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Título original: e Myth of Normal

Copyright © 2022 por Gabor Maté


Copyright da tradução © 2023 por GMT Editores Ltda.

Publicado mediante acordo com Sterling Lord Literistic e Agência Riff.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos
editores.

tradução: Fernanda Abreu


preparo de originais: Pedro Siqueira
revisão: Ana Grillo e Hermínia Totti
diagramação: Valéria Teixeira
capa: Pete Garceau
adaptação de capa: Natali Nabekurao
e-book: Pedro Wainstok

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M377m
Maté, Gabor
O mito do normal [recurso eletrônico] / Gabor Maté, Daniel Maté ; [tradução
Fernanda Abreu]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Sextante, 2023.
recurso digital

Tradução de: e myth of normal


Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-5564-677-1 (recurso eletrônico)

1. Saúde - Aspectos sociais. 2. Doenças - Aspectos sociais. 3. Medicina social. 4.


Livros eletrônicos. I. Maté, Daniel. II. Abreu, Fernanda. III. Título.

CDD: 362.1
23-83609 CDU: 614

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643

Todos os direitos reservados, no Brasil, por


GMT Editores Ltda.
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À querida Rae, minha parceira de vida, que
me enxergou antes de eu conseguir ver a mim mesmo
e me amou por inteiro muito antes de eu conseguir
me amar. Nada do meu trabalho existiria sem ela.
E aos lhos que juntos geramos e são a luz do
nosso mundo: Daniel, Aaron e Hannah.
O melhor médico é também um lósofo.
– GALENO DE PÉRGAMO

Se quiser realizar sua grande missão, a medicina deve intervir


na vida política e social. Deve apontar os obstáculos que
impedem o funcionamento social normal de processos vitais, e
agir para removê-los.
– RUDOLF VIRCHOW, médico alemão do século XIX

Quando alguém está tentando sobreviver, transforma a doença


em estratégia de adaptação, e a perda em cultura.
– STEPHEN JENKINSON
NOTA DO AUTOR

Não existem personagens misturados ou ctícios neste livro. Todas as


histórias contadas são de pessoas reais, cujas palavras foram transcritas a
partir de entrevistas e reproduzidas de forma precisa, com ocasionais
edições por motivo de clareza. Quando apenas o primeiro nome é
mencionado, trata-se de um pseudônimo a pedido do entrevistado para
preservar sua privacidade. Nesses casos, alguns dados biográ cos também
podem ter sido levemente alterados. Quando nome e sobrenome são usados,
a identidade é real.
Exceto quando indicado, todos os grifos são meus.
Uma palavrinha sobre autoria: este livro foi escrito em parceria com
meu lho Daniel. Geralmente, a palavra com usada para identi car um
autor designa um ghost-writer, alguém que coloca no papel as ideias do
autor principal. Não foi o caso: na maior parte dos capítulos, o autor
principal fui eu, e Daniel então releu o texto prestando especial atenção no
estilo, no tom, na clareza da argumentação e na acessibilidade, muitas vezes
contribuindo com as próprias ideias. Ocasionalmente, quando eu cava sem
saber o que dizer ou como dizer, ele assumia durante algum tempo as rédeas
da escrita, redigindo uma seção ou um capítulo especí co com base no
material organizado e anotado por mim. Em todos os casos, fazíamos
leituras alternadas dos capítulos até carmos ambos satisfeitos. A estrutura e
a uência do livro também foram em grande parte uma colaboração
contínua entre nós dois, desde a preparação da proposta editorial até a
versão nal.
Assim, embora a autoria esteja distribuída de forma desigual, no sentido
de que este livro re ete meu trabalho – incluindo pesquisas, análises e
experiências –, ele foi em grande medida coescrito. Eu realmente não
poderia ter levado a cabo essa empreitada sem a brilhante parceria com
Daniel.

GABOR MATÉ
Vancouver, Colúmbia Britânica
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO Por que o normal é um mito (e que importância isso


tem)

PARTE UM Nossa natureza interconectada


1 O último lugar em que você quer estar: aspectos do trauma
2 Viver num mundo imaterial: emoções, saúde e a unidade corpo-
mente
3 Você me vira a cabeça: nossa biologia altamente interpessoal
4 Tudo aquilo que me cerca: despachos da nova ciência
5 Motim no corpo: o mistério do sistema imunológico rebelde
6 Não é uma coisa: a doença como processo
7 Uma tensão traumática: apego versus autenticidade

PARTE DOIS A distorção do desenvolvimento humano


8 Quem realmente somos? Natureza humana, necessidades
humanas
9 Uma base robusta ou frágil: as necessidades irredutíveis das
crianças
10 Problemas no limiar: antes de virmos ao mundo
11 Qual é a minha escolha? O parto numa cultura medicalizada
12 Uma horta na Lua: a criação dos filhos sabotada
13 Forçar o cérebro na direção errada: a sabotagem da infância
14 Um template para a angústia: como a cultura forma nosso
caráter

PARTE TRÊS Repensar o anormal: as doenças como adaptações


15 Não sendo você: a desmistificação da dependência
16 Quem se identificar levante a mão: uma nova visão da
dependência
17 Um mapa impreciso da nossa dor: onde erramos em relação à
doença mental
18 A mente é capaz de coisas incríveis: da loucura ao significado

PARTE QUATRO As toxicidades da nossa cultura


19 Da sociedade para a célula: incerteza, conflito e perda de
controle
20 O espírito humano roubado: a desconexão e seus descontentes
21 Eles não estão nem aí se você morrer: a sociopatia como
estratégia
22 A noção de si sob ataque: como raça e classe se entranham na
pele
23 Os amortecedores da sociedade: por que as mulheres sofrem
mais
24 Nós sentimos a dor deles: nossa política impregnada de trauma
PARTE CINCO Os caminhos da inteireza
25 A mente no comando: a possibilidade de cura
26 Quatro disposições e cinco compaixões: alguns princípios de
cura
27 Um presente terrível: a doença como professora
28 Antes de o corpo dizer não: primeiros passos no retorno a si
29 Ver para desacreditar: como desfazer crenças autolimitantes
30 Inimigos que viram amigos: como lidar com os obstáculos à cura
31 Jesus na tenda: psicodélicos e cura
32 Minha vida como uma coisa genuína: tocar o espírito
33 Um mito desfeito: visão de uma sociedade mais sã

AGRADECIMENTOS

NOTAS
INTRODUÇÃO

Por que o normal é um mito


(e que importância isso tem)

O fato de milhões de pessoas compartilharem os mesmos vícios


não faz desses vícios virtudes, assim como o fato de
compartilharem tantos erros não faz desses erros verdades; e o
fato de milhões de pessoas compartilharem as mesmas formas
de patologia mental não torna essas pessoas sãs.

