADO, R. A. (2018). A proteção dos direitos humanos LGBT e os prin-
cípios consagrados contra a discriminação atentatória. Revista Direitos Humanos e Democracia, 6(11),
167–201. Disponível em: https://doi.org/10.21527/2317-5389.2018.11.167-201.

290
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A proteção jurídica conferida pela sociedade internacional somente se


inicia com a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e a partir da
construção do princípio da dignidade intrínseca a todos os seres humanos, expresso
na Declaração Universal dos direitos do Homem, no ano de 1948, fundamentado
nos ideais de não discriminação em razão de etnia, cor, orientação sexual, identidade
de gênero, entre outras características pessoais que possam diferenciá-los.72
Outrossim, a primeira manifestação expressa da ONU em defesa da
população LGBTQIA+ tem como palco o julgamento de um caso concreto de
homossexualidade ocorrido na Austrália, no ano de 199473, quatro anos após a
Organização Mundial da Saúde – OMS já haver retirado a homossexualidade da
Classificação Internacional de Doenças do ano de (CID), onde persistia desde o
ano de 1977 com status de doença mental.
Quanto à regulação estatal das uniões homoafetivas, o primeiro Estado
a se manifestar foi a Dinamarca, no ano de 1989, equiparando os efeitos da
união entre pessoas do mesmo sexo ao do casamento civil (com exceção apenas
do direito de adotar). Tal posicionamento foi seguido pela Noruega no ano de
1993, pela Suécia em 1995, pela Islândia em 1996 e pela França e Inglaterra em
1999. Na América Latina, a Argentina foi pioneira em conceder direitos às famílias
homoafetivas, no ano de 2003, quando passou a autorizar uniões civis. Logo após,
no ano de 2007, a Cidade do México e o Uruguai passaram a autorizar o registro
das famílias homoafetivas74.
A regulação das uniões homoafetivas encontra como obstáculo uma
estrutura criada a partir da heteronormatividade, ou seja, de um sistema de ideias
criado a partir da heterossexualidade como premissa normativa básica, este que
se perpetua institucionalmente na justiça, no sistema educacional, nas relações
de trabalho e emprego75, e, a partir dessa estrutura, as pessoas que se entendem
diferentes são discriminadas e marginalizadas, sujeitas a sofrerem violências verbais,
físicas, e terem sua expectativa de vida diminuída. Essa premissa é de suma relevância
para a análise dos casos concretos que iremos abordar, pois ela se encontra presente

72 SIQUEIRA, D. P., MACHADO, R. A. (2018). A proteção dos direitos humanos LGBT e os prin-
cípios consagrados contra a discriminação atentatória. Revista Direitos Humanos e Democracia, 6(11),
167–201. Disponível em: https://doi.org/10.21527/2317-5389.2018.11.167-201
73 Ibid., p .169.
74 José Carlos Teixeira GIORGIS, O Casamento Igualitário e o Direito Comparado. In: DIAS, Maria
Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. p. 682.
75 Ibid., p. 718.

291
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

em todas as nações analisadas, como plano de fundo para inércia dos Estados em
investigar os crimes cometidos em seus territórios.
Vejamos a seguir alguns dados que ilustram a problemática da
LGBTFOBIA, tomando como recorte geográfico os países membros da Organização
dos Estados Americanos – OEA, para que seja possível a compreensão do papel do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos na defesa dessas pessoas.
De modo geral, os casos de violência cujas vítimas fazem parte de uma das
minorias englobadas pela sigla LGBTQIA+ não estão isolados na América Latina,
e muitos Estados nacionais não dispõem de um aparato legislativo e jurisdicional
para coibir esse tipo de violência. De acordo com a Rede que integra organizações
defensoras dos direitos LGBTI de várias nações, intitulada “Sin violência LGBTI”,
e que consiste em um sistema especializado que reúne informações sobre homicídios
de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e interessex na América Latina e Caribe,
entre os anos de 2014 e 2020, pelo menos 1949 pessoas LGBTI foram assassinadas
em dez dos onze países integrantes da Rede, e dessas, 1403 foram assassinadas por
motivos relacionados à sua sexualidade ou identidade de gênero. Somente no Brasil,
nesse mesmo período, estima-se que o total de homicídios ultrapasse 3599 casos.76
Somente no Brasil, de acordo com dados coletados pela organização não
governamental Grupo Gay da Bahia, que atua há mais de 40 anos na proteção
dos direitos LGBTQIA+, entre os anos de 2000 e 2020, cerca de 5.046 cidadãos
brasileiros foram vítimas de homicídio em razão de LGBTFOBIA77. Estima-se que
no ano de 2017 foram assassinadas 445 pessoas78, em 2018 foram 420 homicídios,
em 2019 registraram-se 329 mortes e no ano de 2020 foram registradas 237
mortes79.

76 SIN VIOLENCIA LGBTI (ed.). Des-cifrando la violencia en tiempos de cuarentena: homicidios de


lesbianas, gays, bisexuales, trans e intersex en américa latina y el caribe 2019-2020. Colombia Diversa,
2021. Disponível em: https://sinviolencia.lgbt/wp-content/uploads/2021/09/des-cifrando-la-violen-
cia-en-tiempos-de-cuarentena.pdf. Acesso em: 12 out. 2021.
77 ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+; GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório: observatório
de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil – 2020. Florianópolis, 2021. p. 79. ISBN: 978-65-994905-
0-7.
78 BORTONI, Larissa. Brasil é o país onde mais se assassina homossexuais no mundo. 2018. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2018/05/16/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-ho-
mossexuais-no-mundo. Acesso em: 21 nov. 2021.
79 IBDFAM. Dia Internacional contra a homofobia: Brasil registrou 237 mortes violentas de LGB-
TI em 2020. 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8488/Dia+Internacional+con-

292
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A preocupação em torno da LGBTFOBIA se reflete também nas


estatísticas de denúncias: de acordo com dados do disque 100, serviço que recebe,
analisa e encaminha denúncias de violações dos direitos humanos, no período
compreendido entre os anos de 2011 e 2017, foram reportadas ao sistema 12.477
denúncias envolvendo 22.899 violações de direitos contra pessoas LGBT em
território brasileiro. É pertinente afirmar que estes são os dados efetivamente
registrados de violência, e que a quantidade de casos subnotificados é enorme, pois
muitos indivíduos que chegam aos hospitais têm medo ou vergonha de informar
que a motivação da violência sofrida é em razão de sua a sexualidade ou identidade
de gênero.
De acordo com a organização “Sin violência LGBTI”, tais estatísticas
pressupõem a carência de ações específicas para prevenir tal violência80. Um
dos principais problemas diz respeito à impunidade e a ausência de normativas
específicas para criminalização da discriminação em razão da orientação sexual ou
identidade de gênero.
No que tange ao aparato jurídico estatal e sua relação com a população
LGBTQIA+, verificou-se, de acordo com dados da International Lesbian, Gay,
Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), em levantamento realizado no ano
de 2017, que no mundo ainda existem 72 Estados que criminalizam as relações
homossexuais, enquanto 72 Estados há proteção expressamente constitucional ou
normativa de proteção à orientação sexual, e desses, 63 citam o princípio da não
discriminação81.
Assim, o presente estudo prossegue questionando sobre a aplicação do
Princípio da Igualdade e Não Discriminação na proteção dessa população, em
consonância com as normas que compõem o Sistema Interamericano de Proteção
aos Direitos Humanos (SIPDH), e das decisões paradigmáticas que vêm sendo
proferidas pela Corte IDH nos últimos anos, vislumbrando refletir sobre seus

tra+a+Homofobia%3A+Brasil+registrou+237+mortes+violentas+de+LGBTI+em+2020. Acesso em:


21 nov. 2021.
80 SIN VIOLENCIA LGBTI (ed.). Des-cifrando la violencia en tiempos de cuarentena: homicidios de
lesbianas, gays, bisexuales, trans e intersex en américa latina y el caribe 2019-2020. Colombia Diversa,
2021. Disponível em: https://sinviolencia.lgbt/wp-content/uploads/2021/09/des-cifrando-la-violen-
cia-en-tiempos-de-cuarentena.pdf. Acesso em: 12 out. 2021.
81 PIOVESAN, Flávia; KAMIMURA, Akemi. Proteção internacional à diversidade sexual e combate
à violência e discriminação baseadas a orientação sexual e identidade de gênero. Santiago: Anuario de
Derecho Público, 2017.

293
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

reflexos nas relações internas dos Estados, em especial daqueles que não dispõem
de medidas legislativas para repressão e criminalização desse tipo de violência.

3 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO NO


SISTEMA INTERAMERICANO

A análise normativa do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos


humanos prescinde de uma contextualização histórica e social de sua formação,
para que possamos entender por que sua atuação se faz imprescindível até os dias
atuais. Em um primeiro momento, é importante situar que se trata de uma região
marcada por democracias em fase de consolidação, onde prevalece um alto grau
de exclusão e de desigualdade social.82 Tais fatores podem ser compreendidos a
partir de dois períodos: o primeiro diz respeito aos regimes ditatoriais, e o segundo
diz respeito aos regimes democráticos, em especial a partir da década de 1980 em
nações como a Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil83.
Os períodos ditatoriais foram caracterizados pelas restrições aos direitos
fundamentais básicos, em detrimento de meios violentos como a tortura, as execuções
sumárias, os desaparecimentos forçados, perseguições político-ideológicas, torturas
sistemáticas, e, com destaque, as proibições a liberdades de expressão, de reunião e
de associação84.
Atualmente, embora já ter passado pela transição do regime ditatorial
para o democrático, os países ainda necessitam da efetiva consolidação de direitos
fundamentais, de forma a romper com as normas e a cultura advinda do período
ditatorial, a fim de se consolidar o pleno respeito aos direitos humanos, de forma
ampla, como os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais85. Para
tanto, um desses mecanismos advém do fortalecimento de um sistema de proteção
regional já existente, que contribui para o fortalecimento e consolidação das normas
democráticas em diversos países, na busca de uma real efetivação de tais direitos.

82 PIOVESAN, Flávia; KAMIMURA, Akemi. Proteção internacional à diversidade sexual e combate


à violência e discriminação baseadas a orientação sexual e identidade de gênero. Santiago: Anuario de
Derecho Público, 2017. p. 154.
83 Ibid., p. 154.
84 Ibid., p. 154.
85 Ibid., p. 155.

294
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3.1 SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos teve


sua origem a partir da 9ª Conferência Interamericana, no ano de 1948, onde foi
aprovada a Carta de Bogotá, também chamada de Carta da Organização dos Estados
Americanos, e onde também foi celebrada a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem86. Esse Sistema reúne apenas Estados com objetivo de reforçar
a estrutura internacional para promoção dos direitos humanos, por intermédio da
associação desses entes, facilitando seu diálogo e o consenso em relação a interesses
comuns de normas que esses estados elaboraram.
O SIPDH, é administrado pela Organização dos Estados Americanos
– OEA, que foi criada como uma Organização Internacional de caráter regional
com propósito de proteger os direitos humanos87. Os principais instrumentos que
fomentaram o aparecimento de mecanismos de proteção a esses direitos foram a
Carta da OEA, seguida pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem
– DADDH e pela Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – CADH, e
o passo inicial para tal concretização foi a criação da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, como órgão que objetiva promover e proteger os direitos
humanos no âmbito da OEA88.

3.1.1 Carta da OEA e Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem


(DADDH)

A Carta da OEA consiste no tratado que criou a Organização dos


Estados Americanos, estabelecendo os princípios que orientam a entidade, dentre
eles destacamos a menção expressa à proclamação dos Direitos fundamentais da
pessoa humana “sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo”. A Carta
também prevê a criação, em seu art. 106, de uma Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, cuja principal função seria promover o respeito e a defesa dos
direitos humanos nas Américas.

86 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Forense, 2019. p.
135.
87 MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela jurisdi-
ção brasileira. Natal: Edufrn, 2015. p. 74.
88 Ibid., p. 75.

295
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A DADDH por sua vez, foi aprovada na Nona Conferência Internacional


Americana, realizada na cidade de Bogotá, no ano de 1948. Esse instrumento
consiste no marco inicial para criação do sistema interamericano, e divide-se em
dois capítulos, um que trata sobre os Direitos de todos os seres humanos, e outro
sobre os Deveres dos indivíduos, e repete, em linhas gerais, os conteúdos expressos
na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Destacam-se, nesse instrumento, o direito a vida, à liberdade e à
segurança, expresso em seu artigo I, com destaque à proibição de prisão arbitrária,
conforme ditames do artigo XXV, bem como que todos têm o direito à justiça
(artigo XVIII) para fazer respeitar seus direitos, com destaque expresso à proteção
contra atos de autoridade que violem quaisquer direitos fundamentais consagrados
constitucionalmente e direito de petição consagrado no artigo XXIV.
No tocante à proteção das minorias LGBTQIA+, a Declaração Americana
de Direitos e Deveres do Homem (DADDH) evidencia o respeito ao princípio
da igualdade perante a lei, expresso em seu artigo II, salientando que devem ser
respeitados os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem distinção de raça,
língua, crença, ou qualquer outra, o direito a liberdade de expressão, de opinião e
difusão de pensamento, expresso no artigo IV, a proteção legal da honra e da vida
particular e familiar, conforme o artigo V, o direito à constituição de família, e a
proteção da família, nos termos do artigo VI.

3.1.2 Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH)

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos é o instrumento mais


importante de tutela do sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos.
Também conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”, foi celebrada em 22
de novembro do ano de 1969, e, ao contrário da Declaração Americana que é
apenas uma norma declarativa, este é um tratado que impõe normas vinculantes
aos seus Estados-partes89.
A Convenção Americana trouxe diversos conceitos importantes, dentre
ele sua definição de pessoa como “todo ser humano”, expressa em seu artigo 1,
parágrafo 290, divide-se em duas partes: a primeira estabelece os direitos protegidos
e os deveres dos Estados que a ratificam, enquanto a segunda parte estabelece o

89 MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela jurisdi-
ção brasileira. Natal: Edufrn, 2015. p. 75-76.
90 OEA. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. San Jose. 1969. Art. 1 par. 2.

296
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

funcionamento do sistema interamericano composto pela Comissão Interamericana


de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que serão
abordados no capítulo seguinte desse estudo91.
Ademais, em seu artigo 1 parágrafo 1, a Convenção afirma que os Estados
partes se comprometem a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos, “sem
discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões
políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição
econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”92.
Outro dispositivo que devemos destacar nessa convenção é o seu artigo
5, parágrafos 1 e 2, quando consagra o direito à integridade pessoal na seara
física, psíquica e moral dos indivíduos, proibindo torturas e tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes93. O artigo 8 diz respeito às garantias judiciais inerentes
aos indivíduos, dentre elas o direito a ser ouvido, dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou tribunal competente, que seja independente e imparcial, e estabelecido
anteriormente por lei94.
O artigo 10, por sua vez, trata do direito à indenização que a pessoa
passa a ter se houver sido condenada, por erro judiciário, em sentença transitada
em julgado95; o artigo 11 versa sobre a proteção da honra e dignidade, afirmando
que ninguém pode ser submetido a “ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida
privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de
ofensas ilegais à sua honra ou reputação”96.
Destacamos também, com suma importância, a íntegra do artigo 24,
quando profere que “todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm
direito, sem discriminação, a igual proteção da lei”97.
Importante destacar tais artigos, pois eles serão abordados posteriormente
no presente trabalho, quando da análise de alguns casos proferidos pela Corte

91 MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela jurisdi-
ção brasileira. Natal: Edufrn, 2015. p. 76.
92 OEA. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. San Jose. 1969. Art Art. 1 par. 1.
93 Ibid., Art. 5 par. 1 e 2.
94 Ibid.,. Art. 8 par. 1.
95 Ibid., Art. 10.
96 OEA. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. San Jose. 1969. Art. 11.
97 Ibid., Art. 24.

297
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Interamericana de Direitos Humanos, que interpretaram seus textos para proteção


da comunidade LGBTQIA+.

3.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO NO


SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS E A PROTEÇÃO DAS PESSOAS LGBTQIA+

O sistema jurídico, de forma geral, é formado por normas, que podem


ser divididas em normas-princípios e normas-regras. As primeiras, dizem respeito
a proposições ideais que detém fundamentos normativos e vislumbram inspirar o
operador do direito, enquanto as últimas fundamentam o ordenamento jurídico
por meio de suas proposições. No que se refere aos princípios, o sistema jurídico
ocidental é conduzido pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana e pelo
princípio da Igualdade e Não Discriminação98.
A dignidade da pessoa humana, como um princípio de proteção às
pessoas, surge vislumbrando a proteção do seu bem-estar, de sua autonomia e de
sua liberdade em face dos Estados, e como uma justificação para limitar eventuais
direitos fundamentais colidentes99. Para o Professor Jorge Reis Novais, a dignidade
é, por definição constitucional, a base da República e o princípio supremo do
ordenamento jurídico, do qual, quando contraposto com qualquer outro bem,
valor, interesse ou direito, a dignidade deve prevalecer100.
Nesse sentido, podemos dizer que tal princípio pode ser considerado um
valor moral ou uma referência identitária das sociedades, e nesses dois sentidos,
em seus diferentes enunciados normativos, deve ser reconhecida uma dimensão
jurídico-constitucional, que se impõe juridicamente a todos os poderes do Estado,
e que os vincula à recepção constitucional de tal princípio, devendo respeitá-lo e
promovê-lo101.

98 GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 2007. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 40.
99 NOVAIS, Jorge Reis (ed.). A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2015. ISBN 978-972-40-6157-3. p. 13.
100 Ibid., p. 9.
101 NOVAIS, Jorge Reis (ed.). A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2015. ISBN 978-972-40-6157-3. p. 18.

298
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Isto posto, por serem concebidos como um standart de proteção, os


bens jurídicos originários do conteúdo da dignidade da pessoa humana devem ser
alcançados acima de qualquer contexto cultural, político e social.102 Explica que,
doutrinariamente, apesar de não haver consenso quanto ao conteúdo do princípio
da dignidade humana em razão de sua indeterminação semântica, há um consenso
entre a grande maioria dos autores, que defendem a dignidade como a proibição da
instrumentalização do homem e a igualdade dos direitos.103
Nesse sentido, para Daniel Sarmento, o conteúdo essencial da dignidade
da pessoa humana diz respeito a valor intrínseco da pessoa (proibição de
instrumentalização); a igualdade; a autonomia; ao mínimo existencial (condições
essenciais à vida digna); e ao reconhecimento (respeito à identidade individual e
coletiva)104.
Por sua vez, o princípio da igualdade enxerga a pessoa humana como
ente insubstituível, ditado de dignidade e deve ser uma prioridade para a ordem
jurídica, vislumbrando a inserção social de todos que se encontram às margens
da sociedade, e tendo como foco corrigir as adversidades jurídicas, econômicas,
fisiológicas e sociais105.
Um dos marcos históricos na busca pela igualdade foi a Revolução
Francesa, com ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, buscou romper
com os privilégios oferecidos pelo Estado a alguns indivíduos, e que perpetuava
desigualdades sobre outros106. Jean Jaques Rousseau abraçava a ideia de que as
desigualdades civis são originadas de convenções entre os homens, e repercutiam
na propriedade e na lei. A partir dessas ideias surge o movimento constitucionalista
que confere proteção jurídica aos homens em detrimento aos arbítrios do Estado,
ocasião em que buscou-se enfatizar a liberdade e a igualdade de todos perante a lei,
por meio de direitos e deveres107.

102 NOVAIS, Jorge Reis (ed.). A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2015. ISBN 978-972-40-6157-3. p. 98.
103 Ibid., p. 98.
104 SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed.
Belo Horizonte: Forum, 2016. p. 93.
105 GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana e suas impli-
cações jurídicas na realização dos direitos fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) – Curso de
Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. p. 43.
106 Ibid., p. 45.
107 Ibid., p. 46.

299
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Atualmente, entende-se a igualdade a partir de duas vertentes: positiva


e negativa. A igualdade em sua vertente positiva diz respeito à igualdade formal,
que consiste em pôr fim em desigualdades e distinções, onde todos deveriam ser
tratados igualmente pelo Estado. Por meio da igualdade formal, ninguém poderia
ser tratado desigualmente pelo Estado, mesmo que algumas dessas pessoas já
estejam em situação de desigualdade108.
Já a sua vertente negativa, consiste na proibição de um tratamento
discriminatório. A discriminação, do latim discriminacione, diz respeito à exclusão
de um indivíduo da sociedade, em razão de um preconceito, e a partir da necessidade
de se perpetuar um status quo, atribuindo a determinados indivíduos estereótipos
e estabelecendo uma hierarquia social que denota superioridade de um grupo de
indivíduos em razão de outro109.
No que se refere ao sistema interamericano de proteção aos direitos
humanos, destaca-se o artigo 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos,
quando ele outorga que os Estados partes que ratificaram a convenção devem
respeitar os direitos e liberdades reconhecidos por ela, e devem garantí-los a todas
as pessoas sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivos de raça,
cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou qualquer outra condição social110.
Ademais, inicialmente, quando da promulgação da CADH, esse
dispositivo não se atentava à proteção da população LGBTQIA+, e tal contexto
mudou a partir da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação
e Intolerância, aprovada pela Assembleia Ordinária da Organização dos Estados
Americanos (OEA) em 5 de julho de 2013.
Importante destacar que a Convenção Interamericana contra Toda Forma
de Discriminação e Intolerância surge antes mesmo de haver um tratado de mesma
disciplina no sistema universal de direitos humanos, e leciona sobre os conceitos
de discriminação, atrelando a fatores e condições existenciais até então ignorados
por outros instrumentos internacionais, como a orientação sexual e a identidade
de gênero111. Até o ano de 2022, doze nações, incluindo o Brasil, assinaram

108 GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana e suas impli-
cações jurídicas na realização dos direitos fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) – Curso de
Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. p. 50.
109 Ibid., p. 62.
110 OEA. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. San Jose. 1969. Artigo 1º.
111 NASCIMENTO, João Pedro Rodrigues; MARINO, Tiago Fuchs; CARVALHO, Luciani Coim-
bra. A Corte Interamericana de direitos humanos e a proteção dos direitos LGBTI: construindo um

300
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

tal convenção, porém somente dois deles, México e Uruguai, efetivamente o


ratificaram112.
Outrossim, em decorrência da demora em ratificação de alguns países,
ou mesmo de sua falta de interesse, a corte IDH vêm se esforçando para reconhecer
a tutela de direitos das pessoas LGBTQIA+113 por meio de decisões emblemáticas
em alguns casos, identificando aquelas que envolvem diretamente alguma forma
de preconceito e discriminação em razão de sexualidade e identidade de gênero, e
deixando explícito o entendimento da Corte sobre essa matéria, e a interpretação
evolutiva dos conceitos expressos na CADH.
Destaca-se, no primeiro caso submetido à jurisdição da Corte IDH,
caso Atala Riffo e Crianças vs. Chile, que a Corte demonstra, explicitamente, seu
entendimento de que o dissenso entre países acerca do respeito aos direitos da
população LGBTQIA+ não consiste em um argumento válido para que lhes seja
negado o acesso a direitos básicos, ou para que o Estado continue a perpetuar a
discriminação que tais pessoas já sofrem historicamente114.
No mais, quanto ao desrespeito ao princípio da igualdade e não
discriminação, para que se chegue à conclusão de que houve uma discriminação
em determinada decisão estatal, o entendimento da Corte IDH é de que “não é
necessário que a totalidade dessa decisão esteja baseada ‘fundamental e unicamente’
na orientação sexual da pessoa, pois basta constatar que de maneira explícita ou
implícita se levou em conta, até certo grau, a orientação sexual”115.
No que se refere à Convenção Interamericana contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância, existem algumas considerações iniciais importantes
que foram destacadas pelos Estados parte que constituíram tal documento, e dentre
elas encontra-se o reconhecimento que uma sociedade pluralista e democrática deve

Ius Constitutionale Commune baseado na diversidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasí-
lia, v. 11, n. 2. p.714-735, 2021. p. 725.
112 Conforme dados contidos no sítio da OEA. Disponível em: https://www.oas.org/en/sla/dil/in-
ter_american_treaties_A-69_discrimination_intolerance_signatories.asp). Acesso em: 12 mar. 2022.
113 NASCIMENTO, João Pedro Rodrigues; MARINO, Tiago Fuchs; CARVALHO, Luciani Coim-
bra. A Corte Interamericana de direitos humanos e a proteção dos direitos LGBTI: construindo um
Ius Constitutionale Commune baseado na diversidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília,
v. 11, n. 2. p.714-735, 2021. p. 726.
114 Ibid., p. 727.
115 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas.
Chile. 24 de fevereiro de 2012. p. 34.

301
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

respeitar a identidade cultural, linguística, religiosa, sexual e de gênero de todos os


seus membros, e que deve criar condições que lhe possibilitem expressar, preservar e
desenvolver sua identidade116. Demonstram preocupação com os dados alarmantes
de crimes de ódio que são motivados por questões de gênero, sexualidade, religião,
deficiência ou outras condições sociais, e enfatizam a educação como meio de
promoção do respeito aos direitos humanos, da igualdade, da não discriminação
e da tolerância117.
Quanto à expressa menção ao princípio da igualdade, as considerações
iniciais destacam que é obrigação jurídica dos Estados adotar medidas especiais de
proteção aos indivíduos ou grupos que figurem como vítimas de discriminação
ou intolerância, com vistas a promover condições equitativas que proporcionem
igualdade de oportunidades, e combater todas as manifestações individuais,
estruturais e institucionais de discriminação118.
Sobre a palavra discriminação, tal Convenção esclarece que ela se
refere a “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área
da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o
reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais
direitos humanos e liberdades fundamentais”119 que estejam estabelecidos em
instrumentos internacionais que possam ser aplicados aos Estados Partes. Estabelece
também o conceito de discriminação indireta, que consiste naquela onde se
pratica um critério aparentemente neutro, mas que pode gerar uma desvantagem
para algum indivíduo.120 Ainda mais, conceitua intolerância como “um ato ou
conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo
à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes
ou contrárias”121.
O princípio da Igualdade e Não Discriminação se encontra explícito nos
artigos 2 e 3 da Convenção, destacando a igualdade perante a lei, e à igual proteção
contra qualquer forma de discriminação ou intolerância, seja ela manifestada em
esfera da vida pública ou privada, e que todos tem direito ao reconhecimento, em

116 OEA. Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância. 2013. Con-
siderações Iniciais.
117 Ibid.,
118 Ibid., Considerações Iniciais.
119 Ibid., Artigo 1, item 1.
120 Ibid., Artigo 1, item 2.
121 Ibid., Artigo 1, item 5.

302
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

condições de igualdade, de todos os direitos e liberdades fundamentais contidos


nas legislações internas e nos instrumentos internacionais que o Estado reconhecer.
Também há a preocupação com as ações afirmativas que o Estado
deverá tomar, desde a realização de pesquisas que visem identificar as causas
das manifestações de discriminação e intolerância, bem como os Estados se
comprometem em adotar ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou
exercício dos direitos fundamentais, vislumbrando a a promoção de condições que
permitam a igualdade de oportunidades.122 Assevera que tais políticas públicas
não serão consideradas discriminatórias, nem visam a manutenção de direitos
separados para determinados grupos distintos, mas visam o objetivo da equidade, e
se estenderão por um período razoável até alcançar tal objetivo123.
O artigo sétimo da Convenção Interamericana contra Toda Forma
de Discriminação e Intolerância, por sua vez, afirma que os Estados partes se
comprometem a adotar uma legislação que proíba expressamente a discriminação
e a intolerância, e que tenha abrangência para as autoridades públicas e todos os
indivíduos, bem como revogue todas as legislações que constituam ou produzam
algum tipo de discriminação e intolerância.124 Esse artigo se une ao artigo 9, que
trata do comprometimento dos Estados com a garantia de que os sistemas políticos
e jurídicos reflitam a diversidade da sociedade125, e que haja um tratamento
equitativo e não discriminatório às vítimas de discriminação e intolerância, que lhes
permita um acesso igualitário ao sistema de justiça, bem como que haja reparação
justa nos âmbitos civil e criminal126.
Além da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação
e Intolerância, no ano de 2016 o governo da Costa Rica solicitou à Corte IDH que
se manifestasse sobre alguns temas correlatos à questão de identidade de gênero e
sexualidade, dentre eles o reconhecimento da mudança de nome das pessoas, em
conformidade com sua identidade de gênero, com amparo nos artigos 11.2, 18 e
24 da CADH, bem como ao reconhecimento dos direitos patrimoniais decorrentes
de um vínculo entre pessoas do mesmo sexo, orientados pelos artigos 11.2 e 24 da
CADH.

122 OEA. Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância. 2013. Con-
siderações Iniciais.
123 Ibid., Artigo 5.
124 Ibid., Artigo 7.
125 Ibid., Artigo 9.
126 Ibid., Artigo 10.

303
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Assim, em janeiro de 2018 a corte publica a Opinião consultiva de


número 24/2017, emitida em dezembro de 2017, onde faz um paralelo direto
entre o direito à igualdade e não discriminação das pessoas LGBTQIA+, apontando
que a noção de igualdade se deriva da condição humana, e que quaisquer atos que
privilegiem um grupo de pessoas em detrimento de outro grupo, por considerar
este inferior; para tanto, os Estados devem se abster de criar discriminações de fato
ou de direito; destaca que o entendimento jurisprudência da Corte IDH é de que
o princípio fundamental da igualdade e discriminação encontra-se no domínio do
jus cogens127, ou seja, regra fundamental ligada à consciência universal e inerente a
qualquer sociedade internacional128.
Nesse sentido, por meio da Opinião Consultiva de nº 24, a Corte
esclarece seu entendimento, de forma fundamentada e clara, sobre os artigos da
Convenção Americana. O principal destaque é o artigo 1.1 da CADH129, que
o tribunal entende como norma de caráter geral que se desdobra sobre todas as
disposições do tratado, estabelecendo a obrigação dos Estados de respeitar todos os
direitos e liberdades reconhecidas no tratado, sem qualquer discriminação.130 Nesse
sentido, a violação dessa obrigação geral de garantir e respeitar os direitos humanos,
por meio de qualquer tipo desproporcional e desmotivado de discriminação, pode
motivar uma responsabilidade internacional131.
Ademais, a Corte entende também que as leis internas, as interpretações
sobre as leis, e a própria Convenção se sujeitam não ao artigo 1.1, mas ao artigo 24
da CADH, que proíbe a discriminação de direito, ou seja, uma lei que gere proteção
desigual e que propague discriminações132. Outra observação relacionada às normas
do próprio Estado, ponderada pela corte, diz respeito ao seu dever de proteção com
relação a ações de terceiros que favoreçam discriminações, nesse entendimento,

127 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017.


Item 61.
128 BICHARA, Jahyr-philippe. Direito internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 114.
129 Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos – 1. Os Estados Partes nesta Convenção comprome-
tem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda
pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social.
130 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017.
Item 63.
131 Ibid., Item 63.
132 Ibid., Item 65.

304
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

o Estado tem a obrigação de adotar medidas positivas para reverter ou mudar as


situações discriminatórias já existentes133. Outra observação indica que os critérios
estabelecidos no artigo 1.1 da CADH não consistem em uma lista taxativa, mas
meramente enunciativa134.
Em relação especificamente à questão da orientação sexual e identidade
de gênero, a corte considera as obrigações gerais estabelecidas no artigo 1.1, em
consonância com os critérios de interpretação previstos no artigo 29 da CAHD135,
em consonância com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, as
resoluções da Assembleia Geral da OEA e as normas estabelecidas pelo Tribunal
europeu e pelos órgãos da Organização das Nações Unidas que está proscrita pela
CADH qualquer norma, ato ou prática discriminatória fundada na orientação
sexual ou identidade de gênero dos indivíduos136. Essa postura é justificada
pelo entendimento que os tratados de direitos humanos são instrumentos que
acompanham a evolução dos tempos e as condições de vida atuais137.

4 A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A


TUTELA DAS PESSOAS LGBTQIA+

A Corte interamericana é o órgão jurisdicional do Sistema Interamericano


de Proteção aos Direitos Humanos e detém competência consultiva e contenciosa,
podendo, respectivamente, pronunciar-se sobre a interpretação de tratados e, diante
de um possível caso de violação aos direitos humanos presentes em alguma de suas
convenções, decidir sobre tal violação138.

133 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017.


Item 65.
134 Ibid., Item 67.
135 Artigo 29. Normas de interpretação – Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada
no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos
direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b)
limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as
leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos
Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma
democrática representativa de governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.
136 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017.
Item 68.
137 Ibid., Item 69.
138 BICHARA, Jahyr-philippe. Direito internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 493.

305
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Os pressupostos para a atuação da Corte, seja de forma consultiva ou


contenciosa, são o reconhecimento formal, por parte dos Estados, da autoridade
da corte e de suas competências, tornando as suas decisões obrigatórias para
o destinatário, cabendo ao Estado condenado cumprir com as obrigações de
pagar, mediante reparação financeira das vítimas, por exemplo, ou cumprir
com as obrigações de fazer, como, por exemplo, fazer cessar determinados atos
governamentais, e o prévio esgotamento da jurisdição interna, tendo em vista que
o sistema da Corte detém uma natureza de sistema complementar às instâncias
internas139. O reconhecimento da competência da Corte pode ser realizado tanto
no ato da ratificação, como em qualquer momento posterior.
Nesse sentido, é mediante análise de casos concretos que a Corte IDH
vem trazendo importantes construções para o debate de proteção internacional
da comunidade LGBTQIA+. Destacam-se no presente estudo quatro casos já
sentenciados, cujos sujeitos pertencem a uma das minorias englobadas pela sigla
LGBTQIA+, e que as motivações das violações de direitos humanos cometidas
pelos Estados indicam relação direta com a identidade de gênero ou sexualidade
das vítimas.
Outrossim, as sentenças desses casos trazem contribuições singulares no
que diz respeito ao princípio da igualdade e não discriminação, que se tornam
paradigmáticos na fundamentação de um sistema de proteção contra todas as
formas de violência em razão de orientação sexual e identidade de gênero.
Importante reiterar que a violência sofrida por tais sujeitos não se
apresenta somente na forma física, ou resulta em danos físicos às pessoas, mas
existem diversas formas de violações de direitos dessas pessoas, ou impedimento
de acesso a determinados direitos, que tem como pano de fundo suas questões
identitárias, e que também se caracterizam como violência.

4.1 CASO ATALA RIFFO E FILHAS VS. CHILE

O presente julgamento consiste em um marco na discussão de temas


da nova agenda de direitos humanos pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos140, e diz respeito aos fatos sofridos pela senhora Karen Atala Riffo,

139 MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela juris-
dição brasileira. Natal: Edufrn, 2015. p. 78.
140 SPINIELI, A. L. P.; CONTREIRAS, A. F. Direitos Sexuais no Sistema Interamericano de Di-
reitos Humanos: o caso Atala Riffo como expressão da cidadania sexual. Cadernos Eletrônicos Direito

306
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

residente na cidade de Villarica, mãe de três crianças, M., V., e R., que apresentou
petição inicial á Comissão Interamericana de Direitos Humanos em desfavor do
Estado do Chile, na data de 24 de novembro de 2004, alegando violação de seus
direitos no processo de guarda das crianças e o suposto impacto da decisão da Corte
Suprema do Chile em seu projeto de vida pessoal e familiar141.
Para entender tal situação, remete-se a lide ao procedimento de guarda das
crianças, que envolve a senhora Atala e o seu ex-marido, o senhor Ricardo Allendez,
os quais decidiram finalizar seu relacionamento por meio de uma separação de fato,
e a guarda das crianças ficou mantida com a senhora Atala, com regime de visita
semanal ao genitor. Ocorre, que em novembro de 2002, a senhora Atala iniciou uma
convivência afetiva, dentro de sua casa, com uma companheira do mesmo sexo. E,
em janeiro de 2003 o genitor interpôs uma demanda de guarda e tutela perante o
Juizado de Menores de Vilarrica, argumentando que a mãe das crianças não estaria
capacitada para cuidar delas, em razão de sua “nova opção de vida sexual, somada a
convivência lésbica com outra mulher”, e que essa convivência “estava provocando
consequências danosas ao desenvolvimento dessas menores de idade”142.
Outros argumentos trazidos pelo senhor Ricardo Allendez, em sede
do procedimento de guarda das crianças, e imbuídos de preconceito, podem ser
conferidos no seguinte trecho, quando ele profere que “atribuir normalidade na
ordem jurídica a casais do mesmo sexo implicava desnaturalizar o sentido de casal
humano, homem-mulher e, portanto, alterava o sentido natural da família, pois
afetava os valores fundamentais da família como núcleo central da sociedade”143.
Ante o exposto, no decorrer do processo, o Juizado de Menores de
Villarica concedeu a guarda provisória ao genitor, interpretando que as atitudes
da genitora colocaram seus interesses e bem-estar pessoal acima do bem-estar
emocional dos filhos, e que sua convivência com a companheira do mesmo sexo
alterou a normalidade da rotina familiar e o adequado processo de socialização das
filhas.144 Em 29 de outubro de 2003, o Juizado de Menores de Villarica proferiu
sentença de mérito sobre o caso, negando a guarda ao genitor e considerando que
a orientação sexual da senhora Atala não representava impedimento para uma

Internacional sem Fronteiras, v. 3, n. 2, p. e20210202, 13 jul. 2021. p. 3.


141 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas.
Chile. 24 de fevereiro de 2012. p. 4.
142 Ibid., p. 14.
143 Ibid., p. 14.
144 Ibid., p. 16.

307
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

maternidade responsável, não apresentava nenhuma patologia psiquiátrica que a


impedisse de exercer seu papel de mãe, e que não haviam fatos que prejudicassem
o bem-estar dos menores, decorrentes da presença da companheira da mãe na
residência. Levou-se também em consideração a vontade das crianças de retornarem
a morar com a mãe145.
O genitor apelou da sentença e impetrou mandado de segurança
provisório, sendo este último concedido e a guarda mantida com ele. Quanto á
apelação, o Tribunal de Recursos de Temuco confirmou a sentença proferida
pelo Juizado de Menores de Villarica reiterando a decisão de primeira instância
e tornando sem efeito o mandado de segurança146. Em 5 de Abril de 2004, o pai
das crianças apresentou recurso de queixa contra o Tribunal de Temuco, perante a
Corte Suprema do Chile, alegando que os juízes recorridos cometeram falta e abuso
grave e notório por terem privilegiado os direitos da genitora sobre as crianças, por
terem faltado com seu dever legal.147 Em 31 de Maio de 2004, a Corte Suprema do
Chile, por meio de sua quarta câmara, acolheu o recurso de queixa concedendo a
guarda definitiva ao genitor, por três votos a dois.148 A Corte suprema entendeu que
as crianças se encontravam em “situação de risco”, e que seu ambiente excepcional
de convivência com a mãe e a companheira se diferenciava do ambiente de seus
colegas da escola e vizinhos, podendo afetar seu desenvolvimento pessoal149.
Ademais, o caso foi submetido pela CIDH à Corte Interamericana,
alegando que o Estado chileno detém responsabilidade internacional sobre o
tratamento discriminatório e pela interferência arbitrária na vida privada e familiar
da senhora Atala. Nesse sentido, foram apontadas violações do artigo 11 (Proteção
da honra e da dignidade), 17.1 e 17.4 (Proteção da família), 19 (Direitos da criança),
24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e 25.1 e 25.2 (Proteção judicial)
da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento. Outrossim, a
Comissão também solicitou à Corte que fosse deferida a adoção de medidas de
reparação aos danos sofridos pela senhora Atala150.

145 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas.


Chile. 24 de fevereiro de 2012. p. 18.
146 Ibid., p. 20.
147 Ibid., p. 21.
148 Ibid., p. 21.
149 Ibid., p. 21.
150 Ibid., p. 87.

308
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Na data de 24 de fevereiro de 2012, a Corte Interamericana de


Direitos Humanos proferiu a sentença do caso Atala Riffo, reconhecendo, por
unanimidade, a responsabilidade do Estado pela violação dos seguintes direitos
a seguir apresentados: direito à igualdade e à não discriminação, disciplinado no
artigo 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos, estando relacionada ao
artigo 1.1 da Convenção, também se aplicando, concomitante com o artigo 19
(direitos das crianças), às Crianças M. V. e R151.
Também decidiu que o Estado foi responsável pela violação do direito
à vida privada, consagrado no artigo 11.2, pela violação do direito de ser ouvida,
consagrado no artigo 8.1, pela violação da garantia de imparcialidade, também
consagrada no artigo 8.1, no que diz respeito às investigações disciplinares
realizadas em detrimento de Karen Atala Riffo, e, por último, por cinco votos a
favor e um contra, a Corte decidiu que o Estado “não violou a garantia judicial de
imparcialidade, consagrada no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação às
decisões da Corte Suprema de Justiça e do Juizado de Menores de Villarrica”152.
Ademais, por meio do exercício de sua função jurisdicional de supervisão
do cumprimento das decisões153, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
emitiu, no ano de 2013, uma resolução de cumprimento que declarou que o Chile
deu cumprimento total a três medidas de reparação, das cinco propostas, restando
pendentes a prestação de atendimento médico e psicológico gratuito às vítimas que
o solicitarem, bem como dar continuidade a capacitação de funcionários públicos
nos níveis regional e nacional, e em especial aos funcionários do judiciário de todas
as áreas e escalões do poder judiciário154.
No ano de 2017 foi emitida outra resolução de cumprimento, que o
Estado chileno cumpriu integralmente com a medida de reparação relativa
a fornecer, por quatro anos ininterruptos, serviços médicos, psicológicos ou
psiquiátricos às quatro vítimas; no que diz respeito à capacitação, o Chile destacou
alguns cursos oferecidos a funcionários judiciais, bem como parceria firmada entre
o Alto Comissariado das Nações Unidas para os direitos humanos e a Academia

151 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas.


Chile. 24 de fevereiro de 2012. p. 87.
152 Ibid., p. 88.
153 Conforme artigo 68.1 da Convenção Americana, “Os Estados Partes na Convenção comprome-
tem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
154 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório de monitoramento, caso
Atalla Riffo e Filhas vs. Chile (2013).

309
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Judicial, bem como que várias secretarias e ministérios tem realizado atividades de
capacitação de seus funcionários.155 Reconhece também que estas iniciativas ainda
não consistem no efetivo cumprimento da sentença, pois não se configuram como
medidas permanentes que atinjam funcionários públicos a nível regional e nacional,
conforme determinado na sentença. Para tento, em suas considerações finais, a
Corte estabelece que o Chile indique todas as medidas adotadas para cumprir a
reparação que ainda se encontra pendentes156.

4.2 CASO DUQUE VS. COLÔMBIA

No ano de 2014, foi submetido pela Comissão Interamericana de Direitos


Humanos o caso do senhor Angel Alberto Duque contra a República da Colômbia.
Trata-se da exclusão do senhor Duque da possibilidade de recebimento de pensão
por morte de seu companheiro. A petição foi remetida no ano de 2005 à Comissão,
sob as alegações de que a denegatória da pensão se fundamentou na orientação
sexual do falecido e do beneficiário, presumindo-se que o senhor Duque foi vítima
de discriminação em razão de sua orientação sexual, e em razão do conceito de
família adotado pelo Estado colombiano157.
Ressalta-se também a situação de vulnerabilidade que o senhor Duque
passava, tendo e vista que era portador do vírus HIV, assim como seu falecido
companheiro, cuja causa da morte foi influenciada pela existência do vírus.
Ademais, o senhor Duque era dependente economicamente de seu companheiro,
e, sem a pensão por morte, estaria impossibilitado de dar continuidade ao seu
tratamento158.
Tramitando perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
esta alegou que a legislação sobre seguridade social da Colômbia tem viés
estereotipado e restritivo (heterosexista, como vislumbramos acima). Nesse sentido,
a Comissão concluiu pela violação dos direitos de igualdade, à não discriminação, à
integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial, conforme explícitos
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos159.

155 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.


Colômbia. 26 de fevereiro de 2016.
156 Ibid.,
157 Ibid., p. 4.
158 Ibid., p. 8.
159 Ibid., p. 9.

310
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Foram realizadas algumas recomendações pela CIDH, no sentido de


reparar os danos sofridos pelo senhor Duque, para que a ele fosse concedida a
pensão pleiteada, bem como acesso aos serviços de saúde, a capacitação de todos
os servidores da seguridade social para não discriminar as solicitações de pessoas
homossexuais, bem como tramitar as solicitações pendentes, e adotar medidas
estatais necessárias para que as discriminações não se repetissem160.
Em que pese as recomendações proferidas pela CIDH, o Estado
colombiano se manteve inerte em colocá-las em prática, ocasião em que a Comissão
submeteu o caso à Corte IDH em 21 de outubro de 2014. Em sua defesa, o Estado
da Colômbia afirmou que não houve esgotamento dos recursos internos, e também
que a jurisprudência nacional se encontrava a favor do senhor Duque, e que a
sua solicitação seria razoável.161 Ocorre que analisando o caso através do tempo,
verifica-se que o senhor Duque peticionou perante a comissão no ano de 2005,
e a jurisprudência da corte constitucional colombiana reconheceu, apenas entre
2007 e 2008, que os benefícios previstos para as pessoas heterossexuais também se
estendiam às pessoas homossexuais.
Nesse sentido, em 26 de fevereiro de 2016 a Corte Interamericana
de Direitos Humanos profere sua sentença confirmando que foram violados os
direitos a integridade pessoal e a vida, consagrados nos artigos 4.1 (direito à vida)
e 5.1 (respeito à integridade física, psíquica e moral) da Convenção Americana,
concomitantes com o artigo 1, parágrafo 1 (comprometimento dos Estados e
obrigação de respeitar os direitos)162.
Em parágrafo específico, a Corte tratou de fundamentar sua decisão com
base no direito a igualdade e não discriminação.163 Como medidas de reparação, a
Corte decidiu que o senhor Duque teria trâmite prioritário em sua solicitação de
pensão por morte, bem como teria direito a indenização de USD$ 10.000 dólares,

160 RIOS, Roger Raupp et al. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discrimina-
ção contra pessoas LGBTTI: panorama, potencialidade e limites. Revista Direito e Práxis [online].
2017, v. 8, n. 2, p. 1545-1576, Epub Apr-Jun 2017. ISSN 2179-8966. Disponível em: https://doi.
org/10.12957/dep.2017.28033. Acesso em: 10 out. 2021.
161 Ibid., p. 1561.
162 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 53.
163 Ibid., p. 27.

311
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a título de dano imaterial, e que tais medidas deveriam ser comprovadas por meio
de relatório no prazo de um ano164.
No que podemos nos referir ao cumprimento da sentença, por meio
de resolução de cumprimento publicada no ano de 2018, o tribunal entendeu
pelo cumprimento parcial da sentença, tendo em vista que foi implementada a
pensão de sobrevivência ao Sr. Duque, cumprido com dois meses após solicitado,
dentro do prazo estabelecido pela Corte que era de três meses, ficando pendente de
cumprimento os juros moratórios165.
Outrossim, em resolução publicada no ano de 2020, a Corte declarou
que foram pagos todos os juros moratórios referente ao período compreendido
desde o ano de 2002, quando o Sr. Duque apresentou seu requerimento inicial de
pensão. Dessa forma, a Corte Interamericana declarou o presente caso concluído,
em decorrência de o Estado ter cumprido integralmente com todas as medidas de
reparação impostas na sentença166.

4.3 CASO AZUL ROJAS MARÍN E OUTROS VS. PERU

O Caso Azul Rojas Marín contra Peru foi submetido à Corte em 22 de


agosto de 2018, e, de acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
o caso se relaciona à privação de liberdade ilegal, arbitrária e discriminatória sofrida
por Azul Rojas Marín no ano de 2008. A Comissão comprovou que a vítima foi
detida e, posteriormente, submetida a violências físicas e psicológicas. Ademais, a
Comissão considerou que “a natureza e a forma como essa violência foi exercida,
havia uma crueldade especial com a identificação ou percepção de Azul Rojas
Marín, naquele momento, como homem gay”.167 Atualmente, Azul Rojas se
considera mulher168.

164 RIOS, Roger Raupp et al. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discrimina-
ção contra pessoas LGBTTI: panorama, potencialidade e limites. Revista Direito e Práxis [online].
2017, v. 8, n. 2, pp. 1545-1576, Epub Apr-Jun 2017. ISSN 2179-8966. Disponível em: https://doi.
org/10.12957/dep.2017.28033. Acesso em: 10 out. 2021.
165 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório de monitoramento, caso
Duque Vs. Colômbia.
166 Ibid.,
167 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e
Outros. Peru. 12 de março de 2020. p. 4.
168 Ibid., p. 16.

312
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A prisão da Sra. Azul ocorreu na data de 25 de fevereiro de 2008, e,


segundo ela, tentou denunciar a violência sofrida, perante a Delegacia de Casa
Grande, mas o órgão se recusou a receber tal denúncia, ocasião em que ela denunciou
os fatos na mídia169. O Ministério Público peruano, analisando as alegações da
vítima, considerou que elas não se configuraram como tortura, de acordo com
a classificação desse crime à época dos Fatos. Em 29 de fevereiro foi submetido
a um exame médico legal e um perito tratamento psicológico, que constataram
que a vítima possuía lesões traumáticas extragenitais recentes, originadas pela
mão de outra pessoa, fissuras anais “com sinais de um ato não natural recente”.
A perícia psicológica, por sua vez, concluiu que a suposta vítima exigia apoio
psicoterapêutico170.
Além dos atos de violência denunciados, a Comissão também apurou
que a investigação por parte do Estado não foi diligente com o dever de investigar,
resultando em impunidade171. Ademais, a Comissão considerou que o Estado
violou as obrigações de cuidar e proteger a vítima de violência sexual, ainda mais
quando ela possui agravante discriminatório de ser uma pessoa LGBTQIA+.
Nesse sentido, em que pese os fatos terem ocorrido em fevereiro de 2008,
apenas em 2 de abril de 2008, o Ministério Público formalizou uma investigação
preparatória acerca de “crime contra a liberdade sexual na forma de estupro sexual
agravado” e abuso de autoridade contra os três policiais identificados pela vítima,
considerando que havia indícios reveladores da prática dos ilícitos investigados.172
Posteriormente, na data de 9 de janeiro de 2009, o Tribunal Criminal de Investigação
Preparatória da Ascope indeferiu o processo tanto por crimes como contra os três
réus indicados, ordenando seu arquivamento. Em sua fundamentação, o Tribunal
alega a inexistência de credibilidade na versão da vítima, bem como que ela não foi
uniforme em sua declaração sobre os fatos173.
Em 22 de janeiro de 2009, a Sra. Rojas Marín interpôs recurso contra
a resolução proferida anteriormente, e, em 23 de janeiro de 2009, o Tribunal
Criminal de Investigação Preparatória de Ascope declarou tal recurso como
totalmente inadmissível e extemporâneo.

169 ORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e Ou-
tros. Peru. 12 de março de 2020. p. 17.
170 Ibid.,. p. 17.
171 Ibid., p. 57.
172 Ibid., p. 18.
173 Ibid., p. 20.

313
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em que pese tantas denegativas do Estado, em sua defesa perante a Corte


IDH o Estado do Peru argumenta que não houve esgotamento das instâncias
internas para discussão do caso, bem como alegou que a motivação das intervenções
sofridas pela senhora Rojas Marín não foram sua condição como LGBTQIA+,
mas por ela se encontrar em atitudes suspeitas, sem documentos, e com hálito
alcoólico174.
Acerca dos dados sobre violência sofrida pela comunidade LGBTQIA+, a
Corte IDH realizou levantamento, e o citou no teor de sua sentença, que na região
do peru existem vários relatos de violência em decorrência do preconceito contra
identidade de gênero e sexualidade. Cita uma pesquisa realizada pelo Instituto
Nacional de Estatística e Informática, no ano de 2017, onde 62,7% das pessoas
LGBTQIA+ indicaram terem sido vítimas de violência ou discriminação, sendo
17,7% vítimas de violência sexual. Dessas vítimas, apenas 4,4% do número total de
pessoas atacadas ou discriminados relataram o fato às autoridades, sendo que destes
27,5% indicaram ter sido trataram mal e 24,4% indicaram ter sido maltratados no
local onde relataram175.
Diante dos dados alarmantes e das comprovações acerca dos relatos
proferidos pela Sra. Rojas Marín, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
decidiu rejeitar as alegações de não esgotamento dos recursos internos, e condenou
o Estado peruano pela violação dos direitos reconhecidos nos artigos 7.1 (direito a
liberdade e segurança pessoais), 7.2 (privação da liberdade física), 7.3 (detenção e
encarceramento arbitrário) e 7.4 (toda pessoa detida deve ser informada das razões
de sua detenção) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no que se
refere as obrigações de respeitar e garantir esses direitos sem discriminação, em
conformidade com o Art. 1.1(comprometimento dos Estados a respeitar os direitos
estabelecidos na Convenção) do mesmo tratado, e em prejuízo da Sra. Azul Rojas
Marín176.
Outrossim, também reconheceu a responsabilidade do Estado pela
violação dos direitos estabelecidos nos artigos 5.1 (respeito a integridade física,
psíquica e moral), 5.2 (ninguém deve ser submetido à torturas) e 11 (proteção da
honra e da dignidade) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no que
se refere às ao obrigações de respeitar e garantir esses direitos sem discriminação,

174 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e


Outros. Peru. 12 de março de 2020. p. 32 e 33.
175 Ibid., p. 15.
176 Ibid., p. 77.

314
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

consagrados nos artigos 1 e 6 da Convenção Interamericana contra a Tortura, em


prejuízo da Sra. Azul Rojas Marín177.
Por último, reconheceu a responsabilidade do Estado pela violação
dos direitos reconhecidos nos artigos 8.1(direito de ser ouvido) e 25.1 (Proteção
judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às
obrigações respeitar e garantir esses direitos sem discriminação e adotar disposições
de direito interno, consagrado nos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana
para Prevenir e Punir a Tortura, em detrimento da Azul Rojas Marín, bem como
violação do direito consagrado no artigo 5.1 (respeito a integridade física, psíquica
e moral) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo de Juana
Rosa Tanta Marín178.
No que se refere especificamente sobre a igualdade e não discriminação,
a Corte reiterou que a comunidade LGBTQIA+ tem sido historicamente vítimas
de discriminação estrutural, estigmatização, estando sujeitas a diversas formas de
violência e violações de seus direitos fundamentais, e que a identidade de gênero
se configura como categoria protegida pela Convenção Americana de Direitos
Humanos. Asseverou também que a violência contra essas minorias tem um
caráter simbólico, pois as vítimas são escolhidas com um propósito de transmitir
uma mensagem de exclusão e de subordinação179. Ademais, por se tratar de um
julgamento recente, este caso ainda não dispõe da publicação de um relatório de
monitoramento de cumprimento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

4.4 CASO VICKY HERNÁNDEZ E OUTROS VS. HONDURAS

O caso Vicky Hernández foi o primeiro caso de responsabilização de


um Estado pela violência contra uma pessoa transexual. No caso em tela, trata-se
de uma mulher transexual, trabalhadora do sexo e ativista dos direitos humanos,

177 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e


Outros. Peru. 12 de março de 2020. p. 77.
178 Ibid., p. 77
179 DERECHO GLOBAL. Estudios sobre derecho y justicia. Guadalajara: Universidad de Gua-
dalajara, v. 5, n. 15, 2020. Semestral. Sentencias de La Corte Interamericana de Derechos Humanos.
Disponível em: http://www.derechoglobal.cucsh.udg.mx/index.php/DG/issue/view/15. Acesso em:
5 mar. 2022.

315
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

reconhecida por participar do “Colectivo Unidad Cor Rosa”, que defende os


direitos humanos das pessoas trans em Honduras180.
Esse caso foi submetido à Comissão Interamericana em 23 de dezembro
de 2012, por meio da petição de nº 2332-12, apresentada pela Rede Lésbica
CATTRACHAS (Organização Lésbica Feminina de Honduras), pelo Centro de
Direitos Humanos de Mulheres (CDM) e pela Robert F. Kennedy Human Rights,
contra a República de Honduras, acusando o Estado de violação aos direitos
constantes dos artigos 4, 8, 24 e 25 da CADH, em consonância com as obrigações
do artigo 1.1181.
Posteriormente, foi submetido à jurisdição da Corte IDH em 30 de abril
de 2019, e se refere aos fatos ocorridos na madrugada dos dias 28 para 29 de junho
de 2009, na cidade de San Pedro Sula, durante o golpe de estado ocorrido no dia 28
de junho. De acordo com o exposto na sentença, na noite em que ocorreu o golpe
de Estado, foi declarado um toque de recolher e a senhora Vicky Hernández se
encontrava com duas companheiras na rua, quando policiais tentaram prendê-las.
As mulheres conseguiram fugir, e sumiram de vista182.
No dia seguinte, 29 de junho de 2009, o corpo da senhora Vicky
Hernández foi encontrado, tendo como causa aparente de morte uma laceração
cerebral decorrente de perfuração por arma de fogo. Com base nisso, as autoridades
realizaram alguns procedimentos investigativos, vislumbrando determinar a causa
de sua morte, porém, sem nenhum resultado concreto e deixando o autor impune183.
A Comissão Interamericana submeteu o caso a Corte, alegando que
uma das características presentes no homicídio de Vicky Hernández diz respeito
a comunicar uma mensagem de exclusão e de subordinação à comunidade
LGBTQIA+. Ressalta que a violência que é exercida por motivos discriminatórios

180 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentencça. Vicky Hernández y


otros. Honduras. 26 de março de 2021. p. 4.
181 GHISLENI, Pâmela Copetti. Corpo(s) inquieto(s): os direitos sexuais sob a égide do sistema
interamericano de direitos humanos. 2018. 253 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Uni-
versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2018. Disponível em: https://
bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6244/Pâmela%20Copetti%20
Ghisleni.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 9 mar. 2022. p. 201.
182 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y
otros. Honduras. 26 de março de 2021. p. 16.
183 Ibid., p. 16.

316
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

objetiva impedir ou anular o reconhecimento, o gozo e o exercício dos direitos


humanos e liberdades fundamentais da pessoa que é objeto de dita discriminação184.
No que se refere aos tipos de violência que essa comunidade está sujeita,
na sentença do caso Vicky a própria Corte destaca sua manifestação na Opinião
Consultiva OC-24/17, cujo teor explicita que:

Os mecanismos de proteção dos direitos humanos das


Nações Unidas e do Sistema Interamericano têm registrado
atos violentos baseados no preconceito cometidos em todas
as regiões contra pessoas LGBTI. O ACNUDH observou
que este tipo de violência “pode ser física (assassinatos,
espancamentos, sequestros, agressões sexuais) ou psicológica
(ameaças, coerção ou privação arbitrária de liberdade,
incluindo internamento psiquiátrico forçado).

No mais, na data de 26 de março de 2021, a Corte IDH proferiu sentença


concluindo haver provas suficientes para responsabilizar o Estado Hondurenho
pela violação do direito à vida, contida no Artigo 4.1 da Convenção Americana,
relacionando-se com a aplicação dos artigos 1.1, 8 e 25 do mesmo instrumento, em
detrimento da Sra. Vicky Hernández185.
Isto posto, ressalta-se que o Estado reconheceu parcialmente sua
responsabilidade internacional, tendo em vista que suas autoridades não realizaram
investigação aprofundada sobre o assassinato de Vicky Hernandez. Em sua
fundamentação, o Tribunal assevera alguns fatores determinantes para o desfecho
do caso, dentre eles o contexto de discriminação e violência policial em relação
às pessoas LGBTQIA+ e as profissionais do sexo, por isso, a Corte também
responsabilizou o Estado de Honduras pela violação do “dever de garantir o direito
ao reconhecimento da personalidade jurídica, à liberdade, vida pessoal, vida privada,
liberdade de expressão e o nome” com fundamentos jurídicos nos artigos 3 (direito
ao reconhecimento da personalidade jurídica), 7 (direito à liberdade pessoal), 11
(proteção da honra e dignidade), 13 (liberdade de pensamento e de expressão) e 18
(direito ao nome) da Convenção Americana186.

184 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y


otros. Honduras. 26 de março de 2021. p. 19 e 20.
185 Ibid.,
186 Ibid., p. 55.

317
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Foi abordado também o direito a integridade pessoal, contido no


artigo 5.1 (integridade física, psíquica e moral) da Convenção, em prejuízo dos
familiares de Vicky Hernández, devido ao sofrimento causado por sua morte e pela
impunidade em torno das investigações187.
Outro instrumento utilizado para fundamentar a condenação do Estado
de Honduras foi a Convenção Interamericana para Prevenir, punir e erradicar a
violência contra as mulheres188, no qual o Tribunal interpretou o artigo 7 (todos
os estados partes desse acordo condenam as formas de violência contra a mulher),
em conjunto com seus artigos 1 e 9 (levando em conta a origem e as características
socioeconômicas da mulher), destacando-se o artigo 7.b (agir com o devido zelo para
prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher) desse mesmo instrumento,
em prejuízo dos familiares de Vicky Hernández, sob a alegação de que o Estado de
Honduras não investigou devidamente, diligentemente e livre de estereótipos de
gênero, os eventos que levaram ao assassinato de Vicky Hernandez189. Tendo em
vista que se trata de um julgamento ocorrido no ano de 2021, este caso também não
dispõe de relatório de monitoramento de cumprimento pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos.

5 CONCLUSÃO

Analisar a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de


gênero a partir do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos se faz
necessário atualmente, pois os Estados com maiores índices de violência motivada
pelo preconceito e pela intolerância estão entre alguns dos países membros da
Organização dos Estados Americanos.
Foi a partir desse pressuposto que se iniciou o presente estudo. Tomando
como base os marcos normativos do SIPDH, foi possível entender que ele tem
como função reunir os Estados com objetivo de reforçar uma estrutura internacional
e promover os direitos individuais, função essa que tal sistema vem encarando
prontamente, a exemplo da expedição da Convenção Interamericana contra Toda

187 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y


otros. Honduras. 26 de março de 2021. p. 54.
188 OEA. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.
Belém do Pará, 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm.
Acesso em: 22 nov. 2021.
189 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y
otros. Honduras. 26 de março de 2021. p. 55.

318
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Forma de Discriminação e Intolerância que foi publicada antes mesmo de haver


um tratado de mesma disciplina no sistema universal de direitos humanos.
Destaque para tal documento e sua integração com o princípio da
igualdade e não discriminação, e de todo o seu conteúdo fundamentado nas
experiências sociais, na conceituação de discriminação e de intolerância, e nas
ações afirmativas e soluções apresentadas aos Estados ratificantes. Aqui, destaca-se
apenas a necessidade de que mais Estados ratifiquem tal tratado, que até o presente
momento só produz efeitos no México e no Uruguai.
Outra contribuição importante do SIPDH é a Opinião Consultiva de nº
24 proferida pela Corte IDH, que atualiza os ditames da Convenção Americana,
em especial do principal artigo da convenção que é o artigo 1.1, entendendo que
ele deve ser considerado uma norma de caráter geral, e que é obrigação dos Estados
zelar garantir o respeito pelos direitos humanos frente a quaisquer discriminações,
em especial quando se tratar de identidade de gênero ou de sexualidade.
Ademais, outra forma acertada do SIPDH tratar da comunidade
LGBTQIA+ foi a partir da análise de alguns casos concretos, que tinham como
núcleo de sua problemática a identidade de gênero ou a sexualidade das vítimas, e
a prolação de sentenças por parte de seu Tribunal jurisdicional contribuiu para a
consolidação das normativas sobre o tema, em especial quanto a menção constante
e direta ao princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade e
não discriminação.
Nesse sentido, a partir da análise do sistema normativo e das decisões
da Corte IDH sobre a temática, observou-se que o principal problema enfrentado
pelas nações consiste no preconceito institucionalizado e enraizado na sociedade,
que se perpetua institucionalmente na justiça, na política, na concessão de direitos
básicos, e que os indivíduos que pertencem a comunidade LGBTQIA+ se encontram
vulneráveis a esse sistema, muitas vezes são discriminados e marginalizados, e que
tal diagnóstico se consubstancia na inércia dos Estados em investigar os crimes
cometidos em seus territórios.
Ainda diante dos casos analisados, os principais expoentes normativos
identificados, tomando como base a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, foram os artigos 4.1, no que concerne ao direito à vida; 5.1 que diz
respeito à integridade física, psíquica e moral; 24, que trata acerca da Igualdade
perante a lei; o artigo 11, que versa sobre a proteção da honra e da dignidade, e
seus derivados que tratam do direito à vida privada; também direitos inerentes

319
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

às garantias judiciais (artigo 8.1, artigo 25.1 e 25.2 da Convenção Americana);


direitos que envolvem as famílias das vítimas (artigo 17) e direitos das crianças
(artigo 19).
Ante a análise da contribuição do Sistema Interamericano de Proteção
aos Direitos Humanos, percebe-se que seu primeiro passo paradigmático consiste
em reconhecer a violência em detrimento da identidade de gênero e orientação
sexual como problemática legítima, preocupante e inerente a todos os países; seu
posicionamento leva em conta o pluralismo social e o respeito a diversidade, e
a Corte é capaz de enfrentar tais desafios utilizando-se de seus instrumentos
institucionais, dentro dos limites impostos pela própria vontade dos Estados Partes.
O estudo dos casos também comprova que existe uma carência de ações
afirmativas específicas dos Estados para averiguar e combater as discriminações
diretas, indiretas, a intolerância e a violência contra a população LGBTQIA+,
e ascende a oportunidade para ques Estados como o Peru, que não realizavam
pesquisas que verificassem as origens sociais dessas violências, pudesse refletir e
implementar ações, conforme foi identificado pelo Tribunal e convertido em
diligência. Assim, as condenações da Corte figuram como reais paradigmas para
que outros Estados invistam em políticas públicas e retirem as pessoas LGBTQIA+
da invisibilidade e da marginalidade.

320
REFERÊNCIAS

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324
A tutela do meio ambiente no sistema interamericano de direitos
humanos: da proteção reflexa à proteção autônoma da natureza
na opinião consultiva nº 23/2017

Thayana Bosi Oliveira Ribeiro1


Ricardo Vinhaes Maluf Cavalcante2

1 INTRODUÇÃO

Atravessamos tempos de profundas mudanças socioecológicas com o


convencimento cada vez maior de que já foram ultrapassados limites planetários,
que foram afetadas as condições de vida e resiliência para qualquer organismo
vivo na Terra, e que a responsabilidade por tais transformações recai sobre as
ações humanas, sobre as relações insustentáveis do capital-natureza3. Svampa4
expressa sua percepção de que os meticulosos e alarmantes informes do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (International Panel on Climate

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do


Maranhão – UFMA, em regime de cotutela com a Universidade de Coimbra – UC. Mestra em
Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da UFMA.
Bolsista CNPq. E-mail: thayana_bosi@hotmail.com.
2 Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito e Instituições
do Sistema de Justiça da UFMA. Graduado em direito pela UFMA. Integrante do Núcleo de Pesquisa
em Direito e Diversidade - NUPEDD. E-mail: ricardovmc@hotmail.com.
3 SVAMPA, Maristella. VIALE, Enrique. El colapso ecólogico ya llegó. Buenos Aires: Siglo Veintiuno
Editores, 2020. ROCKSTRÖM, Johan, et al. A safe operating space for humanity. Nature. v. 461,
2009. ISSBERNER, Liz-Rejane; LÉNA, Philippe. Antropoceno: os desafios essenciais do debate cien-
tífico. O correio da Unesco. n. 2. abr./jun. 2018.
4 Ibid.

325
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Change – IPCC) aparentam ser, na verdade, demasiado conservadores no que diz


respeito à velocidade com que vêm ocorrendo as mudanças climáticas.
Faz-se a ressalva de que, como explicitado por diversos autores como
Dona Haraway5, nem toda a humanidade é responsável pelo colapso socioambiental
vivenciado. Há outras formas de viver, de estar no mundo e se relacionar com
a natureza que são baseadas no cuidado, no sentido de compartilhamento e de
futuro em comum, como, por exemplo, os modos de vida dos povos indígenas e
comunidades tradicionais que têm conhecimentos ancestrais, relações harmoniosas
e sustentáveis com seus territórios, com os não humanos.
Nota-se, nesse contexto, que a proteção ambiental disciplinada tanto nos
instrumentos jurídicos internacionais, quanto nos nacionais, vem sendo repensada,
“reescrita” – ainda para fazer frente às posturas negacionistas do colapso ambiental
que são tomadas por alguns governos, como é o caso brasileiro6. Há preocupação
e urgência em se questionar e rever as bases, conteúdo e efetividade do direito
ambiental que em seus 50 anos de existência – contados a partir da Conferência de
Estocolmo de 1972, que foi o primeiro grande evento internacional nessa seara –
não foi capaz de frear a destruição dos ecossistemas, espécies biológicas e territórios
tradicionais, e evitar os resultados que são enfrentados contemporaneamente e
previstos para o futuro7.
Uma das mais importantes inovações no âmbito do direito ambiental
advém dos países da América Latina e Caribe e diz respeito ao reconhecimento da
personalidade jurídica da natureza e seus componentes. O Equador, como ilustração
e referência da emergência de novas abordagens do direito ambiental, foi o primeiro
país a reconhecer expressamente na sua Constituição de 2008 a natureza como
sujeito de direitos, a sua proteção de forma autônoma, dando luz ao que se chama
de “giro biocêntrico do direito”. Reconhecimento este que provêm da incorporação
constitucional do Buen Vivir e Vivir Bien, da noção da natureza como Madre Tierra,
da manutenção do equilíbrio, do respeito e da ideia de interdependência entre tudo

5 HARAWAY, Donna. Anthropocene, Capitaloceno, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin.


Environmental Humanities, v. 6, 2015.
6 OBSERVÁTORIO DO CLIMA. “Passando a Boiada”: o segundo ano de desmonte ambiental sob
Jair Bolsonaro. Janeiro de 2021.
7 SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Do direito constitucional ambiental ao di-
reito constitucional ecológico. Revista Consultor Jurídico, 2019. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2019-ago-30/direito-constitucional-ambiental-direitoconstitucional-ecologico Acesso em: 20
ago. 2019. FARRIER, David. Pegadas: em busca dos fósseis futuros. Edição Ensinore: Portugal, 2020.

326
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

que vive, dentre outras filosofias dos povos indígenas andinos8. No corrente ano
de 2022, o Chile se tornará o segundo país a incluir em sua nova Constituição os
direitos da natureza – o texto do possível artigo 9º expressa que indivíduos e povos
são interdependentes da natureza e formam, com ela, um todo inseparável; há a
previsão de que a redação da nova Constituição chilena será finalizada dentro de
alguns meses9.
Salienta-se também que outros Estados do Sul Global, tal qual a Bolívia
e a Colômbia, vêm tomando a dianteira na consolidação dos direitos da natureza,
aquela com a formulação de leis infraconstitucionais a partir de 2010, e esta
através de decisões judiciais da Corte Constitucional Colombiana, sendo as mais
conhecidas a de 2016 sobre a proteção do Rio Atrato e a de 2018 sobre a proteção
da Amazônia10. O Panamá, por sua vez, mais recentemente, em março de 2022,
sancionou lei infraconstitucional que reconhece os direitos da natureza de existir,
persistir e se regenerar. Ressalta-se que, aliás, de acordo com as Nações Unidas, pelo
menos trinta e sete países já incorporaram de alguma maneira, em nível oficial e
institucional, a proteção da natureza de forma autônoma11.
Assim, o presente artigo científico pretende analisar, especificamente,
a evolução da tutela ambiental exercida pelo Sistema Interamericano de Direitos
Humanos – SIDH, da Organização dos Estados Americanos – OEA, que tem
influência direta nos Estados americanos que são signatários dos seus instrumentos
normativos e têm que observar e aplicar a Declaração Americana dos Direitos e

8 MAMANI, Fernando Huanacumi. Vivir Bien/Buen Vivir: filosofía, políticas, estratégias y experiên-
cias regionales. CAB, 2010.
9 ACOSTA, Alberto. O Chile reconhece os direitos da Natureza. Latinoamérica21. Disponível em: ht-
tps://latinoamerica21.com/br/o-chile-reconhece-os-direitos-da-natureza/. Acesso em: 20 mar. 2022.
10 A Constituição da Bolívia de 2009, apesar de não prever expressamente a natureza como sujeito de
direitos, traz em seu preâmbulo que o Estado assume e promove princípios éticos e morais, incluindo
o Vivir Bien. O país desenvolveu também uma série de leis infraconstitucionais que reconhecem a
Terra como ser vivo com o qual o ser humano tem uma relação indivisível (Declaração Universal dos
Direitos da Mãe Terra de 2010; Lei nº 71 de 2010, chamada Lei de Direitos da Mãe Terra; e Lei nº
300 de 2012). A Colômbia, por sua vez, não disciplinou em sua Constituição ou em leis infracons-
titucionais a natureza enquanto sujeito de direitos, mas a Corte Constitucional Colombiana vem
inovando, apresentando decisões em que faz tal reconhecimento, com destaque para as sentenças que
definiram que o Rio Atrato e a Amazônia Colombiana contam com proteção de maneira autônoma.
11 SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Do direito constitucional ambiental ao di-
reito constitucional ecológico. Revista Consultor Jurídico, 2019. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2019-ago-30/direito-constitucional-ambiental-direitoconstitucional-ecologico Acesso em: 20
ago. 2019. ACOSTA, Op. Cit.

327
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Deveres do Homem (1948), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou


Pacto de San José da Costa Rica – CADH (1969), seus Protocolos e Convenções
adicionais – com destaque para a Declaração Americana sobre os Direitos dos
Povos Indígenas (2016) –, as decisões tomadas pela própria Corte Interamericana
de Direitos Humanos – a Corte IDH e pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos – CIDH que são decisões que têm força mesmo em outros Estados
Americanos que não os envolvidos.
Identifica-se que mais recentemente a Opinião Consultiva n. 23 de 2017
da Corte IDH tem chamado atenção tanto no campo legislativo internacional,
quanto nos ordenamentos nacionais, como uma possível virada biocêntrica no SIDH.
Dessa maneira, questiona-se diante do cenário esboçado, de colapso socioambiental
e da formulação de novas respostas jurídicas, como a tutela ambiental vem sendo
exercida pelo Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos – SIDH,
que vincula e orienta os países Americanos, e quais as implicações, especialmente,
da Opinião Consultiva n.23 de 2017?
Explica-se que o artigo foi dividido da seguinte forma: no primeiro tópico
é analisada como é tratada a matéria da proteção ambiental no SIDH; no segundo
tópico são levantadas algumas decisões da Corte e da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e o aporte dado em matéria ambiental até então; já no último
tópico são analisadas as implicações da Opinião Consultiva n. 23 de 2017. Aclara-
se, por fim, que a pesquisa desenvolvida na elaboração deste artigo científico é
qualitativa, envolvendo o levantamento, leitura e discussão de bibliografia,
documentos e jurisprudências pertinentes ao objeto e ao problema da pesquisa.

2 A PROTEÇÃO AMBIENTAL REFLEXA NO SIDH

Cançado Trindade12 considera que os instrumentos globais e regionais


sobre direitos humanos têm se inspirado em uma fonte comum que é a Declaração
Universal de Direitos Humanos da ONU (1948) – referências expressas a essa
Declaração são encontradas nas Convenções de Direitos Humanos das Nações
Unidas e também nos Sistemas Regionais de Proteção de Direitos Humanos, como
nas Convenções Europeia (1950) e Americana (1969) – e que a multiplicação de
instrumentos internacionais, gerais e específicos, que operam no plano global e

12 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no


limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: Se-
minário a proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil, 1999, Brasília, DF. Anais […]
Brasília - DF; STJ, 1999.

328
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

regional, se complementam com o propósito de ampliar e garantir uma proteção


eficaz, ultrapassando o foco na delimitação de competências.
O autor13 tem o cuidado de pontuar que não se deve confundir a
complementariedade e universalidade dos direitos humanos com a uniformidade
total e que, na verdade, há o enriquecimento pelas particularidades regionais. “Cada
sistema regional vive seu próprio momento histórico. […] Cada Sistema regional
funciona, pois, em seu próprio ritmo, e, atento à realidade de seu continente, segue
sua própria trajetória histórica”. Assim, qualquer prognóstico, incluindo de futuro
dos sistemas regionais, deve partir da experiência acumulada nos últimos anos.
É nesse sentido, tendo em vista o momento atual de desgaste ambiental e
o esforço de promover as ações necessárias para manter as condições de vida digna
para todos os seres no planeta, que o presente artigo científico se coloca no objetivo
de entender qual a experiência, a evolução da tutela ambiental exercida pelo
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Busca-se investigar que
posicionamentos têm sido adotados contemporaneamente e qual a sua implicância,
especialmente, aos países da América Latina e Caribe.
Inicia-se explicando que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
– CADH, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que data
de 1969, regulamenta o funcionamento da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos – CIDH, órgão consultivo, e cria a Corte Interamericana de Direitos
Humanos – Corte IDH, órgão contencioso do Sistema Regional Interamericano
de Proteção de Direitos Humanos. A Corte IDH é responsável pela análise das
ações de responsabilidade internacional apresentadas ou pelos Estados-partes ou
pela Comissão Interamericana, esta última baseada em queixas individuais, contra
Estados que tenham violado dispositivos da Convenção Americana – nos termos
dos arts. 44, 46 e 47 da Convenção.
Observa-se que precisamente nas décadas de 60 e 70, enquanto a OEA
estabelecia seus mecanismos regionais de proteção dos direitos humanos, vinha
sendo solidificada na esfera internacional, e nas internas dos países, um novo olhar
para os problemas ambientais enquanto questões públicas e emergia o direito
ambiental. Destaca-se que a partir das Conferências das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente que foram realizadas em 1972 na cidade de Estocolmo, conhecida como

13 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no


limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: Se-
minário a proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil, 1999, Brasília, DF. Anais […]
Brasília- DF; STJ, 1999. p. 33-34.

329
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Conferência de Estocolmo, e em 1992 na cidade do Rio de Janeiro, conhecida como


Rio 92 ou Cúpula da Terra, foram impulsionadas a consciência da limitação dos
recursos naturais perante as necessidades humanas aparentemente ilimitadas, dos
danos ambientais ocasionados pelas ações humanas e da necessidade de enfrentar
tais problemas. Através de tais Conferências foi inserido o meio ambiente sadio no
rol dos direitos fundamentais14.
Contudo, nem a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem
(1948), nem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH (1969),
que são as bases do SIDH, possuem direitos de cunho ambiental expressamente
em seus textos. Observa-se que essa ausência no texto normativo do SIDH não
resultou na total abstenção da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos
Humanos para tratar da proteção ambiental. A CIDH e a Corte IDH vêm, na
prática, posicionando-se sobre as questões ambientais, interrelacionando-as aos
direitos humanos expressamente reconhecidos, tecendo, dessa maneira, o que se
convencionou chamar na doutrina de proteção reflexa ou indireta ambiental, como
se verá15.
Sublinha-se que o mesmo sucedeu, por exemplo, na Convenção Europeia
de Direitos Humanos, em que a inexistência de referências expressas ao direito
ambiental não impediu, desde a década de 90, o desenvolvimento da jurisprudência
que consiste em uma proteção reflexa, indireta, vinculando temas ambientais a
outros dispositivos como os direitos à vida, à informação, ou as garantias judiciais16.
Vem sendo adotada, nessa medida, “técnica que permite tutelar o meio ambiente

14 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015. LOPES, José Sérgio Leite (coord.). Ambientalização dos conflitos sociais: participação e controle
público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Politica/
UFRJ, 2004.
15 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015. GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura. Opinião consulti-
va 23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do meio ambiente
no direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020.
16 GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura. Opinião consultiva
23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do meio ambiente no
direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020.

330
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nos sistemas regionais de proteção que, a priori, não contam com proteção específica
sobre essa temática”17.
Frisa-se que o SIDH passou a contar, particularmente, com o Protocolo
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ou Protocolo de San Salvador (1988), que
reconhece expressamente no art. 11 o direito humano ao meio ambiente saudável.
O art. 1º, no entanto, dispõe que a obrigação de adotar os direitos reconhecidos
no protocolo terá implementação progressiva e limitada até o máximo de recursos
disponíveis e de acordo com o grau de desenvolvimento de cada Estado. Já o art.
19, parágrafo sexto, desse mesmo Protocolo restringe o âmbito de aplicação do
mecanismo de peticionamento individual ao direito sindical dos trabalhadores,
bem como ao direito à educação, não se aplicando ao direito ao meio ambiente.
Vale ressaltar que em 1993 a Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos, realizada em Viena, afirmou que todos os direitos humanos são
universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados, corroborando
assim, em conjunto com a Conferência de Estocolmo e do Rio acima citadas, a
interconexão das temáticas ambientais aos mecanismos de proteção dos direitos
humanos.
Especificamente quanto ao Protocolo de San Salvador faz-se a observação
de que o principal objetivo da Organização dos Estados Americanos - OEA, ao
formulá-lo, foi de positivar direitos em forma de programa, considerando que “a
efetividade dos mesmos está estritamente vinculada ao grau de desenvolvimento
econômico de cada Estado, negando, portanto, a competência da Corte
Interamericana de condenar um Estado pela ausência de efetividade desses
direitos”18.
Foi esboçado, assim, a compreensão – pelo Protocolo de San Salvador
conferir ao direito ao meio ambiente a limitação de serem exigidos apenas até o
limite da progressividade, desenvolvimento e recursos disponíveis em cada Estado;
pelos arts. 44, 45 e 46 da CADH disciplinarem sobre a possibilidade de qualquer

17 Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71, 2015.


LOPES, José Sérgio Leite (coord.). Ambientalização dos conflitos sociais: participação e controle pú-
blico da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Politica/
UFRJ, 2004. p. 204.
18 LOPES, Ana Maria D’Ávila. MARQUES, Lucas Vieira Barjud. Proteção indireta do direito ao
meio ambiente na jurisprudência das cortes europeia e interamericana de direitos humanos. Revista
Brasileira de Direito Animal, v. 14, n. 01, 2019, p. 59.

331
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

pessoa, grupo de pessoas, ou entidade não-governamental apresentar à CIDH


petições que contenham denúncias ou queixas, especificamente, de violação da
Convenção Americana por um Estado Parte; e através da observação do que vem
ocorrendo da prática, nas resoluções e jurisprudências da Corte IDH e da CIDH,
acumuladas ao longo do tempo –, de que para a Comissão e a Corte Interamericana
poderem analisar questões relativas às violações do art. 11 do Protocolo de San
Salvador, ao direito ao meio ambiente sadio, é necessária a demonstração de que
os danos ambientais implicam em ou se relacionam com a afronta a dispositivos
expressos da CADH. Quando não existe essa vinculação do dano ambiental à
afronta à Convenção Americana, é considerada a inadmissibilidade da petição19.
Em resumo, pode-se dizer que até então a proteção ambiental no sistema
interamericano é reflexa e indireta, que é:

[…] exercida por ricochete aos dispositivos da Convenção


Americana. Surge do exercício de escrever verde por linhas
tortas, ou seja, não da preocupação ambiental em si, mas
da pragmática necessidade de se proteger dispositivos da
Declaração e da Convenção Americanas, como, por exemplo,
os relacionados às garantias judiciais (art. 8.1), à liberdade
de religião (art. 12) e de expressão (art. 13), ou, até mesmo,
ao direito de propriedade (art. 21), senão também aos
dispositivos referentes aos requisitos de admissibilidade de
um caso ao sistema interamericano (arts. 46 e 47)20.

Com fundamento nesse panorama que Mazzuoli e Teixeira21 passam a


afirmar que houve um greening nos sistemas de proteção dos direitos humanos:
no caso do SIDH, foi por meio do Protocolo Adicional de San Salvador que foi
inserido dispositivo que trata expressamente do direito ao meio ambiente sadio,
ademais do exercício da Corte IDH e da CIDH que desenvolveram jurisprudências

19 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015; GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura. Opinião consulti-
va 23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do meio ambiente
no direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020.
20 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015. p. 216.
21 Ibid.,

332
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e resoluções com a proteção reflexa, indireta; já no caso da Convenção Europeia de


Direitos Humanos (1950), como outro exemplo, apesar da ausência de dispositivos
que fazem referência à matéria ambiental, também é exercida a proteção reflexa pela
Corte Europeia.
Acrescenta-se que a proteção reflexa ou indireta de direitos exercida
pelos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos têm ainda algumas
bases conceituais que são: ser instrumento de realização da principal finalidade das
normas jurídicas, que é, na órbita dos direitos humanos, a proteção da dignidade
humana que ganha cada vez mais importância e vem sendo constantemente
ampliada diante das alterações sociais; deve se ter em mente também seu mecanismo
de interpretação utilizado pelos tribunais, que é estender o conceito de direitos
humanos que são reconhecidos expressamente com fundamento na indivisibilidade,
interdependência e inter-relação nos moldes da Conferência de Viena; trata-se
de um sistema permeável, pois se visualiza um grau de abertura da Convenção,
incorporando novas violações da dignidade humana que vão faticamente surgindo,
entre outros22.
Nessas condições, identifica-se que o processo de greening pelo qual a
Corte IDH e a CIDH têm passado envolve a análise de casos específicos, inerentes
às particularidades dos países da América Latina e Caribe, diferentes dos casos que
são analisados pela Corte Europeia, por exemplo. No SIDH a grande maioria dos
casos que são interconectados à temática ambiental, onde há a proteção reflexa ou
indireta, decorrem da “constante utilização de áreas de florestas e de zonas rurais
para o atendimento de demandas dos grandes centros urbanos por bens e serviços
que variam do fornecimento de matérias-primas, alimentos, água e combustível, até
o uso de áreas para depósitos de lixo”23. São casos que envolvem os povos indígenas
e comunidades tradicionais latino-americanos e caribenhos que são os grupos mais
vulneráveis à expansão econômica, à mudança do uso das terras e territórios24.

22 LOPES, Ana Maria D’Ávila. MARQUES, Lucas Vieira Barjud. Proteção indireta do direito ao
meio ambiente na jurisprudência das cortes europeia e interamericana de direitos humanos. Revista
Brasileira de Direito Animal, v. 14, n. 01, 2019.
23 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015. p. 210-211.
24 GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura. Opinião consultiva
23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do meio ambiente no
direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020.

333
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3 DECISÕES DA CIDH E DA CORTE IDH RELATIVAS À PROTEÇÃO


AMBIENTAL

O Relatório da Secretária-geral da Organização dos Estados Americanos


sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente de 2002 apontou que o primeiro caso
que envolveu a temática ambiental analisado pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos – CIDH corresponde à Resolução nº 12/85 do Povo Yanomami
versus Brasil, que tratava da construção de uma rodovia no território amazônico
habitado pela etnia Yanomami e a violação de seus direitos à vida, à saúde, à
liberdade, à segurança e ao direito de residência. Já o primeiro caso que envolveu
a temática ambiental analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos –
Corte IDH foi o caso Comunidade Indígena Awas Tingni Mayagna (Sumo) versus
Nicarágua que versava sobre a concessão irregular de exploração madeireira em
terras indígenas.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, após o
caso do Povo Yanomami versus Brasil, analisou ainda outros oito casos que foram
interligados à proteção ambiental. Entre esses oito casos, apenas dois não tinham
relação com questões enfrentadas por povos indígenas e comunidades tradicionais
– o Informe n. 84/03 sobre o Parque Natural Metropolitano do Panamá que
tratava dos danos causados à população pela construção de uma estrada em uma
reserva ambiental, e sobre a Comunidade de La Oroya versus Peru que tratava da
poluição atmosférica provocada por um complexo metalúrgico em uma cidade com
aproximadamente três mil habitantes.
Três casos, um no Chile, um no Panamá e um no Brasil, são relativamente
similares, versando acerca da construção de hidrelétricas, ou concessão de terras para
exploração madeireira, em territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais
sem a consulta e o consentimento prévio, livre e informado desses grupos afetados,
e consequentes violações, dessa forma, à proteção à vida, à dignidade da pessoa
humana e à tutela judicial efetiva prevista na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos – o Informe n. 84/03 sobre o Parque Natural Metropolitano do Panamá,
que tratava dos danos causados à população pela construção de uma estrada em
uma reserva ambiental, e o caso sobre a Comunidade de La Oroya versus Peru, que
tratava da poluição atmosférica provocada por um complexo metalúrgico em uma
cidade com aproximadamente três mil habitantes.
Já a Corte IDH, após o caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni
versus Nicarágua, analisou outros seis casos que abarcaram questões ambientais.

334
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Apenas um desses casos não dizia respeito às violações de direitos sofridas por povos
indígenas e comunidades tradicionais – que é o caso Claude Reyes e outros versus
Chile relativo à negativa do Estado do Chile em fornecer dados de um projeto
que desflorestava à três cidadãos chilenos. Quatro desses casos eram relativos aos
impactos decorrentes da não demarcação de terras indígenas e quilombolas no
Paraguai e no Suriname – Moiwana versus Suriname; Comunidade Indígena Yakye
Axa versus Paraguai; Comunidade Indígena Sawhoyamaxa versus Paraguai; Povo
Saramaka versus Suriname. O último caso envolve a concessão estatal de terras
indígenas para a exploração de petróleo sem a consulta prévia, livre e informada –
Povo indígena Kichwa de Sarayacu e seus membros versus Equador.
Percebe-se, de um modo geral, que a CIDH e a Corte IDH têm
reconhecido a concepção e a relação dos povos indígenas e comunidades tradicionais
com a propriedade, assegurando a sua garantia às terras, à natureza, à manutenção
de suas identidades culturais, de seus costumes e modos de vida. Têm consolidado o
entendimento do direito à propriedade previsto no art. 21 da Convenção Americana
para além da perspectiva mercadológica, para além do direito de alienação, do usar,
gozar e dispor, abrangendo os elementos que compõem a propriedade comunal dos
povos indígenas e comunidades tradicionais25.
A CIDH e a Corte IDH, levando em conta a perspectiva de propriedade
dos povos indígenas e comunidades tradicionais – a sua ligação com a natureza e a
importância dos seus territórios e elementos naturais para a continuidade de seus
hábitos e modos de vida – exercem a interpretação e a aplicação ampla dos direitos
positivados para que respaldem as necessidades fáticas analisadas nos casos, tal qual
comentam Lopes e Marques26. No caso Yakye Axa versus Paraguai, citado acima,
por exemplo, a Corte fortalece o entendimento de que o direito à vida “não se
restringe ao direito de sobrevivência em si, mas se estende à promoção de uma vida
com dignidade, exercida de forma plena com o acesso aos benefícios da cultura, à
saúde, alimentação, educação e ao meio ambiente sadio”27.

25 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015.
26 LOPES, Ana Maria D’Ávila. MARQUES, Lucas Vieira Barjud. Proteção indireta do direito ao
meio ambiente na jurisprudência das cortes europeia e interamericana de direitos humanos. Revista
Brasileira de Direito Animal, v. 14, n. 01, 2019.
27 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015. p. 214.

335
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Reitera-se ademais, diante da jurisprudência acima anotada, que nesse


período até 2016, a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
estabeleceram a proteção ambiental por via transversa, havendo o que se chamou
de processo de greening, tratando da questão ambiental interrelacionando-a
a outros direitos expressamente previstos na Convenção Americana, e que
os casos envolviam, em sua maioria, violações sofridas por povos indígenas e
comunidades tradicionais. Não se pode deixar de apontar que a Corte e a Comissão
Interamericana apresentam posicionamentos, processo de greening e evolução da
tutela ambiental exercida, construídos, como esboça Cançado Trindade28, em meio
às particularidades dos países americanos, “a partir da constante análise de casos
que dificilmente seriam abordados de forma rotineira em um sistema de proteção
não inserido nas especificidades regionais das Américas”29.
O SIDH, segundo elementos, características e práticas jurisprudenciais
aqui expostas e analisadas, – com a interpretação dos direitos de forma ampla em
face da real promoção da proteção humana perante as constantes alterações sociais;
sendo um sistema permeável, ou seja, com um grau de abertura para incorporar
novas violações que vão faticamente surgindo; com a extensão dos direitos com
base também na indivisibilidade, interdependência e inter-relação; com a estratégia
adotada da proteção ambiental reflexa ou indireta, por exemplo, para não deixar as
violações ambientais fora do alcance da atuação do SIDH; e em correspondência às
preocupações crescentes na seara ambiental e ao reconhecimento da sua importância
enquanto direito humano, entre outros – apresenta, quanto à proteção ambiental,
uma trajetória específica e atinente ao momento histórico, aos problemas e
posicionamentos dos seus Estados Membros, especialmente dos latino-americanos,
caribenhos e seus grupos vulneráveis. No estudo da experiência acumulada
e das perspectivas para o futuro desse sistema deve ser levado em consideração,
especialmente, as mudanças de paradigma que vêm sendo protagonizadas pelos
países do Sul em suas respostas ao colapso socioambiental enfrentado, as lutas dos
povos indígenas e comunidades tradicionais30.

28 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no


limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: Se-
minário a proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil, 1999, Brasília, DF. Anais […]
Brasília- DF; STJ, 1999.
29 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio
ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71,
2015. p. 213.
30 LOPES, Ana Maria D’Ávila. MARQUES, Lucas Vieira Barjud. Proteção indireta do direito ao
meio ambiente na jurisprudência das cortes europeia e interamericana de direitos humanos. Revista

336
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Compete esclarecer, por último, que a Corte IDH, além da função


contenciosa, conta ainda com uma função consultiva. Conforme o artigo 64 da
Convenção Americana de Direitos Humanos, os Estados Membros da OEA,
que tenham ou não ratificado a Convenção, podem consultar a Corte sobre a
interpretação de dispositivos da própria Convenção ou tratados concernentes à
proteção de direitos humanos nos Estados Americanos. É permitido à Corte, ainda,
emitir pareceres, tendo sido consultada ou não, sobre a compatibilidade de leis
internas à própria Convenção Americana ou à tratados concernentes à proteção
de direitos humanos nos Estados Americanos. Pode-se afirmar que a Corte IDH
mantém, assim, uma competência consultiva relativamente ampla. Assevera-se que
os seus pareceres, apesar de não contarem com força vinculante, declaram o direito
internacional e garantem, de tal forma, uma maior certeza jurídica31.
Em meio à referida função consultiva da Corte IDH, indica-se que
especialmente a Opinião Consultiva n. 23 de 15 de novembro de 2017 tem obtido
grande repercussão podendo representar uma “virada biocêntrica”, uma mudança de
paradigma no SIDH. Essa solicitação de consulta à Corte, em questão, foi realizada
pelo Estado da Colômbia em 14 de março de 2016. Deve-se contextualizar que
a Corte Constitucional da Colômbia – CCC tem sido um importante vetor, nos
últimos anos, para o desenvolvimento global do direito ambiental, para a adoção
de medidas jurídicas inovadoras, perante o colapso socioambiental enfrentado e
ao veredicto de insuficiência do direito ambiental dos anos 70. As suas sentenças
que reconhecem o valor intrínseco do Rio Atrato e sobre a Amazônia Colombiana,
principalmente, oferecem um modelo que pode enriquecer e influenciar os aportes
ambientais de diversos países32.

Brasileira de Direito Animal, v. 14, n. 01, 2019; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. TEXEIRA, Gus-
tavo de Faria Moreira. Tutela jurídica do meio ambiente na jurisprudência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos. Persona y Derecho, v. 71, 2015; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no limiar do novo século: recomendações para o
fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: Seminário a proteção internacional dos direitos
humanos e o brasil, 1999, Brasília, DF. Anais […] Brasília- DF; STJ, 1999.
31 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no
limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In:
Seminário a proteção internacional dos direitos humanos e o brasil, 1999, Brasília, DF. Anais […]
Brasília- DF; STJ, 1999. GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura.
Opinião consultiva 23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do
meio ambiente no direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020.
32 FERIA-TINTA, Monica; MILNES, Simon C. International Environmental Law for the 21 Cen-
tury: The Constitutionalization of the Tight to a Healthy Environment in the Inter-american Court
of Human Rights Advisory Opinion 23. ACDI, Bogotá, v. 12, 2019.

337
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Pode-se dizer que a Opinião Consultiva n. 23 de 2017, assim,


acompanha o aporte da Colômbia e representa o desenvolvimento progressivo que
vem se observando do direito ambiental tanto no âmbito internacional quanto
nos ordenamentos internos de alguns Estados latino-americanos e caribenhos –
como já citado, na própria Colômbia, no Equador, na Bolívia, e mais recentemente
também no Panamá, e como se anuncia que acontecerá no Chile com o advento da
nova Constituição Chilena33.

4 IMPLICAÇÕES DA OPINIÃO CONSULTIVA N. 23/2017 DA CORTE


IDH

Nos últimos anos, Estados Membros têm recorrido com frequência à


função consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como mecanismo
para fortalecer o acervo jurídico interamericano em determinados assuntos.
A Colômbia, especificamente, depois de décadas sem recorrer à referida função
da Corte, realizou três solicitações de consultas entre os anos de 2016 e 201934.
Uma dessas solicitações, realizada em 2016, resultou na Opinião Consultiva n.
23 de 2017, que, como comentado, tem apresentado grande repercussão e pode
representar uma grande virada no tocante à tutela ambiental exercida pelo SIDH,
e será a seguir analisada.
Feria-Tinta e Milnes35, acreditam que a opinião consultiva n. 23/2017,
na verdade, talvez seja o mais significativo posicionamento sobre questões
ambientais de qualquer tribunal internacional e constitui um verdadeiro marco de
reorientação do direito ambiental internacional como um todo. Os autores36 ainda

33 COSTA, Alberto. O Chile reconhece os direitos da Natureza. Latinoamérica21. Disponível em:


https://latinoamerica21.com/br/o-chile-reconhece-os-direitos-da-natureza/. Acesso em: 20 mar.
2022. BUITRAGO, Andrés Ordóñez. La Opinión Consultiva OC-23/17 sobre medio ambiente y
derechos humanos: aporte de Colombia y la Corte IDH al desarrollo progresivo del derecho interna-
cional. ORBIS – Revista de la Asociación Diplomática de Colombia. n. 24, 2020.
34 BUITRAGO, Andrés Ordóñez. La Opinión Consultiva OC-23/17 sobre medio ambiente y dere-
chos humanos: aporte de Colombia y la Corte IDH al desarrollo progresivo del derecho internacio-
nal. ORBIS – Revista de la Asociación Diplomática de Colombia. n. 24, 2020.
35 FERIA-TINTA, Monica; MILNES, Simon C. International Environmental Law for the 21 Cen-
tury: The Constitutionalization of the Tight to a Healthy Environment in the Inter-american Court
of Human Rights Advisory Opinion 23. ACDI, Bogotá, v. 12, 2019.
36 Ibid.,

338
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

corroboram, no mesmo sentido que Acosta37, com a percepção de que quando o


mundo experimenta uma pressão cada vez maior, devido ao colapso socioambiental
– cientistas alertam que já foram ultrapassados limites planetários38, que se teria
adentrado em uma nova era geológica, dentre outros desgastes ambientais já
sentidos, em razão das ações humanas39 –, e em que se questiona sobre o conteúdo
e a efetividade do direito ambiental, os mais sofisticados e inovadores pensamentos
nessa matéria, o desenvolvimento progressivo do direito ambiental, advém de países
do hemisfério Sul, como atesta a própria opinião consultiva n. 23 de 2017.
Assim, em 14 de março de 2016 a Colômbia submeteu requerimento
junto à Corte IDH para sanar dúvidas quanto às obrigações estatais em relação
ao meio ambiente quanto à proteção de direitos à vida e à integridade pessoal
consagrados nos artigos 4 e 5 da Convenção, e em função do disciplinado nos
artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado.
A Colômbia deixou claro no texto da solicitação que a situação que a
conduziu a essas questões estava relacionada à degradação marinha e humana que
poderia ocorrer na Região do “Gran Caribe” em função de ações e omissões dos
Estados do mar do Caribe no marco de construção de novas infraestruturas40. Vem-
se salientar que se tratava de uma intricada mistura de preocupações políticas e
ambientais motivadas por disputas em curso envolvendo as fronteiras marítimas,
particularmente, da Nicarágua, cujas ações de investimento em infraestrutura
ameaçavam ecossistemas vulneráveis e meios de subsistência na região marítima,
como a população que habita no Arquipélago de San Andrés, Província de Santa
Catalina na Colômbia que depende do entorno marítimo para o seu desenvolvimento
econômico, social e cultural41.
O que se encontrava em jogo eram os planos da Nicarágua de construir
um canal, em rivalidade ao canal do Panamá, para ligar o Mar do Caribe e o

37 ACOSTA, Alberto. O Chile reconhece os direitos da Natureza. Latinoamérica21. Disponível em:


https://latinoamerica21.com/br/o-chile-reconhece-os-direitos-da-natureza/ Acesso em: 20 mar. 2022.
38 ROCKSTRÖM, Johan, et al. A safe operating space for humanity. Nature. v. 461, 2009.
39 ISSBERNER, Liz-Rejane; LÉNA, Philippe. Antropoceno: os desafios essenciais do debate cientí-
fico. O correio da Unesco. n. 2. abr./jun. 2018.
40 CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”, 2017b.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em: 15 mar.
2022.
41 FERIA-TINTA, Monica; MILNES, Simon C. International Environmental Law for the 21 Cen-
tury: The Constitutionalization of the Tight to a Healthy Environment in the Inter-american Court
of Human Rights Advisory Opinion 23. ACDI, Bogotá, v. 12, 2019.

339
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Oceano Pacífico, o que poderia causar danos irreparáveis ao ecossistema marinho


da região, com a destruição de espécies de recifes, peixes e plantas, seguido da
poluição química e incidência de espécies invasoras com as rotas de navegação.
Enfatiza-se que na Comissão Interamericana também havia processo movido por
populações indígenas contra a Nicarágua em razão da construção desse canal 42.
Em resumo, a Colômbia apresentou três perguntas específicas. A
Corte IDH, no entanto, optou por reformular as perguntas, com base no art.
64 da Convenção Americana, e determinou que o alcance e o objeto da Opinião
Consultiva eram mais gerais, de importância para todos os Estados, portanto, não
fez referências à região geográfica ou às atividades específicas e explicou que sua
resposta não se limitaria ao âmbito de aplicação da Convenção de Cartagena ou
ao meio ambiente marinho. A Corte interpretou, assim, que a primeira pergunta
formulada pela Colômbia envolvia o exercício de jurisdição de um Estado fora de
seu território, em síntese: se uma pessoa de um país A sofre uma violação de direitos
humanos por dano ambiental causado por um país B, pode esta pessoa reclamar a
responsabilidade do país B?43 Nas suas próprias palavras:

La Corte interpretó que, en su primera pregunta, Colombia es-


taba consultando al Tribunal sobre la interpretación del término
jurisdicción en el artículo 1.1 de la Convención Americana, en
el marco del cumplimiento de obligaciones en materia ambien-
tal, particularmente respecto de conductas cometidas fuera del
territorio nacional de un Estado o con efectos fuera del territorio
nacional de un Estado44.

Já quanto à segunda e à terceira perguntas a Corte decidiu por agrupá-las,


para responder de maneira conjunta, uma vez que se referiam: a que obrigações tem
os Estados, a partir do dever de respeitar e garantir os direitos à vida e à integridade
pessoal, em relação aos danos causados ao meio ambiente? Explicitou, ainda, que a

42 FERIA-TINTA, Monica; MILNES, Simon C. International Environmental Law for the 21 Cen-
tury: The Constitutionalization of the Tight to a Healthy Environment in the Inter-american Court
of Human Rights Advisory Opinion 23. ACDI, Bogotá, v. 12, 2019.
43 Ibid., CORTE IDH, Op. Cit.
44 CORTE IDH. Resumen Oficial de la OC- 23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”,
2017. p. 3. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/resumen_seriea_23_esp.pdf.
Acesso em: 15 mar. 2022.

340
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

resposta a esse quesito teria em vista a proteção ambiental no âmbito internacional


e no interno45, conforme se observa:

La Corte interpretó que, con la segunda y la tercera preguntas,


Colombia estaba solicitando al Tribunal que se determinaran
las obligaciones estatales relacionadas con el deber de respetar y
garantizar los derechos a la vida y la integridad personal en rela-
ción con daños al medio ambiente46.

Em seguida, a Corte IDH reconheceu na Opinião Consultiva n.


23/2017 a existência de uma relação inegável entre a proteção do meio ambiente e a
concretização de outros direitos humanos, de forma que reiterou a indivisibilidade
e a interdependência entre eles, devendo ser entendidos de forma integral, sem
hierarquia entre si e serem exigíveis em todos os casos. Ressaltou que vários
Estados, como o Brasil, já reconheceram explicitamente em suas Constituições o
direito humano a um meio ambiente saudável, assim como alguns instrumentos
internacionais como o Protocolo de San Salvador e a Declaração Americana sobre
os Direitos do Povos Indígenas47. E constatou que atualmente “i) múltiples sistemas
de protección de derechos humanos reconocen el derecho al médio ambiente sano
como un derecho en sí mismo […]”48.
Efetuou, assim, primeiro a interpretação ampla do art. 26 da Convenção
Americana para incluir o direito ao meio ambiente sadio entre os direitos econômicos,
sociais e culturais protegidos pelo referido dispositivo e entre os direitos que derivam
da Carta da OEA e da Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem.
Em seguida reconheceu a existência do direito ao meio ambiente como um direito
autônomo, que protege os componentes do meio ambiente, tais como bosques,
rios e mares com interesses jurídicos em si mesmos, sem necessidade de vinculação
à utilidade para os seres humanos ou aos efeitos que a degradação ambiental pode
causar à integridade física humana. Na verdade, expressou que se trata da proteção
da natureza “por su importância para los demás organismos vivos con quienes se
comparta el planeta, también merecedores de protección en sí mismos”, e que

45 CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”, 2017b.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf Acesso em: 15 mar.
2022.
46 Ibid., p. 4.
47 Ibid.,
48 Ibid., p. 2.

341
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nesse sentido, “la Corte advierte una tendencia a reconocer personería jurídica y,
por ende, derechos a la naturaleza no solo en sentencias judiciales sino incluso en
ordenamientos constitucionales”49.
De fato, e como já citado, desde 2017, ano da Opinião Consultiva ora
analisada, tem sido gradativo o reconhecimento dos direitos da natureza dentre os
países latino-americanos e caribenhos. Destaca-se que o Equador já expressa, desde
2008, na sua Constituição a natureza como sujeito de direitos; a Bolívia também
conta, desde 2010, com leis infraconstitucionais que reconhecem a Terra como ser
vivo e a interdependência do ser humano; a Corte Constitucional Colombiana,
por sua vez, possui importante sentença de 2016 que reconhece o Rio Atrato, e
outra sentença mais recente de 2018 que reconhece a Amazônia, como sujeitos de
direitos; já o Panamá, no corrente ano de 2022, sancionou lei infraconstitucional
que reconhece os direitos da natureza de existir, persistir e se regenerar; e o Chile
está prestes a se tornar em 2022 o segundo Estado a reconhecer os direitos da
natureza na sua Constituição50.
Em continuação, a Corte IDH na Opinião Consultiva n. 23/2017
classificou os direitos especialmente vinculados ao meio ambiente em dois grupos:
i) os direitos substantivos que são vulneráveis à degradação ambiental, como o
direito à vida, à integridade pessoal, à saúde, além de outros; ii) e os vinculados à
formulação de políticas ambientais, ou seja, direitos de procedimentos, como direitos
de informação, de participação na tomada de decisões, de liberdade de expressão
e associação, além de outros. A Corte esclareceu, então, que iria se pronunciar na
Opinião Consultiva, ora analisada, sobre esses dois grupos, obrigações substantivas
e de procedimento do Estado em matéria de proteção ambiental51.
Em resposta a primeira pergunta, a Corte Interamericana opinou que
a jurisdição dos Estados quanto à proteção dos direitos humanos expressos na
Convenção Americana não se limita ao seu espaço territorial, mas que deve ser
analisada de maneira restritiva, como caso excepcional. Acrescentou que os Estados

49 CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”, 2017b.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf Acesso em: 15 mar.
2022. p. 29.
50 ACOSTA, Alberto. O Chile reconhece os direitos da Natureza. Latinoamérica21. Disponível
em: https://latinoamerica21.com/br/o-chile-reconhece-os-direitos-da-natureza/. Acesso em: 20 mar.
2022.
51 CORTE IDH. Resumen Oficial de la OC- 23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”,
2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/resumen_seriea_23_esp.pdf. Aces-
so em: 15 mar. 2022.

342
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

têm, então, a obrigação de evitar danos transfronteiriços e estão, nesse sentido,


obrigados a adotar as medidas necessárias para evitar tal situação. Esclareceu, por
fim, quanto a primeira pergunta, que o exercício de jurisdição surge quando o
Estado exerce o controle efetivo sobre as atividades que causaram danos e violações
de direitos humanos52.
Pode se considerar que houve também, no que concerne a esse ponto, uma
interpretação ampliada do conceito de jurisdição, reconhecendo a responsabilidade
por danos dentro e fora de seus territórios, o que se mostra uma postura benéfica
voltada à busca de efetividade da proteção ambiental no contexto internacional53.
Já quanto a segunda e a terceira perguntas, reagrupadas e respondidas
em conjunto, a Corte Interamericana opinou que os Estados têm a obrigação de
prevenir danos ambientais dentro e fora de seu território. Com o propósito de
cumprir a obrigação de prevenção devem regular, supervisionar e fiscalizar atividades
que estejam sob sua jurisdição e possam produzir danos ao meio ambiente. Devem
atuar também conforme o princípio da precaução, face à possibilidade de danos
ambientais, ainda quando não haja certeza científica. Devem notificar os demais
Estados potencialmente afetados, quando tenham conhecimento que atividades
sob sua jurisdição possam causar danos transfronteiriços, em caso de emergências
ambientais, bem como consultar e negociar de boa-fé com os potencialmente
afetados. Devem realizar estudos de impacto ambiental quando exista risco de dano
ao meio ambiente. Devem ainda garantir o direito à informação, à participação
pública e o acesso à justiça54.
Aponta-se que na percepção de Feria-Tinta e Milnes55 alguns dos
aspectos mais substantivos da Opinião Consultiva n. 23/2017 consistem,
primeiro, no reconhecimento do direito básico ao meio ambiente sadio segundo

52 CORTE IDH. Resumen Oficial de la OC- 23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”,
2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/resumen_seriea_23_esp.pdf. Aces-
so em: 15 mar. 2022.
53 GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura. Opinião consultiva
23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do meio ambiente no
direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020.
54 CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-23/17 “Medio Ambiente y Derechos Humanos”, 2017b.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em: 15 mar.
2022.
55 FERIA-TINTA, Monica; MILNES, Simon C. International Environmental Law for the 21 Cen-
tury: The Constitutionalization of the Tight to a Healthy Environment in the Inter-american Court
of Human Rights Advisory Opinion 23. ACDI, Bogotá, v. 12, 2019.

343
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a Convenção Americana, segundo, ainda que de forma cautelosa, a possibilidade


de reinvindicações diagonais por danos ambientais transfronteiriços e, terceiro, no
reconhecimento da tendência crescente de atribuir o status de direitos próprios
ao meio ambiente e aos seus componentes, tanto por meio de sentenças judiciais,
quanto pela inclusão nos ordenamentos constitucionais.
O que implica na abertura para a justicialidade do direito ao meio
ambiente sadio junto ao SIDH, sem a necessidade de conexão das questões
ambientais à violação de outros direitos humanos, como se fez até então na
estratégia de proteção ambiental reflexa, ou indireta. Inclusive, encontra-se aberta
a possibilidade de casos contenciosos quanto a danos ambientais transfronteiriços,
havendo uma interpretação ampla também sobre o termo jurisdição utilizada na
Convenção. Houve admissão ainda da crescente definição, por meio de sentenças e
legislações, dos direitos da natureza, o que pode ensejar uma direção, uma abertura
futura, para a apreciação desses direitos no SIDH.
Considera-se que, no geral, a Opinião Consultiva n. 23/2017 tem
obtido um balanço positivo em meio à doutrina de direito internacional, sendo
considerada uma decisão importante, progressista e emblemática, inovando
no reconhecimento da justicialidade da proteção ambiental, da tendência de
reconhecimento da sua proteção de maneira autônoma, e da jurisdição sobre danos
ambientais extraterritoriais56. Reafirma-se que, embora não tenha força vinculante,
a OC n. 23/2017 intenta esclarecer a interpretação de instrumentos internacionais,
fortalecendo a sua aplicação nos Estados Membros, e ressalta-se que já é possível
identificar efeitos práticos dessa Opinião Consultiva no próprio SIDH, com a
quebra de paradigmas na seara ambiental.
Tanto que cabe aqui citar o caso Comunidades Indígenas membros da
Associação Lhaka Hohotah (Nossa Terra) versus Argentina julgado pela Corte IDH
em 2020, onde foi reconhecido, igualmente de modo inédito, a justicialidade do
direito à água potável, à alimentação e ao meio ambiente saudável nos termos do art.
26 da Convenção Americana. A propriedade comunitária de cento e trinta e duas
comunidades indígenas foi invadida por populações não indígenas que depredaram
o meio ambiente com práticas pecuárias, contaminaram a água e comprometeram a
saúde, alimentação e a identidade cultural das comunidades. O governo argentino
foi então condenado a garantir a segurança jurídica da propriedade, o meio ambiente

56 BUITRAGO, Andrés Ordóñez. La Opinión Consultiva OC-23/17 sobre medio ambiente y dere-
chos humanos: aporte de Colombia y la Corte IDH al desarrollo progresivo del derecho internacio-
nal. ORBIS – Revista de la Asociación Diplomática de Colombia. n. 24, 2020.

344
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

saudável, o direito humano à alimentação e à água potável, e a identidade cultural


das comunidades. Gomes, et al57, analisando essa decisão compreendem que nela:

[…] a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu,


pela primeira vez em um caso contencioso, a proteção
autônoma dos direitos ao meio ambiente sadio, à alimentação
adequada e à identidade cultural, com fundamento no art.
26 da Convenção Americana. Portanto, evidencia-se que as
inovações trazidas pela Opinião Consultiva n. 23 de 2017
começaram a produzir efeitos no panorama internacional,
sobretudo por meio do reconhecimento da necessidade de
proteção ao meio ambiente de maneira direta e efetiva.

Cabe reenfatizar, conforme elucidou Cançado Trindade58, que cada


sistema regional de proteção dos direitos humanos funciona de acordo com as suas
particularidades, ritmo e história de seu continente. Assim, a atuação desses sistemas
e o prognóstico para o futuro partem da experiência acumulada nos últimos anos e
do contexto dos seus Estados Membros. Ademais, o próprio SIDH, pela proteção
reflexa, já apresentava premissas como a de ser um sistema permeável, permitindo
a incorporação de novas violações assim que fossem faticamente surgindo, pois tem
a finalidade de garantir a real proteção59.
Nesse contexto, compete frisar que a Corte IDH levou em consideração na
sua Opinião Consultiva n. 23 de 2017 o direito ao meio ambiente sadio que se extrai
da interpretação ampla da Convenção Americana, de seus Protocolos e Convenções
adicionais, e que também já está expresso em diferentes constituições, tal como
reconheceu a tendência gradativa de proteção autônoma da natureza que vem se
mostrando em sentenças judiciais e em legislações. Ou seja, demonstrou atinência
à experiência acumulada e às particularidades do seu continente, especialmente dos

57 GOMES, Carla Amado; SILVA, Josiane Schramm; CARMO, Valter Moura. Opinião consultiva
23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as inovações à tutela do meio ambiente no
direito internacional. Veredas do Direito, v. 17, 2020, p. 35.
58 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no
limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: Se-
minário a proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil, 1999, Brasília, DF. Anais […]
Brasília- DF; STJ, 1999.
59 LOPES, Ana Maria D’Ávila. MARQUES, Lucas Vieira Barjud. Proteção indireta do direito ao
meio ambiente na jurisprudência das cortes europeia e interamericana de direitos humanos. Revista
Brasileira de Direito Animal, v. 14, n. 01, 2019.

345
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Estados latino-americanos e caribenhos que vêm sendo considerados os maiores


progressistas na área ambiental com o reconhecimento dos direitos da natureza60.
O SIDH vem avançando pela possibilidade de justicialidade dos direitos
ambientais sem a necessidade de vínculo a outros direitos humanos, tal qual
continua inovando, após a Opinião Consultiva n. 23/2017, quanto à justicialidade
do direito à água e à alimentação, demonstrando ter a finalidade de garantir direitos
fundamentais em meio às condições fáticas encontradas nos casos analisados. O
SIDH vem apresentando, portanto, postura progressista no direito internacional,
impulsionando-o à real garantia dos direitos humanos e ambientais, com a
preocupação, ainda, em relação ao que chamou de direitos procedimentais voltados
à aplicação de políticas públicas e direitos. Tem sido importante vetor e ampliação
da proteção ambiental, dos direitos de grupos vulneráveis, em consonância às
práticas e posicionamentos que emanam do Sul, do reconhecimento dos direitos
da natureza – do aporte que vem do Equador, da Bolívia, da Colômbia, do Panamá
e do Chile, por exemplo.

5 CONCLUSÃO

Como visto, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem


(1948) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH (1969),
que são as bases do SIDH, não possuem expressamente em seus textos direitos de
cunho ambiental. A questão ambiental somente ganha um novo olhar enquanto
preocupação pública e novo objeto jurídico a ser inserido em instrumentos de
direito nacionais e internacionais a partir da década de 60. A Conferência de
Estocolmo realizada em 1972, como ilustração, foi o primeiro grande evento
internacional que impulsionou as pesquisas e a consciência sobre as consequências
dos desgastes da natureza causados pelas ações humanas, e é considerada a gênese do
direito ambiental. Contudo, a falta de dispositivos expressos de proteção ambiental
naqueles instrumentos acima citados não impediu que, na prática, a Comissão e
a Corte Interamericana de Direitos Humanos tratassem das questões ambientais.
Observou-se o desenvolvimento do processo de greening do SIDH. O
Protocolo Adicional de San Salvador (1988) inseriu em seu art. 11 o direito ao meio
ambiente sadio, mas limitou a exigência da sua concretização ao desenvolvimento

60 FERIA-TINTA, Monica; MILNES, Simon C. International Environmental Law for the 21 Centu-
ry: The Constitutionalization of the Tight to a Healthy Environment in the Inter-american Court of
Human Rights Advisory Opinion 23. ACDI, Bogotá, v. 12, 2019.

346
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e aos recursos disponíveis em cada Estado, assim como limitou o peticionamento


individual aos sindicatos de trabalhadores e às questões educacionais. Foi esboçado,
então, na Corte IDH e na CIDH a práxis de abordar as questões de proteção
ambiental quando vinculadas às violações de outros direitos fundamentais previstos
na CADH, como o direito à integridade física e à propriedade. Foi construída, assim,
ainda com base na indivisibilidade, interdependência e inter-relação dos direitos
humanos, a proteção reflexa ou indireta do meio ambiente no SIDH. Proteção
esta que conta com algumas características, como a do sistema permeável e aberto,
permitindo a inclusão de novos direitos à medida em que forem se deparando com
novas situações fáticas, em prol da real efetividade da proteção.
Ressaltou-se que cada sistema de proteção regional de direitos humanos
tem suas histórias, está relacionado às experiências acumuladas e às particularidades
do seu continente, envolvendo as análises de casos específicos, que dificilmente
seriam julgados em outra localidade. Foi feita a constatação, nesse sentido, que
a maioria dos casos em que foi abordada e definida a proteção ambiental reflexa
ou indireta no SIDH eram casos que envolviam povos indígenas e comunidades
tradicionais. O SIDH, assim, apresenta posicionamentos específicos, consolidando
o entendimento, por exemplo, da propriedade privada nos termos de uso comunal
dos grupos tradicionais, para além do sentido mercadológico da alienação, e
definindo que o direito à vida, como outra ilustração, não se restringe à sobrevivência,
mas se estende ao acesso à cultura, à saúde e ao meio ambiente sadio, englobando
a importância dos elementos da natureza para a continuidade da identidade dos
povos indígenas e comunidades tradicionais.
Diante do exposto, compreende-se que a Opinião Consultiva n. 23 de
2017, por sua vez, que expressa a resposta da Corte IDH à solicitação realizada
pela Colômbia, vem representar uma virada na tutela ambiental exercida pelo
SIDH, acompanhando o aporte progressista do direito ambiental no âmbito
internacional e no nacional de alguns Estados latino-americanos e caribenhos.
Destaca-se os aspectos mais relevantes da referida Opinião Consultiva: primeiro
a Corte reconheceu, efetivando uma interpretação ampla, a existência do direito
básico ao meio ambiente sadio segundo a própria Convenção Americana e também
conforme já expressam várias Constituições dos Estados Membros como a do
Brasil; enfatizou que existe ainda a proteção da natureza de maneira autônoma,
com interesses jurídicos em si mesma, sem a necessidade de vinculação à utilidade
que pode ter para o ser humano, e nesse ponto ainda constatou que há tendência de
se reconhecer os direitos da natureza, tanto por meio de decisões judiciais, quanto
pela inserção nos ordenamentos constitucionais; reconheceu a possibilidade, por

347
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

fim, ainda que de maneira excepcional e cautelosa, de responsabilidade dos Estados


por danos transfronteiriços e elencou alguns mecanismos e procedimentos que
devem ser adotados.
Considera-se, assim, que a Opinião Consultiva n. 23/2017, embora não
tenha força vinculativa entre os Estados Membros, esclarece e fortalece a aplicação
do direito no continente e viabilizou a oportunidade para o SIDH abordar o
direito ao meio ambiente de forma direta, sem a necessidade de vinculação à outros
direitos humanos, permitindo ainda a análise de casos contenciosos sobre danos
transfronteiriços. Deixou aberta também a possibilidade para tratar, no futuro – o
que se acredita que pode ocorrer devido à rápida progressão que se percebe haver
em matéria ambiental no continente americano –, do aporte da natureza enquanto
sujeito de direitos, em consonância às posturas inovadoras que advém do Sul global,
dos países da América Latina e Caribe – tal qual o Equador, a Bolívia, a Colômbia,
o Panamá e o Chile, e que também já encontram espaço em outros países como a
Índia e a Nova Zelândia.
Identificou-se, ademais, que a Opinião Consultiva n. 23 de 2017 tem
obtido balanço positivo e apresenta uma postura inédita de um tribunal internacional,
que busca rever a abordagem ambiental até então exercida para garantir a real
proteção diante das situações fáticas e discussões atuais em seu Continente. O que
se mostra atinente ao e influencia o giro biocêntrico do direito internacional e
do nacional, diante do colapso socioecológico enfrentando e dos questionamentos
quanto ao conteúdo e efetividade do direito ambiental antropocêntrico que nos
seus 50 anos de existência não foi capaz de frear as destruições do meio ambiente,
de animais não humanos e de territórios tradicionais. Acrescenta-se que a Opinião
Consultiva n. 23 de 2017 traz à baila, no fundo, a importância de se rever as relações
entre a humanidade e a natureza dando ênfase aos novos paradigmas biocêntricos
e às filosofias e lições que têm origem nos costumes e conhecimentos ancestrais de
povos indígenas e comunidades tradicionais. Já é possível identificar, aliás, frutos
da aplicação dessa Opinião na decisão da Corte IDH sobre o caso Lhaka Hohotah
(Nossa Terra) versus Argentina.

348
REFERÊNCIAS

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350
A vida da população tradicional da etnia xikrin frente ao
empreendimento S11D e o entendimento da Corte Interamericana
de Direitos Humanos

Natália Mascarenhas Simões Bentes1


Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira2

1 INTRODUÇÃO

Os instrumentos internacionais de proteção aos povos indígenas visam


estabelecer parâmetros de proteção e preservação da saúde física e psíquica, do seu
modo de vida, respeitando o seu bem viver, a cultura, a religiosidade, regulamentar
o acesso à biodiversidade, o respeito à autodeterminação e ao meio ambiente,
assim garantindo seus direitos de forma qualificada em conformidade com lei,
promovendo a segurança jurídica. Dessa forma, esse estudo apresentará uma análise
do crescente aparato jurídico e social das jurisdições estabelecidas que reconhecem
e protegem os povos indígenas.
No Brasil, o processo de reconhecimento e proteção dos direitos dos povos
indígenas, primeiros habitantes do território nacional, foi longo e demorado, cujas

1 Doutora em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal.


Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. (Portugal). Professora da
graduação e do Mestrado em Direito do Centro Universitário do Estado do Pará. Coordenadora da
Clínica de Direitos Humanos do CESUPA. (Brasil. Coordenadora Adjunta do Curso de Direito do
Centro Universitário do Estado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Rica Miséria - Mineração,
Sustentabilidade, Equidade e Desenvolvimento Regional. Advogada.
2 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pelo Centro Uni-
versitário do Pará – CESUPA Belém – PA. Advogada. Bacharel em Direito pela Faculdade Integrada
Brasil Amazônia – FIBRA. Membro do Grupo de pesquisas CNPq MinAmazônia (Mineração e
Desenvolvimento Regional na Amazônia). E-mail: alsidealice@hotmail.com https://orcid.org/0000-
0002-4411-2456.

351
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

consequências são sentidas até hoje, na constante reivindicação dos seus direitos à
diversidade cultural frente à exploração de atividades econômicas que não somente
desconsideram estas comunidades tradicionais, como também desrespeitam a
autodeterminação desses povos, seus hábitos e costumes, além de se apropriarem
das terras onde vivem.
A mineração é uma atividade econômica que por estar inserida em um
contexto neoliberal, acaba ludibriando o crescimento econômico, enforcando o
desenvolvimento sustentável, de modo que o conceito de progresso vigente está
desconsiderando valores sociais, ambientais e culturais imprescindíveis a um país
pluriétnico.
Em razão disto, este artigo tem como problema de pesquisa compreender:
Como os direitos do povo indígena da etnia Xikrin podem ser assegurados no
processo de licenciamento ambiental do complexo S11D em Carajás no Pará a partir
dos parâmetros estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos?
O objetivo geral é assegurar os direitos da etnia Xikrin frente ao
empreendimento minerador S11D em Carajás no Pará fundamentado nas
sentenças da Corte IDH e amparar políticas públicas para o cumprimento correto
do licenciamento ambiental, em especial Consulta Prévia Livre e Informada e o
Estudo de Componente Indígena.
São objetivos específicos da pesquisa: Analisar o Sistema Interamericano
de proteção aos Direitos Humanos sobre os direitos dos Povos Indígenas. Explicar as
sentenças da Corte IDH que te similitude com o caso do Povo Xikrin e suas devidas
violações. Relatar o processo de licenciamento ambiental do empreendimento
S11D, suas falhas no tocante a comunidade indígena Xikrin e a importância
da Consulta Prévia Livre e Informada e do Estudo de Componente Indígena e
discutir a implantação comitê de monitoramento participativo para mitigar ou até
mesmo sanar as externalidades negativas vivenciadas pelo povo Xikrin auxiliando
na melhoria de políticas públicas indigenistas.
Para alcançar a finalidade pretendida na problemática será empregado
o estudo bibliográfico, de caráter qualitativo, aplicando-se o método hipotético
dedutivo, almejando responder à pergunta problema através da observação das
lacunas políticas e jurídicas existentes, embasadas em estudos anteriores, na leitura
das teorias existentes do assunto abordado e pesquisa bibliográfica, sendo realizada
a oitiva de líderes da comunidade Xikrin com o fulcro de edificar a base teórica do
tema.

352
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

O artigo é dividido em três seções. A primeira seção é constituída pela


leitura do modelo do Sistema Interamericano e os povos indígenas, discorrendo
com acerca da jurisprudência da Corte IDH. A segunda seção trata da análise
do licenciamento ambiental do Projeto S11D em Carajás no Pará e a relação
da atividade mineradora e a população indígena Xikrin mediante a falta de
condicionantes relacionadas a proteção dos direitos humanos na TI Xikrin. Findo
a terceira seção abordará uma provável solução com a elaboração de um Comitê de
Monitoramento Participativo norteado pelas sentenças da Corte IDH.
Os autores que compõem o arcabouçou teórico deste estudo são, dentre
outros, Bentes, Arruda, Ascerald e Moreira3.

2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS SOBRE OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS

A presente seção trata da atual proteção internacional dos direitos dos


povos indígenas no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no Sistema
Global de Proteção aos Direitos Humanos. Discorrer-se-á acerca da jurisprudência
mais significativa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) a
respeito dos direitos dos Povos Indígenas, como as sentenças dos casos do Povo
Mayagna (Sumo) Awas Tingi vs. Nicarágua, posteriormente do Povo Saramanka vs.
Suriname e findando com um caso mais recente dos Membros das Comunidades
Indígenas da Associação Lhaka Honhat (nossa terra) vs. Argentina. A escolha dos
referidos casos se deve ao fato de existirem aspectos semelhantes com o Povo Xikrin.
Será abordado também a emblemática sentença do caso Povo Xucuru
vs. Brasil, primeira condenação internacional do Brasil sobre povos indígenas,
fazendo uma paralelo a problemática relacionada a comunidade Indígena Xikrin
de acordo com o entendimento da CorteIDH, enfatizando a falta do cumprimento
correto do licenciamento ambiental, a carência de gestão pública no cumprimento
dos dispositivos legais no que se refere à consulta livre, prévia e informada, da

3 ACSELRAD, Henri. MELLO Cecília Campelllo Amaral e BEZERRA, Gustavo das Neves. O
que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. ARRUDA, Paula; FERRAZ, Natasha;
RODRIGUES, Alessandro Baltazar. Conflitos jurídico políticos na Amazônia e o caso dos defensores e
das defensoras dos direitos humanos no Pará. 1. ed. São Paulo, 2018; BENTES, Natalia Mascarenhas
Simões; PEREIRA, Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira; ASSUNÇÃO, Marcos Venâncio Silva.
Os impactos do projeto ferro Carajás S11D na comunidade indígena Xikrin do Cateté e o objetivo do
desenvolvimento sustentável da ONU de n. 16. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v.7, n.3, p.
31502-31525. 2021; MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos
humanos pela jurisdição brasileira. Natal: Edufrn, 2015.

353
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

necessidade da realização do ECI e da total desatenção do Estado Brasileiro com


relação a garantias já institucionalizas aos povos indígenas.
À Comissão Interamericana de Direitos Humanos incumbe a tarefa
principal de responsabilização dos Estados por descumprimento dos direitos
civis e políticos expressos na Carta e na Declaração Americana. Por outro lado, o
Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral zela pela observância dos
direitos econômicos, sociais e culturais. A CIDH é composta por sete membros; os
denominados Comissários, que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de
reconhecido saber em matéria de direitos humanos. Nesse diapasão, os membros são
eleitos para mandato de quatro anos e só tem direito à uma recondução, exigindo-
se atividades que permitam a sua independência e sua imparcialidade.
A partir da entrada em vigor da Convenção Americana de Direitos
Humanos, em 1978, a Comissão passou a ter papel dúplice: primeiramente, ainda
como órgão principal da OEA, encarregado de zelar pelos direitos humanos,
tratando desde o processamento de petições individuais retratando violações de
direitos humanos que são protegidos pela Carta da OEA. Ademais, adquiriu a função
de analisar petições individuais e encaminhar o caso para a Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, Corte IDH,
é uma instituição judicial autônoma, sendo órgão da Convenção Americana de
Direitos Humanos. Ela possui jurisdição contenciosa e consultiva, com possibilidade
de emissão de pareceres ou opiniões consultivas, não vinculantes. A sua jurisdição
contenciosa não é obrigatória, o Estado pode ratificar a Convenção Americana e
não reconhecer a jurisdição contenciosa da Corte IDH, que é cláusula facultativa
da Convenção.
O Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana em 8 de
novembro de 2002, através do Poder Executivo que editou o Decreto n. 4.463.
Os princípios essenciais da OEA são: garantir a paz e a segurança continentais;
promover e consolidar a democracia representativa, respeitando o princípio da
não-intervenção; organizar a ação solidária destes, em caso de agressão; procurar
a solução para problemas políticos, jurídicos e econômicos que surgirem entre
os Estados membros; promover, por meio de ação cooperativa, desenvolvimento
econômico, social e cultural.
Diante disso, destaca-se a formação da Declaração Americana sobre os
Povos Indígenas pela OEA, a qual trouxe profundas mudanças aos integrantes,

354
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

permitindo uma democracia pluriétnica e a participação dos povos indígenas


dentro de cada um dos Estados. Como resultado de quase vinte anos de elaboração
de um documento para proteção dos direitos dos povos indígenas no continente
americano, foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
A Declaração revela que é reconhecido o direito à autodeterminação, às
terras, aos recursos, bem-estar social e, sobretudo, ao consentimento prévio, livre
e informado dos Povos Indígenas acerca de todas as questões que os envolvam em
seus respectivos territórios. Ademais, assevera a organização coletiva e o caráter
multicultural e multilíngue dos povos indígenas; a autoidentificação de pessoas que
se consideram indígena; a proteção especial para povos em isolamento voluntário
ou em contato inicial – como alguns povos amazônicos – além do avanço na
promoção e da proteção efetiva dos direitos de os povos indígenas das Américas ser
uma prioridade da OEA.
O Brasil, sendo membro da Organização dos Estados Americanos,
reconhece o dever de respeitar e cumprir com os dispositivos da Declaração
Americana sobre os Povos Indígenas. Cumpre informar, portanto, que esse
instrumento reconhece que os direitos dos Povos Indígenas constituem um aspecto
fundamental e de importância histórica para o presente e para o futuro das Américas.
Importante mencionar que o artigo 3º da Declaração declara o direito dos Povos
Indígenas à livre determinação. Em virtude desse direito, tais povos são livres para
definirem sua condição política e buscarem seu desenvolvimento econômico, social
e cultural.
Além do instrumento que garante a efetividade dos direitos dos Povos
Indígenas nas Américas, segundo a OEA4, os Povos Indígenas são essenciais no
processo de cúpula das Américas, sendo um dos principais atores. Nas Cúpulas
das Américas realizadas até a presente data, os Chefes de Estado e de Governo
afirmaram o seu compromisso com a atenção plena e equitativa dos povos indígenas
no Hemisfério.
Para os órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a
proteção e o respeito aos Povos Indígenas trazem especial atenção. A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos – CIDH – em 1972 considerou que, por
razões históricas, princípios morais e humanitários, é compromisso sagrado dos
Estados proteger especialmente os povos indígenas. Por isso, em 1990, criou

4 Disponível em: http://www.summit-americas.org/cs_ind_sp.html.

355
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a Relatoria sobre os Direitos dos Povos Indígenas, com objetivo de dar especial
atenção aos direitos dos indígenas que estão submetidos, constantemente, às
violações de direitos humanos por sua situação de vulnerabilidade.
No caso específico dos Povos Indígenas, a CIDH assinala que o direito à
consulta livre, prévia e informada é direito fundamental, de modo que aos Estados
soberanos cabe assegurar a participação efetiva dos Povos Indígenas em todas as
fases da atividade do empreendimento, nos processos de desenho, execução e
avaliação de projetos de desenvolvimento realizados em suas terras e territórios
ancestrais, podendo também haver intervenção após a instalação e funcionamento
do empreendimento.
Em relação ao mencionado direito à consulta livre, prévia e informada,
a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, em seu artigo
6.1, prevê que a consulta deve ser feita mediante procedimentos apropriados e
em particular por meio de suas instituições representativas, cada vez que medidas
legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar os Povos Indígenas diretamente
estejam em trâmite. Ademais, o artigo 6.2 do Convênio determina que as consultas
devem ser feitas de boa fé e de modo apropriado às circunstâncias, com a finalidade
de chegar a um acordo ou alcançar o consenso sobre as medidas propostas.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) evidencia
que, conforme o próprio sistema interamericano, os sujeitos são obrigados a cumprir
com o dever de consultar com o Estados em todos os níveis. Nessa perspectiva de
investigação dos direitos humanos, para além da proteção contida na legislação
nacional, mais também nos tratados internacionais aderidos pelo Brasil, analisando
os graves danos e violações às garantias humanas, sendo necessária argumentar uma
proteção em diferentes níveis para assim efetivar os direitos humanos em vários
segmentos, compreendendo a promoção dos direitos humanos em diversos níveis.5
A Corte Interamericana de Direitos Humanos assevera que não se deve
confundir os processos de socialização que realizam as empresas interessadas ou
terceiros com os povos indígenas sobre determinados projetos com os processos
de consulta que devem ser realizados pelos Estados. Com isso, o Tribunal explana
que a obrigação de consultar é responsabilidade do Estado, pelo que o processo de
consulta não é um dever delegável a terceiros interessados do poder privado, mesmo
que seja a própria empresa interessada na exploração dos recursos do território

5 URUEÑA, René. GALINDO George Rodrigo Bandeira. PÉREZ, Aida Torres (coord.). Proteção
multinível de direitos humanos na América Latina? Oportunidades, desafios e riscos. Proteção multinível
dos direitos humanos. Manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação Superior, 2014.

356
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

indígena.6 Além disso, o objetivo de todo o processo consultivo é o alcance de


um acordo ou a obtenção do consentimento, sendo os povos indígenas capazes de
influenciar de maneira significativa no processo e nas decisões tomadas durante o
curso do processo de consulta, incluindo suas perspectivas e suas preocupações.
Nesses moldes, inclusive, ressalta-se o reconhecimento que o Estado
precisa de uma maior compreensão de que a questão ambiental não é um entrave
ao desenvolvimento, mas sim que é requisito para um modelo de desenvolvimento
participativo, inclusivo, democrático e pluriétnico.7
Entende-se, com isso, que a consulta não se limita a um mero trâmite
formal ou informativo no processo administrativo do licenciamento ambiental,
devendo enxerga-lo como verdadeiro instrumento de participação dos povos
indígenas nas atividades econômicas que lhes impactam de modo direto ou indireto.
Portanto, o processo de consulta deve atender ao objetivo de estabelecer um diálogo
entre as partes, bem como na sustentabilidade, no real desenvolvimento sócio
econômico para a região e para as comunidades afetadas, abarcando o conceito
de justiça socioambiental e de preservação ambiental observando o que a ONU
promulgou por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – para
um mundo melhor, com base nos princípios da confiança e do respeito mútuos.

2.1 SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS SOBRE POVOS INDÍGENAS

As decisões abaixo descritas foram selecionadas por serem casos similares


a problemática vivenciada pelo povo Xikrin, assim como pela ausência de políticas
públicas para proteção dos povos originários. São casos que envolvem violação sócio
ambiental em territórios indígenas, em que o desmazelo na garantia étnico cultural
é latente e que provocou sentenças que discorrem de fatores ligados a externalidades
negativas, as quais são absorvidas pelas comunidades, gerando a destruição de
cultura, da cosmovisão, da autodeterminação, destruição dos recursos naturais, da
organização social, das fontes de renda, da caça e da pesca em territórios indígenas
demarcados.

6 CORTE IDH. Caso do Povo Kichwa de Sarayaku vs. Equador. Mérito e Reparações. Sentença de
27 de junho de 2012, par. 187. Série C n. 245. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_245_por.pdf. Acesso em: 17 jul. 2021.
7 ACSELRAD, Henri. MELLO Cecília Campelllo Amaral e BEZERRA, Gustavo das Neves. O que
é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

357
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Os casos não se restringem apenas a temática da demarcação territorial,


o vetor principal é a violação ambiental, o descumprimento da lei e da inoperância
de gestão governamental relacionada a preservação sócio ambiental e econômica
do território; casos que já relacionam o conceito da justiça contemporânea; justiça
socioambiental, a qual engloba o direito à vida e ao meio ambiente sadio como
mantenedores de vários outros direitos fundamentais.
Foram selecionados quatro casos que serão explanados de forma mais
detalhada com o intuito de demonstrar os aspectos que mais se assemelham com o
conflito entre o empreendimento S11D e a comunidade Xikrin, e principalmente
o descaso do Estado. A princípio o caso do Povo Mayagna (Sumo) Awas Tingi vs.
Nicarágua (2001), que foi um caso que gerou uma mudança de pensamento na
Corte IDH, pois foi a partir desta sentença que a Corte IDH começou a avaliar e
julgar casos de violação de direitos humanos relacionados a povos tradicionais. Em
seguida o caso do Povo Saramanka vs. Suriname (2007), que além de ter sofrido
violação ambiental em sua sentença teve o reconhecimento da capacidade jurídica
coletiva. O caso do povo Xucuru Povo Xucuru e seus membros vs. Brasil (2018), a
qual foi a primeira condenação do Estado brasileiro relacionada a povos indígenas e
findando com um caso mais recente dos Membros das Comunidades Indígenas da
Associação Lhaka Honhat (nossa terra) vs. Argentina (2020) o qual aborda violação
de direitos relacionados ao ambiente saudável para a propriedade coletiva.

2.1.1 Povo indígena mayagna (sumo) awas tingi vs. Nicarágua. Sentença de 31
de agosto de 20018

O caso em questão foi um divisor de águas no cenário internacional no que


tange comunidade indígena, o Estado da Nicarágua reconheceu o multiculturalismo
nas suas normas constitucionais em 1987, no entanto faltou estruturas legais para
o cumprimento da inclusão social prevista em sua Constituição.
O caso foi apresentado a Corte em 1995, solicitando medidas que
impedissem a exploração de recursos pela Solcarsa S/A. O Estado da Nicarágua
não demarcou as terras ancestrais da comunidade Awas Tigni da etnia Mayagna,
não adotou medidas suficientes para a proteção da comunidade, portanto estes
não tinham direito a propriedade comunal e nem ao manejo dos recursos naturais
e principalmente do Estado ter concedido outorga dos recursos naturais sem a

8 Tópico escrito a partir da leitura da sentença Povo Indígena Mayagna (Sumo) Awas Tingi vs. Nica-
rágua. Sentença de 31 de agosto de 2001, da Corte IDH.

358
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

consulta prévia da comunidade. O caso foi encaminhado sob a alegação de violação


cultural, religiosa, na falta de igualdade de tratamento e violação ambiental nas
terras da comunidade, indicando violação pelo Estado da Nicarágua.
Decorridos seis anos em 31 de agosto de 2001 a Corte proferiu sentença
condenando o Estado da Nicarágua pela violação dos artigos supracitados,
sentenciando o Estado a cumprir medidas legislativas, administrativas a serem
adotadas pelo direito interno que demarquem, delimitem e gerem títulos de
propriedade a comunidade Awas Tingni, com base no direito consuetudinário,
condenou a promover reparação de dano num período de doze meses, realização de
obras que beneficiem a comunidade Mayagna (Sumo), reconheceu a necessidade
de paralisar toda e qualquer concessão que afete a existência, o uso, o valor dos bens
naturais no território onde a comunidade habita e realiza suas atividades cotidianas.
A sentença proferida baseou-se em uma interpretação evolutiva dos instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos.

2.1.2 Povo indígena saramaka vs suriname – sentença de 28 de novembro de


20079

Multinacionais estrangeiras de exploração de recursos naturais passaram


a atuar no país e a realizar mudanças socioambientais drásticas, devido à construção
de hidrelétricas, um período marcado pelo total dissenso étnico – cultural e de
devastação dos recursos naturais dos territórios indígenas e quilombola. A política
governamental da época era a da militarização, privando, especialmente, os povos
indígenas e quilombolas do direito à terra, de uso e gozo dos seus recursos naturais
direta ou indiretamente implicados na sobrevivência econômica, social e cultural,
além de ameaças à própria afirmação das diferenças e identidades étnico-culturais.
O caso foi admitido pela Comissão em 2 de março de 2006 e apresentado
à Corte IDH em 23 de junho de 2006, com solicitação da Comissão para declaração
da responsabilidade internacional do Estado do Suriname sobre violação de direitos
territoriais, pela violação do reconhecimento da pessoa jurídica, do direito à
propriedade privada e do direito à proteção judicial da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
O Tribunal reconheceu que os Estados devem respeitar a relação especial
que os membros dos Povos Indígenas e tribais têm com o território como modo

9 Tópico escrito a partir da leitura da sentença Povo Saramanka vs. Suriname, de 28 de novembro de
2007, da Corte IDH.

359
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de garantir a autodeterminação, sua sobrevivência social, cultural e econômica,


devendo adotar medidas peculiares para garantir a esses povos o exercício do
direito ao território que tem usado e ocupado ancestralmente e tradicionalmente.
Houve o reconhecimento por parte da Corte IDH dos grupos étnicos como
sujeitos de direitos e obrigações, de modo a tratar os atributos como elementos
constitutivos da personalidade jurídica, devendo o Estado estabelecer mecanismos
legislativos, judiciais e administrativos necessários para garantir a possibilidade do
reconhecimento da personalidade jurídica do Povo Saramaka.

2.1.3 Povo indígena xucuru e seus membros vs brasil – sentença de 05 de


fevereiro de 201810

O Povo Indígena Xucuru foi escolhido para enfatizar que o Estado


brasileiro, já sofreu uma condenação por não exercer corretamente os direitos dos
povos indígenas. As invasões nas terras dos Xucurus aumentaram, especialmente
pelos descendentes das famílias tradicionais da região, a partir disso começou a
retirada compulsória da comunidade. A promulgação do Estatuto do Índio11,
o Povo Indígena Xucuru passou a se articular para reivindicar a propriedade
de suas terras. Sendo reconhecido o pedido de urgência para a demarcação a
administração pública, deve iniciar o processo, mas o Decreto n º 1.775/96 trouxe
mudanças gerando o direito de poder solicitar indenizações e alterando o processo
administrativo de demarcação.
Diante do contexto, a Corte IDH pronunciou a sentença deste caso,
abordando o dever de proteção à propriedade, a obrigação de assegurar os atos
necessários para garantir a propriedade coletiva dos Povos Indígenas. Fundamentou
esta concepção na proteção desse direito em um corpo jurídico de instrumentos
internacionais que garantem a robustez legal para determinar a imperatividade
do direito à propriedade coletiva dos Povos Indígenas. Determinando que a posse
tradicional dos indígenas sobre as suas terras tem feitos equivalentes aos do título de
pleno domínio concedido pelo Estado, bem como confere aos indígenas o direito
de exigir o reconhecimento oficial de propriedade e o seu registro.

10 Tópico escrito a partir da leitura da sentença Povo Xucuru e seus membros vs Brasil, de 05 de
fevereiro de 2018, da Corte IDH.
11 BRASIL. Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Lex: dispõe sobre o estatuto do índio. Disponí-
vel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6001.htm. Acesso em: 18 jul. 2021.

360
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

É obrigação do Estado, portanto, garantir a propriedade efetiva dos


Povos Indígenas, abstendo-se de realizar atos que possam levar a que os agentes do
próprio Estado ou terceiros a afetarem a existência.

2.1.4 Caso dos membros das comunidades indígenas da associação lhaka


honhat (nuestra terra) vs. Argentina – sentença de 06 de fevereiro de 202012

A sentença relacionada aos membros das Comunidades Indígenas da


Associação Lhaka Honhat acarreta uma inovação evolutiva para os direitos e garantias
no que tange violação ambiental, garantia enfatizada pela Opinião Consultiva
n. 23/2017 a qual salienta as obrigações dos Estados e da empresas em relação
a devassidão dos direitos humanos proveniente dos impactos ao meio ambiente
sendo, totalmente, correlato ao caso do povo da etnia Xikrin, pois as externalidades
negativas provenientes da atividade mineradora, diminuem a qualidade do meio
ambiente, onde rios estão sendo poluídos, a caça está afastada, barulhos constantes
de explosões nas minas subtraem a paz na comunidade dentre outros.
Os não indígenas foram responsáveis pela degradação ambiental, através
da retirada ilegal de madeira, do cultivo de pasto para a criação de gado bovino bem
como a instalação de cercas para apartar as famílias indígenas dos rebanhos. Tais
atitudes ocasionaram uma grande perda na diversidade de recursos naturais, assim
como em escassez de insumos essenciais à comunidade, ceifando os membros de
diversas etnias indígenas de viver de acordo com seus costumes e práticas sociais,
culturas, econômicas e principalmente ambientais. Durante sucessivos anos com a
emissão de Decretos o Estado buscou burlar a entrega total dos territórios indígenas
e a retirada das famílias não indígenas.
Diante disso, a Corte designou um precedente inédito, onde declarou a
responsabilidade Internacional da Argentina pela violação de vários direitos violados
em 132 comunidades indígenas, reconhecendo a vulnerabilidade e a propriedade
comunal, acatando os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientas daquele
povo. Reafirmando-se, assim, a segurança jurídica das terras indígenas perante a
ação de terceiros e dos interesses do Estado capitalista.

12 Tópico escrito a partir da leitura da sentença Caso dos Membros das Comunidades Indígenas da
Associação Lhaka Honhat (nuestra terra) vs. Argentina, de 06 de fevereiro de 2020, da Corte IDH.

361
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3 S11D – PROJETO FERRO CARAJÁS: O DIREITO À CONSULTA PRÉVIA


E O ESTUDO DE COMPONENTE INDÍGENA)

O presente trabalho preocupa-se em demostrar as falhas no processo de


licenciamento ambiental do Complexo Ferro Carajás – S11D, pois não ocorreu
corretamente a oitiva da comunidade indígena Xikrin, em especial nas fases de
concessão das licenças; prévia, instalação e de operação, consequentemente não
respeitando o instituto da Consulta e Consentimento, assim como não elaborou o
Estudo de Componente Indígena, sendo abstraído dos planos de gestão de política
pública de resolução dos conflitos sociais na Amazônia. Apresentando o povo
indígena Xikrin como grupo de vulnerabilizados, mas também como exemplo de
resistência a esta política e na luta pela ascensão da proteção dos direitos humanos.
A mineração é uma atividade milenar, cuja exploração foi sinônimo
de crescimento econômico dos países onde se instalou desde os primórdios da
Revolução Industrial. Embora, no início, pouco se soubesse sobre os métodos mais
adequados à extração do minério, centenas de anos foram suficientes para mudarem
as práticas, por diversas vezes, a forma como a atividade mineradora passou a ser
exercida.
Oliveira e Yamada ensinam que ao longo da história os indígenas sempre
estiveram apartados dos processos de tomada de decisão, sendo a Consulta e
Consentimento uma forma de eles se aproximarem, participarem, influenciarem
nas decisões e acompanharem tudo antes que os malefícios aconteçam13. Além disso,
torna-se imperativo considerar que quando se trata de populações tradicionais,
principalmente povos indígenas, o aproveitamento dos recursos naturais, conciliado
com a preservação do meio ambiente – que é uma exigência em todo o território
nacional –, devem ser tratadas de forma ainda mais cuidadosa, isto porque ainda
quando esta exploração do minério não avance sobre o território indígena, o
conceito de sustentabilidade deve assumir contornos mais diferenciados e rigorosos,
porque é preciso resguardar esses povos de riscos à sua própria sobrevivência.
O procedimento da consulta prévia encontra-se intrinsecamente
vinculado com a relação dos Povos Indígenas e Tribais com suas terras e seus
territórios. Tal procedimento deve ocorrer na medida que um projeto empresarial

13 YAMADA, Erika M.; OLIVEIRA, Lúcia Alberta Andrade de. (org.). A Convenção 169 da OIT e
o direito à consulta livre, prévia e informada. Brasília: Funai/GIZ, 2013. 32 p. Disponível em: http://
www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ascom/2014/doc/11-nov/convencaooit.pdf. Acesso em: 25
mar. 2021.

362
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ou de caráter extrativo/exploração dos recursos naturais venha a afetar ou impactar


o território, ou a relação dos povos com ele.14 O ato da consulta pelo Estado deve
ser materializado através de um processo administrativo, sendo que sua natureza
é hibrida, devendo estudar as normativas mostradas, neste caso pela comunidade
indígena de acordo com seus almejos. Assim, há o dever também de se observar os
pressupostos de validade e legitimidade, antes de tomarem uma decisão realizarem
o processo administrativo especial de consulta e consentimento.
O aspecto impactante sobre a sociobiodiversidade causado por
empreendimentos exploradores de minerais foi reiterado no correr deste estudo.
Todo empreendimento minerador deve observar a legislação e, em especial, a
Consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da OIT15.
A postura de assumir melhores padrões ambientais, todavia, não pode
ser resumida à lógica do lucro ou do que é economicamente rentável diante do
mercado internacional, por exemplo. É esta a principal crítica em relação à ideia
de desenvolvimento sustentável, pois o conceito foi apropriado com o fim de
disseminar, na grande maioria das vezes, o elo do desenvolvimento econômico,
ignorando-se tantas outras problemáticas que precisam ser encaradas, como a social
e a cultural dos povos e comunidades que sofrem com a implementação dos grandes
empreendimentos mineradores.
Nessa toada, enfatiza-se que o desenvolvimento sustentável, constitui
um movimento inovador que indaga as visões tradicionais de desenvolvimento
voltadas apenas para fins econômicos, cotejando expandir para além da economia e
assim englobar as dimensões políticas, ambientais e sociais. Trata -se de um direito
inerente a pessoa e a sua dignidade.
Cançado Trindade destaca que, a solidariedade humana é embasada
que se no pensamento contemporâneo sobre os direitos inerentes ao ser humano,

14 GARAVITO, Rodríguez; SALINAS, Natalia Orduz. La consulta previa a los pueblos indígenas: los
estándares del en el derecho internacional. Universidad de los Andes. Documentos número 2. Bogotá.
2010. Disponível em: Acesso em: 18 abr. 2020.
15 BENTES, Natalia Mascarenhas Simões; PEREIRA, Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira;
ASSUNÇÃO, Marcos Venâncio Silva. Os impactos do projeto ferro Carajás S11D na comunidade
indígena Xikrin do Cateté e o objetivo do desenvolvimento sustentável da ONU de n. 16. Brazilian
Journal of Development, Curitiba, v.7, n.3, p. 31502-31525. 2021.

363
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

manifestando-se em uma dimensão não só espacial, mas sim, em um espaço


compartilhado por todos os povos do mundo16.
O estudo de componente indígena faz parte desse despertar e
principalmente é necessário para se cumprir o desenvolvimento sustentável o
respeito ao meio ambiente como bem de todos, porém as grandes mineradoras não
se preocupam em verificar a vida das populações tradicionais.
O Estudo de Componente Indígena é regido pela Portaria Interministerial
n.º 60, de 24 de março de 2015 – anexo II-B, que é um ato jurídico originário do
Poder Executivo com diretrizes, instruções e ordens a respeito da aplicabilidade da
lei. Seu objetivo é que a lei seja aplicada de forma correta por isso em muitos casos
ordena a execução de algum serviço. O anexo II-B da referida portaria tem como
propósito a elaboração do Estudo de Componente Indígena, explicando como deve
ser feito, a necessidade da interdisciplinaridade e a importância do feito como meio
de garantir a preservação dos povos indígenas do Brasil.
A importância do ECI para a correta realização da consulta prévia
consiste em entender o lado social da comunidade atingida, tornando – se uma
nova sociedade que quebra o modelo hegemônico globalizado, o qual considerava
os demais povos como entraves ao desenvolvimento, substituindo este pensamento
pelo respeito a diversidade cultural, vivendo em uma sociedade em que o Estado
de Direito multicultural é acatado e elevado por abraçar as diversas culturas,
principalmente as originárias do Brasil.
O ECI se caracteriza pela descrição minuciosa das comunidades e os
impactos diretos e indiretos que venham a sofrer com o empreendimento, nele deve
ser estudado o contexto socioambiental na visão indígena, recursos hídricos, solo,
clima, agricultura, pesca, caça, aspectos ambientais e culturais, bem como aspectos
do meio socioeconômico, contextualizar o desenvolvimento regional, a saúde, a
religião, contudo é uma descrição totalmente fundamentada na pesquisa de campo,
indicando impactos e sua abrangência nas diferentes fases do empreendimento.
Demanda proveniente das externalidades negativas e da falta de licitude
no processo de Licenciamento Ambiental, expondo suas licenças prévia, de

16 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos
humanos no início do século XXI. Organização dos Estados Americanos. Rio de Janeiro, 2006. Dispo-
nível em: https://www.oas.org/dil/esp/407-490%20cancado%20trindade%20oea%20cji%20%20.
def.pdf. Acesso em: 29 jul. 2021.

364
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

instalação e de operação, a falha na elaboração de condicionantes que resguardem


os aos indígenas Xikrins e seu território.

3.1 S11D – LICENÇA PRÉVIA, LICENÇA DE OPERAÇÃO E LICENÇA DE


INSTALAÇÃO

Para a implementação de empreendimento que visa a exploração de


recursos naturais tal como a mineração é essencial que sejam realizados o Estudo
de Impactos Ambientais (EIA) e apresentado o Relatório de Impactos Ambientais
(RIMA), Licenciamento Ambiental, Licença Ambiental, Estudo de Impacto
Ambiental Regional e o poder público deve realizar o controle dos procedimentos
legais tendo como competência expedir Licença Prévia (LP), Licença de Instalação
(LI) e Licença de Operação (LO) conforme Resolução nº 237 do CONAMA.
Nas palavras de Carmem Figueiredo, o licenciamento ambiental é um
dispositivo legal através do qual “órgão ambiental competente licencia a localização,
instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades que utilizam
recursos naturais”, podendo acarretar tanto “ato administrativo de natureza jurídica
vinculada (licença ambiental) ou, quando pertinente, ato jurídico de natureza
discricionária, com caráter precário (autorização ambiental)”.17
Medidas de prevenção, mitigação e/ou compensação são apresentadas
ao passo que haja impactos ambientais identificados nos meios físico, biótico e
socioeconômico. Essas medidas estão reunidas em nos Programas Ambientais,
dispondo do seguinte conteúdo: introdução, objetivo, base legal público alvo,
ações, equipe técnica responsável pela execução do programa.
De acordo com Santos, o empreendimento Ferro Carajás “abrange
uma das maiores áreas de exploração de minérios do mundo e está atrelado às
atividades da Vale18, que é a maior mineradora de ferro do planeta, passando a
ser uma empresa privada por volta de 1998”.19 A Vale possui mais de três décadas

17 FIGUEIREDO, Carmem. Licenciamento Ambiental e Comunidades Indígenas. Rev. Ana Amélia


Viana. Brasil: Ministério da Justiça, 2011. Disponível em: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteu-
do/cglic/pdf/Cartilha_Licenciamento_Web.pdf. Acesso em: 24 mar 2021.
18 Criada em 1º de junho de 1942 pelo então Presidente Getúlio Vargas como a estatal Companhia
Vale do Rio Doce, a Vale é hoje uma empresa privada que figura entre as maiores mineradoras globais
tendo operações realizadas pela empresa em cerca de 30 países (VALE, 2021).
19 SANTOS, Sanmarie Rigaud dos. Conflitos agrários decorrentes da mineração: um estudo do Pro-
jeto Ferro Carajás S11D em Canaã dos Carajás/Pará. 2017. 144f. Dissertação (Mestrado em Direito
Agrário). Universidade Federal de Goiás. 2017. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/

365
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de atividade minerária na região Amazônica, em especial no Estado do Pará e, o


município de Parauapebas abriga a maior reserva mineral do mundo: a Serra dos
Carajás, onde a empresa de mineração Vale atua. Fazendo divisa com Marabá ao
norte, Curionópolis a leste, Canaã dos Carajás e Água Azul do Norte ao sul, e São
Félix do Xingu a oeste.20
A Vale também informa que entre as modernas práticas de automação
e controle, as quais foram adotadas no S11D descritas acima, o uso eficiente dos
recursos energéticos se dá pelo uso de dispositivos inteligentes que adequam o
suprimento de matéria-prima de acordo com as demandas do processo. 21
Lopes, Santos e Cruz descrevem que o S11D funciona com uma usina de
processamento de minério de ferro e possui três linhas de produção sendo que cada
uma delas têm capacidade de processamento de 30 milhões de toneladas/ano uma
vez que o minério é lavrado a céu aberto.22
De acordo com ao art. 8º da Resolução Conama nº 237/1997, estas
licenças ambientais são: a Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença
de Operação (LO), o que caracteriza o licenciamento ambiental como trifásico,
onde cada etapa deverá realizar estudo ambiental minucioso e específico23.
Ao analisar a licença prévia de n º 436/2012 verifica-se em suas
condicionantes gerais com cuidados nos itens que tratam da qualidade do ar,
monitoramento aquífero de carajás, identificação de fauna e flora, porém, dentro
das suas vinte e uma condicionantes exigidas em nenhuma constam menções a
TI Xikrin localizada aos redores do empreendimento e tão pouco encontra – se
referências acerca dos impactos nocivos a mencionada comunidade que habita

bitstream/tede/8203/5/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20-%20Sanmarie%20Rigaud%20dos%20San-
tos%20%20-%202017.pdf. Acesso em: 22 mar 2020.
20 VALE. Complexo S11D Eliezer Batista. Disponível em: http://www.vale.com/brasil/PT/business/
mining/Paginas/s11d.aspx. Acesso em: 30 mar 2021.
21 Ibid., 2021.
22 LOPES, Rafael Rodrigues; SANTOS, Marcelo Melo dos; CRUZ, Thiago Martins da. Mineração
e conflitos pela posse da terra em Canaã dos Carajás: O caso do acampamento Planalto Serra Doura-
da. Revista do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural (UFV), v.7, n.2, jul./dez. 2018. Disponí-
vel em: https://periodicos.ufv.br/rever/article/view/3405/1681. Acesso em: 22 mar. 2020.
23 BRASIL. 2021b. Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBIO). CONA-
MA. Resolução CONAMA Nº 237, de 19 de dezembro de 1997. Disponível em: https://www.icmbio.
gov.br/cecav/images/download/CONAMA%20237_191297.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.

366
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nas proximidades do empreendimento, menosprezando a vida dessa população


tradicional detentora de direitos já pacificados no ordenamento jurídico brasileiro.
A segunda licença a ser conferida é a Licença de Instalação que conforme
o art. 8 º, II da resolução do CONAMA n º 237/97 se concede a instalação
para iniciar a edificação da estrutura do empreendimento minerário, seguindo
as especificações dos projetos devidamente aprovados, devendo constar meios
de controle ambiental e demais condicionantes. Neste momento que acontece a
implantação das condicionantes que são determinantes para a instalação da empresa
bem como para as demais condicionantes que virão na fase de operação.
Licença de Instalação 947/2013 que também em suas condições
específicas não trata dos Xikrins, referindo-se somente a biota aquática a ictiofauna,
compensação ambiental, PBA, preservação de lagoas, deixando novamente de lado
a população tradicional e os impactos sociais e as violações ambientais para segundo
plano.
Posteriormente, confere-se a Licença de Operação, na qual se atinge
a concordância para começar a operar, autorizando o funcionamento do
empreendimento, regida pelo art. 8º, III da Resolução 237/97 do CONAMA,
após averiguação dos requisitos pedidos nas licenças anteriores (LP e LI). É nesse
momento que os maquinários começam a funcionar e controlar a poluição e
demonstrar na prática se as exigências de controle ambiental estão sendo cumpridas.
Mesmo com as falhas na elaboração das condicionantes e a continuação
dos impactos sociais e das violações ambientais na TI Xikrin, a Licença de operação
nº 1361/2016 foi concedida e o empreendimento passou a vigorar com um prazo
de 10 anos, autorizando a exploração dentro dos domínios da Floreta Carajás
localizada no bloco D do corpo S11 de Serra Sul e com as condicionantes que
excluíram os vizinhos Xikrins de qualquer medida mitigadora ou compensatória
pelos impactos negativos.
As licenças seguem os parâmetros de permissividade temporal, pois, são
admitidas modificações, suspensões ou cancelamentos no caso de não observância
de condicionantes, em especial as relacionadas a riscos ambientais ou a populações
tradicionais. Tal prática tem como objetivo que o empreendedor fique atento,
monitorando e cuidando das questões ambientais.
No estudo em pauta percebeu – se que a concessão das três licenças; LP,
LI e LO aconteceu sem um completo Relatório de Impactos Ambientais, de um
Plano Básico Ambiental e de Plano de Controle Ambiental, em consonância com os

367
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

povo indígena Xikrin que tem seu território na região vizinha ao empreendimento
S11D, onde o instituto da consulta prévia livre e informada não respeitou as
especificidades da TI Xikrin, que a falta do ECI é um problema latente que acarreta
na constante internalização das externalidades negativas pela comunidade, que
segue bravamente aguardando por uma CPLI adequada, assim como que seja
realizado o ECI e principalmente por uma mudança de paradigma do Governo.
A instalação e o desenrolar do Programa Grande Carajás, com excepcional
atenção ao S11D, aos olhos do autor Coelho são 30 anos de desenvolvimento
frustrado, uma tragédia humana, anunciando um futuro de injustiça socioambiental
e econômica, enfraquecendo o Estado Democrático de Direito pela não atenção as
comunidades tradicionais atacadas pelo empreendimento24.
Acerca disso, Reymão e Coimbra, tratam sobre a dicotomia de regiões
que embora ricas em recursos naturais, convivem com elevados percentuais de
pobreza e desigualdade, resultados dessa exploração não amparada pela participação
das comunidades tradicionais envolvidas direta ou indiretamente, através de
informações e com uma gestão de transparência25. Sendo defendido nesta pesquisa
a hipótese da criação de um Comitê de Monitoramento Participativo como meio de
habilitar a comunidade Xikrin a participar efetivamente no instituto da Consulta
Prévia, auxiliando na elaboração de Estudo de Componente Indígena que fomente
a reorganização do licenciamento ambiental suprindo as falhas nas condicionantes
das licenças; prévia, instalação e de operação. Elaborando as devidas condicionantes
ambientais e socioeconômicas ligadas a etnia Xikrin e assim conseguir suprir as
obrigações do Estado, bem como de proteger a TI Xikrin, prevenindo novos
fatores nocivos, conjecturando uma interligação dos níveis de proteção, interno e
internacional como será abordado no próximo tópico.
Deve-se alertar que o papel do estado brasileiro por ser um estado
democrático de direitos deve reduzir a desigualdades regionais e sociais como forma
de materializar o direito ao desenvolvimento da pessoa humana.

24 COELHO, Tádzio Peters; ZONTA, Márcio; TROCATE, Charles. Projeto Grande Carajás: trinta
anos de desenvolvimento frustrado. A Questão Mineral no Brasil v.1. Marabá: iGuana, 2015.
25 REYMÃO, Ana Elizabeth Neirão; COIMBRA, F.; MERLIN, L. Políticas públicas, orçamento
participativo e representação democrática na era digital. Direito e Desenvolvimento, v. 10, n. 1, p. 33-
50, 16 jul. 2019.

368
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4 O COMITÊ DE MONITORAMENTO PARTICIPATIVO

A mineração é uma atividade ligada ao desenvolvimento do país, podendo


ser um instrumento muito valioso para transformar a riqueza mineral em um modo
de gerar desenvolvimento para além da concepção tradicional de desenvolvimento
sustentável, isto é, no preenchimento das falhas sobre questões basilares como as
transformações socioculturais e políticas.
Com base nisso, passou-se a compreender que não apenas o meio
ambiente não poderia ser tratado como homogêneo, mas as consequências de
sua degradação igualmente não podem, haja vista que cada uma das populações
tradicionais desenvolve com a natureza sua respectiva autodeterminação e sua
relação interdependência com o território.
Nessa toada, com um olhar específico para a população tradicional
Xikrin, é visível a necessidade de participação mais presente dessa comunidade
nas decisões que lhes dizem respeito, buscando uma maior independência e ainda
viabilizar meios para a oitiva da comunidade evitando danos e mudanças na sua
organização social.
Bentes, Pereira e Assunção relatam que a comunidade é atingida
diretamente pela carência de políticas públicas na região que ocupam. Além disso, é
importante ressaltar que as normas de direito foram violadas pelo empreendimento
levando diversas perdas aos povos indígenas, em especial ao povo Xikrin, deixando
a comunidade Xikrin em segundo plano diante do empreendimento minerário,
ignorando os impactos sofridos pela referida comunidade tradicional26.
Bentes, Pereira e Assunção também afirmam que a comunidade indígena
em comento vem perdendo sua identidade cultural e histórica, seu modo de vida
peculiar e suas tradições em virtude do Projeto Ferro Carajás, pois a Vale não
realizou o Estudo de Componente Indígena – ECI, não há oitivas da comunidades
para que a mineradora tome ciência do que é esperado como contrapartida pelos
indígenas e tão pouco estabelece medidas para sanar ou diminuir a distância dessa
falta de comunicação, lembrando que o ECI é arraigado no instituto da Consulta

26 BENTES, Natalia Mascarenhas Simões; PEREIRA, Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira;
ASSUNÇÃO, Marcos Venâncio Silva. Os impactos do projeto ferro Carajás S11D na comunidade
indígena Xikrin do Cateté e o objetivo do desenvolvimento sustentável da ONU de n. 16. Brazilian
Journal of Development, Curitiba, v.7, n.3, p. 31502-31525. 2021.

369
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Prévia, ficando nítido as falhas no licenciamento ambiental do empreendimento


minerador S11D27.
Desse modo, a criação de um comitê de monitoramento participativo,
com a mineradora Vale, as pessoas envolvidas no projeto S11D, os membros da TI
Xikrin e todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente nos impactos, atuando
como um controle externo, como meio de colaborar com o Estado e em suas
políticas públicas.
Ao abordar a realidade da comunidade indígena Xikrin, elucidando o
problema no tocante a liberação das licenças do empreendimento S11D, pelo órgão
do Governo Federal – IBAMA, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente nada foi
providenciado no sentido de realizar o ECI e provável elaboração de condicionantes
que resguardem os direitos do povo Xikrin, o qual continua submetido a inúmeros
impactos e violações de cunho ambiental e social acarretando na destruição cultural,
do modo de vida e da cosmovisão da etnia Xikrin.
A participação indígena na construção de políticas públicas diferencia-se
de outros grupos sociais à medida que é representativa de uma coletividade que se
distinguem da maioria da sociedade nacional.
Sanson salienta, nessa senda, que os grupos de pressão acabam tornando-
se uma relevante via participativa, onde é possível o aprimoramento democrático,
pois são precursores da canalização das vontades de células sociais setorizadas que,
muitas vezes, se alocam em um posicionamento contra majoritário e fora do sistema
estatal, o que leva aos titulares do poder o (re) conhecimento de diversas realidades
até então não consideradas28.
Diante disso, fomentar o processo de participação dos Povos Indígenas
com o objetivo de possibilitar a discussão de seus direitos e garantias é maneira de
criar política pública para cumprir com os requisitos internacionais e nacionais
sobre os direitos dessa comunidade, como medidas de intervenção de modo a
impactar a realidade local da TI Xikrin.

27 ENTES, Natalia Mascarenhas Simões; PEREIRA, Alsidéa Lice de Carvalho Jennings Pereira;
ASSUNÇÃO, Marcos Venâncio Silva. Os impactos do projeto ferro Carajás S11D na comunidade
indígena Xikrin do Cateté e o objetivo do desenvolvimento sustentável da ONU de n. 16. Brazilian
Journal of Development, Curitiba, v.7, n.3, p. 31502-31525. 2021.
28 SANSON, Alexandre. Os Grupos de Pressão e a Consecução de Políticas Públicas. In: SMANIO,
Gianpaolo Poggio. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. O direito e as políticas públicas no Brasil. São
Paulo: Atlas. 2013, p. 117-136.

370
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse sentido, quando os povos indígenas são vistos e se organizam como


verdadeiros grupos de pressão, passam a integrar e se consolidar nos espaços públicos
decisórios, principalmente porque, conforme Moreira, as decisões em matéria
ambiental devem ser construídas coletivamente e contando com a participação
direta dos titulares do patrimônio socioambiental29.
De acordo com Arruda e Ferraz os líderes de direitos humanos assumem
papel de magnitude na luta pela concretização dos direitos das populações que sofrem
violações por parte de determinados grupos políticos e econômicos, os defensores
atuam em benesse de indivíduos singulares ou agrupados, lidam prosperando a
proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais30.
O empreendimento minerador S11D funciona como uma usina de
processamento de minério de ferro, pertencente ao empreendimento Ferro Carajás
executado pela empresa Vale, na região da Amazônia brasileira, onde empresa
e Governo foram os principais violadores das normas de proteção humanista
indígena. Prevalecendo-se da obtenção de lucro com a exploração de minério de
ferro, defasando em grande parte os direitos do povo Xikrin.
No caso do povo indígena Xikrin, povo originário das terras que em
suas proximidades ocorre a exploração de minério de ferro, através das atividades
do empreendimento S11D pertencente da mineradora Vale S.A., é evidente que o
Estado não cumpriu com todos os requisitos legais do processo de licenciamento
ambiental sob os parâmetros internacionais na proteção dos direitos dos povos
indígenas ao deixar de cumprir corretamente o instituto da CPLI e o pedido da
FUNAI de realizar o ECI, sendo a ausência do Estado o principal caucionador de
violações a comunidade Xikrin.
Neste cenário, a participação efetiva da comunidade indígena Xikrin,
orientado pelas questões debatidas pela Corte IDH, em similitude com o caso
pioneiro do Povo Indígena Mayagna (Sumo) Awas Tingi vs. Nicarágua, onde a
Corte IDH vislumbrou a importância da proteção judicial e da demarcação de
terras indígenas e de todo o recurso natural nela existente, concedendo a proteção
judicial a propriedade comunal.

29 MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. Justiça socioambiental e direitos humanos: uma análise a partir
dos direitos territoriais de povo e comunidades tradicionais. Rio Janeiro: Lumen Juris, 2017.
30 ARRUDA, Paula; FERRAZ, Natasha; RODRIGUES, Alessandro Baltazar. Conflitos jurídico polí-
ticos na Amazônia e o caso dos defensores e das defensoras dos direitos humanos no Pará. 1. ed. São Paulo,
2018.

371
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Andrade relata que as sentenças se caracterizam por serem prestações


jurisdicionais provocadas pelo exercício do direito de ação, sendo a sentença uma
afirmação do direito proveniente de um caso concreto. O mesmo autor afirma
também que as sentenças internacionais podem ser definidas como declarações
de vontade aptas a produzir efeitos no direito internacional, oriundas de entes
dotados de personalidade jurídica, as organizações internacionais, tendo natureza
jurídica de atos jurídicos, neste contexto o Brasil não pode se deixar de respeitar
ao cumprimento das decisões da Corte Interamericana, mesmo sob o argumento
da sua soberania ou as previsões constantes do seu ordenamento jurídico interno.31
De acordo com Moreira, no período pós-CF/88, esse ideal pode ser
exemplificado pela adesão brasileira aos principais tratados internacionais32.
Ao longo do presente estudo, verificou-se que a celebração de tratados e
a atuação das organizações internacionais de proteção aos direitos humanos, como
a CADH e sua Corte IDH, respectivamente, se consolidaram como instrumentos
de combate à impunidade e de preservação da ordem jurídica de acordo com
o entendimento de Andrade (2021 p. 286), em um mundo caracterizado por
intensos conflitos e crises político-sociais, além das omissões estatais, que, em
muitas situações, dão causa a profundas violações contra os direitos humanos no
continente americano.
As diretrizes da Corte IDH são totalmente cabíveis a problemática
vivenciada pelo povo Xikrin, pois apesar de terem suas terras demarcadas, sofrem
diariamente, com a internalização das externalidades negativas, devido as explosões
nas proximidades de suas terras, acarretando em violações de cunho econômico
social cultural e ambiental, pela destruição dos recursos naturais em sua propriedade
comunal, suportando um clima de total insegurança jurídica quanto a seus direitos
e a desafiadora manutenção de suas práticas como como a caça, pesca, colheita de
frutos e de castanhas fundamentais para a sobrevivência da comunidade Xikrin.
Seguido pelo caso do Povo Saramaka vs. Suriname, onde a Corte
IDH além de observar os malefícios das externalidades negativas, reconheceu a
personalidade jurídica da comunidade e a importância desta para o acesso à justiça,
para que fosse ouvido as ponderações da comunidade, semelhante ao povo Xikrin

31 ANDRADE, Lúcia Mendonça Morato de. Terras Quilombolas: pressões e ameaças. Comissão
Pró-Índio de São Paulo, 1. ed., São Paulo, 2011. Disponível em: https://cpisp.org.br/wp-content/
uploads/2019/03/Pressoes_ameacas.pdf. Acesso em: 16 nov. 2020.
32 MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela juris-
dição brasileira. Natal: Edufrn, 2015.