– ERICH FROMM, The Sane Society

Na sociedade mais obcecada por saúde que já existiu, as coisas não vão nada
bem.
A saúde e o bem-estar se tornaram uma xação moderna. Indústrias
multibilionárias contam com o investimento contínuo – mental e
emocional, sem esquecer o nanceiro – das pessoas, em sua busca
interminável para comer melhor, parecer mais jovem, viver mais, ter mais
energia ou simplesmente ter menos sintomas do que quer que seja. Vemos
notícias “revolucionárias” nas capas de revistas, matérias de televisão,
anúncios onipresentes e uma enxurrada diária de conteúdo viralizado na
internet, tudo nos empurrando essa ou aquela forma de melhorar a nós
mesmos. Fazemos o possível para nos manter atualizados: tomamos
suplementos, nos matriculamos em aulas de ioga, experimentamos todas as
novas dietas, pagamos por testes genéticos, traçamos estratégias para evitar
o câncer ou a demência, e buscamos conselhos médicos ou terapias
alternativas para doenças do corpo, da mente e da alma.
Apesar disso tudo, nossa saúde está piorando.
O que está acontecendo? Como devemos interpretar o fato de, neste
mundo tão moderno, no auge do conhecimento e da so sticação da
medicina, vermos cada vez mais doenças físicas crônicas e transtornos
mentais? E como não estamos alarmados com isso? Por m, como devemos
agir para prevenir e curar os muitos males que nos assolam, mesmo sem
considerar as catástrofes terríveis como a pandemia de covid-19?
Com mais de três décadas de exercício da medicina, num trabalho que
inclui desde partos até a administração do setor de cuidados paliativos num
hospital, sempre me interessei pelos vínculos entre os indivíduos e os
contextos sociais e emocionais nos quais nossa vida se desenrola, e nos quais
a saúde ou a doença subsequentemente ocorrem. Com o tempo, essa
curiosidade, ou, melhor dizendo, esse fascínio, me levou a examinar a fundo
a inovadora ciência que estabeleceu esses vínculos. Meus livros anteriores
exploraram algumas dessas conexões manifestadas em males especí cos,
como o transtorno do dé cit de atenção com hiperatividade (TDAH), a
dependência, o câncer e todos os tipos de doenças autoimunes. Escrevi
também sobre desenvolvimento infantil durante o período mais
decisivamente formador de nossa vida.1
O escopo deste livro, O mito do normal, é bem mais abrangente. Passei a
acreditar que, por trás da verdadeira epidemia de mazelas crônicas, tanto
mentais quanto físicas, que assolam nossa época, existe algo de errado em
nossa própria cultura, que gera ao mesmo tempo a profusão de males dos
quais sofremos e os pontos cegos ideológicos que nos impedem de ver a
situação com clareza e tomar alguma providência mais e caz. Esses pontos
cegos, prevalentes na cultura de modo geral – porém endêmicos em trágica
escala na minha pro ssão –, nos mantêm ignorantes em relação às conexões
entre nossa saúde e nossa vida socioemocional.
Outra forma de dizer a mesma coisa: uma doença crônica, seja ela
mental ou física, é em grande medida uma função ou um aspecto do modo
como as coisas são, e não uma disfunção; ela não é uma aberração
misteriosa, mas uma consequência do nosso modo de viver.
A expressão “cultura tóxica”, que muitas vezes usamos para descrever a
nossa sociedade, pode sugerir coisas como poluentes ambientais, tão
prevalentes desde os primórdios da era industrial e tão nocivos para a saúde
humana. De partículas de amianto até a propagação desenfreada de dióxido
de carbono, de fato não faltam entre nós toxinas reais, concretas. Também
poderíamos entender o adjetivo “tóxico” em sua acepção mais
contemporânea, mais pop-psicológica, como a propagação de negatividade,
descon ança, hostilidade e polarização que, de modo irrefutável, caracteriza
o momento sociopolítico atual.
Com certeza podemos incluir ambos os signi cados em nossa discussão,
mas neste livro uso a expressão “cultura tóxica” para caracterizar algo ainda
mais amplo e mais profundamente arraigado: todo o contexto de estruturas
sociais, sistemas de crença, pressuposições e valores que nos cerca, e que
necessariamente permeia todos os aspectos da nossa vida.
O fato de a vida social in uenciar a saúde não é uma descoberta nova,
porém o reconhecimento desse fato nunca foi tão urgente. Vejo isso como a
questão de saúde mais crucial e com mais consequências da nossa época,
movida pelos efeitos do aumento do estresse, da desigualdade econômica e
da catástrofe climática, para citar apenas alguns fatores. Nosso conceito de
bem-estar precisa passar do individual para o global em todos os sentidos da
palavra. Isso vale em especial para essa era do capitalismo globalizado que,
nas palavras do historiador cultural Morris Berman, se tornou “o ambiente
comercial total que circunscreve todo um mundo mental”.2 Dada a unidade
entre corpo e mente que será destacada neste livro, eu acrescentaria que isso
constitui também um ambiente siológico total.
A meu ver, pela sua própria natureza, nossa cultura social e econômica
gera fatores de estresse crônicos que prejudicam nosso bem-estar de forma
grave, como vem fazendo com cada vez mais força ao longo das últimas
décadas.
Eis uma analogia que pode ser útil: num laboratório, uma “cultura” é um
caldo bioquímico criado sob medida para o desenvolvimento de uma forma
de vida especí ca. Pressupondo que os microrganismos em questão
comecem o experimento com uma saúde e uma adequação genética
perfeitas, uma cultura adequada e uma boa manutenção deveria permitir o
desenvolvimento e a proliferação saudável deles. Se esses microrganismos
começam a apresentar patologias em taxas incomuns ou não conseguem se
desenvolver direito, das duas uma: ou a cultura se contaminou, ou desde o
início não constituía a mistura certa. Fosse como fosse, poderíamos
denominar isso corretamente de cultura tóxica, ou seja, inadequada para as
criaturas que deveria sustentar. Ou pior: perigosa para sua existência. O
mesmo vale para as sociedades humanas. Como a rma o apresentador,
ativista e escritor omas Hartmann, “a cultura pode ser saudável ou tóxica,
promover o bem-estar ou então matar”.3
Da perspectiva do bem-estar, nossa cultura atual, vista como um
experimento de laboratório, é uma demonstração cada vez mais globalizada
do que pode dar errado. Apesar de recursos econômicos, tecnológicos e
médicos espetaculares, ela leva um número incalculável de seres humanos a
padecerem de doenças geradas por estresse, desigualdade, degradação
ambiental, mudança climática, pobreza e isolamento social. Ela permite que
milhões de pessoas morram prematuramente de doenças que sabemos
evitar ou de privações de recursos de que dispomos em quantidades
su cientes para eliminar.
Nos Estados Unidos, o epicentro do sistema econômico globalizado,
60% dos adultos têm algum distúrbio crônico como hipertensão arterial ou
diabetes, e mais de 40% apresentam dois ou mais distúrbios desse
tipo.4Quase 70% dos americanos tomam um ou mais remédios vendidos
com receita; mais da metade toma dois diariamente.5 No Canadá, meu país,
metade de todos os baby boomers terão hipertensão em poucos anos caso a
tendência atual se mantenha.6 Entre as mulheres, vê-se um aumento
desproporcional dos diagnósticos de doenças autoimunes potencialmente
debilitantes, como a esclerose múltipla (EM).7 Entre os jovens, os cânceres
não relacionados ao tabagismo parecem estar aumentando. As taxas de
obesidade, juntamente com os vários riscos para a saúde que a
acompanham, estão subindo em muitos países, entre eles Canadá, Austrália
e, em especial, os Estados Unidos, onde mais de 30% da população adulta
atende aos critérios que a de nem. Recentemente, o México ultrapassou seu
vizinho mais ao norte nessa nada invejável categoria, resultando em 38
mexicanos diagnosticados com diabetes a cada hora. Graças à globalização,
a Ásia está recuperando o atraso. “A China adentrou a era da obesidade”,
relata o pesquisador de saúde infantil Ji Chengye, em Pequim. “A velocidade
de crescimento é chocante.”8
Em todo o mundo ocidental, os diagnósticos de distúrbios mentais
aumentam exponencialmente entre os jovens, adultos e idosos. No Canadá,
depressão e ansiedade são os diagnósticos que mais crescem; e em 2019,
mais de 50 milhões de americanos – o que corresponde a mais de 20% da
população adulta dos Estados Unidos – teve algum episódio de doença
mental.9 Na Europa, segundo os autores de uma pesquisa internacional
recente, os transtornos mentais se tornaram “o maior desa o do século
XXI”.10 Milhões de crianças e jovens americanos vêm sendo medicados com
estimulantes, antidepressivos e até mesmo drogas antipsicóticas, cujos
efeitos a longo prazo no cérebro em desenvolvimento ainda não foram
estabelecidos. Uma manchete arrepiante no site de notícias ScienceAlert fala
por si: “Tentativas de suicídio por crianças explodem nos Estados Unidos, e
ninguém sabe por quê.”11 O panorama é igualmente grave no Reino Unido,
onde o jornal e Guardian recentemente noticiou: “Universidades
britânicas veem aumento de ansiedade, colapso nervoso e depressão em
alunos.”12 À medida que a globalização toma conta do mundo, distúrbios até
então encontrados em países “desenvolvidos” estão começando a adentrar
novos territórios. Por exemplo, o TDAH em crianças tornou-se “uma
questão de saúde pública cada vez mais grave” na China.13
A catástrofe climática que já nos afeta introduziu um risco inteiramente
novo, uma versão ampli cada – se é que isso é possível – da ameaça que a
guerra nuclear representa desde Hiroshima. “A preocupação com a mudança
climática está associada à percepção dos jovens de que eles não têm futuro,
de que a humanidade está condenada”, constataram os autores de uma
pesquisa de 2021 sobre as atitudes de mais de 10 mil indivíduos em 42
países. Além da sensação de terem sido traídos e abandonados pelos
governos e pelos adultos, o desânimo e a falta de esperança demonstrados
pelos participantes da pesquisa “são fatores de estresse crônicos que terão
implicações negativas signi cativas, duradouras e progressivas na saúde
mental de crianças e jovens”.14
Voltando à analogia do laboratório, podemos concluir,
inquestionavelmente, que nossa cultura é tóxica. E mais: nós nos
acostumamos – ou, talvez seja mais adequado dizer, nos aculturamos – a
grande parte do que nos a ige. Essas coisas se tornaram, na falta de um
adjetivo melhor, normais.
Na prática clínica, a palavra normal designa, entre outras coisas, o estado
que é nosso objetivo como médicos, e que serve de fronteira para distinguir
a saúde da doença. “Níveis normais” e “funcionamento normal” são as
nossas metas ao indicar procedimentos ou medicações. Também avaliamos
o sucesso ou o fracasso de um tratamento em comparação com “normas
estatísticas”: tranquilizamos pacientes a itos de que tal sintoma ou efeito
colateral é totalmente normal, no sentido de “esperado”. Todos esses são usos
especí cos e legítimos da palavra, que nos permitem avaliar situações de
modo realista para podermos mirar adequadamente nossos esforços.
Não é nesses sentidos que a palavra “normal” é usada no título deste
livro, mas sim em uma acepção mais insidiosa que, em vez de nos ajudar a
progredir em direção a um futuro mais saudável, nos impede de tentar fazer
isso já de saída.
Para o bem ou para o mal, nós humanos temos um grande talento para
nos acostumar às coisas, em especial quando as mudanças são progressivas.
A palavra “normalizar” refere-se ao mecanismo por meio do qual uma coisa
antes aberrante se torna comum o su ciente para não ser captada pelo nosso
radar. Num nível social, portanto, “normal” muitas vezes signi ca “não há
nada diferente a ser visto por aqui”: todos os sistemas estão funcionando
como deveriam, não é preciso mais nenhuma investigação.
A verdade, do meu ponto de vista, é muito diferente.
O saudoso David Foster Wallace, artí ce da palavra, escritor e ensaísta,
certa vez abriu um discurso com uma parábola bem-humorada que ilustra
bem o problema do conceito de normalidade. A história fala sobre dois
peixes jovens que cruzam com um peixe ancião, que os cumprimenta
alegremente: “Bom dia, rapazes. Como está a água?” E depois de os dois
jovens peixes passarem um tempo nadando, um deles olha para o outro e
pergunta: “O que é água?” A questão que Wallace queria levantar era que “as
realidades mais evidentes, mais onipresentes e mais importantes muitas
vezes são as mais difíceis de ver e de abordar”. Na superfície, reconheceu ele,
isso poderia soar como um “clichê banal”, mas “nas trincheiras do dia a dia
da existência adulta, os clichês banais podem ter uma importância de vida ou
morte”.
Ele poderia muito bem estar se referindo à tese deste livro. De fato, a
vida – e também a morte – das pessoas, sua qualidade e em muitos casos sua
duração, estão intimamente ligadas aos aspectos da sociedade moderna
“mais difíceis de ver e de abordar”: fenômenos que, como a água para os
peixes, são ao mesmo tempo demasiado vastos e demasiado próximos para
serem devidamente valorizados. Em outras palavras, aqueles aspectos da
vida cotidiana que hoje nos parecem normais são os que mais alto gritam
para serem examinados. Esse é o meu argumento central. Minha intenção
de fundo, consequentemente, é propor um novo modo de ver e de falar
sobre esses fenômenos, trazendo-os do fundo para a frente da cena, para que
talvez possamos encontrar mais rapidamente seus tão necessários remédios.
Acredito que muito daquilo que se considera normal hoje não é nem
saudável nem natural, e que corresponder aos critérios de normalidade da
sociedade moderna signi ca, sob muitos aspectos, conformar-se a
exigências profundamente anormais no que tange às necessidades que a
natureza nos deu, ou seja: pouco saudáveis e prejudiciais nos níveis
siológico, mental e até espiritual.
Se pudéssemos começar a ver muitas doenças não como uma reviravolta
cruel do destino ou um mistério insondável, mas como algo esperado, e,
portanto, uma consequência normal de circunstâncias anormais e
antinaturais, isso teria implicações revolucionárias para o modo como
abordamos tudo que tem a ver com saúde. Os corpos e as mentes doentes
não seriam mais considerados expressões de patologias individuais, mas sim
alarmes vivos que direcionam nossa atenção para aquilo que não está
funcionando bem em nossa sociedade e para questionamentos do tipo: até
que ponto nossas certezas e pressuposições dominantes a respeito da saúde
na verdade são cções? Vistas com clareza, elas também talvez nos forneçam
pistas do que seria preciso para reverter o curso e construir um mundo mais
saudável.
Bem mais do que uma falta de perspicácia tecnológica, verba ou novas
descobertas, a noção equivocada que nossa cultura tem da normalidade é o
maior impeditivo para criar um mundo mais saudável, e chega a nos
impedir de usar os conhecimentos de que já dispomos. Seus efeitos
oclusivos são particularmente dominantes na área em que uma visão
desimpedida é mais necessária: a medicina.
Devido a um viés ostensivamente cientí co que, sob alguns aspectos,
mais se assemelha a uma ideologia do que a um conhecimento empírico, o
paradigma médico atual comete um erro duplo: reduz eventos complexos à
sua biologia e separa a mente do corpo, preocupando-se quase
exclusivamente com um sem levar em conta a unidade essencial entre os
dois. Essa falha não invalida as conquistas inquestionavelmente milagrosas
da medicina, tampouco macula a boa intenção de tantos que a praticam,
mas restringe o bem que a ciência médica poderia estar fazendo.
Um dos fracassos mais persistentes e calamitosos que prejudicam nossos
sistemas de saúde é a ignorância – no sentido de não saber ou de ignorar
aquilo que já foi estabelecido pela ciência. Por exemplo: os indícios
abundantes e crescentes de que as pessoas vivas não podem ser separadas
em órgãos e sistemas distintos, nem mesmo em “mentes” e “corpos”. De
modo geral, o mundo da medicina não quis ou não conseguiu metabolizar
esses indícios e ajustar suas práticas de forma adequada. A nova ciência, boa
parte da qual não é conceitualmente tão nova assim, ainda não tem impacto
signi cativo na formação em medicina, o que obriga pro ssionais de saúde
bem-intencionados a trabalharem no escuro. Muitos acabam tendo que ligar
os pontos sozinhos.
Para mim, o processo de juntar as peças começou muitas décadas atrás,
quando um palpite me fez ir além do repertório padrão de perguntas
médicas áridas e pro ssionais sobre apresentação de sintomas e históricos
médicos, e passei a perguntar aos meus pacientes sobre o contexto mais
geral de suas doenças: a vida deles. Sou grato pelo que esses homens e
mulheres me ensinaram com sua forma de viver e de morrer, de sofrer e de
se recuperar, e com as histórias que compartilharam comigo. O centro da
questão, que está de acordo com o que a ciência mostra, é o seguinte: saúde
e doença não são estados aleatórios num corpo especí co ou numa parte
especí ca do corpo. Elas são, isso sim, expressão de uma vida inteira vivida,
vida esta que, por sua vez, não pode ser compreendida isoladamente: ela é
in uenciada por, ou melhor, decorre de toda uma teia de circunstâncias,
relacionamentos, acontecimentos e experiências.
É claro que temos motivo para comemorar os avanços espantosos da
medicina nos dois últimos séculos e a incansável coragem e genialidade
daqueles cujo trabalho possibilitou passos gigantescos em muitas áreas
distintas da saúde humana. Para citar um exemplo apenas, a incidência de
poliomielite, doença terrível que matava ou deixava sequelas em muitas
crianças apenas duas ou três gerações atrás, caiu mais de 99% desde 1988
nos Estados Unidos; a maioria das crianças hoje em dia provavelmente
nunca ouviu falar nessa doença.15 Até a mais recente epidemia de HIV foi
atenuada num período relativamente curto e passou de uma sentença de
morte a uma doença crônica administrável, pelo menos para quem tem
acesso ao tipo certo de tratamento. E, por mais destruidora que tenha sido a
pandemia de covid-19, o rápido desenvolvimento de vacinas pode ser
listado entre as vitórias da ciência e da medicina modernas.
O problema de notícias boas como essas – e são mesmo notícias muito
boas – é que elas instigam a tranquilizadora convicção de que estamos, de
modo geral, avançando em direção a uma vida mais saudável, o que nos
coloca num estado de falsa passividade. O verdadeiro cenário é bem
diferente. Longe de estarmos prestes a vencer os desa os de saúde
contemporâneos que nos confrontam, nós mal estamos conseguindo
acompanhar a velocidade da maioria deles. Muitas vezes o melhor que
podemos fazer é mitigar sintomas, seja por via cirúrgica, farmacológica ou
ambas. Por mais bem-vindos que sejam os avanços da medicina e por mais
frutíferas que possam ser as pesquisas, o xis da questão não é uma falta de
fatos nem uma falta de tecnologia ou de técnicas, mas sim uma perspectiva
empobrecida e ultrapassada que não é capaz de explicar o que estamos
vendo. Meu objetivo aqui é propor uma perspectiva nova que, acredito, traz
enormes possibilidades para um paradigma mais saudável: uma nova visão
do normal que alimente o melhor que existe em nós.
O arco narrativo deste livro segue os círculos concêntricos de causa,
conexão e consequência que in uenciam quão saudáveis ou quão pouco
saudáveis nós somos. Começando por dentro, no nível da biologia humana,
e examinando em seguida os relacionamentos estreitos nos quais nosso
corpo, nosso cérebro e nossa personalidade se desenvolvem, avançaremos
de dentro para fora em direção às dimensões mais macro de nossa existência
coletiva, ou seja, as dimensões socioeconômica e política. Pelo caminho,
mostrarei como nossa saúde física e mental está intrincadamente vinculada
a como nos sentimos, a nossas percepções e crenças em relação a nós
mesmos e ao mundo, e às maneiras como a vida satisfaz ou não nossas
necessidades humanas inegociáveis. Como o trauma é uma camada que
constitui um dos alicerces da experiência da vida moderna, mas é em grande
parte ignorado ou erroneamente interpretado, começarei com uma
de nição de trabalho que servirá de base para tudo que virá a seguir.
Em cada etapa, minha tarefa é erguer o véu do senso comum e do
conhecimento transmitido e considerar o que a ciência e a observação
atenta nos dizem, com o objetivo de desfazer os mitos que mantêm o status
quo cristalizado. Como em meus livros anteriores, a ciência e suas
implicações de saúde serão explicadas por meio de histórias reais e estudos
de caso de pessoas que tiveram a generosidade de compartilhar comigo um
pouco de sua jornada na doença e na saúde. São histórias que oscilam entre
levemente surpreendentes e verdadeiramente inacreditáveis, entre
comoventes e inspiradoras.
Inspiradoras, sim. Pois há uma consequência animadora para todas essas
notícias ruins. Quando conseguimos olhar de frente para o que nós, como
cultura, normalizamos em relação à doença e à saúde, e entender que esse
na verdade não é o modo como as coisas devem ser, surge a possibilidade de
voltar ao que sempre foi a intenção da natureza para nós. Daí o sentido de
“cura” no subtítulo deste livro: quando tomamos a decisão de olhar para
como as coisas são, o processo de cura – palavra cuja raiz signi ca “voltar à
inteireza” – pode começar. Essa a rmação não contém nenhuma promessa
de curas milagrosas, apenas o reconhecimento de que cada um de nós
contém possibilidades ainda não imaginadas de bem-estar, possibilidades
que só se revelam quando enfrentamos e desmisti camos os mitos16
equivocados a respeito da normalidade aos quais nos acostumamos
passivamente. Se isso é verdade para nós como indivíduos, também deve ser
verdade para nós como espécie.
A cura não está garantida, mas está disponível. Não é um exagero dizer,
a essa altura da história da Terra, que ela é também necessária. Tudo que vi e
tudo que aprendi ao longo dos anos me dá a certeza de que nós a temos
dentro de nós.
PARTE UM