372
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

que constituiu três associações; Associação Indígena Bayprã de Defesa do Povo


Xikrin do Oodjã, Associação Indígena Porekrô de Defesa do Povo Xikrin do Cateté
e Associação Indígena Kakarekre de Defesa do Povo Xikrin do Djudjeko como
meio de ingresso ao Judiciário em busca da garantia de seus direitos humanos. A
mesma sentença também reconheceu grupo étnicos portadores de modo de vida
peculiar e portadores de direitos, baseado no direito consuetudinário.
Em âmbito nacional, no Brasil, a sentença proferida em favor do Povo
Xucuru, condenando o Brasil, ratificou a proteção das terras indígenas e que é dever
dos Estados organizarem parâmetros que assegurem juridicamente o exercício
dos direitos humanos, dentre eles a oitiva da comunidade, sendo o Estado o ente
que deve garantir o uso e gozo da propriedade comunal e dos recursos naturais
pertencentes a mesma, de modo que não afete a existência da comunidade, sua
cultura, religião, organização social, etc.
Ao fazer uma analogia ao povo Xikrin mostra-se evidente que, o Estado
não está conseguindo cumprir sua função de manter o modo de vida peculiar da
etnia Xikrin, como o uso e gozo dos recursos naturais da terra indígena Xikrin,
a qual vem sendo destruída silenciosamente com a dispersão da caça e da pesca,
assim como o arruinamento do solo, ocasionando escassez de plantio e de colheita.
Outro fator imprescindível é o não cumprimento correto da Consulta Prévia, para
que esses problemas possam ser relatados e venham a ser sanados ou mitigados pelo
Estado e pela mineradora Vale.
Recentemente, o caso dos membros da Associação Lhaka Honhat vs
Argentina, o qual a Corte IDH contemplou a violação ambiental como direito
humano e fundamental dos povos indígenas, reconhecendo a vulnerabilidade dos
indígenas envolvidos perante os mega empreendimentos, acatando o DESCA-
direitos econômicos sociais culturais e ambientais, como forma de abraçar mais
garantias aos povos indígenas em seus territórios, asseverando uma maior segurança
jurídica. Congênere aos membros da Povo Xikrin a Corte IDH, contribui
mostrando que as externalidades negativas sofridas diariamente pelos Xikrins é
uma violação de cunho humano, pois a ação deletéria de empreendimento S11D,
mesmo que indiretamente, viola a natureza das terras Xikrin, consequentemente
garantias humanísticas asseguradas aos povos indígenas.
As diretrizes provenientes das sentenças da Corte IDH, podem auxiliar na
construção de políticas públicas inclusivas, democráticas, parametrizando o âmbito
nacional e internacional, de modo eficaz no que toca os direitos humanos, em
especial dos Xikrins. Enfatizando que a consulta prévia e o estudo de componente

373
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

indígenas são institutos legais ligados a questões políticas de interesse do Estado,


infelizmente o olhar da gestão governamental costuma ser mais interessado em
questões econômicas e chamadas de desenvolvimentistas.
A criação de um Comitê de Monitoramento Participativo da Comunidade
Xikrin e do empreendimento, custeado pela empresa vale e baseado na análise das
decisões da Corte IDH é uma afirmação dos direitos do povo Xikrin, também
como órgão capaz de ajudar na elaboração de políticas indigenistas usando como
parâmetro a vasta jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
no que tange os direitos humanos, ambientais e sociais, prezando pela não violação
do direito à garantia judicial de prazo razoável, à proteção judicial e à propriedade
coletiva. Ao considerar as condicionantes elaboradas pelo EIA/ RIMA, deve-se
assegurar os direitos dos povos indígenas, a autodeterminação e a função social da
terra para os Xikrin, entendendo que para eles o território é a vida e que eles possam
se desenvolver com segurança considerando todas as nuances de sua cultura.
Importante ressaltar que o objetivo do comitê de monitoramento não
é responsabilizar o Estado Brasileiro perante a Corte IDH, muito menos punir a
mineradora Vale, a proposta é a elaboração de soluções a médio e longo prazo para
políticas públicas obsoletas, melhoria na oitiva da comunidade e principalmente
mitigar as externalidades negativas.
O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos pode
indicar um norte para criação de um Comitê de Monitoramento Participativo
obedecendo os moldes dos mecanismos de especialistas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas, aprimorando a prática da dialogicidade, por poder alcançar todas as
fases de um empreendimento e acompanhar a vida útil da atividade mineradora,
sedimentando um diálogo permanente ocasionando uma maior participação de
acordo com as mudanças do meio ambiente e das mudanças ligadas ao campo
jurídico nacional e internacional, proporcionando assim, melhores resultados na
efetivação dos direitos humanos para etnia Xikrin e aplicabilidade de uma proteção
ativa e uma governança atuante.
Sendo também, uma possível forma de amenizar a problemática
envolvendo a judicialização dos conflitos socioambientais atribuindo um maior
esforço na implementação da ODS nº 16, qual seja: “Promover sociedades pacíficas
e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça
para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os

374
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

níveis”33, notoriamente no que concerne aos pontos 16.3 e 16.7, respectivamente,


“Promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a
igualdade de acesso à justiça para todos” e “Garantir a tomada de decisão responsiva,
inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”.
Estas metas são importantes, uma vez que a judicialização dos conflitos
socioambientais está longe de representar o que almeja a Justiça Socioambiental e ao
racismo ambiental, isto porque é estabelecida uma repartição ínfima dos benefícios
econômicos da atividade mineradora às comunidades indígenas envolvidas nesses
territórios, pois, ainda que não seja exatamente nas terras indígenas, os impactos
dos empreendimentos minerais continuam a modificar o modo de vida dessas
populações.
Segundo a Organização Terras Indígenas no Brasil, o povo Xikrin é uma
comunidade indígena que se encontra na região sudeste do Pará, possuindo três
aldeias (povos) as quais se localizam entre as cidades de Parauapebas, Água Azul do
Norte e Marabá. A comunidade é formada por mil cento e oitenta e três indígenas
e suas terras correspondem a 439.150,5 hectares, sendo 266.191,64 no Município
de Parauapebas. A demarcação do território indígena foi homologada através do
Decreto n. 384 de 26 de dezembro 199134.
Há, nesse cenário, uma lacuna substancial acerca da participação dessas
comunidades na tomada de decisões, de modo que não são compreendidas como
capazes de estabelecer efetivos limites e receber contrapartidas provenientes das
grandes empresas mineradoras, justamente porque seu papel em termos de acesso à
justiça – no sentido lato, em todos os níveis, a começar pelos ajustes administrativos
– está bastante distorcido daquilo que propõe o Objetivo de Desenvolvimento
Sustentável nº 16.
Novamente para atestar isto, o povo Xikrin arrasta uma disputa judicial
deles contra a Vale S/A, através da ação judicial n º 00238385/2012.40.139.05 e no
agravo de instrumento n º 004210684.2015.4.0.0000 ambas ajuizadas no TRF1e
alguns órgãos do estado, que já chegou no Superior Tribunal de Justiça, onde a
referida comunidade tradicional busca a paralisação da S11D, em decorrência
das inúmeras externalidades negativas advindas da atividade minerária que são

33 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Relatório de auditoria coordenada na preparação do Go-


verno Federal para a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – Fase Nacional:
relatório técnico. Brasília, 2017.
34 BRASIL. https://terrasindigenas.org.br/ disponível em https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-
-indigenas/3646. Acesso em: 1 dez. 2020.

375
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

internalizadas pela comunidade. A comunidade visa, dentre outras questões, o


reconhecimento de que foi ignorada no processo de licenciamento do complexo
de mineração, cujos coparticipes IBAMA, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará
e a própria FUNAI, órgãos federais e estatais que deveriam proteger a TI Xikrin e
cuidar de seus interesses.
A situação dos povos tradicionais no estado do Pará tem a possibilidade
de sofrer uma significativa reviravolta a partir das ações que o Poder Público irá
implementar com base no marco foi estipulado por meio da Portaria nº 20/2020
da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas35. Trata-se do inovador
“Observatório ODS do Governo do Estado do Pará”, que é diferenciado para a
Região Amazônica em dois aspectos: por ser o primeiro no país vinculado a uma
Fundação de Amparo à Pesquisa e por ser o primeiro estado a adotar, formalmente, o
modelo elaborado pela Rede ODS Brasil para a Câmara Temática Parcerias e Meios
de Implementação da Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável.
Nesse sentido, a FAPESPA, como membro do “GT Acompanhamento
de Progresso da Agenda 2030”, tem a basilar incumbência de fomentar a troca
de experiências entre governos municipais e estaduais que alinharam a sua gestão
às Agendas de Desenvolvimento da ONU, o que demonstra que o Pará não está
alheio aos protocolos internacionais de desenvolvimento sustentável e é mais um
potencial mecanismo de apoio à resolução dos problemas envolvendo a atividade
mineradora do estado e a comunidade Xikrin.
Sendo assim, é iniludível que este protótipo de modelo político urge
mudar. Nesse contexto inovador, Soares e Arruda declaram que uma argumentação
de direitos multinível (engloba todos os níveis: regional, nacional e internacional),
e deve ser pautada em insistir numa atuação que alcance os diferentes níveis
simultaneamente, conseguindo assim, a preservação e garantia de direitos humanos
fundamentais, em especial ao vulnerabilizados36. Fazendo uso do requisito basilar
da dialogicidade e a correlação entre as esferas, ações primordiais para o combate de
violações humanas e formulação de políticas enérgicas.

35 FAPESPA. Portaria nº 20/2020, de 29 de janeiro de 2020. Cria o Observatório dos Objetivos de


Desenvolvimento Sustentável-Observatório ODS, dentro da estrutura da FAPESPA. Diário Oficial
do Estado do Pará, Belém, PA, 30 jan. 2020. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/13AL-
4jstd_amaQ7uCZv0amc-53xRxaCo0/view. Acesso em: 17 jun. 2020.
36 SOARES, João Gabriel; ARRUDA, Paula Regina Benassuly. Proteção de direitos humanos: o caso
das quebradeiras de coco babaçu. Arquivos Brasileiros de Psicicologia. Rio de Janeiro, v. 70, n. 3, p.
213-231, 2018.

376
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Diante da explanação é nítido que a empresa Vale através do seu


projeto S11D, descartou a atenção aos Xikrins, violando direitos e costumes,
visando somente adquirir lucros exorbitantes através da exploração de recursos
minerais, sendo a única beneficiada as custas tanto do meio ambiente quanto da
marginalização da etnia Xikrin.

5 CONCLUSÃO

Em linhas conclusivas, o presente estudo buscou analisar em que


medida o Estado brasileiro possui legislação ou políticas públicas para a proteção
mediante a imprecisão existente no tratar dos direitos do povo indígena Xikrin
frente ao empreendimento minerador S11D, alumiando que os representantes das
grandes empresas sempre encontram uma maneira de burlar a legislação vigente
que contempla os povos originários, com anuência o Estado, algumas vezes se
valendo da falta de informação destes. A ausência do Estado quanto mediador de
conflitos sociais, assentindo as violações de direitos inerente ao povo Xikrin e aos
seus territórios.
As consequências sociais, culturais, ambientais e até jurídicas do contato
entre os não indígenas e indígenas influenciam negativamente a situação desse
povo. É sabido que exploração de minérios para produção de inúmeros produtos
utilizados pela sociedade em geral é essencial, porém é essencial também que a
exploração dos recursos naturais seja realizada seguindo as legislações vigentes,
dentro do contexto de desenvolvimento sustentável, da justiça socioambiental,
do meio ambiente equilibrado e sadio principalmente afiançando as garantias
fundamentais dos povos existentes nas proximidades dos empreendimentos
exploradores de recursos naturais.
A partir do conhecimento e compreensão dos direitos indígenas,
pertinente à história da Amazônia, nota-se um esforço mítico destes povos para
serem respeitados, como qualquer indivíduo autônomo e ciente de si no mundo;
povos originários do Brasil na Amazônia - povo indígena Xikrin, livre para não
aceitarem, que terceiros ou qualquer fator externo venha a modificar de forma
negativa suas vidas ou que falem em seus nomes, interesses, territórios e identidades.
Desse modo, a elaboração de comitê participativo, com a mineradora
Vale, as pessoas envolvidas no projeto S11D, os membros da TI Xikrin e todos
aqueles envolvidos direta ou indiretamente nos impactos, atuando como um
controle externo, como meio de colaborar com o Estado e em suas políticas

377
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

públicas. A participação indígena na construção de políticas públicas diferencia-se


de outros grupos sociais à medida que é representativa de uma coletividade que se
distinguem da maioria da sociedade nacional.
Diante disso, fomentar o processo de participação dos Povos Indígenas
com o objetivo de possibilitar a discussão de seus direitos e garantias é maneira de
criar política pública para cumprir com os requisitos internacionais e nacionais
sobre os direitos dessa comunidade, como medidas de intervenção de modo a
impactar a realidade local da TI Xikrin.
Assim, respeitar a cultura, a identidade, o modo de vida e a ancestralidade
do Povo Indígena com a sua terra, de preservar, os recursos naturais inerentes terras
dos Xikrin como meio de garantir a reprodução física e cultural, segundo os usos,
costumes e tradições desse Povo. Valorizando e valorando a região Amazônica, onde
as populações tradicionais, neste caso a comunidade Xikrin é riqueza e deve ter seu
valor devidamente atribuído.

378
REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri. MELLO Cecília Campelllo Amaral e BEZERRA, Gustavo


das Neves. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

ANDRADE, Lúcia Mendonça Morato de. Terras Quilombolas: pressões e ameaças.


Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1. ed., São Paulo, 2011. Disponível em:
https://cpisp.org.br/wp-content/uploads/2019/03/Pressoes_ameacas.pdf. Acesso
em: 16 nov. 2020

ARRUDA, Paula; FERRAZ, Natasha; RODRIGUES, Alessandro Baltazar.


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direitos humanos no Pará. 1. ed. São Paulo, 2018.

BENTES, Natalia Mascarenhas Simões; PEREIRA, Alsidéa Lice de Carvalho


Jennings Pereira; ASSUNÇÃO, Marcos Venâncio Silva. Os impactos do projeto
ferro Carajás S11D na comunidade indígena Xikrin do Cateté e o objetivo do
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382
O direito à saúde no âmbito do Sistema Interamericano de
Proteção aos Direitos Humanos

Thayná Raissa de Oliveira Chaves1


Thiago Oliveira Moreira2

1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde é indispensável para o usufruto e proteção dos demais


direitos humanos, fator que ficou ainda mais evidenciado diante do cenário de
pandemia mundial vivenciado desde o ano de 20203. Dessa forma, é manifesto a
importância de sua positivação em todas as esferas de proteção aos direitos humanos.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a saúde é um
direito social e fundamental. A proteção ampla dada a essa matéria na normatização
brasileira proporcionou a tutela individualizada deste direito, dessa maneira, em
razão da aplicação do previsto na Constituição não ser efetivado nas vias de fato,
as ações envolvendo o direito à saúde ocupam um número considerável da pauta
judicial do país na atualidade.
A proteção do direito à saúde também é verificada no sistema global na
Declaração Universal de Direitos Humano (DUDH), que estabelece que todo ser
humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


2 Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Chefe do Departamento de Direito Privado da UFRN. Vice-coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFRN. Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Di-
reito Internacional (ABDI). Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos
e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN).
3 Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia.

383
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

saúde, nesse mesmo sentido, em prol da luta pela garantia e promoção dos direitos
humanos, com a finalidade de adotar medidas em conformidade com as realidades
locais, foram criados sistemas regionais e, entre esses, aquele que será objeto de
estudo do artigo: o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
(SIPDH).
Na SIPDH o direito à saúde é previsto expressamente no art. 10 do
Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, de 1999, que estabelece à garantia universal a esse direito, além
de instituir obrigações aos Estados parte a fim de tornar efetiva tal previsão.
Nessa vertente, trata-se de um direito muito mais amplo, que necessita de
proteção em âmbito local, regional e universal, dessa forma, torna-se proeminente
o entendimento de como o Sistema Interamericano dispõe acerca das questões
relacionadas ao direito à saúde. Nessa perspectiva, indaga-se como o direito à saúde
é abordado no Sistema Interamericano?
Com o intuito de responder tal questionamento será feita uma
análise acerca das normativas e pronunciamentos desse sistema concernente à
matéria de proteção ao direito à saúde, tendo como objetivo a compreensão da
abrangência dessa proteção. Nessa vertente, além dos pronunciamentos do Sistema
Interamericano, também terá um papel importante a visão doutrinária acerca da
matéria, encontrada em revistas jurídicas, artigos e livros, com especial destaque a
autores como Flávia Piovesan e Oscar Parra Vera.
Nesse sentido, cabe elucidar que a coleta de dados para a análise
jurisprudencial dos casos envolvendo à tutela do direito à saúde pela Corte
Interamericana (Corte IDH), foi feita prioritariamente por meio do site4, no espaço
destinado a pesquisa foi colocada a palavra salud, o que gerou 936 resultados e, a
partir desses resultados, ocorreu a seleção de dados relevantes ao artigo.
Por fim, espera-se que com esse estudo seja possível propagar o acesso ao
conhecimento de qualidade, diante a importância do tema da proteção ao direito
à saúde no Sistema Interamericano, e que seja compreendido como esse sistema
regional vem se posicionando e como isso impacta a tutela do direito em tela.

4 Disponível em: https://corteidh.scjn.gob.mx/buscador/busqueda.

384
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2 A PROTEÇÃO NORMATIVA DO DIREITO HUMANO À SAÚDE NO


SISTEMA INTERAMERICANO

Neste capítulo será brevemente analisada a evolução das normativas


dos direitos humanos, em especial daquelas que envolvem o direito à saúde, para,
posteriormente, ser possível realizar um estudo acerca das decisões e posicionamentos
do Sistema Interamericano relativo ao direito à saúde.
Para tanto é importante compreender que após a Segunda Guerra
Mundial, diante das atrocidades cometidas e com o intuito de reprimir futuras
situações semelhantes, os direitos humanos ganharam visibilidade e começaram a
ser protegidos a nível global pela Organização das Nações Unidas (ONU).
No plano internacional o direito à saúde é previsto no artigo 25 da
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (DUDH/ONU), por meio
desse instituto começou a existir um reconhecimento do direito à saúde para o
indivíduo e seus familiares, além de diversos outros direitos ligados a ele, como
de serviços sociais indispensáveis, na hipótese de desemprego, doença, velhice ou
outros casos que resultem na perda dos meios de subsistência do indivíduo5.
Na progressão dos direitos humanos outro passo importante foi
a elaboração do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, apesar dos direitos
humanos serem indivisíveis, os respectivos direitos foram abordados em tratados
diferentes em razão da forte influência histórica no momento de elaboração dos
tratados, tendo em vista que ocorria a guerra fria, momento em que o bloco
capitalista enfatizava os direitos humanos civis e políticos e o bloco socialista os
direitos humanos econômicos, sociais e culturais6. Nesse sentido, os países capitalistas
alegavam que os direitos humanos econômicos, sociais e culturais deveriam ser
concretizados a longo prazo com medidas a serem perseguidas pelo Estado e os
direitos humanos civis e políticos podem ser aplicados de forma imediata, cabe

5 PEREIRA GURGEL, Y. M.; DE OLIVEIRA SILVA, G. D. O fornecimento de medicamentos


essenciais ao tratamento da AIDS no contexto do direito à saúde na organização mundial do comér-
cio. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 10, n. 1, p. 98, 21 jan. 2018. Disponível
em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/13462/9136. Acesso em:
12 dez. 2021.
6 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos.
2. ed. v. I, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2003.

385
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

destacar que tal raciocínio poderia significar a diminuição da importância dos


direitos sociais, econômicos e culturais7.
A ONU também incentivou a proteção desses direitos a nível regional,
nesse sentido, fomentando a criação dos três sistemas regionais para proteção dos
direitos humanos, que são o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos,
o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Sistema Africano
de Proteção dos Direitos Humanos.

2.1 BREVES ASPECTOS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE


PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

O primeiro passo relevante para a formação do Sistema Interamericano


foi a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA), que ocorreu diante da
aprovação da Carta de Bogotá, em 30 de abril de 1948, sendo, concomitantemente,
aprovada a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.
Ademais, a Carta OEA foi reformada diversas vezes, a primeira feita por
meio do Protocolo de Buenos Aires, em 1967, momento em que foi instituída
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão consultivo da
OEA que tem como principal função a promoção dos direitos humano8.
Nessa acepção, sucedendo esse marco, em 1969 ocorreu a aprovação da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) - também conhecida
como Pacto de San José da Costa Rica - que entrou em vigor em 1978, esse
instrumento foi essencial no processo de formação do Sistema Interamericano9 e
no avanço da proteção aos direitos humanos, todavia, é importante destacar que a
CADH foi criada no intuito de ser uma proteção complementar àquela fornecida
dentro da ordem doméstica dos Estados-partes, atuando diante da inação ou
comissão estatal contrária aos preceitos da CADH10.

7 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 16. ed. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 247.
8 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2016. p. 126-137.
9 MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela jurisdi-
ção brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 74-75.
10 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: MÉTODO, 2019, p. 136.

386
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Na tarefa de auxiliar no monitoramento e controle da atuação estatal o


SIDPH é constituído pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão Interamericana foi criada
em 1959, mas somente em “1965 a CIDH foi autorizada a receber e processar
denúncias ou petições de casos individuais nos quais se alegavam violações dos
direitos humanos”11. Quanto à Corte, teve sua criação em 1979 pela Convenção
Americana sobre Direitos Humanos com o fim de proteger e garantir os direitos
humanos, principalmente aqueles previstos na Convenção12, além de criar a Corte
IDH, a Convenção ainda estabeleceu novas atribuições a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos que passou a ser um órgão da OEA e da CADH13.
Na CADH são abordados um rol de direitos, que tem como base seus
dois primeiros artigos que tratam da obrigação dos Estados de respeitar os direitos
(artigo 1º) e o dever de adotar disposições de direito interno que compactue com
o disposto na CADH (artigo 2), além disso trata de matéria de direitos civis e
políticos (artigos 3 ao art. 25), sendo apenas citados os direitos econômicos, sociais
e culturais (artigo 26), além de ser mencionado os meios de proteção às normativas
citadas (artigos 33 a 73) e as questões administrativas referente aos procedimentos
e organização interna da SIPDH.
O artigo 26 da CADH trata especificamente da obrigação dos Estados
membros de desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e sobre
educação, ciência e cultura, nesse sentido, cabe elucidar que dentro dos direitos
sociais está inserido o direito à saúde, dessa forma, é essencial compreender como os
direitos sociais são vistos na SIPDH, o que será melhor analisado logo em seguida.

2.2 OS DIREITOS SOCIAIS SOB A ÓTICA DO SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Com efeito, o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos


seguiu a mesma linha da Organização das Nações Unidas (ONU), separando a
matéria dos direitos civis e políticos dos sociais, econômicos e culturais, sendo o
primeiro grupo de direitos amplamente tratados no Pacto de San José da Costa Rica

11 CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/


jsForm/?File=/pt/cidh/mandato/que.asp. Data de acesso: 30 dez. 2021.
12 TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema interamericano de direitos humanos: pela defesa dos direitos
econômicos, sociais e culturais. 1. ed. Curitiba: Appris, 2014. p. 151.
13 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 509.

387
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e o segundo mencionado como direito programático, com progressão vinculada


às questões orçamentárias dos Estados14, estando mais presente no Protocolo
Adicional de San Salvador.
Em que pese tal separação, em diversas manifestações de órgãos
internacionais, incluindo aquelas feitas pelo Sistema Interamericano, é evidente
que todos esses direitos são um todo indissolúvel, dessa forma, havendo esta
separação de matéria apenas em razão de considera-se que os direitos econômicos,
sociais e culturais requerem uma flexibilização maior, devendo os avanços serem
progressivos e proporcionais a realidade de cada país, não obstante essa transigência
na aplicação desses direitos, cabe elucidar que os Estados signatários da CADH têm
o dever de não regressão da proteção desses e outros direitos15.
Nesse enfoque, é relevante citar que, de acordo com Piovesan16, é possível
observar a existência de três diferentes estratégias na proteção dos direitos sociais
em relação aos pronunciamentos da Corte Interamericana: a dimensão positiva
de direito à vida, o uso do princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais,
dando ênfase a proteção de grupos socialmente vulneráveis e a proteção indireta dos
direitos sociais, mediante a proteção de direitos civis e políticos.
Como dito anteriormente, o art. 26 da CADH é o único que trata dos
direitos sociais nesse diploma, nesse sentido, importante destacar que um passo
relevante para a visão dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais como
autônomos foi o caso Lagos do Campo Vs. Perú, tendo em vista que foi por meio da
sentença deste caso que à Corte IDH pela primeira vez estabeleceu expressamente
que tem competência para julgar violações individuais dos direitos econômicos,
sociais, culturais e ambientais, com base no artigo 26 da CADH, sem analisá-los
em conexão aos direitos civis e políticos17.

14 AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. A justiciabilidade dos direitos sociais nas Cortes Internacio-
nais de Justiça. São Paulo: LTr, 2017. p. 90.
15 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Cuardenillo de Jurisprudencia
de la Corte Interamericana de Derechos Humanos nº 28: Derecho a la salud. San José, C.R: Corte IDH,
2020. p. 6-7.
16 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 222-228.
17 DOMÍNGUEZ, Pablo González. Los aportes del caso Cuscul Pivaral y otros vs. Guatemala a la
jurisprudencia de la Corte Interamericana en materia de derechos económicos, sociales, culturales y
ambientales. In: ANTONIAZZI, M. M.; RONCONO, L.; CLÉRICO, L. (org). Interamericaniza-
ción de los desca el caso Cuscul Pivaral de la corte IDH. p. 153-182.

388
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2.3 O DIREITO À SAÚDE NO CORPUS JURIS INTERAMERICANO

A Convenção Americana vem tutelando o direito à saúde de forma


reflexa em vários artigos, nesse sentido, é possível citar o dever do Estado de
respeitar os direitos (artigo 1º); o dever de adotar disposições de direito interno
(artigo 2º); o direito à vida (artigo 4º); o direito à integridade pessoal (artigo 5º);
as garantias judiciais (artigo 8º) e o direito à indenização (artigo 10)18. Todos esses
artigos expressos no Pacto de San José da Costa Rica tratam do direito à saúde,
considerando a abrangência e importância desse direito que abarca a integridade
física, mental, reprodutiva e sexual do ser humano19.
No entanto, tendo em vista que o direito à saúde é um direito social,
nenhum dos artigos citados trabalha a matéria de direito à saúde de forma direta e
autônoma, sendo o artigo 26 o único que cita diretamente os direitos sociais dentro
da CADH.
Dessa forma, em que pese a Convenção Americana ter um papel
importante na promoção do direito à saúde, esse só é tratado expressamente no
art. 10 do Protocolo Adicional de San Salvador, que estabelece o reconhecimento
do dever de proteção do Estado ao gozo da saúde do mais alto nível de bem-estar
físico, mental e social20.
Para tal é necessário adotar medidas de prevenção e assistência, como:
a imunização para doenças infecciosas, a educação da população, a extensão dos
benefícios relacionados à saúde a toda a população, com especial destaque a grupos
vulneráveis, entre outros.
É notória, dessa maneira, a importância de compreender como se dá a
interpretação dentro da CIDH e da Corte IDH acerca do corpus juris interamericano,
por esse motivo a Comissão será o objeto de estudo do próximo capítulo.

18 BERNARDES, Edilene Mendonça; VENTURA, Carla Aparecida Arena. A comissão interame-


ricana de direitos humanos e os casos de violação dos direitos humanos relacionados à saúde envol-
vendo o brasil no período 2003-2010. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 13,
n. 13, p. 112.
19 SANABRIA MOYANO, J. MERCHÁN LÓPEZ, C. y SAAVEDRA ÁVILA, M. Estándares de
protección del Derecho Humano a la salud en la Corte Interamericana de Derechos Humanos. El
Ágora USB, 2019. p. 132-148. https://doi.org/10.21500/16578031.3459.
20 BRASIL. Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Promulga o Protocolo Adicional à Con-
venção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Brasília, 1999.

389
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3 A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O


DIREITO À SAÚDE

A Comissão é constituída por sete membros que são indicados pelos


Estados parte e eleitos pela Assembleia Geral da Organização, todos de nacionalidades
diferentes e com conhecimento em direitos humanos, esses membros eleitos
periodicamente são os responsáveis por emitir os pronunciamentos da CIDH e
estimular a conscientização acerca dos temas previstos na CADH.
Antes de aprofundar o estudo acerca de como o direito à saúde é tratado
no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é primordial
compreender qual é o procedimento seguido no momento que a queixa/
comunicação chega à Comissão até o momento que ela vai para a Corte.

3.1 BREVES ASPECTOS SOBRE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE


DIREITOS HUMANOS

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão especializado


de promoção e proteção dos direitos humanos e que faz parte da Organização
dos Estados Americanos (OEA), é autônoma, tendo em vista que seus sete
membros, eleitos em Assembleia Geral da OEA, devem agir com independência e
imparcialidade21.
Ela poderá receber petições individuais (pela vítima ou seus
representantes) e interestatais que relatem violações aos direitos humanos. As
petições interestatais dos Estados que consentiram em obrigar-se a CADH podem
ser direcionadas à Corte. Caso contrário, passarão pelo exame da Comissão que
analisa a admissibilidade e o mérito da petição22.
Alguns dos requisitos para a queixa ser apresentada à Comissão
Interamericana sobre Direitos Humanos são: o Estado denunciado ter violado direito
humano previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos, é necessário que
todos os meios disponíveis dentro do judiciário do Estado tenham sido esgotados e
que a questão não esteja sendo analisada por outro órgão internacional23.

21 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 681.
22 Ibid., p. 682.
23 CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/
docs/folleto/CIDHFolleto_eng.pdf. Acesso em: 2 jan. 2022.

390
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nessa vertente, verificando-se a presença dos requisitos necessários no


caso, a Comissão Interamericana irá buscar um acordo para o conflito, no entanto,
caso não seja possível chegar a um acordo, a Comissão deverá elaborar relatório
que contenha os fatos, os direitos violados e as recomendações de como o Estado
deve prosseguir para amenizar e compensar os danos causados. Após o recebimento
das recomendações o Estado terá prazo de três meses para cumprir as orientações
feitas pela Comissão, na hipótese do Estado extrapolar o prazo a Comissão poderá
estabelecer novo prazo ou enviar o caso para Corte Interamericana de Direitos
Humanos, devendo a CIDH, mesmo depois do encaminhamento do procedimento,
se fazer presente24.
Além de receber as petições a CIDH monitora o desenvolvimento dos
Estados membros nas matérias que envolvem os direitos humanos e faz resoluções
e relatórios acerca dos temas, inclusive requerendo informações e podendo fazer
visitas ao país.
Após compreender as funções exercidas pela CIDH, é relevante citar o art.
45 da CADH que prevê que em qualquer momento os Estados membros podem
reconhecer a competência da Comissão, sendo requisito obrigatório a apresentação
de declaração de reconhecimento da competência da CIDH para que um Estado
faça uma comunicação contra outro25.

3.2 A ATUAÇÃO DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS EM MATÉRIA DE DIREITO À SAÚDE

De acordo com a CIDH a saúde é um direito humano de caráter inclusivo


que deve ser protegido por todos os Estados e guardam correlação com diversos
outros direitos humanos, como o direito à vida, integridade social, ao trabalho,
segurança social, educação, alimentação, água e moradia26.
A Comissão periodicamente elabora relatórios e resoluções a respeito
de diversos temas relevantes para os direitos humano, apesar do direito à saúde

24 MASS, R. H.; DAROIT, A. P. The Inter-Amercican protection of human and social rights to
health. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
rdisan/article/view/164199. Acesso em: 12 dez. 2021.
25 PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 506.
26 CIDH. Resolução n. 1/2020 - Pandemia e Direitos Humanos nas Américas. Washington: CIDH,
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org. Acesso em: 4 jan. 2022.

391
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ser constantemente citado em relatórios, principalmente naqueles que tratam da


proteção de grupos vulneráveis (pessoas trans, privadas de liberdade, indígenas,
entre outros) e dos indicadores de progresso dos direitos econômicos, sociais
culturais, somente em dois relatórios ele foi o tema principal, o primeiro em 2010
que tratou do acesso a serviços de saúde materna dentro da perspectiva dos direitos
humanos e o segundo em 2011, intitulado de o acesso à justiça para mulheres
vítimas de violência sexual: a educação e a saúde.
Nesse sentido, é importante destacar ainda o quanto o direito à saúde
foi afetado pela pandemia mundial causada pelo coronavírus, acerca do tema a
Comissão destaca o dever reforçado dos Estados de resguardar os direitos humanos
e de promover pesquisas, inovações e novas tecnologias em prol da luta contra a
propagação desse vírus27.
A CIDH também cita a importância de prestação de serviços relacionados
à saúde sem discriminação e com observação as condições que devem conduzir a
uma vida digna e igualitária28.
Em âmbito nacional, a Comissão IDH reconheceu que o Brasil deu
um grande passo ao instituir o Sistema Único de Saúde (SUS), que é um modelo
de universalização de saúde gratuita, no entanto, é inegável que ainda padece de
muitos problemas quando o tema é disponibilidade de medicamentos, violência
obstétrica e tratamento de grupo vulneráveis, com especial destaque às mulheres
negras29.

4 A TUTELA DO DIREITO HUMANO À SAÚDE NA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Após o estudo acerca do direito à saúde na Comissão IDH, é primordial


a análise de como a Corte Interamericana tutela o direito à saúde, por esse motivo
nesse momento iremos analisar os pronunciamentos e decisões da Corte IDH, e
o que essas manifestações poderiam significar para o direito à saúde dentro do
SIPDH.

27 CIDH. Resolução n. 1/2020 - Pandemia e Direitos Humanos nas Américas. Washington: CIDH,
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org. Acesso em: 4 jan. 2022.
28 CIDH. Informe sobre personas trans y de género diverso y sus derechos económicos, sociales, culturales y
ambientales. Aprovado em: 7 de agosto de 2020. p. 137-141.
29 CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. Aprovado em: 12 fev. 2021. p. 167-173. Disponível
em: http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 1 fev. 2022.

392
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4.1 ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE OTRIBUNAL INTERAMERICANO

A Corte Interamericana é um órgão autônomo com legitimidade para


julgar casos envolvendo violações aos direitos humanos. A partir da leitura do art. 62,
330, da Convenção Americana de direitos humanos entende-se que à Corte possui
atribuição para analisar os casos que envolvam violações de direitos positivados na
CADH, no entanto, como visto anteriormente, a Convenção não traz previsão
normativa expressa acerca dos direitos econômicos, sociais e culturais31.
Em que pese essa omissão na CADH, observa-se que o Protocolo de San
Salvador prevê a obrigação de proteção aos direitos econômicos, sociais e culturais,
pautado no princípio da progressividade, o que possibilitou para à Corte a utilização
de mecanismos legais de interpretação para ampliar a proteção desses direitos32.
Dessa forma, é evidente que à Convenção deve ser interpretada em
conjunto com outras previsões normativas internacionais33, entre essas está o
Protocolo Adicional de San Salvador, que trata diretamente do direito à saúde em
seu artigo 10, sendo possível a jurisdicionalidade do direito à saúde perante à Corte
IDH, principalmente em razão do art. 26 da CADH que tem, à partir do caso
Poblete Vilches, uma interpretação ampla que possibilita a demanda autônoma
desse direito.
Nessa perspectiva, outra questão muito importante que necessita
de especial atenção é como o Sistema Interamericano se posicionou referente
a pandemia mundial, tendo em vista a necessidade de atuação dos órgãos
internacionais de direitos humanos nesse momento caótico, em que a saúde física e
mental dos cidadãos estão em risco.
Nesse sentido, a Corte IDH emitiu comunicado, em 09 de abril de 2020,
estabelecendo a importância do diálogo, cooperação e transparência nesse momento,

30 “3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação
das disposições desta Convenção que lhe seja submetido, desde que os Estados Partes no caso tenham
reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como prevêem os
incisos anteriores, seja por convenção especial.”
31 SOUZA, Ana Paula de Jesus; DIAS, Clara Angélica Calvalcanti. A proteção interamericana do
direito à saúde e o novo movimento transconstitucional: um diálogo entre ordens jurídicas nacionais
e internacionais. Revista Videre, Dourados, v.12, n. 25. set./dez., 2020. p. 164-180.
32 Ibid., p. 164-180.
33 AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. A justiciabilidade dos direitos sociais nas Cortes de Justiça.
São Paulo: UFMG, 2016. p. 103.

393
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dando especial enfoque a disseminação dos direitos humanos econômicos, sociais,


culturais e ambientais sem discriminação, principalmente, àquelas pessoas em
estado de vulnerabilidade. Desse modo, se pronunciou no sentido que:

Es indispensable que se garantice el acceso a la justicia y a los


mecanismos de denuncia, así como se proteja particularmente la
actividad de las y los periodistas y las defensoras y defensores de
derechos humanos, a fin de monitorear todas aquellas medidas
que se adopten y que conlleven afectación o restricción de derechos
humanos, con el objeto de ir evaluando su conformidad con
los instrumentos y estándares interamericanos, así como sus
consecuencias en las personas34.

Analisando esta manifestação, fica evidente a importância da Corte


IDH ter se posicionado no sentido de requerer transparência dos atos dos Estados
membros, tendo em vista que tal exigência proporciona um monitoramento mais
eficaz dos atos praticados pelos países signatários nesse cenário de pandemia e,
consequentemente, quando há essa supervisão, há também uma garantia maior
do cumprimento dos deveres estabelecidos na Convenção Americana de Direitos
Humanos.

4.2 A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE PELA CORTE


INTERAMERICANA

Neste capítulo será visto como a Corte Interamericana vem se


posicionando nos casos em que o direito à saúde foi violado, a pesquisa ocorreu
primordialmente por meio do site https://corteidh.scjn.gob.mx/buscador/busqueda#,
com a palavra chave salud que gerou 936 resultados e, a partir dessa resposta
foi possível selecionar os casos que tratam acerca do direito à saúde, além do site
também foi utilizado o livro de Eduardo Ferrer Mac-Gregor, la justiciabilidad de
los derechos económicos, sociales, culturales y ambientales en el sistema interamericano
de derechos humanos e o Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de
Derechos Humanos: Derecho a la salud Nº 28.

34 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Cuardenillo de Jurisprudencia


de la Corte Interamericana de Derechos Humanos nº 28: Derecho a la salud. San José, C.R: Corte IDH,
2020. p. 155.

394
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Foram analisados 35 casos que datam desde 2004 até o ano de 2021 e,
para facilitar a compreensão do leitor, ocorreu um divisão entre os casos em que o
direito à saúde é tratado de forma autônoma e aqueles em que esse direito é tutelado
de forma reflexa, nesse sentido, importante mencionar que em cada tópico os casos
foram organizados em ordem cronológica, tendo como data base a sentença.
Tendo sido esclarecida a metodologia utilizada na investigação dos casos,
será iniciada a apresentação dos dados examinados.

4.2.1 Casos envolvendo o direito à saúde de forma autônoma

1) Caso Poblete Vilches Vs. Chile

Ao estudar o direito à saúde na Corte Interamericana é proeminente citar


o caso Poblete Vilches e outros Vs. Chile como um marco, posto que foi a primeira
vez que o direito à saúde foi tratado de forma autônoma.
Em 08 de março de 2018 a Corte IDH declarou que o Estado chileno
tem responsabilidade por não garantir ao senhor Vinicio Antonio Poblete Vilches,
uma pessoa em situação de vulnerabilidade devido à idade, à proteção efetiva do seu
direito à saúde, o que acarretou em sua morte35.
Nesse pronunciamento a Corte IDH estabeleceu que o direito à saúde é
primordial para o exercício dos demais direitos fundamentais e que ele abarca um
estado de bem-estar completo, ou seja, físico, mental e social, devendo o Estado
garantir esse direito e proporcionar o acesso a serviços básicos de saúde36.
Nesse mesmo caso, a Corte IDH impôs alguns parâmetros que devem
ser seguidos quando tratamos do direito à saúde, que são o respeito à qualidade,
acessibilidade, disponibilidade e aceitabilidade.
O respeito à qualidade está relacionado a infraestrutura adequada para
o atendimento dos pacientes, devendo o local ter as ferramentas necessárias para
proporcionar um suporte eficaz e humano, dentro dessa infraestrutura adequada
pode ser citado o segundo requisito que é o respeito à acessibilidade, tendo em

35 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Cuardenillo de Jurisprudencia


de la Corte Interamericana de Derechos Humanos nº 28: Derecho a la salud. San José, C.R: Corte IDH,
2020. p. 155. p. 13.
36 CIDH. Relatório Anual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2018. Disponível em: ht-
tps://www.corteidh.or.cr/sitios/informes/docs/POR/por_2018.pdf. Acesso em: 13 dez. 2021.

395
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

vista a importância da acessibilidade física e, mais que isso, o acesso a informação


e o dever do local de não discriminação, com o fim de possibilitar um sistema de
saúde inclusivo.
No respeito à disponibilidade deve ser considerada a demanda de
atendimento do Estado e a população do país, no sentido de dispor de um número
suficiente de estabelecimentos, bens e serviços relacionados à saúde. Por fim, a Corte
IDH citou o respeito à aceitabilidade que inclui um atendimento nos parâmetros
da ética médica, devendo ser respeitada a vontade do paciente e sendo primordial a
perspectiva de gênero e das condições do atendido37.
É relevante destacar que todos os critérios estabelecidos na decisão deste
caso estão interligados, nesse sentido, o investimento para a manutenção de um dos
deveres estabelecidos também é benéfico para a promoção dos demais.
Dessa forma, observa-se que essa decisão deixa evidente a preocupação
da Corte com a qualidade do tratamento e do ambiente hospitalar e, além disso,
com a inserção de grupos vulneráveis nesse espaço, dessa forma, a Corte demonstra
que é responsabilidade do Estado o monitoramento para o cumprimento de todos
os deveres elencados.

2) Caso Cuscul Pivaral Vs. Guatemala

Em que pese essa progressão, ainda restaram dúvidas acerca da amplitude


dessa competência e no caso Cuscul Pivaral e outros Vs. Guatemala38, primeiro caso
em que a Corte declarou que foi violado o art. 26 da CADH pelo descumprimento
da obrigação de progressão39, ficou evidente a regularização na jurisprudência
adotada no caso anteriormente citado, considerando que o direito à saúde foi
analisado como direito incorporado à Convenção Americana, não sendo necessário
recorrer aos dispositivos da Convenção de Viena para se referir à proteção dos
direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
A Corte ainda destaca a obrigação de respeitar os direitos (artigo 1.1)
e o dever de adotar disposições de direito interno (artigo 2) que estão expressos

37 CIDH. Relatório Anual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2018. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/sitios/informes/docs/POR/por_2018.pdf. Acesso em: 13 dez. 2021. p.
141-142.
38 Corte IDH. Caso Cuscul Pivaral y otros Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo, Reparacio-
nes y Costas. Sentença de 23 de agosto de 2018. Serie C No. 359.
39 DOMÍNGUEZ, Pablo González. Op. Cit. p. 162-163.

396
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

na Convenção e são a base para a determinação da responsabilidade dos Estados,


inclusive os direitos reconhecidos no art. 26 (desenvolvimento progressivo dos
direitos econômicos sociais e culturais), enfatizando que os tratados devem ser
interpretados e que tais interpretações precisam acompanhar a evolução do tempo40.

3) Caso Hernández Vs. Argentina

No caso Hernández Vs, Argentina, a parte enviou petição à CIDH


alegando que o Sr. José Luis Hernández teria adquirido uma doença enquanto
estava no sistema penitenciário do país e não recebeu a assistência necessária,
em decorrência desenvolveu várias sequelas como a perda da visão em um olho,
problemas neurológicos, incapacidade parcial em um braço e perda de memória.
Na sentença à Corte IDH referenciou às “Regras Mínimas das Nações
Unidas Para o Tratamento dos Reclusos” como um diploma que estabelece regras
de diretrizes mínimas de saúde dentro do sistema penitenciário e estas devem ser
seguidas pelos países membros.
E foi nesse mesmo diploma que a autonomia dos DESCA foi novamente
reiterada. Ainda, foi citado o artigo 45.1 da Carta da OEA que normatiza que o ser
humano só poderá alcançar suas aspirações dentro de uma ordem social justa que
priorize o desenvolvimento econômico e de verdadeira paz.
Também é evidenciado que a saúde é um direito humano fundamental e
indispensável para o usufruto de outro direitos, protegidos pelos artigos. 34, itens
“i” e “l” da Carta da OEA, XI da Declaração Americana e o art. 10 do Protocolo de
San Salvador, todos dentro das normativas do Sistema Interamericano.

4.2.2 Tutela indireta do direito à saúde na jurisprudência interamericana

4) Caso “Instituto de Reeducación del Menor” Vs. Paraguai

As denúncias foram recebidas na CIDH em 1996 e tratavam de relatos


referente à violações de direitos no instituto de reeducação do menor, entre os
problemas elencados estavam a superlotação, insalubridade, infraestrutura
inadequada e falta de preparo profissional para os guardas lidarem com menores
de 18 anos.

40 CIDH. Cuardenillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos nº 28: De-


recho a la salud. San José, C.R: Corte IDH, 2020. p. 29.

397
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Acerca da falta de infraestrutura, chegaram a ocorrer três incêndios que


causaram a morte de nove menores. A Corte estabeleceu que a garantia do direito
à saúde e educação é de responsabilidade do Estado, sendo um pilar fundamental
para uma vida digna.

5) Caso Tibi Vs. Equador

Daniel Tibi era um cidadão francês de 36 anos que residia no Equador,


em 27 de setembro de 1995 ele foi detido por agentes da INTERPOL que
estavam investigando se o Sr. Tibi tinha envolvimento com o tráfico de drogas da
região, porém, no momento da sua detenção somente foi informado que era um
procedimento de controle migratório.
Dessa forma, é perceptível que o primeiro caso analisado no âmbito das
pessoas privadas de liberdade foi decorrido de uma prisão ilegal, onde o detido
não teve acesso à informação e, posteriormente, a vítima, dentro da penitenciária,
ainda sofreu tortura para confessar o crime. Além disso, apesar dos médicos do
estabelecimento prisional verificarem as lesões, não deram a assistência necessária.
Essa situação acarretou em sequelas para à vítima e a Corte reconheceu,
dentre outras coisas, que qualquer circunstância que acarrete em lesão à integridade
física das pessoas privadas de liberdade é responsabilidade do Estado41. Nessa
vertente, a consulta médica por profissional escolhido pelo paciente e o tratamento
adequado quando requerido foram alguns dos direitos destacados na decisão.

6) Caso De La Cruz Flores Vs. Peru

Esse caso foi um marco quando tratamos de confidencialidade do


profissional da saúde. Maria Teresa De La Cruz Flores é uma médica que foi detida
acusada de terrorismo e em 21 de novembro de 1996 foi sentenciada pelo tribunal
do Estado peruano a 20 anos de prisão. O motivo foi a assistência médica prestada
a um grupo ilegalmente armado.
A Corte Interamericana ressaltou o dever dos Estados de respeitar o
direito e dever do médico de guardar confidencialidade das informações obtidas

41 Sanabria Moyano, J.; Merchán López, C.; Saavedra Ávila, M. Estándares de protección del Dere-
cho Humano a la salud en la Corte Interamericana de Derechos Humanos. El Ágora USB, 2019(1).
p. 138-139

398
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

em razão do exercício da profissão42, inclusive estabelecendo o dever estatal de não


sancionar o médico por não quebrar o seu direito ao sigilo nesses casos.
Tal confidencialidade é importante para reservar a privacidade do
paciente, sob pena, na inexistência desse dever, de criar uma barreira que limitaria
o acesso à serviços de saúde43.

7) Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai

As terras da comunidade indígena Yakye Axa foram compradas por


empresários britânicos que contrataram os membros dessa comunidade para
trabalhar no local, mas devido às péssimas condições de vida, os membros da
comunidade indígena decidiram sair do local e, diante a falta das terras que antes
os pertencia, ficaram assentados ao lado de estradas ou em outras aldeias da região.
No entanto, as coisas não melhoraram, a comunidade indígena sofria em
estado de vulnerabilidade alimentícia, sanitária e médica.
Dessa forma, decidiram se mobilizar judicialmente, todavia, diante a
impossibilidade de ver seu direito à propriedade internamente protegido pelo Estado
do Paraguai, a comunidade indígena Yakye Axa recorreu ao Sistema Interamericano
de Direitos Humanos.
A Corte estabeleceu que o direito à vida significa que devem ser fornecidas
condições para uma existência digna e condenou o Estado do Paraguai pelas
violações cometidas, devendo o Estado devolver o território indígena à comunidade
no prazo de 3 anos da data de notificação de sentença, além de propiciar direitos
básicos para os membros das comunidades.

8) Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Axa Vs. Paraguai

Como na maioria dos casos envolvendo as comunidades indígenas, o


principal direito pleiteado é o direito à propriedade, no entanto, quando analisada
a situação geral observa-se um cenário com diversas violações à saúde.

42 CIDH. Caso de La Cruz Flores. Sentencia del 18 de noviembre de 2004. Serie C Nº 115, p. 101.
43 PARRA VERA, Oscar. La protección del derecho a la salud a través de casos contenciosos ante el sistema
interamericano de derechos humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r32459.pdf. p.
788-789.

399
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A Comunidade Sawhoyamaxa Axa vivia em pobreza extrema em um


ambiente caracterizado pelo baixo nível de saúde, exploração de trabalho e restrições
ao cultivo na terra, o que impossibilitava a agricultura de subsistência.
Para a Corte, o Estado não pode ser responsável por qualquer violação
ao direito à vida, mas no caso concreto o Paraguai é responsável, tendo em vista
que as autoridades estavam cientes da situação da comunidade e não fizeram nada
para prevenir ou evitar o risco. Dessa forma, na sentença foram impostas algumas
sanções com a finalidade de proporcionar o acesso ao direito à saúde, como, por
exemplo, um sistema de comunicação para que as vítimas possam acionar serviços
de saúde em casos de emergência.

9) Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil

Outro caso marcante julgado pela Corte envolvendo o direito à saúde foi
o caso Ximenes Lopes Vs Brasil, foi essa situação que causou a primeira condenação
do Brasil no âmbito da proteção regional dos direitos humanos. Em suma, a família
de Ximenes o internou na Casa de Repouso Guararapes para fins de tratamento
psiquiátrico, no entanto, em razão de negligência e maus tratos, em 04 de outubro
de 1999 a vítima faleceu no local que deveria receber assistência44.
A família de Ximenes recorreu ao sistema judiciário brasileiro para
responsabilizar os funcionários da casa de repouso “Guararapes” pela comissão ou
omissão que decorreu na sua morte, no entanto, o Brasil não proporcionou o acesso
à justiça em tempo razoável, o que decorreu na aceitação da denúncia e, posterior,
condenação do Brasil por parte do SIPDH.
Nesse sentido, a Corte condenou o Estado brasileiro alegando que este
não cumpriu as garantias previstas nos artigos 4º (vida), 5º (integridade física), 8.1
(garantias judiciais) e 25.1 (proteção judicial), da Convenção Americana.
Um dos pontos importantes destacados na decisão é que no tratamento
psiquiátrico deve existir o respeito à intimidade e autonomia dos sujeitos - o
segundo podendo não ser absoluto, diante da necessidade do paciente. Devendo

44 BETANCOURT, Ricardo Barona. Derecho a la salud en el Sistema Interamericano de


Derechos Humanos. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, v. 3, n.2, jul/set.
2014. p. 6-7. Disponível em: https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/index.php/cadernos/article/
view/10/60. Acesso em: 13 dez. 2021.

400
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ser aplicada a presunção de que as pessoas nessa situação são capazes de expressar
sua vontade, que deve ser levada em consideração e respeitada pelos médicos45.
Entre os principais pontos reparativos, a Corte impôs o dever de garantir
em prazo razoável a resolução interna do processo, o desenvolvimento de programas
com o fim de auxiliar os profissionais da saúde a compreender a melhor forma de
lidar com pessoas com deficiência mental e indenização à família.

10) Caso Montero Aranguren (Retén de Catia) Vs. Venezuela.

Esse caso tem relação com suposta execução ilegal de 37 presos do


Centro de Detenção provisória de Catia, os fatos ocorreram na madrugada de 27
de novembro de 1992.
Entre os direitos violados estão o direito à vida (artigo 4), à integridade
pessoal (artigo 5), as garantias e proteções judiciais (artigo 8º e 25) e artigo 2 (dever
de adotar disposições internas).
Tentando compreender o contexto dos fatos à Corte leva em consideração
as declarações de testemunhas e vítimas, uma dessas vítimas foi Osma Guillermo
Matínez, que relatou que o médico do centro de detenção era um preso, além da
inexistência de controle periódicos de saúde e que, apesar de existir um pátio e uma
biblioteca, os dois espaços estavam inviabilizados para uso. Além disso, verifica-
se a má alimentação, condições sanitárias mínimas e humilhações sofridas pelos
internos, por parte das autoridades carcerárias.
Quanto às mortes ocorridas entre os dias 27 e 29 existem duas versões:
a primeira é que foi em razão de um motim na tentativa de fuga dos detentos
e a segunda é que as autoridade policiais ao conhecer a existência de um golpe
de Estado falaram aos internos que estavam em liberdade e abriram as celas, no
entanto, quando eles foram sair começaram a atirar.
Independente do que realmente ocorreu, fica evidente o cenário de violação
aos direitos humanos, inclusive, houve o reconhecimento da responsabilidade pelo
Estado.

45 CIDH. Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Fondo, Reparaciones e Costas. Sentencia de 4 de julio de
2006. Série C No. 149. p. 130.

401
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

11) Caso Albán Cornejo Vs. Equador.

De acordo com as informações prestadas pela Comissão, Laura Susana


Albán Cornejo em 13 de dezembro de 1987 requereu auxílio médico em razão de
um quadro de meningite bacteriana e ficou internada no Hospital Metropolitano
até 18 de dezembro de 1987, data de sua morte.
Para compreender as circunstâncias que levaram sua filha à morte, os pais
de Albán entraram na justiça, no entanto, o Estado do Equador se mostrou ineficaz
em proporcionar o acesso à justiça rápido e eficaz à família, é tanto que o processo
prescreveu para um dos investigados.
Dessa forma, diante a omissão do Estado, os familiares de Albán
recorreram ao Sistema Interamericano e à Corte verificou que houve negligência
médica e estabeleceu à responsabilização estatal por não cumprir seu dever de
investigar com seriedade o caso que, diante da morosidade do tribunal equatoriano,
prescreveu para um dos autores, impossibilitando sanção por conduta ilícita para
a parte.
Nessa mesma sentença, a Corte determinou que independente de
tratar-se de uma instituição de saúde pública ou privada, o Estado tem o dever
de fiscalizar, impedindo que terceiros interfiram indevidamente e garantindo um
acesso a serviços de qualidade para essas pessoas doentes que se encontram em um
estado de vulnerabilidade46.

12) Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai

Nesse caso, o direito de 66 famílias da comunidade indígena Xákmok


Kásek à propriedade foi violado quando o Estado, sem informar a comunidade,
começou a vender as terras que pertenciam a essa comunidade.
Verifica-se à violação ao direito à propriedade e o direito à saúde,
considerando que a falta de assistência médica, alimentação e condições sanitárias
também eram recorrentes na comunidade.

46 BETANCOURT, Ricardo Barona. Derecho a la salud en el Sistema Interamericano de De-


rechos Humanos. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, v.3, n.2, jul/set. 2014, p.
68. Disponível em: https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/index.php/cadernos/article/view/10/60.

402
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

13) Caso Vélez Loor Vs. Panamá

A Corte analisou a prisão de Jesús Vélez Loor, um cidadão equatoriano


que estava no Panamá e foi preso por não portar documentação e submetido a um
processo sem direito a ampla defesa, entre os problemas envolvendo as questões
de saúde relatados na decisão está a falta de fornecimento de água potável e
atendimento médico ou tratamento adequado para uma fratura craniana.
Por fim, o Sr. Loor só conseguiu requerer seus direitos perante à Corte
Interamericana após ser extraditado para seu país de origem.

14) Caso Rosendo Cantú Vs. México

A violação dos direitos sexuais de Rosendo Cantú, pertencente a uma


comunidade indígena, ocorreu em um contexto de presença militar com fins de
reprimir atividades ilegais, os militares estavam a interrogando quando o crime
ocorreu.
Ao analisar os processos que tramitaram na Corte IDH percebe-se que
as violações sexuais contra mulheres não é algo incomum, nos casos Penal Miguel
Castro e Castro e Espinoza Gonzales contra o Peru e nos casos Fernández Ortega
e Rosendo Cantú contra o México foi abordado o uso da violência sexual como
forma de tortura47.
Nesse caso, a Corte destacou as sequelas físicas e psicológicas que
permaneceram com as vítimas que dificilmente serão superadas.

15) Caso Vera Vera Vs. Equador

O senhor Vera Vera em 12 de abril de 1993, com 20 anos de idade, foi


detido pela polícia do Estado equatoriano com uma ferida de bala, dessa forma, as
autoridades o encaminharam para o Hospital Regional do Equador, no entanto,
apesar de não está bem, ele teve alta no dia seguinte e foi encaminhado para a
penitenciária.

47 MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. La justiciabilidad de los derechos económicos, sociales, culturales


y ambientales en el sistema interamericano de derechos humanos. Primeira edição. Cidade do México:
Observatorio del Sistema Interamericano de Derechos Humanos del Instituto de Investigaciones Ju-
rídicas de la UNAM, 2017.

403
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No entanto, seu quadro de saúde piorou e em 22 de abril foi encaminhado


novamente a outro hospital, mas devido às feridas ocasionadas pelo tiro e à falta de
assistência médica de emergência rápida, faleceu no dia seguinte.
Para a Corte, a série de omissões estatais durante o tempo em que Pedro
Miguel Vera esteve sob sua custódia constituiu uma negligência médica que resultou
em sua morte, o que compromete a responsabilidade internacional do Equador.

16) Caso Teruel Vs. Honduras

Outro caso em que a omissão Estatal nos presídios acarretou em diversas


mortes e gerou sequelas psíquicas e físicas para as vítimas, nessa análise, em razão
de um incêndio na cela nº 19 do centro penal de San Pedro Sula que decorreu na
perda de vida de 107 pessoas privadas de liberdade.
O Estado reconheceu sua responsabilidade, o que decorreu na
homologação de um acordo de solução amistosa, entre as medidas de reparação está
a assistência física e mental dos familiares e vítimas, garantias de não repetição do
ocorrido – com sugestão de modificação das normativas para incluir mecanismos
de prevenção de acidentes – e obrigação de investigar as violações.

17) Caso Furlan Vs. Argentina

A importância desse caso advém, em parte, por ser a primeira vez que
foi utilizada a defensoria pública para proteção perante o Tribunal Interamericano.
Mas, além disso, trata da proteção de uma pessoa com deficiência, ou seja, em
estado de vulnerabilidade, que começou a ter necessidades médicas em razão de um
acidente que ocorreu dentro da propriedade do Estado e teve sua condição médica
substancialmente agravada em razão do judiciário da Argentina não fornecer acesso
à justiça em tempo razoável.
A omissão da Argentina, que demorou excessivamente para responder a
demanda da família de Furlan, acarretou em diversas consequências, considerando
que o tratamento médico de qualidade da criança dependia da atuação do judiciário
que se mostrou ineficaz em proporcionar o acesso à justiça adequadamente, dessa
forma, ocasionando na piora do quadro médico de Furlan.

404
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

18) Caso Nadege Dorzema Vs. República Dominicana

O caso Nadege advém do uso excessivo da força militar contra um grupo


de haitianos, decorrendo na morte de sete pessoas e várias outras feridas. Algumas
dessas vítimas feridas se dirigiram ao Hospital Regional Universitário José María
Cabral Báez.
Apesar do Estado ter afirmado que ofereceu auxílio médico aos feridos,
a falta de registros de ingresso e de alta ao centro de saúde denota que houve
omissão nos tratamentos ofertados, inclusive de Sylvie Felizor e Roland Isral -
respectivamente uma mulher grávida e um menor de idade.
Nesse caso, a Corte advertiu a importância de ofertar atenção médica aos
imigrantes irregulares em casos de emergências, devendo o Estado proporcionar o
direito à saúde de forma ampla, especialmente de grupos vulneráveis, que devem
ser atendidos sem descriminação.

19) Caso Artavia Murillo (Fertilização in vitro) Vs. Costa Rica

Em 15 de março de 2000 os procedimentos de fertilização in vitro (FIV)


foram proibidos na Costa Rica em razão de uma decisão da Turma Constitucional
da Suprema Corte do país que considerou incompatível com a Constituição o
Decreto que possibilitava o acesso aos procedimentos médicos necessários para FIV.
A decisão atingiu diversas pessoas e, em especial, àqueles que já haviam
começado o tratamento e tiveram que interromper, dessa forma, várias famílias
recorreram à Corte Interamericana afim de resguardar os seus direitos.
A Corte IDH citou e reafirmou a fala do Comitê de Direito Econômicos
Sociais e Culturais que garante que a mulher e ao homem a liberdade para decidir
se desejam ter filhos e qual seria o melhor momento, de ter acesso a informação,
métodos para o seu planejamento familiar e à serviços de saúde48.
Em sua decisão o Sistema Interamericano estabeleceu o precedente de
que é um direito o acesso às técnicas necessárias para solucionar os problemas de
saúde reprodutiva, não devendo o Estado interferir na autonomia reprodutiva.

48 Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, Observación General No. 14 (2000), El


derecho al disfrute del más alto nivel posible de salud (artículo 12 del Pacto Internacional de Derechos
Económicos, Sociales y Culturales), E/C.12/2000/4, 11 de agosto de 2000 p. 14, nota de rodapé da
página 12.

405
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

20) Caso Mendoza Vs. Argentina

César Alberto Mendoza, Claudio David Núñez, Lucas Matías Mendoza,


Saúl Roldán e Ricardo David Videla Fernández foram condenados a penas perpétuas
antes de completar a maioridade penal.
Observa-se nesse caso o controle de convencionalidade exercido pela
Corte IDH sob a legislação do Estado argentino referente à maioridade penal,
verificando que é expresso na sentença que tal normativa de direito interno
argentino é incompatível com as normas da CADH.

21) Caso Suárez Peralta Vs. Equador

Melba del Carmen Suárez Peralta, por meio de plano de saúde


proporcionado pela empresa do seu marido, procurou ajuda médica em 28 de
junho de 2000 com sintomas de dor abdominal, vômito e febre, o médico Emilio
Guerrero a diagnosticou com apendicite e realizou uma cirurgia, no entanto, após
a intervenção cirúrgica a paciente começou a sentir mais dores abdominais e foi
diagnosticada com abdome agudo pós operatório, tendo que fazer outra cirurgia e
vários procedimentos médicos ao longo da vida.
A mãe da vítima prestou denúncia contra o médico Emilio Guerrero
em razão do ocorrido e foi constatado em juízo que Emilio Guerrero não tinha
credenciais para atuar como médico, todavia, em decorrência da morosidade do
sistema judiciário o caso prescreveu e Suárez Peralta procurou justiça no sistema
regional de direitos humanos.
No caso Suárez Peralta verifica-se que o juiz Mac-Gregor estabelece uma
postura no sentido da possibilidade da aplicação direta do art. 26 da CADH na
defesa do direito à saúde o que, como mencionado no ponto 4.2.1, foi o começo
para um grande avanço na proteção do direito à saúde no sistema interamericano49.
A Corte declarou o Estado culpado de violar os artigos 25 (proteção
judicial), 8º (garantias judiciais) e 5.1 (direito à integridade pessoal) da CADH.

49 GURGEL, Yara Maria Pereira; MOREIRA, Thiago Oliveira (Coords.); LOPES FILHO, Francisco
Camargo Alves (Org.). O Direito Internacional dos Direitos Humanos e as pessoas em situação de
vulnerabilidade. Natal: Polimatia, 2021. p. 328.

406
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

22) Caso de Pessoas Dominicana e Haitianas Expulsas Vs. República


Dominicana

A migração de pessoas do Haiti para países como à República Dominicana


é histórica, em especial para fins laborais50 e nesse caso as vítimas alegam a existência
de expulsões coletivas de pessoas de ascendência haitiana que nasceram no território
dominicano e a denegação do acesso à documentação.
Nesse caso é relevante citar que quando tratamos do direito à saúde dos
imigrantes, um dos principais problemas é a falta de documentação, o que dificulta
o acesso ao direito à saúde, educação e bem estar social básico.

23) Caso Gonzales Lluy Vs. Equador

Esse é um dos casos mais emblemáticos quando tratamos do direito à


saúde de crianças e adolescentes. Talía Gonzalez Lluy foi infectada com três anos de
idade com HIV pelo banco de sangue da Cruz Roja.
A Corte condenou o Estado do Equador por violações ao direito à vida,
integridade pessoal e educação da criança e a responsabilidade por violar o direito à
integridade pessoal dos familiares da criança.
Uma das razões da constatação de violação ao direito à saúde foi a
dificuldade de acesso aos medicamentos essenciais para manter Gonzales Lluy bem,
nesse sentido, a Corte estabeleceu que o acesso ao medicamento é indispensável
para o usufruto do direito à saúde, ainda mais em casos de doenças epidêmicas
como HIV e tuberculose.
Dessa forma, é importante destacar que a condenação da violação do
direito à educação advém do fato da vítima ser impedida de frequentar a escola
sob o pretexto de resguardar os demais alunos da contaminação, o que demonstra
discriminação em razão do estado de saúde de Lluy e, diante dos fatos, é levantado
outro dever essencial do Estado: o dever de informar.

50 BOLOGNA, Agostina H., LEIVA, María J.J. JORDÁN, Angela P. (2020). Nacionalidad y apatri-
dia. Análisis del caso Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Dominicana ante la
Corte Interamericana de Derechos Humanos. PÉRIPLOS, Revista de Investigación sobre Migracio-
nes. Ano 3 - Número 2 (2019), p. 96.

407
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A informação é relevante para que não ocorra a discriminação e para que


o sujeito tenha conhecimento real do seu estado de saúde e do seu direito de acesso
a serviços que mantenha a confendicialidade acerca da sua saúde reprodutiva.

24) Caso Chinchilla Sandoval Vs. Guatemala

Nesse caso, a Corte analisou as violações de direitos humanos sofridas


por María Inés Chinchilla Sandoval, uma pessoa com deficiência e privada de
liberdade, dentro do Centro de Orientación Femenina (COF).
A vítima do caso morreu, mas foi uma tarefa difícil estabelecer se foi em
razão das violações sofridas dentro da penitenciária ou não, tendo em vista que o
Estado não mantinha o registro do estado de saúde da vítima atualizado e, por esse
motivo, à Corte considerou a Guatemala responsável por não garantir o direito à
integridade pessoal e à vida de Chinchilla Sandoval.

25) Caso I.V. Vs. Bolívia

Esse caso tem relação com a violação da saúde sexual e reprodutiva


da mulher e foi um marco para o estabelecimento da importância de respeitar a
autonomia dos pacientes, em especial em intervenções médicas com consequências
permanentes, como é o caso da ligadura das trompas de Falópio.
Na sua decisão a corte expõe que existe uma assimetria de poder entre
médico e paciente, tendo em vista que o conhecimento técnico do profissional
é muito maior, sendo ele o detentor de toda informação. Nesse sentido, para
tornar a relação médico paciente justa existem vários princípios que devem ser
seguidos, entre eles: ética médica, autonomia do paciente e boa-fé, devendo sempre
o profissional da saúde tomar atitudes pautadas no melhor interesse do paciente.
Tais atitudes precisam do consentimento do paciente, sem influência
de nenhum tipo de discriminação, violência ou coerção, e para que isso ocorra
o profissional da saúde deve informar de maneira embasada e oportuna os prós e
contras para embasar a decisão do paciente, respeitando sua autonomia.

26) Caso Rodríguez Revolorio Vs. Guatemala

Em 11 de fevereiro de 1995 os senhores Rodríguez Revolorio, López


Calo e Archila Pérez foram detidos e acusados de cometer o crime de assassinato,

408
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

recebendo à pena de morte. Observa-se que a pena de morte é a maior sanção


imposta à qualquer ser humano, no entanto, apesar da gravidade da decisão, à
Corte reconheceu que o Estado da Guatemala violou o direito dos acusados a
recorrer da sentença, e o direito à sua integridade física devido à falta de higiene
e tratamentos de saúde dentro da penitenciária, que eram ainda mais degradantes
física e mentalmente, em razão de ser dentro da ala do “corredor da morte”.

27) Caso Montesinos Mejía Vs. Equador

Mario Montesinos Mejía está envolvido em mais um caso onde é possível


verificar violações de direitos dentro das penitenciárias dos países que constituem
o SIPDH, nesse sentido, nessa e em outras decisões semelhantes fica evidente que
o Estado tem responsabilidade sob o detido e deve garantir que este tenha um
processo justo, não sofra tortura e violações à direitos básico dentro da instituição
estatal, para que a privação de liberdade não exceda ao limite de sofrimento já
inerente a ela51.

28) Caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat


(Nuestra Tierra) Vs. Argentina

Essa demanda trata do direito à propriedade ameaçado de 132


comunidades indígenas, além da violação desse direito, também foi constatado a
violação dos direitos ligados à identidade cultural, um ambiente sadio, alimentação
adequada e a água. Dessa forma, é importante ponderar que muitas vezes essas
comunidades indígenas praticam a agricultura de subsistência, nesse sentido, a terra
tem um significado enorme para eles historicamente, culturalmente e também na
manutenção da saúde física e mental.
Cabe destacar que alguns critérios foram levantados pelas Corte IDH,
entre eles o da qualidade da água que deve ser periodicamente abastecida de forma
que seja o suficiente para todos, deve ter qualidade e ser acessível.

51 Cfr. Caso “Instituto de Reeducación del Menor” Vs. Paraguay. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de septiembre de 2004. Serie C No. 112, párr. 159, y Caso
Rodríguez Revolorio y otros Vs. Guatemala, párr. 71.

409
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

29) Caso Noguera Vs. Paraguai

Vicente Noguera tinha 17 anos de idade quando em 11 de janeiro de


1996, cumprindo serviço militar voluntário, foi encontrado morto em sua cama
no alojamento, sua mãe entrou com petição na CIDH alegando que as autoridades
do Paraguai não teriam fornecido uma justificação satisfatória para a morte do seu
filho.
Durante as investigações dos fatos a Corte IDH constatou que existiam
indícios que apontam a responsabilidade do Estado e que a vítima teria sido
submetida, como forma de castigo, à prática excessiva de exercícios, o que decorreu
na condição que causou o óbito de Vicente Noguera.
Na decisão é evidenciado que o Estado tem o dever de promover o bem
estar dos militares ativos, garantindo que os métodos aplicados não excedam e
causem danos à integridade física e promovendo explicações satisfatórias quando
questionado acerca da situação dos indivíduos que fazem parte da instituição52.

30) Caso Spoltore Vs. Argentina

O sr. Victorio Spoltore trabalhava em uma empresa privada e sofreu dois


infartos, impossibilitado de continuar trabalhando e, à luz dos direitos trabalhistas,
parou de laborar aos 50 anos e começou a receber pensão.
Spoltore judicializou uma demanda no tribunal do seu país requerendo
indenização, alegando que seu quadro de saúde era decorrência do seu ambiente
laboral e que foi tratado de forma hostil após sofrer os infartos, no entanto, nove
anos após a interposição da demanda o Tribunal argentino deu sentença desfavorável
ao requerido.
Acerca do direito à saúde, a Corte pontuou que o acesso à justiça é um
dos requisitos essenciais para assegurar à saúde do trabalhador, considerando que o
usufruto pleno desse direito inclui a disposição de mecanismos efetivos de proteção.

52 CIDH. Caso Noguera Vs. Paraguai. Sentença de 9 de março de 2020. Série C No. 401, p. 67.

410
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

31) Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus Vs.
Brasil

Em dezembro de 1998 ocorreu uma explosão na Fábrica de Fogos de


Santo Antônio de Jesus que matou 64 pessoas e feriu 6, todos empregados da
fábrica, na sua maioria mulheres - algumas grávidas - e crianças.
A Corte condenou o Estado por violações do direito à vida, integridade
pessoal, acesso à justiça e garantias judiciais, além do trabalho infantil, que ocorria
ilegalmente no local e gerou a morte de 20 crianças.
Acerca do trabalho infantil à Corte destaca que as crianças devem ser
protegidas da exploração econômica e trabalhos perigoso, com a intenção de
proporcionar o seu desenvolvimento saudável.

32) Caso Guachalá Chimbo Vs. Equador

Luis Eduardo Guachalá Chimbo, na época dos fatos com 23 anos e


com deficiência epiléptica, foi internado no dia 10 de janeiro de 2004 no Hospital
Psiquiátrico Julio Endara por sua mãe, no entanto, no dia 17 de janeiro de 2004
saiu do hospital e não foi mais encontrado até o presente momento.
A Corte pautou sua decisão no princípio da igualdade e não discriminação,
tendo em vista que a vítima sofria de transtorno mental, ainda destaca a importância
de prestar serviços de saúde de qualidade para pessoas com deficiências, sendo
primordial o consentimento livre e informado, o que não ocorreu no caso concreto
acarretando na falta do reconhecimento da sua personalidade jurídica.

33) Caso Vera Rojas Vs. Chile

Martina Rebeca Vera Rojas na época dos fatos era uma criança quando
a seguradora de saúde finalizou unilateralmente e arbitrariamente o contrato que
possibilitava o aparato necessário à sua hospitalização em domicílio, necessária em
razão de Vera Rojas ter a síndrome de Leigh.
Em virtude do descumprimento do dever estatal de regular e fiscalizar
os serviços privados de saúde, que nesse caso era essencial para proporcionar
uma vida digna a uma pessoa em estado de vulnerabilidade, a Corte condenou o
Estado por violar os princípios da saúde, integridade, garantias judiciais e proteção

411
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

judicial, além da proteção especial que deveria existir no caso por tratar de um caso
envolvendo à saúde de uma criança.

34) Caso dos Mergulhadores Misquitos (Lemoth Morris e outros) Vs. Honduras

Esse caso tem relação com pessoas que trabalhavam para empresas privadas
que não respeitavam os parâmetros de segurança, decorrendo em diversos desastres
no ambiente laboral, entre estes: o óbito de dezenove pessoas, o desaparecimento
de um adolescente e o adoecimento de vinte e dois trabalhadores em razão das
condições de trabalho.
Apesar das consequências desastrosas, na Corte IDH as parte conseguiram
alcançar uma solução amistosa e o Estado de Honduras se comprometeu a
proporcionar medidas de reparação às vítimas, o desenvolvimento de projetos
educativos para os misquitos, a assistência jurídica e as mudanças nas normativas
internas com a finalidade de uma atuação mais eficaz na fiscalização desses casos,
inclusive com a criação da Justiça do Trabalho em Honduras.

35) Caso Manuela Vs. El Salvador

Em 2008, Manuela teve uma emergência obstétrica e se dirigiu ao


hospital com o intuito de encontrar auxílio, no entanto, no terceiro semestre de
gravidez sofreu um aborto e foi acusada de provoca-lo, sendo condenada a 30 anos
de prisão por homicídio.
No entanto, após um tempo, na prisão, Manuela foi diagnosticada com
câncer e faleceu. A família de Manuela, após tentativas frustradas de justiça dentro
do Estado de El Salvador, recorreu a SIPDH que em 2 de novembro de 2021
expediu sentença que julgou que o Estado violou o direito à saúde 1. no momento
em que restringe esse direito, tendo em vista que após procurar assistência médica
Manuela foi criminalizada, existe a restrição do direito à saúde, podendo outras
mulheres evitarem ir ao hospital por medo e 2. quando houve a quebra do sigilo
profissional. Outros casos semelhantes ocorreram, com XX vs Colômbia, por
exemplo.

412
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

5 CONCLUSÃO

Após a análise de todos os aspectos estudados é possível observar que o


direito à saúde é tutelado pela via reflexiva na Convenção Americana de Direitos
Humanos, no entanto, é evidente que estão ocorrendo avanços, principalmente em
razão das decisões da Corte IDH que está privilegiando uma análise interpretativa
voltada à proteção do direito à saúde e ampliação da tutela dos direitos econômicos,
sociais e culturais.
Além disso, observa-se que em todas as sentenças analisadas, apesar da
diversidade temática, o Sistema Interamericano se posiciona no sentido de priorizar
a proteção aos direitos humanos, dando especial atenção aos direitos de grupos
socialmente vulneráveis.
Em conclusão, por meio do estudo de casos, foi possível verificar que o
que enseja a maior parte das demandas em matéria de direito à saúde são as violações
de direitos cometidos dentro das penitenciárias, o que denota a necessidade de
melhorias nesses ambientes, afim de proporcionar acesso dos detentos à saúde
básica, outra violação recorrente são às ocorridas em comunidades indígenas, que
muitas vezes não tem sequer acesso a água e alimentação, e, por fim, observa-se
também a recorrência dos casos envolvendo discriminação em razão de alguma
condição médica que torna o indivíduo vulnerável.

413
REFERÊNCIAS

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415
PARTE IV

IMPACTO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS NO ÂMBITO DOMÉSTICO
Os reflexos da desigualdade de gênero em tempos de pandemia: as
estratégias internacionais de enfrentamento e as repercussões no
Estado brasileiro

Camila Carvalho Ribeiro1


Mariana Belchior Ribeiro Freire2
Yara Maria Pereira Gurgel3

1 INTRODUÇÃO

A pandemia do Covid-19, somada a timidez nas estratégias de


enfrentamento à violência e exploração de mulheres, contribuiu para o fortalecimento
das desigualdades entre os gêneros e para a acentuação de atos abusivos contra
a mulher, o que se agravou em decorrência do isolamento social, da perda da
autonomia financeira de homens e, especialmente, de mulheres e também pela
carência de medidas afirmativas, aptas a reduzir os diversos impactos vivenciados
por elas. Diante disso, foi necessário repensar as medidas de proteção, prevenção

1 Advogada. Mestranda em Direito pela UFRN. Pesquisadora no Projeto Direito Estado e Femi-
nismos nos 30 anos da Constituição: estudos sobre interseccionalidade (UFRN). Pós-graduada em
trabalho e processo do trabalho pela Damásio Educacional. Pós-graduada em direito processual pela
PUC/MG. Graduada em Direito pela UFRN. E-mail: camilacribeiro_@hotmail.com. Lattes: http://
lattes.cnpq.br/3531944918718939. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2234-5849.
2 Assessora Ministerial no Ministério Público do Rio Grande do Norte. MPRN. Pós-graduada em
Direito Constitucional pela Rede LFF. Graduada em Direito pela UFRN.
3 Pós Doutora em Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(2019). Doutora (2007) e Mestre (2000) em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Graduação
em Direito pela UFRN (1997). Atualmente é Professora Associada II, com Dedicação Exclusiva,
junto a UFRN. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direito
do Trabalho e Direitos Humanos. Advogada.

419
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e empoderamento de mulheres, a partir do desenvolvimento de um trabalho


integrado entre os órgãos de proteção internacionais, Estados e particulares.
Assim, considerando as constantes e expressivas violações de direitos
sofridas pelo gênero feminino e tendo em vista que os direitos humanos estão
constantemente em processo de mudança e decorrem das lutas sociais e das ações
implementadas pelos Estados para a, então, materialização desses direitos, tem-se
a pandemia do Covid-19 como um novo marco de transformação necessária ao
combate da violência perpetrada contra mulheres.
Desse modo, questiona-se: quais as repercussões da pandemia da Covid-19
na realidade de meninas e mulheres? E qual o papel da comunidade internacional,
em cooperação com Estados e particulares, no que tange a salvaguarda dos direitos
das mulheres e, então, prevenção e enfrentamento à violência contra o gênero
feminino, diante do cenário pandêmico?
Em face das indagações propostas, a pesquisa ora em apreço se debruçará,
a priori, nos reflexos da desigualdade de gênero durante o período de pandemia, o
que repercutiu na acentuação da sobrecarga de trabalho realizado por pessoas do
gênero feminino e no aumento da prática de violência doméstica e familiar contra
a mulher. Para tanto, foi feita uma análise documental e estatística.
Em um segundo momento, serão expostas algumas das principais diretrizes
propostas pelos órgãos de proteção internacional, a exemplo da Organização das
Nações Unidas – ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos –
CIDH, no que tange às estratégias de enfrentamento e prevenção da violência
contra mulheres diante da Covid-19. O objetivo é analisar o papel da comunidade
internacional, do Estado brasileiro e dos particulares, em busca de uma proteção
ampla à mulher, frente ao estado de calamidade instaurado pela Covid-19, numa
suma de esforços comuns, a fim de dirimir as desigualdades entre os sexos e conter
atos violentos e abusivos contra o gênero feminino, demonstrando uma série de
diretrizes e políticas afirmativas firmadas para esse fim.
Para a elaboração desse artigo, foram utilizados os métodos de abordagem
dedutivo, partindo-se do pressuposto de que a desigualdade de gênero é uma realidade
(premissa maior), a qual deflagra uma série de problemáticas (premissas menores),
a exemplo da violência doméstica e familiar e da exploração da mulher em diversos
âmbitos (nas atividades de cuidado, na sobrecarga de trabalho, na má remuneração,
etc), bem como fenomenológico, na medida em que buscou-se entender a relação
entre a desigualdade de gênero e os fenômenos sociais, especialmente no contexto

420
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da pandemia da Covid-19. A pesquisa, por sua vez, foi teórica (predominantemente


bibliográfica, documental e estatística), com abordagem qualitativa e quantitativa,
objetivo descritivo e leitura exploratória e seletiva.

2 VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER: OS REFLEXOS


DA DESIGUALDADE DE GÊNERO EM TEMPOS DE PANDEMIA

A pandemia causada pelo Sars-CoV-24 instaurou um estado de calamidade


à nível mundial, contribuindo para uma crise generalizada. Todavia, enquanto a
crise política, econômica e sanitária ficou evidente, uma pandemia silenciosa ganhou
novos contornos: a violência perpetrada contra o gênero feminino, deflagrando o
quanto a desigualdade entre homens e mulheres ainda está enraizada no seio social.

2.1 DA NECESSIDADE À EXAUSTÃO: ACENTUAÇÃO DA SOBRECARGA


DA JORNADA DE TRABALHO DAS MULHERES

Embora o alcance da igualdade real e eficaz entre mulheres e homens


seja uma questão de direitos humanos e a Constituição brasileira de 1988, em
consonância com os tratados internacionais firmados pelo Brasil, traga, no rol
das garantias fundamentais (art. 5º, I), proteção especial à igualdade de direitos e
obrigações entre homens e mulheres, a construção histórica do país evidencia um
sistema enraizado em concepções patriarcalistas e de objetificação da mulher, fruto
de uma cultura machista e misógina.
Em razão disso, conforme aponta os estudos de Heleieth I. B. Saffioti5, a
sociedade investe bastante na naturalização da ideia de atribuir a responsabilidade
do espaço doméstico à mulher, e isso ainda acontece em razão da capacidade
reprodutiva dada ao gênero feminino (apesar do processo de desconstrução
vivenciado atualmente). Já para os homens, a classe foi e ainda é baseada na relação
com os meios de produção. Com isso, tem-se a concepção de que, aqueles detentores
dos meios de produção teriam/têm o poder de dominação sob aqueles que não os

4 Vírus altamente contagioso, da família dos coronavírus, que causa doença respiratória nos seres
humanos, conhecida como Covid-19.
5 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. Coleção polêmica. p.
9. Disponível em: https://contrapoder.net/wp-content/uploads/2020/06/O-poder-do-macho.pdf.
Acesso em: 25 jan. 2022.

421
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

detinham/detêm. Ou seja, seriam os homens os responsáveis por proporcionar o


acesso aos recursos financeiros, sendo, portanto, o provedor financeiro do lar6.
Essa concepção, embora retrógrada, ainda repercute na realidade
atualmente vivenciada: embora as mulheres tenham ocupado os espaços públicos
com maior intensidade, conquistando independência, liberdade e autonomia
financeira, quando em vista de profissões relacionadas aos cuidados e afazeres
domésticos, ainda se verifica um maior emprego de mulheres, em comparação aos
homens.
E pior: ainda se vislumbra um elevado número de mulheres privadas de
ingressarem no mercado de trabalho, diante da necessidade de estar cem por cento
do tempo comprometidas com os cuidados com a casa e com a prole, diante da
ausência do homem na divisão dessas tarefas, por ainda entender que essa função é
restrita ao gênero feminino.
Não obstante, existe, também, situações que evidenciam o acúmulo
de funções por parte das mulheres, que não apenas desempenham as atividades
profissionais dentro do mercado de trabalho, como trazem para si muito mais
responsabilidade pelos afazeres domésticos e cuidados com os filhos.
Ora, nas palavras de Gerda Lerner7, sobre o processo de naturalização a
que Saffioti também faz referência, “enquanto homens e mulheres considerarem
“natural” a subordinação de metade da raça humana à outra metade, será impossível
conceber uma sociedade na qual as diferenças não signifiquem dominância ou
subordinação”.
O que se vislumbra, conforme argumenta Silvia Walby, é que, embora
exista uma maior ocupação das mulheres na esfera pública, para além do trabalho
doméstico, isso ainda vem acompanhado de novas formas de desigualdade, pois
o patriarcado tem se modificado de um empreendimento que, na medida em
que diminui o confinamento das mulheres ao ambiente doméstico, transfere a
exploração desse gênero para o ambiente público, em condições de subordinação e
opressão no meio laboral8.

6 LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Trad.
Luiza Sellera. São Paulo: Cutrix, 2019. p. 29-30.
7 Ibid., p. 29-30. p. 285.
8 LUCENA, Mariana Barreto Nóbrega de. Morte violenta de mulheres no Brasil e novas vulnerabilida-
des: da violência do patriarcado privado à violência do patriarcado público. 1. ed. Gramado: Aspas,
2020.

422
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Em vista dos fatos expostos, o estudo “Estatísticas de gênero: indicadores


sociais das mulheres no Brasil – 2ª edição”, divulgado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE, atualizado em 2021, deflagra que, embora haja uma
tentativa cada vez maior de desconstruir esses padrões estereotipados de gênero,
nossa sociedade ainda possui fortes evidências dessa desigualdade – que já era uma
realidade antes mesmo da pandemia, conforme as estatísticas.
Isso porque, em face dos dados registrados, as mulheres têm, de fato,
dedicado bem mais horas às tarefas domésticas e cuidados de pessoas, mesmo
quando ocupam posições iguais as dos homens. “Em 2019, as mulheres dedicaram
aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos o dobro do tempo que os homens
(21,4 horas contra 11,0 horas)”9, tendo, a região Nordeste, registrado a maior
desigualdade, quando comparada as demais regiões do Brasil.
Ao fazer o recorte por cor ou raça, esse número aumentou ainda mais,
revelando que as mulheres pretas ou pardas são as que mais se dedicam aos cuidados
de pessoas e/ou aos afazeres domésticos, com o registro de 18,6 (dezoito vírgula
seis) horas semanais em 201610 e 22,0 (vinte e duas) horas semanais em 2019. Isso
evidencia o preconceito ainda enraizado na sociedade, mostrando que mulheres
negras compõem um quadro de hipervulnerabilidade, merecendo ainda mais
atenção e cuidado, através das mais variadas estratégias de inclusão.
Além disso, ficou evidenciado que a questão da carga horária se configura
como fator fundamental no diferencial de inserção ocupacional entre homens e
mulheres, determinado pela divisão sexual do trabalho, apontando que as mulheres
que necessitam conciliar a atividade remunerada com as tarefas domésticas e
de cuidados, acabam optando por laborar em locais que possuam carga horária
reduzida.
Nessa perspectiva, o indicador “proporção de ocupados em trabalho
por tempo parcial, por sexo (CMIG 14)” apontou que 1/3 das mulheres estavam
ocupadas em período parcial, de até 30 (trinta) horas, quase o dobro em relação
aos homens (15,6%). Nesse quesito, mais uma vez as regiões Norte e Nordeste
despontam como as mais críticas (39,2% e 37,5%, respectivamente).

9 IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2. ed. 2021. Disponível
em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf. Acesso em: 27 jan.
2022.
10 IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2018. Disponível em: ht-
tps://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022.

423
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Além disso, os índices refletem, também, o agravamento quando se trata


de mulheres pretas ou pardas, cujos dados de 2016 evidenciam que as mulheres
pretas ou pardas alcançaram o patamar de 31,3% (trinta e um vírgula três por
cento) do total, enquanto que as mulheres brancas somam o montante de 25,0%
(vinte e cinco por cento). Em 2019, pretas e pardas somaram 32,7% (trinta e dois
vírgula sete por cento) e brancas 26,0% (vinte e seis por cento).
Para os homens, em 2016 apenas 11,9% (onze vírgula nove por cento)
dos brancos se ocuparam por tempo parcial, ao passo que a proporção de pretos
ou pardos alcançou o patamar de 16,0% (dezesseis por cento). Sendo importante
comentar que as pesquisas ali referenciadas também apontaram que as mulheres
seguem recebendo cerca de ¾ (três quartos) do que os homens recebem, número
evidenciado tanto em 2016, quanto em 2019.
Quanto as atividades de “cuidado” exercidas, primordialmente, pelas
mulheres, estas não se restringem apenas aos trabalhos não remunerados voltados
aos próprios lares. Para além disso, existe uma série de profissões que trazem esse
“dever de cuidado”, tais como: trabalhos domésticos remunerados, a exemplo das
empregadas domésticas, babás e cuidadoras de idosos; auxiliar de serviços gerais;
cargos direcionados à educação infantil; enfermagem e técnico em enfermagem;
fisioterapia e técnico em fisioterapia, nutrição; assistência social; psicologia etc.
Toda essa conjectura já evidenciada na sociedade brasileira, abriu margem
para o agravamento da situação durante a pandemia do Novo Coronavírus. Tal fato,
por óbvio, não é uma problemática apenas do Brasil, porém, no presente momento,
será o comportamento social em âmbito nacional o enfoque do estudo em apreço.
Conforme já mencionado, o IBGE, por meio da PNAD Contínua 2020,
deflagrou que a crise decorrente da pandemia do Sars-CoV-2 provocou a retirada
de 07 (sete) milhões de mulheres do mercado de trabalho, dois milhões a mais em
relação aos homens11, somente nas duas últimas semanas de março de 2020.
Somado a isso, como a paralisação também atingiu as escolas, milhares
de crianças e adolescentes ficaram confinados no lar em tempo integral, de forma
que, um imenso número de mães, sem opções, precisou renunciar ao trabalho para
dedicar-se, exclusivamente, às atividades domésticas e de cuidado, o que interferiu

11 LIMA, Mariana. Com a pandemia, 7 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho. Obser-
vatório do terceiro setor. 07 jul. 2020. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/com-
-a-pandemia-7-milhoes-de-mulheres-deixaram-o-mercado-de-trabalho/. Acesso em: 29 jan. 2022.

424
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ainda mais para esse aumento do índice de desemprego do gênero feminino, mesmo
sendo uma responsabilidade não apenas atribuída à elas12.
Para aquelas que optaram por seguir no mercado de trabalho, outros
desafios: como exercer o labor quando não se tem com quem deixar os filhos? A
ausência no ambiente laboral é aceitável/justificável dentro dessa realidade? Como
conciliar a atividade profissional com as atividades domésticas (intensificadas no
isolamento social) e o dever de cuidado com os filhos, inclusive somada ao papel de
“professora”, diante da ausência de aulas presenciais e da nova realidade de educação
a distância?
Todas essas perguntas refletem na intensificação da sobrejornada
exercida pela mulher em tempos de pandemia. Se a problemática já existia, com
a calamidade pública essa questão se tornou gritante. Sem falar nas mulheres que
estavam na linha de frente, exercendo uma jornada de trabalho profissional ainda
mais exaustiva (física e psicologicamente), tendo que se desdobrar ainda mais para
dar conta de tudo, emprego, lar e filhos, acrescido ao medo da contaminação pelo
vírus, por estarem em maior exposição que as demais.
Destarte, em casos de mães que não têm com quem deixar as crianças,
algumas alternativas poderiam ser enquadradas, tais como: i) teletrabalho, trabalho
remoto ou outro tipo de trabalho a distância, que ainda assim refletem no aumento
da sobrecarga de trabalho, já que os cuidados com os filhos exige tempo integral (o
que inclui o tempo em que a empregada, em tese, estaria a serviço do empregador);
ii) banco de horas inverso (o que exigiria compensação posterior e, portanto, mais
tempo ausente do lar); iii) antecipação de férias (o que duraria apenas trinta dias);
suspensão do contrato do trabalho (o que implicaria na ausência de remuneração)
e redução de jornada (com a proporcional diminuição do valor da remuneração).
Note-se que tais “soluções” não funcionariam à longo prazo, o que não deixa outra
alternativa, se não a renúncia ao labor.

12 “[...] o aprofundamento da crise política, social e da própria democracia, intensificada pela crise
sanitária mundial, escancara a violência da sobrecarga de trabalho doméstico absolutamente essencial
em sociedades patriarcais, a responsabilidade feminina pelos espaços privados, ou seja, doméstico,
com os cuidados com os filhos e com a manutenção da estrutura familiar. Essas violências, cotidianas e
históricas, ganham ainda mais destaques evidenciando, mesmo com todas as conquistas feministas no
último período, o contraste enorme entre os espaços privados e públicos para as mulheres”. ARAÚJO,
Elita Isabella Morais Dorvillé et al. Mulheres, racismo e pandemia: perspectivas sobre direitos huma-
nos em um contexto de crise. In: RODRIGUES, Carla Estela; MELO, Ezilda; POLETINE, Maria
Júlia. Pandemia e mulheres.1 ed. Salvador: Studio Sala de Aula, 2020. v. 2.

425
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No que tange a sobrejornada decorrente do acúmulo de funções, além


da fatiga e exaustão física e psicológica da mulher, outras problemáticas são
evidenciadas: ausências ao trabalho que não se enquadra nos tipos legalmente
previstos de falta justificada; a queda na produtividade e no rendimento laboral;
absenteísmo; comprometimento emocional alimentado pelo sentimento de
incapacidade e inferioridade e intensificação da desigualdade de gênero13.
Diante de todas essas problemáticas, o Fundo das Nações Unidas para
a Infância – UNICEF, a Organização Internacional do Trabalho – OIT e a ONU
Mulheres emitiram nota técnica14 sobre políticas voltadas para a família, bem
como sobre boas práticas no local de trabalho. Nas recomendações preliminares,
expedidas em 30 de março de 2020, o UNICEF ressalta a importância da proteção
social no âmbito das empresas, que devem considerar o impacto de suas decisões
de negócios sobre as trabalhadoras e suas famílias. Ademais, a UNICEF e a OIT
pedem que os governos tomem medidas que venham a fortalecer a proteção social,
especialmente no âmbito das famílias vulneráveis, prestando apoio às empregadoras,
para a manutenção do emprego e da renda, bem como fornecendo apoio financeiro
aos desempregados.
Ademais, para as referidas organizações, as empresas devem, ainda,
garantir proteção especial à mulher trabalhadora, garantindo a ela o bem-estar e o
atendimento às necessidades diferenciadas, decorrentes da condição de ser mulher.
Assim, são estratégias recomendadas, as políticas e práticas de proteção ao emprego e
a renda; licença remunerada para cuidar de familiares; acordos de trabalho flexíveis;
acesso a cuidados infantis de emergência. Tais estratégias são formas de garantir a
produtividade, na medida que conferem segurança e tranquilidade à mulher.
Nesse contexto, a referida nota técnica aponta como mecanismos de
enfrentamento:

Monitorar e seguir os conselhos nacionais das autoridades


locais e nacionais e comunicar informações críticas à força

13 PORTO, Noemia Aparecida Garcia. Mulheres e mercado de trabalho: Pandemia e desigualdade de


gênero. Revista Justiça & Cidadania. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/mulheres-e-mer-
cado-de-trabalho-pandemia-e-desigualdade-de-genero/. Acesso em: 27 jan. 2022.
14 MULHERES, ONU. Trabalhadoras e suas famílias precisam de mais apoio na resposta à Co-
vid-19. In: ONU Mulheres. Publicado em 3 abr. 2020. Disponível em: https://www.onumulheres.
org.br/noticias/trabalhadoras-e-suas-familias-precisam-de-mais-apoio-na-resposta-a-covid-19/. Aces-
so em: 26 abr. 2022.

426
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de trabalho. Avaliar se as políticas atuais do local de trabalho


fornecem apoio suficiente a trabalhadoras, trabalhadores e
suas famílias. Aplicar boas práticas ao implementar políticas
novas ou já existentes, baseadas no diálogo social, nas leis
trabalhistas nacionais e nas normas internacionais de trabalho.
Certifique-se de que todos os trabalhadores e trabalhadoras
tenham direito a medidas de apoio no local de trabalho,
sem discriminação, e que todas as pessoas as conheçam,
entendam e se sintam confortáveis em usá-las. Proteger
o local de trabalho contra discriminação e estigma social,
facilitando o treinamento e garantindo que os mecanismos de
denúncia sejam confidenciais e seguros. Implementar acordos
de trabalho para toda a família, para dar aos trabalhadores
e trabalhadoras maior liberdade de quando e onde podem
cumprir suas responsabilidades profissionais. Se acordos de
trabalho flexíveis não forem possíveis, considere um apoio
alternativo para as mães e pais que trabalham, como o apoio
as crianças. Apoiar os pais e as mães trabalhadoras com opções
de acolhimento a crianças, que sejam seguras e apropriadas
no contexto da Covid-19. Prevenir e enfrentar os riscos no
local de trabalho, fortalecendo as medidas de segurança e
saúde ocupacional. Fornecer orientação e treinamento sobre
medidas de segurança e saúde ocupacional e práticas de
higiene. Incentive as trabalhadoras e trabalhadores a procurar
atendimento médico adequado em casos de febre, tosse e
dificuldade em respirar. Apoiar os funcionários e funcionárias
a lidar com o estresse durante o surto da Covid-19. Apoiar
as medidas de proteção social do governo, em conformidade
com a Convenção nº 102 da OIT (Normas mínimas) e a
Recomendação nº 202 da OIT sobre pisos de proteção social.
O apoio da empresa pode incluir, por exemplo, subsídios para
os trabalhadores e trabalhadoras acessarem seguros de saúde,
desemprego e incapacidade de trabalhar e deve estender-se as
trabalhadoras e trabalhadores do setor informal.

Tais estratégias de enfrentamento são primordiais, na medida em que


as problemáticas ora levantadas não trazem consequências apenas no campo do
trabalho, mas pode ter sérias repercussões familiares e criminais, pois o aumento
do estresse e das tensões dentro de casa, pode dar ensejo à conflitos no ambiente
doméstico, gerando divórcios e, até mesmo, a prática dos mais diversos tipos
de violência em face de mulheres e/ou crianças, o que gera traumas, por vezes,
irreversíveis.

427
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2.2 A PANDEMIA DA COVID-19 E O AUMENTO DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Ora, a conquista da autonomia financeira, proporcionada pela capacitação


e profissionalização das mulheres, bem como pela manutenção do trabalho e do
emprego destas (especialmente aqueles considerados formais, isto é, com carteira
assinada), constitui importante mecanismo de prevenção de relacionamentos
abusivos e violentos.
Tem-se por violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer tipo
de agressão psicológica, sexual, moral, patrimonial, física e/ou virtual praticada no
âmbito doméstico, em face do gênero feminino. Sendo imprescindível ressaltar que
a sujeição da mulher aos relacionamentos abusivos está diretamente vinculada à
dependência financeira e submissão destas ao homem/agressor.
Somado a isso, tendo em vista que ainda se verifica um comportamento
sexista da sociedade, atribuindo aos homens o tradicional papel de provedor
financeiro do lar, no momento em que a pandemia gerou impactos negativos
no domínio econômico dos homens, vislumbrou-se uma necessidade do sexo
masculino em compensar as formas de demonstrar poder e autoridade dentro de
casa, o que dá ensejo às práticas de violência doméstica e familiar contra o gênero
feminino15.
Isso acontece, diante de uma cultura enraizada de que o uso da força e do
domínio está vinculada a ideia de virilidade e potência. Conforme aduz Heleieth
Saffioti16, o poder apresenta duas faces: a da potência e a da impotência. Nesse
viés, as mulheres seriam culturalmente ensinadas a conviver com a impotência,
enquanto os homens são preparados para o exercício de atividades ligadas à força e
ao poder e, por isso, não sabem conviver com situações de impotência17. Dito isso,
na perspectiva da socióloga, é exatamente no momento de vivência da impotência

15 ALENCAR, Joana et al. Políticas públicas e violência baseada no gênero durante a pandemia da
covid-19: ações presentes, ausentes e recomendadas. IPEA. DISOC – Diretoria de Estudos e Políticas
Sociais. n. 78. junho de 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=-
com_content&view=article&id=35884. Acesso em: 27 jan. 2022.
16 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo Perspec. São
Paulo, v. 13, n. 4, p. 82-91, dez. 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar-
ttext&pid=S0102-88391999000400009&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 27 jan. 2022.
17 Ibid.

428
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

que o homem se torna mais susceptível a praticar atos violentos. Seria, essa, portanto
uma forma de alimentar o ego e demonstrar “controle” dentro do lar.
A ONU Mulheres também compartilha dessa opinião. Ao elaborar a
cartilha intitulada “Prevenção da violência contra mulheres diante da Covid-19 na
américa latina e no Caribe”18, a ONU Mulheres destacou que a perda do trabalho,
a instabilidade econômica e o estresse são fatos que podem gerar no agressor a
sensação de perda do poder, o que poderia influenciar no aumento da frequência e
da gravidade da violência doméstica e mais, poderia gerar comportamentos nocivos
e abusivos, resultando em possível aumento de abuso sexual on-line ou nas ruas.
Somado ao isolamento social e ao impacto econômico (com a perda
do poder aquisitivo de homens e mulheres), a pandemia trouxe outros fatores
agravantes da violência doméstica e familiar, tais como: o abuso de drogas ilícitas e
lícitas; a dificuldade de acesso aos serviços de enfrentamento; estresses e oscilações
emocionais, bem como sobrecarga do trabalho reprodutivo às mulheres.
Quanto à dificuldade de acesso aos serviços de enfrentamento, tal fato
foi notório aos vislumbrar a queda nos índices de denúncias de violência doméstica
e familiar. O que é importante ressaltar é que essa baixa não demonstra uma
diminuição da prática da violência doméstica em si. Na realidade, essa queda traz
outra evidência: que as mulheres, por estarem isoladas e vigiadas cem por cento
do tempo por seus agressores, não conseguem acesso à pessoas e órgãos de apoio,
ficando reféns dentro do próprio lar19.
Quando em face de mulheres de grupos hipervulneráveis (idosas, com
deficiência, com orientação sexual diversa, trans, que vivem com HIV, migrantes,
deslocadas, refugiadas, vítimas de conflito armado, indígenas, afrodescendentes,
que vivem em zonas rurais ou em assentamentos informais), por estarem propensas
às mais variadas formas de discriminação, as situações de violência e de dificuldade
de acesso aos serviços essenciais de enfretamento são ainda maiores e mais
preocupantes. Conforme a ONU Mulheres:

A crise está gerando barreiras adicionais para que as mulhe-


res em situação de violência acessem serviços essenciais que
podem salvar vidas. Essas barreiras estão relacionadas com a

18 MULHERES, ONU. Prevenção da violência contra mulheres diante da Covid-19 na América Latina
e no Caribe. BRIEF v. 1.1. 23 abr. 2020. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-con-
tent/uploads/2020/05/BRIEF-PORTUGUES.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022.
19 Ibid.,

429
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

restrição de mobilidade e com o isolamento social, ou com


o fato de que as instituições de saúde, polícia e justiça estão
sobrecarregadas e focando suas operações no combate à CO-
VID-19. Os serviços prestados pelas organizações da socieda-
de civil também enfrentam dificuldades para prestar serviços
devido às mesmas restrições. Em alguns países, as denúncias
de violência contra mulheres diminuíram. Isso não significa
que a violência tenha diminuído. Isso é uma consequência
do fato de que as mulheres não podem sair de suas casas ou
fazer ligações telefônicas porque estão em contato constante
com o agressor, e suas redes de apoio são mais limitadas pelas
medidas da quarentena. Soma-se ao isolamento o medo de
contágio pela COVID-19 ao sair para buscar ajuda fora do
entorno familiar, que seria, neste contexto, um obstáculo para
pedir ajuda.20

No campo do trabalho, a violência doméstica e familiar faz surgir outras


problemáticas, como bem coloca Noemia Porto21, destaque-se: o absenteísmo; o
baixo rendimento; abalo psicológico e a impossibilidade de desenvolvimento das
tarefas exigidas.
Nessa perspectiva, a ONU Mulheres, ao elaborar o documento “Diretrizes
para atendimento em casos de violência de gênero contra meninas e mulheres em
tempos da pandemia da covid-19”, reconheceu que a violência doméstica e familiar
contra mulheres é um problema social, sendo urgente a necessidade em sanar as
dificuldades principalmente no atendimento à mulher em situação de violência.
Conforme apontado pela ONU, é possível vislumbrar, dentre as falhas:
I) a redução no número de serviços para atendimento às mulheres em situação de
violência; II) a falta de familiaridade com o sistema remoto de atendimento; III)
a inexistência de protocolos de atendimento ou fluxos de encaminhamento dos
casos, os quais considerem as necessidades das mulheres e as ofertas de serviços
nas localidades; IV) a fragilidade na articulação dos serviços, de modo a contar a
peregrinação das mulheres em busca de atendimento; V) a centralidade da resposta
policial e judicial para solução do problema da violência doméstica e familiar, que

20 MULHERES, ONU. Prevenção da violência contra mulheres diante da Covid-19 na América Latina
e no Caribe. BRIEF v. 1.1. 23 abr. 2020. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-con-
tent/uploads/2020/05/BRIEF-PORTUGUES.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022.
21 PORTO, Noemia Aparecida Garcia. Mulheres e mercado de trabalho: pandemia e desigualdade de
gênero. Revista Justiça & Cidadania. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/mulheres-e-mer-
cado-de-trabalho-pandemia-e-desigualdade-de-genero/. Acesso em: 27 jan. 2022.

430
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

deixa à margem da atenção aquelas mulheres que sofrem formas de violências que
seriam mais bem tratadas no âmbito da saúde e da assistência psicossocial; etc22.
Considerando o contexto pandêmico e as lacunas acima expostas, a ONU
Mulheres expediu uma série de recomendações para a organização dos serviços e
coordenação da rede para atendimento à mulher, dentre elas: I) a avaliação dos
recursos tecnológicos e técnicos para transposição do atendimento presencial
para o remoto, considerando a adequação dos meios de atendimento (celulares,
aplicativos de mensagens, redes sociais), a capacitação dos profissionais, o alcance
de cada tipo de canal (tendo em vista a diversidade dos grupos de mulheres),
recomendando-se a adoção de mais de um meio de atendimento (inclusive com
a manutenção de meios presenciais), a segurança e a privacidade no atendimento
e uso de aparelhos e equipamentos exclusivamente institucionais, em quantidade
adequada ao número de profissionais. II) Modos alternativos para conectar as
mulheres aos serviços prestados, com a disposição de linhas gratuitas e, quando
possível, de meios de transporte que busquem a vítima em casa, já que nem todas as
mulheres têm acesso aos celulares ou mesmo ao uso da internet, seja pela ausência
de condições financeiras, seja pelo controle exercido pelo agressor. São exemplos de
canais alternativos: a instalação de balcões de informação em serviços essenciais e a
ajuda de redes comunitárias e pessoais.
Em sentido semelhante, também considerando o contexto pandêmico,
no que diz respeito à proteção dos direitos das mulheres, meninas e adolescentes, a
CIDH também trouxe algumas recomendações:

1. Incorporar a perspectiva de gênero a partir de uma


abordagem interseccional em todas as respostas do Estado para
conter a pandemia, levando em consideração os diferentes
contextos e condições que potencializam a vulnerabilidade
à qual as mulheres estão expostas, como a vulnerabilidade
econômica, a idade, a condição de migrante, a deficiência
física, a privação de liberdade, a origem étnico-racial, a
orientação sexual, identidade e/ ou a expressão de gênero,
entre outros. 2. Reformular os mecanismos tradicionais de
resposta à violência de gênero, adotando canais alternativos
de comunicação e linhas de atendimento de emergência, além

22 PASINATO, Wania. Diretrizes para atendimento em casos de violência de gênero contra meninas
e mulheres em tempos da pandemia da covid-19. ONU Mulheres. 2020, p. 9. Disponível em: http://
www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Diretrizes-para-atendimento_ONUMU-
LHERES.pdf. Acesso em: 26 abr. 2022.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de promover o fortalecimento das redes comunitárias, com a


finalidade de expandir os meios de comunicação e proteção
nos países da região durante o período de confinamento
e restrição à mobilidade. Da mesma forma, garantir a
disponibilidade de abrigos para mulheres vítimas de violência
doméstica, nos quais existam condições para adotar medidas
de prevenção do contágio. 3. Desenvolver protocolos de
atendimento e fortalecimento da capacidade dos agentes de
segurança e agentes da justiça envolvidos na investigação e
punição de atos de violência doméstica, bem como realizar
a distribuição de materiais de orientação sobre o tratamento
desses casos em todos os casos. instituições estatais. 4. Garantir
a disponibilidade e continuidade dos serviços de saúde sexual
e reprodutiva durante a crise da pandemia, aumentando, em
particular, medidas para uma educação sexual abrangente e
a disseminação de informações em mídias acessíveis e com
linguagem adequada, a fim de alcançar as mulheres em sua
diversidade. 5. Fortalecer as políticas de segurança alimentar
e as redes de proteção social com uma perspectiva de gênero,
incluindo políticas de renda mínima e prestação de serviços
de saúde que se enfocados nas necessidades específicas dessas
mulheres no combate à crise gerada pelo COVID-1923.

Importa salientar que a ruptura da violência doméstica demanda, em


regra, uma intervenção externa. Desse modo, são raras as situações em que a
mulher consegue, sozinha, desvencilhar-se dessas relações abusivas. Por isso, foi
necessária uma soma de esforços da comunidade internacional, Estados e cidadãos
para repensar e aplicar estratégias voltadas ao combate à violência contra à mulher
e ao empoderamento feminino.

3 VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER EM


TEMPOS DE PANDEMIA: ESTRATÉGIAS INTERNACIONAIS
DE ENFRENTAMENTO, UMA SOMA DE ESFORÇOS COMUNS

É certo que a pandemia, além provocar um colapso nos sistemas de


saúde mundial, aflorou diversos outras crises pré-existentes na sociedade, como a
desigualdade social e de gênero. Diante deste panorama, a soma de esforços entre a

23 OEA. A CIDH faz um chamado aos Estados a incorporar a perspectiva de gênero na resposta à
pandemia do COVID-19 e a combater a violência sexual e intra-familiar neste contexto. In: OEA.
Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2020/074.asp. Acesso em: 26 abr. 2022.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

comunidade internacional, o Poder Público e o setor privado é essencial para frear


o impacto negativo ocasionado pela pandemia da Covid-19 e proteger as mulheres
no mercado de trabalho e da violência doméstica e familiar.
Ademais, ao Estado, cumpre o encargo de efetivar a proteção à mulher
em todas suas vertentes, como instrumento da garantia e concretização da igualdade
material e da igualdade de gênero, através de políticas públicas, ações afirmativas,
legislações protetivas, dentre outras ações.

3.1 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO EM COOPERAÇÃO COM AS


DIRETRIZES INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO À MULHER

Em conformidade com a sua missão estatal, o Estado brasileiro assumiu


diversos compromissos internacionais, por meio da ratificação de acordos, tratados
e convenções internacionais que têm como escopo a salvaguarda dos direitos da
mulher, desde a proteção no âmbito mercado de trabalho, até a sua defesa dentro
do seu próprio lar.
Em síntese, em âmbito internacional, a Convenção Sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e do Protocolo Facultativo,
elaborados pela ONU e promulgados pelo Brasil por intermédio dos Decretos nº
4.377/2002 e 4.316/2002, respectivamente. A referida Convenção, ainda em suas
considerações preliminares, faz alusão à Carta das Nações Unidas e ao pressuposto
essencial trazido pelo referido documento: a dignidade e o valor da pessoa humana.
A Convenção menciona, ainda, que a DUDH reafirma o princípio da
não-discriminação e proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos, violar tal princípio dificulta a participação da mulher, em
iguais condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de
cada país e constitui em verdadeiro obstáculo à melhoria do bem-estar da sociedade
e da família, sendo um entrave ao pleno desenvolvimento das potencialidades da
mulher na prestação de serviços ao seu país e à humanidade.
No Sistema Interamericano, a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994 (Decreto nº 1.973/1996),
aduz que a violência contra a mulher constitui ofensa à dignidade humana e é
reflexo das relações de poder historicamente desiguais entre os gêneros. Ademais,
aborda, no art. 4º, “e”, que todas as mulheres possuem direito ao reconhecimento,
desfrute, exercício e proteção dos direitos humanos em sua totalidade, bem como

433
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

das liberdades, consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais


relativos aos direitos humanos, dentre eles a dignidade.
No âmbito da proteção dos direitos trabalhistas da mulher, destaca-se as
Convenções nº 100/1951 (dispõe sobre a igualdade de remuneração), nº 103/1952
(dispõe sobre o amparo materno), nº 111/1958 (dispõe sobre a discriminação em
matéria de Emprego e Profissão), nº 171 de 1990 (dispõe sobre o trabalho noturno)
da OIT, as quais foram incorporadas no Brasil através do Decretos nº 41.721/57,
nº 58.820/66, nº 62.150/68, nº 5.005/2004, todos revogados e substituídos
pelo Decreto nº 10.088/2019. Apesar da aprovação, em 1981, o Brasil ainda não
ratificou a Convenção nº 156 que estende aos homens a responsabilidade sobre a
família.
Durante a 100ª Conferência da OIT, em Genebra, no ano de 2011,
aprovou-se a Convenção nº 189 e Recomendação nº 201 da OIT sobre Trabalho
Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos, a qual prevê normas
que dispõem sobre a equiparação dos direitos fundamentais do trabalho entre
as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) e as(os) demais trabalhadora(es), ratificada
pelo Estado Brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 172/2017.
Como se vê, existe destacável empenho da comunidade internacional
em eliminar a discriminação do gênero feminino e prover a dignidade humana da
mulher e a igualdade entre ambos os sexos, o qual não seria suficiente sem a adesão
dos Estados-Partes, o que inclui o Brasil.
Nesse ponto, merece destaque o conceito de Estado Constitucional
Cooperativo que, nas palavras de Marcos Augusto Maliska, exige que o Estado
brasileiro esteja em “permanente diálogo com a comunidade internacional,
buscando a cooperação e formas de regulação jurídica cada vez mais vinculantes”24,
o que não poderia ser diferente durante a pandemia da Covid-19 – quando foi
possível observar que diversas orientações e recomendações internacionais de
proteção à mulher foram expedidas e acolhidas pelo Estado brasileiro.
Assim, buscando acompanhar a implementação de medidas de proteção
por todo o mundo, a ONU criou e mantém a ferramenta “COVID-19 Global
Gender Response Tracker”25, a qual divide as ações protetivas em: proteção social;

24 MALISKA, Marcos Augusto. Art. 1º, I – a soberania. In: CANOILHO, J.J Gomes et al. Comen-
tários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 117.
25 ONU. COVID-19 Global Gender Response Tracker. Disponível em: https://data.undp.org/gender-
tracker/>. Acesso em: 28 jan. 2022.

434
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

mercado de trabalho; políticas econômicas e fiscais e combate à violência contra a


mulher26. Importante salientar que a referida ferramenta busca filtrar as medidas
sensíveis ao gênero, isto é, aquelas que abordam diretamente os riscos específicos
e desafios que mulheres e meninas têm enfrentado em decorrência da pandemia.
Nessa perspectiva, todas as medidas de violência contra as mulheres são
categorizadas como sensíveis ao gênero por padrão. Já as medidas de proteção social
e do mercado de trabalho são definidas como sensíveis ao gênero se tiverem como
alvo a economia das mulheres, a segurança destas ou quando referentes à atividade
de cuidado não remunerada. No tocante as medidas fiscais e econômicas, estas
são definidas como sensíveis ao gênero se derem apoio a grupos dominados por
mulheres.
Em um cenário global, em 2021, o rastreador registrou 226 (duzentos
e vinte e seis) países e territórios que adotaram 4.968 (quatro mil novecentos e
sessenta e oito) medidas em resposta a Covid-19. Desse número, 1.605 (mil
seiscentas e cinco), catalogadas entre 196 (cento e noventa e seis países) foram
identificadas como sensíveis ao gênero, ou seja, apenas 32,3% (trinta e duas vírgula
três por cento). Note-se que trinta países deixaram de adotar medidas sensíveis ao
gênero27.
Destarte, das políticas sensíveis ao gênero, a maioria (853, em 163 países),
concentram-se em intensificar as ações para combater a violência contra mulheres
e meninas. Todavia, quanto aos demais ações protetivas, verificam-se números bem
menores: as medidas para fortalecer a segurança econômica das mulheres somaram
um número irrisório de 526 (quinhentas e vinte e seis), em 161 (sento e sessenta e
um) países e foram registradas apenas 226 (duzentas e vinte seis) medidas voltadas
ao trabalho de cuidado não remunerado, em 96 (noventa e seis) países. Repise-se:
trata-se de números globais, referentes a 226 países e territórios28.

26 “O Rastreador Global de Resposta de Gênero COVID-19monitora as medidas políticas adotadas


pelos governos em todo o mundo para enfrentar a crise do COVID-19 e destaca as respostas que in-
tegraram uma lente de gênero. Lançado em setembro de 2020, inclui medidas nacionais que abordam
diretamente a segurança econômica e social das mulheres, incluindo o trabalho de cuidado não remu-
nerado, o mercado de trabalho e a violência contra as mulheres”. UM, WOMEN. COVID-19 Global
Gender Response Tracker - Methodological note. Tradução livre. Disponível em: https://www.undp.
org/publications/covid-19-global-gender-response-tracker-fact-sheets. Acesso em: 28 jan. 2022.
27 ONU. COVID-19 Global Gender Response Tracker. Disponível em: https://data.undp.org/gender-
tracker/. Acesso em: 28 jan. 2022.
28 Ibid.,

435
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Ainda na análise dos dados coletados pela referida ferramenta, vislumbra-


se que as medidas que visam a segurança econômica das mulheres e que tratam
acerca das atividades de cuidado não remuneradas continuam a representar apenas
uma fração do todo. Isso porque, no total, 221 (duzentos e vinte um) países e
territórios adotaram 3.099 (três mil e noventa e nove) medidas de proteção social
e mercado de trabalho, em resposta a Covid-19. No entanto, apenas 19,6%
(dezenove vírgula seis por cento) dessas medidas (606) são sensíveis ao gênero,
uma vez que visa a segurança econômica das mulheres ou aborda cuidados não
remunerados relativos às mulheres. Da mesma forma, 166 (cento e sessenta e seis)
países e territórios adotaram 1.016 (mil e dezesseis) medidas fiscais e econômicas
para ajudar as empresas a resistirem à crise, mas apenas 14,4% (quatorze vírgula
quatro por cento) dessas medidas (146) visaram fortalecer a segurança econômica
das mulheres29.
Em sentido semelhante, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada –
IPEA, através da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais – DISOC, publicou, em
junho de 2020, a Nota Técnica nº 78, intitulada “Políticas Públicas e violência
baseada no gênero durante a pandemia da Covid-19: ações presentes, ausentes e
recomendadas”.
A supramencionada técnica destaca que a pandemia agravou a situação
da violência de gênero por todo o mundo, o que gerou a necessidade de que os
países fortalecessem a proteção a mulher através de diversos de políticas públicas
direcionadas a esse grupo vulnerável, que se subdividem em quatro eixos, quais
sejam:

i) manutenção, expansão e inovação dos serviços públicos de


atendimento à mulher, caracterizando-os como essenciais; ii)
garantia de renda para mulheres; iii) reforço de campanhas
de conscientização sobre violência de gênero; e iv) parcerias
com a sociedade civil. No primeiro eixo, os serviços públicos
relacionados a justiça, assistência social, atendimento
psicossocial e disque-denúncia foram declarados essenciais,
fortalecidos e ampliados. [...] No segundo eixo de medidas,
políticas públicas que garantam renda para que as mulheres
tenham autonomia econômica para sair da situação de
violência são essenciais, pois muitas mulheres estavam na
informalidade ou tinham negócios que tiveram de ser fechados

29 ONU. COVID-19 Global Gender Response Tracker. Disponível em: https://data.undp.org/gender-


tracker/. Acesso em: 28 jan. 2022.

436
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

durante o lockdown. [...] No terceiro eixo de medidas, estão


campanhas de conscientização e alerta da violência de gênero.
A Covid-19, assim como outros contextos de crise, exacerba
as múltiplas formas de violência de gênero sofridas pelas
mulheres. [...] No quarto eixo de medidas, os governos têm
estabelecido parcerias com organizações e sociedade para
aumentar o alcance de suas ações. [...]30.

Consoante se observa, é notório que a proteção à mulher, em relação à


violência de gênero, deve ser sistêmica – isto é, não se resume a proteger a mulher com
uma legislação punitiva, é preciso garantir uma rede de apoio pública e comunitária
que permita a realização de denúncias efetivas e uma renda mínima a este grupo
vulnerável para que possa prover sua própria subsistência e, por conseguinte, sair de
uma situação de violência doméstica.
Assim, pode-se dizer que os países devem formular políticas públicas
que possibilitem a formalização mais fácil, discreta e ágil possível, de casos de
violência doméstica, tornando essas ferramentas conhecidas pela sociedade, através
de campanhas estatais, para que as denúncias sejam, efetivamente, investigadas e
os agressores punidos. Mas, para além disso, é essencial que as mulheres sejam
empoderadas tanto economicamente como emocionalmente, a fim de que possam
sair de relacionamentos considerados abusivos. Por isso, o papel do Estado é
fundamental – não se resumindo a criminalizar condutas agressivas contra a mulher.
Frise-se que essas preocupações não surgiram com a pandemia da
Covid-19. Ao revés disso, a violência de gênero é uma pauta constante há muitos
anos, no cenário internacional e mundial, como relatado acima. Neste ínterim, é
preciso ressaltar que o Projeto de Lei nº 7.815/2017, que busca incluir a denominada
“economia do cuidado” no PIB brasileiro, encontra-se em tramitação há mais 03
(três) anos, porém ainda não foi aprovado sequer na Câmara de Deputados.
Em que pese a mora legislativa, o projeto de lei entrega conceitos
valorosos acerca da denominada “economia do cuidado”, insculpidos nos art. 2º
e 3º e seus respectivos incisos. Ao analisá-los, pode-se relacioná-los com o eixo de
garantia de renda das mulheres, apresentado pelo IPEA, e com as medidas de apoio
às trabalhadoras não remuneradas ou má pagas, indicados pela ONU na ferramenta

30 ALENCAR, Joana et al. Políticas públicas e violência baseada no gênero durante a pandemia da
covid-19: ações presentes, ausentes e recomendadas. IPEA. DISOC – Diretoria de Estudos e Políticas
Sociais. Nota Técnica nº 78. Junho de 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.
php?option=com_content&view=article&id=35884. Acesso em: 27 jan. 2022.

437
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

“Covid-19 Global Gender Response Tracker” – ou seja, é preciso garantir renda


àquelas mulheres que estão em seus lares trabalhando e não possuem um emprego
formal, nem tampouco um informal que gere renda. Isto é, são mulheres que são
trabalhadoras, mas que não recebem por isso – ou, até recebem, mas tão pouco que
não garante a própria subsistência.
Na contramão da necessidade de implementar esta renda básica à mulher
que trabalha em casa, o Governo Brasileiro, através da Medida Provisória nº 989
de 2020, retirou o valor de R$ 6.705.800 (seis milhões, setecentos e cinco mil e
oitocentos reais) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
cancelando programas e atividades que beneficiam diretamente à mulher.
Além disso, o Governo Federal foi omisso no que tange à garantia da
renda mínima à mulher que se enquadra na chamada “economia do cuidado”. Isso
porque, apesar de ter instituído o denominado “auxílio emergencial”, no valor de
R$ 600,00 (seiscentos reais) ou R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais), no caso da
mãe provedora do lar, a Lei nº 13.982/2020 (art. 2º) restringiu o pagamento do
auxílio ao: microempreendedor individual; contribuinte obrigatório e facultativo
do Regime Geral de Previdência Social, desde que não seja segurado facultativo sem
renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de
sua residência; e trabalhador informal registrado no Cadastro Único para Programas
Sociais do Governo Federal – CadÚnico até 20 de março de 2020.
Como se vê, o art. 2º, inciso VI, alínea “b”, da Lei nº 13.982/2020
determina que apenas aqueles que estejam incluídos na descrição do caput e do inciso
I, do §2º, do art. 21, da Lei nº 8.212/91, poderão receber o auxílio emergencial.
Portanto, estrategicamente, excluíram o inciso II, do §2º, mencionado, o qual
tratava justamente daqueles trabalhadores de baixa renda e sem receita própria,
que realizem o trabalho doméstico no âmbito de sua própria residência. Ou seja,
o Governo Federal – ao invés de prover uma renda mínima a essas mulheres –
propositalmente as excluiu de receber o auxílio emergencial.
No âmbito de proteção contra a violência doméstica, o Estado Brasileiro,
através da Lei nº 13.984/2020, alterou a Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei
Maria da Penha, incluindo os incisos VI e VII, no artigo 22, os quais trazem novas
duas medidas protetivas de urgência, quais sejam: comparecimento do agressor
a programas de recuperação e reeducação; e o acompanhamento psicossocial do
agressor, através de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

438
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por meio da Lei nº 14.022/2020, que alterou a Lei nº 13.979/2020,


a qual dispõe sobre as medidas de enfrentamento a pandemia da Covid-19, o
Governo Federal adotou importantes medidas de enfrentamento da violência
doméstica e familiar contra as mulheres, crianças, adolescentes, idosos e pessoas
com deficiência.
Inicialmente, a mencionada lei incluiu o atendimento a este grupo de
vulneráveis como serviço essencial (art. 3º, §7º-C) e estabeleceu que os prazos
processuais, a apreciação de matérias, o atendimento às partes e a concessão de
medidas protetivas devem continuar normalmente – sem interrupção ou suspensão
– e que os registros de ocorrências relacionadas aos casos envolvendo violência
doméstica e familiar poderão ser feitos por telefone ou meio eletrônico (art. 5º).
A Lei nº 14.022/2020 dispôs, ainda, que o poder público adotará as
medidas necessárias para que, mesmo durante a pandemia, o atendimento presencial
de mulheres, idosos, crianças ou adolescentes em situação de violência seja mantido
– inclusive, com a possibilidade de adaptação dos procedimentos estabelecidos na
Lei Maria da Penha às conjunturas emergenciais do período de pandemia, desde
que se assegure a continuidade do funcionamento habitual dos órgãos do poder
público descritos na Lei nº 11.340/2006 (art. 3º, caput, §1º).
O legislador ressalvou que, por razões sanitárias, caso não seja possível
manter o atendimento presencial para todas as demandas envolvendo violência
doméstica e familiar, este deverá ser prestado ao menos para aqueles os casos que
envolvam feminicídios, lesão corporal (grave, gravíssima ou seguida de morte),
ameaça praticada com arma de fogo, estupro (simples ou de vulnerável), corrupção
de menores, satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente,
descumprimento de medidas protetivas de urgências; e os crimes previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto do Idoso (art. 3º, §2º).
No mesmo diploma legal, determinou-se que a realização prioritária do
exame de corpo delito em vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher
ou quando a vítima for criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência, em
qualquer situação. Ressaltando que, se o poder público tiver imposto medidas que
restrinjam a circulação de pessoas, os órgãos de segurança deverão providenciar
equipes móveis para realização do exame de corpo de delito no local em que se
encontrar a vítima de crimes de natureza sexual (art. 3º, §§3º e 4º).
O Governo Federal impôs que os órgãos de segurança pública
disponibilizassem canais de comunicação que assegurassem a interação virtual em

439
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

tempo real, quando forem narrados casos de violência contra a mulher, o idoso, a
criança ou o adolescente, com a possibilidade de a vítima solicitar a aplicação de
qualquer medida protetiva de urgência de forma online e a autoridade competente
– inclusive policial – deferir a medida de forma eletrônica. Ainda, facultou a adoção
destes canais de atendimento pelos órgãos integrantes do Sistema de Justiça (Poder
Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) e pelos demais órgãos do Poder
Executivo (art. 4º).
Ademais, enquanto perdurar o estado de emergência ocasionado pela
pandemia da Covid-19, autorizou-se a prorrogação automática das medidas
protetivas de urgência (art. 5º).
Fixou-se o prazo de 48h (quarenta e oito horas) para que as denúncias
recebidas pela Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) e o serviço de
proteção de crianças e adolescentes (Disque 100) sejam encaminhadas para os
órgãos competentes, os quais deverão garantir o atendimento de forma ágil (arts.
6º e 7º). Além disso, estipulou-se como obrigação do poder público a promoção de
campanha informativa com o intuito de fomentar a prevenção à violência doméstica
e tornar conhecido os mecanismos de denúncia acima mencionados (art. 8º).
Ainda, no início do mês de abril de 2020, o Governo Federal lançou
uma nova plataforma para receber denúncias de casos de violência doméstica e de
violação de direitos humanos: o aplicativo denominado “Direitos Humanos BR”
cuja função assemelha-se a dos canais de atendimento “Ligue 180” e “Disque 100”.
Em maio de 2020, o Governo Federal também lançou a campanha de
conscientização e enfrentamento à violência doméstica com o lema “Denuncie a
violência doméstica. Para algumas famílias, o isolamento está sendo ainda mais
difícil”31. Ainda, publicou a cartilha “Mulheres na Covid-19”, a qual orienta sobre
a saúde, o enfrentamento à violência doméstica e mercado de trabalho32.
Por sua vez, os governos estaduais possibilitaram que as vítimas de
violência doméstica registrassem boletins de ocorrência, através da internet,
tornando mais fácil a notificação por parte da ofendida – visto que, não raras

31 GOVERNO LANÇA CAMPANHA E PEDE ATENÇÃO AOS CASOS DE VIOLÊNCIA DO-


MÉSTICA. Agora RN. 2020. Disponível em: https://agorarn.com.br/brasil/governo-lanca-campa-
nha-e-pede-atencao-aos-casos-de-violencia-domestica/. Acesso em: 28 jan. 2022.
32 SNMP. Mulheres na COVID-19. Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Disponível
em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/cartilha-orienta-mulheres-duran-
te-a-pandemia-do-coronavirus/mulherescovid19_Alterado_corrigido.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.

440
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

vezes, a vítima de violência doméstica sequer pode sair de sua casa para registrar os
boletins de ocorrência. Foram pioneiros os estados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Espírito Santo e o Distrito Federal33.
Continuamente, em 28 de julho de 2021, foi promulgada a Lei nº
14.188, que define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência
Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e
familiar contra a mulher previstas na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei
Maria da Penha), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), em todo o território nacional; bem como altera o Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar a modalidade da pena da
lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo
feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher.
Destarte, em 31 de março de 2021, foi promulgada a Lei nº 14.132, a
fim de acrescentar o art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), para prever o crime de perseguição, dentre outras providências.
No Estado do Rio Grande do Norte, merece destaque a campanha
virtual promovida por sua Assembleia Legislativa, denominada “Violência
Doméstica: precisamos dar um basta nisso”34. Além disso, por meio da Lei Estadual
nº 10.722/2020, o referido Ente instituiu o projeto “Casa Abrigo”, na capital do
estado, para receber mulheres vítimas de violência doméstica, bem como seus filhos
menores de idade e os maiores de idade com necessidades especiais que dependam
da genitora para sua sobrevivência35.
Em outra vertente, por meio da Lei Estadual nº 10.720/2020, o Governo
do Estado do Rio Grande do Norte determinou que os síndicos e/ou administradores
devem comunicar às autoridades competentes qualquer caso de violência doméstica
praticado contra mulher, criança, adolescente ou idoso, ocorrido nas unidades

33 OLIVEIRA, Renata Mariz de. Proteção às mulheres contra a violência doméstica na pandemia. 2020.
Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/326960/protecao-as-mulheres-contra-a-violen-
cia-domestica-na-pandemia. Acesso em: 28 jan. 2022.
34 RN, Assembleia Legislativa do. De forma pioneira, Assembleia lança campanha em ambiente virtual.
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Portal. Notícias. 2020. Disponível em http://www.
al.rn.gov.br/portal/noticias/19152/de-forma-pioneira-assembleia-lana-campanha-em-ambiente-vir-
tual. Acesso em: 28 jan. 2022.
35 RN. Lei nº 10.722. Autoriza o Poder Executivo a instituir o Projeto “Casa Abrigo”, com atendi-
mento regional, em Natal/RN. 2020. Disponível em: http://diariooficial.rn.gov.br/dei/dorn3/doc-
view.aspx?id_jor=00000001&data=20200528&id_doc=684412#:~:text=LEI%20N%C2%BA%20
10.722%2C%20DE%2027,regional%2C%20em%20Natal%2FRN. Acesso em: 28 jan. 2022.

441
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

condominiais ou nas áreas comuns aos condôminos. Ademais, em 3 de agosto de


2021, foi instituída no RN a Lei Estadual nº 10.978, a qual institui, no âmbito
do Estado do Rio Grande do Norte, o “Programa Tempo de Prevenir”, voltado ao
combate à violência doméstica e familiar.
Consoante demonstrado, apesar de ter se empenhado em combater a
violência doméstica propriamente dita, o Estado brasileiro atuou de maneira
ineficiente ao não garantir uma renda básica para mulheres que sofram a violência
de gênero – ignorando que a dependência econômica é um dos motivos mais
recorrentes para que uma mulher se mantenha em um relacionamento abusivo.
Todavia, ainda existe tempo e meios para corrigir essa omissão.

3.2 O PAPEL ESTRATÉGICO DO SETOR PRIVADO NA LUTA PELA


IGUALDADE DE GÊNERO

A respeito da relevância do setor privado na proteção da mulher durante


a pandemia da Covid-19, a Organização das Nações Unidas – ONU, esclarece que:

A pandemia Covid-19 exige uma resposta imediata coordenada,


centrada nas pessoas e sensível a gênero. Governos, empresas,
representações trabalhistas, trabalhadoras e trabalhadores
precisam estar envolvidos para mitigar o impacto na vida
das pessoas e abordar os riscos e vulnerabilidades específicos
que meninas e mulheres enfrentam devido às desigualdades
e estereótipos profundamente enraizados na sociedade.
O setor privado tem a responsabilidade de usar seu poder,
influência e recursos para proteger os direitos e o bem-estar
físico e mental das funcionárias e funcionários durante esse
período, além de garantir que os esforços de recuperação de
negócios a longo prazo restaurem a estabilidade econômica.
As empresas também desempenham um papel fundamental
no atendimento às necessidades das mulheres em suas cadeias
de suprimentos e base de clientes36.

Assim, atenta à realidade da mulher na pandemia da Covid-19 e ciente de


que o setor privado também tem sua parcela de importância na luta pela igualdade

36 ONU. Covid-19 e Igualdade de gênero: um apelo à ação para o setor privado. 2020. Disponível em:
http://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2020/04/Princ%C3%ADpios-de-Empodera-
mento-das-mulheres_COVID19_rev_2.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.

442
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de gênero no mercado de trabalho, em abril de 2020, a ONU elaborou e publicou


os Princípios de Empoderamentos das Mulheres (WEPs). O documento elenca um
conjunto de sete princípios que:

[...] oferecem orientação às empresas sobre como promover


a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres
no local de trabalho, mercado e comunidade. Durante esse
período de agitação e incerteza, os WEPs são um grande
recurso para o setor privado, ajudando-o a proteger os grupos
mais vulneráveis. Os WEPs são informados por normas
internacionais de trabalho e direitos humanos e baseiam-se
no reconhecimento de que as empresas têm uma participação
e uma responsabilidade pela igualdade de gênero e pelo
empoderamento das mulheres. 37

Os princípios listados pela ONU, no documento, são os seguintes: 1)


Estabelecer liderança corporativa de alto nível para a igualdade de gênero; 2) Tratar
todos os homens e todas as mulheres de forma justa no trabalho – respeitando
e apoiando os direitos humanos e a não discriminação; 3) Garantir a saúde, a
segurança e o bem-estar de todos os trabalhadores e as trabalhadoras; 4) Promover
a educação, a formação e o desenvolvimento profissional das mulheres; 5)
Implementar o desenvolvimento empresarial e as práticas da cadeia de suprimentos
e de marketing que empoderem as mulheres; 6) Promover a igualdade de gênero
por meio de iniciativas e defesa comunitária; e, 7) Mediar e publicar os progressos
para alcançar a igualdade de gênero.
Ressalte-se que, além da busca pela efetiva igualdade e combate à
discriminação de gênero, a ONU listou três prioridades transversais que devem ser
perseguidas pelas empresas durante a pandemia, quais sejam:

1. Garanta a representação igual das mulheres em todo o


planejamento e tomada de decisões da Covid-19; 2. Promova
mudanças transformadoras pela igualdade, abordando
questões de assistência remunerada e não-remunerada; 3.

37 ONU. Covid-19 e Igualdade de gênero: um apelo à ação para o setor privado. 2020. Disponível em:
http://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2020/04/Princ%C3%ADpios-de-Empodera-
mento-das-mulheres_COVID19_rev_2.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.

443
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Segmente mulheres e meninas em todos os esforços para lidar


com o impacto socioeconômico da Covid-19.38

Interessante destacar que, durante a pandemia, o Instituto Avon –


integrante do Grupo Natura – com o apoio de outras empresas como o Grupo
Pão de Açúcar, a Uber, a Decode, a Smarkio, a Carelink, a Wieden Kennedy; de
organizações sociais como o Instituto Galo da Manhã, o Instituto Cia dos Sonhos,
a #AgoraÉQueSãoElas, o Mapa do Acolhimento e o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, além de órgãos públicos como Ligue 180 e Grupo de Atuação Especial de
Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) e Secretarias e Coordenadorias da
Mulher em todo o Brasil, lançou a campanha #IsoladasSimSozinhasNão39.
Por sua vez, as empresas Rappi e a Maganize Luiza disponibilizaram
uma espécie de “botão”, em seus aplicativos, para denunciar casos de violência
doméstica. O do Rappi (SOS Justiceiras) direciona a vítima a entrar em contato
com profissionais das áreas jurídica, psicológica, saúde e assistência social. O da
Maganize, direciona a denúncia direto para o “Ligue 180”. Segundo a presidente
do Conselho do Magazine, verificou-se o aumento de cerca de 400% (quatrocentos
por cento) no uso do recurso do aplicativo no mês de maio deste ano40.
Além disso, um movimento bastante interessante iniciou-se nesta
pandemia: as farmácias tornaram-se pontos de apoio a mulheres que são vítimas
de violência doméstica e não conseguem ir até aos órgãos de proteção. Com a
restrição de locomoção ocasionada pela Covid-19, muitas pessoas somente
puderam frequentar supermercados, hospitais e farmácias – por essa razão, diversas

38 ONU. Covid-19 e Igualdade de gênero: um apelo à ação para o setor privado. 2020. Disponível em:
http://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2020/04/Princ%C3%ADpios-de-Empodera-
mento-das-mulheres_COVID19_rev_2.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.
39 “Um plano de ações coordenadas em parceria com mais de 10 instituições da iniciativa privada,
da sociedade civil e setor público com o objetivo de mitigar os impactos do isolamento na vida de
mulheres e meninas por meio da prestação de serviços essenciais para a mulheres e meninas em situa-
ção de violência [...]. O Programa Você Não Está Sozinha se propõe a facilitar o pedido de ajuda e
ser uma ponte entre as necessidades básicas e psicológicas das mulheres e os recursos disponíveis para
apoiá-las. A partir de um processo de triagem por diferentes canais, a fim de compreender o nível de
risco e vulnerabilidade ao qual a mulher está sendo submetida, ela é direcionada a acessar diferentes
recursos como plataformas de apoio psicológico e jurídico, auxílios de transporte, suporte material,
alimentação, entre outros”. AVON. Você pode cuidar da sua vida. E da sua vizinha também. Disponí-
vel em: https://www.avon.com.br/instituto-avon/isoladassimsozinhasnao#. Acesso em: 28 jan. 2022.
40 EXAME. 4 ações sociais que empresas podem adotar na pandemia da covid-19. Da redação. 2020.
Disponível em: https://exame.com/brasil/4-acoes-sociais-que-empresas-podem-adotar-na-pandemia-
-da-covid-19/. Acesso em: 29 jan. 2022.

444
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

campanhas foram lançadas com este intuito – dentre elas, destaca-se a campanha
lançada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ e a Associação dos Magistrados
Brasileiros – AMB, denominada “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”. A
campanha permite que a mulher que esteja em alguma situação de risco, faça um “X”
vermelho na mão e mostre para algum funcionário da farmácia, que imediatamente
deverá comunicar a situação para a autoridade competente (a campanha passou a
ser regulamentada pela citada Lei nº 14.188/2021)41.
Em outro âmbito, a Fundação Vale e a Rede Asta – com apoio tecnológico
da Petrobras, Microsoft e outras empresas – promoveram a iniciativa denominada
“Máscara + Renda”. Através desta campanha, as empresas selecionaram 1.000 (mil)
costureiras e artesãs de todas as regiões do país que produzirão máscaras de proteção
e receberão até R$ 900 (novecentos reais) mensais.42 As idealizadoras estimam que,
em três meses, serão 1,5 milhão de máscaras produzidas e doadas para organizações
sociais indicadas pelas próprias costureiras.
Nota-se um despertar do setor privado quanto a sua importância na luta
pela igualdade de gênero – o que se espera ser uma tendência para além do período
da pandemia e que alcance também a tão almejada igualdade salarial no âmbito
privado.
Compreendendo a importância que a sociedade possui na luta pela
igualdade de gênero, diversas Organizações não Governamentais – ONGs, bem
como coletivos autogerenciáveis e movimentos populares promoveram campanhas
para proteger mulheres da violência doméstica, bem como ajudar na subsistência
destas mulheres neste período pandêmico. A exemplo disso, A Central Única
das Favelas – CUFA com apoio de vários parceiros, instituiu o “Fundo solidário
COVID-19 para Mães das Favelas” 43. Por sua vez, o Instituto Casa Mãe e o
Coletivo MASSA criaram o movimento “Segura a Curva das Mães”. Trata-se de um

41 BANDEIRA, Regina. Sinal Vermelho: CNJ lança campanha de ajuda a vítimas de violência domés-
tica na pandemia. 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sinal-vermelho-cnj-lanca-campanha-
-de-ajuda-a-vitimas-de-violencia-domestica-na-pandemia/. Acesso em: 29 jan. 2022.
42 RENDA, Máscara +. Projeto Máscara + Renda. Disponível em: http://mascaramaisrenda.com.br/.
Acesso em: 29 jan. 2022.
43 CUFA. Sua doação vai ajudar milhares de mães das favelas brasileiras. Central Única das Favelas.
Disponível em: https://www.maesdafavela.com.br/. Acesso em: 29 jan. 2022.

445
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

fundo com o intuito de identificar mães em situação de vulnerabilidade, causada ou


agravada pela pandemia da Covid-1944.
Ademais, o Movimento Black Money, reconhecendo que para mulheres
negras a pandemia foi ainda mais agressiva, criou a iniciativa de caráter emergencial
“Impactando Vidas Pretas”, cujo objetivo prioritário é prestar apoio financeiro
a famílias negras lideradas por mães solos e afro empreendedores que ficaram
desassistidas por causa da crise socioeconômica vivenciada neste período45.
Noutro pórtico, a Rede “Agora É Que São Elas” iniciou a campanha
#VizinhaVocêNãoEstáSozinha, através da qual, além de fomentar o apoio entre
mulheres, também vem pressionando governadores a disponibilizarem quartos das
redes de hotéis que estão vazios para acolher, durante o período do isolamento
social, mulheres que estão sofrendo agressões e não têm para onde ir.
Diante da ausência do Estado no acolhimento da mulher vítima de
violência doméstica, o Instituto Maria da Penha (IMP) disponibilizou um “núcleo
de referência online com psicólogas, advogadas e assistentes sociais para fazer o
acolhimento adequado”46.
Ainda, é necessário ressaltar a importância do “Mapa do Acolhimento”
que, apesar de ter sido criado em junho de 2016, está tendo um papel crucial
neste momento de pandemia. Trata-se de uma rede de solidariedade que conecta
mulheres vítimas de violência de gênero a profissionais (psicólogas e advogadas)
que podem ajudá-las voluntariamente – o mapa virtual tornou-se ainda mais eficaz
em razão do isolamento, já que não demanda deslocamento 47.

44 “Quando falamos de apoio integral estamos falando de: atendimento psicológico, pediátrico e
em saúde, suporte jurídico, apoio financeiro emergencial, apoio pedagógico escolar e não-escolar),
apoio ao luto, apoio à gestação, parto e pós-parto, rede de proteção e segurança contra a violência; e o
estabelecimento de vínculos e redes de apoio regionais entre as mães”. VAKINHA. Segura a curva das
mães! Disponível em: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/segura-a-curva-das-maes. Acesso em:
29 jan. 2022.
45 BENFEITORIAS. Impactando vidas pretas. Movimento Black Money – Afreektech. Disponível
em: https://benfeitoria.com/impactandovidaspretas. Acesso em: 29 jan. 2022.
46 TEODORO, Marina. Acolhimento às vítimas de violência fica nas mãos de ONGs. 2020. Disponível
em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/acolhimento-as-vitimas-de-violencia-fica-nas-maos-de-
-ongs,632ae87902f0b951ce6e23bb751fec7ef18grdwj.html. Acesso em: 29 out. 2022.
47 “Diante da pandemia do coronavírus, os índices de violência doméstica dispararam e consequen-
temente, o número de pedidos de ajuda aqui no nosso site aumentou. Estamos recebendo mais de
20 pedidos por dia - é quase uma mulher pedindo ajuda a cada hora! E ainda não temos voluntárias
suficientes para ajudar todas elas. Para não deixar nenhuma mulher sofrer sozinha, precisamos urgente

446
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Consoante se observa, apesar da falha estatal, a sociedade está cada vez


mais solidária em defesa da mulher, desde a proteção contra a violência doméstica,
bem como para prover, de alguma forma, a subsistência daquelas mulheres que
foram esquecidas pelo Estado. O ideal é que as ações afirmativas sejam promovidas
pelo poder público, no entanto, deve-se comemorar esta resposta da comunidade.

4 CONCLUSÃO

A discriminação em razão do gênero e a desigualdade estrutural ainda


existente entre homens e mulheres deflagram uma preocupação em âmbito global
quanto a promoção dos direitos humanos das mulheres, o que se tornou ainda mais
evidente diante do estado de calamidade instaurado pela pandemia da Covid-19.
No Brasil, os índices de desocupação de mulheres, no contexto
pandêmico, foi bem superior ao dos homens e ainda são elas as que mais abrem
mão do trabalho e, consequentemente, da autonomia financeira (leia-se liberdade),
em prol do lar e dos filhos. Também são elas as que mais se sujeitam a serviços
informais, trabalhos com remunerações inferiores e serviços com menos horas
de trabalho (consequentemente menor salário), justamente por carregarem nos
ombros essa obrigação de se dedicar, na maior parte do tempo (ou se não todo o
tempo) sozinhas, aos afazeres domésticos e cuidados com a prole.
Em síntese, a perda da autonomia financeira acabou sendo um fator
chave de sujeição das mulheres aos homens (provedores financeiros do lar), o que
repercutiu em graves consequências especialmente dentro de relacionamentos
abusivos. Nessas circunstâncias, muitas mulheres passaram a ser vítima da violência
psicológica, sexual, moral, patrimonial física e/ou virtual. No campo do trabalho, a
violência doméstica e familiar faz surgir outras problemáticas, como o absenteísmo;
o baixo rendimento; abalo psicológico e a impossibilidade de desenvolvimento das
tarefas exigidas.
Como demonstrado, a pandemia também foi responsável por acentuar
a sobrecarga de trabalho das mulheres, o que é mais um reflexo em decorrência da
desigualdade de gênero já existente na sociedade, a qual naturaliza a ideia de que
a mulher é a responsável pelos afazeres domésticos, por estar associada a noção de
reprodução e cuidados com a prole. E a questão é, de fato, preocupante.

de 5.500 novas voluntárias nos 27 Estados do Brasil”. ACOLHIMENTO, Mapa do. Nenhuma mu-
lher deve sofrer sozinha. Disponível em: https://www.mapadoacolhimento.org/#block-33233. Acesso
em: 29 jan. 2022.

447
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Isso porque, deflagrou-se que a sobrejornada decorrente do acúmulo de


funções, além da fatiga e exaustão física e psicológica da mulher, geram outras
problemáticas: ausências ao trabalho que não se enquadra nos tipos legalmente
previstos de falta justificada; a queda na produtividade e no rendimento laboral;
absenteísmo; comprometimento emocional alimentado pelo sentimento de
incapacidade e inferioridade; intensificação da desigualdade de gênero; sérias
repercussões familiares e, inclusive, criminais, com o aumento do estresse e das
tensões no lar.
Diante desse cenário de instabilidade, verificou-se o aumento no número
de separações e divórcios e, conforme dito, o crescimento dos mais diversos tipos de
violência perpetrados, seja direcionados às crianças, seja por tensões entre os casais,
deflagrando relacionamentos abusivos e prática da violência doméstica e familiar
contra a mulher.
Diante dessa realidade, observou-se que a ONU elencou sete princípios
básicos para a garantia dos direitos das mulheres e a preservação da igualdade
de gênero, quais sejam: 1) Estabelecer liderança corporativa de alto nível para a
igualdade de gênero; 2) Tratar todos os homens e todas as mulheres de forma justa
no trabalho – respeitando e apoiando os direitos humanos e a não discriminação;
3) Garantir a saúde, a segurança e o bem-estar de todos os trabalhadores e as
trabalhadoras; 4) Promover a educação, a formação e o desenvolvimento profissional
das mulheres; 5) Implementar o desenvolvimento empresarial e as práticas da
cadeia de suprimentos e de marketing que empoderem as mulheres; 6) Promover
a igualdade de gênero por meio de iniciativas e defesa comunitária; e, 7) Mediar e
publicar os progressos para alcançar a igualdade de gênero.
O que se depreende dessas diretrizes é que deve existir uma parceria
público-privada entre o Estado, as Organizações Internacionais, empresas, entidades
representativas, trabalhadores e trabalhadoras, incentivando a atuação sustentável
das empregadoras e promovendo um ambiente de trabalho justo, saudável, o qual
respeite a dignidade da pessoa humana e a vida, quebrando tabus e estereótipos
profundamente enraizados e assumindo um compromisso social com a diminuição
das desigualdades, especialmente as de gênero.
Apesar das diretrizes internacionais e das Leis e políticas afirmativas
adotadas no Brasil, verificou-se uma omissão quanto à garantia da renda mínima à
mulher que se enquadra na chamada “economia do cuidado”. Isso porque, apesar
de ter instituído o denominado “auxílio emergencial”, no caso da mãe provedora do
lar, a Lei nº 13.982/2020 restringiu o pagamento do auxílio ao: microempreendedor

448
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

individual; contribuinte obrigatório e facultativo do Regime Geral de Previdência


Social, desde que não seja segurado facultativo sem renda própria que se dedique
exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência.
Apesar da tentativas de prevenção e combate, inclusive muitas ligadas à
violência doméstica e familiar, a exemplo da Lei nº 14.022/2020, o Estado brasileiro
atuou de maneira ineficiente ao não garantir uma renda básica para mulheres que
sofrem a violência de gênero – ignorando que a dependência econômica é um
agravante para relações abusivas.
Embora o estado ainda falhe na promoção da igualdade de gênero, foi
possível verificar que a sociedade está cada vez mais solidária em defesa da mulher,
desenvolvendo estratégias de acolhimento às mulheres vítimas de violência, bem
como relativas ao empoderamento feminino.
Por fim, apesar dos esforços do Estado brasileiro quanto à temática e de
existir uma maior conscientização da população quanto aos reflexos da desigualdade
de gênero, segue a preocupação em oferecer proteção à mulher não apenas em
âmbito formal, mas também na prática, dispondo-se dos meios adequados para
a materialização dos direitos humanos da mulher. Ademais, não há dúvidas de
que a pandemia da Covid-19 contribuiu para o desenvolvimento de estratégias
fundamentais no combate à desigualdade de gênero (e violações reflexas) e no
empoderamento de mulheres, sendo, portanto, um marco temporal de reconstrução
dos direitos humanos relativos ao gênero feminino.

449
REFERÊNCIAS

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453
Dignidade da pessoa humana como instrumento de humanização
na execução penal: uma análise da efetividade dos diplomas
internacionais no trabalho prisional brasileiro

Raphaela Jéssica Reinaldo Cortez1


Walter Nunes da Silva Júnior2
Yara Maria Pereira Gurgel3

1 INTRODUÇÃO

A origem da aplicação da pena nos remete às punições voltadas ao corpo


do acusado, traduzida em sofrimentos físicos repugnantes, como esquartejamentos,
mutilações, queimaduras e até mesmo execuções sumárias. Contudo, ao longo
do tempo, deu-se início a busca pelo desaparecimento do suplício, trazendo os
primeiros pensamentos sobre a privação de liberdade como forma de punir aqueles
transgressores da lei. Sem dúvida, a definição do modelo de prisão como pena foi

1 Advogada criminalista. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNI/RN. Especialista em Direito Tributário pelo
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Graduada em Direito pela Universidade Potiguar. Cola-
boradora do Projeto de Pesquisa Criminalidade Violenta e Diretrizes para uma Política de Segurança
Pública no Estado do Rio Grande do Norte.
2 Juiz Federal, Mestre e Doutor, Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN, Coordenador dos Projetos de Pesquisa O Direito Criminal como corpo normativo cons-
trutivo do sistema de proteção dos direitos e garantias fundamentais, nas perspectivas subjetiva e objetiva e
a Criminalidade violenta e diretrizes para uma política de segurança pública no Estado do Rio Grande do
Norte, Conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP e membro
da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte – ALEJURN.
3 Pós-Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre e Doutora em Direito
do Trabalho pela PUC/SP. Professora Associada III da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.

455
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

resultado da experiência e da discussão racional vivenciadas durante muitos anos.


Contudo, é interessante perceber que a origem do sistema prisional vem atrelada
não somente à ideia de humanização das penas aplicadas, mas à necessidade
econômica que abalava toda a Europa no século XVII, considerando que as penas
físicas já não eram suficientes aos anseios da justiça.
Neste sentido, é possível perceber que existia, na verdade, a conveniência
da utilização de uma mão de obra que estava sendo desperdiçada ao longo dos
séculos, visando, ao final, resguardar as necessidades e a valoração do capital. Assim,
em que pese a existência de ideais humanitários ou restauradores, a prisão também
veio acompanhada de um discurso punitivista embasado na função de segregação do
sujeito infrator e na ideologia de que o rigor penal junto a um controle disciplinar
em um setor de trabalho seria a solução dos conflitos.
Isso não significa dizer que o sistema prisional veio desacompanhado de
ideias que têm como fundamento a humanidade, muito pelo contrário, a prisão
também apresentava um papel importante na sociedade: o de transformar indivíduos.
A partir de então a concepção de que o apenado seria encarado como sujeito de
direitos reflete em uma postura que vai além de ser corretiva ou disciplinada, essa
nova percepção do sistema prisional traz consigo o reconhecimento de vários
direitos e garantias fundamentais aos reclusos.
Assim, apesar da história mostrar que houve respostas às arbitrariedades
cometidas ao longo dos séculos, constata-se que o sistema penitenciário brasileiro
ainda reflete uma situação de violação generalizada de direitos fundamentais. Prova
disso foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 3474, em que
o Supremo Tribunal Federal declarou que o sistema penitenciário brasileiro deve
ser considerado um “estado de coisas inconstitucional”. Isso faz com que a efetiva
aplicabilidade desses postulados frente às relações de trabalho constituídas entre as
instituições e os apenados seja questionada, tendo em vista que a realidade atual do
sistema carcerário revela condições degradantes, além da inobservância de preceitos
fundamentais básicos ao ser humano.
Dessa forma, a fim de encontrar soluções para o problema delineado, o
presente artigo buscará delimitar a dignidade da pessoa humana como fundamento
dos direitos fundamentais assegurados aos reclusos, especificando os principais

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 MC. Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal
Pleno, julgado em 09/09/2015, Processo Eletrônico DJe-031 DIVULG 18- 02-2016 PUBLIC
19-02-2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=10300665. Acesso em: 16 fev. 2022.

456
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aspectos internacionais inseridos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos


e nacionais encontrados no ordenamento jurídico brasileiro, visando desconstruir
a figura do apenado como mero objeto e transformá-lo em sujeito de direitos.
Por fim, serão analisados os dados coletados pelo Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública,
almejando relacionar em que medidas os índices divulgados se relacionam com
eventuais violações dos direitos fundamentais dos reclusos em trabalho prisional.
Para alcançar os objetivos que respondem aos questionamentos propostos
por esse artigo, o presente estudo buscará realizar uma pesquisa bibliográfica
e documental, na medida em que, inicialmente, será realizada uma análise dos
aspectos teóricos constitucionais visando compreender as ideias gerais da dignidade
da pessoa humana como fundamento dos direitos fundamentais e delimitar os
elementos imprescindíveis para a execução do trabalho prisional contidos nos
diplomas internacionais e nacionais.
Após a definição dos conceitos estudados, serão analisados dados
referentes ao número de reclusos no Brasil, especialmente os índices relacionados
à quantidade de presos que trabalham, sendo possível, ainda, a divisão dos dados
coletados em gêneros, diante da disparidade que as contratações de trabalho no
sistema prisional masculino e feminino podem apresentar, além das diferenças já
evidentes no próprio meio social.
Essencialmente, o presente estudo se organiza em três capítulos. No
primeiro – A dignidade da pessoa humana como instrumento de humanização da
execução penal – será apresentado um aspecto teórico sobre esses elementos, como
eles se relacionam e qual seria a melhor compreensão para sua aplicabilidade no
contexto do trabalho prisional. O segundo capítulo – Proteção Internacional do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos das Pessoas Privadas de Liberdade em
atividade laboral – será feita uma análise dos aspectos internacionais do sistema
interamericano dos direitos humanos, expondo os documentos internacionais
em vigência que tratem sobre a atividade laboral. Por fim, o último capítulo –
Estado brasileiro e o sistema normativo de proteção aos Direitos Humanos no âmbito
do trabalho prisional – aborda as normativas constitucionais e legais previstas no
âmbito nacional que tratem sobre trabalho prisional, apresentando os índices
nacionais atuais e, buscando, ao final, identificar como eventuais violações podem
repercutir na efetivação dos direitos fundamentais dos reclusos.

457
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO INSTRUMENTO DE


HUMANIZAÇÃO NA EXECUÇÃO PENAL

Quando se discute sobre a dignidade da pessoa humana no sistema


prisional e a sua importância para o estudo atual, é difícil não mencionar o exemplo
do sistema dos Estados Unidos, o qual é considerado atualmente uma verdadeira
indústria de presos, isso porque, de acordo com a World Prison Brief5, representa
uma das maiores populações carcerárias do mundo – são mais de 2 milhões de
pessoas presas. Contudo, o Brasil não segue um caminho diferente, uma vez que
possui mais de 800 mil pessoas6 reclusas em seu território, ficando atrás apenas
dos Estados Unidos e da China, de acordo com a lista comparativa publicada pela
mesma plataforma7.
Em âmbito nacional, de acordo com o Sistema de Informações do
Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN), o Brasil, no ano de 2021,
possuía um total de 679.687 pessoas privadas de liberdade, excluindo-se desse
cálculo as pessoas presas em prisão domiciliar, e uma taxa de superencarceramento
de 138,7%. No mesmo ano, foi publicado Relatório elaborado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) acerca da situação dos direitos
humanos no Brasil, sendo abordado, entre outros grupos em situação de
vulnerabilidade, as pessoas privadas de liberdade, destacando-se inúmeras situações
de vulnerabilidade e as condições degradantes encontradas nos estabelecimentos
prisionais.
Nesse cenário, percebe-se que ao mesmo tempo em que a população
prisional brasileira ainda constitui um número preocupante, a discussão sobre
a garantia de direitos fundamentais e a preservação da dignidade da pessoa
humana também aparece com uma maior frequência nas cortes constitucionais
e internacionais, prova disso foi a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 347 discutida no âmbito do Supremo Tribunal Federal que diante

5 O World Prison Brief (WPB) é uma plataforma de acesso gratuito, responsável pela disponibilização
de dados estatísticos de todos os sistemas prisionais do mundo. É importante mencionar que os dados
disponibilizados podem ter referenciais temporais diversos, isso porque dependem de fontes oficiais
de cada país para o fornecimento dessas informações.
6 Dado referente ao número total da população prisional, incluindo presos em prisão preventiva, ano
de 2020.
7 BRIEF, World Prison. Highest to lowest – prison population total. Disponível em: https://www.
prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All. Acesso
em: 6 out. 2021.

458
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de um quadro de violações massivas de direitos fundamentais e ineficientes políticas


públicas entendeu que o sistema penitenciário nacional reflete, na verdade, um
“estado de coisas inconstitucional”.
Ao lado desta concepção, Siddharta Legale Ferreira e David Pereira
de Araújo8 trouxeram a perspectiva doutrinária de um “Estado de Coisas
Inconvencional” no âmbito do sistema prisional brasileiro. Para sua configuração
seria necessário a comprovação de violação massiva das normas oriundas do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos a que o Brasil se vincula, especialmente a
Convenção Americana de Direitos Humanos, acompanhada de omissão estatal
persistente nas soluções do problema identificado e um litígio estrutural integrando
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana
de Direitos Humanos (Corte IDH).
Percebe-se que os autores, na verdade, utilizaram parâmetros similares à
configuração do “estado de coisas inconstitucional”, desenvolvida na Colômbia e
retratada na ADPF nº 346 do STF, a fim de construir o conceito de “Estado de
Coisas Inconvencional” no plano internacional. Essa construção teve como base
o elevado número de casos em que o Brasil foi condenado na Corte IDH, como
os casos dos Presídios de Urso Branco (RO), Pedrinhas (MA) e de Curado (PE),
entre outros, e o consequente reconhecimento de violações graves acompanhado da
existência de uma omissão estatal reiterada9.
Assim, de forma paradoxal, nos deparamos com brilhantes estudos
sobre a dignidade da pessoa humana e a sua inclusão na maioria dos tratados
internacionais e constituições nacionais vigentes, figurando na Constituição
brasileira como fundamento da República no art. 1º, inciso III, mas sem qualquer
impacto significativo no contexto prisional brasileiro10.
Fato é que o regramento jurídico experimentou importantes mudanças
ao longo da história, mas foi principalmente após a Segunda Guerra Mundial, em
virtude das atrocidades praticadas pelo nazismo e fascismo, que surgiu a necessidade
de uma proteção global de direitos fundamentais aos seres humanos, especialmente

8 LEGALE, Siddharta; ARAÚJO, David. O Estado de Coisas Inconvencional: trazendo a Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos para o debate sobre o sistema prisional brasileiro. Revista Publicum,
Rio de Janeiro, ano 2016, v. 2, n. 2, p. 67-82, 2016. DOI 10.12957/publicum.2016.26042. Dispo-
nível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/publicum. Acesso em: 18 mar. 2022.
9 Ibid.,
10 SARMENTO, Daniel. A dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 15.

459
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

no que se refere à sua dignidade humana. Observou-se o surgimento de novas cartas


constitucionais que passaram a trazer como premissas em seus textos normativos a
dignidade da pessoa humana e a proteção aos direitos fundamentais.
No entanto, ainda que o ordenamento jurídico tenha evoluído com o
intuito de considerar o apenado como sujeito de direitos e garantir a sua reinserção
social, a problemática encontrada nesse estudo reside no fato de que o atual
sistema jurídico brasileiro vivencia uma crise institucional revelada através de uma
construção histórico social de que aqueles que cometem crimes devem sofrer,
fazendo com que a dignidade humana esteja distante da realidade brasileira.
Desde os primórdios da construção do sistema prisional em substituição
às penas físicas, o nosso sistema jurídico sofre com feições ainda discriminatórias
e violadoras de direitos e garantias fundamentais à dignidade da pessoa humana,
sobretudo no campo do trabalho penitenciário, verificando-se um profundo
antagonismo entre o direito positivado e a realidade que ainda retrata o apenado
como mero objeto da execução penal.
Sarmento11 explica em sua obra que além da falta de eficácia, a falta de
consenso sobre esse conceito jurídico traz também inúmeras dificuldades para o
aplicador do direito, isso porque é comum que a dignidade da pessoa humana seja
invocada em diferentes contextos e em posições, muitas vezes, opostas, fazendo
com que a insegurança jurídica esteja presente nas inúmeras fundamentações de
decisões judiciais que abordam a matéria.
Assim, antes de darmos continuidade à análise sobre a dignidade da
pessoa humana no contexto prisional brasileiro, faz-se necessário compreender a
verdadeira concepção por traz dessa terminologia e a sua relação com os direitos
fundamentais. Afinal, qual é a delimitação constitucionalmente adequada do
conteúdo da dignidade humana para a aplicabilidade dos direitos fundamentais?
A Constituição Federal de 1988, como base de um Estado Democrático
de Direito, previu expressamente a dignidade da pessoa humana como fundamento
e valor primordial da República (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de
1988), assegurando-a como atributo natural de todas as pessoas indistintamente

11 SARMENTO, Daniel. A dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo


Horizonte: Fórum, 2016. p. 16.

460
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

que não poderá sofrer qualquer afetação ou flexibilização sob risco de fomentar
insegurança jurídica em uma sociedade que deve ser democrática e inclusiva12.
Para Yara Gurgel13, a dignidade é acolhida no âmbito jurídico como
“norma-princípio condutora de toda estrutura constitucional do Estado de direito”.
Nesse sentido, denota-se que a dignidade humana possui inúmeras funções no
nosso ordenamento jurídico – fundamento, critério de interpretação, parâmetro de
ponderação, limite aos limites dos direitos fundamentais, entre outros –, de forma
que não pretendemos aqui esgotar toda a matéria que permeia esse conteúdo, mas
apenas trazer breves apontamentos para que possamos analisá-lo em um contexto
mais específico, qual seja, o prisional.
Sendo, indiscutivelmente, fundamento central do ordenamento jurídico
brasileiro, a dignidade humana, segundo Sarmento14, engloba quatro elementos
básicos para sua compreensão: (i) valor intrínseco da pessoa, (ii) autonomia, (iii)
mínimo existencial e (iv) reconhecimento. O autor, em síntese, aponta que o valor
intrínseco da pessoa postula que o ser humano jamais poderá ser tratado como
simples objeto, mas como um fim em si; a autonomia vem como sinônimo de
liberdade individual e pública; o mínimo existencial visa assegurar necessidades
básicas para uma vida digna e o reconhecimento se liga ao pertencimento do ser
humano a determinados grupos sociais.
Há, no entanto, diversos outros entendimentos sobre o que de fato
compõe o conteúdo mínimo da dignidade da pessoa humana. Luís Roberto
Barroso15 defende a existência de três elementos: (i) valor intrínseco, (ii) autonomia
e (iii) valor comunitário, sendo este último representado pela ideia de restrição
à autonomia individual em prol de metas coletivas que possam ser usufruídas

12 NOVAIS, Jorge Reis. A dignidade da pessoa humana. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2016. v. II – Dig-
nidade e Inconstitucionalidade. p. 39-40.
13 GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana e suas implica-
ções jurídicas na realização dos direitos fundamentais. Tese de Pós-Doutoramento em Direito e Ciências
Jurídicas. Lisboa, 2018. p. 86.
14 SARMENTO, Daniel. A dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 98.
15 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo:
a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução de Humbero Laport
de Mello. 3. Reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 72-89.

461
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

pela maioria dos indivíduos. Por sua vez, Yara Gurgel16 admite que o conteúdo
normativo da dignidade da pessoa humana encontra-se baseado em três premissas:
(i) sua titulação, (ii) a igualdade de direitos e (iii) a autonomia individual. Em breve
síntese, destaque-se que a igual dignidade possui como base teórica a aplicação
do princípio da igualdade a todos os sujeitos de direito e a proibição de qualquer
tratamento ou restrição arbitrária aos direitos fundamentais. Já a autonomia
individual seria a própria capacidade individual de realizar suas próprias escolhas a
partir do exercício de seus direitos fundamentais.
Nesse sentido, percebemos que analisar a dignidade humana é também
lidar com a sua amplitude, mas isso não significa dizer que o seu uso deve se dar de
forma genérica e desarrazoada, muito pelo contrário. É imprescindível que o seu
conteúdo seja delimitado para que se possa efetivamente garantir a correta aplicação
em casos concretos, evitando qualquer desvirtuamento da sua finalidade.
Para Thiago Moreira17, os direitos humanos ao lado da própria dignidade
humana são conceitos indispensáveis à própria sociedade, mas muito além de discutir
sobre os conceitos que giram em torno da sua nomenclatura, faz-se importante e
imprescindível que políticas públicas estatais atuem de forma a concretizá-las, sob
pena de responsabilidade internacional.
Dito isso, denota-se que a dignidade humana desenvolve diversas funções
no ordenamento jurídico, sendo uma delas fundamento ou princípio estruturante
para os direitos fundamentais expressamente previstos e também parâmetro para
preenchimento de lacunas e omissões estatais. Logo, entender a dignidade humana
como conteúdo mínimo para elaboração de outras normativas é o caminho mais
seguro a ser traçado, uma vez que pensar o contrário seria equipará-la a um direito
fundamental, concordando com a ideia de que ela poderá ser ponderada diante de
qualquer conflito narrado em uma situação concreta, o que levaria à insegurança
do próprio direito postulado.
No entanto, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro apesar de
dispor sobre a dignidade da pessoa humana de forma universal e igualitária, traz
ainda uma herança discriminatória e escravocrata muito forte, especialmente no

16 GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana e suas implica-
ções jurídicas na realização dos direitos fundamentais. Tese de Pós-Doutoramento em Direito e Ciências
Jurídicas. Lisboa, 2018. p. 100-120.
17 MORERIA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela juris-
dição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 93.

462
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

contexto prisional, fazendo com que violações de direitos fundamentais e também


da sua própria dignidade humana seja naturalizada.

3 PROTEÇÃO INTERNACIONAL AOS DIREITOS HUMANOS DAS


PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE EM ATIVIDADE LABORAL

Consubstanciando-se na ideia de que o valor da dignidade humana é


o fundamento central dos direitos humanos, o seu estudo revela inicialmente a
necessidade de compreendê-lo como um conjunto de direitos básicos do ser
humano para a garantia da construção de uma vida com dignidade18. Não obstante
a discussão sobre a natureza dos direitos humanos – se advém dos direitos naturais,
morais, positivos ou históricos – o questionamento atual não é mais sobre o seu
fundamento ou a sua natureza jurídica, mas de que forma seria possível garantir
uma maior proteção aos direitos do ser humano19.
Ao longo da história da humanidade, diferentes concepções sobre os
direitos humanos foram desenvolvidas a partir das múltiplas civilizações, alinhadas
às particularidades e às necessidades de cada povo, mas fato é que em tempos
pretéritos não se falava em direitos relacionados aos seres humanos, muito pelo
contrário, a relação humana era calcada na prática de barbáries e atrocidades,
fomentando a dominação do homem pelo homem20.
Quando analisamos os direitos humanos no âmbito da responsabilização
criminal, vê-se um abismo ainda maior, uma vez que antigamente a pena era traduzida
pela ideia de uma “melancólica festa de punição”21, traduzida em sofrimentos físicos
considerado repugnantes, como esquartejamentos, mutilações, queimaduras,
enforcamentos ou fuzilamento, de modo que os primeiros pensamentos sobre a
utilização da privação de liberdade como forma de punir os transgressores da lei só
surgiram anos depois.

18 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 85-86.
19 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004. p. 32.
20 NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública. Rio de Janeiro: Forense,
2016. p. 17-23.
21 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 20. ed.
Petrópolis: Vozes, 1999. p. 12.

463
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A fim de compreender o surgimento dessa proteção internacional


de direitos humanos, faz-se necessário destacar os seus principais precedentes
históricos, quais sejam, o direito humanitário, a Liga das Nações e a Organização
Internacional do Trabalho. A fase do direito humanitário consistiu na elaboração
de um conjunto de princípios e regras que buscaram limitar o recurso à violência
durante o período de conflito armado. A Liga das Nações, criada logo após a Primeira
Guerra Mundial, veio com o mesmo intuito de limitar a autonomia estatal, já que
tinha como objetivo a promoção da paz e segurança internacional, estabelecendo
sanções econômicas e militares aos Estados que violassem as regras ali dispostas22.
Como terceiro marco histórico, foi criada a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), agência especializada atualmente vinculada à ONU, responsável pela
elaboração de parâmetros mínimos para a proteção do trabalhador.
Denota-se, portanto, que esses três marcos históricos inauguram uma
nova fase do direito internacional em que se visava não só os interesses exclusivos
dos Estados, mas colocam como ponto central de proteção o ser humano como
sujeito de direitos internacional, rompendo com a ideia de uma soberania estatal
absoluta em prol da proteção dos direitos humanos em âmbito internacional23.
Contudo, foi somente após a Segunda Guerra Mundial e as atrocidades
cometidas pelas ordens totalitaristas que a comunidade internacional sentiu uma
maior necessidade de consolidar uma proteção internacional de direitos humanos.
Foi nesse momento que o direito a ter direitos, defendido por Hannah Arendt24,
se tornou a principal definição dos direitos humanos na contemporaneidade. Nas
palavras de Flávia Piovesan25, “se a Segunda Guerra significou a ruptura com os
direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução”.
Outro precedente histórico de suma importância na internacionalização
dos direitos humanos foi a criação do Tribunal de Nuremberg, entre os anos de
1945 e 1946, com o objetivo de julgar os responsáveis pelas atrocidades cometidas
durante o período da Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, Piovesan26 aponta

22 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 189.
23 Ibid., p. 188.
24 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1989. p. 317.
25 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 192.
26 Ibid., p. 195.