NOSSA NATUREZA
INTERCONECTADA

Como pensamos de modo fragmentado, vemos


fragmentos. E esse modo de ver nos leva a criar
verdadeiros fragmentos do mundo.
– SUSAN GRIFFIN, A Chorus of Stones
Quadro pintado por minha mulher, Rae, a partir de uma fotografia de 1944
(vista no canto superior esquerdo) de minha mãe, Judith, me segurando no
colo aos 3 meses. A estrela amarela que ela usa é o emblema da vergonha
obrigatório para todos os judeus da Hungria, assim como nos outros
territórios ocupados pelos nazistas. Rae captou muito bem a expressão
atormentada e o medo em meus olhos infantis. Acrílico sobre tela, 100 ×
75 cm, 1997.
1

O último lugar em que você


quer estar: aspectos do
trauma

É difícil imaginar o percurso de uma vida individual sem


visualizar algum tipo de trauma, e é difícil para a maioria das
pessoas saber o que fazer em relação a isso.
– MARK EPSTEIN, The Trauma of Everyday Life1

Imagine a seguinte cena: na tenra idade de 71 anos, seis antes de escrever


isto, este autor retorna a Vancouver depois de uma rápida ida a Filadél a
para uma palestra. A palestra foi um sucesso, a plateia se mostrou
entusiasmada, meu recado sobre o impacto da dependência e do trauma na
vida das pessoas foi calorosamente recebido. Viajei num conforto
inesperado, pois graças a uma cortesia da Air Canada recebi um upgrade
para a classe executiva. Ao descer sobre a paisagem imaculada de mar e céu
de Vancouver, estava quieto no meu canto do avião, curtindo a sensação de
dever cumprido. Quando pousamos e começamos a ir até o portão de
desembarque, uma mensagem de texto de minha mulher, Rae, faz a pequena
tela se acender: “Desculpe. Ainda não saí de casa. Quer que eu vá te buscar
mesmo assim?” Reteso o corpo, a satisfação substituída pela raiva. “Deixa”,
dito para o aparelho com a voz tensa. Amargurado, desembarco, passo pela
alfândega e pego um táxi para casa, uma viagem de 20 minutos. (Tenho
certeza de que você já está segurando o livro com força, tamanha sua
indignação solidária com o ultraje sofrido pelo autor.) Ao encontrar Rae,
rosno um oi que é mais acusação do que cumprimento, e mal olho para a
cara dela. Na verdade, passo as 24 horas seguintes praticamente sem fazer
contato visual. Quando ela fala comigo, balbucio pouco mais de grunhidos
breves e sem entonação. Meu olhar está desviado, a parte superior do meu
corpo tensa e rígida, e meu maxilar permanentemente retesado.
O que está acontecendo comigo? Seria essa a reação de um adulto
maduro na oitava década de vida? Só na superfície. Em momentos como
esse, o Gabor adulto quase desaparece. A maior parte de mim está presa a
um passado distante, próximo ao início da minha vida. Essa espécie de
viagem no tempo físico-emocional, que me impede de habitar o momento
presente, é uma das marcas do trauma, um tema subjacente para muitas
pessoas em nossa cultura. Na verdade, ele é tão profundamente “subjacente”
que muitos de nós não sabem que está lá.
O signi cado da palavra trauma, em sua origem grega, é ferida. Quer
nos demos conta disso ou não, são as nossas feridas, ou o modo como
lidamos com elas, que ditam grande parte do nosso comportamento,
formam nossos hábitos sociais e in uenciam nossa maneira de pensar o
mundo. Elas podem até mesmo determinar se somos ou não capazes de
algum pensamento racional em todas as questões que mais importam em
nossa vida. Para muitos de nós, elas surgem em nossas relações mais
próximas, causando todo tipo de problema.
Foi em 1889 que o pioneiro psicólogo francês Pierre Janet descreveu pela
primeira vez a memória traumática como algo guardado em “ações e
reações automáticas, sensações e atitudes […] repetidas e reencenadas como
sensações viscerais”.2 No século atual, o renomado psicólogo especializado
em trauma e curador espiritual Peter Levine escreveu que determinados
choques no organismo “podem alterar o equilíbrio biológico, psicológico e
social de uma pessoa a tal ponto que a lembrança de um acontecimento
especí co passa a contaminar e dominar todas as outras experiências,
estragando a vivência do momento presente”.3 Levine chama isso de “tirania
do passado”.
No meu caso, a origem da minha hostilidade em relação à mensagem de
Rae está no diário que minha mãe escreveu, num garrancho quase ilegível e
de modo intermitente, em meus primeiros anos em Budapeste durante e
após a Segunda Guerra Mundial. O trecho a seguir, traduzido por mim do
húngaro, foi escrito por ela em 8 de abril de 1945, quando eu tinha 14 meses:

Meu querido homenzinho, só depois de longos meses é que pego de


novo a caneta para lhe descrever brevemente os horrores indizíveis desta
época, cujos detalhes não quero que você conheça […] Foi em 12 de
dezembro que os Flechas Cruzadas4 nos forçaram a ir para o gueto de
Budapeste, de onde, com extrema di culdade, conseguimos nos refugiar
numa casa protegida pela Suíça. De lá, dois dias depois, mandei você
com uma total desconhecida para ir car com sua tia Viola, porque vi
que o seu pequenino organismo não suportaria as condições de vida
naquele prédio. Então começaram as cinco ou seis semanas mais
terríveis da minha vida, nas quais não pude vê-lo.

Sobrevivi graças à bondade e à coragem da cristã desconhecida a quem


minha mãe me con ou na rua, e que me levou até parentes escondidos em
circunstâncias relativamente mais seguras. Quando reencontrei minha mãe,
depois de o exército soviético ter posto os alemães para correr, passei vários
dias sem sequer olhar para ela.
O grande psiquiatra e psicólogo britânico do século XX John Bowlby
conhecia esse comportamento: chamava-o de desapego. Em sua clínica, ele
observou 10 crianças pequenas obrigadas a suportar uma separação
prolongada dos pais devido a circunstâncias impossíveis de controlar. “Ao
encontrar a mãe pela primeira vez após dias ou semanas separadas, todas as
crianças apresentaram algum grau de desapego”, observou Bowlby. “Duas
pareceram não reconhecer a mãe. As outras oito viraram a cara ou até se
afastaram da mãe. A maioria chorou ou chegou perto de fazê-lo; várias
alternaram entre uma expressão de choro e uma ausência de expressão.”5
Pode parecer contraintuitivo, mas esse re exo de rejeição da mãe amorosa é
uma adaptação: “Fiquei tão magoada quando você me abandonou”, diz a
mente da criança pequena, “que não vou me reconectar com você. Não me
atrevo a me expor novamente a essa dor.” Em muitas crianças, e eu
certamente fui uma delas, reações precoces como essa se entranham no
sistema nervoso, na mente e no corpo, e causam problemas em relações
posteriores. Elas aparecem ao longo da vida em reação a qualquer incidente
ainda que vagamente semelhante à impressão original, muitas vezes sem
qualquer lembrança das circunstâncias causadoras. Minha reação petulante
e defensiva com Rae estava sinalizando que circuitos emocionais antigos,
arraigados no cérebro e programados na infância, tinham assumido o
controle, enquanto as partes racionais, tranquilizadoras e autorregulatórias
do meu cérebro se desligavam.
“Todo trauma é pré-verbal”, escreveu o psiquiatra Bessel van der Kolk.6
Essa a rmação é verdadeira em dois sentidos. Em primeiro lugar, as feridas
psíquicas que sofremos muitas vezes nos são in igidas antes de nosso
cérebro ser capaz de formular qualquer tipo de narrativa verbal, como no
meu caso. Em segundo lugar, mesmo depois de adquirida a linguagem,
algumas feridas cam gravadas em regiões de nosso sistema nervoso em
nada relacionadas a linguagem ou a conceitos; isso inclui áreas do cérebro,
claro, mas o resto do corpo também. Elas cam guardadas em partes de nós
que palavras e pensamentos não conseguem acessar diretamente; podemos
inclusive chamar esse nível de codi cação do trauma de “subverbal”. Como
explica Peter Levine:

A memória consciente, explícita, é apenas por assim dizer a ponta de um


iceberg muito profundo e poderoso. Ela não é nem uma fração das
camadas submersas de experiência implícita primeva que nos movem de
maneiras que a mente consciente não consegue sequer imaginar.7
Uma coisa devo dizer em relação à minha mulher: ela não admite que eu
me safe jogando nos nazistas, nos fascistas e no trauma de infância toda a
culpa pelo piti que dei quando ela não foi me buscar no aeroporto. Sim, esse
passado merece compaixão e compreensão, o que ela já me demonstrou em
larga medida, mas chega um ponto em que o argumento “eu z isso por
causa do Hitler” não cola mais. A responsabilidade pode e deve ser
assumida. Depois de 24 horas daquele silêncio punitivo, Rae chegou ao seu
limite. “Ah, para com isso, vai”, disse ela. E eu parei, um sinal de progresso e
relativa maturidade. No passado, teria levado dias ou mais para “parar com
isso”: para esquecer meu ressentimento e permitir que meu âmago
descongelasse, meu rosto relaxasse, minha voz abrandasse e minha cabeça se
virasse espontânea e amorosamente para minha parceira de vida.
“Meu problema é ser casado com uma pessoa que me entende”, já
resmunguei muitas vezes, só em parte brincando. Na verdade, é claro, minha
grande bênção é ser casado com uma mulher que tem limites saudáveis, que
me vê como sou agora e não está mais disposta a suportar o peso de minhas
visitas prolongadas e não planejadas ao passado remoto.

O QUE O TRAUMA É E O QUE ELE FAZ

A marca do trauma é mais endêmica do que pensamos. Essa pode parecer


uma a rmação difícil de entender, uma vez que “trauma” se tornou quase
um chavão em nossa sociedade. Além disso, a palavra passou a adquirir
vários sentidos coloquiais que confundem e diluem seu signi cado. Está na
hora de uma reavaliação clara e completa, em especial na área da saúde e, já
que tudo está conectado, em praticamente todas as outras áreas da
sociedade.
A concepção habitual de trauma evoca ideias de acontecimentos
catastró cos: furacões, abuso, negligência agrante, guerra. Isso tem por
efeito involuntário e equivocado relegar o trauma ao domínio do anormal,
do inabitual, do excepcional. Se existe uma classe de pessoas denominadas
“traumatizadas”, isso deve signi car que a maioria de nós não o é. É aí que
estamos redondamente enganados. O trauma permeia nossa cultura, desde
o nível pessoal até as relações sociais, parentais, a educação, a cultura
popular, a economia e a política. Na realidade, alguém sem marcas de
trauma seria um pária em nossa sociedade. Estamos mais perto da verdade
quando perguntamos: onde cada um de nós se encaixa no amplo e
surpreendentemente inclusivo espectro do trauma? Qual de suas muitas
marcas cada um de nós carregou por toda (ou quase toda) a vida, e quais
foram seus impactos? E que possibilidades se abririam se conhecêssemos
melhor essas marcas, ou mesmo nos tornássemos íntimos delas?
Mas primeiro uma pergunta mais básica: o que é trauma? Na minha
concepção, “trauma” é uma ferida interna, uma ruptura ou uma clivagem
duradoura do ego devido a acontecimentos difíceis ou dolorosos. Segundo
essa de nição, trauma é principalmente o que acontece dentro da pessoa
como resultado de acontecimentos difíceis ou dolorosos que lhe acometem;
não são os acontecimentos em si. “Trauma não é o que acontece com você,
mas sim o que acontece dentro de você”, é como eu o de no. Pense num
acidente de carro em que alguém sofre uma concussão: o acidente foi o que
aconteceu; a lesão é o que perdura. Da mesma forma, o trauma é uma ferida
psíquica alojada em nosso sistema nervoso, em nossa mente e em nosso
corpo, que dura muito mais do que o(s) incidente(s) que a originou
(originaram) e é passível de ser despertada a qualquer instante. Trata-se de
uma constelação de di culdades, composta pela ferida em si e pelos fardos
residuais que o fato de termos sido feridos impõe a nosso corpo e a nossa
alma: as emoções não resolvidas que ela nos provoca; a dinâmica adaptativa
que impõe; os roteiros trágicos, ou melodramáticos, ou neuróticos que
encenamos de modo involuntário, porém inexorável; e, igualmente
importante, o custo que ela cobra de nosso corpo.
Quando uma ferida não cicatriza por si só, uma de duas coisas vai
acontecer: ela pode continuar aberta ou, o mais comum, ser substituída por
uma camada mais grossa de tecido, uma cicatriz. Se aberta, a ferida é uma
fonte de dor constante e um lugar onde podemos ser machucados
repetidamente, mesmo pelos mais tênues estímulos. Isso nos leva a uma
vigilância constante – estamos, em certo sentido, sempre lambendo nossas
feridas – e limita nossa capacidade de nos mover com exibilidade e de agir
com autocon ança por causa do medo de sermos novamente feridos. A
cicatriz é preferível por proporcionar proteção e sustentar os tecidos, mas
tem desvantagens: é rígida, dura, in exível, incapaz de crescer, uma zona
desprovida de sensibilidade. A carne original, saudável e viva, não se
regenera.
Seja uma ferida aberta ou uma cicatriz, um trauma não resolvido é uma
limitação do eu, tanto física quanto psicológica. Ela restringe nossas
capacidades natas e gera uma distorção duradoura da nossa visão do mundo
e dos outros. Até ser trabalhado, o trauma nos mantém presos ao passado,
nos roubando a riqueza do momento presente e limitando quem podemos
ser. Ao nos impelir a reprimir as partes machucadas e indesejadas de nossa
psique, ele fragmenta o eu. A menos que seja visto e reconhecido, ele é
também um empecilho ao crescimento. Em muitos casos, como no meu, ele
prejudica a noção de valor próprio da pessoa, envenena relacionamentos e
compromete a fruição da vida em si. No início da infância, ele pode
inclusive interferir no desenvolvimento cerebral sadio. Além disso, como
vamos testemunhar, o trauma é um fator que antecede e contribui para
doenças de todo tipo ao longo da vida.
Considerados em conjunto, esses impactos constituem um impedimento
importante e fundamental para a inteireza em muitas, muitas pessoas.
Citando mais uma vez Peter Levine: “O trauma talvez seja a causa mais
evitada, ignorada, menosprezada, negada, mal compreendida e não tratada
de sofrimento humano.”8

DOIS TIPOS DE TRAUMA

Antes de prosseguirmos, vamos distinguir dois tipos de trauma. O primeiro,


no sentido em que a palavra é empregada por médicos e professores como
Levine e Van der Kolk, envolve reações automáticas e adaptações da mente e
do corpo a acontecimentos dolorosos e avassaladores especí cos,
identi cáveis, seja na infância ou depois. Como meu trabalho médico me
ensinou e as pesquisas demonstraram amplamente, coisas dolorosas
acontecem com muitas crianças, desde um abuso direto ou uma negligência
grave na família de origem até a pobreza, o racismo ou a opressão, aspectos
cotidianos de muitas sociedades. As consequências podem ser terríveis. De
maneiras bem mais frequentes do que em geral se reconhece, esses traumas
dão origem a vários sintomas e síndromes, e a distúrbios classi cados como
patologias, sejam elas físicas ou mentais – um vínculo que permanece quase
invisível aos olhos da medicina e da psiquiatria tradicionais, exceto no caso
de “doenças” especí cas como o transtorno de estresse pós-traumático.
Houve quem chamasse esse tipo de ferida de “trauma com T maiúsculo”. Ele
está por trás de boa parte do que se classi ca como doença mental. Esse tipo
de trauma cria também uma predisposição à doença física, causando
in amações, aumentando o estresse siológico e prejudicando o
funcionamento saudável dos genes, entre muitos outros mecanismos.
Resumindo, então: o trauma com T maiúsculo ocorre quando acontecem
coisas que não deveriam ter acontecido com pessoas vulneráveis, como por
exemplo quando uma criança sofre abuso, ou quando há violência na
família, ou em caso de divórcio conturbado ou de perda de um dos
genitores. Tudo isso faz parte dos critérios de perturbação infantil nos
conhecidos estudos sobre experiências adversas na infância (EAI). Aqui
também, os acontecimentos traumáticos em si não são idênticos ao trauma,
ou aos danos ao eu, que ocorrem imediatamente depois dentro da pessoa.
Existe uma outra forma de trauma, e é esse o tipo que estou chamando
de quase universal em nossa cultura, que já foi chamado de “trauma com T
minúsculo”. Muitas vezes pude observar as marcas duradouras que
acontecimentos aparentemente banais, o que um pesquisador seminal
chamou com grande sensibilidade de “os menos memoráveis, porém
dolorosos e muito mais prevalentes infortúnios da infância”, podem deixar
na psique das crianças.9 Entre eles podem estar o bullying, os comentários
ásperos casuais mas frequentes de um pai ou de uma mãe bem-
intencionada, ou mesmo apenas uma falta de vínculo emocional su ciente
com os adultos cuidadores.
As crianças, em especial as muito sensíveis, podem ser feridas de várias
formas: quando coisas ruins acontecem, sim, mas também quando coisas
boas não acontecem, como por exemplo quando suas necessidades
emocionais de conexão não são atendidas, ou quando elas deixam de ser
vistas e aceitas, mesmo por pais amorosos. O trauma desse tipo não requer
uma perturbação ou um infortúnio do tipo mencionado anteriormente, e
também pode conduzir à dor de se desconectar do eu, resultando em
necessidades básicas não satisfeitas. Esses não acontecimentos são aquilo a
que o pediatra britânico D. W. Winnicott se referiu como “nada acontecer
quando algo poderia de modo vantajoso ter acontecido”, tema ao qual
retornaremos quando abordarmos o desenvolvimento humano. “Os traumas
do dia a dia podem facilmente nos fazer sentir tal qual uma criança órfã de
mãe”, escreve o psiquiatra Mark Epstein.10
Se, a despeito de décadas de indícios, o “trauma com T maiúsculo” mal
foi registrado no radar da medicina, o trauma com T minúsculo nem sequer
é notado.
Mesmo ao fazermos essa distinção entre os traumas com T maiúsculo e
os traumas com T minúsculo, levando em conta a continuidade e o amplo
leque da experiência humana, não esqueçamos que, na vida real, as linhas
são uidas, difíceis de traçar, e não deveriam ser rígidas. O que os dois tipos
têm em comum foi resumido de forma sucinta por Bessel van der Kolk:
“Trauma é quando não somos vistos nem conhecidos.”
Embora haja diferenças brutais no modo como os dois tipos de trauma
podem afetar a vida e o funcionamento das pessoas, e o tipo com T
maiúsculo em geral seja muito mais perturbador e debilitante, há também
uma grande sobreposição. Ambos representam uma fratura de si e do
relacionamento da pessoa com o mundo. Essa fratura é a essência do trauma.
Como escreve Peter Levine, o trauma “tem a ver com uma perda de
conexão: com nós mesmos, com nossa família e com o mundo à nossa volta.
Essa perda é difícil de reconhecer porque acontece lentamente, ao longo do
tempo. Nós nos adaptamos a essas mudanças sutis; às vezes nem sequer as
notamos.”11 À medida que é internalizada, a conexão perdida molda nossa
visão da realidade: passamos a acreditar no mundo que vemos através dessa
lente rachada. É perturbador perceber que quem pensamos ser e nosso
modo de agir habitualmente, inclusive muitas de nossas aparentes “forças”,
os aspectos menos e mais funcionais de nosso eu “normal”, costumam ser
em parte produtos de perdas traumáticas. Também pode ser desconcertante
para muitos de nós pensar que, por mais felizes e bem-ajustados que
possamos nos considerar, talvez nos situemos em algum ponto do espectro
do trauma, ainda que distantes do polo do T maiúsculo. Em última
instância, as comparações não funcionam. Não importa se podemos apontar
outras pessoas que parecem mais traumatizadas do que nós, pois não há
como comparar sofrimentos. Tampouco é adequado usar nosso próprio
trauma para nos colocar acima dos outros – “Você não sofreu como eu
sofri” – ou como uma arma para diminuir as queixas legítimas dos outros
quando nos comportamos de forma destrutiva. Cada um de nós carrega
suas feridas à sua maneira; não há sentido nem valor em compará-las com
as dos outros.

O QUE O TRAUMA NÃO É

A maioria de nós já ouviu alguém, talvez nós mesmos, dizer algo como: “Ah,
meu Deus, que lme perturbador aquele de ontem à noite, saí do cinema
traumatizado.” Ou então vemos pessoas argumentando que deveria haver
nos livros um alerta de conteúdo sensível para evitar serem “traumatizados”
pelo que leem. Em todos esses casos, o uso da palavra traumatizado é
compreensível, mas equivocado; nesses casos, aquilo a que as pessoas estão
se referindo é estresse, seja ele físico e/ou emocional. Como assinala muito
adequadamente Peter Levine: “Todos os acontecimentos traumáticos são
estressantes, mas nem todo acontecimento estressante é traumático.”12
Um acontecimento é traumatizante, ou retraumatizante, apenas quando
torna a pessoa diminuída, quer dizer, psiquicamente (ou sicamente) mais
limitada do que antes de maneira persistente. Muito do que aconteceu na
vida, inclusive nas artes e/ou nas relações sociais e políticas, pode ser
perturbador, desestabilizante ou mesmo muito doloroso, sem que isso
constitua um trauma novo. Isso não quer dizer que reações traumáticas
antigas, que nada têm a ver com o que quer que esteja ocorrendo, não
possam ser provocadas por estresses do presente; vejam o exemplo de um
determinado autor voltando para casa depois de uma palestra. Isso não é a
mesma coisa que ser retraumatizado, a menos que, com o tempo, nos deixe
ainda mais limitados do que antes.
Eis uma lista razoavelmente con ável que serve como processo
eliminatório. Uma coisa não é trauma se alguma das seguintes a rmações
permanecer verdadeira a longo prazo:

Se não limitar você, não restringir você, nem diminuir sua capacidade
de pensar, con ar ou se a rmar, de suportar sofrimento sem sucumbir
ao desespero ou de observá-lo com um olhar compassivo.
Se não impedir você de reconhecer sua dor, tristeza e medo sem se
sentir sobrepujado, e sem precisar recorrer às escapatórias do trabalho
ou de um comportamento compulsivo de autotranquilização ou
autoestimulação de qualquer tipo.
Se você não se sentir impelido nem a se supervalorizar, nem a se apagar
com o intuito de conseguir ser aceito ou para justi car a própria
existência.
Se não comprometer sua capacidade de sentir gratidão pela beleza e
pelo assombro que é estar vivo.

Se, por outro lado, você reconhecer essas restrições crônicas em si


mesmo, pode ser que elas representem a sombra do trauma na sua psique, a
presença de uma ferida emocional não curada, independentemente do
tamanho do T.

O TRAUMA NOS SEPARA DO NOSSO CORPO

“Depois que alguém invade e entra em você, seu corpo não lhe pertence
mais”, contou para mim a escritora V, anteriormente conhecida como Eve
Ensler, rememorando o abuso sexual que sofreu do pai quando menina.13

Ele passa a ser uma paisagem de apreensão, traição, tristeza e crueldade.


O último lugar em que você quer estar é dentro do próprio corpo. Então
você começa a viver dentro da própria cabeça, começa a viver ali sem
qualquer capacidade de proteger seu corpo, de conhecer seu corpo.
Olha, eu tinha um tumor do tamanho de um abacate dentro de mim e
não sabia… era esse o meu grau de separação de mim mesma.

Embora os detalhes do meu passado sejam radicalmente distintos dos de


V, sei de que lugar ela está falando. Durante muitos anos, a pergunta mais
difícil que se podia fazer para mim era: “O que você está sentindo?” Minha
resposta habitual era um irritado “Como é que eu vou saber?”. Eu não tinha
esse problema quando me perguntavam o que eu estava pensando: sobre
isso posso falar de cadeira. Não saber como ou o que você está sentindo, por
sua vez, é um sinal certeiro de desconexão em relação ao corpo.
O que causa essa desconexão? No meu caso, a resposta nem precisa de
especulação. Quando eu era bebê, na Hungria em guerra, tive que suportar a
fome e a disenteria crônicas, situações de extremo desconforto e
ameaçadoras e perturbadoras para pessoas adultas, quanto mais para uma
criança de 1 ano. Também absorvi os terrores e o abalo emocional constante
da minha mãe. Na ausência de alívio, a reação natural de uma pessoa jovem,
na verdade sua única reação, é reprimir e se desconectar dos estados
emocionais relacionados ao sofrimento. Ela passa a não conhecer mais o
próprio corpo. Estranhamente, esse autoalheamento pode surgir mais tarde
na vida na forma de uma aparente força, como minha capacidade de ter um
desempenho de alto nível quando estou com fome, estressado ou cansado,
seguindo em frente sem consciência de que preciso de uma pausa, comida
ou descanso. Em algumas pessoas, a desconexão do próprio corpo pode
também se manifestar como não saber quando parar de comer ou de beber:
o sinal de “chega” não é transmitido.
Seja de que forma for, a desconexão é proeminente na experiência de
vida de pessoas traumatizadas, e é um aspecto essencial da constelação do
trauma. Como no caso de V, ela começa como um mecanismo de adaptação
natural e obrigatório por parte do organismo. Ela não teria conseguido
sobreviver aos horrores da sua infância se tivesse permanecido no momento
presente e consciente, instante após instante, daquela experiência de
tormento físico e emocional, absorvendo plenamente o que estava
acontecendo. Assim, esses mecanismos de adaptação são como uma
salvação, por assim dizer, que vêm resgatar nossa vida a curto prazo. Com o
tempo, porém, se não forem cuidados, eles cam gravados de modo
indelével na psique e no soma (corpo), como reações condicionadas
enrijecidas em mecanismos xos que não são mais adequadas à situação. O
resultado é um sofrimento crônico, e com frequência, como exploraremos a
seguir, até mesmo alguma doença.
“O mais notável no meu encontro com o câncer”, continuou contando V,

foi que a jornada inteira de acordar depois de nove horas de cirurgia,


tendo perdido vários órgãos e 70 nodos… eu acordei com bolsas, tubos,
todo tipo de coisa saindo de mim, mas pela primeira vez na vida eu era
um corpo… Doía, mas era também muito empolgante. Eu pensava: “Eu
sou um corpo. Ai, meu Deus, eu estou aqui dentro. Estou dentro deste
corpo.”

Seu relato de uma súbita sensação de estar em casa dentro do seu eu


físico é emblemático de como funciona a cura: quando os grilhões do
trauma começam a se soltar, voltamos com alegria a nos unir às partes
separadas de nós mesmos.