464
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dois significados importantes: o primeiro consiste na ideia de limitação da soberania


nacional e o segundo no reconhecimento de direitos internacionais, alterando o
quadro fático que possuíamos até o momento.
Diante desse cenário, foram criados os sistemas internacionais com o
objetivo de uma maior regulamentação desses direitos, estando atualmente em
funcionamento o sistema global, também conhecido como sistema universal ou
onusiano, o sistema interamericano, o sistema europeu e o africano. Nesse estudo,
vamos nos concentrar nos principais sistemas internacional, quais sejam, o sistema
global e o sistema interamericano de proteção.
A inauguração do direito internacional dos direitos humanos no Sistema
Global teve início com a adoção da Carta das Nações, em 1945, na cidade de
São Francisco, nos Estados Unidos da América, que constituiu a Organização das
Nações Unidas (ONU), com o objetivo de difundir a ideia de que o tema sobre
violação de direitos humanos não seria mais exclusivo da jurisdição doméstica de
cada Estado. Contudo, a sua codificação só foi possível em 1948 com a aprovação
da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) pela Assembleia Geral das
Nações Unidas.
Não obstante, assim como os direitos fundamentais, não há um rol
predeterminado dos direitos humanos, sob pena de restringir a proteção conferida
aos seres humanos, que possuem particularidades de acordo com cada contexto
histórico inserido. Logo, apesar da sua codificação ter sido um grande passo na
história da proteção dos seres humanos, começa-se a questionar a definição do seu
conceito ou a limitação do seu conteúdo.
Nesse sentido, a fim de auxiliar essa delimitação, André de Carvalho
Ramos27 elenca quatro características essenciais dos direitos humanos: a
universalidade, a essencialidade, a superioridade normativa e a reciprocidade. A
universalidade corresponde ao reconhecimento de que todo ser humano tem direito
a ter direitos. A essencialidade está diretamente relacionada à indispensabilidade
de valores imprescindíveis para edificação de uma vida digna. Por sua vez, a
superioridade normativa revela que os direitos humanos possuem um status
diferenciado em relação à legislação ordinária, de forma que, diante de conflitos
normativos, os direitos humanos devem prevalecer. Por fim, a reciprocidade

27 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 40.

465
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

significa que todos os seres humanos possuem direitos entre si e que também devem
ser respeitados pelo Estado.
A universalidade foi uma característica ressaltada no âmbito da própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos, e posteriormente ratificadas nas
Conferências Mundiais de Direitos Humanos de Teerã (1968) e de Viena28 (1993)
e, em que pese receber críticas dos adeptos ao relativismo cultural, teoria que
defende que a concepção de direitos humanos adotada possuiria características
eminentemente ocidentais e desconsideraria as diferentes culturas existentes no
mundo, o universalismo procura igualar os direitos humanos a todas as culturas
fazendo com que violações aos direitos humanos não sejam justificadas através de
uma cultura de determinado país.
Assim, além de garantir uma igual dignidade e direitos a todos os seres
humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos também assegura, em
seus artigos 23 e 24, o direito ao trabalho a todo ser humano com condições justas
e favoráveis, direito a uma remuneração, entre outros direitos elencados no diploma
internacional, sem qualquer forma de distinção. Todavia, ao trazer algumas diretrizes
sobre os direitos assegurados aos seres humanos, emergiu o questionamento sobre
a natureza jurídica da Declaração Universal dos Direitos Humanos e se as normas
ali previstas possuiriam força jurídica obrigatória e vinculante aos Estados-partes.
Nesse contexto, foi com base em uma visão mais legalista – de que a
DUDH não possui força vinculante por não ser considerado um tratado – que se
fomentou a discussão sobre uma “juridicização” da Declaração, fazendo com que
fossem elaborados dois Pactos, um contendo os direitos civis e políticos (PIDCP),
e o outro abordando os direitos econômicos, sociais e culturais (PIDESC), ambos
aprovados somente no ano de 1966, formando a conhecida Carta Internacional de
Direitos Humanos (Internacional Bill of Rights). No entanto, apesar de terem sido
aprovados no ano de 1966, os Pactos entraram em vigor somente em 1976, quando
alcançaram o número mínimo de ratificações29. No âmbito brasileiro, os textos
foram aprovados por meio do Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro

28 Artigo 5. Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrela-


cionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de
forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o significado das
especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos
Estados, independentemente dos seus sistemas político, económico e cultural, promover e proteger
todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais.
29 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 242.

466
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de 1991 e promulgados somente em julho de 1992, momento em que foram


incorporados internamente30.
É importante mencionar que os pactos tiveram como finalidade tornar
o conteúdo normativo, previsto inicialmente na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, juridicamente vinculantes, trazendo um rol de direitos mais detalhados
e prevendo mecanismos de proteção para esses direitos, principalmente através dos
seus protocolos facultativos.
Assim, foram elencados requisitos mínimos para uma vida com dignidade,
o que incluiu também a proibição a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes (artigo 7) e o direito de toda pessoa privada de liberdade ser tratada
como humanidade e respeito à dignidade humana (artigo 10), dispostos no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), além da previsão do direito
de toda pessoa gozar de condições de trabalho justas e favoráveis que assegurem,
entre outros, uma remuneração adequada, segurança, higiene e igual oportunidade
(artigo 7) no âmbito do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC).
O Protocolo Facultativo ao PIDESC, ainda não ratificado pelo Brasil,
trouxe ainda o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU que
possuem, entre outras atribuições, a função de editar Comentários Gerais, tratando
o Comentário Geral nº 18 e 23 sobre o direito ao trabalho e as condições justas e
favoráveis da atividade laboral, respectivamente.
Ainda sobre o tema das pessoas privadas de liberdade no âmbito do sistema
global, é possível destacar a Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes, ratificada pelo Brasil no ano de 1989, que
visam combater atos de tortura31 realizados por agente público ou qualquer pessoa
que esteja no exercício da função pública. Em total consonância, se encontra a
regra constitucional disposta no art. 5º, inciso XLVII que trata sobre o princípio da
humanidade, o que apenas revela a importância na proteção dos direitos humanos
em um Estado Democrático de Direito.

30 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 242-255.
31 A Convenção delimita o termo “tortura” como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos
agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de
terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha co-
metido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por
qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza”.

467
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos


Humanos, também assentado no pós segunda guerra, tem-se a Convenção
Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da
Costa Rica, como fruto da etapa da institucionalização convencional do sistema
interamericano, que prevê inicialmente em seu artigo 1º a obrigação dos Estados
Partes de respeitar os direitos e liberdades, sem discriminação alguma, a toda pessoa,
deixando claro no segundo ponto que pessoa é todo ser humano.
Para fins deste trabalho, destaque-se também a previsão sobre o direito
à integridade pessoal, dispondo que toda pessoa tem o direito de que se respeite
sua integridade física, psíquica e moral (artigo 5, ponto 1), não sendo submetido
a torturas, penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes (artigo 5, ponto 2).
Por fim, é imprescindível mencionar que a própria Convenção ressalta na parte
final do ponto 2 do artigo ora estudado que “toda pessoa privada liberdade deve
ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”, refletindo a
importância de tratarmos com dignidade também as pessoas reclusas, já que é um
direito inerente a própria condição humana.
Sobre a possibilidade de trabalhos ou serviços exigidos de pessoa privada
de liberdade, o Sistema Interamericano, através da sua Convenção, dispõe sobre a
possibilidade de previsão sobre trabalhos forçados para aqueles que estão cumprindo
pena privativa de liberdade, mas ressalta, ao final, a proibição de que esse tipo de
trabalho afete a dignidade ou a capacidade física e intelectual do recluso (artigo 6,
ponto 3, alínea “a”).
Quando se discute sobre os direitos das pessoas que estão privadas de
sua liberdade por estarem inseridas no âmbito do sistema prisional, percebe-se
que a definição do modelo de prisão como pena foi resultado da experiência e da
discussão racional vivenciadas durante muitos anos. Por outro lado, é interessante
perceber que a origem do sistema prisional vem atrelada não somente à ideia de
humanização das penas aplicadas, mas à necessidade econômica que abalava toda a
Europa no século XVII, considerando que as penas físicas já não eram suficientes
aos anseios da justiça. Por outro lado, há quem defenda que os primeiros sistemas
penitenciários com reflexos mais humanitários surgiram nos Estados Unidos através
dos seus sistemas pensilvânico, auburniano e progressivo32.

32 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.

468
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse sentido, embora a origem da pena de prisão tenha se apoiado em


um viés humanitário, especialmente atrelada à ideia de limitação do poder estatal
punitivo defendida por Beccaria em sua obra Dos delitos e das Penas, certo é que,
ao longo do tempo, a prisão como pena não vem cumprindo os fins almejados33.
Nesse ponto, Walter Nunes da Silva Júnior34 explica que se o poder de
punir estatal encontra limites nos direitos e garantias fundamentais do cidadão,
também encontra o dever de proteção eficiente aos bens jurídicos relevantes, como
são os bens tutelados pelo Direito Penal. Alinhado a este entendimento, Nucci35
expõe que “os direitos humanos não são atributos exclusivos de pessoas reputadas
honestas ou primárias e sem antecedentes. São direitos do ser humano, onde quer
que ele esteja”. Portanto, tais direitos elencados pelos diplomas internacionais não
constituem um benefício às pessoas privadas de liberdades, mas representam seus
direitos como seres humanos dotados de dignidade.

4 ESTADO BRASILEIRO E O SISTEMA NORMATIVO DE PROTEÇÃO


AOS DIREITOS HUMANOS NO ÂMBITO DO TRABALHO PRISIONAL

Para que possamos analisar o sistema normativo de proteção aos Direitos


Humanos no estado brasileiro, faz-se necessário tecermos uma breve introdução
sobre o que há em nosso ordenamento jurídico sobre o trabalho exercido pelas pessoas
privadas de liberdade. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei
de Execução Penal prevê, em sua exposição de motivos, duas finalidades principais:
(i) a aplicabilidade efetiva das sentenças ou outras decisões condenatórias, visando
a repressão e prevenção dos delitos e (ii) a oferta de meios aos apenados e àqueles
submetidos às medidas de segurança para que possuam participação construtiva no
meio social (item 13).
Fato é que a discussão sobre as finalidades das penas nos remete a um
outro estudo mais aprofundado, de forma que iremos nos limitar a abordar a Lei
de Execução Penal sob o viés da prevenção especial positiva que traz a ideia de
uma “atuação direta sobre a pessoa do condenado, perseguindo sua “correção”,

33 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Execução penal no sistema penitenciário federal. Natal: OWL,
2020. p. 35-38.
34 Ibid., p. 41.
35 NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública. Rio de Janeiro: Forense,
2016.

469
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

“tratamento” ou “ressocialização”36. Ocorre que tais ideias de prevenção não


coincidem com a realidade do sistema carcerário brasileiro, isso porque além
do Estado não dispor de políticas públicas efetivas, a taxa de encarceramento e
o aumento no índice de criminalidade violenta ainda são consideradas matérias
alarmantes.
Em que pese os dados estatísticos não mostrarem uma realidade
condizente com o aspecto restaurador37, a Lei de Execução Penal trouxe a previsão
do exercício laborativo pelas pessoas condenadas, como dever social e condição
de dignidade, possuindo finalidade educativa e produtiva. Nesse contexto, Walter
Nunes da Silva Júnior38 assevera que “o trabalho, para o preso, ao tempo em que
é um direito, apresenta-se como um dever social e uma das medidas empregadas
pela administração carcerária na tentava de atingir a finalidade da pena,
que é a reeducação”. Isso justifica o fato de o legislador ter previsto também a
obrigatoriedade de trabalho interno dos condenados à pena privativa de liberdade
(artigo 31, caput), com ressalva dos presos provisórios (artigo 31, parágrafo único)
e dos presos políticos (artigo 200), destacando também, em seu artigo 38, inciso V,
a execução do trabalho como dever do condenado.
No âmbito da Constituição Federal de 1988 e, portanto, posterior a
publicação da Lei de Execução Penal, existem importantes diretrizes democráticas,
como é o caso da previsão do exercício laboral como um direito social de todos
(artigo 6º). Dessa forma, o trabalho, como bem jurídico intrínseco à condição
humana e instrumento capaz de assegurar a realização profissional do indivíduo,
possui também um papel imprescindível no cumprimento da finalidade da pena,
buscando a implementação efetiva do aspecto restaurador que permeia a pena de
prisão no plano prático39.
Independentemente da situação social em que se encontre o indivíduo –
privado de sua liberdade ou usufruidor deste direito –, o constituinte estabeleceu
ainda o direito ao salário mínimo a todos os trabalhadores urbanos e rurais (artigo
7º, inciso IV), sem qualquer forma de discriminação, além de proibir a pena

36 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p.
24
37 Termo adotado em razão dos significados depreciativos e ultrapassados vinculados ao termo “res-
socialização”.
38 SILVA JUNIOR, Walter Nunes da, Olavo Hamilton (org.). Crime, violência e segurança pública:
apontamentos para uma política de estado. Natal: Owl, 2021. p. 174.
39 Ibid.,. p. 170.

470
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de trabalhos forçados em território brasileiro (artigo 5º, inciso XLVII). Neste


ponto, a Constituição do Estado do Rio Grande do Norte, alinhado aos preceitos
constitucionais mencionados, determina a observância, entre outros princípios, da
resolução da Organização das Nações Unidas acerca do tratamento de reclusos (art.
5º, §2º), garantindo, especialmente, a inviolabilidade dos direitos assegurados pela
Constituição Federal aos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social (art. 9º).
É importante esclarecer que os dispositivos elencados pela Lei de Execução
Penal que preveem a obrigatoriedade do trabalho interno do preso não violam o
artigo 5º, inciso VLVII, da Constituição Federal que dispõe sobre a proibição da
pena de trabalhos forçados, isso porque o trabalho prisional previsto pela LEP não
é considerado como pena de trabalho forçado, em consonância com o disposto
no artigo 6º, 3, “a”, da Convenção Americana de Direitos Humanos, também
conhecido como Pacto San José da Costa Rica) que destaca que os trabalhos ou
serviços normalmente exigidos de pessoas que estejam privadas de sua liberdade em
cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária
competente não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios.
Superado tal questionamento, faz-se necessário citar ainda que a recusa
injustificada ao exercício do trabalho obrigatório pelo recluso constitui falta grave
no processo de execução penal, de acordo com o artigo 50, inciso VI, da Lei de
Execução Penal. Contudo, o que importa nesse estudo é que a pessoa reclusa que
exercer a atividade laboral deverá ser remunerada, não podendo ser inferior a ¾
(três quartos) do salário mínimo, atendendo à indenização dos danos causados pelo
crime, à assistência à família, a pequenas despesas pessoais e ao ressarcimento ao
Estado das despesas vinculadas a manutenção do condenada, sendo depositada a
parte restante em Caderneta de Poupança a ser entregue ao recluso quando posto
em liberdade, de acordo com o previsto no artigo 29 da LEP.
No que se refere sobre a remuneração aos trabalhadores do sistema
prisional, o Supremo Tribunal Federal, em sede de Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental nº 336, decidiu que o patamar mínimo previsto pela Lei
de Execução Penal (3/4 do salário mínimo), além de não violar os princípios –
leia-se fundamento ou princípio estruturante – da dignidade da pessoa humana e
da isonomia, não se insurge contra o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal
que dispõe sobre a não discriminação do salário mínimo a todos os trabalhadores.
O Ministro Luiz Fux, relator do julgamento proferido no ano de 2021, entendeu
que o trabalho exercido pelo preso não poderia ser comparado ao trabalho exercido

471
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

pelos empregados em geral por conter especificidades inerentes ao seu exercício


e também pela “lógica econômica distinta” já que o trabalho prisional pode ser
subsidiado pelo Estado.
Imprescindível ressaltar que o Ministro Edson Fachin, em voto divergente,
ressaltou a Constituição Federal como “fonte de validade das demais normas do
ordenamento”, de forma que a distinção de remuneração prevista pela Lei de
Execução Penal seria inconstitucional já que “o sentido da proteção constitucional
ao salário mínimo foi o de estabelecer atribuição mínima para o trabalho, piso-
garantia aplicável a todo e qualquer trabalhador [...] que não pode ser restringida
pela legislação inferior”40.
Contudo, indaga-se sobre a efetiva aplicabilidade desses postulados
frente às relações de trabalho constituídas entre as instituições e os apenados,
tendo em vista que a realidade do sistema carcerário demonstra, na verdade, além
de condições degradantes, a inobservância ao patamar mínimo de remuneração
estabelecida pela LEP, ou seja, independentemente do Supremo Tribunal Federal
ter decidido pela constitucionalidade do artigo 29, sequer há o seu cumprimento
na prática, conforme veremos a seguir.
Nesse sentido, considerando a necessidade de uma maior regulamentação
do trabalho prisional, a resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária, que considera as orientações da Organização das Nações Unidas e
fixa as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil, traz em seu artigo
56, inciso I, o princípio da não aflitividade, isto é, definindo que o trabalho seja
aplicado como tratamento e não como forma de pena, sendo este vedado pela
Constituição em seu art. 5º, XLVII, alínea “c”41.
Foi instituída ainda, a Política Nacional de Trabalho no âmbito do
Sistema Prisional através do Decreto nº 9.450, de 24 de julho de 2018, visando a
inserção das pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema prisional no âmbito
trabalhista, com o intuito de ampliar e qualificar a oferta de vagas de trabalho aos
reclusos. Por outro lado, apesar dos esforços do legislador em estabelecer diretrizes
para a melhoria do trabalho penitenciário, o Relatório de Visitas Prisionais do Rio
Grande do Norte, elaborado pelo Conselho Nacional do Ministério Público no ano

40 ADPF nº 347, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/


paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665. Acesso em: 6 out. 2021.
41 GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Comentários à Lei de Execução Penal. Belo Horizonte: CEI,
2018. p. 65.

472
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de 2019, destacou que o Estado do Rio Grande do Norte é um dos que possui a
menor taxa de presos que exercem atividades laborais do país42.
Nesse estudo, foi realizada consulta ao Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (INFOPEN) relativo ao período de janeiro a junho de
202143, e de relatório encaminhado pelo Departamento de Promoção à Cidadania
(DPC), da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) atinente
às informações do sistema prisional do RN no ano de 2021 requeridas no âmbito
do projeto de pesquisa “Criminalidade violenta e diretrizes para uma Política
de Segurança Pública no Estado do Rio Grande do Norte”, sob coordenação do
Professor Walter Nunes da Silva Júnior.
Visando uma melhor compreensão da descrição dos dados estatísticos
no estado do Rio Grande do Norte, optou-se por discriminar inicialmente as
informações divulgadas pela plataforma do Depen referente à população prisional
em programa laboral nos últimos cinco anos para, logo após, expor os dados
encaminhados pela Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP).
A última atualização do painel do Sistema de Informações Estatísticas do
Sistema Penitenciário Brasileiro (SISDEPEN) mostra que no ano de 2017 apenas
1,68% da população prisional do estado do Rio Grande do Norte, presos em celas
físicas, encontrava-se inserido em programa laboral. Nos anos posteriores, percebe-
se um discreto aumento, sendo divulgado como último valor, a porcentagem de
4,72% em 2021.

42 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Relatório de visitas prisionais: Rio


Grande do Norte, 2019. Disponível em: https://cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2019/setembro/
Relatório_de_Visitas_Prisionais_-_versão_final_2.pdf. Acesso em: 28 jan. 2022.
43 Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pú-
blica. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: período de julho a dezembro de 2021.
Acesso em: 18 mar. 2022.

473
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Gráfico 01 – População Prisional em Programa Laboral


Evolução Ano x Ano

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2020)

Nesse contexto, verifica-se um tímido avanço aos índices de trabalho


laboral exercido pela população prisional divulgados no ano de 2017, sendo
importante destacar que no ano de 2021 em âmbito nacional, o estado do Rio
Grande do Norte atingiu a 26ª posição, ficando à frente apenas do estado do
Amapá com um índice de 1,12%, e no âmbito da região Nordeste o resultado foi
mais ainda insatisfatório, uma vez que ocupou o último lugar.
Trazendo os dados alusivos à remuneração, direito previsto também na
Lei de Execução Penal (art. 29), podemos observar, a partir da análise do gráfico 02
(abaixo) que considerando o público feminino, temos que 4,48% recebem entre 1
e 2 salários mínimos, 8,96% recebem entre ¾ e 1 salário mínimo, valor mínimo
estipulado pela legislação, 49,25% recebem menos que ¾ do salário mínimo e
37,31% não recebem qualquer remuneração. Somados, temos que 86,56% das
mulheres em atividade laboral estão sem receber remuneração em conformidade
com o que a Lei de Execução Penal dispõe.
Analisando agora o público masculino, percebe-se que 11,6% recebem
entre 1 e 2 salários mínimos, 2,48% recebem entre ¾ e 1 salário mínimo, 21,76%
recebem menos que ¾ do salário mínimo e 64,16% não recebem qualquer
remuneração. Realizando a soma do total de homens que estão trabalhando sem
receber remuneração adequada encontramos o valor de 85,92%.

474
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Gráfico 2 – População Prisional por Remuneração


Período de janeiro a junho de 2021

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2021).

Quanto aos dados coletados sobre as atividades laborais exercidas


atualmente pelos reclusos do sistema prisional do estado do Rio Grande do Norte,
a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) informou, no dia
03 de setembro de 2021, que 204 pessoas do gênero masculino, 23 pessoas do
gênero feminino e 01 pessoa LGBTQIA+ exercem atualmente trabalho interno,
sem remuneração, se beneficiando apenas da remição de pena.
No que se refere ao programa laboral externo, foi levantado o número de
aproximadamente 26 internos nos regimes semiaberto e aberto, através de convênio
formalizado com o Tribunal Regional do Trabalho 21 (11 internos), IGARN (01
interno), FAPERN (02 internos) e SEDEC (12 internos), além da SESAP com
previsão de aditivo para até 20 internos, sendo apenas 03 do gênero feminino,
todos remunerados com o salário mínimo vigente.
Dessa forma, ao observar os índices que retratam a população prisional em
programa laboral divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN
no ano de 2021 (261 internos em programa laboral) e comparar com os dados
levantados pela Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) no

475
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

mesmo ano (254 internos em programa laboral), percebe-se que há uma diferença
de levantamento de dados no número de 07 reclusos.
Neste cenário, o protagonismo que deveria ser exercido pelos presos
acaba dando espaço a uma realidade distorcida da lei, em que a realização de
determinadas formas de trabalho penitenciário, apesar de necessário ao cotidiano
prisional, se torna absolutamente distante da realidade, violando preceitos básicos
como o direito a receber remuneração, mesmo em seu patamar mínimo previsto
pela LEP, além de deixar de preparar os presos para o real mercado de trabalho ou
garantir uma efetiva reinserção social44.

5 CONCLUSÃO

A dignidade da pessoa humana é princípio basilar de todo e qualquer


ordenamento jurídico democrático, cláusula multifuncional que comporta exame
acadêmico sob variadas perspectivas. Observa-se que há indícios da dignidade
humana ainda em documentos muito antigos, mas foi apenas na transição para
modernidade, especialmente após as atrocidades cometidas durante segunda guerra
mundial, que se tornou um parâmetro internacional.
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal
de 1988 sofreu muita influência de declarações internacionais, sendo uma delas
a Declaração Universal de Direitos Humanos que estabeleceu a dignidade como
direito de todos os seres humanos. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana foi
estabelecida pelo legislador como base fundamental de um novo Estado que estava
se formando, um Estado Democrático de Direito.
Foi elencado ao longo de todo ordenamento uma série de direitos
fundamentais, entre eles o direito ao trabalho que deve ser oferecido a todos,
indistintamente. Diante desse aspecto e considerando a constitucionalização de
diversas áreas do direito e, especialmente para o fim deste artigo, o direito criminal,
é que se abordou o trabalho prisional como um direito fundamental da pessoa
privada de liberdade inserida no sistema prisional brasileiro.
No entanto, apesar das normas específicas de direito penitenciário inseridas
na Lei de Execução Penal assegurarem diretrizes constitucionais ao oferecimento de
trabalho prisional aos reclusos, os dados coletados pelo Departamento Penitenciário

44 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p.
88.

476
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nacional e pela Secretaria de Estado da Administração Penitenciária do estado


do Rio Grande do Norte, publicados no ano de 2021, refletem uma realidade
completamente diferente daquela inserida em textos legais.
Na verdade, o baixo índice de pessoas presas inseridas em laborterapia
demonstra a ausência de comprometimento estatal para o oferecimento de
oportunidades trabalho àqueles que estão inseridos no sistema prisional brasileiro,
o que só agrava a situação quando analisados que dentre essas pessoas que exercem
o trabalho oferecido, muitos não possuem sequer o mínimo dos seus direitos
resguardados, como por exemplo, o direito de receber como remuneração pelo
menos ¾ do salário mínimo, como previsto na Lei de Execução Penal (art. 29).
Dessa forma, considerando a importância que a dignidade da pessoa
humana impõe à formação e continuidade de um Estado Democrático de Direito
é que devemos considerá-la não só como fundamento dos direitos fundamentais
previstos ao longo do ordenamento jurídico como um todo, mas também como
premissa para o cumprimento efetivo desses direitos independente da situação
que o ser humano se encontre. Nesse ponto, faz-se necessária a implementação
de políticas públicas pelo estado do Rio Grande do Norte visando a ampliação da
oferta de vagas de trabalho às pessoas privadas do direito de liberdade, considerando,
inclusive, a criação de um fundo rotativo para aplicação dos recursos oriundos do
trabalho prisional no próprio sistema penitenciário estadual, em conformidade com
a Lei de Execução Penal, a Lei nº 13.500, de 2017 e a Nota Técnica do DEPEN
nº 28, de 2019.

477
REFERÊNCIAS

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480
Os Estados Unidos e a abertura constitucional ao direito
interamericano dos direitos humanos

André Eliésio Pedrosa Silva1


Thiago Oliveira Moreira2

1 INTRODUÇÃO

A abertura da ordem jurídica estatal ao direito internacional é uma


realidade na engenharia constitucional contemporânea, em uma postura que
valoriza a integração e a harmonização entre o Direito interno e o externo. Tal
concepção reflete diretamente a influência de alguns aspectos históricos, afinal, com
o rompimento do caráter absoluto da soberania dos Estados, especialmente após o
surgimento das organizações de direito internacional (a exemplo da Organização
das Nações Unidas), foi se solidificando a ideia de que as Constituições e os
mecanismos de controle estatal não estariam mais sozinhos em sua tarefa legislativa,
nem tampouco os tribunais, na função jurisdicional. O surgimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) também contribuiu de maneira

1 Graduando em Direito pela UFRN. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Di-
reitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Monitor da disciplina
DIDH (2020.2 e 2021.1).
2 Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Chefe do Departamento de Di-
reito Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Professor/
Pesquisador Visitante na Universidade Lusófona do Porto. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail: thia-
go.moreira@ufrn.br.

481
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ampla com esse processo, sobretudo quando tratou de internacionalizar os direitos


fundamentais, outrora somente protegidos pelo Direito constitucional local.
Essa tendência é vista na maioria das ordens democráticas atualmente,
e isso inclui os países que têm sua base jurídica no direito anglo-saxão, onde
usualmente há uma grande força das normas consuetudinárias. Apesar de fazerem
parte de um sistema diferente do que é adotado na América Latina, os países do
common law também estão inseridos no contexto de um mundo globalizado, o que
implica dizer que também são afetados pelo direito internacional e seus inúmeros
agentes. É precisamente nessa perspectiva que se indaga: de que maneira os Estados
Unidos da América tratam as normas de direito internacional dos direitos humanos?
Para responder a presente indagação, faz-se necessário, como primeiro
ponto, discorrer sobre algumas particularidades relativas ao constitucionalismo norte-
americano, considerando a existência da influência das normas consuetudinárias no
processo de formação da Constituição de 1737 e a usual abordagem dos tribunais
com relação à hermenêutica constitucional.
De posse desses conceitos, o segundo ponto materializa-se em relacionar
o que foi aprendido nas etapas anteriores da investigação com a questão particular
das normas relativas ao Direito Internacional, passando por alguns aspectos
essenciais, que concernem à aferição de existência, bem como do funcionamento
de uma cláusula de abertura ao Direito Internacional; da abertura às convenções
internacionais; da positivação de normas que determinam a hierarquia destas
convenções; e, finalmente, da existência de normas relativas à abertura e
funcionamento dos costumes internacionais. Por fim, da análise da jurisprudência
majoritária com relação a tais temas.
Ainda, no terceiro ponto deste estudo, analisa-se a relação outrora
citada, mas agora se centrando no tema maior do trabalho, que é o convívio dos
Estados Unidos com o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
(SIDPH). Notadamente, há três aspectos abordados: Os Estados Unidos como parte
da Organização dos Estados Americanos (OEA); as manifestações da Comissão
Interamericana sobre o país; e o diálogo dos tribunais norte-americanos com a
Corte Interamericana.
Para viabilizar o estudo, uma pesquisa bibliográfica na doutrina norte-
americana será necessária, assim como o exame histórico da jurisprudência sobre
a relação entre o Direito Interno e o Direito Internacional. Dessa maneira, para
além das opiniões divergentes ou convergentes sobre o assunto, examina-se a

482
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Constituição de 1737 e as normas interpretadas como cláusulas de abertura, seja


com relação aos direitos fundamentais atípicos (como é o caso da IX emenda) ou
a abertura às convenções internacionais (como é o caso do artigo VI). No campo
das decisões judiciais, fez-se um apanhado, por meio dos próprios arquivos da
Supreme Court e na Court of Appeals, das determinações relativas à interpretação
desses dispositivos, no período de 1855 a 2021, assim como a discussão acadêmica
em torno do exposto.
Em relação às manifestações da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, o estudo relatará sobre as admissões que resultaram em relatórios de
mérito, ou seja, aqueles em que há uma posição da Comissão sobre a existência ou
não de violação aos direitos humanos no caso concreto- baseando-se na Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
A incidência ao direito internacional dos direitos humanos é um fato,
portanto, que diz respeito a todos os países que assumiram compromissos perante a
comunidade internacional nesse tópico, inclusive aqueles que adotaram o common
law – considerando que esses também vêm abrindo seus ordenamentos jurídicos.
Dessa maneira, a forma como ocorre a abertura ao Direito Internacional dos Direitos
Humanos precisa ser avaliada, seja em seu aspecto normativo ou jurisprudencial.
Espera-se, portanto, atingir os objetivos propostos no início do trabalho e
compreender com exatidão como a ordem jurídica dos Estados Unidos da América
se abriu e continua se abrindo ao direito internacional dos direitos humanos, para
que se possa contribuir com a estruturação necessária da pesquisa acadêmica em
torno do tema proposto.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONSTITUCIONALISMO


AMERICANO

O constitucionalismo do mundo ocidental, por um lado, foi marcado


por inúmeros conceitos advindos de uma família normativa que preza pela extensa
codificação das normas. Dois pontos principais sobre esse assunto acabam trazendo
uma discussão epistemológica clássica, fundamentada na seguinte pergunta: a
hermenêutica jurídica constitucional deveria se preocupar mais com o sentido da
norma pura e com a vontade do legislador, ou, ao contrário, deveria valer-se de
uma abordagem que considerasse a realidade fático-social do ordenamento em que
se insere?

483
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Evidentemente, essas questões já foram discutidas à exaustão pelos mais


diversos círculos acadêmicos, como é o caso do debate entre as ideias de Hans
Kelsen e Carl Schmitt3, razão pela qual não é de objeto do trabalho o estudo
aprofundado sobre o tema. O fato é que, sem maiores impedimentos, a realidade
jurídica presente na contemporaneidade não permite a opção por um dos extremos,
e isso também se reflete na maneira como cada sistema adapta-se às mudanças no
modo de pensar o constitucionalismo4.
É precisamente nesse ponto que a compreensão da ordem jurídica
constitucional norte-americana torna-se tão importante. Isso porque, de acordo
com Bernard Schwartz, o país adotou um sistema em que há normas constitucionais
positivadas, presentes na Constituição de 1737, mas que tanto a doutrina como a
jurisprudência as entendem mais como um documento que serve de “guia” para a
interpretação geral das normas, em oposição a um código de caráter rígido5.
Esses aspectos estão relacionados, de certa maneira, à compreensão de que
a Constituição não é uma norma autoexecutável, fato esse gerado pela necessidade
de suas disposições serem amplas e não específicas. De acordo com Schwartz, então,
a Constituição dos Estados Unidos é, na prática, o que as Cortes dizem que ela é6.
Essa posição, é claro, não é hegemônica. Parte da doutrina entende que,
embora as provisões judiciais tenham significativa parte nos países que adotam o
common law (e, por consequência, os EUA), a conjuntura atual também leva em
conta a interpretação de outros órgãos governamentais, como é o caso do Poder
Legislativo7. Outro ponto levantado é a afirmação de que a lei maior tem, sim,

3 MESQUITA, Márcio Araújo de. VELLASCO, Abner. O constitucionalismo de Hans Kelsen con-
traposto ao de Carl Schmitt. Revista FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010, p. 125-139.
4 SCHWARTS, Bernard. American Constitutional Law. p. 9.
5 Ibid., p. 3.
6 Ibid., p. 4.
7 “[…] it fails to recognize that governmental bodies other than the Supreme Court also contribute
to an overall interpretation of the Constitution. By passing the War Powers Resolution of 1973, for
example, the US Congress undertook to define the constitutional limits of the president’s powers to
initiate and conduct undeclared war, an issue the Supreme Court has refused to consider. Likewise, in
the Speedy Trial Act of 1984, Congress took upon itself constitutional interpretation in the sphere of
criminal procedure, declaring that a defendant not brought to trial within one hundred days of arrest
can move for a dismissal of the charges. In so doing, it gave meaning to a constitutional provision that
the Supreme Court itself has acknowledged to be vaguer than any other procedural right. And in the
Voting Rights Act of 1982, Congress held that the Fifteenth Amendment (barring states from deny-
ing citizens the right to vote on account of race, color, or previous condition of servitude”) bans not
only intentional discrimination against the voting rights of minorities (what the Supreme Court had

484
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

significado em si própria, razão pela qual é possível, por exemplo, ir de encontro


a uma decisão judicial que a interpretou de forma errada, como é o caso das
decisões que, nos anos 1890, abertamente vilipendiaram os direitos fundamentais,
promovendo a segregação racial em diversas partes do país8.
Seja como for, é certo que, embora o texto constitucional tenha
permanecido essencialmente o mesmo desde 1787, a estrutura governamental
norte-americana mudou tão drasticamente que, nas palavras de Schwartz, seria
irreconhecível aos founding fathers, especialmente no que tange à autoridade do
Estado e sua progressiva inflação9. Tal mudança reflete uma ordem jurídica que,
sem dúvida, depende amplamente de uma maior ação dos magistrados, pois é a
partir deles que o Direito de facto é aplicado e interpretado através dos precedentes
judiciais10.
Essa tônica é tão presente que, de acordo com James B. Thayer, a própria
doutrina entende como possível a declaração de inconstitucionalidade dos atos
do legislativo pelo judiciário. Segundo o autor, isso não vem de agora: é práxis
corriqueira da história política do país, que, em razão dos limites provenientes
de inúmeras leis e atos normativos impostos pela coroa inglesa, desenrolou-se de
forma a editar uma norma maior flexível, que permitisse um maior controle por
outras áreas da sociedade11.
A história política proporcionou, então, uma Constituição que protege
o titular genérico do direito fundamental de uma determinada regra específica,
que poderia ou não ser lesiva a ele. Assim, ela não protege o indivíduo por meio
do bloqueio geral a todas as ações, mas estabelece princípios morais que o colocam
em uma área de proteção – área essa que, inevitavelmente, é regida pelas cortes12.

held) but any electoral scheme that has the effect of preventing minority voters from electing “rep-
resentatives of their choice.” […)] ROSSUM, Ralph A; ALLAN TARR, G. American Constitutional
Law. v. 1: The structure os Government. 10. ed. New York: Westview Press, 2017. p. 2.
8 “On what constitutional basis, for example, can one object to the Supreme Court’s decisions in
Dred Scott v. Sandford (1857), declaring that African Americans could not be citizens, and in Plessy v.
Ferguson (1896), upholding racial segregation?” Ibid., p. 3.
9 SCHWARTS, Bernard. American Constitutional Law. p. 4.
10 TETLEY, William. Common Law v. Civil Law (Codified and Uncodified). Louisiana Law Review,
vol. 60, nº 3, 2000. p. 701.
11 THAYER, James B. The origin and scope of the american doctrine of constitutional law. Harvard
Law Review, Vol. 7, nº 3, 1893, p. 130-31.
12 ADLER, Matthew D. Rights Against Rules: the moral structure of american constitutional law.
Michigan Law Review, Volume 97, nº 1, p. 3.

485
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

De acordo com Curtis A. Bradley, tal característica pode ser vista no


papel histórico que os tribunais têm desempenhado em agir como um “filtro”
no que tange ao efeito e a influência do direito internacional no país. Exemplo
disso seria o papel da Suprema Corte norte-americana, que should ensure that when
international law passes into the U.S legal system, it does so in a manner consistent with
domestic constitutional values13.
Tais aspectos são extremamente importantes quando discutidos sob a
ótica da influência do Direito Internacional e de suas normas, e de como o sistema
as recebe.

3 A RELEVÂNCIA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS NOS ESTADOS UNIDOS

Passa-se a uma análise da forma pela qual o país se adaptou,


historicamente, às fontes advindas do Direito Internacional, bem como aos
dispositivos constitucionais que proporcionaram o descerramento da relação entre
as duas ordens jurídicas.
Para tanto, algumas semelhanças são visíveis logo em primeira análise,
relativas ao modo de se interpretar o direito internacional e a própria consistência
do constitucionalismo, com outros países que fazem parte da lógica do common
law. Isso porque a jurisprudência encontra grande respaldo em interpretar as regras
dispostas na Constituição, e por vezes tem feito essa tarefa de forma a limitar o
desenvolvimento de normas protetivas aos direitos humanos quando estas vão de
encontro à legislação interna, como será visto mais à frente.

3.1 A CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DE ABERTURA AOS TRATADOS


INTERNACIONAIS

Como primeiro ponto, é preciso que se entenda qual a força que o


direito internacional tem na base legislativa, por meio das cláusulas de abertura
constitucionais. Tal fato se encontra necessário porque, diferentemente do que é

13 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1569.

486
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

encontrado no sistema britânico, a existência da Constituição de 1737 muda o


ponto de partida do descerramento, que passa a ser na norma maior14.
Dessa maneira, a principal menção da constituição norte-americana ao
direito internacional é sem dúvida a que está contida no artigo VI, item 2, que diz
expressamente o tratamento que o ordenamento jurídico há de ter com relação aos
tratados de direito internacional: todos os tratados assinados sob a autoridade do
governo devem ser sistematizados como lei nacional suprema, inclusive também
no que tange à obrigação das cortes nacionais em segui-los15. Essa é a chamada
supremacy clause, pois coloca a Constituição Federal, as leis federais e os tratados
acima das constituições e leis estaduais16-17. Como afirma Henderson:

El artículo VI.2 de la Constitución de los Estados Unidos


dispone que “todos los tratados, así como la Constitución
y las leyes, serán ley suprema del país”. La jurisprudencia
la equipara a las leyes federales, por lo que una ley federal
posterior, contraria a un tratado internacional de derechos
humanos ratificados, podría hacer inaplicable o inválido
al tratado anterior. En general, los jueces norteamericanos
tienden a conciliar los contenidos de los tratados de derechos
humanos y las leyes federales internas18.

14 “As far as the American position on the relationship between municipal law and customary inter-
national law is concerned, it appears to be very similar to British practice, apart from the need to take
the Constitution into account. The US Supreme Court in Boos v. Barry emphasized that, ‘As a general
proposition, it is of course correct that the United States has a vital national interest in complying
with international law.’ However, the rules of international law were subject to the Constitution.”
SHAW, Malcom M. International Law. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 157.
15 “This Constitution, and the Laws of the United States which shall be made in Pursuance thereof,
and all Treaties made, or which shall be made under the Authority of the United States, shall be the
supreme Law of the Land; and the Judges in every State shall be bound thereby, and Thing in the
Constitution or laws of any State to the Contrary notwithstanding”. NATIONAL CONSTITU-
TIONAL CENTER. Interactive Constitution, 2021. Disponível em: https://constitutioncenter.org/
interactive-constitution/article/article-vi. Acesso em: 5 maio 2021.
16 LINDE, Christopher. The U.S. constitution and international law: finding the balance. Journal of
Transnational Law & Policy, v. 15, no. 2, 2006, p. 309.
17 THAMILMARAN, V. T. international law and national law elements of automatic incorporation.
Sri Lanka Journal of International Law, 11, 1999, p. 241.
18 HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos en el orden inter-
no: la importancia del principio pro homine. Revista IIDH, 2004, v. 39, p. 81.

487
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Torna-se evidente, por meio dessa previsão, que o modo adotado


pelos Estados Unidos quanto à incorporação dos tratados internacionais é o da
incorporação automática por meio da ratificação, sem que o instrumento da
transformação em lei doméstica esteja presente19. No entanto, ainda é preciso a
aprovação de dois terços do Senado para que o tratado seja considerado parte do
sistema20.
Quanto aos tratados, a jurisprudência tem ditado diferentes
perspectivas historicamente. De acordo com Thamilmaran, a previsão do artigo
VI da Constituição tem a original intenção de colocar a lei federal e os tratados
internacionais como superiores às leis estaduais, mas não coloca nenhuma regra
explícita sobre a hierarquia entre os primeiros21. Sobre isso, a Suprema Corte se
pronunciou em 1855, no caso Taylor v. Morton, atestando que a interpretação
correta quanto ao dispositivo era a que coloca os tratados e os atos do congresso (leis
federais) em uma conjunção, fazendo com que tenham o mesmo valor normativo22.
Trata-se, portanto, da paridade normativa. Assim, o critério para a resolução de
eventuais conflitos entre a lei interna e os tratados seria o lex posteriori derrogat
priori, como posteriormente abordado no caso Hijo v. United States, em 1904.23
À época, alguns defendiam, criticando o pronunciamento da Corte, que
esse não era o intento original do artigo VI. De acordo com Potter, a supremacia
da Constituição relativa aos estatutos do Congresso estava muito mais relacionada
a uma decisão baseada em princípios e lógica jurídica do que a uma previsão
específica. Consequentemente, em alguns casos, os tratados internacionais (por
esse mesmo critério material de comparação) poderiam ser considerados superiores
às leis nacionais e até mesmo à própria Constituição, quando esta fosse a menos
adequada para o assunto em questão24. Vê-se, portanto, um prelúdio da hierarquia
supraconstitucional, ao menos do ponto de vista doutrinário.

19 HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos en el orden inter-


no: la importancia del principio pro homine. Revista IIDH, 2004, v. 39, p. 81. p. 242.
20 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1569.
21 THAMILMARAN, V.T. International Law… p. 243.
22 POTTER, Pitman B. Relative authority of international law and national law in the United States.
American Journal of International Law, v. 19, no. 2, 1925, p. 317.
23 Ibid., p. 316.
24 Ibid., p. 319.

488
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nos dias de hoje, a regra geral da derrogação por lei mais nova ainda se
mantém. No entanto, variadas decisões agiram de forma a enfraquecer a influência
dos tratados de direito internacional no país. Pode-se citar, como exemplo, a
atitude da Suprema Corte em 1957 no caso Reid v. Covert, quando ignorou os
tratados internacionais pactuados com nações estrangeiras e reclamou competência
das cortes militares dos Estados Unidos para julgar duas mulheres de militares
americanos acusadas de matá-los, ambas em solo estrangeiro (uma na Inglaterra
e outra no Japão). Na ocasião, a Corte afirmou que “the United States is entirely a
creature of the Constitution” and “[i]ts power and authority have no other source”. E
ainda que “no agreement with a foreign nation can confer power on the Congress, or on
any other branch Government, which is free from the restraints of the Constitution”25.
Um dos casos mais importantes nesse aspecto foi o Medellín v Texas, no
qual a Suprema Corte manteve uma posição originalista em várias declarações.
Uma dessas foi que os tratados não poderiam criar direitos individuais, exceto se o
legislativo editasse estatutos de implementação que os abarcassem (semelhantemente
ao modelo inglês) ou se o texto tratasse de um modo para a sua “auto execução” na
proteção dos direitos elencados26.
A afirmação de que os tratados em geral não seriam autoexecutáveis (ou
seja, não teriam força de lei se não estabelecessem uma forma direta de execução
pelas autoridades locais) levou a jurisprudência da Suprema Corte a uma posição
profundamente conservadora quanto aos tratados de direito internacional. Um
exemplo da influência direta desse aspecto foi em 2014, no caso Bond v. United
States. O caso tomou forma quando uma mulher tentou utilizar de tóxicos químicos
para envenenar outra, portanto violando a Chemical Weapons Convention, um
tratado adotado pelos EUA, em 1997. A questão discutida seria se o estatuto seria
aplicado a ela em juízo (já que teria praticado exatamente a conduta de um de seus
dispositivos) ou se seria utilizada a lei penal específica interna27.
A Corte então entendeu que uma interpretação literal dos artigos da
Convenção não era correta, e que a conduta adequada naquele caso específico
seria a tipificação de acordo com a lei federal norte-americana, que usualmente

25 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1570.
26 SOCARRAS, Michael. International Law and the Constitution. The Federal Courts Law Review.
v. 4. nº 2, 2011. p. 4.
27 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1571.

489
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aloca tais casos para a responsabilidade dos juízos estaduais. Dessa maneira, a
mulher não poderia ser criminalizada de acordo com os dispositivos do tratado,
pois seria necessário que o congresso implementasse um ato interno para definir
especificamente que aquele ato seria criminalizado pelo tratado (o que tiraria
a competência da corte estadual). A conclusão prática foi que nenhum tratado
poderia criminalizar condutas se esse aspecto não fosse particularmente regulado e
atestado pelo Congresso28. Estas e outras decisões29 mostram uma postura de fato
reagente ao direito internacional, no que concerne aos tratados.

3.2 A CLÁUSULA DE ATIPICIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A segunda base legislativa encontra-se na IX emenda da Constituição,


por meio do qual se abriu a possibilidade de o Estado reconhecer direitos não
enumerados, que estariam presentes na esfera internacional. Essa seria a cláusula de
atipicidade dos direitos fundamentais, que permitiu a abertura dos Estados Unidos
ao direito internacional dos direitos humanos30.
De acordo com Santos, a cláusula de abertura ou de não tipicidade
dos direitos fundamentais solidifica-se na clássica conceituação material do que
seriam os direitos fundamentais, entendendo que há direitos não positivados na
sistemática constitucional, mas que estão presentes no ordenamento jurídico. Essa
integração ocorre principalmente por esse dispositivo, que abre a interpretação
para que se encare a Constituição não como um sistema apoiado em bases rígidas
formalistas, mas sim que consiga conciliar a normatividade com o cotidiano
histórico, observando-se a necessidade efetiva de tais direitos em uma sociedade
hipercomplexa31.
Tratando-se da experiência histórica constitucional norte-americana, os
direitos não enumerados serviriam como preenchimento de uma lacuna deixada
pela constituição dos Estados Unidos nas outras oito emendas antes editadas. A
IX emenda foi a primeira menção histórica positivada de um princípio que não
limitava os direitos a um rol fixo. Assim, para superar essa lacuna, foi possível a

28 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1571.. p. 1571-1572.
29 Ver: Missouri v. Holland 252 U.S. 414 (1920) e Boos v. Barry 485 U.S. 312 (1988).
30 PAUST, Jordon J. Human Rights and the Ninth Amendment: a New Form of Guarantee. Cornell
Law Review, v. 60, nº 2, Article 3. 1975, p. 237.
31 SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. Direitos fundamentais atípicos: análise da cláusula de abertura
– art. 5º, §2º, da CF/88. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 22 - 23.

490
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

interpretação do dispositivo como uma verdadeira abertura ao direito internacional


do sistema jurídico norte-americano32, em um ambiente historicamente árido no
que tange a qualquer tipo de interferência externa ao poderio estatal33.
Em razão do esforço legal dos Estados Unidos em adicionar previsão
normativa constitucional que protegesse os direitos não enumerados, essa tendência
se mostrou progressivamente tomando conta das vontades legislativas em outros
países. Pouco a pouco, foi se solidificando a ideia de uma abertura ao direito
internacional dos direitos humanos para que as vítimas dos descasos persecutórios
dos Estados nacionais e de seus crimes tivessem outra ordem a que recorrer que não
fosse a mesma que a deixou em situação de desvantagem quanto ao exercício de
seus direitos fundamentais.

3.3 A CLÁUSULA DE ABERTURA AOS COSTUMES INTERNACIONAIS

A terceira menção é relativa aos costumes internacionais, conforme


disposto no Artigo I, Seção 8, Item 10. Aqui, o Constituinte optou pela expressão
“law of nations” e observa que o Congresso Nacional tem o poder de punir ofensas
a ela. De acordo com Linde, como se pode ver, os costumes internacionais nunca
foram abordados tão claramente quanto os tratados no texto constitucional, o
que fez com que houvessem grandes transformações na evolução da interpretação
judicial quanto ao tema34.
Os juízes entenderam, até certo ponto, semelhantemente como a
jurisprudência inglesa: a chamada law of nations seria parte integrante da lei nacional,
portanto incorporando-se automaticamente ao ordenamento, sem a necessidade de

32 Seguindo o entendimento de Paust, a IX emenda não seria utilizada (pelo menos não em um
primeiro momento) como forma de implementação de direitos internacionalmente aceitos na ordem
doméstica por meio de novos atos legislativos, mas sim reconhecendo que os direitos humanos bá-
sicos reconhecidos por essas mesmas ordens internacionais já seriam abarcados pela Constituição. A
questão é que talvez as cortes americanas não tenham dado importância à existência dessa proteção
constitucional, o que teria causado um direito arbitrário e baseado em preferências pessoais. Ver:
PAUST, Jordon J. Human Rights and the Ninth Amendment: a New Form of Guarantee. Cornell
Law Review, v. 60, Issue 2, Article 3. 1975, p. 234.
33 Barnett menciona o histórico descaso da suprema corte americana ao interpretar a IX emenda
como uma “irrelevância constitucional”, revelando uma postura altamente originalista no sentido do
apego ao constitucionalismo puramente formal. Ver: BARNETT, Randy E. The Ninth Amendment:
It means What it Says. Texas Law Review. v. 85, nº 1, 2006, p. 2.
34 LINDE, Christopher. The U.S. constitution and international law: finding the balance. Journal of
Transnational Law & Policy, v. 15, no. 2, 2006, p. 309-310.

491
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

qualquer ato suplementar. Isso foi ilustrado no caso Paquete Habana, em que a
Suprema Corte Americana afirmou que onde não havia regulação de um tratado
internacional, ato legislativo ou ação de controle do executivo haveria de se imperar
os costumes internacionais35.
Apesar de essa menção, ainda no ano de 1900, por muito tempo não
houveram discussões relevantes sobre a força dos costumes internacionais no
âmbito interno. Isso mudou em 1980, em uma decisão histórica que versou sobre
o status legal da law of nations, no caso Filartiga v. Pena-Irala. Todo o debate
jurídico que envolveu o caso estava centrado em uma antiga lei federal adotada em
1789, a Alien Tort Statute (ATS), que impunha a competência federal para julgar
ações promovidas por pessoas que não tinham nacionalidade americana, quando
houvessem delitos que violassem o direito internacional36.
O caso em particular tratava de uma ação feita por um grupo de pessoas de
nacionalidade paraguaia (os Filartigas) contra Alerico Noberto Pena-Irala (Pena), um
inspetor de polícia também paraguaio que teria participado no sequestro e tortura de
um dos filhos dos Filartigas, Joelito, em razão de retaliação política contra o seu pai.
Os procedimentos criminais no Paraguai foram infrutíferos e Pena mudou-se para
os Estados Unidos. Na ocasião, a ação fora proposta à justiça americana invocando
o ATS, requerendo criminalização de acordo com os costumes internacionais (tais
como a proibição à tortura)37. A Court of Appeals então reconheceu, em uma das
poucas decisões favoráveis ao direito internacional dos direitos humanos, que as
ações de Pena de fato violavam os costumes internacionais.
A consequência dessa decisão é que, como afirmado pela Corte, os
costumes fariam parte da lei federal, o que daria base constitucional para a utilização
do ATS – especialmente em casos onde há violações aos direitos humanos. Em um
dos votos foi afirmado que tal caso “represented “a small but important step in the
fulfillment of the ageless dream to free all people from brutal violence”38.
No campo doutrinário as críticas foram (e ainda são) mais frequentes
do que as concordâncias. Alguns afirmam que o intento original do congresso não

35 LINDE, Christopher. The U.S. constitution and international law: finding the balance. Journal of
Transnational Law & Policy, v. 15, no. 2, 2006, p. 309-310. p. 313.
36 SOCARRAS, Michael. International Law and the Constitution. The Federal Courts Law Review.
v. 4. nº 2, 2011. p. 4.
37 LINDE, Christopher. The U.S. constitution and international law: finding the balance. Journal of
Transnational Law & Policy, v. 15, no. 2, 2006. p. 315.
38 Ibid., p. 316.

492
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

era fornecer competência a todo e qualquer caso de direitos humanos, e sim só


aqueles em que poderia haver algum tipo de tensão entre os Estados Unidos e
outro país (o que não seria o caso)39. Outros afirmam que a utilização do ATS no
caso em questão configura uma equiparação do tratamento relacionado aos direitos
humanos com relação aos cidadãos americanos e os de outras nacionalidades, o que
seria inadmissível40.
A Suprema Corte se pronunciou sobre o assunto em 2004, em outro
caso que envolvia cidadãos de outros países buscando a jurisdição norte-americana,
invocando o ATS. O discutido em Sosa v. Alvarez-Machain era se o sequestro de
um médico no México teria fundamento legal para ser contemplado pelo estatuto,
apesar de a corte ter afirmado posições que diziam respeito aos casos que envolviam
direitos humanos de forma geral41.
Em uma delas observou, portanto, que a aplicação judicial do ATS
requeria uma constante vigilância e cautela, porque a sua utilização indevida traria
fricção desnecessária com a política estrangeira. Além disso, de acordo com o
argumento levantado, não existia competência da própria para definir e debater
novas violações ao direito costumeiro internacional. Assim, ficou decretado que
o ATS só seria judicialmente acionável nos casos em que as violações ao direito
internacional fossem amplamente aceitas e especificamente definidas, o que não foi
encontrado no caso em questão42.
Retornou-se à questão em 2013, no caso Kiobel v. Royal Dutch Pretoleum.
Nesse caso, cidadãos da Nigéria residentes nos Estados Unidos processaram
empresas britânicas e holandesas por supostamente terem apoiado inúmeros abusos
aos direitos humanos das forças militares nigerianas. A corte rejeitou o processo
por se tratar de um assunto extraterritorial, alegando que como não havia previsão
específica legislativa (uma emenda ao ATS que permitisse a aplicação em solo
estrangeiro) ele não poderia ser aplicado. Além disso, levantou-se o argumento de
que o julgamento para a competência favorável do judiciário norte-americano nesse
e em outros casos poderia significar demasiado fortalecimento do mesmo, o que

39 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1575.
40 TUOMALA, Jeffrey. The Intersection os International Law, the U.S Constitution, and Just War
Doctrine. Liberty University Law Review v. 11, no. 2, Fall 2016, p. 339-422.
41 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1576.
42 Ibid., p. 1576.

493
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

acabaria por enfraquecer o Congresso Nacional em sua tarefa de dispor sobre a


matéria43.
Essa decisão acabou por consolidar o status de força legal dos costumes
internacionais em solo norte-americano: ele continuava sendo lei federal suprema,
portanto, obrigatório a todas as cortes e juízes estaduais do país44, mas o poder
para a sua elaboração e incorporação são do Congresso Nacional. Isso implica
dizer que, em alguns casos, simplesmente não há base legislativa suficiente para
o Judiciário aplicar as normas internacionais, e que os costumes internacionais só
podem ser aplicados na falta de um ato do Congresso, uma decisão judicial ou um
ato executivo45_46.
Porém, a despeito de toda a interpretação estranha ao Direito Internacional,
porém, os Estados Unidos ainda fazem parte de uma série de Convenções relativas à
proteção internacional dos direitos humanos, ainda que, como se verá a seguir, não
os siga de forma satisfatória.
Passa-se ao estudo, portanto, da relação do país com o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH).

4 A RELAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS COM O SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Segundo Maciel, Ferreira e Koerner, houveram três grandes ondas de


mobilização relativas à ação do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos (SIPDH): nos anos 1970 e 1980, no qual as denúncias feitas à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tinham como foco os Estados sob
regimes ditatoriais; nos anos 1990, “em prol dos direitos sociais, econômicos e
culturais de indivíduos e categorias sociais específicas”; e nos anos 2000, no qual

43 BRADLEY, Curtis A. The Supreme Court as a filter between international law and american con-
stitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1576.
44 SHAW, Malcom M. International Law… p. 158.
45 “[…] lower courts had been expressing concerns for years that they did not have enough guid-
ance about what they should be doing in these international cases […]”. BRADLEY, Curtis A. The
Supreme Court as a filter between international law and american constitutionalism. California Law
Review, 2016, v. 104, nº 6, p. 1575-2576.
46 Taxman, dyllan moreno. unratified Treaties and the Constitutionality of Signatory Obligations: A
Conceptual Solution. The University of Memphis Law Review, v. 50, 2019. p. 148.

494
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

se focou a responsabilidade criminal individual de agentes estatais que violavam os


direitos humanos47.
No contexto de todas essas mobilizações, e da adesão dos países às
convenções que possibilitaram as denúncias à CIDH, há um movimento contrário
por parte de uma das maiores potências econômicas, políticas e jurídicas do
mundo: os Estados Unidos da América. O país fez parte de todo o procedimento
relativo à formação e promoção da Carta da Organização dos Estados Americanos
de 1948, que instituiu, portanto, a Organização dos Estados Americanos (OEA)48.
No entanto, para além da Carta, só reconhecem a Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem, portanto não consentindo a jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), nem tampouco da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no país49.
Assim, ainda que Jimmy Carter, 39º Presidente do país, tenha assinado a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica),
até hoje a mesma não foi ratificada - não atingiu a porcentagem dos votos requerida
pela Constituição em seu artigo VI, que é de dois terços dos membros do Senado.
Além disso, não houve nenhuma outra discussão no âmbito legislativo sobre o tema
desde 197950.
A doutrina, por um lado, argumenta e recomenda ao legislativo a
ratificação sem reservas do instrumento, que já é devida há muito e causa atrito
internacional desnecessário, além de enfraquecer a proteção aos direitos humanos
no país51. Por outro, ainda apoia a onda de movimento estatista que a jurisprudência
– especialmente os tribunais superiores- vêm colocando em suas decisões.
A base jurídica utilizada por essa segunda parte da academia, e também
pelas cortes de modo geral, é histórica: relaciona-se com o receio em se aplicar e se

47 MACIEL, Débora Alves; FERREIRA, Marrielle Maia Alves; KOERNER, Andrei. Os Estados
Unidos e os mecanismos regionais de proteção dos direitos humanos. Lua Nova. 2013, n. 90, p. 272.
48 DIAB, Joseph. United States Ratification of the American Convention on Human Rights. Duke
Journal of Comparative & International Law, v. 22, 1992, p. 324.
49 MACIEL, Débora Alves; FERREIRA, Marrielle Maia Alves; KOERNER, Andrei. Os Estados
Unidos e os mecanismos regionais de proteção dos direitos humanos. Lua Nova. 2013, n. 90, p.
274-275.
50 DIAB, Joseph. United States Ratification of the American Convention on Human Rights. Duke
Journal of Comparative & International Law, v. 22, 1992, p. 324-235.
51 LOVELAND, Justin M. 40 Years Later: It’s time for US ratification of the American Convention
on Human Rights. Seattle Journal for Social Justice, v 18, nº 2, 2020, p. 134.

495
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dobrar as normas internacionais, fundamentada a uma interpretação que valoriza o


original sentido almejado pelos pais fundadores: a valorização da Constituição como
a lei mais alta dos Estados Unidos, acima de todas as outras fontes normativas52.
Como ressalta o ex magistrado Ian Callinan, seria anacronismo acreditar que os
constituintes se referiam a estruturas como a Organização das Nações Unidas
(ONU) ou aos diferentes sistemas internacionais que existem na ordem jurídica
contemporânea, antes mesmo de estas estruturas existirem. Assim, a Constituição
seria our fundamental law, not a collection of principles amounting to the rights of
man, to be read and approved by people and institutions elsewhere53.
Outros, ainda, argumentam no sentido de uma estranheza relativa à
forma de estrutura dos países membros da Convenção, que influencia claramente
em sua aceitação ou não da jurisdição da Corte IDH. De acordo com Paulo Carozza,
então, parte da recusa dos EUA ao reconhecer competências jurídicas fora de seu
próprio país centra-se na própria base jurídica do common law, herdada da tradição
britânica, de princípios dualistas. O argumento central seria que os EUA, assim
como outros English-speaking countries, não reconhecem o conceito de aplicação de
um tratado internacional, nem tampouco da jurisprudência internacional, aplicado
pela Corte. Isso está claramente evidenciado, por exemplo, na total rejeição do
conceito do controle de convencionalidade – entendimento padrão da Corte IDH,
que soa inaceitável para os princípios jurídicos das cortes norte-americanas54.
A posição de resistência quanto à ratificação (e principalmente a aplicação)
de tratados internacionais no país não é só exclusiva no campo dos direitos humanos.
É fato que, tradicionalmente, o país reluta em alterar leis domésticas por força
dos instrumentos internacionais, historicamente. Uma das tentativas de “barrar” a
força normativa desses, por exemplo, é a concepção de tratados “não executáveis” e
“autoexecutáveis”, já discutida em um ponto anterior deste trabalho55.

52 SOCARRAS, Michael. International Law. p. 5.


53 JACKSON, Vicki C. Constitutional engagement in a transnational era. New York: Oxford Univer-
sity Press, 2010, p. 20.
54 CAROZZA, Paulo. The Anglo- Latin Divide and the Future of the Inter-American System of
Human Rights. Notre Dame Journal of International & Comparative Law, vol. 5, nº 1, Article 6, 2015,
p. 153- 170.
55 DIAB, Joseph. United States Ratification of the American Convention on Human Rights. Duke
Journal of Comparative & International Law, v. 22, 1992, p. 329.

496
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Passa-se à análise, portanto, da relação histórica e da análise dos


pronunciamentos da CIDH sobre as violações aos direitos humanos em território
norte-americano.

4.1 A RELAÇÃO HISTÓRICA ENTRE A COMISSÃO INTERAMERICANA


DE DIREITOS HUMANOS E OS ESTADOS UNIDOS

Contrapondo as posições da jurisprudência nacional, a CIDH passou


a aceitar denúncias de indivíduos ainda em 1971, por força da Carta da OEA.
Assim, de acordo com Loveland, a Comissão, ao receber uma denúncia contra os
EUA, interpreta os princípios contidos na Declaração Americana, em contraposto
à Convenção Americana56, em razão de o país não ser signatário da última.
Tal abertura possibilitou uma maior incidência da pressão política
internacional, porém se mostrou inefetiva em termos jurídicos, já que o país
raramente implementou as decisões da Comissão, considerando-as somente como
sugestões ou recomendações, que não teriam validade em circunstâncias prático-
jurídicas. De semelhante modo, não considera também a vinculação dos direitos
presentes na Declaração Americana, pois entende que ela não cria direitos ou cria
obrigações entre Estados, sendo assim somente uma enunciação das aspirações
dos Estados Americanos sobre os direitos humanos.57 A despeito disso, a CIDH
mantém a posição de que a Declaração Americana tem sim efeito vinculativo sobre
os Estados Unidos (e outros Estados que não ratificaram a Convenção)58.
O que se tem, assim, é que o principal foco das denúncias contra os
Estados Unidos envolvendo direitos humanos que são admitidos pela Comissão
versam sobre temas bem recorrentes: indivíduos sentenciados à pena de morte;
imigração; situações variadas de prisão considerada arbitrária e ilegal; ação territorial
norte-americana; direitos dos indígenas etc59. Portanto, desde a sua primeira
admissão, a CIDH acolheu 82 (oitenta e duas) petições, no período de 1971 até

56 LOVELAND, Justin M. 40 Years Later… p. 132.


57 Ibid, p. 132.
58 CERNA, Christina M. Reflections on the Normative Status of the American Declaration of the
Rights and Duties of ManUniversity of Pennsylvania Journal of International Law, vol. 30, nº 4, 2009,
p. 1213.
59 MACIEL, Débora Alves; FERREIRA, Marrielle Maia Alves; KOERNER, Andrei. Os Estados
Unidos e os mecanismos regionais de proteção dos direitos humanos. Lua Nova. 2013, n. 90, p. 276.

497
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2022, das quais versam sobre conteúdos sensíveis a muitas comunidades étnicas,
religiosas e culturais60_61.
Destaca-se o aumento vertiginoso, de 2018 a 2021, das denúncias
admitidas: 24 (vinte e quatro) em um período de quatro anos, em oposição às
5 (cinco) nos anos de 2014 a 2017. Parte dessas estão relacionadas aos efeitos
migratórios negativos causados pela pandemia do COVID-19, em que, de
acordo com a opinião da CIDH, os EUA estariam realizando procedimentos de
expulsão acelerada de pessoas em situação de vulnerabilidade “sem avaliar possíveis
necessidades de proteção, de garantia do acesso à migração, asilo ou procedimentos
de proteção no território dos Estados, e sem aplicar os protocolos sanitários
correspondentes para evitar a propagação do COVID-19”62.
Assim, é visível que, embora o país tenha estruturas legais suficientes para
abrigar os instrumentos do SIPDH, há uma série de barreiras, tanto legislativas
quanto jurisprudenciais, a esse processo. O que se tem é uma situação que, mesmo
por uma ação contundente do legislativo e a plena ratificação da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, ainda se questiona a eficácia completa da
norma, pois poderiam surgir diversas manobras hermenêuticas para inviabilizar o
pleno cumprimento do acordo. Um exemplo disso é o caso da Convenção Contra
a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que
o país assinou e ratificou, mas a considerou como não auto executável, de acordo
com o Senado.63

60 As informações podem ser verificadas no sítio oficial da OEA/CIDH. Disponível em https://www.


oas.org/pt/cidh/decisiones/admisibilidades.asp?Year=2021&Country=USA. Acesso em: 09 fev. 2022.
61 Salientam-se os seguintes casos: Jesus Rodríguez Barrón vs. United States of America (Informe nº
190/18, disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/2018/USAD468-08ES.pdf; Oswal-
do Marcelo Lucero Y Otros vs. United States of America. Informe nº 192/18, disponível em: https://
www.oas.org/es/cidh/decisiones/2018/USAD1506-08ES.pdf; Eleven Children at The Nixon Facility
vs. United States of America Informe nº 255/20, disponível em: https://www.oas.org/en/iachr/deci-
sions/2020/usad1994-15en.pdf.
62 A CIDH expressa sua preocupação pelas expulsões de pessoas em contexto de mobilidade humana
desde os EUA e o México, e urge os Estados Envolvidos a assegurar a proteção efetiva de seus direitos.
Comunicados de Imprensa CIDH, 2021, p. 243. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsFor-
m/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/243.asp. Acesso em: 9 fev. 2022.
63 “As previously mentioned, the Senate’s advice and consent to CAT ratification was subject to the
declaration that the Convention was not self-executing, meaning that implementing legislation was
required to fulfill U.S. international obligations under CAT, and such implementing legislation was
necessary for CAT to be given effect domestically”. UNITED STATES OF AMERICA. Congressio-
nal Research Service. UN Convention Against Torture (CAT) Overview and Application to Interrogation

498
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Segundo Ariel Dulitzky, parte da ineficiência da troca de experiências


jurídicas entre as cortes superiores nos EUA e a Corte IDH está ligada à própria
atuação da última no esforço de desenvolvimento de um relacionamento com
os tribunais domésticos (não só, inclusive, presentes nos Estados Unidos). Essa
fragilidade encontra-se na própria estrutura do direito interamericano como um
todo: não existe provisão para que o controle de convencionalidade e os outros
meios de vinculação sejam efetivamente reconhecidos e praticados, no caso dos
Estados que não ratificaram a Convenção Americana64.
Para além dos aspectos históricos e legais, é visível que o país também
encontra críticas ferrenhas no âmbito das manifestações da CIDH, como visto
antes. É dessa maneira que se torna necessário o exame das manifestações de
mérito da corte, no contexto do vilipêndio aos direitos humanos protegidos pelos
instrumentos da SIPDH em solo norte-americano ou fora deste, praticados pelo
Estado.

4.2 RELATÓRIOS DE MÉRITO

Analisou-se, para a pesquisa, todos os relatórios de mérito publicados


no sítio eletrônico da CIDH65. A etapa de mérito é aquela em que a Comissão
decide se houve ou não violações aos direitos humanos no caso analisado, com a
particularidade de que, como já dito, utiliza-se como base para o procedimento as
disposições presentes na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
ao invés da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Assim, tem-se que, dos 81 (oitenta e um) casos admitidos mencionados
alhures, entre 1971 e 2021, 49 (cinquenta) tiveram relatórios de mérito publicados.
No entanto, só há registro de publicação de relatórios de mérito a partir de 1981,
no caso “Baby Boy”66. É importante mencionar, no entanto, que há dois casos em

Techniques. 26 de jan. de 2009. Disponível em: https://sgp.fas.org/crs/intel/RL32438.pdf. Acesso em:


8 fev. 2022.
64 DULITZKY, Ariel. An Inter-American Consititutional Court? The Invention of the Convencio-
nality Control by the Inter-American Court. Texas Journal of International Law, v 50, nº 1, 2015. p.
86.
65 Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/fondo.asp?Year=2021&Country=USA.
Acesso em: 05 maio 2022.
66 CIDH, Resolución no,23/81. Caso 2141. Fondo (Publicación). Baby Boy. Estados Unidos de
America. 6 de marzo de 1981. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/80.81sp/Estado-
sUnidos2141.htm. Acesso em: 5 maio 2022.

499
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

que não foi possível recuperar o relatório, sendo 1 (um) em 1987 e 1 (um) em
1989. Resta, portanto, o exame de 47 (quarenta e sete) relatórios.
Divide-se a análise em torno da temática geral dos casos, seguindo assim
a ordem da maior aparição, seguido da segunda maior, e assim por diante. O
grupamento das temáticas, então, segue a lógica utilizada pela Comissão na parte
final do relatório, onde expõe se houve (ou não) violação aos direitos da Declaração
Americana, e quais artigos ou disposições exatamente, o Estado teria vilipendiado.
Preliminarmente, em uma inspeção coletiva, foi possível aferir a
existência de violação dos Estados Unidos da América em 46 (quarenta e seis)
dos 47 (quarenta e sete) casos analisados, correspondendo a uma taxa de 97,87%
(noventa e sete vírgula oitenta e sete por cento). Somente em um caso, o Baby Boy,
de 1981, a Comissão constatou que não houve nenhuma forma de vilipêndio aos
direitos contidos na Declaração Americana.
Já com relação aos grupos temáticos, a maior incidência de violações do
país se deu no campo da agressão ao artigo I, que versa sobre o direito fundamental
e humano à vida, à liberdade e à segurança, no contexto da aplicação e execução
das penas capitais, ainda presentes no sistema legal norte-americano. Representam
um universo de 34 (trinta e quatro) casos em que houve a violação do país nesse
sentido, inclusive contendo infrações relativas ao devido processo legal (artigo
XVIII)67 e a outras ilegalidades no processo de execução penal.
Destacam-se, desse grupo de relatórios, os que falam sobre o
prosseguimento da execução em menores de idade, que aconteceu em 5 (cinco)
casos. De acordo com a opinião da corte, além dos artigos I (direito à vida), VII
(proteção da criança e do adolescente), XVIII (devido processo legal) e vários
outros dispositivos da Declaração Americana, os Estados Unidos também estão
em desacordo com as normas internacionais de jus cogens, por permitir uma prática
já há muito expurgada dos sistemas jurídicos civilizados. O primeiro relatório em
que há a presença desse tipo de violação data de 1987, no caso Roach y Pinkerton
vs United States, que firmou o entendimento da comissão para casos no mesmo
sentido68.

67 Artigo XVIII - Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve
poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra
atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, quaisquer dos direitos fundamentais consagrados
constitucionalmente.
68 “La Comisión considera que los Estados miembros de la OEA reconocen una norma de jus co-
gens que prohibe la ejecución de niños menores de edad. Tal norma es aceptada por todos los Estados

500
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No caso Toronto Markkey Patterson, de março de 2005, a comissão


reiterou a sua posição, afirmando naquela ocasião que, apesar de os Estados Unidos
manterem reservas a todos os tratados internacionais que falem de execução de
menores de idade (como é o exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos, ratificado, com reservas) a execução de menores é infração gravíssima
ao direito costumeiro internacional69. No mesmo sentido estão os casos Michael
Domingues (2002); Napoleon Beazley (2003); Douglas Christopher Thomas (2003) e
Shanka Sankofa (2003).
Os grupos subsequentes com o maior número de casos são os que tratam
de violações aos direitos migratórios, com 6 (seis) casos, nos quais o principal
descumprimento está centrado no artigo XXVII, que dispõe sobre o direito a
buscar e receber asilo. Frequentemente, esses casos também envolvem violações ao
devido processo legal e a penas cruéis ou degradantes aplicadas a migrantes, como
aconteceu no caso Juan Raúl Garza (2001), em que houve a falha do Estado em
fornecer “garantías judiciales estrictas y rigurosas de un juicio imparcial, y la notable
y demostrable diversidad de prácticas dentro de un Estado Miembro que resultan

del Sistema Interamericano, incluyendo los Estados Unidos. […] La Comisión considera que este
caso surge no porque haya duda de la existencia de una norma internacional sobre la prohibición
de la imposición de la pena de muerte para niños menores de edad, sino porque los Estados Unidos
disputan el alegato de que existe un consenso sobre la mayoría de edad.” CIDH, Informe nº 62/02.
Caso 12.285.. Fondo (Publicación). Michel Domingues. Estados Unidos de America. 6 de marzo de
1981. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2002sp/EEUU.12285a.htm. Acesso em:
5 maio 2022.
69 “84. En opinión de la Comisión, las evidencias descritas anteriormente ilustran claramente que, al
persistir en la práctica de ejecutar a delincuentes menores de 18 años, Estados Unidos se singulariza
entre las naciones del mundo desarrollado tradicional y en el sistema interamericano, y ha quedado
cada vez más aislado en la comunidad mundial. Las pruebas abrumadoras de la práctica mundial de
los Estados indicada ilustra la congruencia y generalización entre los Estados del mundo en el sentido
de que la comunidad mundial considera que la ejecución de delincuentes menores de 18 años en mo-
mentos de cometer el delito es incongruente con las normas imperantes de decencia. Por lo tanto, la
Comisión opina que ha surgido una norma del derecho internacional consuetudinario que prohibe la
ejecución de delincuentes menores de 18 años en momentos de cometer el delito. 85. Además, en
base a la información que tuvo ante sí, la Comisión ha comprobado que ésta ha sido reconocida como
una norma de carácter suficientemente inalienable como para constituir una norma de jus cogens,
evolución prevista por la Comisión en su decisión en Roach y Pinkerton. Como se señaló, casi todos
los Estados naciones han rechazado la imposición de la pena capital a personas menores de 18 años,
en su forma más explícita, a través de la ratificación del PIDCP, la Convención de la ONU sobre los
Derechos del Niño y la Convención Americana sobre Derechos Humanos, tratados en los que esta
proscripción se reconoce como no derogable.” CIDH, Informe nº 62/02. Caso 12.285. Fondo (Publi-
cación). Michel Domingues. Estados Unidos de America. 6 de marzo de 1981. Disponível em: http://
www.cidh.oas.org/annualrep/2002sp/EEUU.12285a.htm. Acesso em: 5 maio 2022.

501
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

en una imposición desigual de la pena de muerte para los mismos delitos”70. No


mesmo sentido estão os casos Haitian Interdiction (1996); Rafael Ferrer- Mazorra
et.al (2000); Andrea Mortlock (2008); Wayne Smith, Hugo Armendariz y Otros
(2010) e Trabajadores indocumentados (2016).
Dos 6 (seis) casos restantes em que a CIDH entendeu que houve a
violação a algum direito da Declaração Americana, há 2 (dois) em que o principal
tema é a detenção ilegal e a tortura, além de outros atos cruéis ou degradantes,
praticados pelo governo norte-americano ou pelo sistema penitenciário. Nesse
sentido estão os casos Coard y Otros (1999), em que houve a detenção ilícita de
diversos indivíduos na operação militar denominada de “Invasão de Grenada” na
cidade de Grenada , Mississipi; e o caso Djamel Ameziane, com a detenção do
peticionário por 11 anos na prisão de Guantánamo, onde foi sujeito à “torturas,
malas condiciones de detención y otros tratos crueles e inhumanos”71, sem ter os
direitos cabíveis ao acesso à justiça.
Adiante, os 4 (quatro) casos restantes estão divididos em: 1 (um) que
trata sobre igualdade racial e direito ao voto (Stetehood Solidarity, 2003); 1 (um)
sobre violência doméstica e apatia do poder judiciário (Jessica Lenahan y Otros,
2011) e 1 (um) sobre violações ao direito internacional humanitário (Jose Isabel Slas
y Otros, 2018).

5 CONCLUSÃO

Em suma, a abertura constitucional ao direito internacional dos direitos


humanos nos Estados Unidos tem enfrentado grandes dificuldades, principalmente
no que tange a interpretação judicial das cláusulas constitucionais. Assim, existe
previsão legislativa para a referida desobstrução na presença de três dispositivos
constitucionais sobre o tema: o Artigo VI, Item 2 (que trata sobre os tratados
internacionais), o Artigo I, Seção 8, Item 10 (menciona os costumes internacionais)
e a IX Emenda (menciona os direitos não enumerados, que muitas vezes vêm sido
interpretados como uma abertura à competência internacional sobre os direitos
humanos).

70 CIDH. Juan Raul Garza. Estados Unidos de America. 4 de abril de 2001. Informe nº 52/01.
Caso 12.243. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2000sp/CapituloIII/Fondo/
EEUU12.243.htm. Acesso em: 5 maio 2022.
71 CIDH. Djamel Ameziane. Estados Unidos de America. 22 de abril de 2020. Informe nº 29/20.

502
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

O status legal desses instrumentos, como exposto, tem sido


constantemente mudado a rigor dos julgamentos da Suprema Corte. Os tratados
de direito internacional, embora sejam incorporados automaticamente no
ordenamento jurídico depois de sua aceitação pelo congresso, têm sua hierarquia
igual às leis federais, e ficam abaixo da Constituição. No entanto, há uma série de
impedimentos legais relativos à questões de efetividade dos mesmos no país, sendo
o mais proeminente deles a questão de que nem sempre um tratado seria “auto
executável”, o que traz a obrigação legislativa de especificar como o ordenamento
jurídico iria executá-los.
Existe similaridade na postura encontrada quanto ao customary
international law, na medida que é entendido como parte integral do ordenamento
(também tendo força de lei federal), mas só sendo aplicado quando as regras forem
específicas e elaboradas para cada caso concreto levado a juízo, o que desloca a
competência mais uma vez para o legislativo, que tem a liberdade de versar sobre os
limites da aplicação das normas internacionais.
O país também se encontra em uma perspectiva ainda mais apegada
às normas internas quando discutidas as normas de direitos humanos, que têm
pouca ou nenhuma efetividade quando abordadas no cenário das cortes mais altas
no país. Tal aspecto fica ainda mais claro quando visualizada a sua relação com o
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH) que, dentre
os seus instrumentos, só ratificou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem.
Isto posto, o país não reconhece a jurisdição da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, nem tampouco a atuação da Comissão Interamericana, esta
última que, apesar de todos os entraves legais alegados pelos EUA, recebe petições
individuais relativas à violação de direitos humanos desde 1971. Sem embargo,
mesmo admitidas, as denúncias não encontram efeito prático, pois se rejeita
qualquer possibilidade de vinculação obrigatória às recomendações expedidas pela
Comissão- invalidando-se assim também a possibilidade de julgamento dessas
denúncias pela Corte.
É necessário afirmar, no entanto, que algumas decisões têm contribuído
para o avanço da proteção aos direitos mais caros aos indivíduos, como é o caso em
Filartiga v. Pena-Irala, onde a Court of Appeal decidiu favoravelmente na utilização
de dispositivos internacionais para garantir a jurisdição norte-americana em um
caso onde foram violados direitos humanos.

503
REFERÊNCIAS

ADLER, Matthew D. Rights against rules: the moral structure of american


constitutional law. Michigan Law Review, v. 97, nº 1, p. 2-152.

BARNETT, Randy E. The ninth amendment: it means what it says. Texas Law
Review. v. 85, nº 1, 2006, p. 1-82.

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american constitutionalism. California Law Review, 2016, v. 104, nº6, p. 1567-
1578.

CERNA, Christina M. Reflections on the Normative Status of the American


Declaration of the Rights and Duties of Man. University of Pennsylvania Journal of
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506
A aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Janine Praxedes do Nascimento Ribeiro de Andrade1


Thiago Oliveira Moreira2

1 INTRODUÇÃO

A relação entre normas de direito interno e internacional tem sido bastante


discutida ao longo das últimas décadas. No Brasil, ganhou maior expressividade
depois da Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou o §3º ao art. 5º
da Constituição de 1988, pelo qual os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados com quórum de emenda serão equivalentes
ao tipo3.
Assim, os tratados e convenções de direitos humanos desempenham papel
de maior protagonismo com o passar dos anos. Contudo, muito se questionou acerca

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lattes: http://
lattes.cnpq.br/9150665095781493. E-mail: janinejp2010@gmail.com.
2 Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Chefe do Departamento de Di-
reito Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Professor/
Pesquisador Visitante na Universidade Lusófona do Porto. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail: thiago.
moreira@ufrn.br.
3 Art. 5º, § 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados,
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

507
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da posição das normativas internacionais já positivadas em nosso ordenamento


jurídico, antes do surgimento do dispositivo supramencionado, como é o caso da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Depois de reiteradas decisões, a maioria da doutrina e jurisprudência
entendem pela supralegalidade dos tratados e convenções de direitos humanos
anteriores à citada emenda e que não passaram pelo rito específico mencionado.
Pontua-se, no entanto, que ainda persiste certa resistência quanto à aplicação deles
pelo Judiciário brasileiro, que frequentemente valoriza as normas de direito interno
e deixa de resguardar as disposições trazidas nos tratados internacionais, ratificados
pelo país.
Com efeito, observa-se a importância do estudo sobre a aplicação da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, principalmente em âmbito
regional, a partir das decisões do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, da qual
faz parte a nossa Justiça Federal do Rio Grande do Norte (JFRN).
Assim, busca-se compreender se o Pacto de San José da Costa Rica tem sido
empregado pelo TRF5 e como se dá essa utilização. Inicialmente, será trabalhado o
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos com ênfase no estudo
da Convenção Americana e sua posição no ordenamento jurídico brasileiro. Em
seguida, perquirir-se-á se o Tribunal Regional Federal da 5ª Região tem realmente
aplicado, ou somente citado, o referido tratado E, por fim, e busca-se identificar
como os dispositivos da normativa têm sido utilizados na fundamentação das
decisões exaradas pelo TRF5.
Para tanto, utiliza-se o método lógico-dedutivo, por meio de pesquisa
qualitativa e explicativa. Recorre-se, então, à revisão bibliográfica, disposta em
livros, artigos científicos e periódicos, e à pesquisa documental, pautada no estudo
de leis, decretos e convenções internacionais, ambas com vistas à abordagem da
temática da Convenção Americana e seus desdobramentos no âmbito interno.
Por fim, realizar-se-ão também pesquisas jurisprudenciais nas plataformas
online do Conselho de Justiça Federal (https://www2.cjf.jus.br/jurisprudencia/
unificada/) e do próprio tribunal em análise (https://www.trf5.jus.br/index.php/
jurisprudencia-home), estabelecendo como período de estudo os anos de 2015 a
2022 e como palavras-chave “pacto de san josé” e “convenção americana”.
Com o desenvolvimento da pesquisa, espera-se que o TRF 5 utilize
correta e frequentemente a Convenção Americana na fundamentação de decisões,
enquanto instrumento normativo concretizado no âmbito interno, embora note-

508
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

se que hoje em dia ainda existe certa resistência no que diz respeito à aplicação
de tratados internacionais de direitos humanos pela jurisprudência brasileira. A
partir disso, compreende-se a importância desse estudo para o nosso ordenamento
jurídico: traçar um paralelo entre a teoria e a práxis, de modo a desenvolver uma
cultura de proteção aos direitos humanos e consequentemente de respeito às
normas internacionais.

2 ASPECTOS GERAIS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO


AOS DIREITOS HUMANOS

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos constitui-


se como um sistema regional de proteção e promoção dos direitos intrínsecos
à existência humana, originado pela manifestação e integração dos países do
continente americano, no exercício de sua soberania. Logo, desenvolveu-se por
meio da adoção de uma série de instrumentos internacionais, cujo objetivo central
era estabelecer uma cultura comum de proteção aos direitos humanos.
Seu marco inicial remonta ao ano de 1948, em que foi realizada a 9ª
Conferência Interamericana, na cidade de Bogotá, na Colômbia. Nesse cenário,
foi criada a Organização dos Estados Americanos (OEA), a partir da adoção à sua
Carta, assim como foi aprovada a Declaração Americana de Direitos e Deveres do
Homem, cuja existência é anterior à própria Declaração Universal dos Direitos
Humanos4.
Fortalecido em 1969, através da assinatura da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, o SIPDH dispõe de órgãos judiciais próprios - como é o
caso da Corte e da Comissão Interamericanas de Direitos Humanos -, com vistas à
solução dos conflitos e violações aos direitos que envolvam os Estados americanos
signatários e o referido documento5.
Em meio ao cenário de atuação, desenvolveu características próprias e
estratégias diferenciadas de enfrentamento às violações, porquanto muitos países

4 MIRANDA, Mariana Almeida Picanço de; CUNHA, José Ricardo. Poder Judiciário Brasileiro e a
Proteção dos Direitos Humanos: Aplicabilidade e incorporação das decisões da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas,
2010. p. 25.
5 GALINDO, Bruno. Transitional Justice in Brazil and the Jurisprudence of the Inter-American
Court of Human Rights: a difficult dialogue with the Brazilian judiciary. Seqüência - Estudos Jurídicos
e Políticos, Florianópolis, v. 39, n. 79, p. 27-44, ago. 2018. p. 28. Disponível em: https://periodicos.
ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2018v39n79p27. Acesso em: 12 jan. 2022.

509
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

latino-americanos, com forte cultura religiosa, ainda enfrentavam governos


ditatoriais quando da sua formação6. Logo, a influência de grupos religiosos e o
rompimento do legado de dominação autoritária para estabelecimento de um
panorama de efetivo respeito aos direitos humanos tornaram-se desafios que
moldaram a forma de atuação dos organismos interamericanos, assim como os altos
índices de violência e desigualdade, encarados pela América Latina há alguns anos7.
Outrossim, configura-se também como um sistema inovador ao
desenvolver convenções com temáticas revolucionárias, que ainda não tinham sido
tratadas por outros sistemas, como é a Convenção de Belém do Pará, de 1994, e a
Convenção Interamericana sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
de Pessoas com Deficiência8, as quais serão abordadas a posteriori.
Assim, passa-se então à discussão sobre a Convenção Americana sobre
os Direitos Humanos, enquanto principal diploma internacional do Sistema
Interamericano, e dos demais tratados que dão força à atuação de seus organismos.

2.1 A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos trata-se de um


diploma internacional, assinado em 22 de novembro de 1969, na cidade de San
José, na Costa Rica, e por isso também é conhecida como Pacto de San José da Costa
Rica. Constitui-se como “marco político e normativo na proteção, no respeito e
na promoção dos Direitos Humanos, especialmente nas Américas”, ao instituir e
garantir os direitos humanos9.

6 GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direitos humanos das mulheres e a Comissão Interamericana de


Direitos Humanos: uma análise de casos admitidos entre 1970 e 2008. Dissertação (Mestrado junto
ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos), Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 268 p. 2011. p. 79.
7 PIOVESAN, Flávia. O impacto jurídico da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a emer-
gência de um novo paradigma jurídico. In: AMARAL JR., Alberto do; PIOVESAN, Flávia; DANE-
SES, Paula Monteiro. 50 Anos da Convenção Americana: o Sistema Interamericano - legado, impactos
e perspectivas. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 48.
8 Ibid., p. 81.
9 ANDRADE, D. A. de; SAPUCAIA MACHADO, M. .; BORGES VIEIRA DE CARVALHO, G.
50 Anos Do Pacto De São José Da Costa Rica: Reflexões Sobre Justiça Social No Brasil. Prima Facie,
João Pessoa, v. 18, n. 39, p. 01–31, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/pri-
mafacie/article/view/48750. Acesso em: 16 dez. 2021, p. 1.

510
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por isso, configura-se como o maior instrumento de proteção aos


direitos humanos do Sistema Interamericano e, por conseguinte, mais conhecido
internacionalmente. Isso porque é responsável por reunir uma série de direitos civis
e políticos, dos quais cabe destacar o direito à vida (art. 4º) e à integridade física
(art. 5º), além dos direitos à liberdade pessoal (art. 7º), de consciência e religião
(art. 12), de pensamento e expressão (art.13), entre outros10.
Semelhantemente, deu papel de destaque à Comissão e a Corte
Interamericanas, estabelecendo-as como órgãos competentes em seu art. 3311.
Assim, revestiu-lhes de força para atuar não somente como guardiãs da Convenção e
dos compromissos firmados pelos Estados signatários por meio dela12, mas também
como representantes da Justiça, voltando-se para a proteção dos Direitos Humanos
e de seus titulares.
Importa esclarecer ainda que, dos 35 Estados membros da Organização
dos Estados Americanos (OEA), 25 ratificaram a Convenção Americana13, mesmo
com reservas, entre os quais o Brasil. Desses, 22 aceitam a competência da Corte e
somente 10, a da Comissão14.

10 MARTINELLI, João Paulo Orsini; PREVELATO, Fabio. O Sistema Interamericano de Proteção


dos Direitos Humanos. Revista de Direitos Fundamentais, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 23-36, jan./jun. 2019,
p. 27-28.
11 Artigo 33. São competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos
compromissos assumidos pelos Estados Partes nesta Convenção: a. a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e b. a Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos, doravante denominada a Corte.
12 ALMEIDA, Bruna Sueko Higa de. et al. A litigância estratégica no sistema interamericano de
direitos humanos e os seus efeitos estruturais no Brasil. In: AMARAL JR., Alberto do; PIOVESAN,
Flávia; DANESES, Paula Monteiro. 50 Anos da Convenção Americana: o Sistema Interamericano -
legado, impactos e perspectivas. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 158.
13 São eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador,
El Salvador, Grenada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai,
Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Disponível em:
http://www.oas.org/dil/treaties_B-32_American_Convention_on_Human_Rights_sign.htm. Acesso
em: 18 mar. 2022.
14 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Status de Ratificações e Re-
servas à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/
Portugues/d.Convencao_Americana_Ratif.htm. Acesso em: 13 mar. 2022.

511
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

2.2 OUTROS TRATADOS INTERAMERICANOS

Além do Pacto de San José, alguns outros tratados do Sistema


Interamericano caracterizam-se como essenciais para a manutenção de um
panorama de efetivação dos direitos humanos. Alguns deles, inclusive, são
considerados como inovadores ao tratar sobre matérias ainda não abrangidas por
outros sistemas de proteção, regionais ou internacionais15, à exemplo da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e
Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra Pessoas com Deficiência.
Acerca da primeira, tem-se que é mais conhecida como Convenção de
Belém do Pará e foi adotada em 1994, mas só ratificada pelo Brasil pouco mais de
um ano depois, por meio do Decreto Legislativo nº 107. Trata sobre a proibição
da violência contra a mulher, impondo obrigações aos signatários que visam a
proteção da mulher16. No Brasil, influenciou a criação da Lei nº 11.340, de 7
de agosto de 2006, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência contra
mulher e determina a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, além de alterar algumas disposições do Código de Processo Penal,
o Código Penal e a Lei de Execução Penal para salvaguardar dos direitos17.
A segunda foi adotada em 6 de agosto de 1999, na Cidade da Guatemala, e
por isso também é chamada de Convenção da Guatemala. Adentrou o ordenamento
jurídico brasileiro a partir do Decreto nº 3.956/2001 e, com 14 artigos, trata sobre
a prevenção e eliminação da discriminação, sob quaisquer formas, contra as pessoas

15 GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direitos humanos das mulheres e a Comissão Interamericana de


Direitos Humanos: uma análise de casos admitidos entre 1970 e 2008. Dissertação (Mestrado junto
ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos), Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2011, p. 79.
16 BANDEIRA, Lourdes Maria; ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. Vinte anos da Convenção de
Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 501-
517, maio-ago. 2015, p. 505-506.
17 Art. 1º. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República
Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica
e familiar.

512
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

com deficiência, além de visar a sua plena integração à sociedade18. Por fim, nota-se
que somente 19 dos 35 países da OEA aderiram ao tratado19.
Ademais, também se configuram como diplomas legais do Protocolo
de Salvador, que funciona como um protocolo adicional à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos com matérias de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
adotado em San Salvador, em 1988; o Protocolo para Abolição da Pena de Morte,
também funciona como um protocolo adicional àquele tratado, mas refere-se à
abolição da pena de morte e foi dotado em Assunção, em 199020.
Além disso, têm-se a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir
a Tortura, assinada em Cartagena das Índias, em 1985, cujo objetivo é prevenir
e punir a tortura, estabelecendo obrigações aos Estados partes21; assim como a
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada
em Belém do Pará, em 1994, que visa a prevenção e punição do desaparecimento
forçado de pessoas, ainda que em estado de emergência ou sob quaisquer outras
circunstâncias22.

3 INTERNALIZAÇÃO E FORÇA NORMATIVA DA CONVENÇÃO


AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Como fruto da influência da teoria dualista, que entende o direito


internacional e o direito interno como sistemas totalmente independentes e
distintos, nosso ordenamento jurídico dá validade aos tratados e convenções aos

18 Artigo 2. Esta Convenção tem por objetivo prevenir e eliminar todas as formas de discriminação
contra as pessoas portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração à sociedade.
19 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Assinaturas e Ratificações da Convenção
Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação de Pessoas com Deficiência. Dispo-
nível em: http://www.oas.org/juridico/english/sigs/a-65.html. Acesso em: 13 mar. 2022.
20 GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direitos humanos das mulheres e a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos: uma análise de casos admitidos entre 1970 e 2008. Dissertação (Mestrado junto
ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos), Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2011, p.81.
21 Artigo 1. Os Estados Partes obrigam-se a prevenir e a punir a tortura, nos termos desta Convenção.
22 Artigo I. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a: a. não praticar, nem permitir,
nem tolerar o desaparecimento forçado de pessoas, nem mesmo em estado de emergência, exceção ou
suspensão de garantias individuais; [...].

513
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

quais aderiu somente a partir de sua introdução no plano doméstico, por meio do
processo de internalização23.
Na internalização, ocorre uma transformação da norma internacional em
normativa típica de direito interno, na qual é necessária manifestação do Poder
Legislativo para que possa produzir efeitos no âmbito nacional24. Nesse sentido,
pode-se afirmar que a Convenção Americana adentrou nosso ordenamento jurídico
através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.
Em razão do procedimento legislativo seguido em meio ao processo de
internalização descrito, muito se discutiu a respeito de seu posicionamento em meio
a hierarquia entre Tratados de Direitos Humanos, leis ordinárias e a Constituição.
Até a década de 70, por exemplo, entendia-se – com base nas decisões do Supremo
Tribunal Federal – pela supralegalidade dos tratados. A partir do julgamento do
RE 80.004/SE, no entanto, o cenário mudou e o STF posicionou-se pela paridade
normativa entre leis ordinárias e tratados internacionais, ainda que tratassem sobre
direitos humanos25.
A Constituição de 1988 fortaleceu esse entendimento, de modo que
prevalecia o paradigma da hierarquia infraconstitucional dos tratados. Com o
estabelecimento da Emenda nº 45/2004, porém, tem-se que o posicionamento
da Corte foi novamente modificado, em razão do acréscimo do §3º ao art. 5º, da
CF/88, pelo qual os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos e
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros detém status de emenda constitucional.
Nesse sentido, suscitaram-se dúvidas a respeito da situação dos tratados
já aprovados antes do referido dispositivo. Com o julgamento do RE 466.343/SP,
no qual o STF discutiu acerca prisão por dívida do depositário infiel - combatida

23 REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2018. p. 10.
24 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015. p. 94.
25 MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015.

514
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

pelo Pacto de San José26 e defendida pela Constituição27, manteve-se a hierarquia


infraconstitucional, mas revestiu-lhes de supralegalidade28.
Entende-se, portanto, que a Convenção Americana atualmente detém
status de norma supralegal, porquanto é anterior ao referido dispositivo, época em
que não havia a possibilidade de um tratado de direitos humanos atingir a posição
de emenda constitucional29, além do procedimento adotado em sua aprovação.
Desta feita, o Estado Brasileiro – tendo em vista sua adesão ao Pacto
de San José da Costa Rica, em 9 de julho de 1992, e a promulgação por meio do
Decreto nº. 678, datado de novembro do mesmo ano30 – tem o dever, em qualquer
de suas esferas, mas principalmente por meio de sua função jurisdicional, aplicar o
referido diploma internacional em sua atuação.

3.1 RESERVAS DO BRASIL PARA ADESÃO À CONVENÇÃO AMERICANA

As reservas referem-se à possibilidade de um Estado, ao aderir a um


tratado multilateral, não aceitar certos dispositivos do tratado, que vão de encontro
com sua política ou normas internas. Estabeleceram-se na sociedade internacional
por meio do entendimento de que seria mais benéfico ter parte do tratado em
vigor do que ele não existir, haja vista a impossibilidade de todos os signatários
concordarem com todas as determinações do documento31.
Nesse sentido, importa destacar que o Estado brasileiro, utilizou-se desse
instrumento no ato de adesão à Convenção, em setembro de 1992. Assim, os

26 Artigo 7, 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
27 Artigo 5º, LXVII. Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento
voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
28 MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015
29 LOPES FILHO, Francisco Camargo Alves; MOREIRA, Thiago Oliveira. O emprego da Con-
venção Americana de Direitos Humanos na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Norte. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, Natal, v. 14, n. 3, p. 112-139, ago. 2021.
Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/25360. Aces-
so em: 15 dez. 2021, p. 112.
30 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 514.
31 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 9. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 265.

515
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

artigos 43 e 48, d, foram objetos de ressalva, de modo que as visitas e investigações


in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos passam a depender da
anuência expressa do Estado e não ocorrem como direito automático, conforme
estabelecido originalmente32.

3.2 O IMPACTO DO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA NO DIREITO


INTERNO

Inicialmente, importa pontuar que o Pacto de San José teve papel


fundamental no processo de democratização de alguns países da América Latina.
Quando entrou em vigor, na década de 70, muitos dos Estados latinoamericanos
eram governados por ditaduras de direita e esquerda e, dos 11 Estados partes da
Convenção na época, menos da metade tinha governos eleitos democraticamente.
Com o passar dos anos, todavia, os regimes políticos passaram a ser cada vez mais
abertos e participativos, o que possibilitou que o sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos ter uma influência ainda maior em cada Estado33
No Brasil, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos passou a
desempenhar papel de protagonismo em meio à decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF), ao apreciar em conjunto três processos distintos (HC nº 87.585,
RE nº 466.343 e RE nº 349.703), em que proibiu definitivamente a prisão de
depositários infiéis, baseando-se no art. 7º, 7, da Convenção Americana, entende
que o ato contraria o direito à liberdade34.
O impacto da decisão foi tamanho que alterou o rumo da Jurisprudência
no país, que passou a vedar a prisão do depositário infiel, mesmo que o texto
constitucional - em seu artigo 5º, inciso LXVII - disponha em contrário. Logo,
atualmente só é permitida a prisão por dívida em matéria de pensão alimentícia em
nosso sistema jurídico.

32 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção Americana sobre


Direitos Humanos - Ratificação. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Con-
vencao_Americana_Ratif..htm. Acesso em: 12 jan. 2022.
33 PIOVESAN. Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011. p. 311.
34 SCHOEMBAKLA, Carlos Eduardo Dipp. O Habeas Corpus Nº. 87.585-8/TO e o atual posi-
cionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão civil do depositário infiel no ordenamen-
to jurídico brasileiro. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 8, n. 8, p. 257-269,
jul./dez. 2009. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/
download/127/126/133. Acesso em: 16 dez. 2021, p. 265-266.

516
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Noutro prisma, o art. 1935 da Convenção também foi considerado um


diferencial do tratado. Isso porque trouxe à tona o ideal dos Direitos da Criança,
estabelecendo a necessidade de proteção à infância e o desenvolvimento de
políticas públicas e leis que salvaguardem esses sujeitos de direito. Embora ainda
se configurasse como um conceito a ser construído, representou um avanço no que
diz respeito a regulamentação do tema ao redor do mundo, visto que os Direitos da
Criança ainda estavam in status nascendi36.
Desta feita, urge entender como tem sido feita a aplicação desses e outros
dispositivos da Convenção pelo TRF 5.

4 A APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS


HUMANOS PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO

Conforme orientação do próprio Conselho Federal de Justiça, os órgãos do


Poder Judiciário devem observar os tratados e convenções internacionais de direitos
humanos em vigor no nosso ordenamento, assim como aplicar a jurisprudência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e realizar o controle
de convencionalidade das normas pátrias37. Nesse sentido, o TRF5 não poderia
escusar-se de aplicar os dispositivos da normativa supracitada.
Sob esse prisma, em pesquisa preliminar realizada no site do TRF5
(https://www.trf5.jus.br/index.php/jurisprudencia-home), foram encontradas 32
decisões com o filtro “pacto de san josé”. Desses, somente 15 abrangiam o período
em análise, qual seja de 2015 a 2022. Com o uso do termo “convenção americana”,
o espaço amostral foi ampliado, contando com 47 decisões, sendo 31 relacionadas
ao espaço de tempo em questão.
A partir da observação minuciosa dos números dos processos dos quais as
decisões encontradas fazem parte, visualizou-se que 5 delas eram comuns aos dois
filtros e 1 relacionava-se com a Convenção de Haia mais do que com a Convenção

35 Artigo 19. Direitos da criança. Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição
de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado.
36 PETERKE, Sven; FARIAS, Paloma Leite Diniz. 50 anos dos “direitos da criança” na Convenção
Americana de Direitos Humanos: a história do artigo 19. Revista de Direito Internacional, Brasília, v.
17, n. 1, p. 310-323, 2020.
37 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Recomendação nº. 123, de 7 de janeiro de 2022.
Brasília, DF. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_123_09112010_11102012190713.
pdf. Acesso em: 12 jan. 2022.

517
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Americana per si. Por conseguinte, restaram 40 decisões, as quais serão estudadas
para compreensão de 2 aspectos: se realmente o Pacto de San José da Costa Rica é
usado nas fundamentações ou se foi somente citada; e como foi aplicado, em caso
de ter servido na ratio decidendi.
Com vistas ao aprofundamento da pesquisa, os mesmos termos foram
inseridos na caixa de pesquisa da plataforma do Conselho de Justiça Federal (https://
www2.cjf.jus.br/jurisprudencia/unificada/). Para o filtro “convenção americana”,
resultaram 23 processos, dos quais 7 compreendiam o período analisado. Com
“pacto de san josé”, 23 processos também foram listados, dos quais 6 se encaixam
no lapso temporal selecionado. Em ambos os casos, os processos já tinham sido
contemplados pela busca no site do próprio tribunal.
Sob esse prisma, pontua-se que 38 processos foram estudados para que
fosse avaliada a aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em
meio às determinações do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Isso porque 2
das decisões que compreendiam os filtros selecionados não estavam disponíveis nos
sítios eletrônicos supramencionados. Das 38 decisões analisadas, 15 somente citam
a Convenção, enquanto 23 usam-na como fundamentação, de forma correta ou
não, conforme visualiza-se abaixo.

Gráfico 1 - Classificação das decisões analisadas

Fonte: BRASIL. TRF5.

A maioria dos resultados da pesquisa compreenderam Apelações


Criminais (9 decisões), seguidas de perto pelas Apelações Cíveis (6 decisões).

518
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Também foram objeto de estudo Agravos de Instrumento (2), Habeas Corpus (2),
Remessas Necessárias (2), Revisão Criminal (1) e Agravo de Execução Penal (1),
conforme se vê:
Gráfico 2 - Tipo de ação analisada

Fonte: BRASIL. TRF5.

Enfim, estabelece-se que as decisões reunidas tratam de variados temas,


mas a maioria das decisões envolve o Direito à Defesa (6 ocorrências) e o Crime
de Desacato (4 ocorrências). Outras temáticas recorrentes foram a Audiência de
Custódia (3 casos), a Liberdade de Expressão (2 casos) e a Prisão por Dívida do
Depositário Infiel (2 casos). No mais, 6 decisões tratam sobre assuntos variados que
não se encaixavam em nenhum dos tipos retromencionados. Na sequência, segue
uma breve explanação sobre como o Tribunal lidou com os temas.

4.1 SOBRE O CRIME DESACATO E O DIREITO À LIBERDADE DE


MANIFESTAÇÃO E EXPRESSÃO

Um dos temas mais recorrentes no que diz respeito à aplicação da


Convenção pelo Tribunal foi o crime de desacato, tendo 4 recorrências.
A primeira decisão remonta de 12/11/2019 e trata-se da Apelação
Criminal nº 0803997-42.2017.4.05.8000, interposta pelo réu em face de sentença
de condenação pelo crime de desacato. O apelante alegou que o crime foi revogado
pela CADH, que estabelece no art. 13 os direitos à liberdade de pensamento e de

519
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

expressão, ao mesmo tempo em que trouxe à tona a Declaração de Princípios sobre


a Liberdade de Expressão (2000) da Comissão Interamericana, especialmente o art.
11, que entende as leis de desacato como atentatórias à liberdade de expressão e o
direito à informação. No entanto, a 4ª Turma - seguindo o entendimento do relator,
o Desembargador Federal Manoel de Oliveira Erhardt - entendeu que o crime
de desacato não foi revogado pelo disposto no Pacto, justificando que o informe
oriundo da Comissão Interamericana não tem natureza de tratado internacional,
tampouco de norma supralegal.
Semelhante rumo tiveram as Apelações Criminais nº 0000217-
28.2016.4.05.8400 (julgada em 18/02/2020 pela 4ª Turma), 0800129-
80.2018.4.05.8401 (julgada em 28/10/2021 pela 3ª Turma) e 0000082-
13.2016.4.05.8304 (julgada em 28/10/2021 pela 1ª Turma). Em todos os casos,
o Tribunal seguiu o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça
(STJ), de que “não há falar em revogação do crime de desacato em razão do
disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos” (AgRg no HC 463.638/
ES)38, e do Supremo Tribunal Federal, pelo qual “a recepção do crime de desacato
pela CF/88 (CF, art. 5º, IV), bem como a compatibilidade da figura penal do
desacato com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos” (ARE
1049152 AgR)39. Como restou claro, as decisões foram de encontro ao que expressa
a CADH40.
Ainda na linha do direito à expressão e manifestação, 2 decisões abordaram
o tema da liberdade de comunicação através da radiodifusão. Ambas datadas
de 02/06/2015 e julgadas pela 2ª Turma, as Apelações Cíveis dos processos nº
2006.81.00014003-8 e 2008.83.00.018733-0, interpostas pelos apelantes - rádios
comunitárias - contra decisão em que o juízo a quo decidiu pela improcedência
do pedido, por entender que a autorização, concessão e permissão dos serviços de

38 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Hc nº 463.638/ES. Relator: Ministro Sebastião


Reis Júnior. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 02 out. 2018.
39 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE nº 1.049.152 AgR. Relator: Ministro Dias Toffoli.
Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 28 maio 2018.
40 Parte da doutrina, juntamente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos com os comuni-
cados de imprensa R152/18 e R32/11, estabelece que as leis de desacato são completamente incom-
patíveis com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ao irem de encontro com o art. 13 da
Convenção Americana. De acordo com: MOREIRA, Thiago Oliveira; PINHEIRO, Mariana Libe-
rato. O (necessário) controle de convencionalidade e o crime de desacato: sua incompatibilidade no
ordenamento jurídico brasileiro. In.: GURGEL, Yara Maria; MOREIRA, Thiago Oliveira (coord.).
Direito internacional dos direitos humanos e as pessoas em situação de vulnerabilidade. Natal: Polimatia,
2022. v. II. p. 363–392.

520
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

radiodifusão devem ser precedidas de amplos e profundos estudos, de modo a evitar


que a exploração do serviço venha a implicar em prejuízos ao sistema de navegação
aérea. O relator - em ambos os casos, o Desembargador Ivan Lira de Carvalho -
iniciou a fundamentação com a declaração de que, pessoalmente, entende que as
Rádios Comunitárias não estão sujeitas ao controle estatal, dada a prevalência do
pacto de San José da Costa Rica, esclarecendo que difere de uma rádio convencional
pela ausência de caráter empresarial. Contudo, nega provimento aos recursos pela
prevalência do art. 233, CF/88, seguindo o entendimento da Casa41.

4.2 ACERCA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Noutro prisma, uma parcela dos acórdãos abordou a questão da audiência


de custódia, prevista no art. 7º, item 5 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos42. No Habeas Corpus do processo nº 0001487-04.2015.4.05.0000,
julgado em 21/05/2015 e impetrado pela Defensoria Pública contra decisão que
indeferiu o pedido de liberdade provisória, alegou-se, entre outras questões, o
descumprimento do direito à audiência de custódia perante um Juiz imediatamente
após a prisão. Na ocasião, a 3ª Turma esclareceu que a audiência de custódia,
prevista tanto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos quanto no Pacto
Internacional dos Direitos Civil e Políticos, ainda não tinha sido regulamentada no
país, de modo que a jurisprudência permitia que a apresentação ao Juiz do auto de
prisão em flagrante cumprisse tal papel. Por conseguinte, denegou a ordem.
No julgamento do HC do processo 0000492-54.2016.4.05.0000, de
07/06/2016, a 2ª turma seguiu o mesmo sentido, acrescentando que, ainda que o
Pacto de São José da Costa Rica revista-se de natureza supralegal, não tem eficácia
plena, de forma que só se poderia exigir a audiência de custódia na manutenção da

41 PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. FUNCIONAMENTO DE RÁDIO


COMUNITÁRIA. LEI 9.612/98. Inexiste prova de que a rádio comunitária possui a concessão ou
a autorização do poder público para explorar o serviço de radiodifusão. Inteligência do art. 223 da
Constituição Federal. Alegação de ser moroso o processo administrativo para a obtenção da permissão
não justifica a autorização pelo poder judiciário do uso do serviço ao arrepio da lei. Precedentes ju-
risprudenciais. Apelação e remessa oficial providas (TRF 5. MAS 89310/PE. Rel. Des. Fed. Marcelo
Navarro. DJ de 05.05.2005).
42 Artigo 7. Direito à liberdade pessoal. [...] 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem
demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e
tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de
que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu com-
parecimento em juízo.

521
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

prisão decorrente de flagrante delito quando houvesse a regulamentação da matéria,


por meio de norma infraconstitucional. Por fim, denegou a ordem.
Já no acórdão da Apelação/Remessa Necessária nº 0800919-
36.2019.4.05.8302, datado de 05/11/2020, o objeto foi a realização de exame
de corpo de delito a que são submetidos os presos encaminhados à audiência de
custódia na Subseção Judiciária de Caruaru/PE. Neste diapasão, pontuou-se que,
com base nos arts. 5º, item 2 e 7º, item 5, da Convenção, o Conselho Nacional de
Justiça editou a Resolução nº 213/2015, que regulamentou a audiência de custódia
e que essa previu a mera possibilidade de a autoridade judicial deparar-se com
o exame de corpo de delito lavrado no prazo. Concluiu, então, pelo provimento
da apelação do Estado de Pernambuco, no sentido de aceitar o documento que
simplesmente indique que exame de corpo de delito foi realizado, não sendo
necessário o preenchimento de formulário mais detalhado.

4.3 DA PRISÃO POR DÍVIDA DO DEPOSITÁRIO INFIEL

Após o julgamento conjunto dos HC nº 87.585, RE nº 466.343 e RE


nº 349.703, em 03/12/2008, conforme visto anteriormente, a prisão por dívida do
depositário infiel deixou de ser recorrente em nosso ordenamento jurídico. Ainda
assim, o tema foi discutido no Regional.
No Agravo de Instrumento nº 0803137-19.2016.4.05.0000, cuja
decisão data de 20/09/2016, a 2ª Turma seguiu a Súmula Vinculante nº 25, pela
qual entende-se que a prisão civil do depositário infiel é ilícita, independentemente
da modalidade do depósito. Desta feita, deu provimento ao agravo, em parte, com
vistas a afastar a prisão civil estabelecida como pena na decisão proferida pelo juízo
ad quo que, em sede de execução fiscal, determinou que o executado entregue o
veículo penhorado em juízo, ou o equivalente em dinheiro, no prazo de 05 (cinco)
dias, tendo que vista a notícia de que o executado alienou o veículo penhorado que
estava sob sua responsabilidade na condição de depositário. A prisão por dívida
seria contrária ao disposto no no art. 7º, 7, da Convenção Americana.
Na Apelação Criminal nº 0002667-37.2013.4.05.8500, julgada em
19/04/2016, a 2ª Turma decidiu que, mesmo que o nosso ordenamento jurídico
tenha banido essa espécie de prisão civil, o apenamento poderia acontecer nos
termos do art. 1º, I, Lei nº 8.137/90, já que a norma incriminadora não teria
somente o não pagamento do tributo como causa, mas principalmente a omissão

522
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da informação que deveria ser repassada ao fisco. Por isso, a pena não seria contrária
às disposições constitucionais nem ao Pacto, negando provimento à apelação.

4.4 SOBRE O DIREITO À DEFESA E À PROVA

Em 25/02/2015, o Pleno do TRF5, ao julgar a Revisão Criminal nº


0005239-18.2014.4.05.0000, ajuizada contra sentença do Juízo da 3ª Vara da
Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, confirmada em sede de apelação, que
condenou o requerente pela prática dos crimes de roubo consumado e roubo
tentado, em continuidade delitiva, decidiu que os dispositivos indicados pelo
requerente sob a alegação de infringência, quais sejam, os do art. 8ª, §2º, “d” e
“f ”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não foram expressamente
violados pela decisão do juízo de piso. Isso porque se considerou que, ainda que
o requerente não fosse intimado para a audiência de inquirição das testemunhas
arroladas pela acusação - alegação que sequer consta nos autos -, não resultaria
em nulidade do processo, como pretendia a defesa. Em face do exposto, julgou
improcedente o pedido.
Já na Apelação Criminal nº 0000305-63.2016.4.05.8401 (direito
à defesa), a 2ª turma - frente ao recurso interposto por réu contra sentença
condenatória pelos artigos 241-A (disponibilização de conteúdo de pornografia
infantojuvenil por meio de sistema telemático ou de informática) e 241-B
(armazenamento de material com conteúdo de pornografia infantojuvenil) da Lei
nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) – decidiu, em 29/10/2019,
que a denúncia era válida porquanto descreveu a conduta praticada pelo réu e
apontou os elementos demonstrativos da justa causa, ao contrário do que arguiu a
defesa e, por isso, não deu razão à argumentação do apelante quanto à inépcia da
peça de acusação, que não obsta o pleno exercício substantivo da ampla defesa e do
contraditório, dispostos na CADH.
No mesmo sentido foi a decisão da Apelação Criminal nº
2008.81.02.000385-2 (direito à defesa), de 17/12/2019, exarada pela 3ª Turma.
A defesa do réu também indicou que a denúncia era genérica, o que dificultaria
o exercício da ampla defesa e do contraditório, o que foi afastado pelo relator,
ao entender que a denúncia foi suficiente para narrar a conduta do agente,
impossibilitando a nulidade da ação penal e não configurando violação a dispositivos
nacionais ou da normativa internacional.

523
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A Apelação Criminal nº 0001018-32.2016.4.05.8500, por seu turno,


foi julgada em 23/02/2020 pela 3ª Turma. No caso, o Ministério Público Federal
apelou da sentença que condenou o réu, insurgindo-se contra a dosimetria da pena
ao alegar a existência de condições desfavoráveis ao réu, prejudicado pela renúncia
da Defensoria Pública da União quando do declínio da competência de uma vara
federal para outra, pela ausência de representação no juízo declinado. Contudo, o
Tribunal – seguindo o relator, o Desembargador Federal Convocado Gustavo de
Paiva Gadelha – compreendeu que, embora o direito de defesa por meio de defensor
de sua escolha seja um direito de qualquer acusado, tanto pela Constituição Federal
quanto no Pacto de São José da Costa Rica e no Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, não houve nulidade, haja vista a ocorrência de intimação pessoal
e de defesa técnica (advogado dativo designado) da sentença proferida.
Noutra linha, pontua-se que um aspecto importante do direito à ampla
defesa é o direito à prova, constante no art. 8º da CADH, o qual foi aplicado nos
seguintes acórdãos.
Na Apelação Cível nº 0002984-92.2016.4.05.9999, a apelante insurgiu-
se contra sentença que julgou improcedente pedido de concessão de aposentadoria
rural por idade ao considerar que a autora não preenche os requisitos necessários
para a concessão do benefício previdenciário. Ela asseverou que, embora o
magistrado tivesse determinado a realização de nova audiência de instrução
porque a mídia digital que continha o registro da audiência realizada inicialmente
estava corrompido, essa não foi realizada, o que cerceou o direito à defesa pela
impossibilidade da oitiva das testemunhas. Por considerar que a produção de prova
testemunhal é de extrema importância nas demandas que envolvem benefícios
previdenciários, a 3ª Turma entendeu – na decisão de 09/02/2017 – que houve
violação ao direito de produzir prova, pela inocorrência da audiência, com base nos
arts. 5º, LV, CF/88; 8º, da CADH; e 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos.
Na Apelação Cível nº 0001157-57.2016.8.17.0920, a 1ª Turma seguiu
o mesmo entendimento, inclusive utilizando a mesma fundamentação, na decisão
datada de 09/09/2021, quando o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
suscitou que não houve designação de perícia social e sequer foi apresentado
formulário de composição da renda familiar, de modo a comprovar o princípio da
miserabilidade. Assim, não seria possível averiguar o preenchimento do requisito
econômico para a concessão do benefício.

524
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4.5 OUTROS TEMAS ABARCADOS NAS DECISÕES

Algumas decisões não se encaixaram em nenhum dos grupos de análise


acima listados, por tratarem de temas diversos, mas também se constituem como
exemplos de como o TRF5 tem aplicado a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e por isso serão comentadas a seguir.
A Apelação Cível nº 0002134-42.2012.4.05.8103 foi interposta contra
sentença que julgou improcedente o pedido formulado pelo autor de concessão
de benefício de pensão por morte, na qualidade de dependente da esposa falecida,
cujo óbito ocorreu em 30/11/1977. O apelante requereu a anulação da sentença
por ausência de audiência e alegou que o seu direito de receber o benefício advinha
de postulados universais de isonomia, presentes no Pacto de San José da Costa
Rica, além de outros diplomas internacionais. O TRF5 decidiu, em 07/05/2015,
que a matéria é exclusivamente de direito, não se justificando a produção de prova
testemunhal, além de seguir o disposto pelo juízo ad quo, entendendo que os
citados tratados internacionais não podem ser invocados por tratarem da igualdade
de condições entre homem e mulher no casamento e no caso de sua dissolução, e
não no regime de previdência social.
Noutro turno, a Apelação Cível nº 0000591-08.2011.4.05.8307 tratou
sobre a função social da propriedade, embora a tenha afastado. Deu provimento à
apelação de uma empresa concessionária de serviço público de transporte ferroviário
de cargas que requereu reintegração de posse e demolição das construções na área
arrendada de outra empresa. O juízo ad quo julgou o pedido improcedente, com
base na inatividade da linha férrea, na função social da propriedade e nas disposições
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Em 28/11/2017, a 2ª Turma
estabeleceu que a inatividade é relativa, já que a linha férrea pode voltar a funcionar
e que a função social da propriedade, seja prevista na Constituição Federal ou em
convenções internacionais, não se concebe ao arrepio da legislação.
No Agravo em Execução Penal nº 0813199-07.2017.4.05.8400, discutiu-
se o direito à visita. A agravante requereu o direito à visitas sociais e íntimas com seu
companheiro, alegando, entre outras questões, a violação ao artigo 5°, §§ 1° e 2°,
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A 3ª Turma posicionou-se, em
20/06/2019, pela ausência de transgressão às referidas disposições, já que, embora
o sistema jurídico enxergue a visita íntima como forma de humanização da pena,
também admite restrições a este direito, que não é absoluto.

525
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Já a Apelação/Remessa Necessária nº 0800803-41.2016.4.05.8300 lidou


com a questão da readaptação e promoção de patente de militar. Segundo decisão de
20/06/2019, a 3ª Turma firmou entendimento de que, dada a natureza da atividade
exercida pelos militares, seria legítima a restrição de pessoas incapazes para o ofício,
de modo que não se constituiria violação ao princípio da isonomia ou da dignidade
humana. Desta feita, não estariam feridos os dispositivos do tema, constantes na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou na Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, suscitados pela defesa do militar.
Outro tema discutido pelo Regional foi a compatibilidade da Lei
de Improbidade (Lei nº 8.429/1990) – na figura da antiga redação do art. 12,
referente às penalidades impostas aos agentes infratores - com o Pacto de San José,
especificamente com o art. 23 da normativa internacional, que protege os direitos
políticos43.
Esse foi o propósito do Agravo de Instrumento nº 0809935-
54.2020.4.05.0000, julgado em 11/02/2021. A 3ª Turma decidiu que não vê
incompatibilidade entre os textos porque a sanção de suspensão dos direitos políticos
no caso de improbidade administrativa decorre do próprio texto constitucional (art.
37, § 4º) e o Pacto não tem força de emenda. Citou-se inclusive o Min. Ricardo
Lewandowski, no julgamento da Reclamação 18.183/DF: “Constituinte originário
dispôs expressamente quais seriam as sanções para os agentes que sejam condenados
por atos de improbidade administrativa [...]. O art. 12 da Lei 8.429/1992, portanto,
apenas dá cumprimento ao comando do legislador originário”44. Por fim, negou-se
provimento ao agravo interposto por um dos demandados contra sentença do juízo
ad quo.
Em conclusão, cita-se a Apelação nº 0808228-47.2015.4.05.8400,
que abarca a solidariedade familiar e o dever de família. Em acórdão exarado em

43 Artigo 23. Direitos Políticos. 1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportu-
nidades: de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes
livremente eleitos; de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio uni-
versal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e de ter acesso,
em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país. 2. A lei pode regular o exercício
dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade,
nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz
competente, em processo penal.
44 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 18.183/DF. Relatora: Ministra Cármen Lú-
cia. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, 16 dez. 2014.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

14/09/2021, a 2ª Turma aplicou o art. 32 da CADH45, deixando claro o dever


assistencial que incumbe aos membros integrantes da família, em meio à insurgência
da União e de executado contra sentença que julgou demanda que objetivava
adimplemento de créditos tributários referentes a lançamento suplementar de
imposto de renda, no que tange à dedução de pensão alimentícia paga à ex-mulher
do apelante e de despesas médicas da filha menor. Entendeu-se, então, que a conduta
do executado valorizou os princípios da solidariedade familiar e da dignidade da
pessoa humana por cumprir espontaneamente as obrigações de prestar alimentos e
que não poderiam ser restringidos os efeitos benéficos da obrigação cumprida (art.
4º, inciso II, da Lei 9.250). Assim, manteve a decisão que reconheceu a pensão
alimentícia como dedutível, mas negou provimento à apelação do executado no
que se refere às despesas médicas com a filha.

4.6 CASOS DE CITAÇÃO DA CONVENÇÃO

Por fim, urge a análise das decisões que fizeram somente menção à
CADH. Notou-se, nesse sentido, que a maioria delas foi encontrada como resultado
da pesquisa por trazer os termos assinalados (“convenção americana” e “pacto de
san jose”), dentro do filtro temporal selecionado (2015-2022), por apresentá-los
nos relatórios - e não como fundamentação. Ou seja, normalmente uma das partes
- apelantes, recorridos ou impetrantes - sinalizavam os dispositivos da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos infringidos, ao seu ponto de vista, mas não
eram analisados per si em meio à fundamentação e, consequentemente, como ratio
decidendi.
Assim, no total, 15 decisões seguiram essa linha, as quais serão comentadas
brevemente a seguir.
Quanto ao direito à defesa, 3 acórdãos citaram a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos. É o caso da Apelação Criminal nº 0003780-
98.2014.4.05.8400, na qual a Defensoria Pública da União (DPU) arguiu nulidade
insanável de cerceamento de defesa, consistente na ausência de notificação do
acusado, suscitando o art. 8°, 2, d, da CADH, mas a decisão de 05/08/2021 fez
mera menção à passagem exposta, não usando o Pacto como fundamentação;

45 Artigo 32. Correlação entre deveres e direitos. 1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a
comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais,
pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática.

527
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Outra oportunidade foi no Agravo em Execução Penal nº 0809085-


20.2020.4.05.8400, por meio da qual a defesa de apenado sustentou a
impropriedade da inclusão definitiva no Sistema Penitenciário Federal, em razão
da incomunicabilidade do detento por não ter tido acesso reservado aos causídicos
constituídos, o que fere o direito à ampla defesa, previsto na CADH, porém,
afastada pela 1ª turma por insuficiência probatória;
E, enfim, o HC nº 0812076.46-2020.4.05.0000, em que a DPU
insurgiu-se contra decisão que estabeleceu audiência de instrução e julgamento por
videoconferência, aduzindo que a presença física em audiência decorre do direito
de autodefesa e do direito ao confronto com base na CADH, embora o TRF5 tenha
entendido que a videoconferência em si não prejudica a prática do ato processual
e é uma medida de biossegurança necessária em meio à pandemia do COVID-19.
No que tange à produção de prova, 2 foram os julgados: o da Apelação
Criminal nº 0812003-74.2018.4.05.8300, na qual a defesa do réu ofereceu
embargos para esclarecer decisão que determinou alienação de veículo apreendido
na operação Torrentes e prequestionou dispositivos da CADH, os quais a 3ª Turma
entendeu que não guardavam pertinência temática com o assunto debatido, de
modo que não mereciam ser analisados em razão da ausência de interesse recursal.
Noutro lado, na Apelação Criminal nº 0001579-10.2012.4.05.8205,
um dos apelantes suscitou que elementos de prova produzidos pelo MPF seriam
inadmissíveis (quebra de sigilo bancário e de dados sem autorização judicial),
impondo-se o seu desentranhamento em atenção, entre outras normativas, à
Convenção, pelo que a 2ª Turma permaneceu silente a respeito.
Sobre intempestividade de apelações, foram encontrados os Recursos
em Sentido Estrito nº 0805955-08.2018.4.05.8201 e 0802104122019405.8302.
Em ambas, a defesa dos apelantes insurgiram-se contra decisão que reputou como
intempestiva a apelação, não se efetivando seu recebimento, e suscitaram disposições,
entre outras normativas, da CADH. Na primeira, deu-se provimento ao recurso,
embora silente o acórdão sobre os dispositivos prequestionados, levando-se em
conta a vontade do réu de recorrer e o erro do advogado por poucos dias.
A segunda não teve o mesmo desfecho - mesmo com a alegação da defesa
de que o prazo deveria ser contado de acordo com a segunda decisão do magistrado
de piso e não a primeira, tendo em vista que aquela complementaria esta e que
a decisão que declarou a intempestividade violaria o princípio do duplo grau de
jurisdição previsto no Pacto de San José da Costa Rica - porquanto o Regional

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

decidiu que o duplo grau de jurisdição não equivale à revisão obrigatória de toda
decisão proferida pela instância a quo, mas que devem ser respeitados os requisitos
de admissibilidade, negando provimento ao recurso.
Sob outro prisma, os Habeas Corpus nº 0802654-47.2020.4.05.0000,
julgado em 28/04/2020, e 0803556-97.2020.4.05.0000, julgado em 20/06/2020,
foram impetrados pela defesa, aduzindo que as prisões mereciam pronta revogação
ou substituição por outra espécie de medida cautelar, com fulcro na CADH, na
Resolução nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça e outras legislações. As
duas ordens foram concedidas, embora não tenha sido usada a Convenção como
fundamentação, mas somente citada nos relatórios.
Na Apelação Cível nº 0802600-68.2015.4.05.8500, julgada em
07/10/2021, foi citada no relatório por meio de referência ao alegado pelo
Ministério Público ao propor a ação, que tinha como objeto a adaptação dos prédios
públicos da União e do Estado de Sergipe, com vistas a tornarem-se acessíveis às
pessoas com deficiência em meio aos dias de votação. Os entes insurgiram-se contra
a sentença que julgou parcialmente o pedido e os condenou solidariamente. Frisa-
se que se decidiu, por unanimidade, pelo provimento das apelações, em razão da
impossibilidade da adaptação de todos os prédios pela limitação de recursos para
tanto e que o Tribunal poderia ter feito uso dos artigos mencionados pelo Parquet
Federal, especialmente os 1º e 4º no tocante ao direito à igualdade, o que não foi
feito.
O acórdão da Apelação nº 0805320-27.2018.4.05.8201 utiliza a CADH
– na figura do art. 20 – como exemplo de que o direito de nacionalidade é anterior
à Constituição Federal de 1988 e por isso negou o recurso da União que pretendia
anular sentença que homologou opção pela nacionalidade brasileira manifestada
pela requerente, nascida no Paraguai, filha de mãe brasileira e residente no Brasil,
e autorizou registro de seu termo de nascimento em Cartório de Registro Civil
de Campina Grande/PB, pedindo que a situação fosse analisada com base na
CF/1967, que regia o assunto na época do nascimento.
No processo nº 0805239-09.2019.4.05.0000, o denunciado pelo
Ministério Público Federal pelo crime de falsidade ideológica em continuidade
delitiva defendeu-se alegando, entre outros argumentos, que seu silêncio – no fato
de não ter ele respondido a ofício que lhe foi encaminhado na fase investigatória
– não pode ser considerado em seu desfavor, sob pena de ofensa à Convenção
Americana de Direitos Humanos (artigo 8º, §2º, especialmente), dentre outras. O
Pleno recebeu a denúncia e não comentou sobre a CADH.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

O HC nº 0813951-51.2020.4.05.0000, por seu turno, mencionou-a


nas razões do impetrante, por meio do amparo da pretensão no art. 7º, alegando
que a manutenção da prisão preventiva não teria legítima motivação, mas somente
restringiria a liberdade do paciente. A 2ª Turma concedeu a ordem em parte, mas
não baseou sua decisão na Convenção.
Quanto ao Habeas Corpus nº 0802547-66.2021.4.05.0000, tratou-
se sobre a liberdade de expressão e manifestação, ao que o impetrante defendia
o trancamento da ação penal que buscava sua condenação por crime de calúnia
e injúria contra juiz federal, utilizando-se do argumento de que foi em exercício
de seu direito de expressão e crítica que publicou artigo em blog que envolveu o
magistrado. A 4ª Turma acabou por conceder a ordem pleiteada e citou o ADPF
187/201146 na fundamentação e, por essa razão, a decisão apareceu entre os filtros
da pesquisa.
No ED nº 0801419-79.2019.4.05.0000, julgou-se embargos de
declaração opostos por um dos demandados de ação de improbidade administrativa
citada no tópico anterior, em face do acórdão que negou provimento ao agravo de
instrumento interposto contra decisão que recebeu a petição inicial. Citou o Pacto de
San José da Costa Rica por trazer a ementa do Ag nº 0809935-54.2020.4.05.0000.
Neste diapasão, percebe-se que, na maioria dos casos comentados acima,
os acórdãos apresentaram dispositivos de direito interno na fundamentação e
somente citaram a Convenção brevemente, mas permaneceram silentes quanto à
suscitação dos dispositivos internacionais pelas partes recorrentes.

46ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ADMISSIBI-


LIDADE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE (Lei nº 9.882/99, art.
4º, § 1º). JURISPRUDÊNCIA. POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DA ADPF QUANDO
CONFIGURADA LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL PROVOCADA POR INTERPRE-
TAÇÃO JUDICIAL (ADPF 33/PA e ADPF 144/DF, v.g.). ADPF COMO INSTRUMENTO VIA-
BILIZADOR DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO – CONTROVÉR-
SIA. CONSTITUCIONAL RELEVANTE MOTIVADA PELA EXISTÊNCIA DE MÚLTIPLAS
EXPRESSÕES SEMIOLÓGICAS PROPICIADAS PELO CARÁTER POLISSÊMICO DO ATO
ESTATAL IMPUGNADO (CP, art. 287). MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. PRECEDENTES
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ADPF CONHECIDA. STF. ADPF 187/DF. Rel. Min.
Celso de Mello. DJe de 15/06/2011.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

5 CONCLUSÃO

Diante do cenário supranarrado, percebe-se que a Convenção Americana


sobre Direitos Humanos impactou diretamente não só o Sistema Americano de
maneira geral, mas todos os Estados signatários especificamente, como é o caso
do Brasil. Sua adesão provocou mudanças significativas no âmbito interno,
principalmente no que diz respeito à adaptação da jurisprudência e legislação
pátrias, com vistas a seguir o entendimento disposto no Pacto.
No entanto, nota-se certa reserva do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região em aplicá-la ou, se aplicada, a determinação de utilizá-la de modo a seguir
as normas de direito interno, o que fere a própria essência do Pacto. Visualizou-
se, assim, que os casos de aplicação da Convenção pelo Tribunal Regional Federal
da 5ª Região, ainda são pouco expressivos, se comparado ao número de ações que
adentram o sistema em questão a cada ano e, mesmo que as decisões ali exaradas
façam menção ou utilizem o Pacto de San José como ratio decidendi, frequentemente
complementam o entendimento com a legislação interna, de modo que não o aplica
enquanto normas dotadas de completude.
Das 4 turmas do Tribunal, além do Pleno, a Segunda e a Terceira Turma
foram as que mais usaram a Convenção na Fundamentação de suas decisões, com
8 acórdãos cada. No que diz respeito aos temas tratados, o Direito à Defesa (6
decisões) e o Crime de Desacato (4 decisões) foram os mais corriqueiros, embora o
posicionamento do TRF5 no que diz respeito a esse último ponto seja inconvencional.
Ainda, no que tange aos desembargadores, os relatores que mais aplicaram o Pacto
– ainda que de maneira contrária ao estipulado – foram os Desembargadores
Federais Paulo Roberto de Oliveira Lima (Processos 0000591-08.2011.4.05.8307,
0803137-19.2016.4.05.0000 e 0002667-37.2013.4.05.8500) e Ivan Lira de
Carvalho (Processos 0000492-54.2016.4.05.0000, 2006.81.00014003-8 e
2008.83.00018733-0).
Pontua-se, finalmente, que fato comum foi o silêncio dos julgadores no
que diz respeito à suscitação de dispositivos da Convenção como fundamentação
de recursos dos recorrentes, como é o caso das 15 decisões em que houve somente
a citação da tratativa internacional.
Urge, portanto, o desenvolvimento da consciência de que a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos – ainda que considerada em seu caráter de
supralegalidade e não de emenda constitucional – é extremamente necessário ao

531
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nosso Judiciário e sua utilização deve ser plena, de modo a salvaguardar os direitos
de todos os indivíduos envolvidos no processo.

532
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536
A efetividade das Soluções Amistosas no âmbito do Sistema
Interamericano: um estudo à luz dos casos brasileiros

Josikleia Micharly do N. S. Bezerra1


Thiago Oliveira Moreira2
José Orlando Ribeiro Rosário3

1 INTRODUÇÃO

As soluções de controvérsias em âmbito internacional propiciaram


algumas convenções, com fins de se buscar Soluções Pacíficas ante os Conflitos
Internacionais, em que pese razões jurídicas e políticas, haja vista envolverem
violações de tratados e convenções, ou conflitos de interesses concernentes a defesa

1 Mestranda do programa de Pós- graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, na área de concentração Constituição e Garantias de Direitos. Graduada em Direito pela
Universidade Potiguar do Rio Grande do Norte, com Especialização em Teoria e Prática de Processo
judicial – UNP. Advogada militante em Direito Civil – especialmente em Direito de Família com
atuação em processos de Inventário. Atualmente, exercendo a função de Conciliadora na Justiça Fe-
deral do Rio Grande do Norte (JFRN) e na Câmara de Conciliação de Mediação e Arbitragem do Rio
Grande do Norte (CCMEAR). E-mail: micharlyadv@yahoo.com.br.
2 Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Chefe do Departamento de
Direito Privado da UFRN. Vice Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade del País Vasco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq/UFRN) Direito Internacional e as Pessoas em Situação
de Vulnerabilidade. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. E-mail: thiago.moreira@ufrn.
br.
3 Possui Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (1976), Mestrado em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (1998) e Doutorado em Di-
reito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP (2011). Atualmente é Professor
Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Chefe do Departamento de Direito
Processual e Propedêutica desta mesma instituição. Tem experiência na área de Direito Público e
Processual. E-mail: orlando09ribeiro@gmail.com.

537
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da honra de um Estado. Dentre elas, as Convenções de Haia de 1899 e 1907, bem


como, o Ato Geral para Solução Pacífica de Controvérsias Internacionais de 1928,
denominado de Ato Geral de Arbitragem de Genebra4.
Ainda se fazendo imperioso destacar dois grandes marcos importantes: o
Tratado Interamericano sobre bons Ofícios e Mediação de 1936, e o denominado
Pacto de Bogotá oriundo do Tratado Interamericano de Soluções Pacíficas de
Litígios de 19485. Ambos perquirindo a solução de controvérsias no âmbito do
Direito Internacional Público, conforme se depreende do artigo 2.3 da Carta das
Nações Unidas, no qual se fomenta a pacificação nas resoluções de controvérsias
internacionais, que não comprometam ou ameacem a paz, a segurança e a justiça
internacionais. Somando ainda ao que preceitua o artigo 33 da mesma carta.
Ou seja, a busca por resoluções suasórias sob a ótica do consenso e
da pacificação, favorece a aplicabilidade dos Meios Alternativos de Soluções de
Conflitos no âmbito Internacional, de forma ampla. Seja pela via da negociação,
mediação, arbitragem, solução judicial, recurso às entidades ou acordos regionais,
ou a qualquer outro meio pacífico que favoreça o acordo e o consenso. Portanto, se
mostrando tais institutos, instrumentos eficazes em prol da paz social.
Nessa perspectiva, abrolham as Soluções Amistosas, como sendo um
mecanismo importante visando soluções pacíficas de conflitos no âmbito do Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH). Porém, sendo palco
de grandes discussões jurídicas, especialmente nos casos em que o Brasil foi parte,
conforme será melhor explicitado adiante.

4 As Convenções da Haia de 1899 e 1907 estão, juntamente às Convenções de Genebra, entre os


primeiros tratados internacionais sobre leis e crimes de guerra. Foram estabelecidas na Primeira e na
Segunda Conferências de Paz, na cidade da Haia, Países Baixos. Oficialmente são chamadas: Conven-
ção sobre a Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais (1899); Convenção sobre a Resolução
Pacífica de Controvérsias Internacionais (1907). Com o tempo, foi cunhada a expressão Convenção
da Haia ou Conferência da Haia para designar uma série de acordos multilaterais entres diversas
nações do mundo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%B5es_da_
Haia_(1899_e_1907). Acesso em: 20 set. 2021.
5 Guido Soares observa que de uma maneira geral esses tratados normalmente não foram invocados
pelos Estados em situações reais e que o que se tem verificado, no curso da história e cada vez com
mais frequência, é a prática dos Estados em incluírem nos tratados ou convenções cláusulas especiais
denominadas de “cláusulas de soluções pacíficas de controvérsias”, nas quais se dispõe sobre os proce-
dimentos a serem tomados em caso de eventuais e futuras controvérsias entre os mesmos. SOARES,
Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004. v. 1. p.
165-166.

538
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Dessa forma, em razão dos casos de violações submetidos a Corte


Interamericana de Direitos Humanos resolvidos através do referido instituto,
especialmente os casos em que o Brasil foi parte, aufere-se o seguinte questionamento:
é possível vislumbrar uma real efetividade na aplicação das Soluções Amistosas
inerentes aos Meios Alternativos de Solução de Conflitos, nos casos de violações
aos Direitos Humanos?
Almejando sanar as indagações neste sentido, o presente artigo busca
analisar a priori as Soluções de Conflitos em âmbito Internacional, para, por
conseguinte, perquirir um estudo a respeito do mecanismo das Soluções Amistosas
no âmbito do Sistema Interamericano sobre a Proteção de Direitos Humanos, e
em especial nos casos em que o Brasil foi parte, abordando inicialmente breves
aspectos sobre o referido sistema para, por conseguinte, trazer uma exploração
específica dos casos em que o Brasil foi parte, sob a ótica da problemática apontada.
Não se excetuando as possíveis críticas quanto a falta de razoabilidade de algumas
reparações e indenizações frente as violações comprovadas nos mencionados casos.
Assim, a pesquisa perpassará pelo que preceitua a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos em sua fundamentação legal, dando ênfase a alguns
artigos, e, por conseguinte, trazendo uma abordagem descritiva sobre as Soluções
Amistosas de conflitos envolvendo Interesses Individuais e Direitos Humanos a luz
dos casos brasileiros, que por sua vez refletem diretamente na ordem social.
Concernente a metodologia utilizada, o presente estudo possui natureza
aplicada, com pesquisa bibliográfica, abordando a fundamentação legal que ampara
a matéria, com uma análise descritiva e indutiva, trazendo ainda uma abordagem
qualitativa. Contudo, se apresentando de natureza teórica e empírica, uma vez que
analisa dados, para fins de se obter respostas que poderão atestar a incidência e a
eficiência da aplicação das Soluções Amistosas no âmbito interamericano, levando
em consideração, especialmente os casos em que o Brasil foi parte, investigando
dados estatísticos quanto as submissões, homologações e reparações, frente aos
casos admitidos que foram resolvidos através do referido instituto.
Logo, visando resultados relevantes concernentes a necessidade de uma
maior ampliação da utilização das Soluções Amistosas, o presente estudo traz dados
estatísticos que apontam o percentual de incidência de demandas levadas a Corte
para fins de submissão, e que por sua vez foram resolvidos através do mecanismo
em comento, sejam demandas que ainda encontram-se em trâmite, sejam demandas
que ainda não foram homologadas em virtude de eventuais condições estabelecidas
pelas partes, conforme será detalhado no deslinde do artigo.

539
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Desta feita, tais dados subsidiará a pretensão da pesquisa, que por seu
turno busca produzir um texto científico que traga uma exploração relevante quanto
a real efetividade da aplicação das Soluções Amistosas, especialmente nos casos em
que o Brasil foi parte. Contribuindo ainda para uma melhor conscientização a
respeito da necessidade de se fomentar o consenso e o diálogo através dos Meios
Alternativos de Soluções de Conflitos, preponderando precipuamente o respeito
aos Direitos Humanos.
Contudo, a justifica da presente pesquisa, se dá em razão da necessidade de
se ampliar o debate sobre a efetividade das Soluções Amistosas no âmbito do SIPDH,
para fins de trazer não só uma contribuição acadêmica relevante, mas também
fortalecer a ideia de consenso nas situações de lide envolvendo os Direitos Humanos.
Precipuamente, fomentando uma reflexão salutar a respeito da efetividade e do
cumprimento integral das reparações nesse sentido, numa perspectiva doutrinária.
Dessa forma, incentivando a sociedade em âmbito internacional, a utilizar com
mais afinco o referido instituto, prezando sempre por uma maior garantia no que
tange o cumprimento das imputações e reparações às vítimas, ou as famílias que
tiveram seus Direitos Humanos violados, favorecendo uma maior proteção, e por
consequência coibindo todo e qualquer tipo de violação, nos termos do artigo 1º
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH)6.

2 SOLUÇÃO DE CONFLITOS EM ÂMBITO INTERNACIONAL

Desde os primórdios da civilização humana, conflitos sempre foram


evidenciados, especialmente no âmbito internacional. Logo, em que pese a referida
assertiva, vale trazer à baila a conceituação dada pela Corte Permanente de Justiça
Internacional ao inferir que controvérsia internacional é todo desacordo sobre certo
ponto de direito ou de fato, uma contradição ou uma oposição de teses jurídicas ou
de interesses entre dois Estados7. Sendo ainda definido pela Corte de Haia, como

6 CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica,


1969 – ratificada pelo Brasil em 25.09.1992. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestu-
dos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm. Acesso em: 26 set. 2021. Art. 1º “Os Estados-partes
nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu
livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por mo-
tivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional
ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”.
7 NOVO, Benigno Núñez. Mecanismos de soluções de conflitos internacionais. 2021. Artigo publicado
pelo Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – CONIMA. Disponível em:
https://conima.org.br/mecanismos-de-solucoes-de-conflitos-internacionais/. Acesso em: 5 jan. 2022.

540
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

sendo todo desacordo entre fato ou direito entre dois Estados, ou um determinado
conflito entre duas teses jurídicas entre dois Estados.
Nesse contexto, frente aos tantos conflitos envolvendo os Direitos
Humanos, e ante as inúmeras situações de intolerância configuradas pelas mais
variadas formas de violência nas relações sociais, onde se evidencia um verdadeiro
desrespeito aos direitos fundamentais – faz-se imprescindível estabelecer novas
formas de resoluções de conflitos que visem além de reparações em sentido prático,
a pacificação social. Logo, a ideia de consenso se mostrando amplamente eficaz
para fins de resoluções pacíficas sob a ótica do diálogo nos embates de ordem
Internacional, tendo em vista a grande incidência de violações aos Direitos
Humanos universalmente consagrados.
Assim, ante um determinado conflito a nível Internacional, seja em
qualquer esfera, os Estados geralmente pugnam por resoluções pacíficas, conforme
a adequação de cada caso concreto, e de acordo com as suas possibilidades. Como
é o caso da República Federativa do Brasil, que em sua condição de Estado
Democrático de Direito e a partir do advento da Constituição Federal de 1988,
tem galgado uma melhor atuação nas demandas envolvendo Direitos Humanos,
utilizando-se de Meios Alternativos de Solução de Conflitos.
Dessa forma, apresentando tais meios como sendo um mecanismo
eficaz na busca por resoluções pacíficas no referido âmbito, especialmente através
das Soluções Amistosas, que por seu turno buscam dirimir o conflito pela via da
negociação, da conciliação e do consenso, com fins de além de resolver a contenda,
trazer a reparação justa e equilibrada frente aquele que teve seu direito humano
violado. Embora passível de críticas, em alguns casos, no tocante as reparações
imputadas ao Estado violador.
Enfatiza-se, portanto, que ante os conflitos em suas mais variadas ordens,
especialmente em âmbito internacional, restou-se evidenciada uma necessidade de
se ampliar o debate sobre os Meios Alternativos de Solução de Conflitos, com
escopo de promover a paz social e fomentar resoluções pacíficas, conforme algumas
convenções que se deram para este fim, dentre as quais é possível citar as Convenções
de Haia (1899 e 1907), bem como, o Ato Geral para solução pacífica de conflitos
internacionais no ano de 1928 – denominado como Ato Geral de Arbitragem de

541
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Genebra – Todas com o objetivo comum de buscar maior proteção aos Direitos
Humanos em sua universalidade8.
Por fim, e coadunando-se, o artigo 1º do Decreto 19.841/459 elenca os
propósitos das Nações Unidas, estabelecendo suas premissas com base nos ditames
legais entabulados, e tantos mais que amparam a temática, depreendendo-se a
necessidade e a importância das Soluções Amistosas nas resoluções de conflitos em
âmbito Internacional, corroborando com a ideia de que o diálogo é uma ferramenta
basilar ante os conflitos na ordem Internacional.

3 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS E O MECANISMO DE SOLUÇÕES AMISTOSAS

Em 10 de dezembro de 1948, a Organização dos Estados Americanos


(OEA) através da Carta de Bogotá, instituiu o Sistema Interamericano de Proteção
dos Direitos Humanos (SIPDH), em sua premissa de complementar de forma
subsidiária os ordenamentos dos 35 países do continente americano, no qual o
Brasil está inserido.
Dessa forma, existem atualmente três principais documentos do SIPDH
que amparam a temática, quais sejam: 1) a Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem (DADDH); 2) a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (CADH), ou Pacto de São José da Costa Rica de 1969, que por seu turno,
trata de direitos individuais e políticos; 3) e o Protocolo Adicional à Convenção
Americana de Direitos Humanos, ou Protocolo de San Salvador de 1988, no qual
elenca direitos econômicos, sociais e culturais10. Todos com o mesmo propósito de
proteção aos Direitos Humanos.

8 LOPES, Ana Maria D´Ávila Lopes; CHEHAB, Isabelle Maria Vasconcelos. Bloco de constituciona-
lidade e controle de convencionalidade: reforçando a proteção dos direitos humanos no Brasil. Revista
Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 12, n. 2, p. 82-94, 2016. Disponível em: https://seer.imed.edu.
br/ index.php/revistadedireito/article/view/1367/1004. Acesso em: 20 set. 2021.
9 BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Capítulo I – Propósitos e Princípios.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm. Acesso em:
20 set. 2021.
10 LOPES, Ana Maria D´Ávila Lopes; DAMASCENO, Maria Lívia. Damasceno. Procedimento de
solução amistosa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos: casos brasileiros. Pensar
– Revista de Ciências Jurídicas, v. 25, n. 2, p. 1-18, abr./jun. 2020. Disponível em: https://periodicos.
unifor.br/rpen/article/viewFile/10162/pdf. Acesso em: 22 set. 2021.

542
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Contudo, para fins de submissão de eventuais casos a Corte


Interamericana de Direitos Humanos – que por sua vez é a fase de judicialização
das violações – os casos devem ser levados a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Logo, tanto a CIDH quanto a Corte atuam conforme as competências
que lhes foram outorgadas pela via da instrumentalização legal inerente ao Sistema
Interamericano. Ambas possuindo ainda a premissa de garantir e fiscalizar para que
os Estados cumpram fielmente todos os tratados e convenções Interamericano de
Direitos Humanos.
Nessa perspectiva e com base em tais documentos inerentes ao Sistema
Interamericano, enfatiza-se os Meios Alternativos de Solução de Conflitos, através
das Soluções Amistosas como sendo um mecanismo eficaz nas situações de conflitos
e de violações, corroborando com a consagração dos tratados internacionais de
Direitos Humanos como fonte do direito interno, e com o tratamento constitucional
que lhe foi outorgado pelo constituinte de 198811.
Contudo, restando evidenciado que a sociedade a nível internacional,
tem perquirido incansavelmente formas de mitigação das violações dos Direitos
Humanos, buscando fortalecer a necessidade de aplicação de determinados
instrumentos que possam promover a justiça através do consenso. Fato que
justifica a ampliação do debate com relação ao referido instituto, afinal, as Soluções
Amistosas é um instrumento que pode subsidiar a busca pela proteção almejada, e
por conseguinte, a justiça em casos de violações.

3.1 BREVES ASPECTOS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS


HUMANOS

Em 1948 surgiu o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos


Humanos, aprovado pela Carta da OEA e pela Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem em 1959. A partir deste marco, restou instituída a Convenção
Americana, ou Pacto de são José da Costa Rica, bem como, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Dessa forma, dentre os 35 Estados- membros da OEA, 25 destes
reconheceram a necessidade de garantir as liberdades no sentido do termo, e tantos

11 MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela ju-
risdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bits-
tream/123456789/19482/4/A%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20dos%20Tratados%20Interna-
cionais%20de%20Direitos%20Humanos.pdf. Acesso em: 20 out. 2021.

543
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

mais direitos considerados garantias universais. Em razão disso, foram criados


órgãos especializados – a Comissão, e a Corte interamericana de Direitos Humanos
- que por sua vez compõem o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos. Afinal, a busca pela proteção e pela efetivação de tais direitos, tem sido
o grande desafio da humanidade, tendo em vista a necessidade de se combater
violações no sentido do termo.
Assim, em caso de violações aos Direitos Humanos, é possível buscar
primeiramente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
haja vista ser órgão representativo dos Estados-Membros da OEA, autorizada
a receber e processar denúncias ou petições em que se aleguem violações
nesse sentido. Logo, o trabalho e a atribuição da comissão em comento são
de suma importância, pois além de enviar, também analisa os casos em suas
particularidades, pugnando por soluções pacíficas sob a ótica do consenso,
bem como, por reparações justas.
Nessa toada, conforme se depreende, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, é uma espécie de Tribunal regional, com o escopo de
buscar a proteção dos Direitos Humanos, possuindo a função litigiosa e
contenciosa. A primeira, por interpretar os instrumentos internacionais de
Direitos Humanos, e a segunda, haja vista a atribuição de julgar os casos
encaminhados pela comissão. Todavia, possuindo ainda a competência
de realizar medidas provisórias quando suscitar urgência, como forma de
intervenção nos Estados- Membros, buscando coibir violações aos Direitos
Humanos, possuindo também a competência para julgar casos em que os
Estados Partes tenham expressamente reconhecido sua jurisdição.
Contudo, embora a Corte não possua competência para interferir
diretamente nos Estados em conflito, ela detém a possibilidade de realizar
audiências públicas para o direcionamento democrático dos casos, favorecendo
uma participação mais ativa da sociedade. Depreendendo-se que a finalidade
precípua dos referidos respaldos, é a possibilidade de outros Estados pactuados
intervirem, quando restarem vislumbradas graves violações aos Direitos Humanos,
sendo tal permissão proveniente do direito internacional. Portanto, se uma pessoa
ou organização social tiver seus direitos violados, será possível buscar instrumentos
de proteção que garantam a proteção de seus consagrados direitos, sendo tais
recursos considerados instrumentos de concretização.
Depreendendo-se em suma, que desde a instituição do Sistema
Interamericano, seus Estados membros adotaram diversos instrumentos de proteção

544
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

com a finalidade de assegurar e efetivar os Direitos Humanos no continente.12


somando-se ainda ao fato de que “a temática dos Direitos Humanos talvez seja um
dos pontos de maior destaque na agenda de discussão da sociedade internacional,
haja vista ser inegável a relevância da proteção ao ser humano a nível de ordem
jurídica internacional” conforme entendimento de Thiago Oliveira Moreira13.

3.2 AS SOLUÇÕES AMISTOSAS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE


DIREITOS HUMANOS.

Partindo da premissa de que a Declaração Universal de Direitos


Humanos, criada em 1948 tem como objetivo primordial a proteção dos Direitos
da pessoa humana – e por conseguinte, tanto a Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), quanto os regulamentos da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), e da Corte interamericana pugnam pela mesma
proteção - resta a assertiva de que existe o propósito comum de consolidação das
instituições democráticas, militando por um regime de liberdade pessoal e de justiça
social, fundado no respeito dos direitos essenciais do indivíduo, conforme dispõe
preambularmente a própria Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
Nesta mesma linha, reza o artigo 1º da referida convenção (CADH)14 que
os Estados Partes possuem o compromisso de respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos, garantindo o livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua
jurisdição, sem discriminação de qualquer natureza, “seja por motivo de raça, cor, sexo,
idioma, religião, opiniões políticas, origem nacional ou social, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social”, chancelando incontestavelmente a
tutela dos direitos humanos em tudo que lhes couber.

12 MOREIRA, Thiago Oliveira; CORTEZ, L. M. S. A tutela dos direitos humanos dos migran-
tes pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Cadernos de Dereito Actual, v. 8, p. 439-
452, 2017. Disponível em: http://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/
view/264. Acesso em: 20 out. 2021.
13 MOREIRA, Thiago Oliveira. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela ju-
risdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bits-
tream/123456789/19482/4/A%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20dos%20Tratados%20Interna-
cionais%20de%20Direitos%20Humanos.pdf. Acesso em: 20 out. 2021.
14 Ibid.,

545
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Dessa forma, e corroborando com o mesmo entendimento dos citados


instrumentos de proteção, surge o Sistema Interamericano15 resultante de uma
reunião dos Estados do continente americano no ano de 1889, com o intuito de
criar um sistema compartilhado de normas e instituições, sob a égide da conferência
internacional americana.
Com a referida reunião, na qual participou o Brasil, fora tomada a decisão
de fundar a União Internacional das Repúblicas da América, que posteriormente
se chamaria de União Pan- Americana, almejando inicialmente a elaboração de
um plano de solução de eventuais conflitos entre os Estados membros, visando
melhorar a comunicação e as relações em sentido amplo, objetivando a aplicação e
a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Nesse diapasão, vale enfatizar que os principais órgãos do Sistema
Interamericano visa assegurar assiduamente o cumprimento dos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, promovendo o respeito aos Direitos Humanos
pelos países membros. Assim, viabilizando o recebimento de petições e denúncias
de casos de violações junto a Comissão, que por seu turno elaboram relatórios
a respeito, sugerindo recomendações a serem seguidas pelas nações, como por
exemplo, o relatório sobre o Brasil em 1997, em que se recomendava mais celeridade
e praticidade nos procedimentos judiciais sob a ótica dos Direitos Humanos com
relação a defesa dos direitos dos índios de forma mais incisiva. Destacando ainda
que enquanto a Comissão elabora relatórios, a Corte Interamericana profere
sentenças e confecciona pareceres consultivos aos Estados membros da OEA.
Assim, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos visa fomentar
uma melhor proteção dos direitos fundamentais, primando por resoluções de
conflitos sob a ótica do consenso – princípio basilar dos Meios alternativos de
Solução de Conflitos – no qual desemboca o instituto das Soluções Amistosas.
Sendo a referida modalidade (Soluções Amistosas) em âmbito internacional, um
instrumento muito importante na busca por resoluções pacíficas no que concerne
os conflitos de direitos individuais e humanos.
Porém, em que pese a assertiva de casos submetidos e resolvidos
pela referida via, cumpre ressaltar que, embora haja uma efetividade bastante
considerável nesse sentido, ainda se evidenciam críticas no que tange a incidência

15 ESTATUTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Aprovado pela


resolução AG/RES. 448 (IX-O/79), adotada pela Assembleia Geral da OEA, em seu Nono Período
Ordinário de Sessões, realizado em La Paz, Bolívia, outubro de 1979. Disponível em: https://www.
cidh.oas.org/basicos/portugues/v.estatuto.corte.htm. Acesso em: 20 out. 2021.

546
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de casos admitidos e resolvido na Corte, em razão da falta de cumprimento integral


das imputações, e, ou, ante falta de razoabilidade de algumas reparações aos direitos
violados.
Todavia, ainda assim, as Soluções Amistosas apresentam-se como sendo
uma excelente contribuição social, não apenas por trazer resoluções práticas e
reparações àquele que teve seu direito violado, mas, precipuamente, por fomentar
a justiça e uma melhor pacificação das relações sociais, contribuindo para o
reconhecimento de responsabilidades que devem ser imputadas ao Estado violador.
Com isso, galgando uma maior proteção aos Direitos Humanos em sua premissa de
direitos universais, e, por conseguinte, desestimulando violações e qualquer espécie
de descriminação ou condutas inaceitáveis, nos termos do artigo 1º da CADH16.
Quanto as submissões e admissibilidades de casos, o regulamento da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), conforme dispõe no
artigo 40, itens 1ª a 617, infere que as Soluções Amistosas em sede de interesse
individual podem se dar por iniciativa da própria comissão ou a pedido das partes.
Porém, só será aprovado o relatório de conclusão do feio, se a pessoa que teve
seus direitos violados, estiver de acordo com o que fora convencionado através da
Solução Amistosa. Enfatizando que todas as situações de conflitos que se submetem
a Corte, deverão necessariamente estarem de acordo com os ditames da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e demais normatividades inerentes a matéria.
Nesse contexto, a fundamentação legal pertinente ao trâmite propriamente
dito, está inserida especificamente nos artigos 48 a 50 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, aduzindo para tanto a possibilidade de petição, ou
comunicação, que poderá ser dirigida a Corte Interamericana, quando ocorrer
violações aos direitos humanos em sua premissa de direitos universais.
Quando da admissibilidade de petições, requerimentos e comunicações
para este fim, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece requisitos
de admissibilidade preconizados no artigo 45 e seguintes do mesmo diploma legal,

16 ESTATUTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Aprovado pela


resolução AG/RES. 448 (IX-O/79), adotada pela Assembleia Geral da OEA, em seu Nono Período
Ordinário de Sessões, realizado em La Paz, Bolívia, outubro de 1979. Disponível em: https://www.
cidh.oas.org/basicos/portugues/v.estatuto.corte.htm. Acesso em: 20 out. 2021.
17 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Regulamento da Comissão In-
teramericana de direitos humanos. Aprovado pela Comissão em seu 137° período ordinário de sessões,
realizado de 28 de outubro a 13 de novembro de 2009. Washington D.C: CIDH, 2009. Disponível
em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/u.regulamento.cidh.htm. Acesso em: 25 set. 2021.

547
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

lecionando que tais comunicações deverão ser apresentadas por um Estado Parte
que haja feito declaração reconhecendo a competência da Comissão, não sendo
admitida nenhuma comunicação contra um Estado Parte que não haja feito tal
declaração18.
Imperioso destacar também, a necessidade de atendimento de alguns
requisitos imprescindíveis para que uma petição ou comunicação seja aceita pela
Comissão – conforme dispõe o artigo 46 da CADH19 em suas alíneas, para fins
de não incorrer em não aceitação do pedido ou comunicação. Destacando-se que
não há possibilidade de prorrogação no que concerne ao exame de admissibilidade
quando do protocolo da petição, ou da comunicação ante a Corte Interamericana
de Direitos Humanos. Ou seja, no ato da propositura da denúncia ou queixa a
Corte, esta deverá passar por um novo exame de admissibilidade20.
Nessa perspectiva, em sendo admitida a petição ou comunicação, se
fará necessário requerer informações ao Governo daquele Estado que praticou
tais violações, para posteriormente, serem estabelecidas as hipóteses elencadas no
artigo 4821 da respeitável Comissão. Para a partir de tais premissas ser realizado
uma espécie de citação com fins de conhecimento do inteiro teor das arguições

18 GUERRA, Sidney. Os Direitos Humanos Na Ordem Jurídica Internacional. Pensar – Revista de


Ciências Jurídicas, v. 14, n. 1, p. 106-115, 2009. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/
article/view/830/1573. Acesso em: 26 set. 2021.
19 CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica,
1969 - ratificada pelo Brasil em 25.09.1992. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodees-
tudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm. Acesso em: 26 set. 2021. Art. 46º “Para que uma
petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será
necessário: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os
princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de
seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da
decisão definitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de
solução internacional; e d) que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a pro-
fissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter
a petição. l”.
20 MACHADO, Isabel Penido de Campos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Comissão
e Corte de Interamericana de Direitos Humanos. ix: SILVA, Roberto Luiz; OLIVEIRA, Bárbara da
Costa Pinto Oliveiras (org.). Manual de direito processual internacional. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
417-447.
21 CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica,
1969 – ratificada pelo Brasil em 25.09.1992. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestu-
dos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm. Acesso em: 26 set. 2021.
548
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

proferidas, que em sendo pertinente, será instaurada investigação em face daquele


Estado que supostamente violou os direitos alegados.
Outrossim, nesta fase do procedimento, os Meios Alternativos de
Solução de Conflitos, podem ser utilizados com o intuito de propiciar uma Solução
Amistosa – situação em que direta ou indiretamente, é devolvido as próprias partes
a condição de resolução das lides – conforme dispõe o artigo 48.1, f, (CIDH).
Destacando por oportuno, a necessidade de consentimento das partes para este fim,
conforme dispõe o artigo 48.2 do regulamento da CIDH22, restando vislumbrado
de fato o respaldo legal da possibilidade de consenso, e de Soluções Amistosas frente
aos casos de conflitos envolvendo os Direitos Humanos.
Por fim, outra premissa no que concerne a autocomposição em si, é que a
comissão se dispõe – por meio de mediador – facilitar o consenso e buscar soluções
pela via das Soluções Amistosas. Traduzindo o artigo 1º da respeitável Convenção
(CDAH)23, a essência de sua finalidade precípua, que por sua vez é de fato exprimir
a obrigação de respeitar os Direitos Humanos em seu sentido amplo. Dessa forma,
estabelecendo que os Estados Partes deverão assim o fazer, reconhecendo os direitos
e liberdades nela entabulados, e primordialmente, garantindo o livre e pleno
exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, conforme também dispõe
o artigo 5º e seguintes da CADH24.

22 Artigo 48. 1. “Publicado um relatório sobre solução amistosa ou quanto ao mérito, que contenha
suas recomendações, a Comissão poderá adotar as medidas de acompanhamento que considerar opor-
tunas, tais como a solicitação de informação às partes e a realização de audiências, a fim de verificar
o cumprimento de acordos de solução amistosa e de recomendações.” Artigo 48. 2. “A Comissão
informará, na forma que considerar oportuna, sobre os avanços no cumprimento de tais acordos e
recomendações.” COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Regulamento
da Comissão Interamericana de direitos humanos. Aprovado pela Comissão em seu 137° período ordi-
nário de sessões, realizado de 28 de outubro a 13 de novembro de 2009. Washington D.C: CIDH,
2009. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/u.regulamento.cidh.htm. Acesso em: 22
out. 2021.
23 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Regulamento da Comissão In-
teramericana de direitos humanos. Aprovado pela Comissão em seu 137° período ordinário de sessões,
realizado de 28 de outubro a 13 de novembro de 2009. Washington D.C: CIDH, 2009. Disponível
em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/u.regulamento.cidh.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
24 CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica,
1969 – ratificada pelo Brasil em 25.09.1992. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodees-
tudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm. Acesso em: 26 set. 2021. Artigo 5º - “Direito à
integridade pessoal”.

549
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4 O BRASIL E AS SOLUÇÕES AMISTOSAS NO SISTEMA


INTERAMERICANO

No ano de 1988, o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana


de Direitos Humanos para receber e apreciar casos de violações dos direitos da
pessoa humana, fortalecendo o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos.
Contudo, o que se observa, é que durante esses 34 anos de aplicação
das Soluções Amistosas, em que foram aprovados 156 relatórios pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, no Brasil, somente quatro (4) casos tiveram
sua homologação pela via das Soluções Amistosa, sendo estes:

a) os casos 11.28925 referente ao adolescente José Pereira, que se deu em


24 de outubro de 2003;
b) os Casos 12.426 e 12.42726 referentes aos Meninos Emasculados do
Maranhão, que se deu em 15 de março de 2006;
c) o caso 12.277 da Fazenda Ubá, que se deu em 13 e 18 de junho de
1985;
d) o caso de Marcio Lapoente da Silveira 27.

Ante as referidas incidências, imprescindível destacar que apesar dos


quatro casos citados e ocorridos no Brasil terem sido homologados, muitos outros
que também foram levados a Corte, ainda se encontram em trâmite, ou pendente de
homologação, bastando uma simples análise das imagens abaixo colacionadas, para
se atestar a mencionada assertiva. Ressaltando ainda que dentre os casos em que o

25 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe Nº 95/03, 24 de


outubro de 2003. Caso 11.289 - Solução Amistosa - José Pereira. Brasil. Washington D.C: CIDH, 2003.
Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2003sp/Brasil.12289.htm. Acesso em: 26 set. 2021.
26 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe Nº 43/06, 15 de
março de 2006. Casos 12.426 e 12.427. Soluções Amistosas. Meninos emasculados do Maranhão.
Brasil. Washington D.C: CIDH, 2006. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2006sp/
Brasil12426sp.htm. Acesso em: 26 set. 2021.
27 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Relatório Nº 72/80, Pe-
tição P-1342-04, Márcio Lapoente da Silveira Admissibilidades Brasil, 16 de outubro de 2008. Dispo-
nível em:http://cidh.oas.org/annualrep/2008port/Brasil1342.04port.htm. Acesso em: 09 out. 2021.

550
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Brasil foi parte, nem todas as reparações ou responsabilizações foram integralmente


cumpridas, conforme se constata adiante.
Logo, para fins de ilustração, a figura 1 a seguir, aponta o total de casos
de Solução Amistosas admitidos no âmbito interamericano. Vejamos:

Conforme se depreende, a imagem acima colacionada aponta os casos


admitidos com resoluções pela via das Soluções Amistosas no âmbito interamericano
sob a ótica do consenso, perfazendo um total de 194 casos, porém, nem todos
homologados, em virtude de as partes condicionarem a referida homologação ao
cumprimento integral dos termos do acordo. Condições que podem ser impostas
tanto pela pessoa que teve seus direitos violados, quanto pelo Estado violador.28
A seguir, depreende-se da figura 02 a incidência de casos resolvidos e
homologados pela via das Soluções Amistosas em que o Brasil foi parte29.

Conforme se constata da figura 2, somente quatro (4) casos em que o


Brasil foi parte, foram submetidos a Corte, porém, do referido total, todos foram
resolvidos pela via das Soluções Amistosas. Ou seja, mesmo ante a pouca incidência

28 TRINDADE, Ivonei Souza. Solução amistosa de casos na CIDH e na Corte IDH: noções básicas.”
Clube De Autores, 2019. Acesso em: 20 out. 2021.
29 Informes Soluções Amistosas no Brasil. Disponível em: OEA: CIDH: Informes de Solução Amis-
tosa (oas.org). Acesso em: 22 set. 2021.

551
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de casos submetidos, depreende-se uma efetividade salutar da referida aplicação,


tendo em vista que todos os casos foram dirimidos pela via do consenso através da
Solução Amistosa.
Nesse sentido, embora seja evidenciada efetividade da aplicação do
mencionado instituto nos casos em que o Brasil foi parte, ainda não se constata
o cumprimento integral de todas as imputações e responsabilidades auferidas ao
Brasil em sede de acordo convencionado. Como ocorre com o caso 11.289 relativo
ao adolescente José Pereira, que apesar de ter sido devidamente homologado, no
que concerne a inclusão do crime na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de
25 de julho de 1990), ainda se aguarda a aprovação, tramitando por quase 20 anos
de forma “prioritária” (Regimento Interno da Câmara dos Deputados, art. 151,
II). Inclusive, em um dado momento, houve posicionamento contrário quanto a
referida alteração legislativa por parte do Ministro da Justiça.
Da figura 03, depreende-se o total de casos de Admissibilidade no âmbito
interamericano. Vejamos:

A imagem acima revela que 1.657 casos foram admitidos no âmbito


interamericano, porém, do referido total, apenas 194 foram resolvidos pela via
da Solução Amistosa, evidenciando-se a necessidade de se ampliar o debate neste
sentido, especialmente em razão da aplicabilidade de tal instituto já perpassar mais
de 34 anos. Se fazendo pertinente perquirir estudos, aguçar reflexões e desenvolver
trabalhos científicos que busquem comprovar a efetividade ora debatida, com fins
de se fomentar a proteção ideal, e almejada dos Direitos Humanos.

552
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Na figura 04 acima, evidencia-se o total de 101 casos admitidos, porém,


apenas 4 sendo resolvidos pela via das Soluções Amistosas. Depreendendo-se das
imagens colacionadas, que apesar das muitas submissões a Corte, ainda se mostra
escassa a aplicabilidade dos Meios Alternativos de Solução de Conflitos através
das Soluções Amistosas, embora o referido instituto já possua mais de 34 anos de
aplicação e se mostre efetivo.
Em suma, observa-se que no âmbito interamericano – até o presente ano
– poucos casos foram resolvidos através das Soluções Amistosas, porém, a pouca
incidência não pressupõe pouca efetividade ou eficiência. Na verdade, dos casos
submetidos em que o Brasil foi parte, por exemplo, todos foram resolvidos pela via
do referido instrumento de pacificação por assim dizer, evidenciando a efetividade
especulada.