O TRAUMA NOS SEPARA DA NOSSA INTUIÇÃO

Para a pessoa comum em uma situação semelhante à que V passou na


infância, o melhor conselho da natureza seria fugir ou lutar contra o uso
indevido de seu corpo e a agressão à sua alma. Mas é aí que está o problema:
nenhuma das duas alternativas está disponível para uma criança pequena,
pois tentar qualquer uma delas seria se colocar em mais perigo ainda.
Assim, a natureza recorre ao plano C: ambos os impulsos são suprimidos
diminuindo as emoções que provocariam essas reações. Essa supressão
poderia se assemelhar à reação de congelamento que as criaturas muitas
vezes exibem quando tanto a luta quanto a fuga são impossíveis. A diferença
crucial é a seguinte: quando o gavião vai embora, o gambá ca livre para
seguir com a própria vida, pois sua estratégia de sobrevivência deu certo.
Um sistema nervoso traumatizado, por sua vez, nunca consegue
descongelar.
“Temos sentimentos porque eles nos dizem o que sustenta nossa
sobrevivência e o que nos afasta dela”, disse certa vez o falecido
neurocientista Jaak Panksepp. As emoções, ressaltou ele, vêm não do
cérebro pensante, mas de antigas estruturas cerebrais associadas à
sobrevivência. Uma raiva intensa ativa a reação de lutar; um medo intenso
mobiliza a fuga. Portanto, se as circunstâncias ditarem que esses impulsos
naturais e saudáveis (de se defender ou de fugir) devem ser sufocados, seus
gatilhos intuitivos, as emoções em si, também terão que ser suprimidos.
Sem alarme não há mobilização. Se isso parece contraproducente, é só num
sentido limitado: num nível existencial, essa é a opção “menos pior”, já que é
a única disponível capaz de reduzir o risco de mais danos.
O resultado é um sufocamento do mundo emocional da pessoa, e muitas
vezes, para uma proteção suplementar, o enrijecimento da carapaça psíquica
dela. Um exemplo vívido é dado pela autora Tara Westover em seu livro de
memórias, o best-seller Educated (Educada). No trecho a seguir, ela recorda
o impacto do abuso perpetrado por um irmão e propositalmente ignorado
pelos pais:

Eu me via como inquebrável, dura como pedra. No início apenas


acreditava nisso, até que um dia isso se tornou a verdade. Então pude
dizer a mim mesma, sem mentir, que aquilo não me afetava, que ele não
me afetava porque nada me afetava. Eu não entendia quão
morbidamente certa estava. Como tinha me esvaziado por dentro. De
tanto car obcecada com as consequências daquela noite, eu tinha
entendido errado a seguinte verdade crucial: que o fato de aquilo não ter
me afetado era o seu efeito.14

O TRAUMA LIMITA A FLEXIBILIDADE REATIVA

Um ashback para a trágica cena inicial de nosso capítulo, só que dessa vez
situado num universo paralelo, no qual as impressões do meu trauma não
me dominam: o avião pousa, e leio a mensagem de texto de Rae no celular.
“Humm, não era o que eu esperava”, penso. “Mas eu entendo: ela deve estar
entretida pintando. Não há nada de novo aqui, nem nada de pessoal. Na
verdade eu me solidarizo com ela: quantas vezes eu mesmo já não quei tão
absorto no trabalho que nem vi o tempo passar? Tá, o jeito é pegar um táxi.”
Eu poderia muito bem notar alguns sentimentos de decepção, e nesse caso
me permitiria senti-los até eles irem embora; efetivamente, estaria
escolhendo a vulnerabilidade em vez da vitimização. Ao chegar em casa não
haveria clima ruim, nem distanciamento emocional ou cara feia; talvez uma
provocação gentil, mas tudo dentro dos limites do humor amoroso e com
nossa a nidade intacta.
Eu teria exibido assim o que se denomina exibilidade reativa: a
capacidade de escolher como vamos reagir aos altos e baixos inevitáveis da
vida, às suas decepções, triunfos e desa os. “A liberdade humana envolve
nossa capacidade de fazer uma pausa entre o estímulo e a reação, e nessa
pausa escolher a reação em direção à qual desejamos ir”, escreveu o
psicólogo Rollo May.15 O trauma nos rouba essa liberdade.
A exibilidade reativa é uma função da parte medial frontal do nosso
córtex cerebral. Nenhum bebê nasce com essa capacidade: o
comportamento dos bebês é dominado pelo instinto e pelo re exo, não pela
seleção consciente. A liberdade de escolha se desenvolve à medida que o
cérebro se desenvolve. Quanto mais grave e mais precoce for o trauma,
menos oportunidade a exibilidade reativa tem de se codi car nos circuitos
cerebrais adequados, e mais depressa ela ca prejudicada. A pessoa ca
presa a reações defensivas previsíveis, automáticas, em especial aos
estímulos de estresse. Emocional e cognitivamente, nossa amplitude de
movimento ca quase petri cada, e quanto maior o trauma, mais rígidas as
restrições. O passado sequestra e coopta repetidamente o presente.

O TRAUMA GERA UMA VISÃO DE SI BASEADA NA VERGONHA

Uma das cartas mais tristes que já recebi foi de um morador de Seattle que
tinha lido meu livro sobre dependência, In the Realm of Hungry Ghosts (No
reino dos fantasmas famintos), no qual mostro que a dependência é um
desfecho do trauma de infância, não o único possível, mas um prevalente.
Depois de nove anos sóbrio, ele continuava com di culdades na vida, não
trabalhava havia uma década, e vinha recebendo tratamento para um
transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Embora tivesse achado o livro
fascinante, escreveu: “Eu resisto à vontade de culpar minha mãe. Sou um
merda por minha causa mesmo.” Tudo que pude fazer foi dar um suspiro: a
vergonha e a autoagressão muitas vezes se disfarçam de responsabilidade
pessoal. Além do mais, ele não tinha entendido: nada no meu livro culpava
os pais ou recomendava fazê-lo; na verdade, passo várias páginas explicando
por que culpar os pais é inadequado, inexato e pouco cientí co. O impulso
daquele homem de proteger a mãe não era uma defesa contra nada que eu
tivesse dito ou dado a entender, mas contra sua própria e não reconhecida
raiva. Guardada no congelador e sem qualquer vazão sadia possível, a
emoção tinha se voltado contra ele na forma de ódio por si mesmo.
“Contida na experiência da vergonha”, escreve o psicólogo Gershen
Kaufman, “está uma consciência aguda de nós mesmos como seres humanos
fundamentalmente de cientes em algum aspecto vital.”16 Pessoas que
carregam as cicatrizes do trauma desenvolvem, de modo quase uniforme,
uma visão central de si mesmas baseada na vergonha, uma autopercepção
negativa da qual a maioria tem plena consciência. Entre as consequências
mais venenosas da vergonha está a perda de compaixão por si. Quanto mais
severo o trauma, mais total essa perda é.
A visão negativa de si mesmo pode nem sempre penetrar a consciência,
e pode até se disfarçar como seu oposto: a supervalorização de si. Para não
sentir essa vergonha irritante, algumas pessoas se cercam de uma armadura
de grandiosidade e negação de qualquer falha. Essa soberba, embora muito
mais normalizada, é uma manifestação tão certeira de ódio por si mesmo
quanto a mais abjeta autodepreciação. O fato de alguns indivíduos que
escapam da vergonha adentrando um narcisismo desavergonhado poderem
até conquistar grande status e sucesso social, econômico e político é uma
das marcas da insanidade da nossa cultura. Nossa cultura joga na lama
muitos dos traumatizados, mas pode também, dependendo da origem de
classe, da condição econômica, da raça e de outras variáveis, alçar alguns
deles às mais altas posições de poder.
A forma mais comum que a vergonha assume em nossa cultura é a
crença de que “eu não sou su ciente”. A escritora Elizabeth Wurtzel, morta
de câncer de mama aos 52 anos em 2020, sofreu de depressão desde muito
nova. Ela teve uma infância traumática, a começar por um segredo que lhe
foi propositalmente escondido, acerca de quem tinha sido seu verdadeiro
pai. “Eu era intensamente retraída”, relatou ela num texto autobiográ co
para a New York Magazine,

e tinha uma depressão crônica que começou por volta dos 10 anos, mas
em vez de matar minha força de vontade a depressão me motivou:
pensei que, se conseguisse ser boa o bastante em qualquer tarefa que
tivesse pela frente, fosse ela grande ou pequena, talvez conseguisse ter
alguns minutos de felicidade.17

Essa convicção da própria inadequação já alimentou muitas carreiras


brilhantes e instigou diversos casos de doença, muitas vezes as duas coisas
no mesmo indivíduo.
O TRAUMA DISTORCE NOSSA VISÃO DE MUNDO

“Tudo tem a mente no comando, a mente em primeiro plano, tudo é


fabricado pela mente.” Assim começa o Dhammapada, a coletânea
atemporal de dizeres de Buda.18 Dito de outra forma, o mundo no qual
acreditamos se torna o mundo no qual vivemos. Se vejo o mundo como um
lugar hostil em que só os vencedores prosperam, posso muito bem me
tornar uma pessoa agressiva, egoísta e grandiosa para poder sobreviver
nesse meio. Mais tarde na vida, irei gravitar para ambientes e empreitadas
competitivas, que só farão con rmar essa visão e reforçar sua validade.
Nossas crenças não só se autoconcretizam, mas também constroem o nosso
mundo.
Eis o que Buda deixou de fora, se me permitem tal ousadia: antes de a
mente poder criar o mundo, o mundo cria nossa mente. O trauma, em
especial o trauma severo, impõe uma visão de mundo matizada de dor,
medo e descon ança; ele é uma lente que ao mesmo tempo distorce e
determina nossa visão de como as coisas são. Ou então pode, pela pura força
da negação, engendrar uma perspectiva ingenuamente cor-de-rosa que nos
deixa cegos em relação aos perigos reais e presentes, um verniz a ocultar
temores que não nos atrevemos a reconhecer. Também podemos passar a
descartar realidades dolorosas mentindo com frequência para nós e para os
outros.

O TRAUMA NOS ALIENA DO PRESENTE

Certa vez, fui comer num restaurante de Oslo com o psicólogo alemão
Franz Ruppert. O barulho era ensurdecedor: uma música pop saindo aos
berros de vários alto-falantes, e vários canais de TV em volume altíssimo
nas telas brilhantes a xadas bem alto nas paredes. Preciso pensar que
quando o grande dramaturgo norueguês Henrik Ibsen costumava
frequentar aquele mesmo estabelecimento, pouco mais de um século antes,
o ambiente era muito mais sereno. “Por que isso tudo?”, gritei para meu
companheiro em meio à cacofonia, balançando a cabeça de tanta irritação.
“É o trauma”, respondeu ele, dando de ombros. Ruppert queria dizer apenas
que as pessoas estavam buscando desesperadamente um jeito de fugir delas
mesmas.
Se o trauma acarreta uma desconexão de si, faz sentido dizer que
estamos sendo coletivamente inundados por in uências que ao mesmo
tempo exploram e reforçam o trauma. Pressões pro ssionais, multitarefas,
redes sociais, notícias, múltiplas fontes de entretenimento: tudo isso nos leva
a nos perder em pensamentos, atividades frenéticas, aparelhos ou conversas
sem signi cado. Ficamos entretidos em atividades de todo tipo, que nos
atraem não por serem necessárias, inspiradoras ou revigorantes, ou por
enriquecerem ou darem signi cado à nossa vida, mas pelo simples fato de
obliterarem o presente. Numa distorção absurda, economizamos para
comprar os mais modernos aparelhos para “poupar tempo” de modo a
poder “matar” melhor o tempo. A consciência do momento presente
tornou-se algo a ser temido. A especialidade do capitalismo avançado é
fomentar esse sentimento de medo em relação ao momento presente; na
verdade, muito do seu sucesso depende de aumentar o abismo entre nós e
nossa maior dádiva, o presente, e a cultura do consumo é destinada a
preencher essa lacuna.
O que se perde é descrito muito bem pela escritora de origem polonesa19
Eva Hoffman como

nada mais e nada menos do que a experiência da experiência em si. E o


que seria isso? Talvez algo como a capacidade de adentrar as texturas ou
sensações do momento; de relaxar o su ciente para poder se entregar
aos ritmos de um episódio ou de um encontro pessoal, de seguir o o da
emoção ou do pensamento sem saber aonde ele conduz, ou de parar por
tempo su ciente para re etir ou contemplar.20

Em última instância, somos distraídos da vida em si.