4.1 O CASO DO ADOLESCENTE JOSÉ PEREIRA – 11.289

O caso do adolescente José Pereira ocorreu no Estado do Pará, onde


restou inconteste a situação de violação dos direitos humanos. Na verdade, não só
ele, mas sessenta pessoas viviam em uma fazenda trabalhando em situação análoga
à escravidão. Destarte, o adolescente José Pereira, com apenas dezessete (17) anos
de idade e outros companheiros, que eram obrigados a permanecer trabalhando
forçosamente em uma fazenda – em situação desumana e sem remuneração – foram
atingidos por bala de fuzil numa tentativa de fuga.
Do referido atentado, o jovem conseguiu sobreviver. Porém, um de seus
companheiros de luta, conhecido por “Paraná” não teve a mesma sorte. Dessa
chacina, José Pereira, mesmo em situação de lástima pelas balas que perpassavam
seu corpo, conseguiu caminhar até uma fazenda próxima onde recebeu seus
primeiros socorros. Contudo, e após o desfecho de tal caso, restou-se evidenciado
que tentativas como esta eram comuns naquela região, e que tais violações se davam
sempre em desfavor de homens pobres e agricultores analfabetos, ludibriados por
expectativas de vida melhor, inclusive, com promessas de trabalho digno, e de boa
remuneração.
O referido caso fora protocolado em 1994 ante a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, ensejando responsabilização ao Brasil através da Solução
Amistosa, embora passível de críticas no que tange a reparação. No mencionado
peticionamento, havia a queixa de que o Brasil violou os direitos humanos por
submeter direta ou indiretamente, pessoas a uma situação degradante. Ou seja, em

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

seu pretório, restava demonstrado que o País havia sido omisso, ou tinha permitido
de certa forma, tamanha afronta ao que é entabulado na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos e na Declaração Americana dos Direitos e deveres do
Homem.
Assim, a proibição de violação de direitos a que se refere o caso do
adolescente José Pereira, fora fundamentada inicialmente no que aduz o artigo 1º da
Convenção Americana de Direitos Humanos30, onde é imposto um dever legal de
respeito aos direitos e liberdades do homem. Consecutivamente, se estendendo tal
lecionar no artigo 6º que rechaça a situação da escravidão e da servidão, somando-
se ainda a alusão dos artigos 8º e 25º do mesmo diploma legal, em que se infere
as garantias e proteção judicial, enfatizando que são muitos os dispositivos que
fundamenta a matéria, não restando dúvidas quanto a determinação legal que coíbe
toda e qualquer violação nesse sentido.
Logo, vê-se que as razões apontadas em sede de exordial protocolada
junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, se deu em razão da
violência inconteste; na privação de liberdade e na imposição de endividamento
aos trabalhadores, haja vista lhes restarem condicionados que a saída daquele
local indigno somente se daria após a “quitação do débito” referentes a habitação,
comida, e até mesmo o translado da viagem31.
Com isso, restou viabilizada em sede de autocomposição, uma negociação
para fins de se alcançar uma Solução Amistosa referente ao caso em tela, quando
em 18 de setembro de 2003 – ou seja, após 13 anos do acontecido – o Estado
brasileiro representado pela secretaria especial de Direitos Humanos da presidência
da República e os peticionários que levaram a denúncia a Corte, celebraram um
acordo em sede de Solução Amistosa com fins de reparação pelos danos causados.
Contudo, o Brasil reconheceu sua responsabilidade internacional – apesar
do crime não ter sido praticado por seus agentes estatais – restando o referido
reconhecimento perante a Comissão, bem como, o reconhecimento público
durante a solenidade da criação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho

30 OEA: CIDH: Informes de Solução Amistosa (oas.org). Acesso em: 22 set. 2021.
31 LOPES, Ana Maria D´Ávila Lopes; DAMASCENO, Maria Lívia. Damasceno. Procedimento de
solução amistosa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos: casos brasileiros. Pensar
– Revista de Ciências Jurídicas, v. 25, n. 2, p. 1-18, abr./jun. 2020. Disponível em: https://periodicos.
unifor.br/rpen/article/viewFile/10162/pdf. Acesso em: 5 out. 2021.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Escravo (CONATRAE), instituída em julho de 200332, com fins de coordenar e


avaliar a implementação das ações previstas no plano Nacional para a Erradicação
do trabalho Escravo, com competência para acompanhar a tramitação de projetos
de lei no Congresso Nacional e avaliar estudos e pesquisas que envolve o trabalho
escravo no Brasil.
No que concerne ao acordo propriamente dito, restou consignado
entre as partes o sigilo quanto a identidade do adolescente no ato da solenidade,
e a responsabilidade do Brasil em relação às violações de Direitos Humanos
experimentadas pelo adolescente. Também foram imputadas medidas de naturezas
pecuniária no valor de R$ 52.000,00 (cinquenta e dois mil reais), a título de
indenização por danos morais; e de natureza preventiva, em que foram propostas
mudanças na legislação penal do Brasil, especialmente no artigo 149 do Código
Penal, através da Lei 10.803/200333, com a premissa de combater o trabalho escravo
ou condições análogas à escravidão.
Nessa perspectiva, restando também ao Brasil a incumbência de ratificar
a competência federal para conhecer e apreciar os crimes de redução análoga à
escravidão. Porém, além de não se ter havido ainda a mudança na legislação, e a
inserção do referido crime na lei de crimes hediondos, os criminosos não foram
punidos em razão do grande lapso temporal entre o inquérito e o oferecimento da
denúncia, restando evidenciado o não cumprimento integral do que fora avençado
no acordo.
Ou seja, apesar da efetividade da aplicação da Solução Amistosa, no caso
em tela, evidencia-se que até os dias atuais ainda não houve um cumprimento total
do que fora pactuado, caso em que ainda se aguarda (20 anos) em sede de prioridade
(Regimento Interno da Câmara dos Deputados, art. 151, II) pela aprovação da
alteração legislativa que por seu turno galga a inclusão do crime de redução à
condição análoga à de escravo na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25

32 COMISSÃO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO – CO-


NATRAE. Disponível em: https://coetraes.reporterbrasil.org.br/indexc583.html?page_id=28. Acesso
em: 5 out. 2021.
33 BRASIL. Lei nº 10.803, de 12 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar
as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. Brasília: Presidência da República,
2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.803.htm. Acesso em:
15 set 2021.

555
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

de julho de 1990)” 34. Dessa forma, ensejando o acréscimo do trabalho escravo ao


rol de infrações contra a ordem econômica, bem como, a punição do responsável
pelo crime cometido contra José Pereira. Porém, ante a ausência dos referidos
cumprimentos, resta evidenciado um total desrespeito do Estado Brasileiro no que
concerne compromisso assumido perante a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos.

4.2 CASO DOS MENINOS EMASCULADOS – 12.426 E 12.427

O caso dos Meninos Emasculados do Maranhão, (Caso 12.426 e


12.427), assim denominado, ocorreu em julho de 2001, na cidade de Paço do
Lumiar/ Maranhão, ensejando em um pretório inicial colacionado pelo Centro de
Justiça Global (CJG) e pela organização não governamental Centro de Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente Padre Passerine, ante a CIDH, em desfavor
do Brasil, denunciando o homicídio do menor Raniê Silva Cruz.
Naquele mesmo ano, e por crimes de mesma natureza – inclusive sendo
as vítimas encontradas com indícios de tortura e mutilação nos órgãos genitais –
também fora protocolado denuncia de dois homicídios dos menores: Raimundo
Nonato da Conceição Filho e Eduardo Rocha da Silva, ocorridos no ano de 1997,
também na cidade de Paço do Lumiar/ Maranhão.
Nas acusações contra o Brasil nesse sentido, restara a violações dos Direitos
Humanos, haja vista o Estado brasileiro não ter perquirido medidas de prevenção
aos crimes em comento, ocorrido com várias crianças que foram torturadas no
mesmo Estado, nem tampouco, ter dado o empenho necessário a apuração dos
crimes.
Por essa razão, o Brasil fora acusado de várias violações fundamentadas
nos artigos 1, 4, 6, 7, 8, 19 e 25, da Declaração Americana sobre Direitos Humanos
(CADH) Sendo-lhe imputada ainda a acusação de que o Estado brasileiro através
da Polícia do Estado do Maranhão e da Polícia Federal fora omisso na busca dos
menores.
Ante as acusações proferidas ao Brasil, o país até buscou se defender.
Porém, restou inconteste sua negligência, afinal, somente após doze anos do
primeiro homicídio, é que o Estado brasileiro conseguiu de fato elucidar os

34 MOREIRA, Thiago O.; GURGEL, Yara M. Pereira; LINS, Ricardo G. de Sousa. O trabalho
escravo contemporâneo no Brasil e o caso José Pereira: o que efetivamente mudou? Revista Jurídica
Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-30, 2021.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

casos. Desta forma, só depois desses longos anos é que fora possível identificar o
criminoso, que por seu turno confessou o assassinato de trinta (30) menores no
Estado do Maranhão, sendo 12 deles na cidade de Altamira no Estado do Pará.
Ante a confissão que se deu tardia, mas a tempo, finalmente o Réu foi condenado,
pairando especulações de que ele não agiu sozinho35.
Desta feita, em dezembro de 2005, fora celebrado acordo através de
Solução Amistosa, dando-se por encerrado os casos denominados “Os Meninos
Emasculados”, responsabilizando-se o Brasil internacionalmente pelos crimes em
comento. Sendo assim, além do reconhecimento público de responsabilização
em inauguração do Complexo Integrado de Proteção à Criança e ao Adolescente,
também fora instalada a título de reparação simbólica uma placa homenageando
as vítimas.
Ademais o Brasil ainda se comprometera a realizar o julgamento dos
criminosos, e cumprir reparações pecuniárias com o pagamento mensal no valor
de R$ 500,00 (quinhentos reais) para cada uma das famílias das vítimas a título
de indenização, perdurando tal obrigação por quinze (15) anos; que, “embora
algumas delas tenham demorado a ser efetivadas, contribuiriam para dar um certo
sentimento de justiça aos familiares das vítimas” conforme apontado por Lacerda36,
restando também a obrigação de inclusão das famílias dos menores em programas
de habitação de interesse social pelo período de um ano.
Em sede de medida de prevenção, ficara determinado que o Estado do
Maranhão capacitaria melhor e de forma mais específica o seu corpo policial no
enfrentamento de ocorrências com menores, melhorando suas estruturas físicas,
bem como, ficara determinado outras medidas de caráter social que melhor
atendam demandas dessa natureza, sendo criada uma Comissão Estadual de
Acompanhamento e Execução do Acordo de Solução Amistosa do Caso denominado
“Meninos Emasculados”.
Contudo, no que concerne as medidas imputadas ao Brasil, resta
evidenciado de que o referido compromisso intermediado pela OEA, não fora

35 LACERDA, Paula Mendes. A nossa “luta por justiça”: violência, trajetórias de mobilização e a
pesquisa antropológica contemporânea. FONSECA, Claudia et al. (org.). Antropologia e Direitos Hu-
manos 6. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. p. 15- 46. Disponível em: http://www.portal.abant.org.br/
publicacoes2/ livros/AntropologiaDireitosHumanos6.pdf Acesso em: 1 out. 2021.
36 LACERDA, Paula Mendes. O “Caso dos meninos emasculados de Altamira”: polícia, justiça e mo-
vimento social. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro. 2012.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

cumprido em sua integralidade. Restando cediço que apenas a reparação simbólica


em detrimento a placa que homenageia as crianças; o cumprimento da obrigação
pecuniária, e o julgamento do acusado foram cumpridas. No entanto, as demais
reparações e medidas imputadas não lograram êxito, haja vista algumas famílias
apesar de terem sido beneficiadas com o Programa de Habitação de Interesse
Social, encontram-se em péssimas condições estruturais de moradias, e outras
famílias foram obrigadas a pagar o terreno, onde o Estado deveria construir as
novas residências, fato que contraria o acordo de que não haveria nenhum ônus
para os familiares das vítimas37. Restando ainda pendências concernentes à política
de segurança pública e de educação, configurando-se, contudo, o desrespeito do
Brasil com relação ao compromisso formalizado.

4.3 O CASO MARCIO LAPOENTE DA SILVEIRA

Marcio Lapoente da Silveira, cadete da Academia Militar das Agulhas


Negras (AMAN), com idade de 18 anos, faleceu em 09 de outubro de 1990, após
passar mal em um treinamento na AMAN. Logo, restara noticiado que sua morte
se deu em razão de um espancamento praticado pelo seu treinador, então tenente
Antônio Carlos de Pessôa, que naquela ocasião além de ter torturado o jovem em
um treinamento “regular”, não lhe não prestou o socorro devido, sendo a morte de
Marcio Lapoente, considerado o primeiro caso do seguimento das forças armadas a
ter uma publicidade notória em âmbito Internacional.
Conforme se depreende dos depoimentos do referido caso, o jovem
participava de um treinamento no dia 09 de outubro de 1990, sob a instrução do
tenente Antônio Carlos de Pessôa - embora outros oficiais se fizessem presentes –
quando foi espancado pelo seu treinador em razão de não ter conseguido concluir
o exercício. Fato que culminou na morte do jovem38.
O referido caso depois de perpassar por todos os tramites necessários,
ensejou em um acordo firmado entre o Brasil e a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos pela via da Solução

37 GLOBAL, Justiça. Meninos emasculados: Brasil apresenta falhas no cumprimento da solução amis-
tosa. 2007. Disponível em: http://www.global.org.br/blog/meninos-emasculados-brasil-apresenta-fa-
lhas-no-cumprimento-da-solucao-amistosa/. Acesso em: 18 dez. 2021.
38 TANCREDO, João. O Brasil e a Corte Interamericana de Direitos Humanos: O Caso do Cadete
Marcio Lapoente da Silveira. Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Rio de Janeiro, ano 24, n.
72, jul. 2010. Disponível em: http://www.torturanuncamaisrj.org.br/jornal/gtnm_72/artigo.html.
Acesso em: 9 out. 2021.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Amistosa. Desta feita, restando ao Estado brasileiro o reconhecimento pela morte


de Márcio Lapoente em uma cerimônia pública entre o Exército e a AMAN, onde
na ocasião, fora inaugurada uma placa homenageando o jovem cadete e todas as
vítimas que perderam suas vidas em treinamentos.39
Ademais, também ficara determinado que o País aplicaria medidas
preventivas e reparadoras a título de danos morais a família do cadete, com fins
de coibir violência no âmbito da instituição. Dessa forma, o Estado brasileiro
reconheceu sua responsabilidade em razão das violações concernentes ao direito à
vida e a segurança da pessoa, bem como, ante a demora excessiva no que tange a
tramitação da ação judicial, na qual os pais do cadete pugnavam pela indenização
ante a morte do filho.
Ocorre que, em um dado momento fora requerida a anulação do acordo,
que por sua vez ensejou em arquivamento por parte do Ministro Celso de Mello
(STF), que fundamentou sua decisão em quatro arguições. Cite-se: 1) por “falta de
competência” do STF para processar e julgar o Mandado de Segurança, tendo em
vista que a competência da corte é estabelecida rigidamente na alínea “d” do artigo
102 da CF/8840; 2) em razão do impetrante do Mandado de Segurança ter pleiteado
em nome próprio direito alheio, e tal premissa é matéria da República Federativa do
Brasil, conforme determinado no artigo 6º do código de processo civil, lecionando
que “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando
autorizado por lei” e 3) somado ainda ao fato de que em “sucessivos julgamentos”
o Mandado de Segurança não pode substituir a ação popular, conforme dispõe a
sumula 101 do STF; bem como, o ministro destaca por fim que 4) o MS é para fins
de direito líquido e certo, requisito que não atende o pedido, haja vista demandar a
exigência de provas, já que o pleito permeia pela inocência dos envolvidos.41
Contudo, o que se depreende é que o caso de Marcio Lapoente teve
grande repercussão em âmbito Internacional, haja vista a família da vítima buscar a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, para fins exigir do Estado

39 FRANÇA, F. G. DE. O Caso Márcio Lapoente e a questão dos Direitos Humanos nas Casernas
Militares. Confluências. Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, 22(1), 71-88. 2020. https://
doi.org/10.22409/conflu.v22i1.40627. Acesso em: 9 out. 2021.
40 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.
41 CELSO DE MELLO ARQUIVA PROCESSO CONTRA ACORDO COM OEA. 2012. Con-
sultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-out-04/celso-mello-arquiva-proces-
so-acordo-morte-militar. Acesso em: 9 out. 2021.

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DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

brasileiro o cumprimento das responsabilidades que lhe foram imputadas em


sede de julgamento. Porém, embora tal repercussão tenha tido reflexos na ordem
social – afinal, através da Solução Amistosa se vislumbrou penalidades ao agressor
e a União – Criminalmente, o autor não foi sentenciado quanto a violência que
ensejou na morte de um jovem de 18 anos. E como se não bastasse, as sentenças
indenizatórias em face do tenente e da União, foram reconsideradas42. Ou seja,
restando evidenciado mais uma vez, o não cumprimento integral de todas as
imputações.

4.3 O CASO DA FAZENDA UBÁ – 12.277

O caso da fazenda Ubá ocorreu em 13 e 18 de junho de 1985, quando


oito (8) trabalhadores rurais foram assassinados na fazenda Ubá no Estado do Pará.
Das especulações quanto ao referido crime, restou configurado que os assassinatos
agiram por encomenda no município de São João do Araguaia. Dentre as vítimas,
havia uma mulher gestante que não fora identificada.
Especificamente, em 13 de junho de 1985, as vítimas assassinadas foram:
João Evangelista Vilarins e Francisco Pereira Alves; Januário Ferreira Lima; Luiz
Carlos Pereira Souza, e Francisca (a gestante sem identificação). Todas encontradas
mortas nas proximidades da Fazenda Ubá. Posteriormente, na mesma região, e
passados três dias dos mencionados assassinatos, mais três vítimas foram encontradas.
Cite-se: José Pereira da Silva (líder da comunidade camponesa); Valdemar Alves de
Almeida, e Nelson Ribeiro.
Segundo o relatório 136/21 – caso 12.27743, após a conclusão do tramite
procedimental e somente após 25 anos do corrido, em 19 de julho de 2010, as partes
assinaram um acordo de Solução Amistosa. Restando consignado o reconhecimento
de responsabilidade do Estado brasileiro em âmbito internacional, haja vista as

42 FRANÇA, F. G. DE. (2020). O Caso Márcio Lapoente e a questão dos Direitos Humanos nas
Casernas Militares. Confluências. Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, 22(1), 71-88. https://
doi.org/10.22409/conflu.v22i1.40627. Acesso em: 9 out. 2021.
43 Acordo de Solução Amistosa – 3. “O presente Acordo de Solução Amistosa tem por objetivo
estabelecer medidas concretas para garantir a reparação dos danos materiais e morais sofridos pelos
familiares das oito vítimas identificadas na cláusula 2 em resposta a suas demandas e para prevenir
toda nova violação, e dar com isso por concluído o Caso N° 12.277 uma vez cumprido de maneira
integral o disposto no presente Acordo”. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HU-
MANOS. Relatório nº. 136/21, 26 de junho de 2021. Caso 12.277. Solução amistosa. Fazenda Ubá.
Brasil. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/2021/BRSA12.277PORT.pdf. Acesso
em: 5 out. 2021.

560
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

violações dos direitos em desfavor das vítimas da fazenda Ubá. Dentre tais ofensas,
restou caracterizado a violação ao Direito à vida; à proteção e às garantias judiciais,
premissas essas consagradas na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Destarte, restara convencionado precipuamente o reconhecimento
público de responsabilidade internacional imputada ao Brasil com pedido de
desculpas formal à família, em cerimônia pública, com uma homenagem às vítimas
insculpidas em uma placa. Já a título de medida reparadora, o Estado ergueria um
“monumento comemorativo em homenagem à luta pela posse da terra”
No que concerne a reparação pecuniária, restara determinado uma
indenização pelos danos morais e materiais no valor de R$ 38.400,00 (trinta
e oito mil e quatrocentos reais) em favor de um representante de cada familiar
das vítimas, tendo em vista as violações reconhecidas no âmbito legal. Ficando
estabelecido ainda que “o Estado do Pará concederia uma pensão legal, vitalícia,
exclusiva e intransferível, com caráter especial, num montante mensal igual a 1,5
salário-mínimo (um salário-mínimo e meio), a um representante de cada uma das
famílias das vítimas, em conformidade com o projeto de lei promovido pelo Poder
Executivo, que será aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado”44.
Outrossim, além das reparações e indenizações em favor dos familiares
das vítimas, através das Soluções Amistosas, restou estabelecido no relatório
136/21, ainda a inclusão efetiva dos familiares das vítimas em programas e projetos
do Estado. Somando-se ainda a condenação em medidas de prevenção, para fins
de viabilizar os trabalhos da comissão estadual na luta contra os homicídios por
razões de posse da terra, com a participação dos órgãos federais. Por fim, restando
determinado a implantação de mecanismos de acompanhamento e fiscalização
quanto a compatibilidade e cumprimento dos acordos. Sendo os termos do acordo
aprovado e assinado pelas partes em 19 de julho de 2010.
No entanto, somente depois de passados 34 anos do ocorrido, finalmente
o mandante do crime, em data de 24 de janeiro de 2019, José Edmundo Ortiz
Vergolino, foi preso pela polícia do Estado do Pará. Ressaltando que, o criminoso
até chegou a cumprir pena em 2006, no presídio de Marabá, porém, pouco
tempo depois fora beneficiado com prisão domiciliar, tendo em vista um alvará de

44 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº. 136/21, 26 de


junho de 2021. Caso 12.277. Solução amistosa. Fazenda Ubá. Brasil. Disponível em: https://www.
oas.org/pt/cidh/decisiones/2021/BRSA12.277PORT.pdf. Acesso em: 5 out. 2021.

561
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

liberdade provisória em 200745. Porém, em 2017 fora expedido novo mandado de


prisão com a condenação de 152 anos de prisão.
Em suma, além da prisão do principal mandante e dos executores do
crime, dos quais apenas um está de fato preso, em virtude de um dos condenados
ter morrido na prisão, tem-se que alguns condenados ainda se encontram foragidos.
Dessa forma, restando a assertiva de que ante o caso em tela, o cumprimento
integral do acordo firmado ainda perdura sem lograr êxito, estando o Brasil em
falta com o seu compromisso firmado.
 
5 CONCLUSÃO

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos preceitua


que os Direitos Humanos não se sujeitam a uma determinada nacionalidade ou
Estado, sendo de fato designado para a pessoa humana, conforme dispõe o artigo 1º.
2. da CADH46, portanto, não sendo admitida nenhuma espécie de discriminação.
Nessa perspectiva, o ideal almejado pelo individuo em sua condição de ser
humano, é a sua condição de liberdade, sem receios, sem misérias ou indignidade.
Permitindo-lhes gozar dos seus direitos em sentido amplo, seja no âmbito
econômico, social, cultural, e de fato, no gozo de seus direitos civis e políticos47.
Corroborando com essa pretensa, as Soluções Amistosas inerentes
aos Meios Alternativos de Solução de Conflitos, se apresentam como sendo um
instrumento eficaz na busca pelo consenso e por reparações que possam trazer
um alento aos que clamam por justiça ante as eventuais violações de seus direitos
fundamentais.
Porém, no âmbito do Sistema Interamericano, o referido instituto
tem sido tema de grandes debates e reflexões, especialmente no que concerne os

45 ACORDO INTERNACIONAL GARANTE PRISÃO DO MANDANTE DA CHACINA DA


FAZENDA UBÁ. Disponível em: https://www.romanews.com.br/cidade/acordo-internacional-ga-
rante-prisao-do-mandante-da-chacina-da-fazenda/27452/. Acesso em: 23 dez. 2022.
46 Art. 1º. 2 “Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.”. CONVENÇÃO AMERICA-
NA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica, 1969 – ratificada pelo Brasil em
25.09.1992. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumen-
tos/sanjose.htm.Acesso em: 26 set. 2021.
47 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Protocolo adicional à conven-
ção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protoco-
lo De San Salvador. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/e.protocolo_de_san_sal-
vador.htm. Acesso em: 25 set. 2021.

562
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

casos em que o Brasil foi parte, haja vista a problemática quanto a efetividade da
aplicação do referido instituto, e a ausência de um cumprimento fiel e integral
do que fora avençado em sede de Solução Amistosa. Com isso, propiciando os
seguintes questionamentos: É possível vislumbrar uma real efetividade da aplicação
das Soluções Amistosas frente aos casos de violações dos Direitos Humanos? Qual
o percentual de resolução frente a quantidade de casos admitidos em que o Brasil
foi parte? Todos os casos admitidos e resolvidos foram devidamente homologados
e cumpridos em sua integralidade?
Em que pese o percentual de admissibilidade de casos levados a Corte
para fins de aplicação das Soluções Amistosas em que o Brasil foi parte, tem-se
que dos cento e noventa e quatro (194) casos admitidos, apenas quatro (4) foram
resolvidos com a consequente homologação pela via da Soluções Amistosas. Assim,
restando evidenciado um percentual de 2,06% dos casos totais. Porém, ainda que
seja um percentual pequeno, evidencia-se que todos os casos admitidos para fins da
referida aplicação, foram resolvidos e homologados na medida de suas condições
através do instituto em discurso.
Embora, faça-se imperioso ressaltar a ausência de um cumprimento
integral de todas as responsabilizações ao Estado, como se observa: a) no caso
José Pereira, que mesmo com grande repercussão, nem todos os criminosos foram
punidos e presos; b) como ocorre ainda com o caso dos Meninos Emasculados,
onde algumas famílias apesar de terem sido beneficiadas com o Programa de
Habitação de Interesse Social, ainda se encontram em condições desfavoráveis
de moradias, situação em que o Estado se responsabilizou em construir novas
residências às famílias; c) o caso do cadete Marcio Lapoente da Silveira, em que
o autor do crime ainda não foi sentenciado; d) e o caso da Fazenda Ubá, que por
seu turno, o mandante do crime só fora preso em definitivo em janeiro de 2019,
encontrando-se alguns condenados ainda foragidos.
Toda via, ainda que se não se vislumbre o cumprimento integral de todas
as imputações conforme o que fora avençado em sede de Solução Amistosa, não
obsta a eficiência da aplicabilidade do referido instituto, tendo em vista que dos
quatro (4) casos submetidos para o mencionado fim, todos foram resolvidos pela
via do consenso e do diálogo, trazendo um alento relevante as famílias das vítimas,
e um senso de justiça ante as violações incontestavelmente comprovadas. Portanto,
se mostrando as Soluções Amistosas, um instrumento eficaz na busca pela proteção
dos Direitos Humanos.

563
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Reiterando a menção dos percentuais em específico com relação aos casos


admitidos, conforme se depreende do presente estudo, tem-se que do percentual de
6,09% ao total, 101 desses foram admitidos no Brasil, e 1.657 foram admitidos no
total, haja vista a incidência de casos que apesar de terem sido admitidos, ainda não
foram devidamente resolvidos. Obtendo-se a assertiva de um ínfimo percentual de
0,2% de casos devidamente homologados em torno do parâmetro total.
Outrossim, com base nos dados informados, as Soluções Amistosas se
apresentam como sendo um mecanismo eficaz na resolução dos conflitos no que
tange os casos de violações aos Direitos Humanos. Portanto, se fazendo possível
atestar, que apesar da pouca quantidade de demandas admitidas para a aplicabilidade
em comento, todas foram resolvidas e homologadas através do referido instituto,
evidenciando-se êxito na referida aplicação, demonstrando a eficácia dos Meios
Alternativos de Solução de Conflitos, ainda que não se excetue as críticas ante as
reparações e a delonga nos trâmites.
Concernente as reparações e penalidades imputadas ao Brasil – o que
não se busca discutir objetivamente no presente trabalho – insta ressaltar a crítica
quanto a falta de razoabilidade frente as reparações pecuniárias em favor das famílias
das vítimas, afinal, estas tiveram suas vidas comprometidas, e a vida de seus entes
queridos muitas vezes tolhidas por violações de direitos que são universais. Portanto,
incapazes de reparar os danos de todas as ordens que lhes foram causados, já que
além dos danos visivelmente configurados, ainda se tem o denominado “dano ao
projeto de vida”, que por seu turno, torna-se imensurável.
Em contrapartida e em suma, tais críticas, não desabonam as vantagens
das Soluções Amistosas nesse sentido, apesar de ser ensejado pela sociedade
penalidades mais rígidas. O que se vislumbra na verdade, é que esse instituto em
razão de ser um instrumento de grande eficácia no âmbito dos conflitos envolvendo
os direitos individuais e humanos, precisa ser mais explorado, estudado e aplicado
no sentido do termo.
Por essa razão, se fazendo necessário fortalecer e ampliar o debate nesse
sentido, não excetuando da discussão as críticas quanto as penalidades, bem como
quanto a fiscalização necessária em prol da mitigação das violações aos Direitos
Humanos, contribuindo assim por uma maior proteção aos direitos fundamentais
inerentes a todos, independente de nacionalidade, raça, sexo, ou condição social,
coibindo discriminação de qualquer natureza.

564
REFERÊNCIAS

ACORDO INTERNACIONAL GARANTE PRISÃO DO MANDANTE DA


CHACINA DA FAZENDA UBA. Disponível em: https://www.romanews.com.
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570
Pessoas Portadoras de Deficiência, Pessoas com Deficiência e/ou
Necessidades Educativas Especiais: o que dizem os tratados e a
jurisprudência?

Charles de Sousa Trigueiro1


Maria Creusa de Araújo Borges2
Thiago Oliveira Moreira3

1 INTRODUÇÃO

O tema da contribuição da abordagem dos direitos humanos para os


direitos das pessoas com deficiência deve ser examinado a partir das seguintes
perspectivas: a deficiência como castigo dos deuses (povos indígenas), uma doença
que deveria ser tratada (abordagem médica como dominante), e, no contexto
econômico e social contemporâneo, a perspectiva da eliminação das barreiras para

1 Doutorando em Ciência Jurídicas e Sociais na Universidade de Santiago de Compostela na Espanha


em Cotutela com a Universidade Federal da Paraíba UFPB; Doutoramento em Direito Público pela
Universidade de Coimbra Portugal; Bacharel e Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB; Servidor
Técnico Administrativo na UFPB.
2 Professora Associada IV do Departamento de Direito Privado e do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Jurídicas do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Líder CNPq do Grupo de Pesquisa
Tribunais Constitucionais, Direito à Educação e Sociedade.
3 Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Chefe do Departamento de Di-
reito Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Professor/
Pesquisador Visitante na Universidade Lusófona do Porto. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail: thia-
go.moreira@ufrn.br.

571
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

o efetivo e pleno desenvolvimento da pessoa. A abordagem que considera a pessoa


com deficiência como um sujeito de direitos acompanha a evolução normativa que
tem lugar no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos a partir do
Pós-Guerra. Antes, a deficiência, por si só, era considerada um problema individual
da pessoa. Com a afirmação dos direitos no cenário normativo internacional com
impactos no direito interno, se desloca o olhar da deficiência para as barreiras sociais
que são postas e que impedem o efetivo desenvolvimento da pessoa.
A questão consiste em saber se, no ordenamento jurídico interno do
Brasil, há um conceito adequado que o interligue ao sistema internacional de
direitos humanos, especialmente, após a adoção da Convenção Internacional sobre
os Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU)4.
Não obstante a Constituição Federal de 1988 reconhecer, explicitamente, os direitos
fundamentais, o princípio da dignidade da pessoa humana, não apresenta uma
definição que esteja conforme essa Convenção. A questão destacada pela Convenção
consiste no fato de a expressão “portadora” ser inadequada a uma abordagem dos
direitos humanos. Assim, a Convenção adota a expressão “pessoas com deficiência”,
uma vez que a deficiência resulta da interação entre as pessoas, a realidade social e as
barreiras impostas, impossibilitando a efetiva inclusão das pessoas com deficiência
na sociedade em condições de igualdade. Nesse sentido, o Supremo Tribunal
Federal (STF) concedeu Habeas Corpus (HC 165.704 coletivo), reconhecendo a
universalidade dos direitos das pessoas com deficiência. Não obstante o parágrafo
2º do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, explicitamente, tratar das
diretrizes para políticas públicas de acessibilidade, são presenciadas dificuldades de
entendimento no trato da questão.
Nesse contexto, são socializados os resultados de uma investigação sobre
a normativa internacional, especificamente, a Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de
Deficiência5 e seu impacto na jurisprudência produzida pelos tribunais pátrios. O
objetivo geral é compreender o sistema interamericano, seus tratados e documentos
internacionais de proteção, acerca dos direitos das pessoas com deficiência. Como
objetivos específicos, busca-se: a) examinar a Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de
Deficiência; b) analisar os relatórios e a admissibilidade da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) e as decisões da Corte IDH (Interamericana de

4 Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.


5 Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001.

572
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Direitos Humanos); c) problematizar a questão da aplicação da Convenção da


Guatemala no ordenamento jurídico brasileiro na perspectiva do modelo social ou
dos direitos humanos, nos termos da terminologia e da abordagem empregadas pela
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. A metodologia
adotada foi a análise dogmática, com aporte na doutrina fundamentada na
hermenêutica internacional dos direitos humanos.

2 A VULNERABILIDADE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO


CONTEXTO LATINO-AMERICANO

Na América Latina existe uma prevalência de maior percentual de pessoa


com deficiência entre os pobres e os nativos (povos indígenas). Virando um círculo
vicioso, em que as pessoas de menor renda têm maior probabilidade de ter uma
deficiência, enquanto as pessoas com deficiência possuem um maior risco de serem
pobres.
No primeiro Censo realizado no Brasil, em 1990, pouco mais de
2 % da população se declarou ser deficiente, devido ao fato de pouco acesso à
informação. Já no Censo de 2000, 24,5 milhões de brasileiros se declararam, o que
correspondia a 14,5 %, e no Censo de 2010, esta cifra evoluiu para 45.606.048
ou aproximadamente 45,6 milhões, resultando em 23,9 %6, ou seja, atualmente
mais ou menos 24 porcento da população brasileira possui algum tipo e grau de
deficiência:

Apesar dos debates, ao considerar pessoa com deficiência


aquelas que apresentam“limitações mais graves”, a
discussão sucitada por essa revisão representa, para nós,
uma violação ao propósito do modelo social consagrado
na Convenção e na Lei Brasileira de Inclusão7.

O Censo de 2010 foi o último realizado pelo IBGE, e enquanto a


taxa de alfabetização da população em geral era de 90,6 %, as das pessoas com

6 Nos dias atuais existe um embate para fazer a revisão destes dados. Cf. SIMÕES, André et al
(org.). Panorama nacional e internacional na produção de indicadores sociais: grupos populacionais
específicos e uso do tempo. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.
br/visualizacao/livros/liv101562.pdf. Acesso em: 11 jun. 2021.
7 PERUZZO, Pedro Pulzatto; LOPES, Lucas Silva. Afirmação e promoção do direito às diferenças
das pessoas com deficiência e as contribuições do Sistema interamericano de direitos humanos. Revista
Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 14, n. 3 / 2019. p 19-34.

573
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

deficiência era de apenas 81,7 %. Também 61,1% das pessoas com deficiência não
tem nenhum grau de instrução, ao mesmo tempo que os brasileiros tidos como
“normais” na mesma situação é de 38,2%8.
Na avaliação do IPEA9 em termos de participação escolar, ocupação e
renda, há índices que demonstram um atendimento na escola ineficiente e com
impactos nos indicadores do grau de trabalho e rendimentos, os quais na maioria
dos casos, fazem com que as pessoas com deficiência dependam de benefícios sociais
do governo brasileiro.
A guisa de comparação, conforme a Pesquisa Nacional Continuada de
2006, do Instituto Nacional de Estatística e Informática INEI, população estimada
do Peru com algum tipo de deficiência é em torno de 9% da população total10.

8 BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Cartilha do Censo


2010: pessoas com deficiência [online]. Brasília, 2012. p. 15-18. Disponível em: https://biblio-
teca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em 11 jun.
2021.
9 “Em relação aos aspectos de participação na escola, no trabalho e rendimentos, freqüentavam a es-
cola 3,2 milhões de pessoas com deficiência ou 13% delas, percentual bastante inferior ao das pessoas
sem nenhum tipo de deficiência, cuja freqüência à escola era de 3,7%, dado que sugere que o aten-
dimento escolar às pessoas com deficiência é insuficiente, porque indisponível para os demandantes
potenciais. Das pessoas com 10 anos ou mais de idade, 23,5 milhões tinham alguma deficiência e sua
taxa de ocupação era em torno de 11% inferior à das pessoas sem nenhum tipo de deficiência e seu
rendimento também era menor. Dos ocupados, 5,6 milhões eram homens e 3,5 milhões eram mu-
lheres. Entre os homens, 8,9% desempenhavam trabalho não-remunerado ou recebiam pagamento
em benefícios, enquanto entre as mulheres este percentual chegava a 13,3%, situação mais acentuada
que a observada entre as pessoas que não apresentam deficiência, cujos percentuais de ausência de
remuneração pelo trabalho desenvolvido eram de respectivamente 7,0% e 8,7%. Entre a população
sem deficiência acima de dez anos, ,5% não auferia rendimentos, percentual bastante superior ao da
população com deficiência, de 31%. Provavelmente, o Benefício de Prestação Continuada e a Renda
Mensal Vitalícia influenciem, em alguma medida, este resultado, pois 1,5 milhão de pessoas com
deficiência recebe esses benefícios de Assistência Social. No entanto, entre as pessoas com deficiência
predominavam os menores rendimentos. A proporção de pessoas com até 1 salário mínimo de ren-
dimento entre as pessoas com deficiências (31,9%) era o dobro do que a existente entre as demais
pessoas (15%). Acima de cinco salários a situação se invertia, com percentuais de 9, % e 11,6%, res-
pectivamente.” BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Cartilha
do Censo 2010: pessoas com deficiência [online]. Brasília 2012. p. 15-18. Disponível em: https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em: 11
jun. 2021.
10 ANGELES, Malena Pineda. The role of the office of the people’s defender of Peru in the protection
and promotion of the rights of persons with disabilities. In: Mecanismos nacionales de monitoreo de la
convencion sobre los derechos de las personas con discapacidad.1 ed. Comision nacional de los derechos
humanos. DF México, 2008. p. 165

574
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Depois de reclamações recebidas pelo fracasso de várias entidades


governistas em cumprir a obrigação de acesso aos empregos em concursos públicos
de mérito para a contratação de pessoal com um bônus de 15 pontos aos candidatos
com deficiência, A Defensoria do Povo do Peru fez uma série de recomendações
para garantir uma maior efetividade na aplicação de tais ação afirmativa. Entre as
propostas foi recomendado para o Congresso da República a alteração do artigo 36
da Lei n.º 27.050, a Lei Geral das Pessoas com Deficiência, que regula o referido
direito11.
As taxas de exclusão educacional de pessoas com deficiência no Peru
são altas. A partir dos dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística e
Informática (INEI) e do Ministério da Educação do Peru, 87% das crianças e
jovens com deficiência estaria fora do sistema de ensino12.
Sobre a saúde na Guatemala, dados da ENDIS de 2005 (I Encuesta
Nacional sobre Personas con Discapacidad), 78 por cento das pessoas com
deficiência não recebem atendimento especializado. As principais causas são a falta
de dinheiro (66%), a ignorância da existência de serviços ou a falta desses serviços
na cidade, e falta de motivação pessoal ou de apoio familiar13.
Na Guatemala as pessoas com deficiência têm baixa escolaridade: 50 por
cento delas são analfabetas, apenas quatro, de dez completaram algum nível de
educação primária. No ensino secundário e superior a proporção é de um para dez.
Embora existam programas de educação especial, estes são escassos e concentrados
na cidade capital, enquanto a maioria das pessoas com deficiência, vive em
áreas rurais. Cabe destacar os esforços de organizações não governamentais que
promovem a educação especial na região, local14.
Na Guatemala não há políticas que visam a formação e educação para o
trabalho. O Código do Trabalho e a Lei sobre Cuidados a Pessoas com Deficiência

11 ANGELES, Malena Pineda. The role of the office of the people’s defender of Peru in the protection
and promotion of the rights of persons with disabilities. In: Mecanismos nacionales de monitoreo de la
convencion sobre los derechos de las personas con discapacidad.1 ed. Comision nacional de los derechos
humanos. DF México, 2008. p. 169.
12 Ibid., p. 173.
13 ALVARADO, Sergio Fernando Morales. National monitoring mechanisms of the international
convention on the rights of persons with disabilities. the Guatemalan experience. In: Mecanismos
nacionales de monitoreo de la convencion sobre los drechos de las personas con discapacidad.1 ed. Comision
nacional de los derechos humanos. DF México, 2008. p. 155.
14 Ibid., p. 155.

575
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

falta disposições para a Proteção e Promoção do direito ao trabalho das pessoas com
deficiência15.
Na Venezuela a causa dos direitos das pessoas com deficiência veio
ser referido pela primeira vez na atual Constituição, texto fundamental este que
reconhece a partir de sua exposição de motivos “garantir a autonomia funcional
dos seres humanos com deficiências ou necessidades especiais”; e do seu preâmbulo
consagra a igualdade de direitos para todos os cidadãos, sem qualquer discriminação;
e a primeira coleta os seguintes artigos: 81 e 101 CRBV16.
Em 05 de janeiro de 2007 ocorreu um grande progresso legislativo no
país, com a entrada em vigor pela chamada Lei para a Integração das Pessoas com
Deficiência (LPcD), que estabeleceu o regime jurídico aplicável às pessoas com
deficiência e continha medidas relacionadas com a integração educacional, saúde,
promoção do emprego e acesso gratuito a serviços e instalações de uso público;
no entanto, ele não tinha enunciado ou o desenvolvimento de outros direitos
fundamentais das pessoas com deficiência, incluindo o direito de acesso à cultura,
ao esporte ou recreação, e mecanismos de apoio para o exercício dos direitos
econômicos17.
Sobre o direito ao trabalho, a Venezuela incentiva as instituições nacionais,
estaduais, empresa municipal e paroquial, bem como público, privado ou misto,
de incorporar em seus locais de trabalho há menos cinco por cento (5%) pessoas
com deficiência permanente. Ao mesmo tempo, forçando os órgãos e autoridades
nacionais, estaduais e municipais, bem como empresa pública, privada ou mista
para atender os padrões da Comissão Venezuela de Norma Industrial (COVENIN),
bem como normas técnicas sobre acessibilidade e transitabilidade das pessoas com
deficiência. E gratuidade de transporte urbano para as pessoas com deficiência18.

15 LVARADO, Sergio Fernando Morales. National monitoring mechanisms of the international


convention on the rights of persons with disabilities. the Guatemalan experience. In: Mecanismos
nacionales de monitoreo de la convencion sobre los drechos de las personas con discapacidad.1 ed. Comision
nacional de los derechos humanos. DF México, 2008. p. 156.
16 PEREZ, Gabriela del mar ramires. Best practices and better experiences of the office of the peo-
ple’s defender of the Bolivarian Republic of Venezuela in the promotion, defence and vigilance of
the human rights of persons with disabilities. In: Mecanismos nacionales de monitoreo de la convencion
sobre los drechos de las personas con discapacidad.1 ed. Comision nacional de los derechos humanos.
DF México, 2008. p. 185.
17 Ibid., p. 186.
18 Ibid., p. 186.

576
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

3 O SISTEMA INTERAMERICANO E A PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA

O Centro do sistema interamericano é a Organização dos Estados


Americanos (OEA), que nas Américas protege os direitos humanos através do aporte
legislativo baseado, dentre outras, em quatro principais normas internacionais, que
são: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948; A Carta
de Bogotá (tratado internacional fundador da OEA); a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos de 1969; e o Protocolo de San Salvador de 1988, que é o
adicional à Convenção anterior19.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que dentre
suas características, possui os princípios que os direitos humanos são indivisíveis e
universais e a ligação entre deveres e direitos. Impende ressaltar, que este documento
não traz o status de tratado20, por isso teve como resultado a normatização dos seus
princípios nos tratados subsequentes, transferindo-lhes positivação obrigatória e
juricidade.
O Pacto de San Jose da Costa Rica, o qual começou a vigorar em
1978, e que como tratava apenas de direitos humanos civis e políticos, teve como
consequência o Protocolo de San Salvador para trazer as Matérias de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Segundo Thiago Moreira e Beatriz Dantas este
protocolo se deve ao fato de os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais terem
sidos citados em apenas um artigo da Convenção21.
O presente capítulo é divido em 3 subtópicos: no primeiro é feito
uma descrição das normas gerais que abordam de forma genérica os direitos da
pessoa com deficiência, no âmbito interamericano; o segundo aborda o principal
documento especifico, que é a convecção interamericana sobres os direitos da
pessoa com deficiência, famigerada convenção da Guatemala, trazendo seus
principais artigos; o terceiro trata da tutela de controle e monitoramento no sistema

19 CARVALHO RAMOS, André de. Processo internacional de direitos humanos. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2016. p. 126.
20 Tem força de instrumento normativo.
21 DANTAS, Beatriz Lodônio; MOREIRA, Thiago Oliveria. A (não) concessão de refúgio às vítimas
de tráfico internacional de pessoas no Brasil. In: GURGEL, Yara Maria Pereira; MOREIRA, Tiago
Oliveira Moreira (coord.). LOPES FILHO, Francisco Camargo Alves (org.). O Direito Internacional
dos Direitos Humanos e as pessoas em situação de vulnerabilidade. v. 1. Natal: Polimatia, 2021. p. 25-62.

577
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

regional interamericano, sub dividindo-se em duas sub seções, a primeira sobre as


manifestações da comissão, a segunda sobre as decisões da Corte.

3.1 A PROTEÇÃO GERAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO ÂMBITO


INTERAMERICANO

O sistema global, inicialmente logo confeccionou documentos


internacionais relacionadas a população vulneráveis22, posteriormente, o sistema
regional interamericano trouxe tratados sobre diversas problematicas23.
A primeira declaração das Américas foi adotada em 1948 (Declaração
Americana de Direitos e deveres do Homem), já a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, adveio em 1959; em 1969 foi aprovada a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, assim surgiu a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, porém só em 1978 entrou em vigor, ficando para ser ratificada
em 1992, por 25 nações24.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como
Pacto de San José da Costa Rica conceitua os direitos fundamentais, nos quais
os estados partes devem assegurar, e se comprometer de forma internacional para
garantir aqueles direitos humanos25, a CADH não trouxe normas especfica sobre
os direitos das pessoas com deficiencia, mas coube ao Protocolo adcional trazer
explicitamente no artigo 18 essa proteção, o Protocolo de San Salvador trouxe

22 No sistema global destaca-se, não só a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência,
mas também a Convenção sobre os direitos da Criança, a Convenção sobre a Eliminação de todas as
formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação
contra as Mulheres, e a Convenção sobre a proteção dos direitos de todos os Trabalhadores Migrantes
e membros das suas famílias.
23 O Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos relativo à Abolição da Pena de
Morte; a Convenção Interamericana sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas com deficiência; a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e
Formas Correlatas de Intolerância; a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de
Pessoas; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; a Convenção Interamericana
contra toda a Forma de Discriminação e Intolerância; e a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.
24 Argentina, Barbados, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, República Domi-
nicana, Equador, El Salvador, Grenada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua,
Panamá, Paraguai, Peru, Suriname, Trindade e Tobago, Uruguai e Venezuela.
25 CONVENÇÃO Americana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/ba
sicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 7 nov. 2021

578
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

normas específicas sobre o direito à educação26 e o direito ao emprego27 das pessoas


com deficiência.

3.2 A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA ELIMINAÇÃO DE


TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONSTRA AS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA

A Convenção Interamericana voltada para eliminar qualquer forma de


discriminação contra as pessoas com deficiência, foi aprovada em 26.05.199928
pelo Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos, e levou em
considerações os outros convênios e declarações que tinham sido promulgados no
âmbito internacional.
Esta convenção traz o conceito de “deficiência” e “discriminação”,
delimita o seu escopo29 e observa que os países integrantes da OEA deverão assegurar
primeiramente uma forma de prevenir, detectar e intervir precocemente, fazer um

26 Protocolo de San Salvador. Artigo 13.3.e Os Estados Partes no presente Protocolo reconhecem
que, para conseguir o pleno exercício do direito à educação: e. deverão ser estabelecidos programas
de ensino diferenciado para as pessoas com deficiência, a fim proporcionar uma instrução especial e
formação a pessoas com impedimentos físicos ou deficiência mental.
27 Protocolo de San Salvador. Artigo 6.2 Os Estados Partes comprometem-se em adotar as medidas
que garantam plena efetividade do direito ao trabalho, principalmente as referentes à consecução
do pleno emprego, à orientação vocacional e ao desenvolvimento de projetos de formação técnico-
-profissional, principalmente os destinados às pessoas com deficiência. Os Estados Partes também se
comprometem a executar e fortalecer programas que coadjuvem uma adequada atenção familiar, a fim
de que a mulher tenha uma real possibilidade de exercer o direito ao trabalho.
28 Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 3.956, de 08.10.2001.
29 Artigo I. Para os efeitos desta Convenção, entende-se por: 1. Deficiência. O termo “deficiência”
significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita
a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo
ambiente econômico e social. 2. Discriminação contra as pessoas com deficiência. a) o termo “discri-
minação contra as pessoas com deficiência” significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada
em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de defi-
ciência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento,
gozo ou exercício por parte das pessoas com deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades
fundamentais. b) Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado
Parte para promover a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência,
desde que a diferenciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e
que elas não sejam obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação
interna preveja a declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar,
esta não constituirá discriminação.

579
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

tratamento de reabilitar, formação educacional e profissional, e fornecimento dos


melhores serviços especializados com o intuito de melhorar a independência e
qualidade de vida das pessoas com deficiência, além de sensibilizar a comunidade,
através de campanhas publicitárias educacionais, com a finalidade de acabar com a
discriminação, e os estereótipos e outros preconceitos contra o direito a igualdade,
respeitando a convivência.
E no mais, os países da OEA deverão fazer uma cooperação entre os
estados-partes para prevenir e erradicar o preconceito/discriminação contra as
pessoas com deficiência, além disso, contribuir para a investigação científica e
pesquisas tecnológicas relacionadas a reabilitação, e inclusão na comunidade e
desenvolver mecanismos que se destinam a promover a vida independente, auto-
suficiência em parâmetro de isonomia iguais as demais pessoas.
Tanto o embate na sociedade internacional, quanto a preocupação em
ver o reconhecimento por normas, nas legislações infraconstitucionais, dos direitos
humanos das pessoas com deficiências, comprovam o significativo desenvolvimento
desta área de estudo30.
Contudo, a emissão de tratados internacionais de direitos humanos e
ainda de leis infraconstitucionais no direito interno ainda não são suficientes para
reconhecer a efetividade dos direitos, de modo que não fica provável permitir uma
visão simplista da matéria e prevê que as barreiras enfrentadas pelas pessoas com
deficiência em qualquer área fiquem superada perante as milhares de legislação
nacional ou tratado internacional. O que existe é a obrigatoriedade de implementar
todos os programas de ações afirmativas e as políticas públicas destacadas nestes
tratados internacionais de direitos humanos31.

30 GOLDFARB, Cibelle Linero. Pessoas portadoras de deficiência e a relação de emprego: o sistema de


cotas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2009. p. 56.
31 Sobre à efetivação dos direitos reconhecidos na ordem internacional, Bobbio destaca: “Finalmente,
descendo do plano ideal ao plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos
e cada vez mais extensos, e justifica-los com argumentos convincentes: outra coisa é garantir-lhes uma
proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as pretensões
aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil. Os direitos sociais, como se sabe, são mais
difíceis de proteger do que os direitos de liberdade. Mas sabemos todos, igualmente, que a proteção
internacional é mais difícil do que a proteção no interior de um Estado, particularmente no inte-
rior de um estado de direito. Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contraste entre as declarações
solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações. Já que
interpretei a amplitude que assumiu atualmente o debate sobre os direitos do homem como um sinal
do progresso moral da humanidade, não será inoportuno repetir que esse crescimento moral não se

580
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Tanto na estrutura quanto na forma de linguagem, a CePD é parecida


com a Convenção sobre Eliminação de toda a forma de discriminação contra as
mulheres (CETFDM) e com a Convenção sobre Eliminação de toda a forma
de discriminação racial (CETFDR), bem como o tratado de abordagem anti
discriminação, mas com pouca perspectiva do rol explícito dos direitos humanos32.
Pelo preâmbulo, objeto e fim da Convenção Interamericana a pauta
principal é proibir as discriminações contras as pessoas com deficiência. A
Convenção da Guatemala faz parte de um catálago de obrigações do país membro
para ser estabelecido.
A definição da CePd é uma transição entre o modelo médico e social, faz
parte do contexto historíco da época., é paracida com a definição das Regras Gerais
sobre igualdade de oportunidade para as pessoas com deficiência (RGIOPD).
A Convenção da Guatemala (CIPCD) criou a Comissão para a
Eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas com deficiência
(CEDDIS), designando como um órgão de supervisão sobre o cumprimento da
CIPCD (artigo VI).
Conforme sua própria regulamentação33, a Comissão é composta por um
representante e dois suplentes determinados por cada um dos estados membros,
para um mandato de quatro anos, sem recondução. Os integrantes da Comissão
são independentes para exercer suas funções legais (art. 2 do Regulamento da
CEDDIS).

3.3 A TETULA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA PELOS ÓRGÃOS DE


MONITORAMENTO E CONTROLE DO SISTEMA INTERAMERICANO

A Comissão trata-se de órgão autônomo, sede em Washington (Capital


dos Estados Unidos da América do Norte), que iniciou seus trabalhos em 1959
é composta por 7 (sete) membros, conhecidos por comissários, de reconhecida

mensura pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intenções, o inferno está cheio”. BOBBIO, Norber-
to. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 80.
32 BREGAGLIO LAZARTE, Renata. La incorporación de la Discapacidad en el sistema interameri-
cana. Principales regulaciones y estândares post-Convención. In: BELTRÃO, Jane Felipe et al. Dere-
chos de los grupos vulverables. Red de Derechos Humanos y Educación Superior. Barcelona: Universitat
Pompeu Fabra, 2014. p. 113 -133.
33 Aprovado por Resolução de 8 março 2007. OEA/Ser.L/XXIV.2.1. CEDDIS/doc.4/07 rev.3 corr.
1.

581
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

reputação moral e especialista em conhecimento jurídico em direitos humanos,


com período de mandato de 4 (quatro) anos, eles são eleitos pela Assembleia
Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). O papel da comissão é
receber petições protocoladas sobre casos de suposta violação aos direitos humanos
descritos nos documentos do sistema interamericano. Toda gente pode protocolar
uma petição34 contra um país que ratificou a Convenção ou baseado na Declaração
de 1948, nas quais outras nações que não tenha ratificado o Pacto de San José da
Costa Rica sejam as violadoras. Caso a suposta violação seja muito urgente e grave,
a Comissão poderá fazer visita in loco e sugerir que os Estados a fim de resguardar
os direitos fundamentais violados, adotem medidas cautelares35.
A Corte é formada por juízes que são eleitos pela Assembleia Geral da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e o período do mandato de 6 (seis)
anos, podendo ser reconduzido uma única vez e um país não pode ter mais de um
juiz por mandato, a Corte é “uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é
a aplicação e a interpretação da Convenção (artigo 33) americana sobre Direitos
Humanos” (artigo 1º do seu Estatuto)36.
Uma sentença emitida pelos juízes da Corte é permanente e sem
possibilidade de apelação, isso quer dizer que caso um país seja condenado, esta
nação tem a obrigação de executar a sentença, em consonância com o artigo 68 do
Pacto de San José “os Estados-parte comprometem-se a cumprir a decisão da Corte
em todo caso em que forem partes”.
Os países que aceitaram o Pacto de San José e adotaram a jurisdição
da Corte, a Comissão tem a função de fazer o juízo de admissibilidade das
petições protocoladas as quais serão admitidas ou inadmitidas perante à Corte.

34 “El Sistema Interamericano es único en cuanto que todos los Estados Miembros de la OEA están
sujetos al derecho de petición, ya sea como estados Partes de La Convención, ya a través del sistema
fundado en la Carta. La reclamaciones interestatales no están previstas expresamente tratándose de
Estados que no son Partes de la Convención; en el caso de los que sí lo son, las reclamaciones inte-
restatales son optativas”. NORRIS, Robert E.; BUERGENTHAL, Thomas; SHELTON, Dinah. La
protecion de los derechos humanos en las Americas. Madri: Instituto interamericano de derechos huma-
nos. Civitas S.A., 1994. p. 262.
35 PALUMBO, Lívia Pelli. A efetivação dos direitos das pessoas com deficiência pelos sistemas de
proteção dos direitos humanos: Sistema americano e europeu. Revista direitos sociais e políticas públicas
(UNIFAFIBE). v. 1, n. 2, 2003. ISSN 2318-5732. p. 114 – 135.
36 ESTATUTO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/v.Estatuto.Corte.htm#:~:text=Artigo%201.,citada%20
Con en%-C3%A7%C3%A3o%20e%20deste%20Estatuto. Acesso em: 7 nov. 2021.

582
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Tal processo pode ser encaminhado à Comissão por um cidadão individual ou


cidadãos coletivamente, organização internacional, Estados-parte. Porém, para um
processo ser encaminhado à Corte, só pode pela própria Comissão ou por algum
dos Estados-parte.
A Corte tem dupla função, a consultiva, quando interpreta, tanto o Pacto
de San José, quanto qualquer outro tratado de direitos humanos no âmbito do
sistema regional interamericano. E a contenciosa, quando decide em julgamento as
violações aos direitos fundamentais.
A jurisdição da função contenciosa advém do reconhecimento dos
membros que aceitam a competência da Corte e concordam em se submeter a sua
soberania, já no que diz respeito a competência consultiva, poderá haver pedidos de
pareceres tanto pelos Estados-parte quanto pelos órgãos Organização dos Estados
Americanos (OEA).

3.3.1 As Manifestações da Comissão Interamericana em Matéria de Proteção


das Pessoas com Deficiência

Uma Característica importante do Sistema Interamericano é a


possibilidade de apresentação de petição individual à Comissão (artigo 44 da
Convenção interamericana de DH), mas não só isso, também se encontra aberto a
múltiplas vozes. Os primeiros casos que chegaram à Comissão eram relacionados a
pessoas com deficiência intelectual, no final da década de 1990.
No caso Ximenes Lopes x Brasil “Outro ponto de relevo é o destaque
dado pela Corte e Comissão Interamericana de Direitos Humanos à autonomia
da vontade do paciente”37, em consideração ao modelo social das deficiências,
e No caso Furlan38, foi feita uma interpretação evolutiva. Assim, o sistema
interamericano vem se alinhando ao sistema global, no que diz respeito ao modelo
social e a interpretação evolutiva dos direitos humanos, os quais também estão
sendo observados pelo Comitê dos Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU,
no caso H. M. Vs. Suécia39, que foi denunciado ao órgão pela comunicação de

37 PERUZZO, Pedro Pulzatto; LOPES, Lucas Silva. Afirmação e promoção do direito às diferenças
das pessoas com deficiência e as contribuições do Sistema interamericano de direitos humanos. Revista
eletrônica do curso de direito da UFSM, v. 14, n. 3. 2019.
38 Admitido pela CIDH pelo Informe 17/06 del 2 de marzo de 2006.
39 ONU. Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Comunicação nº 3/2011, Caso H.
M. Vs. Suécia, CRPD/C/7/D/3/2011, 19 de abril de 2012, par. 8.3.

583
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nº 03/2011. O Comitê dos Direitos da Pessoa com Deficiência recusou a defesa do


estado, dizendo que era preciso fazer um meio termo entre a imprescindibilidade do
princípio da isonomia e da não-discriminação, não os concebendo como princípios
axiológicos de exclusão, dando para perceber a semelhança entre a lógica analisada
pelo Comitê e a executada pela Corte.
No caso da primeira condenação sofrida pelo Brasil, a irmã de Damião,
Irene Ximenes Lopes, encaminhada a denúncia à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos40, e ao Centro de Justiça Global – organização não-governamental
que promove à justiça social e os direitos humanos no Brasil, em 04 de outubro de
1999, a Comissão fez a admissibilidade (09/10/2002), sob violação dos direitos à
vida, à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 4, 5, 8 e
25 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos), em dezembro de 2003, a
Comissão fez recomendações ao governo brasileiro, como o estado brasileiro não as
cumpriu, por este motivo, a Comissão encaminhou o caso à Corte Interamericana.
Nos padrões estabelecidos dentro do sistema de petições e casos, existe os
relatórios de fundo e admissibilidade. Atualmente são três os casos de relatório de
fundo, já nas petições com admissibilidade, são sete casos pendentes41:
O primeiro relatório de fundo é o Caso Víctor Rosario Congo vs.
Equador42, a CIDH apontou a responsabilidade do estado pela morte de uma
pessoa com deficiência mental em um centro de reclusão; no segundo relatório nº
52/1343 e no terceiro nº 44/1444, a CIDH analisou contra os EUA casos de pena de
morte para pessoas com doença mental;
Já o primeiro relatório de admissibilidade, data de 2009, Wellington
Geovanny Peñafiel y Miguel Ángel Redrobán x Equador, Wellington Geovanny

40 BENTES, Natalia Mascarenhas Simoes; NASCIMENTO, Gustavo Oliveria do; BRAGA, Luis
Paulo Fernandes. A pessoa com deficiência mental no Brasil e o cumprimento das diretrizes da corte
interamericana de Direitos Humanos e do objetivo do desenvolvimento sustentável 3 da ONU. Bra-
zilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 6, p. 62377-62398 jun. 2021.
41 MUÑOZ, Jesica Paola Gómez. La protección a los derechos humanos de las personas en situación
de discapacidad por parte de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Revista IIDH (ins-
tituto interamericano de DH), v. 62, 2015, p. 113-146.
42 CIDH Relatório n° 63/99. Caso 11427. Caso Víctor Rosario Congo vs. Ecuador, de 13 de abril
de 1999.
43 CIDH. Relatório nº 52/13 casos 11.575, 12.333 y 12.341, Clearence Allen Lackey y otros,
Miguel Angel Flores y otros y James Wilson Chambers vs. Estados Unidos, 15 de julho de 2013.
44 CIDH, Reatório nº. 44/14, Caso 12.873, Edgar Tamayo Arias vs. Estados Unidos, 17 de julho
de 2014.

584
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

denunciou que trabalhou na Polícia Nacional do Regimento de Guayas, e como


consequencia adveio uma deficiência mental devido ao curso de proteção de
fronteiras realizado entre os anos de 1997/9845;
O segundo data também de 2009 trata-se de denúncia feita por diversas
associações, uma de indígenas outra de mulheres, um conselho de idosos, do
Departamento de Graças a Deus (equiparado a um estado brasileiro), sobre as
deficiências adquiridas devido a exploração no trabalho de pesca submarina46;
O terceiro nº 141/10, do ano de 2010, Luís Eduardo Guachalá Chimbó,
foi levado no dia 10 de janeiro de 2004, para o Hospital Psiquiátrico Público “Julio
Endara” na cidade de Quito, depois de uma crise, os parentes foram informados no
dia 17 que o mesmo estava desaparecido47;
Também emitido no ano de 2010, o quarto relatório faz referência a
uma petição de 8/11/1994. Pela Comissão Ecuménica de Direitos Humanos, os
denunciantes alegaram que María Zambano pessoa com doença mental, sofreu
uma detenção ilegal, permanecendo em prisão preventiva por mais de cinco anos48;
O quinto caso, data de 2011, admitido pelo relatório nº 13/1249, mas
recentemente através do relatório Nº 084/21, de 24 de março de 2021, a Comissão
enviou para a Corte, o caso de Luis Fernando Guevara Dias x Costa Rica. O
autor tinha sido reprovado no concurso público para o Ministério da Fazenda,
pelo motivo de sua deficiência, por isso foi demitido. Inicialmente, o denunciante
foi nomeado de forma interina, em junho de 2001, para trabalhar nos serviços
gerais do Ministério, depois fazendo concurso para ser detentor de cargo efetivo.
Na denúncia Guevara falou de um relatório do Ministério, sob uma recomendação
de não contratação por motivo de o mesmo ter “seus problemas de retardo e

45 CIDH, Informe No. 73/09, petición 4392-02, admisibilidad, Wellington Geovanny Peñafiel Pár-
raga vs. Equador, 2009.
46 CIDH, Informe No. 121/09, petición 1186-04, admisibilidad, Opario Lemoth Morris y otros
(buzos miskitos) vs. Honduras, 12 de noviembre de 2009.
47 CIDH, Informe No. 141/10, petición 247-07, admisibilidad, Luis Eduardo Guachalá Chimbó vs.
Ecuador 1 de noviembre de 2010.
48 CIDH, Informe No. 142/10, caso 11.513, admisibilidad, María Zambrano vs. Equador, 1 de
noviembre de 2010.
49 CIDH, Informe No. 13/12, petición 1064-05, admisibilidad, Luis Fernando Guevara Díaz vs.
Costa Rica, 20 de marzo de 2012.

585
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

bloqueio emocional”. Em seu Relatório de Mérito, a CIDH invocou o Artigo 1.1


da Convenção Americana, discriminação por motivo de deficiência50;
O sexto relatório, tem o nº 94/13, 10 (dez) pacientes da sala 25 do Serviço
de Psiquiatria de Hospital Santo Tomás, vítimas de maus tratos e negligência, 2
(dois) pacientes morrera. Outra paciente, que sofre de deficiência mental, Melany,
foi condenada a 28 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado51;
O sétimo relatório de admissibilidade, nº 56/14, o peticionante Jorge
Robledo Martinez, dirigia seu veículo ao lado de seu filho, Ronald Jared Martínez
Velásquez, e Marlon Fabricio Hernández filho de uma vizinha, o seu filho ficou
paraplégico após Policiais e Exercito Nacional dispararem 6 tiros contra seu
automóvel que trafegava na contramão52.
Normas estabelecidas nas diversas medidas de proteção, a CIDH,
também emite medidas cautelares, realiza audiências públicas, relatórios temáticos.
A CIDH protege as pessoas com deficiência através de medidas
cautelares, sempre que seja cumprida as condições de gravidade e urgência, neste
ponto existe vários destaques de medidas outorgado em favor dos: “Pacientes del
Hospital Neuropsiquiátrico de Paraguay”53 em 2103 a pedido da Disability Rights
Insternational; a favor de 334 pessoas com deficiências internadas no “Hospital
Federico Mora en Guatemala” a pedido da Disability Rights Insternational54 y la
Oficina de Derechos Humanos de Arzobisode Guatemala55 em 20/11/2012; a favor
de “Irene contra la República Argentina” em 201656. Outtra via que é utilizada
pela CIDH para abordar os direitos da pessoa com deficiência são as audiências

50 Impende ressaltar, que um caso parecido foi reconhecido por um tribunal brasileiro, invocando a
Convenção da Guatemala, Ver: TRT-2: 1000361-40.2021.5.02.0371 SP
51 CIDH, Informe No. 94/13, petición 790-05, admisibilidad, Pacientes del Servicio de Psiquiatría
del Hospital Santo Tomás vs. Panamá, 4 de noviembre de 2013.
52 CIDH, Informe No. 56/14, petición 886-04, informe de admisibilidad, Ronal Jared Martínez y
familia y Marlon Fabricio Hernández Fúnez vs. Honduras, 21 de julio de 2014.
53 Disponivel em: http://www.cidh.org/medidas/2003.sp.htma.
54 Disability Rights International, Solicitud de medidas cautelares a favor de las 334 personas con
discapacidad mental internadas en el Hospital Federico Mora, en Guatemala, Guatemala, 13 de oc-
tubre de 2012..
55 CIDH, Medidas Cautelares 370/12 – 334 Pacientes del Hospital Federico Mora, Guatemala, 20
de noviembre de 1012 (http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/cautelares.asp#tab2012).
56 Medida Cautelar No. 376-15 Irene respecto de Argentina 7 de julio de 2016. El 7 de agosto de
2015. (http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/2016/MC376-15-ES.pdf )

586
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

públicas, já foram celebradas diversas audiências relativas a pessoa com deficiência


57
. Estas audiências públicas estão bem abertas a participação de representantes dos
Estados, representantes da sociedade civil e vítimas. São uma ferramenta muito
importante que permite a CIDH conhecer a situação dos direitos da pessoa com
deficiência e dos Estados membros e igualmente possui mecanismos de solução58
amistosa.
Por outro lado, destaca-se que a CIDH elaborou os relatórios de países
ou informes temáticos59, em que são abordados a situação dos direitos da pessoa
com deficiência, apesar, de em nenhum deles foi analisado de maneira específica da
temática e elaboração de informes de países sobre o tema. Em 2012, pela primeira

57 Sesión: 172 Periodo de Sesiones; Fecha: 8/5/ 2019 Acceso a la educación inclusiva de
Personas con Discapacidad en la Región Participantes; Sesión: 171 Período de Sesiones; Fecha: 14/2/
2019 Denuncias de tortura, tratos crueles, inhumanos y degradantes en hospitales psiquiátricos en
Argentina; Sesión: 169 Periodo de Sesiones; Fecha: 4/10/ 2018 Política de drogas y denun-
cias de prácticas violatorias de derechos humanos del modelo de atención a la salud mental
en México; Sesión: 169 Periodo de Sesiones; Fecha: 1/10/ 2018 Derechos de las personas con
discapacidad en El Salvador ; Sesión: 168 Periodo de Sesiones CIDH; Fecha: 11/5/2018 Situación
de derechos sexuales y reproductivos de mujeres y niñas con discapacidad en las Américas Situación
de derechos humanos de las personas con discapacidad en Venezuela; Sesión: 164 Periodo de
Sesiones; Fecha: 5/9/2017 Situación de personas con discapacidad en Cuba; Sesión: 157 Periodo
de Sesiones; Fecha: 4/4/2016 Países: Ecuador Temas: Derechos de las Personas Privadas de Libertad,
Peticiones y Casos, Derechos de las Personas con Discapacidad; Sesión: 154 Periodo de Sesiones; Fe-
cha: 20/3/2015 Países: Guyana Temas: Derechos de las Mujeres, Derechos de los Pueblos Indígenas,
Derechos Económicos, Sociales y Culturales, Derechos de las Personas LGBTI, Derechos de las Per-
sonas con Discapacidad; Sesión: 154 Periodo de Sesiones; Fecha: 19/3/2015 Situación del derecho al
trabajo de las personas con disca-pacidad en Tucumán, Argentina y Acceso a la justicia para personas
con discapacidad en Guatemala; Sesión: 150 Periodo de Sesiones; Fecha: 25/3/2014 Situación de
derechos humanos de las personas con discapacidad en Cuba.Situación de la capacidad jurídica y el
acceso a la justicia de las personas con discapacidad en América Latina; Sesión: 150 Periodo de
Sesiones; Fecha: 24/3/2014 Violaciones a los derechos sexuales y reproductivos de las personas
con discapacidad en Colombia; Sesión: 149 Periodo de Se-siones; Fecha: 1/11/2013 Situación de
derechos humanos de las personas con discapacidad mental e intelectual en Perú; Sesión: 144 Periodo
de Sesiones; Fecha: 23/3/2012 Denuncias sobre segregación institucional y sobre abusos de niños y
adultos con discapacidad en México; Sesión: 143 Período de Sesiones; Fecha: 24/10/2011, Países:
Honduras Temas: Derechos de los Pueblos Indígenas, Derechos de los Afrodescendientes / Contra la
Discriminación Racial, Peticiones y Casos, Derechos de las Per-sonas con Discapacidad; Sesión: 140
Período de Sesiones; Fecha: 28/10/2010 Maltrato a niños y niñas con discapacidad en instituciones
estatales en las Américas; Sesión: 137 Período de Sesiones; Fecha: 6/11/2009 Derecho a la educación
de las personas con discapacidad en las Américas.
58 CIDH, Informe No. 86/11, caso 12.232, solución amistosa, María Soledad Cisternas Reyes vs.
Chile, 21 de julio de 2011.
59 Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/tematicos.asp.

587
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

vez em um relatório sobre os direitos humanos em uma nação, especialmente no


relatório da Jamaica, foi incluído uma seção só sobre as pessoas com deficiências,
onde constatou-se que 10 % dos jamaicanos possuíam deficiência, igualmente um
grande aumento de pessoas com deficiência que contraíram HIV60.
A CIDH em seu Plano estratégico 2017-2021, identificou a situação de
direitos humanos das pessoas com deficiência como um de seus temas prioritários
para este período. Esta decisão foi acompanhada pela criação da Unidade sobre
direitos das pessoas com deficiências (UDPCD)61. Com isso, a CIDH busca dá
visibilidade aos desafios e violações que em matéria de direitos humanos enfrentam
as pessoas com deficiências nas Américas, assegurar a efetiva promoção e proteção
de seus direitos humanos através de diversos mecanismos próprios do sistema
interamericano.
Por último, o relatório 289/20 a CIDH fez um apelo para que os estados
membros adotem providencias para assegura o direito a capacidade jurídica das
pessoas com deficiências intelectual, ao tempo que elogiou as legislações de Peru,
Costa Rica, Argentina e Colômbia.

3.3.2 A Temática das Pessoas com Deficiência no Âmbito da Corte


Interamericana

Impende ressaltar que para aplicar os direitos humanos das pessoas com
deficiência, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou também designada
Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos (Corte IDH) possui dois
instrumentos de hirarquia superior especificamente sobre esses direitos, que é a
Convenção Interamericana sobre Eliminação de toda a forma de discriminação
contra pessoas “portadoras” de deficiência (CePD) para aplicação imediata e direta
e a Convenão da ONU, de Nova York, sobre os direitos das pessoas com deficiência
(CDPD), esta última utilizada como ferramenta de hermenêutica.
Fica significativo perceber que a conceitualização da Convenção
Interamericana dos direitos das pessoas com deficiência foi feita anteriormente a

60 CIDH, Informe sobre la Situación de Derechos Humanos en Jamaica, 10 de agosto de 2012.


Disponivel em: http://www.oas.org/es/cidh/docs/pdfs/Jamaica2012esp.pdf.
61 STICCA, María Alejandra. Los derechos de las personas con discapacidad. Um tema prioritário
em la labor de la comisión interamericana de derechos humanos. Revista de la Facultad De Derecho,
11(1), pág. 133-144. Universidad Nacional de Córdoba. v. XI. nº 1. NUEVA SERIE II (2020). Dis-
ponível em https://revistas.unc.edu.ar/index.php/refade/article/view/29920/30704.

588
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

CDPD, fica evidente uma contradição entre estas definições, enquanto a CePD
aborda a definição médica, consolando a incapacidade na pessoa ligadamente com
sua invalidez62.
Neste contexto o Corte IDH teve que fazer um limiar de intrepretação
entre termos parecidos na CePD e na CDPD para concluir pelo conceito do
modelo social63.
Também salientando que pela cláusula pro peersona, a interpratação dada
aos artigos 18 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (PoCADH)64 e o art. 9ª (CETFDM)65,devem levar em consideração o
modelo social da CDPD.
As barreiras foram ditas em uma sentença sobre crianças com deficiência66,
citando que estas pessoas sofrem de quatro tipos de barreiras, as “físicas ou
arquitetónicas”, as “comunicativas” e as de “atitudes”67, além das “socioeconomicas”.

62 Corte IDH. Caso Furlan e Familiares vs. Argentina, Sentença de 31 de agosto de 2012, Exceções
Preliminares. Mérito, Reparações e Custas, § 128-130, 133.
63 Corte IDH. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) vs. Costa Rica. Excepciones Pre-
limares, Fondo, Reparaciones Y Costas, Sentencia de 28 de noviembre de 2012. § 290 e 291
64 Artigo 18. Proteção de Deficientes. Toda pessoa afetada pela diminuição de suas capacidades
físicas e mentais tem direito a receber atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimento
de sua personalidade. Os Estados-Partes comprometem-se a adotar as medidas necessárias para esse
fim e, especialmente, a: a) executar programas específicos destinados a proporcionar aos deficientes
os recursos e o ambiente necessário para alcançar esse objetivo, inclusive programas de trabalho ade-
quados a suas possibilidades e que deverão ser livremente aceitos por eles ou, quando for o caso, por
seus representantes legais; b) proporcionar formação especial aos familiares dos deficientes, a fim de
ajudá-los a resolver os problemas de convivência e a convertê-los em elementos atuantes do desenvol-
vimento físico, mental e emocional dos deficientes; c) incluir, de maneira prioritária, em seus planos
de desenvolvimento urbano a consideração de soluções para os requisitos específicos decorrentes das
necessidades desse grupo; d) promover a formação de organizações sociais nas quais os deficientes
possam desenvolver uma vida plena.
65 Convenção de Belém do Pará: Para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados
Partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça, origem
étnica ou condição de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos. Também será
considerada sujeitada a violência a gestante, deficiente, menor, idosa ou em situação sócio-econômica
desfavorável, afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade.
66 CG nº 9 (Direito das crianças com deficiência), de 27 de fevereiro de 2007, § 37 e 39 (t.l.).
67 Barreiras atitudinais encontra-se previsto no art. 3º, inciso IV, alínea “e”, da LBI ou Estatuto da
pessoa com deficiência.

589
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Dois casos parecidos e importantes para ser estudados, Tanto no caso


Furlan x Argentina quanto no caso Ximens Lopes x Brasil, a Corte votou pele dever
do estado de cuidado para com as pessoas com deficiência por parte do estado:

A este respeito, a Corte observa que nas mencionadas


Convenções se tem em conta o modelo social para abordar
a deficiência, o que implica que a deficiência não se define
exclusivamente pela presença de uma deficiência física,
mental, intelectual ou sensorial, mas que se interrelaciona com
as barreiras ou limitações existentes socialmente para que as
pessoas possam exercer seus direitos de maneira efetiva. Os
tipos de limites ou barreiras que as pessoas com diversidade
funcional comumente encontram na sociedade são, entre
outras, barreiras físicas ou arquitetônicas, comunicativas
de atitudes ou socioeconômicas.[...] Isso implica que as
medidas de reparação não se concentram exclusivamente
em medidas de reabilitação de tipo médico, mas incluem
medidas que ajudem a pessoa com deficiência a enfrentar
as barreiras ou limitações impostas, com o objetivo de que
esta pessoa possa “alcançar e manter a máxima independência,
capacidade física, mental, social e vocacional, e a inclusão e
participação plena em todos os aspectos da vida68.

Foi com base no modelo social da deficiência que problemas de ferti-


lidade necessitando do auxílio de Fecundação in vitro, foram considerados como
deficiência pelo Corte IDH 69. Refere-se aos elementos da OMS e da CIF70:

A deficiência (incapacidade) implica um ou mais dos três


níveis de dificuldade nas funções humanas: uma deficiência
físico-psicológica; uma limitação de atividade devido a
uma deficiência (limitação de atividade) e uma restrição de
participação devido a uma limitação de atividade. Seguindo
o modelo de incapacidade da CIF e citando a opinião do
especialista Paul Hunt, ex-relator especial sobre direito à

68 YEPES, Rodrigo Uprimny; DUQUE, Luz María Sánchez. Convención Americana sobre Derechos
Humanos -Comentario. Berlín: Konrad AdenauerStiftung, 2014. p. 587-588.
69 Corte IDH. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) vs. Costa Rica. Excepciones
Prelimares, Fondo, Reparaciones Y Costas, Sentencia de 28 de noviembre de 2012. § 288-289 e 293.
70 Vide Resolução 1/2020 da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência onde o
Brasil aprova o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado.

590
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

saúde, a Corte entendeu que a infertilidade involuntária


é uma deficiência. Também expressou que a infertilidade é
uma limitação funcional reconhecida como uma doença e,
portanto, as pessoas que sofrem com essa situação devem ficar
sob proteção71.

O Corte IDH também reconheceu que os casos de Hiv/Aids72 devem


ser considerados uma deficiência, não por ser uma situação de per se inerente a
deficiencia, mas por conta das barreiras criadas pelo estigma socialmente e pelas
questões de saúde73.
Usando por analogia o conceito de proíbição por motivo de deficiência
da CDPD, o Corte IDH entendeu que as pessoas com HIV não devem sofrer
discrminação74.
Com base na jurisprudência do Corte IDH não é possivel precisar com
certidão quem são e quem não são as pessoas com deficiencia, não deve ser feito
uma confusão entre deficiência e coisas de outra natureza, caso faça isso seria
uma indefinição, baseado em quadros de definições superadas, sem nenhuma
ligação trazida pelo modelo social consagrado na CDPD. Os dois casos analisados
anteriormente de fertilidade e HIV são doenças reconhecidas pela OMS75.
O modelo social da deficiência não só ficou consolidado pela Corte IDH
no caso Caso Gonzales Lluy y otros vs. Ecuador, como já vinha sendo construído
desde o caso Furlan e familiares vs. Argentina76.

71 GUARNIZO-PERALTA, Diana. Disability rights in the Inter-American System of Human


Rights: An expansive and evolving protection. Netherlands Quarterly of Human Rights, vol. 36, ano
2018. Disponível em: journals.sagepub.com/home/nqh. Acesso em: 8 out. 2021.
72 VIH/SIDA.
73 CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy y otros vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 01 de septiembre de 2015, § 236-237.
74 CORTE IDH. Caso Chinchilla Sandoval vs. Guatemala. Sentencia de 29 de febrero de 2016.
Excepcíon preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, § 203-207 e 208. Por analogia, diálogo entre
a cortes, citamos um caso em que a jurisprudência brasiliera reconheceu o HIV como deficiência:
TJ-MG AC 10024121712772002.
75 SOUSA, Filipe Venade de. A convenção das nações unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência
no ordenamento jurídico português: contributo para a compreensão do estatuto jusfundamental. Coim-
bra: Almedina, 2018. p. 50.
76 PAIVA, Caio Cezar. HEEMANN, Thimothie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos
Humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017. p. 484-490.

591
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

No caso Furlan a Corte também fez uma interpretação evolutiva dos


direitos humanos:

A Corte Interamericana considera que toda pessoa que


se encontre em situação de vulnerabilidade é titular de
uma proteção especial, em virtude dos deveres especiais
cujo cumprimento por parte do Estado é necessário
para atender às obrigações gerais de respeito e garantia
dos direitoshumanos. A Corte reitera que não basta que
os Estados se abstenham de violar os direitos, mas
que é imperativa a adoção de medidas positivas,
determináveis em função das necessidades particulares
de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição
pessoal, seja pela situação específica em que se encontre,
como a deficiência77.

A Corte reconheceu a vulnerabilidade de Furlan, e que a não reabilitação,


não reparou, provocou um “dano ao projeto de vida”, dificultando o desenvolvimento
profissional e familiar:

Com respeito ao suposto “dano às relações de vida” alegado


pelos representantes no caso de Sebastián Furlan, tomando
em conta o conteúdo da alegação, a Corte interpreta esta
expressão em relação ao denominado dano ao “projeto de
vida”, que se refere à realização integral da pessoa afetada,
considerando sua vocação, aptidões, circunstâncias,
potencialidades e aspirações, que lhe permitem fixar
razoavelmente determinadas expectativas e alcançá-
las. O projeto de vida se expressa nas expectativas de
desenvolvimento pessoal, profissional e familiar possíveis em
condições normais. Esta Corte indicou que o “dano ao projeto
de vida” implica a perda ou o grave prejuízo de oportunidades
de desenvolvimento pessoal, de forma irreparável ou muito
dificilmente reparável. Este dano se deriva das limitações
sofridas por uma pessoa para se relacionar e gozar de seu
ambiente pessoal, familiar ou social, por lesões graves de
tipo físico, mental, psicológico ou emocional. A reparação
integral do dano ao “projeto de vida” geralmente requer

77 CORTE IDH, Caso “Furlan e familiares Vs. Argentina”. Sentença de 31 de agosto de 2012,
parágrafo 114. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_246_esp.pdf.
Acesso em: 12 jun. 2021.

592
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

medidas reparatórias que vão além de uma mera indenização


monetária, consistentes em medidas de reabilitação,
satisfação e não repetição78.

Teria a CDPD trazido novos direitos? Ou somente reafirma os direitos já


preexistentes, Astroga (2008) defende que existe ao menos mais um direitos trazido
pela CDPD: “o direito à habilitação (do qual são beneficiárias as pessoas que ao
nascer têm uma deficiência) e o direito à reabilitação (do qual são beneficiárias
todas as pessoas com deficiências)”79.
Contradição do citado autor, apenar do debate não está resolvido, uma
que o direito a reabilitação já vinha sendo trazido pela ONU desde a segunda
guerra mundial.

4 O IMPACTO DA CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA A


ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA
AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL

O Corte IDH desenvolveu o “Caderno de Jurisprudências da Corte


Interamericana”, na edição nº 28, trouxe o tema do caso Damião Ximenes Lopes
vs Brasil.
O caso Damião Ximenes Lopes x Brasil resultou com uma condenação
inédita para o Estado Brasileiro, no ano de 2006, sendo a vez em que um tribunal
internacional condenou o Brasil por uma violação aos direitos de uma pessoa com
deficiência, o Brasil foi responsável no âmbito Internacional pela omissão em não
evitar a tortura e consequente óbito de uma pessoa com deficiência mental e, não
consegui fazer a apuração e punir os agentes públicos envolvidos. O caso Damião
Ximenes Lopes, que passou 3 (três) dias internado numa Casa de Repouso na
cidade de Sobral interior do estado do Ceará (o nome da casa é Guararapes que
atua junto com o Sistema Único de Saúde - SUS), no direito de visita sua genitora
percebeu que o Damião Ximenes se encontrava em estado de maus tratos (sangue
e sujeira pelo corpo), e logo após veio a óbito. Para a certidão de óbito o médico

78 CORTE IDH, Caso “Furlan e familiares Vs. Argentina”. Sentença de 31 de agosto de 2012,
parágrafo 114. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_246_esp.pdf.
Acesso em: 12 jun. 2021.
79 ASTROGA, Luis Fernando. Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad:
esperanza e instrumento para construir un mundo más accesible e inclusivo. Revista CEJIL, ano III,
Nº 4, dezembro de 2008, p. 139.

593
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

deu o atestado de parada cardiorrespiratória. A família denunciou na Assembleia


Legislativa do estado do Ceará (Comissão parlamentar de Direitos Humanos),
e ainda buscou outros tipos de proteção no ordenamento jurídico interno. Em
seguida, a Irmã da vítima, protocolou uma denúncia perante à Organização não
governamental (ONG) Justiça Global e à justiça internacional. O estado brasileiro
se defendeu alegando exceção preliminar dizendo que as partes não tinham esgotado
os recursos internamente, exceção vista como ocasional. O estado brasileiro
constatou a violação ao Pacto de San José, sugeriu pensão vitalícia para a genitora
da vítima, mas alegou que tinha feito todas as diligências no sentido de promover
aprimoramentos para as instituições psiquiátricas do Brasil80.
A sentença da Corte foi procedente em decidir que o estado brasileiro
agrediu sua obrigatoriedade de assegurar e proteger os direitos fundamentais, no
caso concreto, à saúde mental e integridade física da vítima e de seus familiares, e
também não assegurou e protegeu as prerrogativas do devido processo legal para
seus parentes 81.
Por ser brasileiro, o juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, fez um
voto em separado, demonstrando sua preocupação com as pessoas com deficiência
nos itens 39 e 40, in verbis82.

80 BORGES, Nadine Monteiro. O caso Damião Ximenes: uma análise sociojurídica do acesso à Co-
missão e à Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciências
Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008. p. 26.
81 “Este caso reveste-se de particular importância dado que oferece ao Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos a oportunidade de desenvolver sua jurisprudência em relação aos
direitos e à situação de vulnerabilidade especial das pessoas portadoras de deficiência mental, bem
como sobre os tratamentos cruéis e discriminatório a que são frequentemente expostas”. Ibid., p. 26.
82 “39. O fato de ser a vítima direta do presente caso uma pessoa portadora de deficiência mental (o
primeiro caso do gênero perante a Corte) reveste-o de circunstância agravante. Na presente Sentença,
a Corte reconhece a proteção especial que requerem as pessoas particularmente vulneráveis, portado-
ras de deficiência mental, – como o Sr. Damião Ximenes Lopes, vítima fatal no cas d’espèce (pars.
103-105), – e adverte que: ‘[...] a vulnerabilidade intrínseca das pessoas com deficiências mentais é
agravada pelo alto grau de intimidade que caracteriza os tratamentos das enfermidades psiquiátricas,
que torna essas pessoas mais suscetíveis a tratamentos abusivos quando são submetidas a internação’
(par. 106) [...]. 40. As obrigações de proteção, – ainda mais em uma situação de alta vulnerabilidade
da vítima como a presente, – revestem-se de caráter erga omnes (par. 85), abarcando também as
relações interindividuais, tendo presente o dever do Estado de prevenção e de devida diligência, sobre-
tudo em relação a pessoas que se encontram sobre seus cuidados. A saúde pública é um bem público,
não uma mercadoria. Em meus numerosos escritos e Votos no seio desta Corte, venho expressando
há tantos anos meu entendimento no sentido de que todas as obrigações convencionais de proteção
revestem-se de um caráter erga omnes. É-me particularmente difícil escapar da impressão que me

594
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Igualmente o voto do juiz Sérgio Garcia Ramirez fundamentando com


expressa preocupação as violações contra os direitos das pessoas com deficiência,
conforme itens 2 e 3, in verbis83.
Segundo Flávia Piovesan:

[...] Na opinião das entidades representativas dos direitos das


pessoas portadoras de deficiência, a falta de implementação
deve-se ao abismo entre as propostas de governo e sua
execução, quer seja por motivos políticos, quer seja pela
ausência de capacitação e sensibilidade dos agentes estatais
incumbidos de executá-las84.

A referida sentença foi inédita e histórica, especialmente no tocante aos


direitos humanos das pessoas com deficiência. No ano de 2007, o estado brasileiro
reiterou a competência e legitimação da Corte e seu comprometimento com o
Sistema Interamericano, quando a presidência da República publicou a indenização
aos parentes da vítima85, que convertido de dólares para real resultou em R$

assalta no sentido de que em todo esse tempo talvez tenha eu escrito e continue escrevendo para os
pássaros [...]” Disponível em: http:www.corteidh.org.cr. Acesso em: 13 jun. 2021.
83 “2. Os direitos e as garantias universais, que têm caráter básico e foram pensados para a generalida-
de das pessoas, devem ser complementados, afinados, precisados com direitos e garantias que operam
junto a indivíduos pertencentes a grupos, setores ou comunidades específicos, isto é, que adquirem
sentido para a particularidade de algumas ou muitas pessoas, mas não todas. Isto permite ver, por de-
trás do desenho genérico do ser humano, membro de uma sociedade uniforme – que pode alçar-se na
abstração a partir de sujeitos homogêneos –, o caso ou os casos de seres humanos de carne e osso, com
perfil característico e exigências diferenciadas. 3. Certamente é tarefa do Estado – e isto se acha em
sua origem e justificação – preservar os direitos de todas as pessoas sujeitas a sua jurisdição, conceito
de amplo alcance, que naturalmente transcende as conotações territoriais, observando para isso as
condutas ativas ou omissivas que melhor correspondam a essa tutela para favorecer o gozo e exercício
dos direitos. Nesse sentido, o Estado deve evitar escrupulosamente a desigualdade e a discriminação
e proporcionar o amparo universal das pessoas que se encontrem sob sua jurisdição, sem mirar para
condições individuais ou de grupo que possam subtrair-las da proteção geral ou impor-lhes – de jure
ou de facto – ônus adicionais ou desproteções específicas [...].” Disponível em: http:www.corteidh.
org.cr. Acesso em: 13 jun. 2021.
84 PIOVESAN, Flávia. Reforma do Judiciário e direitos humanos. In: ALARCÓN, Pietro de Jesús
Lora; LENZA, Pedro; TAVARES, André Ramos (coord.). Reforma do judiciário analisada e comenta-
da. São Paulo: Método, 2005.
85 Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Consti-
tuição da República, e considerando a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no
caso Damião Ximenes Lopes; considerando a existência de previsão orçamentária para pagamento de
indenização a vítimas de violação das obrigações contraídas pela União por meio da adesão a tratados

595
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

280.532,85 (duzentos e oitenta mil, quinhentos e trinta e dois reais e oitenta e


cinco centavos).
O presente capítulo encontra-se dividido em três item, no primeiro foi
analisado a hierarquia constitucional da convenção da Guatemala no ordenamento
jurídico brasileiro, no segundo foi feito um levantamento dos relatórios que o
Brasil respondeu aos informes temáticos da Comissão, no terceiro foi analisada
a interpretação que a jurisprudência brasileira dá em harmonizar a convenção
regional da Guatemala com a convenção global de Nova York.

4.1 INCORPORAÇÃO, FORÇA NORMATIVA E RELEVÂNCIA DA


CONVENÇÃO

A Constituição do Brasil de 1988, promulgada no periodo de


redomocratização, após a ditadura militar, famireda de consituição cidadã, faz uma
grande contemplação dos direitos humanos desde o preâmbulo até todo o texto
positivado (especificamente artigos 1º, inciso II e III, artigo 3º, artigo 4º, inciso II),
uma verdadeira prevalência dos DHs86.
Os parágrafos 1º e 2º do art. 5º estabelecem o princípio da aplicabilidade
imediata das normas de direitos humanos (§ 1º) realça a força normativa de todos
os preceitos constitucionais referentes a direitos humanos.
A aplicabilidade direta e imediata tem o sentido fundamental de que:

Os direitos, as liberdades e as garantias são regras e princípios


jurídicos, imediatamente eficazes e actuais, por via direta
de Constituição e ao através de auctoritas interpositio do
legislador. Não são simples norma normarum mas norma
normata, isto é, não são meras normas para a produção de

internacionais de proteção dos direitos humanos; DECRETA: Art. 1º Fica autorizado a Secretaria
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República a promover as gestões necessárias ao
cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, expedida em 4 de julho de
2006, referente ao caso Damião Ximenes Lopes, em especial a indenização pelas violações dos direitos
humanos aos familiares ou a quem de direito couber, na forma do Anexo a este Decreto. Art. 2º Este
Decreto entra em vigor na data de sua publicação. BRASIL, 2007.
86 “Destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos...”. Cf. Constituição
da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 10 mar. 2021.

596
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de


relação jurídico-materiais87.

O art. 5º §2º dispõe sobre a cláusula de abertura ou d:a não tipicidade


dos direitos fundamentais. Pela cláusula de abertura permiti-se a inserção de direitos
fundamentais não tipificados e decorrentes do regime e dos princípios adotados
pela Constituição, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte, estendendo o rol de direitos fundamentais88.
Nos dizeres de Antônio Augusto Cançado Trindade:

Assim, a novidade do art. 5 (2) da Constituição Federal de


1988 consiste no acréscimo, por proposta que avancei, ao
elenco dos direitos constitucionais consagrados, dos direitos
e garantias dos direitos expressos em tratados internacionais
em que o Brasil é parte. Observe-se que os direitos se fazem
acompanhar necessariamente das garantias. É alentador que
as conquistas do Direito Internacional em favor da proteção
do humanos venham a projetar-se no Direito Constitucional,
enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção
cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida
nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto
constitucionalista89.

O relatório fornecido pelo jurista Cançado Trindade, feito na Comissão


de Direitos e Garantias Individuais, diz que o objetivo do Poder Constituinte
Originário era inserir no texto positvado uma forma ampla de garantir os direitos
fundamentais consagrados internacionalmente90.
Desta forma, o entendimento doutrinário entendia que existiam dois
regimes jurídicos em matéria de instrumentos internacionais no Brasil: o regime
jurídico comum, para os tratados em geral, cujo status hierárquico é igual ao das leis

87 Cf. CANOTILHO, José Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
p. 587.
88 Ver: https://www.academia.edu/31356317/MOREIRA_Thiago_Oliveira_A_Aplica%C3%A7%-
C3%A3o_dos_Tratados_Internacionais_de_Direitos_Humanos_pela_jurisdi%C3%A7%C3%A3o_
brasileira_Natal_EDUFRN_2015.
89 Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos:
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 631.
90 Cf. LOUREIRO, Sílvia Maria da Silveira. Os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos na
Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 44-48.

597
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

ordinárias, e o regime jurídico especial e próprio dos tratados em matéria de direitos


humanos, cujo status hierárquico é equiparado ao de normas constitucionais,
devido às disposições constantes dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição
da República.
No entanto, com a “reforma do judiciário feita pela Emenda de nº
45/2004”, foi acrescentado um § 3º ao artigo 5 da Constituição Federal de 1988
(CF/88) dizendo que os tratados internacionais de direitos humanos só teriam
status de emenda constitucional caso fossem aprovados pelos mesmos requisitos
formais do processo legislativo das Emendas à Constituição.
Foi consolidado o entendimento pelo Supremo Tribunal Federal, no
RE 466343 em 2008, de que os tratados que não forem aprovados pelo quórum
qualificado, possuem estatuto supralegal, acima das leis complementares e leis
ordinárias e abaixo da constituição.
Portanto, a Convenção da Guatemala, possui uma hierarquia supralegal,
acima da legislação interna e abaixo da Constituição91, doutrina minoritária a
exemplo de Flavia Piovesan defende que deveria ter hierarquia constitucional.

4.2 OS RELATÓRIOS ENVIADOS À COMISSÃO PARA A ELIMINAÇÃO


DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRAS AS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA

A Convenção criou um Órgão de supervisão de seu cumprimento


que é o Comité para todas as formas de discriminação contra as pessoas com
deficiência CEDDIS (art. VI.1), na prática, a utilidade da CEDDIS possui
limitações ficando parecida com a antiga Relatoria sobre deficiência da ONU, que
é solicitar informações a organizações, a sua melhor função é a de observar se está
existindo desenvolvimento na aplicação da Convenção da Guatemala e alternar as
experiências dos países membros (Artigo VI.5 da CIPCD). Com essa finalidade,
os países membros possuem a obrigação de mostrar relatórios a cada quadriênio
relacionados as medidas que foram feitas para aplicar a Convenção e qualquer
progressão no tocante a eliminar os preconceitos92. Após receber os relatórios dos

91 Ver: STF. RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, voto do min. Gilmar Mendes, j. 3-12-2008,
P, DJE de 5-6-2009, Tema 60.
92 Mecanismo de controle estabelecido no artigo VI.3 da CIPCD e nos artigos 16 a 22 do Regula-
mento.

598
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

estados partes, a CEDDIS emite um relatório final conclusivo, fazendo observar e


sugerir melhorias para proteção da CIPCD93.
Em fevereiro de 2020 o Brasil respondeu o III Relatório Nacional de
Cumprimento da Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas
de Discriminação contra Pessoas com Deficiência (CIADDIS) e também do
Programa de Ação para a Década das Américas pelos Direitos e pela Dignidade
das Pessoas com Deficiência (PAD) é o mecanismo internacional de fiscalização
emitido pelo Estado brasileiro com o objetivo de comprovar o cumprimento das
contas solicitadas pelo Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as
Pessoas com Deficiência (CEDDIS), essa instrumentalização de revisão fazem parte
do Programa de Inclusão Social das Pessoas com Deficiência, criado em 26 de
Setembro de 2007 pela OEA.
O relatório presta a documentação relacionada a população brasileira
com deficiência no tocante a: educação; saúde; trabalho e emprego; conscientização
da sociedade; acessibilidade; participação política e social do cidadão;
desenvolvimento, bem estar e inclusão social; participação em atividades culturais,
artísticas, desportivas e recreativas; acesso à justiça; vida livre de violência; situações
de emergências, catástrofes e desastres; cooperação internacional; capacidade
jurídica; habilitação e reabilitação; autonomia pessoal e vida independente.
O citado relatório foi preenchido pelas autoridades nacionais sob a
coordenação do ente no Estado como os Conselhos ou Secretarias Nacionais para a
inclusão das pessoas com deficiência (CONADIS/SENADIS) ou outras similares.
A finalidade do terceiro informe foi avaliar a evolução em relação ao segundo
informe CIADDIS-PAD 2015-2016.
O Brasil alega que para cumprir os direitos, criou a LBI/EPD e a
Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência – CPD é uma das 23
Comissões Permanentes da Câmara dos Deputados. Foi criada em 25 de fevereiro
de 2015 (Resolução nº 1/2015).
Um fato a ser notado, é a diferença significativa no Percentual da
população brasileira que se declarou ter algum tipo de deficiência, 23,9%, para o
número enviado pelo relatório de 8,3 % casos, ou, 6,7% que declaram ter ao menos

93 Artigo 20 do Regulamento. Em 2013 somente Honduras e Haiti não entregaram os relatórios. O


material destes relatórios pode ser consultado em: http://www.oas.org/es/sedi/ddse/paginas/index-4_
informes.asp. Acesso em: 1 out. 2021.

599
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

uma deficiência, para essa diferença o relatório traz sua explicação, in verbis94. A
taxa de analfabetismo da população geral é de 10,5% população sem deficiência
7,9% população com deficiência 32,2%. Sobre o Nível educacional (dados Censo
Escolar 2018): Indicador Educação Infantil: 0,54; Indicador Ensino Fundamental:
2,87; Indicador Ensino Médio: 0,75; Indicador acima de 18 anos (EJA e Ensino
Superior): 0,12. Número médio de anos de estudo da população com deficiência
(não há recorte de deficiência na PNAD)95. Taxa de ocupação da população com
deficiência 46,2 %. Pessoas com deficiência em cargos de representação eletiva
à nível nacional: apenas dois, Mara Gabrilli e Felipe Rigoni, dentre quase 600
parlamentares, totalizando somente 0,34 %.
No item “Indicador de Autonomia Pessoal e Vida Independente” e sub-
item “1.2: Garantia de acesso a veículos automotores adaptados para pessoas com
deficiência”. O brasil alegou que possui a lei de isenção de impostos (Lei nº 8.989,
de 24 de fevereiro de 1995, mas esqueceu de avisar que este direito ficou nestes
2 anos de pandemia covid19 em desuso, por conta da medida provisória 1.034,
de 01 de março de 2021, que limitou em R$ 70 mil reais o valor máximo de

94 “Esse valor total corresponde ao número de manifestações de deficiências, ou seja, inclui duplici-
dade no caso de pessoas que possuem mais de uma deficiência (pessoas com deficiências multiplicas).
O total de pessoas com deficiência residentes no Brasil, em 2010, é de 12.748.663, ou seja, 6,7%
da população brasileira registrada pelo Censo Demográfico de 2010. Esse corte utilizado seguem as
recomendações internacionais, em consonância com o Washington Group, ou seja, as pessoas com
deficiência foram aquelas que responderam ao Censo que tinham “muita dificuldade” ou “não conse-
gue de modo algum” em uma ou mais questões do tema apresentadas no questionário do Censo 2010.
Para mais esclarecimentos: ftp.ibge.gov.br › notas_tecnicas › nota_tecnica_2018_01_censo2010. Para
todo esse relatório, para os dados oriundos do Censo, foi utilizado esse corte”. Disponível em: https://
www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/atuacao-internacional/relatorios-internacionais-1/relato-
rio-brasileiro-de-cumprimento-da-convencao-interamericana-para-a-eliminacao-de-todas-as-formas-
-de-discriminacao-contra-as-pessoas-com-deficiencia-ciaddis.
95 “Os resultados do Censo Demográfico 2010 mostraram diferenças significativas entre o nível de
instrução das pessoas com pelo menos uma das deficiências investigadas e o daquelas sem alguma
dessas deficiências. Enquanto 61,1% da população de 15 anos ou mais de idade com deficiência não
tinha instrução ou possuía apenas o fundamental incompleto, esse percentual era de 38,2% para as
pessoas de 15 anos ou mais que declararam não ter nenhuma das deficiências investigadas, represen-
tando uma diferença de 22,9 pontos percentuais. A segunda maior diferença em pontos percentuais
foi observada para o ensino médio completo e o superior incompleto, onde o percentual de população
de 15 anos ou mais com deficiência foi de 17,7% contra 29,7% para as pessoas sem deficiência. Ob-
servou-se ainda que a menor diferença estava no ensino superior completo: 6,7% para a população de
15 anos ou mais com deficiência e 10,4% para a população sem deficiência”. Disponível em: https://
www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/atuacao-internacional/relatorios-internacionais-1/relato-
rio-brasileiro-de-cumprimento-da-convencao-interamericana-para-a-eliminacao-de-todas-as-formas-
-de-discriminacao-contra-as-pessoas-com-deficiencia-ciaddis.

600
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

um automóvel a ser comprado, praticamente não existe automóvel automático


adaptado neste valor.
Neste período de pandemia, a CIDH recebeu uma informação sobre
a preocupação de pessoas com deficiência ficarem mais expostas a covid19,
relatório Nº 289/20. A CEDDIS fez um comentário geral muito importante sobre
reinterpretação ao artigo I.2 da CIPDCD96, em consonância com o artigo 12 da
CDPCD97.

4.3 APLICAÇÃO DA CONVENÇÃO PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

A convenção da Guatemala tem sido aplicada pelos tribunais superiores


brasileiros nos julgamentos dos direitos das pessoas com deficiência.
O pleno do STF no julgamento da ADI 5357, que ocorreu após a
entrada em vigor da LBI, reconheceu-se a constitucionalidade dos artigos 28, §
1º e 30 da Lei nº 13.146/2015, os quais asseguram o direito das pessoas com
deficiência não serem cobradas taxas adcionais pelas escolas privadas na questão
da educação inclusiva. Em seu voto a Ministra Rosa Weber citou “e na Convenção
Interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as
pessoas portadoras de deficiência – Convenção da Guatemala, de 1999”. Ainda sobre
a educação especial ou especializada, o TJ-ES na APL 0007721-36.2008.8.08.0030
julgou procedente danos materiais e morais por ter negado rematricula de aluno
com necessidades especias, a decisão citou “Reside aí a configuração da conduta

96 O artigo I.2 alinha b) in fine da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência da O.E.A necessita ser reinterpretado
à luz do novo paradigma do artigo 12 citado. Não se trata apenas de analisar a perspectiva de avaliar
a legislação interna de cada Estado Parte relacionada com a interdição e tutela, mas também analisar,
para além de questões jurídicas, as implicações práticas destas medidas estatais. Não se deve confundir
o sistema de capacidade/incapacidade de exercício dos direitos em determinadas circunstâncias, com a
procura de um modo de representação diferente das pessoas com deficiência que sustente a autonomia
das mesmas, reconheça a sua plena capacidade jurídica e personalidade jurídica e proponha um modo
de apoio e garantias, apenas nos casos em que isso seja necessário. Ou seja, partir das competências
das pessoas, daquilo que podem fazer por si próprias, para depois determinar as circunstâncias que
necessitam de apoios com salvaguardas.
97 CEDDIS. Comentário Geral da Comissão para a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-
ção contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, sobre a necessidade de interpretar o artigo I.2, alinha
B) In fine da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação con-
tra as Pessoas Portadoras de Deficiência, no contexto do artigo 12 da Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 28 de abril de 2011.

601
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

discriminatória imputada à requerida e definida no artigo 2º, nº 2, alínea ‘a’ do


Pacto de Guatemala”.
No voto-vista do Sr. Ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento que
resultou na súmula nº 552 (surdez unilateral) do STJ, MS 18.966-DF, citou a
convenção da OEA “[...] citamos a Convenção Interamericana para a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência
(Convenção da Guatemala – 1999) [...]”.
O STF ao analisar um MS sobre a questão das pessoas com surdez
unilateral ser considerada uma deficiência, em interpretação com a definição de
deficiência do art. 3º da Convenção da Guatemala, o relator Gilmar mendes98
julgou por prejudicada a questão uma vez que o MS não permite dilação probatória.
A definição da ciência sobre deficiência é mutavel as barreiras que podem sugir no
ambiente economico e social, por seres humanos que tenham alguma limitação.
Justamente por esse motivo, que não é justo fazer um pré julgamento,
sem analisar o caso real, para fazer a afirmação que a perda total da audição de
um ouvido é ou não é uma deficiência, como fez a Súmula nº 552 do Superior
Tribunal de Justiça. Igualmente, o acordão99 do Supremo Tribunal Federal que
se manifestou pelo fato de uma pessoa com Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) não ser reconhecido como pessoa com deficiência. Mas

98 “DECISÃO: [...] Em síntese, o impetrante alega que se inscreveu como candidato portador de
deficiência auditiva (hipoacusia neurossensorial bilateral) e logrou êxito nas provas objetiva e sub-
jetiva do certame. Contudo, foi excluído do concurso após o exame da perícia médica, o qual con-
cluiu que ele possuiria anacusia unilateral, o que não configuraria a condição de deficiência auditiva
prevista no Decreto 3.298/99 (com redação dada pelo Decreto 5.296/2004). Afirma que recorreu
administrativamente do resultado da perícia, mas não obteve êxito. Segundo a petição inicial, não
se pode conceber uma interpretação isolada e literal do disposto no art. 4º, inciso II do Decreto
3.298/99, o qual deve ser interpretado em consonância com o conceito de deficiência previsto no
art. 3º e de acordo com o que dispõe a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Decreto 3.956/01). [...]
Segundo o laudo da perícia médica, o impetrante teria anacusia unilateral no ouvido direito (50dB)
e audição normal no ouvido esquerdo (20dB), conforme aferição na frequência de 500HZ, o que
afastaria a constatação de perda bilateral exigida no Decreto. [...] Ante o exposto, na linha da ju-
risprudência desta Corte, nego seguimento ao mandado de segurança (art. 10 da Lei 12.016/09)”.
Publique-se. Brasília, 1º de fevereiro de 2011.Ministro G ILMAR MENDES Relator Documento
assinado digitalmente. STF - MS: 29910 DF, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julga-
mento: 01/02/2011, Data de Publicação: DJe-026 DIVULG 08/02/2011 PUBLIC 09/02/2011.
99 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=332796.
Acesso em: 12 nov. 2021.

602
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

no caso concreto, o julgamento do STF não entrou nas supostas barreiras sociais
impostas pelo meio100.
Analisando o modelo social fica evidente que não se pode concluir pela
existencia ou não de uma deficiencias, baseada apenas em questoes médicas dos
individuos; pelo inverso, induz a uma investigação do caso real para saber se a
suposta deficiência deixa penoso o exercício dos seus direitos perante o ambiente
economico e social em que a pessoa encontra-se inserida. “Trata-se de enunciado
sumular e precedente que se encontram na contramão da evolução do estudo da
pessoa com deficiência,” tanto da CDPD, quando do próprio estatuto da pessoa
com deficiência (Lei Brasileira de Inclusão – LBI), manchando os princípios da
dignidade da pessoa humana, da autonomia, da isonomia, e obstruíndo a plena e
efetiva participação no processo democrático101.
A Segunda Turma do STJ no Recurso Especial 1.607.472-PE, que teve
como relator o Ministro Herman Benjamim, reconheceu o dever do Estado em
garantir o acesso pleno tendo em vista a definição de desenho universal. No mesmo
sentido, a 4ª Turma do TRF da 3 Região:

“[...] 3. No âmbito internacional, a proteção às pessoas com


deficiência foi disciplinada pela Convenção Interamericana
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra Pessoas com Deficiência (1999), promulgada pelo
Decreto nº 3.956/2001. O art. II da Convenção estabelece
que o seu objetivo é [...]. Para tanto, o art. III enumera algu-
mas medidas que devem ser adotadas pelos Estados Partes,
sendo relevante transcrever os seguintes (grifei): Artigo III
Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados Partes
comprometem-se a: [...] 4. Com o propósito de cumprir a

100 CUNHA, Beatriz Carvalho de Araújo. Caso Gonzales Lluy e otros vs. Equador: estigmatização e
permeabilidade do conceito de deficiência. In: Cadernos estratégicos: análise estratégica dos julgados da
Corte Interamericana de Direitos Humanos / Coordenação Geral de Programas Institucionais, Centro
de Estudos Jurídicos – CEJUR. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,
2018. 330 págs. p. 149-150
101 CUNHA, Beatriz Carvalho de Araújo. Caso Gonzales Lluy e otros vs. Equador: estigmatização e
permeabilidade do conceito de deficiência. In: Cadernos estratégicos: análise estratégica dos julgados da
Corte Interamericana de Direitos Humanos / Coordenação Geral de Programas Institucionais, Centro
de Estudos Jurídicos – CEJUR. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,
2018. p. 150.

603
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

determinação da Convenção Interamericana e os arts. 227,


§ 2º, e 244, da CF, foi editada a Lei nº 10.098/2000 [...]”102.

O Recurso Especial 1.733.468/MG analisado pela Terceira Turma do


STJ abordou a razoabilidade da compensação por danos morais à pessoa com
deficiência que necessita do uso de cadeiras de rodas, a qual foi negligenciada
no uso de transporte público. Por outro lado, o STJ em decisão monocratica
jugou pela vedação de cobrança de passagem para cão-guia: “Aplicabilidade da
Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Dec. 3.956/2001), art. 5, § 2º,” da
Carta Magna “norma de hierarquia supralegal; A proteção à pessoa portadoras de
deficiência decorre do Dec. 3.956, mas, também, da eficácia horizontal dos direitos
individuais, que tem aplicação imediata – art. 5, § 1º, da CF [...]”.103
No mesmo sentido, O TJ-BA104 citou a “Convenção Interamericana para
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contras as Pessoas Portadoras
de Deficiência” para reconhecer um conceito amplo de deficiência “estabelecem
que o conceito de “deficiência, para fins de políticas públicas e exercício de
direitos, extrapola a mera definição restritiva dada pela ciência médica, para abarcar
uma gama muito maior de cidadãos que apresentam limitações físicas, mentais,
intelectuais e sensoriais” para um caso de limitação mental fazer jus ao transporte
gratuito.
No Recurso Especial 1.611.915/RS46 a Quarta Turma do STJ
condenou a verba indenizatória sob o argumento de que existiu má prestação do
serviço por parte de companhias aéreas a pessoa usuário de cadeira de rodas. O
TJ-MG AC 10024121712772002 citou a convenção da Guatemala “bem como
o Decreto nº 3.956/2001, que promulgou a Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contas as Pessoas Portadoras de
Deficiência” explicando que fazendo uma leitura dos artigos da Convenção e das
leis internas “fica evidente que o portador do vírus HIV, que é uma Síndrome
da Imunodeficiência Adquirida,” como uma patologia “infectocontagiosa causada
pelo vírus HIV, se enquadra no conceito de deficiente, devendo ser resguardou seus

102 ApCiv 00016641020154036115. Relator(a) Desembargador Federal MARCELO MESQUITA


SARAIVA. Data da publicação 25/02/2021.
103 Agravo em Resp nº 626.093 – SP (2004/0297451-8) Decisão Monocrática Rel. Min. Mª Isabel
Gallotti. Publicação Dj 21/08/2-17.
104 TJ-BA -APL 0183085-93.2008.8.05.0001.

604
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

direitos, inclusive, o passe livre”. Por analogia, diálogo entre as cortes, a Corte IDH
proíbiu a discriminação contra pessoas portadoras de HIV105.
Na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4.388(47) / GO106. O
Pleno do STF ao julgar a constitucionalidade formal e material de artigos de lei
estadual de Goiás, na qual retratava a reserva de percentual de cargos e empregos
públicos para pessoas com deficiência. No que diz respeito à inconstitucionalidade
material, foi alegado que foi feito um parâmetro subjetivista sobre a deficiência, de
um jeito para excluir das cotas aquelas pessoas que possuem métodos de compensação
da deficiência. Nestes termos, a lei questionada limitava a definição de deficiência,
afrontando os princípios da dignidade da pessoa humana e da isnomia. O TRT-
77 AACC 0080461-41.2020.5.07.0000 CE, invalidou a Cláusula 17ª da CCT
2020/2021 celebrada entre o SEACEC e o SINTRATEL que limitou, reduziu,
aniquilou o mínimo protetivo legal de cota de contratação de trabalhadores pessoa
com deficiência, alterando ilicitamente a base de cálculo, a “solução encontrada
pelo setor” fere “o Decreto 3.956/2011, que adotou no Brasil a Convenção
Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência – Convenção da Guatemala”.
O TRT-15 no RO 2715/2012 SP citou a convenção da Guatemala
para declarar que “é ilegal exigir-se do candidato com deficiência aptidão plena
para a assunção de qualquer cargo”. Nota-se que a presente decisão foi dada em
consonancia ao item 2 do artigo 1 da Convenção, que consagrou o princípio da
não discriminação por motivo de deficiência. A presente decisão foi anteriora a LBI
(Estatuto da Pessoa com Deficiência) que proíbiu expressamente no artigo 34 tal
discriminação. Em sentido parecido, o TJ-SP na APL 0031056-09.2011.8.26.0053,
citou a Convenção para julgar pela inadimissibilidade de cassação de licença de
termo de permissão de uso de vendendor ambulante pessoa com deficiência.
O TRT-2 no proc. 1000361-40.2021.5.02.0371 SP, emitiu uma decisão
em sentido analago um caso admitido pela CIDH, relatório nº 13/12107, e enviado
para a Corte IDH através do relatório Nº 084/21, Luis Fernando Guevara Dias

105 Corte IDH. Caso Chinchilla Sandoval vs. Guatemala. Sentencia de 29 de febrero de 2016. Ex-
cepcíon preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas, § 203-207 e 208.
106 O STF declarou inconstitucional alguns pontos da lei do Estado de Goiás, que proíbia pessoas
com deficiência auditiva bilateral que fizessem uso de aparelho, próteses auditivas de concorrerem no
direito as cotas.
107 CIDH, Informe No. 13/12, petición 1064-05, admisibilidad, Luis Fernando Guevara Díaz vs.
Costa Rica, 20 de marzo de 2012.

605
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

x Costa Rica, no caso brasileiro o TRT-2 invocou o caso Damião Ximenes Lopes
e a Convenção da Guatemala no sentido considerar dispensa discriminatória de
empregado acometido de esquizofrenia.
O TJ-RJ MS 0018974-22.2019.8.19.0000 não usou o rol taxativo do
conceito de deficiência do direito interno, em um concuros que o setor de saúde que
considerou que a deficiência física do impetrante não o habilita para ter ocncorrido
à vaga reservada Cita a Convenção da Guatemala108, assentou a necessidade de
prestigiar-se a norma mais favorável, como forma de extrair-se a máxima eficácia,
no caso concreto o impetrante demonstrou a deficiência não apenas por laudo
particular, mas Principalmente do laudo pericial realizado nos autos109, conforme já
decidiu o STJ110. Ficou provado que sofre de limitação física com perda funiconal
da coluna vertebral em 75 %, devido a fratura cervical C5, decorrente de acidente
automobilistico (CID 10 T91 – 1), que resulta na diminuição da função, com
dificuldade de rotação do pescoço para ambos os lados (menos de 40 % do
movimento completo), não podendo o impetrante realizar tarefas com cargas acima
de 5 % de seu preso, flexão e/ou extensão da coluna vertebral, bem como necessita
de desempenhar seu trabalho com intervalos de repouso.

5 CONCLUSÃO

No período Pós-Guerra, com a criação da ONU e da Organização das


Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), se assiste à
assunção do princípio da não-discriminação no cenário de afirmação dos direitos
humanos, com repercussões no direito interno. No caso das pessoas com deficiência,
o desafio consiste em superar um modelo de segregação e uma abordagem médica
que, por muito tempo, influenciaram as legislações, a doutrina e a jurisprudência
em prol da adoção de um modelo social ou baseado nos direitos humanos. Nessa
perspectiva, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que emerge após
a Segunda Guerra, assume papel fundamental no sentido de deslocar a visão
centrada na deficiência para a pessoa como um sujeito de direitos. Emerge, assim,
a necessidade de legislações e práticas em prol da superação das barreiras sociais
postas para esse grupo vulnerável.

108 Em caso análogo Agr no RMS 32723/DF Rel. Celso de Melo.


109 Proc. nº 0002614-64.2009.4.02.5110, que tramitou junto à 6ª vara Federal de cidade no inte-
rior.
110 RMS 31.861/PE e RMS 45.477/AP.

606
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Nesse cenário, a Convenção Interamericana para a Eliminação de


Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência
constitui um instrumento internacional, de natureza vinculante, que reconhece
uma padronização internacional para a reabilitação e promoção de educação
profissionalizante para inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho
da comunidade. Destaca-se que o termo “portadoras”, adotado na Convenção de
Guatemala, não está conforme o sistema global de direitos humanos, adotado pela
Convenção de Nova York. Nos termos dessa convenção, o termo mais adequado é
“pessoa com deficiência”, e não a expressão “portadora”, pois a pessoa não “porta”,
não “carrega”, mas “tem” uma deficiência potencializada pelas barreiras sociais.
A modificação da citada expressão se deve ao fato de a ONU reconhecer que a
deficiência resulta da interação com diversas barreiras sociais e não ao fato de ser
uma característica intrínseca do indivíduo.
O item 3.3 tratou dos órgãos de monitoramento e controle do sistema
interamericano, a CIDH e a Corte IDH. No sub-item 3.3.1, foram analisadas as
manifestações da comissão sobre a matéria, a exemplo de relatórios de fundos, juízos
de admissibilidade, medidas cautelares, audiências públicas, informes temáticos. No
sub-item 3.3.2, foram examinadas as decisões da Corte IDH, com destaque para a
primeira condenação do Brasil no caso Damião Ximenes, demonstrando que esse
caso foi um intermediário para o conceito de deficiência no sistema interamericano,
que ocorreu por intermédio de uma definição do modelo médico, designado antes
da Convenção de Nova York, ressaltando que o conceito é incompatível com a
Convenção da ONU amparado no modelo social. Contradição superada no caso
Furlan x Argentina.
No capítulo 4, foi demonstrado o impacto da Convenção da Guatemala
no Brasil. A alínea B do inciso II do artigo I da Convenção Interamericana permite
uma forma de discriminação, em que aquele tratado chama de “diferenciação”.
Naquela época, era comum pessoas com deficiência serem proibidas de concorrerem
a cargos que exigiam aptidão plena do candidato, a exemplo de carreira da polícia
civil. Com a entrada em vigor da Convenção de Nova York, esse fato passou a ser
proibido, pois passou a ser tratado como “discriminação por motivo de deficiência”,
considerada como qualquer exclusão, restrição aos direitos humanos das pessoas
com deficiência.
A Lei Brasileira de Inclusão, no artigo 34, torna obsoleta a discriminação
permitida na Convenção Interamericana. No item 4.1, foi visto que a Convenção
da Guatemala não possui o status de Emenda à Constituição, porque não foi

607
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

aprovada em ambas as Casas do Legislativo Federal, por maioria de 3/5, em dois


turnos, nos termos do § 3º, do artigo 5 da CF/88.
No item 4.2, foi analisada a importância dos relatórios para prevenir as
violações dos direitos. No item 4.3, é notória a jurisprudência dos tribunais pátrios
no sentido de interpretar conforme a Convenção da Guatemala e a Convenção
de Nova York, em cotejo conjunto. Tanto o STF como o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), em relação à definição de deficiência, interpretam que a Convenção
da ONU reconhece a deficiência como um conceito em evolução, se fazendo
necessário interpretar a Constituição conforme o Direito Internacional dos Direitos
Humanos.

608
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611
A denúncia da Convenção n° 169 como mecanismo para inviabilizar
a presença migrante warao em solo brasileiro

Beatriz de Sousa Perez1


Joel Vidal de Negreiros Neto2
Thiago Oliveira Moreira3

1 INTRODUÇÃO

Os movimentos migratórios estão cada vez mais diversos. São numerosos


os motivos que levam pessoas a saírem de seus locais habituais de moradia, muitas
delas por razões de sobrevivência, fatores climáticos, guerras ou perseguição. Estas
situações podem ser vivenciadas por populações com origens etnico-culturais
diversas, cabendo, para cada uma delas, uma abordagem diferente, que se adeque
ao migrante em suas necessidades específicas.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do Observatório de


Direito Internacional do Rio Grande do Norte. beatriz.desousa.perez@outlook.com
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro pesquisador
na linha de Direito Internacional dos Direitos Humanos do Observatório de Direito Internacional do
Rio Grande do Norte. joelvidaldenegreiros@gmail.com
3Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Chefe do Departamento de Di-
reito Privado da UFRN. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN.
Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Professor/
Pesquisador Visitante na Universidade Lusófona do Porto. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail: thiago.
moreira@ufrn.br.

613
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Por este e outros motivos, as interações nas regiões de fronteiras são


sempre intensas, havendo forte movimento entre pessoas dos países vizinhos. Não
diferente disso, na fronteira entre Brasil e Venezuela sempre se verificou um forte
deslocamento de indivíduos, sendo, na maioria das vezes, para realizar atividades,
caracterizando uma migração temporária, com idas e vindas de acordo com a
necessidade dos indivíduos.
Todavia, com o início da crise venezuelana, em meados de 2010, e seu
posterior agravamento, o Brasil, como todos os demais países que se avizinham,
passou a receber uma grande quantidade de pessoas advindas daquele Estado, agora
por um período indeterminado de tempo e não somente nas regiões fronteiriças,
mas para bem além delas. Desde então, diversas frentes de enfrentamento à crise
migratória foram montadas, algumas medidas inadequadas, como a tentativa do
fechamento das fronteiras4 e a devolução de migrantes para o país de origem5,
como também muitas outras que levaram a um reassentamento e acolhimento dos
recém-chegados6.
Em meio a toda essa situação, um peculiar movimento foi notado
com rumo aos estados do norte (que já eram passagem natural por se situarem
próximos à fronteira com a Venezuela), mas também alcançando os estados do
nordeste brasileiro. Os migrantes Warao, grupo indígena que habitualmente fixava
residência ao longo do Rio Orinoco (na Venezuela), e que já realizava movimentos
migratórios curtos para além do lado venezuelano, também se viram atingidos pela
crise generalizada naquele país e passaram a buscar novos ambientes onde poderiam
sobreviver.
Como citado anteriormente e que será melhor explanado em momento
oportuno, os indígenas Warao já realizavam incursões em território brasileiro, mas

4 Por meio do Decreto nº 25.681-E, de 1° de Agosto de 2018, o Governo de Roraima decidiu restrin-
gir a entrada de cidadãos venezuelanos que não possuíam passaportes válidos por meio da fronteira
da Venezuela com o estado. Decreto disponível em: http://www.tjrr.jus.br/legislacao/phocadownload/
Decretos_Estaduais/2018/25681_e.pdf. Ainda é importante lembrar que o governo federal, durante
a pandemia da Covid-19 editou diversas portarias que visavam restringir a entrada de venezuelanos,
alegando razões sanitárias, todavia, a medida restringia unicamente a entrada de nacionais venezuela-
nos, isentando cidadãos de outros países.
5 Foi cogitada a possibilidade de se devolver alguns venezuelanos que se encontravam em território
brasileiro, fazendo-se uso de um ônibus que os levariam para o outro lado da fronteira.
6 No ano de 2018 uma medida de urgência foi deflagrada com o intuito de dar suporte humanitário
para os venezuelanos que entravam pela fronteira com o Brasil, trata-se da Operação Acolhida. Mais
informações no site: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/sobre-a-operacao-acolhida-2.

614
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

nada comparado ao que ocorreu após o agravamento da crise venezuelana. Tal


grupo enfrentou diversos desafios, especialmente na estrutura de acolhida que
muitos estados não disponibilizavam, especialmente por não serem rota habitual
de migração nessas características e intensidade.
Todavia, as dificuldades estruturais e de recepção não viriam a ser o único
problema para o enfrentamento da crise migratória e para a acolhida dos migrantes
Warao, algumas propostas apresentadas no Congresso Nacional brasileiro, por
exemplo, caso adotadas, podem ser altamente danosas para uma acolhida adequada
dos deslocados indígenas.
Mais especificamente, a proposta de denúncia da Convenção nº 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), discutida na Comissão de
Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, caso aprovada,
poderia vir a custar bastante aos grupos indígenas brasileiros em termos de
reconhecimento e garantia de direitos, mas também aos advindos de além da
fronteira, tais quais os Warao que passaram a residir no Brasil em um grau mais
elevado e de forma fixa.
Seguindo esta linha de pensamento, busca-se compreender como essa
possível denúncia, pelo Brasil, da citada Convenção da OIT poderia vir a ser mais
um fator de risco à presença Warao em solo brasileiro. Para responder a presente
problemática, alguns objetivos precisam ser alcançados. Pretende-se identificar,
inicialmente, quem são os indígenas Warao, abordando algumas características
relevantes. Logo após, passando para uma análise jurídico-legal, deverão ser
abordadas as leis brasileiras que são aplicáveis aos indígenas e migrantes e, se
existentes, documentos jurídicos dirigidos diretamente a este grupo em específico,
para depois adentrar na discussão propriamente dita da possibilidade de denúncia
da Convenção nº 169 da OIT, suas consequências e se seria tal ato revestido de
validade legal em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro, como
também em conformidade com a própria convenção em questão.
A pesquisa é relevante ao tratar de um um contexto atual e que se
mostrou inédito por suas singularidades, com o aumento da população Warao no
Brasil e da necessidade de se avançar na proteção dos direitos básicos deste grupo,
e com o tópico da denúncia de convenções internacionais de direitos humanos,
que suscita na crescente necessidade de avaliar os pormenores de deslocamento
contemporâneo que cresce sem precedentes e suas bases jurídicas de proteção,
bem como os procedimentos legislativos quanto aos instrumentos internacionais
internalizados pelo Brasil. Para tal, foi-se utilizada a pesquisa bibliográfica através

615
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

da análise de artigos e documentos elaborados por entes com atuação acerca do


tema, juntamente ao estudo de determinações de órgãos nacionais e internacionais
e de estudos direcionados ao recorte da denúncia e revogação de convenções
internacionais de direitos humanos, por meio do método dedutivo, no qual se
parte de premissas gerais para a formulação de argumentos particulares e, enfim, a
conclusão.
Espera-se, com este trabalho, poder contribuir com a discussão acerca da
migração indígena no Brasil, a necessidade de se proteger estes migrantes e garantir
seus direitos, além de dar maior visibilidade para as migrações dos indígenas Warao,
abordando o papel que a Convenção nº 169 tem na garantia de direitos desses
deslocados em território brasileiro.

2 OS INDÍGENAS WARAO: MIGRAÇÃO ANCESTRAL PARA O BRASIL

A migração Warao para o Brasil iniciou-se entre 1963 e 19887. Durante


esses anos, a busca por trabalho, serviços temporários e atendimento médico foram
as principais razões para a presença desses indígenas em solo brasileiro. O aumento
das atividades extrativistas e projetos de crescimento das cidades fronteiriças fez
com que esse contato entre o país e os indígenas continuasse ao longo dos anos.
Assim, apesar de que as oportunidades laborais estimulassem a vinda para o Brasil,
o baixo acesso às políticas governamentais desfavoreciam a estadia prolongada, que
continuou como pendular até a crise econômica venezuelana de 20168.
O agravamento da crise econômica e política na Venezuela ofereceu aos
Warao uma nova motivação para migrar, visto que a Venezuela já não cumpria
com suas obrigações de prover as necessidades básicas de seus cidadãos. A partir
desse momento, entende-se que os indígenas Warao já não migravam (e migram)
influenciados por uma melhor perspectiva trabalhista, ou pela simples necessidade
de um atendimento médico, mas sim pela necessidade de ver suas demandas vitais
e fundamentais para sua sobrevivência supridas.
Como citado, este grupo indígena migrou, durante décadas, por razões
econômicas, em busca de trabalho e serviços. Em seguida, a exploração dos

7 CIRINO, C. A. Marinho. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do estado


brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [s.l.], v. 3, n. 02, p. 127, 7
dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028. Disponível
em: https://doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
8 Ibid., p. 127.

616
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

recursos naturais levou a uma piora nas condições socioambientais das regiões
historicamente habitadas pelos Warao, levando a um aumento desse trânsito, que,
nos últimos anos, foi intensificado e modificado a partir da crise venezuelana.
Assim, apesar de sempre ocorrerem migrações deste grupo indígena, seja em solo
venezuelano, seja para além das fronteiras de seu território ancestral, observa-se
uma verdadeira mudança de paradigma a partir de 2016, deixando-se de ser uma
migração essencialmente por razões econômicas para ser considerada uma migração
forçada, pois ocorre em virtude de uma força maior, e que se faz de importância
para a sua sobrevivência.
A grande maioria dos Warao se desloca de Tucupita (Venezuela) até
Pacaraima (Brasil), sendo esta a primeira parada9, na fronteira entre esses países, em
grupos familiares extensivos, às vezes com dois grupos familiares cuja composição
pode atingir até 40 indígenas, chefiados por um ou dois aidamos10.
Em levantamento realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados, constatou-se que 20% dos migrantes em Boa Vista e Pacaraima
falam português, e 90% são da etnia Warao, e, consoante, desse total de migrantes,
94% possuíam CPF e Protocolo de Refúgio, 85% obtiveram a Carteira do SUS,
e apenas 31% haviam CTPS11. Foi constatado que 60% do total dos migrantes
dessas cidades não estavam em nenhum programa de assistência social12, que, em
conjunto com o preconceito quanto à migração de indivíduos fora do eixo europeu
ocidental e norte americano, potencializa a sua vulnerabilidade em relação a sua
aceitação e inserção às políticas públicas e na sociedade nacional.

9 CIRINO, Carlos Alberto M. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do


estado brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [S.L.], v. 3, n. 02,
p. 128, 7 dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
Acesso em: 27 jun. 2021.
10 Os Aidamos são os líderes de cada comunidade formada por indígenas Warao, assumindo papel
essencial nos trabalhos desenvolvidos pelas equipes de ajuda, seja do ACNUR ou de entes da so-
ciedade civil, conforme informação prestada pelo ACNUR, disponível em: https://www.acnur.org/
portugues/2020/08/21/protecao-comunitaria-e-pilar-da-resposta-do-acnur-a-indigenas-venezuela-
nos-no-brasil/.
11 ACNUR. Perfil socioeconômico da população indígena refugiada e migrante abrigada em roraima. Boa
Vista, 2021. p. 5-13. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wpcontent/uploads/2021/03/
Relatorio_socioeconomico_indigena_Roraima.pdf. Acesso em: 07 jun. 2021.
12 Ibid.,, p. 13.

617
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A Organização Internacional para Migrações (OIM) publicou uma


pesquisa em 201813 demonstrando que os indígenas, por sua peculiaridade em seu
modo de migrar, deveriam obter uma regularização de forma singular, que fosse
compatível com suas práticas culturais e migratórias já estabelecidas ao longo de
anos. Inicialmente, observava-se que eles voltavam para entregar recursos financeiros
e produtos a seus parentes que permaneceram em solo venezuelano, um indício de
seu vínculo com aquele país, entretanto, hodiernamente, essa característica vem
minguando, o que se resulta da falta de motivações para o seu retorno e a vinda
cada vez maior de indivíduos Warao para o Brasil.
De fato, dita migração tornou-se mais do que um método de fuga dos
perigos diretos e indiretos de seu país, mas um fato inerente à sua existência como
grupo indígena que não concebe a barreira geográfica como os demais, e a quebra de
um dos paradigmas mais importantes e assentados: como a inobservância da volta
desses para a sua terra natal, significa que sua migração já não condiz com a forma
pela qual eles são reconhecidos pela lei brasileira, devendo, então serem colocados
em outra categoria migratória, que não foi revista desde o início da história desses
indígenas com o Brasil, reconhecendo-se o status mais protetivo de refugiado.
Não há uma teoria sobre migração que possa dar conta das particularidades
do fenômeno migratório como um todo, tendo-se aqui um caso concreto que
comprova esta afirmação14. A Lei Brasileira de Refúgio condiciona a migração forçada
a uma possível violação de direitos no local habitual de vivência do solicitante,
entretanto, para os indígenas, muitas vezes, ainda há a problemática da falta de
documentação, com a qual os indivíduos não têm o seu reconhecimento em solo
brasileiro. Assim além de enfrentarem as agruras de uma migração internacional
em situações indesejáveis, eles ainda enfrentam a condição de indocumentados no
Brasil, situação que afeta sua posição perante a lei brasileira e a suas condições de
estadia, como por exemplo o acesso ao mercado de trabalho formal. A migração
Warao, em solo brasileiro, está historicamente atrelada ao trabalho e faz-se ainda

13 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES. Diagnóstico e avaliação da


migração indígena da Venezuela para Manaus, Amazonas. Brasília: Organização Internacional para
as Migrações (OIM). Agência das Nações Unidas para as Migrações, 2018. Disponível em: https://
publications.iom.int/system/files/pdf/diagnostico_e_avaliacao_da_migracao_indigena_da_venezue-
la_para_manaus_amazonas.pdf.
14 CIRINO, Carlos Alberto M. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do
estado brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [s.l.], v. 3, n. 02,
p. 128, 7 dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
Acesso em: 27 jun. 2021.

618
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

mais importante ao comparar a Convenção n° 169, que é uma das bases legais para
a legitimidade desses indivíduos perante a proteção jurídica brasileira.

3 INSTRUMENTOS NORMATIVOS MIGRATÓRIOS APLICÁVEIS AOS


WARAO

Neste ponto, é importante enfatizar a existência de documentos jurídicos


internacionais (dos quais o Brasil tornou-se parte), como de normas produzidas no
âmbito legislativo brasileiro, e que toquem na temática da proteção dos indígenas
Warao, seja na sua condição de migrante ou por sua origem indígena.
Seguindo esta ideia, é preciso abordar, inicialmente, os documentos a
nível internacional com os quais o Brasil se vinculou e, assim, precisa agir de acordo
com estes, como por exemplo a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados
de 1951, e seu Protocolo adicional, a própria Convenção nº 169 da OIT e outros
documentos que possam ser suscitados na presente discussão.
Da mesma forma, no segundo momento, deverão ser abordadas
normativas internas, que não necessariamente passaram a existir por influência das
normas internacionais, mas que seguem no mesmo sentido de garantir a proteção
destes grupos, como a Lei de Migração, a Lei nº 9.474/97 e o chamado Estatuto do
Índio (Lei nº 6.001/1973).

3.1 INSTRUMENTOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS


ABRANGENTES AOS MIGRANTES INDÍGENAS

Em 1951, a Organização das Nações Unidas criou a chamada


Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados15. Tal documento tinha como
principal objetivo dar uma resposta temporal e geográfica aos grandes movimentos
migratórios decorrentes da segunda guerra mundial16, à época, ainda se acreditava
que os movimentos migratórios iriam cessar com o fim dos conflitos da época,

15 CARDOSO, João Luis M. S.; MOREIRA, Thiago Oliveira. O (des)respeito aos direitos humanos
dos migrantes venezuelanos no contexto da pandemia da Covid-19. In.: CARVALHO RAMOS,
André de; FRIEDRICH, Tatyana; MOREIRA, Thiago Oliveira (coord.); ALVES, Fabrício Germano;
BARBERO GONZÁLEZ, Iker; VEDOVATO, Luís Renato (org.). Direitos humanos dos migrantes e
pandemia. Curitiba: Instituto Memória, 2021, p. 301. Disponível em: http://www.institutomemoria.
com.br/detalhes.asp?id=613. Acesso em: 29 maio 2022.
16 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
pela jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, p. 63, 2015. Disponível em: https://www.academia.

619
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

tendo sido dada atenção específica para os refugiados da guerra e restringindo ao


continente europeu.
Todavia, como se sabe, os movimentos migratórios forçados são
constantes, o que demandou modificações naquela Convenção de 1951, o que
ocorreu por meio de seu protocolo, que permitiu aos países que o internalizassem,
de retirar as restrições temporais e geográficas do documento inicial da Convenção.
O Brasil ratificou a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados e,
décadas depois, o seu Protocolo. Sendo reforçada, em 1997, pela Lei nº 9.474,
que buscou instituir mecanismos para a implementação do Estatuto no país, este
conjunto normativo trouxe importantes informações e definições sobre o que seria
um refugiado.
Ao definir o que são refugiados, a Convenção e seu documento
subsequente estabeleceram direitos básicos que cada país signatário deve prover17
àquele que se encontra em dita situação. Assim, esses dispositivos internacionais
foram consolidados em solo brasileiro para reger o tratamento a essa população
vulnerável, juntamente às demais normativas internas que se sucederam à
Convenção e seu Protocolo e que tratam sobre o tema, como a citada Lei nº 9.474,
a Lei de Migração e as resoluções do Comitê Nacional para os Refugiados18.
Consoante, dispositivos de outros documentos internacionais podem
ser aplicados para a situação dessa classe de migrantes, por exemplo, o artigo 3º
(1)19 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, adotada em 10/12/1984 pela Assembleia Geral das
Nações Unidas, que concretiza, entre outros, o princípio do non-refoulement, ao

edu/31356317/MOREIRA_Thiago_Oliveira_A_Aplicação_dos_Tratados_Internacionais_de_Direi-
tos_Humanos_pela_jurisdição_brasileira_Natal_EDUFRN_2015. Acesso em: 29 maio 2022.
17 CIRINO, Carlos Alberto M. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do
estado brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [s.l.], v. 3, n. 02, p.
132-133, 7 dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
Acesso em: 27 jun. 2021.
18 Tais normativas serão melhor apreciadas no próximo subtópico, dedicado às normativas internas,
como explicitado no início do tópico 3.
19 Nenhum Estado Parte procederá à expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa para outro
Estado quando houver razões substanciais para crer que a mesma corre perigo de ali ser submetida à
tortura

620
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

impedir as possibilidades de devolução de imigrantes para Estado onde esta possa


estar sendo submetida a tratamentos degradantes ou tortura20.
Da mesma forma, o artigo 13 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos, que, obrigar os Estados-partes a respeitarem os direitos fundamentais de
qualquer indivíduo e prevê especificamente a obrigação do Estado de não expulsar
um estrangeiro sem embasamento legal, em exceção a motivos de segurança
nacional relevantes o suficiente para justificar tal ato21.

3.2 INSTRUMENTOS NORMATIVOS INTERNOS ABRANGENTES AOS


MIGRANTES INDÍGENAS

Tendo esse apanhado inicial, e a nível internacional, os Warao possuem


dois classificadores dentro do direito brasileiro: são indígenas e migrantes forçados.
A Fundação Nacional do Índio/FUNAI, por sua vez, reconhece que os migrantes
têm os mesmos direitos dos demais e que os migrantes indígenas não deixam de ser,
por óbvio, indígenas, mas que só atuava com nacionais e transfronteiriços22. Desse
modo, existem duas tutelas específicas diferentes para esses indivíduos, visto que a
FUNAI detém a tutela dos indígenas não integrados conforme a Lei nº 6.001, e
que a Lei do Refúgio e a Lei de Migração tratam sobre os refugiados e os migrantes,
respectivamente, também agregam aos interesses desses indivíduos.
O dispositivo legal mais recente aplicável ao contexto em análise é a Lei
n° 13.445 (lei de Migração), pela qual preconiza-se a regularização documental,
igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares, inclusão
social, laboral, acesso aos serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos,
educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e
seguridade social. Entretanto, dentre os dispositivos da lei, foi vetado o que garantia
a livre circulação dos povos indígenas pelas terras tradicionalmente ocupadas,
expressa no art. 1º, §2º da Lei de Migração nos seguintes termos: “§ 2º Ficam
plenamente garantidos os direitos originários dos povos indígenas e das populações

20 BICHARA, Jahyr-Philippe. Proteção internacional dos migrantes: entre prerrogativas e obrigações dos
estados. Ril Brasília, Brasília, v. 220, n. 55, p. 130, jun. 2018. Disponível em: https://www12.senado.
leg.br/ril/edicoes/55/220/ril_v55_n220_p123.pdf. Acesso em: 29 maio 2022.
21 Ibid., p. 130.
22 CIRINO, Carlos Alberto M. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do
estado brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [s.l.], v. 3, n. 02,
p. 1322, 7 dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
Acesso em: 27 jun. 2021.

621
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

tradicionais, em especial o seu direito à livre circulação”23, um dos aspectos chave


da migração Warao24.
Amparados pela Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, artigo 1 –
“Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações
Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos
direitos humanos”25, a lacuna legislativa brasileira que expõe esses migrantes ante o
aspecto mais vital de seu traslado, a Lei do Refúgio é a mais adequada para assegurar
a diversas facetas de seu contexto de migração, pois os protege de diversas situações
que a Lei de Migrações não seria capaz em decorrência do veto.
A Lei do Refúgio, por outro lado, ao ampliar a definição de refugiado, ao
“espírito de Cartagena”, protege os indivíduos de graves e generalizadas violações
dos direitos humanos, além de conferir maior importância à análise da conjuntura
política e institucional do país26, o que interessa aos Warao quando levado em conta
a sua conjuntura de migração, singular em comparação aos refugiados que em geral
não teriam uma maior relação migratória com o Brasil previamente à solicitação
de refúgio. O art. 2º também prevê a extensão da condição de refugiados aos
familiares: “Os efeitos da condição dos refugiados serão extensivos ao cônjuge, aos
ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que
do refugiado dependerem economicamente, desde que se encontrem em território
nacional”27, um fato de extrema importância dado que os indígenas Warao viajam

23 DA SILVEIRA, Marina; CARNEIRO, Cynthia. A declaração das nações unidas sobre os direitos dos
povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira sobre o direito de livre circulação do povo
warao. PÉRIPLOS. GT CLACSO – Fronteiras internacionais e migração indígena na América do
Sul, v. 2, n° 2, p. 75, 2019.
24 Na Mensagem de Veto, o Presidente da República em exercício à época, afirmou que se fazia
necessário vetar o §2º, do art. 1º da Lei de Migração pois este configurava afronta ao princípio da
soberania, como que feria preceitos constitucionais.
25 CIRINO, Carlos Alberto M. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do
estado brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [s.l.], v. 3, n. 02,
p. 132, 7 dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
Acesso em: 27 jun. 2021.
26 DA SILVEIRA, Marina; CARNEIRO, Cynthia. A declaração das nações unidas sobre os direitos dos
povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira sobre o direito de livre circulação do povo
warao. PÉRIPLOS. GT CLACSO – Fronteiras internacionais e migração indígena na América do
Sul, v. 2, n° 2, p. 98-99, 2019.
27 Ibid., p. 99-100.

622
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

e têm relação próxima a seus parentes, que possivelmente também pleitearão o


refúgio.
Apesar de toda a história prévia ao novo paradigma migratório destes
indígenas, a maioria dos pedidos de refúgio foi negada pelo CONARE com base
no art. 1º, III da Lei 9.474/97, “para ser reconhecido como refugiado, o solicitante
deve apresentar um fundado temor de perseguição causado pelo seu Estado de
origem em função de sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões
políticas”. O não reconhecimento pelo CONARE da condição de refugiado
significou a abertura de uma brecha jurídica em sua proteção dos direitos humanos,
além de significar a inferiorização da perseguição e do temor que esses indivíduos
sofreram em sua terra natal, que era concreta o suficiente para mudar uma prática
cultural de translado já consolidada por anos com o território brasileiro. Com o
pretexto de retificar a omissão ocorrida, o CONARE emitiu o “visto humanitário”,
que oferece a acolhida, mas não cobre todas as especificidades que tais migrantes
precisam, representando proteção subsidiária28.
Por exemplo, o reconhecimento da condição de refugiado teria protegido
da deportação e das tentativas de deportação em massa que ocorreram no Estado
de Roraima que ocorreram durante o agravamento da crise e subsequente aumento
do fluxo migratório em 2014. Essa falha foi percebida pela Defensoria Pública
da União (DPU) e pelo Ministério Público Federal (MPF) que produziram um
relatório no qual afirma-se que, em 2014, 33 Waraos em situação de rua foram
deportados pela Polícia Federal [...]”29.
Em 2016, 450 outros foram recolhidos de seus ambientes de vivência
para serem deportados pela Polícia Federal, e, caso não fosse pela Justiça Federal a
pedido da DPU, a deportação coletiva teria sido. Esse fato, ocorrido antes da Lei de
Migração ser sancionada, poderia não ter acontecido caso eles fossem tutelados pela
Lei do Refúgio, que contempla uma questão factual no contexto brasileiro quanto
aos Warao, e, devido ao veto ao dispositivo que trataria da movimentação territorial
desses indígenas, nem a Lei de Migração teria a força legislativa que a Lei N°9.474

28 São diversas as críticas apresentadas ao uso do visto humanitário, tendo em vista sua aplicação
extensiva, inclusive em situações que caberia o reconhecimento do status de refugiado. Saliente-se que
o visto humanitário deveria ser encarado como mecanismo subsidiário de proteção, quando não se
pode aplicar o Estatuto dos Refugiados.
29 DA SILVEIRA, Marina; CARNEIRO, Cynthia. A declaração das nações unidas sobre os direitos dos
povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira sobre o direito de livre circulação do povo
warao. PÉRIPLOS. GT CLACSO – Fronteiras internacionais e migração indígena na América do
Sul, v. 2, n° 2, p. 83, 2019.

623
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

possui. Esse evento influenciou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do


Estado de Roraima a solicitar o Parecer n. 208/2017 aos peritos, que reiterou que
suas motivações para migrar são de força maior, e, portanto, uma migração forçada.
O encaixe desses indígenas em uma migração forçada, então, está
além de uma visão meramente formalista, mas é a opção mais humana para a
proteção dos Warao em solo brasileiro, visto que a Lei de Migrações não cobre
todas as peculiaridades acerca do tema, e as autoridades estatais não demonstram
vontade ou capacidade de lidar com a situação, que se renovou com a mudança
de paradigma migratório. O estilo de vida dos Warao é diferente na medida que as
diferenças culturais geram indiferença ou aversão a presença desses indivíduos, o
que permite a banalização das violações aos direitos humanos, um ato que, segundo
Hannah Arendt, abre caminho para a perda do pensamento empático e das ações
da comunidade em favor dos vulneráveis. No Brasil, para alcançar os objetivos
elencados pelo art. 3º do texto constitucional, a superação dessa banalidade do
mal é indispensável, com a responsabilidade recíproca entre as pessoas para com o
coletivo, ensejando uma perspectiva distributiva e includente do ponto de vista social
e, também, registre-se, implica a aceitação das diversidades, conforme preceitua o
inciso IV do citado dispositivo - “promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”30.
Dessa forma, é importante ter uma presença concreta da legislação que
aja de forma assertiva e clara a favor deles, do contrário, até as associações civis
minguar-se-ão em decorrência do total descaso dos órgãos de apoio ao migrante,
o que era observado em Roraima, Estado no qual observava-se a dedicação quase
exclusiva de civis quanto às demandas migratórias Warao, quando as medidas
tomadas em nível estatal não eram efetivas o suficiente31, que diminuem à medida
que as chegadas aumentam e o suporte desses órgãos não demonstra uma posição
firme de garantia aos direitos básicos e de integração local, um direito postulado na
Constituição de 88 e no Estatuto do Índio.

30 DA SILVEIRA, Marina; CARNEIRO, Cynthia. A declaração das nações unidas sobre os direitos dos
povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira sobre o direito de livre circulação do povo
warao. PÉRIPLOS. GT CLACSO – Fronteiras internacionais e migração indígena na América do
Sul, v. 2, n° 2, p. 83, 2019.
31 Ibid.,

624
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

4 A (IN)COMPATIBILIDADE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA COM A


CONVENÇÃO 169 DA OIT

No entendimento de que era preciso tratar de forma específica sobre


os direitos dos povos indígenas e tribais, no ano de 1989 chegou-se ao texto da
Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, adotada em sua
septuagésima sexta sessão, e internalizada ao ordenamento jurídico brasileiro através
do Decreto nº 5.051/2004, dispondo sobre o respeito às culturas e aos modos de
vida dos povos indígenas e reconhece os direitos deles à terra e aos recursos naturais.
Entre os deveres preconizados pela Convenção, pode-se ressaltar o
artigo 2º, que dispõe sobre a responsabilidade que os governos deverão assumir e
desenvolver, com a participação dos povos interessados, afora as ações coordenadas
e sistemáticas a serem realizadas com vista a proteger os direitos desses povos e a
garantir o respeito à sua integridade32. Assim, ao tratar diretamente do papel do
Estado na proteção dos direitos dos povos indígenas de forma geral, essa convenção
dialoga intrinsecamente com a população Warao.
Ela, juntamente à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 13 de setembro de
2007, que reconheceu direitos reivindicados por povos indígenas de toda parte
do mundo, tem por objetivo dar maior proteção e reconhecimento aos povos
originários. Esta última reconhece a autodeterminação dos povos indígenas iguais
a todos os demais povos, o que não é consolidado como política da União, ficando
à disposição da vontade de cada órgão responsável com discricionariedade, um
mecanismo de defesa que se faz indispensável para a defesa de povos indígenas,
em especial para aqueles que transitam entre territórios nacionais, como os Warao.
Esses dois mecanismos internacionais de proteção aos interesses e
direitos das comunidades indígenas são negligenciados pelo arcabouço normativo
brasileiro, como evidenciou o veto na Lei de Migrações à livre circulação dos povos
originários entre fronteiras, o que não recepciona contextos hodiernos e priva os
migrantes Warao de seus direitos, visto que mais nenhuma lei trata do tema levando
em conta as peculiaridades que esse grupo social possui. Dessa forma, a fim de
mitigar esse vácuo, as organizações internacionais iniciam atividades especializadas

32 CIRINO, Carlos Alberto M. Índios, imigrantes e refugiados: os warao e a proteção jurídica do


estado brasileiro. Revista Entrerios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, [s.l.], v. 3, n. 02,
p. 132, 7 dez. 2020. Universidade Federal do Piaui. http://dx.doi.org/10.26694/rer.v3i02.11028.
Acesso em: 27 jun. 2021.

625
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

para os indígenas, que, ao invés de serem recepcionados pela própria força estatal,
são relegados às iniciativas civis e voluntárias, que ainda não são capazes de suprir
toda a demanda, como de atender de forma global as necessidades desses migrantes.
Em vista disso, e em razão do aumento das violações de direitos humanos
e de sua vulnerabilidade histórica, o Governo Federal, com fundamento no artigo
62 da Constituição de 1988, adotou a Medida Provisória nº 82.024, convertida na
Lei nº 13.684, em 21 de junho e 2018, que dispõe sobre “as medidas de assistência
emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente
de fluxo migratório provocado por crise humanitária”33.
Apesar desse despreparo brasileiro para lidar com a situação, a Convenção
n° 169 já havia sido recepcionada pelo sistema jurídico brasileiro desde 2004, e,
portanto, já havia a responsabilidade em desenvolver medidas que promovessem
a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos,
respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas
instituições, o que não foi realizado, ainda que a migração Warao já fosse observada
desde muito antes. Não existem informações sobre a existência de pesquisas sobre os
Warao antes de 2017, quando foram solicitados pareceres aos peritos do Ministério
Público Federal sobre a questão, não houve sequer a realização de consultas e
tentativa de cooperação com esses grupos por parte dos agentes públicos do Estado
de Roraima, o que é expressamente recomendado pelo item 225, do artigo 15 do
documento34.
O veto ao livre trânsito dos povos originários entre fronteiras também
é um fato que demonstra a desconformidade do Brasil quanto à Convenção nº
169, que em seu artigo 14, § 1º, visto que a migração Warao já contemplava uma
área cultura essencial para a sua subsistência que lhes era negada ou dificultada via
tentativas de deportação, precariedade nas condições de vida e inacessibilidade à
documentação. Consoante, nenhuma lei brasileira dispõe do artigo 7 da Convenção,
que considera o direito de suas tradições e de como esse aspecto afeta a área laboral
desses indígenas, um tópico que dialoga com a falta de oportunidades equitativas e
justas para a solução das controvérsias estabelecidas contra os Waraos, em violação
aos seus direitos individual e coletivo.

33 DA SILVEIRA, Marina; CARNEIRO, Cynthia. A declaração das nações unidas sobre os direitos dos
povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira sobre o direito de livre circulação do povo
warao. PÉRIPLOS. GT CLACSO – Fronteiras internacionais e migração indígena na América do
Sul, v. 2, n° 2, p. 88, 2019.
34 Ibid., p. 89.

626
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Esta Convenção deveria ser um pilar no qual a estrutura jurídica brasileira


se apoiaria para a criação de dispositivos legais que tratassem das searas que não foram
contempladas com as leis já existentes de migração e, principalmente, das leis que
tratassem da população indígena. Entretanto, a Nova Lei de Migração demonstra
que a Convenção não foi um pilar a ser considerado em sua promulgação, utilizado
apenas como uma fachada política que, ao encontrar um fato concreto a proteger,
não obteve um efeito jurídico relevante aos direitos daqueles que necessitavam, nem
ajudou quanto às medidas mitigadoras dos órgãos competentes. Assim, apesar da
Convenção ser um passo importante para o início de uma proteção jurídica maior
para os indígenas, em especial os migrantes indígenas em situação de refúgio, como
os Warao, a falta de força legislativa e política dela a posiciona em um esquecimento
do letramento jurídico brasileiro, e, quando mais se poderia fazer uso de suas
disposições legais, ela não havia produzido os efeitos legais que deveriam aplacar
situações de violações de direitos humanos sofridas pela comunidade indígena
Warao.

5 A PROPOSTA DE DENÚNCIA DA CONVENÇÃO N° 169 E A (IM)


POSSIBILIDADE DE SE DENUNCIAR TRATADOS DE DIREITOS
HUMANOS

Havendo discutido a relação existente entre a Convenção nº 169 e a


legislação brasileira, não é difícil imaginar os impactos causados por uma possível
denúncia da convenção pelo Brasil. Neste ponto, é de grande importância discutir
duas questões pertinentes ao tema da denúncia da convenção, que se constituiu
em projeto de lei na Câmara dos Deputados, o primeiro, conhecer o projeto em
si, discutindo suas implicações em sendo concretizado, ou seja, com a permissão
para que o Presidente da República proceda com a denúncia da Convenção,
que é seu objetivo. O segundo ponto vem a tratar sobre a constitucionalidade e
convencionalidade da denúncia de tratados de direitos humanos.
Como será melhor explicitado, o Brasil, tendo como fundamento sua
Constituição, seguindo o entendimento de que não pode haver retrocesso em
matéria de concessão de direitos, ou seja, não se pode reduzir o rol de garantias.
Desta forma, o Brasil só pode caminhar no sentido a expandir tais direitos. Seguindo
esta linha de pensamento, a denúncia da Convenção nº 169 seria inconstitucional.
Não só por isso, existem controvérsias sobre a formalística da denúncia
de um tratado pelo Brasil, ocorrendo debate sobre a necessidade ou não de
uma ritualística específica, tal qual se sucede quando da ratificação de tratados

627
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

internacionais pelo Estado Brasileiro, incorrendo na necessidade de anuência do


Legislativo pátrio.
Não se olvide da necessidade de se haver uma ação condizente com o
princípio da segurança jurídica, sendo totalmente estranho ao princípio que uma
norma possa retroagir pela simples vontade do Presidente da República que se
encontra governando no momento35.
Da mesma forma, sabe-se que, para proceder com a denúncia, à parte das
discussões sobre a forma interna deste processo, existem procedimentos específicos
geralmente estabelecidos pela convenção. Como será visto, a Convenção nº 169
prevê alguns pontos a serem respeitados para que a denúncia do tratado em
específico seja válida, como um lapso temporal de 10 anos, que passa a ser renovado
em períodos iguais de 10 anos, não sendo permitido que a denúncia seja feita antes
que este tempo se complete.

5.1 A TENTATIVA DE DENÚNCIA DA CONVENÇÃO Nº 169 POR MEIO


DO PDL 177/2021

Os povos indígenas brasileiros vêm enfrentando especial dificuldade na


relação com o Estado Brasileiro nos últimos anos, é notória a tentativa de retroceder
a estrutura normativa protetiva dos povos indígenas no Brasil, e a existência de um
projeto de decreto legislativo com o fito de autorizar previamente o presidente
a denunciar a Convenção 169 da OIT representa mais um exemplo disso. A
proposição, feita em 2021, e ainda em tramitação em comissão específica da Câmara
dos Deputados, tem por objetivo dar permissão ao Presidente da República, de
forma prévia, para denunciar a convenção, revogando sua vigência no Brasil.
Entre os argumentos citados como fundamento para a denúncia do
tratado está o de que a legislação brasileira per se é suficientemente forte para garantir
a proteção da população indígena, além de que a convenção fere o princípio da
soberania nacional, impedindo o desenvolvimento regional e, assim, de todo o país.
Em manifestação técnica sobre o Projeto de Decreto Legislativo, o
Ministério Público Federal (MPF) demonstrou posicionamento contrário ao
texto. Na ocasião, o Parquet pode demonstrar as inconsistências dos argumentos
formulados, como também reforçar a importância da Convenção 169 para os

35 PEREIRA, Ana Cristiana P.; SILVA JÚNIOR, Eraldo. As Omissões da Constituição Brasileira em
Relação aos Tratados Internacionais: vigência, eficácia e denúncia. Boletim da Sociedade Brasileira de
Direito Internacional, v. 104, n.º 131-135, p. 285-308, 2018.

628
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

direitos dos povos indígenas e quilombolas, além das consequências que poderiam
advir de uma denúncia da convenção por parte do Brasil.
Ponto que será tratado no tópico subsequente, as controvérsias na
forma e possibilidade de denúncia de tratados internacionais também foram
observados quando da manifestação Ministerial, demonstrando mais uma vez
as inconformidades do PDL 177/2021, especialmente no que toca a vedação do
retrocesso em matéria de direitos fundamentais.
Não é difícil imaginar as consequências acarretadas pela denúncia da
Convenção pelo Brasil. Os povos indígenas enfrentam especial dificuldade no acesso
aos direitos básicos, além de sofrerem diretamente com o avanço do desmatamento
e da apropriação de terras por garimpeiros e fazendas de pasto, fato este que tem se
acentuado nos últimos anos, especialmente na região amazônica36.
A revogação da Convenção nº 169 poderia representar uma maior
fragilidade na garantia de direitos desses povos, sendo um instrumento de proteção
a menos para dar segurança jurídica a esses grupos. Além disso, a denúncia do
tratado, como bem citou o MPF em sua manifestação, representa afronta à
diversos preceitos constitucionais, tais quais a autodeterminação dos povos (art.
4º, III, CF) e ao objetivo fundamental de erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF), indo além, por cercear
direitos basilares desses povos, o PDL representa verdadeira violação do princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF).
Não somente por representar retrocesso em seu conteúdo, o PDL
177/2021 apresenta inconsistências jurídicas, entre elas a inconvencionalidade
e inconstitucionalidade do texto apresentado, como será melhor explicitado no
tópico que se segue.

5.2 CONTROVÉRSIAS SOBRE A DENÚNCIA DE TRATADOS


INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Como dito anteriormente, a possibilidade de denunciar tratados


internacionais de Direitos Humanos por si só já representa tema controverso, o
debate se intensifica tendo em vista a ausência de um rito formal interno a ser

36 INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Relatório Estimativa de desmatamento


por corte raso na Amazônia Legal para 2021 é de 13.235 km². Brasília, 2021. Disponível em: https://
www.gov.br/inpe/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/divulgacao-de-dados-prodes.pdf.

629
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

seguido para a realização da denúncia dos tratados pelo Brasil37. É nesse sentido,
e por isso merece algumas pontuações acerca do tema, que se desenrola o debate
sobre a possibilidade de revogação da Convenção nº 169 da OIT no Brasil.
A principal questão a ser levantada está também sendo discutida no
Supremo Tribunal Federal (STF), trata-se de discussão acerca do procedimento
pelo qual o Brasil pode denunciar e revogar tratados internacionais com os quais se
comprometeu. No STF, a discussão se dá em torno da revogação da Convenção 158
também da OIT, que foi revogada por ato unilateral do Presidente da República.
Por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI-1625, é defendida
a tese de que, para resolver tratados internacionais, é preciso que haja chancela
do Congresso Nacional, acatando ou não se o Brasil pode deixar o tratado em
comento.
Tal tese defendida toma por base o texto constitucional, em seu art. 49,
inciso primeiro, onde se fala na competência exclusiva do Congresso para resolver
definitivamente sobre tratados de direito internacional38. Todavia, a falta de clareza
do texto constitucional, deixa em dúvidas se há de fato a necessidade de anuência
do Legislativo para concretizar o ato de denúncia e revogação daqueles tratados que
assim o possibilitem.
Na ocasião, o debate no Supremo Tribunal Federal já perdura por longos
20 anos, ainda sem haver uma deliberação definitiva acerca do tema, a ADI-1625
aguarda resposta do Colegiado, mas já conta com alguns votos, sendo ao menos
quatro votos pela procedência/parcial procedência da ação que pede a revogação do
Decreto Presidencial que revoga a Convenção 158 no Brasil39.
No mais, não parece lógico que seja necessária deliberação do Congresso
acerca da ratificação de Tratados Internacionais pelo Brasil, mas, na possibilidade
de denúncia do tratado, essa exigência seja dispensada, podendo ser formalizada

37 CAETANO, Fernanda A. K. e; NASCIMENTO, Layãna P. F. do; LIMA, Lorenna M. de. SOBRE


A POSSIBILIDADE DE DENÚNCIA DE TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS POR ATO
UNILATERAL DO CHEFE DO EXECUTIVO. E-Civitas, Belo Horizonte, n. 2, p. 229, dez. 2020.
38 BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, art. 49: É da competência exclusiva do Con-
gresso Nacional: I resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarre-
tem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
39 Informações adquiridas por meio da consulta pública ao site do Supremo Tribunal Federal, ADI
1625, disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1675413.

630
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

a resolução do documento com base unicamente na vontade do mandatário em


exercício40.
Ainda assim, não menos importante, cabe discutir um outro ponto que
circunda o debate sobre a denúncia de tratados internacionais, este prescindindo
da discussão acerca do rito formalístico para concretizar a denúncia, tendo em vista
que o que se debate neste ponto é a relação entre a possibilidade de denúncia dos
tratados de direitos humanos e o respeito ao princípio da vedação do retrocesso,
pelo qual o direito pátrio não pode retroagir, reduzindo direitos já constituídos.
Neste sentido, os direitos fundamentais seriam uma via de mão única,
onde estes só podem avançar no sentido de gerar mais garantias, nunca podendo
retroceder e reduzir os direitos já garantidos aos indivíduos.
Voltando à Nota Técnica do MPF acerca da denúncia da Convenção
169 pelo Brasil, lembra o Parquet que seria inconstitucional o ato, tendo em conta
que a própria Constituição Federal veda alterações que venham a retirar ou reduzir
direitos e garantias individuais, seja por meio de leis ordinárias, decretos executivos
ou mesmo por meio de emendas constitucionais41.
Não seria demais consubstanciar os argumentos ressaltando uma outra
barreira constitucional que seria imposta à denúncia da convenção expressa pelo
art. 4º, II, do texto constitucional que é a da prevalência dos direitos humanos.
É interessante pautar tal questão pois, neste artigo da Constituição Federal, o
legislador buscou reafirmar na seara internacional que o Brasil deve atuar de forma
condizente com os direitos humanos.
É nesta linha de pensamento que, ao denunciar um tratado que tem em
seu texto matéria de direitos humanos, tal qual visto na Convenção nº 169 da OIT,
o Estado brasileiro não só estaria retrocedendo em matéria de direitos humanos,
ferindo o já mencionado princípio da vedação do retrocesso, mas também estaria
indo de encontro com o que preconiza em sua própria Carta Magna, sobre a forma
como se orienta a sua atuação no campo das relações internacionais.
Além disso, o MPF ainda pontua uma possível inconvencionalidade do
PDL, tomando em conta que a própria Convenção 169 define um período de

40 REIS, Luciano E. Dos tratados internacionais: o procedimento para a sua elaboração e a existência de
pressupostos formalísticos para a concretização de uma denúncia sob o prisma da Constituição de 1988.
Direito Público (Porto Alegre), v. 9, p. 97-120, 2013.
41 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Nota Técnica – Projeto de Decreto Legislativo 177/2021
(Denúncia da Convenção 169 da OIT). Brasília, 2021.

631
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

dez em dez anos, contando da data da entrada em vigor, para que o país faça a
denúncia da convenção42, neste caso, como houve uma revogação, em 2019, apenas
com o fim de reorganização das Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil e sua
posterior republicação43, o Brasil só poderia vir a denunciar, pela análise ministerial,
a Convenção 169, no ano de 202944.

6 CONCLUSÃO

O presente estudo teve como objetivo demonstrar como a denúncia


da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho seria mais uma
forma de dificultar o acesso e permanência de indígenas Warao ao Brasil como
refugiados, que devem ser categorizados como tal devido à mudança paradigmática
de sua migração que adveio com a crise da Venezuela de 2016.
Considerando a importância complementar que teria a Convenção na
proteção dos migrantes Warao, é perceptível que tal grupo de deslocados forçados
seria impactado pela denúncia da Convenção pelo Brasil. Apesar da existência de
leis como a Lei do Refúgio e Lei de Migração e o próprio Estatuto do Índio, sabe-
se que, dado a singularidade desta migração, por suas características únicas, em se
tratando de um grupo indígena, existe a demanda de uma atenção particular.
Outrossim, a proteção existente para esse grupo deve ser de fato impactada,
valendo salientar que a decisão desprotege, da mesma forma, grupos originários
brasileiros, se tratando, verdadeiramente, de decisão inconvencional (por não
respeitar prazos procedimentais previstos na própria Convenção) e inconstitucional
(ao ir de encontro a alguns princípios e deveres previstos no texto constitucional),
como já fora explanado, impactando um grupo que já passa por especial dificuldade
de integração, dado o contexto migratório e de hábitos culturais. A denúncia tem

42 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 169, art. 39, 1. Todo


Membro que tenha ratificado a presente Convenção poderá denunciá-Ia após a expiração de um
período de dez anos contados da entrada em vigor mediante ato comunicado ao Diretor- Geral da
Repartição Internacional do Trabalho e por ele registrado. A denúncia só surtirá efeito um ano após
o registro.
43 BRASIL. Decreto n° 10.088, de 5 de novembro de 2019, Consolida atos normativos editados pelo
Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Orga-
nização Internacional do Trabalho – OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil.
44 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Nota Técnica – Projeto de Decreto Legislativo 177/2021
(Denúncia da Convenção 169 da OIT). Brasília, 2021.

632
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
E AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

repercussão de forma geral na vida de todos os grupos indígenas vivendo no Brasil,


não entrando, todavia, no mérito deste trabalho.
O ato de denunciar uma convenção internacional é alvo de controvérsias
jurídico-legislativas, pela imprecisão advinda do texto constitucional sobre a
forma como pode vir a ocorrer, aguardando, atualmente, decisão do Supremo
Tribunal Federal sobre a necessidade de anuência do Congresso Nacional. No caso
da Convenção nº 169, há uma problemática por se tratar de matéria de direitos
humanos. Levantando-se o debate acerca da inconstitucionalidade na denúncia de
convenções de direitos humanos, pela interpretação do princípio da vedação do
retrocesso, como também da necessidade de que o Brasil se paute, em suas relações
internacionais, pela prevalência dos direitos humanos.
Dessa forma, a denúncia da Convenção nº 169 da OIT, tendo em
vista seu caráter essencial à proteção dos direitos humanos dos Warao no Brasil,
seria demasiado danosa, reduzindo e fragilizando direitos dos povos indígenas
presentes neste país. Além disso, mas também por isso, o ato de denúncia seria
inconstitucional.
Nota-se que a fundamentação utilizada no PDL 177/2021 para pugnar
pela denúncia da convenção são frágeis, quando não dizer incongruentes. Em
verdade, a atual conjuntura vivida no Brasil demonstra um desinteresse em garantir
proteção aos grupos que estão em condições de vulnerabilidade, tais quais indígenas
e refugiados, sendo o PDL 177/2021, que busca a denúncia da Convenção nº 169
da Organização Internacional do Trabalho, apenas a confirmação e evidência de
tamanho descaso.

633
REFERÊNCIAS

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excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer
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SILVEIRA, Marina da; CARNEIRO, Cynthia. A declaração das nações unidas


sobre os direitos dos povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira
sobre o direito de livre circulação do povo warao. PÉRIPLOS. GT CLACSO -
Fronteiras internacionais e migração indígena na América do Sul. p. 69 - 94, v. 2,
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SILVEIRA, Marina de Campos P. da. Fronteiras e mobilidade indígena: o veto


ao direito de livre circulação da nova lei de migração e o povo Warao. 2019.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito)
- Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, University of São Paulo, Ribeirão Preto,
2019. doi:10.11606/D.107.2019.tde-10092021-163922.

637
POSFÁCIO

“O mundo pode ser um palco, mas o elenco é um horror”. A frase de


Oscar Wilde é, sem dúvida, muito forte, porém não menos reveladora da necessidade
de publicações como esta, coordenada com o costumeiro brilho acadêmico de
Thiago Oliveira Moreira, Yara Maria Pereira Gurgel e Catherine Maia. A história
da humanidade tem sido, de fato, palco de tempo e espaço para um espetáculo de
horrores cometidos por pessoas ou grupos contra pessoas ou grupos. No século
passado, todavia, o enredo dessa história ganhou holofotes mais luminosos.
Sabemos os fatores.
Séculos antes, o ser humano passara a figurar como centro do pensamento,
até que, em meados do século XVIII, foram-lhe reconhecidos dignidade e direitos
individuais, inclusive oponíveis às estruturas oficiais encarregadas do exercício do
poder político. Adiante no tempo, esses “novos indivíduos” passaram a ser titulares
também de direitos sociais. A evolução do pensamento humanista foi lenta, mas,
quando o mundo explodiu em guerras no século XX, resultando na violência que
conhecemos, ao menos já havia consciência e maturidade sociais bastantes para se
perceber a necessidade de uma (re)formulação teórica que buscasse evitar que o
poder estatal mal exercido pudesse ameaçar a mera existência da humanidade.
O século XXI infelizmente não mudou o curso da trama. Por isso, as
reflexões sobre direito internacional de direitos humanos perseveram na ordem
do dia, como escudo jurídico na tutela de minorias, de grupos não hegemônicos
e sobretudo das pessoas em situação de maior vulnerabilidade, não por acaso o
foco principal desta obra. A propósito, uma abordagem nela realizada me interessa
em particular: a relação entre o direito internacional dos direitos humanos e o
direito doméstico, já que, no palco da história, o Estado não raras vezes figura como
escudo da opressão pelos personagens da trama que não hesitam em agredir seus
semelhantes.
Nas aulas de direito internacional no Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGD/UFRN),
tenho estimulado, junto aos nossos alunos e alunas, a reflexão sobre a densidade
normativa do direito internacional e seu modo de aplicação. As discussões têm

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revelado uma nítida dificuldade com o método subsuntivo de aplicação normativa
e a consequente dificuldade de extrair normatividade do direito internacional para
fazê-lo incidir nas situações jurídicas concretas.
Com efeito, as regras de direito internacional são dotadas de níveis
de generalidade e abstração ainda mais exacerbados do que aquelas de direito
doméstico. Nem poderia ser diferente: a materialidade da regra internacional
precisa ser suficientemente ampla para possibilitar sua compatibilização, para fins
de aplicação, com todos os sistemas jurídicos domésticos nos quais deve ingressar
validamente.
Para além de seu plano semântico, a dimensão pragmática da regra de
direito internacional pressupõe a contextualização, no direito doméstico, de seu
conteúdo normativo para possibilitar sua procedimentalização e consequente
incidência nas situações jurídicas concretas abrangidas por sua materialidade,
sem a qual sua eficácia é indevidamente comprometida. Por isso mesmo, o direito
internacional parece ser, à primeira vista, algo distante do profissional do direito
que atua no cotidiano.
Nesse sentido, é preciso cada vez mais pesquisar sobre a relação entre o
direito internacional dos direitos humanos e o direito doméstico, destacando-se a
importância de trabalhos com abordagem empírica e análise jurimétrica. Sem isso,
a dimensão ética que se depreende do campo semântico da norma internacional
não consegue alcançar os titulares de direitos subjetivos dela decorrentes. E, por
óbvio, se isso não acontece, o direito internacional gravita no sistema jurídico mais
como uma disciplina jurídica ou como um ideal de justiça do que propriamente
um corpo de regras e princípios dotados de validade e eficácia.
Como juiz federal no Rio Grande do Norte, faço um especial destaque ao
trabalho de Janine Praxedes do Nascimento Ribeiro de Andrade e de Thiago Oliveira
Moreira intitulado “A aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região”, revelador da baixa normatividade
das normas do tratado na jurisprudência do TRF5. As conclusões são relevantes
e mostram a importância de se investir no tema no âmbito da instituição, que,
aliás, é estratégica, em certa medida, no que se refere à proteção regional dos
direitos humanos, em face da condenação, pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, no caso Povo Indígena Xukuru e seus membros v. Brasil, com reflexos
na jurisdição da Justiça Federal da 5ª Região.

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Sobre o assunto, convém noticiar o protagonismo do TRF5, entre todos
os tribunais brasileiros, na criação da Unidade de Monitoramento e Fiscalização
de decisões, deliberações e recomendações do Sistema Interamericano de Proteção
aos Direitos Humanos, no âmbito da Justiça Federal da 5ª Região (UMF/JF5),
congênere de outra estrutura equivalente no Conselho Nacional de Justiça. A
iniciativa – que conta, entre seus colaboradores, comigo e com o professor doutor
Thiago Oliveira Moreira, coordenador desta obra – expressa um importante
compromisso institucional com o resguardo da normatividade do sistema regional
de direitos humanos no direito doméstico.
Para que essa engrenagem e outras que virão produzam os resultados
esperados, precisamos de pesquisas em direito internacional que se aproximem
da realidade diária, a fim de possibilitar que seu corpo de normas, através de sua
aplicação pelas instituições domésticas, chegue às ruas e lares dos brasileiros. A
presente obra é, pois, mais um tijolo na construção de um enredo mais humano no
palco da história.
Natal-RN, 23 de outubro de 2022.

Marco Bruno Miranda Clementino


Professor da UFRN e Juiz Federal

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