NÃO COMEÇOU COM VOCÊ

Jessica, uma senhora de 67 anos que mora no interior da província da


Colúmbia Britânica, cuida dos dois netos depois que o pai, seu lho, morreu
de overdose. Seu outro lho teve o mesmo destino. Quando a entrevistei, me
ocorreu que o simples fato de Jessica se dispor a falar comigo era notável,
conhecendo minha opinião de que a dependência se origina no trauma de
infância, com maior frequência na família de origem. “Quando volto e olho
para a vida dos meus lhos, entendo que houve muito trauma”, explicou ela.
“Como eu morava com eles, eu fazia parte disso. Fui mãe solteira desde que
eles tinham 3 e 2 anos até me casar de novo, quando eles tinham 6 e 7.
Entendo que o modo como eu vivia, o que fazia, o que sabia e o que não
sabia os afetou.”
Depois que o pai biológico abandonou a família cedo, um padrasto
abusou dos meninos tanto física quanto emocionalmente. “Eu me sentia
muito sozinha, assustada, encurralada”, relembrou Jessica. O fato de lhe
faltar a intuição para não escolher homens assim e de ela não se impor e
proteger os lhos contra o abuso era por sua vez marcas de um trauma de
infância da própria Jessica. Além de ser castigada sicamente pelo pai até os
10 anos com palmadas nas nádegas nuas, Jessica teve que suportar um
tormento emocional. “Quando criança, eu tinha vergonha de vários dos
meus sentimentos”, relembrou ela. “Era muito sensível, chorava muito.”
Em muitos casos, o trauma é multigeracional. A cadeia de transmissão
passa de pai ou mãe para lhos, estendendo-se do passado até o futuro. O
que não resolvemos dentro de nós é passado para nossos lhos. A casa
torna-se um lugar no qual involuntariamente recriamos, como eu z, cenas
reminiscentes daquelas que nos feriram quando éramos pequenos.
“Traumas afetam mães e as formas de ser mãe, pais e as formas de ser pai, e
as formas de ser marido e esposa”, me disse o terapeuta de constelação
familiar Mark Wolynn. “Os traumas repetidos seguem se proliferando a
partir disso, como resultado de nunca serem curados.” Wolynn é autor do
adequadamente intitulado It Didn’t Start with You: How Inherited Family
Trauma Shapes Who We Are and How to End the Cycle (Não começou com
você: como o trauma familiar herdado determina quem somos, e como pôr
m a esse ciclo). Como veremos, o trauma pode afetar até mesmo a
atividade genética através das gerações.21
Não é surpresa, portanto, que o neto mais velho de Jessica tenha tido
problemas com abuso de substâncias e di culdades de aprendizado. Mas,
graças a tudo que ela aprendeu, e apesar das perdas incomensuráveis, ela
pode estar presente para ele de modo bem mais afetuoso e e ciente do que
jamais esteve para os próprios lhos. Note também a ausência de
autojulgamento em como Jessica descreve a situação: em vez de se
recriminar pelo que não entendeu, ou melhor, pelo que não tinha como
entender na época, ela fala em “compreensão”. O ato de se culpar, com seu
centro de gravidade rmemente plantado no passado, só a impediria de
estar presente para seu neto no aqui e agora.
A culpa se torna um conceito inútil quando compreendemos como o
sofrimento num sistema familiar ou mesmo numa comunidade remonta a
gerações. “Reconhecer isso rapidamente dissipa qualquer tendência a ver pai
ou mãe como vilões”, escreveu John Bowlby, o psiquiatra britânico que
mostrou a importância decisiva dos relacionamentos adulto-criança na
formação da psique. Por mais que recuemos na cadeia de consequência – até
os bisavós, os ancestrais pré-modernos, Adão e Eva ou a primeira ameba
unicelular –, o dedo acusador não consegue encontrar um alvo xo. Isso
deveria constituir um alívio.
As notícias cam melhores ainda: ver o trauma como uma dinâmica
interna nos proporciona uma oportuna capacidade de agir. Se tratamos o
trauma como um acontecimento externo, algo que ocorre com a gente ou à
nossa volta, ele se torna um pedaço da história que nunca conseguimos
desalojar. Se, por outro lado, o trauma é o que aconteceu dentro de nós
como resultado desse ocorrido, no sentido de uma ferida ou de uma
desconexão, aí a cura e a reconexão se tornam possibilidades tangíveis.
Tentar manter afastada a consciência do trauma atrapalha nossa capacidade
de nos conhecer. Por outro lado, usá-la para forjar uma identidade rígida, na
qual a atitude seja de confronto, cinismo ou autocomiseração, é deixar
passar tanto o objetivo quanto a oportunidade da cura, já que por de nição
o trauma representa uma distorção e uma limitação de quem nascemos para
ser. Encará-lo, sem negá-lo nem se identi car excessivamente com ele, é um
portal para a saúde e o equilíbrio.
“São essas adversidades que abrem sua mente e sua curiosidade de ver se
existem novas formas de fazer as coisas”, me disse Bessel van der Kolk. Ele
então citou Sócrates: “Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida.
Enquanto não se examina, a pessoa permanece completamente à mercê do
que quer que esteja programada para fazer, mas uma vez que perceba que
tem escolhas ela pode exercitá-las.” Repare que ele não disse “uma vez que a
pessoa faça décadas de terapia”. Como irei apresentar mais adiante,
podemos acessar a liberação até mesmo por meio de um modesto
autoexame: uma disposição para questionar “muitas das verdades às quais
nos agarramos”, e o “determinado ponto de vista” que as faz parecer tão
reais, como disse o fantasma de um célebre mestre jedi ao seu jovem
aprendiz num momento decisivo numa galáxia muito, muito distante.22

Embora este capítulo tenha focado as dimensões pessoais do trauma, ele


também existe na esfera coletiva, e afeta nações e povos inteiros em
diferentes momentos da história. Até hoje ele atinge com força
desproporcional determinados grupos, como os povos originários do
Canadá, por exemplo. A privação e a perseguição multigeracional que eles
sofreram nas mãos do colonialismo, e sobretudo a agonia de cem anos de
seus lhos, raptados das famílias e criados em colégios internos
administrados pela Igreja, onde os abusos físicos, sexuais e emocionais eram
constantes, deixou-lhes um trágico legado de dependência química, doenças
mentais e físicas, suicídio e a transmissão continuada do trauma para novas
gerações. O legado traumático da escravidão e do racismo nos Estados
Unidos é outro exemplo notável. Terei mais a dizer sobre esse doloroso tema
na parte 4.
2

Viver num mundo imaterial:


emoções, saúde e a unidade
corpo-mente

A menos que se possa medir algo, a ciência não vai reconhecer


sua existência, motivo pelo qual se recusa a lidar com “não
coisas”, tais como as emoções, a mente, a alma ou o espírito.
– CANDACE PERT, Molecules of Emotion

“Eu estava com 36 anos quando me disseram que eu tinha um câncer de


mama em fase muito inicial”, disse Caroline, moradora das Montanhas
Pocono na Pensilvânia. Esse diagnóstico foi em 1988, mais de três décadas
atrás. O tumor foi tratado com cirurgia e radiação. Poucos anos depois,
quando um novo tumor maligno surgiu no quadril esquerdo e no fêmur,
Caroline teve que fazer uma cirurgia de emergência para pôr uma prótese na
articulação; os médicos também tiveram que retirar uma parte grande do
osso da coxa dela. “Na época, me deram uma previsão de um ou dois anos
de vida”, relembra ela. “Meus lhos eram bem novos, tinham só 8 e 9 anos.
Acabei de fazer 56, então bati todos os recordes deles.”
Caroline fez várias rodadas de quimioterapia ao longo dos anos
seguintes. Na época da nossa conversa, o câncer tinha chegado ao estágio
paliativo após se espalhar para o quadril e a coxa direita. Quando falamos,
ela não tinha esperança de ultrapassar muito seu prognóstico da época;1
mesmo assim, aquela mãe de dois lhos irradiava uma profunda satisfação
com o modo como as coisas tinham corrido. Ela havia, a nal, ganhado duas
décadas imprevistas para criar os lhos. “Ter visto de frente minha própria
mortalidade, sabe”, losofou ela, “e eles me dizendo que eu tinha de 12 a 24
meses… Fui extremamente desbocada com o médico e falei: olha aqui, foi
mal, mas preciso de 10 anos para criar meus lhos até eles virarem homens.
Vou fazer qualquer coisa que estiver ao meu alcance para criá-los.”
“‘Desbocada’”, repeti. “O que você disse, exatamente?”
“Eu falei um palavrão. ‘Que se fodam as suas estatísticas!’”
“Muito bem”, retruquei. “Isso deve ter ajudado a prolongar sua vida.”
“Bom, foi isso que eu disse ao médico.” Caroline riu.

Eu disse: “Que se fodam as suas estatísticas!” Ele saiu da sala. Não gostou
nadinha do meu palavreado. Me achou uma mulher maluca, vulgar. Já
quis muitas vezes procurar esse médico, que de lá para cá se mudou para
a Califórnia, e dizer a ele que os meus meninos hoje têm 24 e 25 anos.
Um está fazendo pós-graduação em Princeton. O outro passou por um
período complicado, conseguiu se reerguer, e vai se formar com três
diplomas e menção honrosa.

O rompante de Caroline que pegou seu médico desprevenido não era


típico dela. Durante toda a vida, ela havia se encaixado no per l da pessoa
simpática que evita confrontos. “Meu papel sempre foi o de cuidadora, de
ser necessária, de estar sempre a postos para socorrer alguém, várias vezes
em detrimento de mim mesma”, contou ela. “Nunca queria ter con ito com
ninguém. E queria sempre estar no comando, me certi cando de que tudo
estivesse bem.” Caroline exibia o que já foi chamado de “autossu ciência
superautônoma”,2 que signi ca exatamente o que parece signi car: uma
aversão exagerada e desproporcional a pedir qualquer coisa a qualquer um.
Um lembrete rápido: ninguém nasce com esses traços. Eles são
invariavelmente causados por reações adaptativas a traumas do
desenvolvimento, a começar pela abnegação na primeira infância. Tal
supressão tem um custo duradouro, processo que exploraremos de modo
mais completo no capítulo 7.
“Passei a acreditar que praticamente toda doença, se não tiver uma
origem psicossomática, tem certamente um componente psicossomático”,
escreveu a pioneira da neurociência Candace Pert no livro Molecules of
Emotion (Moléculas de emoção), de 1997. Ao dizer “psicossomático”, Pert
não estava se referindo à minimização moderna e muitas vezes irônica da
doença como uma ilusão neurótica. Ela estava usando a conotação estrita e
cientí ca da palavra: algo relacionado à integração da psique humana
(mente e espírito) com o soma (corpo), unidade que muito se esforçou para
medir e registrar em seu laboratório. Suas descobertas, como ela muito
justamente reivindicava, ajudariam a fundamentar “uma síntese entre
comportamento, psicologia e biologia”.3
Não há nada novo no conceito de mente e corpo estarem
intrinsecamente ligados; pelo contrário, a novidade é a crença, tacitamente
mantida e abertamente praticada por muitos médicos bem-intencionados,
de que é possível separá-los. Práticas de cura tradicionais mundo afora,
embora não tenham a espetacular tecnologia e o conhecimento cientí co
desenvolvidos no Ocidente, compreendem de forma implícita essa unidade
há muito tempo. Apesar de a medicina ocidental ter separado arti cialmente
os dois, a maioria das pessoas ainda sabe, mesmo que num nível apenas
intuitivo, que o que pensam e como se sentem tem tudo a ver entre si. É
inteiramente normal, por exemplo, especular sobre quais estresses da vida
contribuíram para a úlcera de alguém, que pressão mental está por trás de
uma dor de cabeça, ou que medos não processados levam alguém a sofrer
ataques de pânico. O mesmo princípio se aplica quando consideramos não
apenas sintomas individuais, mas a maioria dos tipos de doenças.
Perturbações emocionais advindas de problemas de relacionamento,
preocupações nanceiras ou qualquer outra fonte de aborrecimento crônico
impõem cargas siológicas que podem resultar em doenças.
Pert cunhou o termo “corpomente” (bodymind) para descrever essa
unidade. O site o cial dedicado ao trabalho e ao legado dela tem o cuidado
de observar que essa expressão foi “escrita intencionalmente sem hífen de
modo a enfatizar a unidade das partes que a compõem”. Corpo e mente,
embora não sejam idênticos, não têm como ser compreendidos
separadamente. Podemos ignorar ou negar esse paradoxo, mas não temos
como escapar dele. Desde o trabalho pioneiro de Pert, os impactos
biológicos das emoções, essas “não coisas” cujo não reconhecimento ela
lamentava, foram extensamente estudados e documentados em milhares e
milhares de engenhosos estudos. Vale a pena examinar alguns deles, tendo
sempre em mente que cada um é apenas a ponta de um iceberg de achados
igualmente fascinantes.
Um estudo alemão de 1982, apresentado no IV Simpósio Anual de
Prevenção e Detecção de Câncer, em Londres, constatou que determinados
traços de personalidade têm uma forte associação com o câncer de mama.
Cinquenta e seis mulheres internadas no hospital para biópsia tiveram
avaliadas características como supressão emocional, racionalização,
comportamento altruísta, evitação de con itos e a autossu ciência
superautônoma que vimos personi cada em Caroline. Com base apenas nos
resultados das entrevistas, tanto os entrevistadores quanto classi cadores
“cegos” sem contato direto com as mulheres puderam prever o diagnóstico
correto em até 94% de todas as pacientes de câncer, e em cerca de 70% dos
casos benignos.4 Num estudo britânico anterior, realizado no hospital do
King’s College, em Londres, também foi demonstrado que mulheres com
nódulos cancerígenos nos seios apresentavam caracteristicamente
“supressão extrema da raiva e de outras emoções” numa “proporção
signi cativamente mais elevada” do que o grupo de controle, formado por
mulheres internadas para biópsias ao mesmo tempo que as outras, mas que
se havia constatado apresentarem tumores benignos nas mamas.5
Em 2000, a publicação Cancer Nursing examinou a relação entre
repressão da raiva e câncer, muitas vezes observada, entre outros, pelos
próprios enfermeiros de oncologia: “Por algum motivo, as enfermeiras e os
enfermeiros tinham uma compreensão intuitiva de que essa ‘gentileza’ era
nociva. Essa visão está agora sendo comprovada pelas pesquisas.”6 A
percepção dos enfermeiros me fez pensar num artigo sobre esclerose lateral
amiotró ca (ELA)7 apresentado por dois neurologistas da Cleveland Clinic
na década de 1990 num congresso internacional na Baviera.8 Os
funcionários da clínica também achavam que seus pacientes de ELA eram
extraordinariamente gentis, tanto que podiam na maioria dos casos prever
com precisão quem seria diagnosticado com a doença e quem não.
“Infelizmente acho que essa pessoa tem ELA, ela é gentil demais”, anotavam
eles no prontuário do paciente. Ou: “Essa pessoa não pode ter ELA, não é
gentil o bastante.” Os neurologistas caram pasmos. “Apesar da brevidade
do contato dos funcionários com os pacientes, e do método obviamente não
cientí co por meio do qual formavam suas opiniões, estas quase
invariavelmente se revelavam corretas”, observaram eles.
Entrevistei Asa J. Wilbourn, principal autor do artigo. “É quase
universal”, disse ele. “Isso se torna um senso comum no laboratório quando
se avalia uma grande quantidade de pacientes com ELA, e processamos um
número imenso de casos. Acho que qualquer um que lide com a ELA sabe
que esse é um fenômeno real.” Essas observações empíricas foram desde
então rea rmadas por pesquisas mais formais, como se vê no título de um
artigo recente num periódico de neurologia: “‘Pacientes com esclerose
lateral amiotró ca (ELA) são em geral pessoas gentis’: como os médicos
experientes em ELA veem as características de personalidade de seus
pacientes.”9
Num estudo com homens afetados pelo câncer de próstata, a supressão
da raiva estava associada a uma diminuição da efetividade das células NK
(de natural killer), uma defesa de primeira linha do sistema imunológico
contra doenças e invasores estranhos. Essas células têm um papel-chave na
resistência a tumores.10 Em pesquisas anteriores, a atividade das células NK
se reduzia em pessoas jovens e saudáveis em reação até mesmo a estresses
relativamente sem importância, em especial para as que estivessem
emocionalmente isoladas, uma fonte signi cativa de estresse crônico.
A tristeza também tem uma dimensão siológica profunda. Um
esclarecedor estudo do periódico britânico e Lancet Oncology descreveu o
impacto de fatores siológicos nos intrincados caminhos que interligam o
sistema imunológico, o endócrino e o nervoso em situações de luto, por
exemplo. Entre pais que perderam um lho adulto num acidente ou con ito
militar, os autores relatavam uma ocorrência maior de tumores linfático e
hematológico – cânceres do sangue, da medula e dos linfonodos – além de
câncer de pele e de pulmão.11 A guerra mata, e pelo visto uma perda
emocional profunda também pode matar. O mesmo que vale para o câncer
vale para outras doenças. Num estudo nacional na Dinamarca, pais
enlutados tinham o dobro de risco de desenvolverem esclerose múltipla.12
(Apesar de indícios tão reveladores, não creio que a perda de alguém
querido, por mais trágica que seja, represente por si só um risco de saúde.
Acredito que essa correlação depende de como as pessoas conseguem
processar sua perda, inclusive de quais apoios podem solicitar e receber. Não
são só os acontecimentos em si, mas também nossas reações emocionais e a
forma como as processamos que afetam nossa siologia.)
Um estudo de 2019 no periódico Cancer Research deveria bastar para
fazer todo médico começar depressa a explorar a medicina “corpomente”.
Constatou-se que mulheres com transtorno de estresse pós-traumático
(TEPT) grave têm duas vezes mais risco de desenvolver câncer de ovário em
comparação a mulheres que não foram expostas ao trauma.13 O Daily
Gazette, publicado pela Universidade Harvard, onde o estudo foi feito,
noticiou:

Os achados indicam que ter níveis mais elevados de sintomas de TEPT,


como assustar-se facilmente com barulhos comuns ou evitar coisas que
possam lembrar a experiência traumática, pode estar associado a riscos
aumentados de câncer de ovário mesmo décadas depois de as mulheres
passarem por um acontecimento traumático.
Quanto mais severos os sintomas de trauma, mais agressivo se revelava o
câncer.
Esse estudo de Harvard forneceu outros indícios impressionantes de que
os estresses emocionais são inseparáveis dos estados físicos do corpo, tanto
na doença quanto na saúde. Em trabalhos anteriores, a depressão já foi
associada a um risco maior de câncer de ovário. O impacto do estresse
também foi estudado: entre ratas de laboratório que tiveram células de
câncer de ovário injetadas em sua cavidade abdominal, aquelas submetidas a
estresses emocionais, como serem sicamente con nadas ou isoladas,
tinham uma incidência muito maior de crescimento e disseminação de
tumores do que aquelas abrigadas em condições de sociabilidade e que não
fossem con nadas.14 Os cientistas de Harvard teorizaram que o estresse
pode “favorecer o desenvolvimento de câncer de ovário inibindo defesas
importantes contra a proliferação desenfreada de células”. Em outras
palavras, o estresse pode prejudicar a capacidade do nosso sistema
imunológico de controlar e eliminar doenças.
Essas implicações se estendem muito além do TEPT, uma vez que na
nossa cultura o estresse e o trauma afetam muitas pessoas que não se
quali cam para tal diagnóstico. Pesquisadores nlandeses, publicados no
British Journal of Psychiatry em 2005, constataram, de modo impressionante,
que pessoas passando por “acontecimentos de vida” – estresses e perdas
emocionais relativamente comuns, como questões de relacionamento ou
problemas pro ssionais que não as quali cassem para um diagnóstico
formal – apresentavam mais sintomas semelhantes ao TEPT, como sonhos
ruins ou anestesia emocional, do que pessoas mais obviamente
traumatizadas que tivessem passado por alguma guerra ou tragédia.15
O artigo de Harvard sobre câncer de ovário apontava algumas
possibilidades promissoras de tratamento, sugerindo que mulheres cujos
sintomas de TEPT houvessem se atenuado, talvez devido a uma psicoterapia
e caz, tinham menos risco de desenvolver tumores malignos do que
mulheres com sintomas ativos. É animador pensar nos potenciais
preventivos e curativos, bem como nas implicações sociais, de uma
perspectiva de bem-estar que trate as emoções como as “coisas” reais e
relevantes que são.
Embora tudo isso seja oportuno, e os dados cientí cos venham de
produção recente, os princípios não são novidade. Numa palestra dada em
1939 para uma turma de formandos em medicina, publicada no Journal of
the American Medical Association (JAMA), Soma Weiss informou à plateia
que “os fatores sociais e psíquicos têm um papel em todas as doenças, mas
em muitos distúrbios eles constituem in uências dominantes”.16 O celebrado
médico húngaro-americano acrescentou que “os fatores mentais
representam uma força tão ativa no tratamento dos pacientes quanto os
agentes químicos e físicos”. Ele fez esses comentários não como um teórico
da psicanálise, mas como respeitado pro ssional clínico de siopatologia e
farmacoterapia, o uso de remédios para tratar doenças. Na Escola de
Medicina de Harvard, a lembrança de Weiss é mantida com um dia de
pesquisa anual em sua homenagem, mas seu ponto de vista integrativo e a
extensa literatura que hoje o ampara ainda escapam ao pensamento médico
convencional. “Essa conversa de mente-corpo é, historicamente, um
interesse que acarreta um grande risco para uma carreira em Harvard”,
disse-me recentemente um importante médico e acadêmico da tradicional
instituição. “Isso está começando a mudar, mas é algo muito difícil.”17
Difícil, de fato. Quando dou palestras, com frequência peço a integrantes
da plateia que levantem a mão se, nos últimos cinco anos, tiverem
consultado um neurologista, cardiologista, pneumologista, reumatologista,
gastroenterologista, dermatologista ou imunologista – “qualquer tipo de
ologista”, digo. Muitas mãos se levantam. “Agora mantenham as mãos
levantadas”, continuo, “se esses especialistas tiverem feito perguntas sobre
seus estresses ou traumas de infância, sobre o seu relacionamento com seus
pais, sobre a qualidade dos seus relacionamentos atuais, sobre seu nível de
solidão ou de sociabilidade, sobre sua satisfação pro ssional e seu modo de
se relacionar com o trabalho, sobre o que você acha do seu chefe ou como
ele trata você, sobre sua experiência com a alegria ou a raiva, sobre qualquer
estresse atual, ou sobre como você se sente em relação a si mesmo como
pessoa.” Numa sala lotada por centenas de pessoas, a quantidade de mãos
que continuaram erguidas na maioria das vezes podia ser contada nos dedos
de uma só mão. “Entretanto”, acrescento, “essas perguntas não feitas tiveram
tudo a ver com o motivo que fez a maioria de vocês ter ido buscar ajuda
médica.”
Apesar disso, um panorama mais claro está surgindo à medida que as
pesquisas modernas con rmam o saber tradicional. Uma ciência
(relativamente) nova, a psiconeuroimunologia, mapeia as inúmeras rotas da
unidade corpo-mente; sua área de estudo inclui as conexões entre as
emoções e nosso sistema nervoso e imunológico, e como o estresse pode
provocar doenças. Até mesmo conexão é uma palavra enganosa: apenas
entidades distintas uma da outra podem estar conectadas, enquanto a
realidade só conhece a unidade. Às vezes denominada de modo ainda mais
difícil de pronunciar – psiconeuroimunoendocrinologia –, essa nova
disciplina está fundamentada na unidade entre todas as partes que nos
constituem: mente, cérebro, sistemas nervoso e imunológico, e o aparato
hormonal (essa é a parte “endócrina”). As partes podem ser estudadas em
separado, mas não temos como entender plenamente nenhuma delas sem
captar o cenário todo. Desde o córtex cerebral até os núcleos emocionais do
cérebro e o sistema nervoso autônomo, desde o aspecto sólido ou uido do
aparato imune até os órgãos e as secreções hormonais, do sistema de
resposta ao estresse às vísceras… é tudo uma coisa só.
O fato de a evolução ter nos equipado com instintos, emoções,
comportamentos complexos e órgãos e sistemas individualizados não
diminui, em qualquer grau que seja, essa unidade. Por mais so sticada que
possa ser nossa mente, o fato de o seu conteúdo básico – aquilo que
pensamos, aquilo em que acreditamos de forma consciente ou não, ou
aquilo que somos proibidos de sentir – ter um efeito poderoso em nosso
corpo, para o bem ou para o mal, permanece. Por outro lado, o que nosso
corpo vivencia da concepção em diante não tem como não afetar o modo
como pensamos, sentimos, percebemos e nos comportamos. Isso, muito
resumidamente, é a lição central da psiconeuroimunologia.
Um exemplo fascinante é o vínculo comprovado entre o centro do medo
no cérebro, a amígdala, e as doenças cardiovasculares. Quanto mais estresse
uma pessoa percebe ou vivencia, mais alta a atividade basal da amígdala e
maior o risco de problemas no coração. O caminho desde a ativação da
amígdala até os problemas cardíacos passa por uma atividade maior da
medula e pela in amação arterial.18 O estresse emocional também afeta o
coração de modo mais geral. Em 2012, um estudo da Escola de Medicina de
Harvard mostrou que mulheres submetidas a grande pressão no trabalho
têm 67% mais chances de infartar do que mulheres com trabalhos menos
estressantes.19 No mesmo ano, um estudo canadense da Universidade de
Toronto constatou que homens que sofreram abuso sexual na infância
tinham uma taxa de infarto três vezes maior.20 A pressuposição natural dos
pesquisadores foi de que os homens abusados estariam mais propensos a
comportamentos de alto risco, como tabagismo e consumo de bebida
alcoólica, o que explicaria sua taxa mais alta de infarto. Para surpresa da
equipe, os impactos do abuso eram mais diretos e bastante independentes de
fatores comportamentais.

A MÁQUINA DO ESTRESSE

Compreender o estresse e seus mecanismos pode nos ajudar a entender


melhor como a unidade “corpomente” funciona em tempo real e em tecidos
de verdade.
Assim como a reação à dor, o estresse é uma função de sobrevivência
obrigatória para qualquer ser vivo. Quando ativado, nosso aparato de
estresse nos possibilita imediatamente enfrentar ou fugir de ameaças à nossa
existência ou à existência e ao bem-estar daqueles que amamos. Ele é um
impressionante acontecimento do corpo inteiro, que envolve quase todos os
órgãos e sistemas.
O estresse pode surgir em dois formatos: uma reação imediata a uma
ameaça, ou um estado prolongado induzido por pressões externas ou fatores
emocionais internos. Enquanto o estresse agudo é uma reação necessária,
que ajuda a manter nossa integridade física e mental, o estresse crônico,
contínuo e sem trégua, mina ambas. A raiva situacional, por exemplo, é uma
situação de estresse agudo sendo canalizada com um propósito positivo:
pense numa situação de autodefesa ou de estabelecer limites pessoais. Ele
nos torna mentalmente mais alertas, mais rápidos e mais fortes. A raiva
crônica, por sua vez, inunda o sistema com hormônios do estresse bem
depois de transcorrido o tempo regulamentar. A longo prazo, esse excedente
hormonal, independentemente do que o tenha instigado, pode:

causar ansiedade ou depressão;


suprimir a imunidade;
promover in amação;
estreitar os vasos sanguíneos, favorecendo a doença cardiovascular no
corpo inteiro;
incentivar o crescimento de cânceres;
a nar os ossos;
criar resistência à insulina, induzindo diabetes;
contribuir para a obesidade abdominal, elevando o risco de problemas
cardiovasculares e metabólicos;
prejudicar circuitos cognitivos e emocionais essenciais no cérebro;
elevar a pressão arterial e aumentar os coágulos no sangue,
aumentando o risco de infarto ou AVC.

O eixo do nosso corpo que lida com o estresse de modo uido e


econômico é denominado “eixo HPA”. Essa sigla em inglês descreve os
caminhos e circuitos que ligam o hipotálamo – a pequena e crucial área
central do nosso cérebro, cujo papel é manter nosso corpo num estado
saudável e equilibrado – à glândula pituitária ou hipó se, situada na parte
superior do tronco cerebral, e às glândulas adrenais ou suprarrenais, que
cam acima dos rins. Pense num corredor de transporte movimentado
interligando três grandes centros urbanos, cheios de rampas de acesso,
saídas e trevos, e você começará a ter uma ideia.
Embora nossa espécie consiga sobreviver num leque amplo de ambientes
externos, bem maior do que quase qualquer outro animal, nosso ambiente
interno precisa estar dentro de uma margem relativamente estreita de
estados siológicos. A temperatura corporal, o pH do sangue, a pressão
arterial e a frequência cardíaca, entre muitas outras métricas corporais, são
obrigados pela natureza, sob risco de morte, a permanecer dentro de limites
de nidos e não negociáveis.
O renomado pesquisador americano do estresse Bruce McEwen21
popularizou a palavra “alostase” para designar a tentativa do corpo de
manter um equilíbrio interno diante de circunstâncias instáveis. A palavra
combina os gregos állos, “variável”, e stásis, “estase” ou “paralisação”; juntas,
elas produzem algo como “permanecer estático em meio à mudança”. Não
podemos prescindir disso, e nosso corpo fará um grande esforço para
manter esse estado, a ponto de causar desgaste a longo prazo se os estresses
não cederem. Esse desgaste nos mecanismos regulatórios do corpo, que
McEwen chama de “carga alostática”, causa uma liberação excessiva e
prolongada dos hormônios do estresse adrenalina e cortisol, tensão nervosa,
disfunção imune e, em muitos casos, exaustão do próprio aparato do
estresse.
Hoje sabemos que a infraestrutura do eixo HPA é estabelecida cedo na
vida, começando no útero e prolongando-se pelos primeiros anos da
infância. Estresses ou abusos durante esse período delicado podem distorcer
para a vida inteira o aparato estresse-hormonal. Repetidamente, vemos
supostas “não coisas” sem importância, como as emoções, tendo um
impacto material claro e decisivo.
Reduzir o estresse onde possível, acessar as emoções, sejam elas abertas
ou reprimidas, e cuidar de nosso bem-estar psíquico pode ter efeitos
profundos na saúde física: isso é intuitivamente óbvio para muita gente. No
entanto, apesar de toda a sua impressionante perícia siológica e técnica, os
médicos de modo geral não são apresentados na sua formação aos antigos
conhecimentos e aos novos dados cientí cos da unidade “corpomente”. Os
pro ssionais da medicina com frequência pouco fazem para incentivar,
podendo até desencorajar, as pessoas a con arem nos próprios palpites, que
tendem a sintetizar sinais tanto da mente quanto do corpo.
LEMBRANÇAS EM CHAMAS: A HISTÓRIA DE GLENDA

Foi este o caso de Glenda, uma moradora de Montreal hoje com 58 anos
que, três décadas atrás, teve partes do intestino removidas devido à doença
de Crohn grave, uma doença in amatória ulcerativa do intestino que causa
muita dor. Em 2010, Glenda recebeu más notícias ao ser diagnosticada com
um câncer de mama agressivo em estágio dois. Foi durante a jornada de
cura desse câncer que ela recuperou lembranças reprimidas de ter sido
estuprada quando menina. “Por meio da escrita de um diário e dos sonhos
que tive”, contou ela, “lembranças inconscientes da minha infância
começaram a vir à tona, acompanhadas por sensações de puro pânico e
terror.” Com medo de saber a verdade, ela tentou manter as lembranças
afastadas, mas elas não a deixaram em paz. “Toda vez que vinham à tona”,
prosseguiu ela, “as lembranças do trauma eram acompanhadas por
sensações emotivas muito viscerais e por sintomas físicos digestivos que
incluíam indigestão, enjoo e dores na barriga.”
Essas lembranças revirariam o estômago até mesmo de um observador
externo que as escutasse. Aos 8 anos, Glenda e uma amiguinha menor
sofreram um estupro coletivo praticado por quatro adolescentes do bairro.
Quem as socorreu foi a mãe de Glenda, que levou a lha correndo para
dentro de casa, segundo ela, “e me pôs direto na banheira. Ela me disse que
nunca contaríamos a ninguém tudo aquilo nem tocaríamos mais no
assunto. Disse que aquele sempre seria ‘o nosso segredinho’ e me botou na
cama”.
Ao retornarem quando Glenda estava com 53 anos, essas lembranças
surgiram como “uma imagem intensa e nítida” dela menina dentro da
banheira, com a mãe agachada no chão ao seu lado “tentando lavar o
estupro”. Perguntei a Glenda se ela tinha algum indício independente dessas
memórias resgatadas. Ela fez que sim com a cabeça.

Minha irmã mais velha se lembra de ter chegado a entrar no banheiro


nesse dia. Ao chegar em casa e ouvir minha mãe aos prantos, ela foi e
abriu a porta. Eu estava de costas para ela; minha irmã perguntou: “O
que houve com a Glenda?” Minha mãe respondeu: “Nada, ela vai car
bem. Sai daqui.” [Minha irmã] me disse que eu estava toda despenteada
(minha mãe nunca nos deixava sair despenteadas) e que o meu corpo
inteiro tremia.

Como se essa cena já não fosse intensa o bastante, a compreensão


intuitiva de Glenda, que agora ia se tornando consciente depois de uma vida
inteira submersa para se proteger, produziu uma camada visual suplementar.
“Assim que recuperei a lembrança de estar no banheiro”, disse ela,

vi meu corpo e eu estava transparente… vi meu sistema digestivo


inteiro, da boca até o reto. Meu sistema digestivo inteiro estava tomado
por erupções vermelhas. Uma lava amejante e quente escorria,
alimentando ainda mais o fogo. Eu estava simplesmente em chamas, e
para mim isso foi um guia me dizendo que aquelas duas coisas estavam
ligadas, o estupro e a doença de Crohn.

Não é preciso um psicanalista nem um professor de poesia para ver na


imagem do fogo “abrasador” uma potente analogia da raiva e da dor que
Glenda teve que enterrar no mais profundo dela mesma, dada a total
incapacidade da mãe de ampará-la emocionalmente.
A “imagem” de Glenda não é adequada apenas do ponto de vista
metafórico, mas do cientí co também. Para citar apenas um questionário de
pesquisa em meio a uma profusão que não para de aumentar, existem

fortes indícios de que acontecimentos traumáticos na infância têm


impacto signi cativo no sistema imunológico in amatório […]
proporcionando uma rota molecular potencial por meio da qual um
trauma precoce confere vulnerabilidade ao desenvolvimento de
transtornos psiquiátricos e físicos mais tarde na vida.22
Nenhum dos muitos médicos de Glenda, nem mesmo seu psiquiatra –
“todo ciência e medicina”, segundo seu relato – perguntaram sequer uma
vez sobre os possíveis antecedentes de suas perturbações psíquicas na
infância.
Candace Pert imaginou a mente como algo que envolvia o uxo
inconsciente de informações “entre as células, órgãos e sistemas do corpo
[…] que ocorrem abaixo do nível da consciência”. Assim, a rmou ela, “a
mente tal como a vivenciamos é imaterial, mas tem um substrato físico que
é ao mesmo tempo o corpo e o cérebro”. Ao dizer “imaterial”, ela não estava
empregando a palavra em seu sentido usual, insigni cante ou irrelevante,
mas pelo contrário: queria dizer que a mente, ao contrário do cérebro, não é
uma coisa material; não podemos segurá-la, colocá-la dentro de um tubo de
ensaio ou sobre uma placa de Petri, ou mesmo “vê-la” diretamente. Seus
impactos e suas consequências, porém, são, sim, materiais.
A oportunidade que temos hoje é de criar uma abordagem de
atendimento de saúde multivalente, que leve em conta o impacto das “não
coisas” nos corpos “coisi cados” em que nos tornamos especialistas tão
maravilhosos. A mente “imaterial” e seu “substrato físico”, o cérebro e o
corpo, realizam uma dança sem m, ao mesmo tempo íntima e complexa.
Ao olhar mais de perto, vemos que essa coreogra a de psique e soma
envolve bem mais de dois “parceiros” contidos numa mesma pessoa: existe
também um componente interpessoal vital e subvalorizado. A nal, mente e
corpo existem de modo inequívoco no contexto dos relacionamentos, nas
situações sociais, na história e na cultura. Se quisermos uma visão clara e
precisa da saúde humana, teremos que ampliar nosso conceito de
“corpomente” para incluir nele os inúmeros papéis que outras mentes e
outros corpos desempenham na formação de nosso bem-estar, e de fato
ampliarmos nosso próprio conceito de nós mesmos. A verdade é que a
unidade vai muito além do indivíduo sozinho.
3

Você me vira a cabeça: nossa


biologia altamente
interpessoal

Pois cada átomo que há em mim também habita você.


– WALT WHITMAN, “Canção de mim mesmo”, Folhas de relva

“All my relations”. Todas as minhas relações. Já escutei esse cumprimento


muitas vezes ao visitar comunidades originárias no Canadá. É nesses lugares
que o meu país vergonhosamente observa suas mais altas taxas de doença
física e mental, dependência química e morte prematura, situação trágica
análoga à das igualmente colonizadas populações autóctones dos Estados
Unidos e da Austrália. A expressão, conforme a entendo, refere-se ao
vínculo multidimensional do indivíduo com o mundo inteiro, o que inclui
pessoas – de parentes próximos a desconhecidos, de pessoas vivas a
antepassados que viveram muito tempo antes – e também pedras, plantas, a
terra, o céu e todas as criaturas. As culturas ancestrais já entenderam há
muito tempo que existimos em relação a isso tudo, que somos afetados por
tudo e que tudo afetamos.
No escrito hindu Bhagavad Gita, o divino avatar Krishna declara:
“Sábios aqueles que se veem em todos e todos em si.” O clérigo anglicano e
poeta seiscentista John Donne cunhou a célebre re exão: “Nenhum homem
é uma ilha, inteiro por si só.” Talvez não por acaso, ele compôs isso durante
um período de doença e convalescença. Walt Whitman, que escreveu nos
Estados Unidos de meados do século XIX, poderia ter tirado o verso da
epígrafe deste capítulo da física quântica atual.
E então temos Gautama, nascido 2.500 anos atrás. “Contemple a
natureza da cocriação interdependente a cada instante”, disse Buda.

Quando olhar para uma folha ou uma gota de chuva, medite sobre as
condições, próximas e distantes, que contribuíram para a presença dessa
folha ou gota de chuva. Saiba que o mundo é uma trama de os
interconectados. Isto é porque aquilo é. Isto não é porque aquilo não é.
Isto nasce porque aquilo nasce. Isto morre porque aquilo morre.

A folha, conforme Buda deu a entender, é ao mesmo tempo uma


entidade em si, uma coisa, e um processo que deriva do sol, do céu e da terra:
luz, fotossíntese, chuva, matéria orgânica e minerais, e talvez até a atividade
humana e animal. “O um contém os muitos, e os muitos contêm o um. Sem
o um não pode haver os muitos. Sem os muitos não pode haver o um.” Esses
não são apenas ensinamentos de sabedoria esotérica: eles descrevem com
exatidão o universo físico e orgânico, saúde e patologia incluídas. De fato,
Friedrich Nietzsche certa vez se referiu a Buda como “o mais profundo dos
siologistas”.
O pioneiro clínico geral e psiquiatra americano George Engel a rmou,
quase meio século atrás, que a “falha incapacitante” da medicina moderna é
“não incluir o paciente e seus atributos como pessoa. Mas no trabalho
cotidiano do médico seu principal objeto de estudo é a pessoa”. Precisamos
levar em conta a pessoa inteira, em sua “natureza psicológica e social”
plena,1 a rmou ele, defendendo uma abordagem psicossocial: que reconheça
a unidade das emoções e da siologia, sabendo que ambas são processos
dinâmicos ocorrendo num contexto de relacionamentos, desde os pessoais
até os culturais.2
O grande traumatologista Bessel van der Kolk observou que “nossa
cultura nos ensina a nos concentrar em nossa singularidade pessoal, mas
num nível mais profundo nós mal existimos como seres individuais”.3 Isso
com certeza será uma novidade para o ego típico. A palavra ego, conforme a
uso aqui, não se refere ao traço de arrogância ou soberba em determinadas
pessoas “egocêntricas”, mas sim ao eu distinto e internamente percebido
com que cada um de nós se identi ca: o “eu”, “me” e “mim” ao qual nos
referimos ao usar tais pronomes pessoais, como fazemos centenas de vezes
por dia. Até mesmo um ego saudável tem certeza da própria separação,
percepção esta inteiramente sensata: a capacidade de vivenciar a
individualidade sob todos os seus aspectos (físico, psicológico, biográ co,
etc.) é parte da experiência humana. Nossas di culdades começam quando
perdemos de vista o outro lado da equação, que apesar de menos aparente é
igualmente real.
A inter-relação entre organismos aparentemente isolados hoje já foi
descoberta até mesmo na vida das árvores que formam redes vivas,
comunicando-se por meio de impulsos elétricos comparáveis aos sistemas
nervosos, hormônios, sinais químicos e cheiros dos animais e seres
humanos. Como relata um artigo na revista Smithsonian: “Árvores da
mesma espécie são comunitárias, e com frequência formam alianças com
árvores de outras espécies.” Peter Wohlleben, engenheiro orestal alemão
que ganhou fama ao popularizar essas informações, usa a astuta expressão
“wood wide web” (de wood, “ oresta”) para se referir a esse fenômeno.4
O fato de nossa mente e corpo individuais estarem ligados de forma tão
íntima é relativamente simples de entender. Menos óbvio, porém não menos
verdadeiro, é o fato de esses mesmos “corpomentes” serem sob muitos
aspectos formados, tanto inicialmente quanto ao longo da vida, por fatores
externos a nós. Embora o foco da medicina moderna no organismo
individual e seus processos internos não esteja intrinsecamente errado, ele
deixa de lado uma coisa vital: a in uência decisiva dos ambientes mental,
emocional, social e natural em que vivemos. Nossa própria biologia é
interpessoal.
O conceito de neurobiologia interpessoal foi introduzido alguns anos
atrás por Daniel Siegel,5 psiquiatra, pesquisador e prolí co escritor. Assim
como eu e muitos de nossos colegas, Siegel começou a se sentir incomodado
com as limitações da própria formação. “Quando eu estava na faculdade de
medicina”, escreve ele,

muitos dos ótimos professores que tínhamos abordavam seus pacientes,


e alunos também, como se estes não tivessem nenhum âmago de
experiência interna, nenhum centro interno subjetivo que pudéssemos
chamar de vida mental. Era como se fôssemos simples sacos de
elementos químicos e órgãos do corpo sem um eu, sem uma mente.6

Ele sentia que tanto a pesquisa quando a prática careciam de uma


de nição consensual de “saúde” e, supreendentemente, na área da saúde
mental careciam até mesmo de um consenso geral em relação ao que é
“mente”, quanto mais de uma visão comum da relação entre mente e corpo.
Ele recrutou colegas da medicina, neurologia, psiquiatria, psicologia,
antropologia, sociologia, história, siologia, biologia, física e disciplinas
correlatas que estudam a experiência humana, e se lançou numa exploração
do que poderia ser esse consenso. Os achados da equipe con rmaram que
nosso cérebro e nossa mente não são operadores independentes, que
funcionam isolados de outros cérebros e mentes. Na realidade, nada em
relação a nós, seja mental ou físico, pode ser compreendido fora do meio
multifacetado no qual existimos. Talvez possamos tratar a biologia humana
como estritamente autocontida num ambiente arti cial, como um
laboratório médico ou uma sala de aula de patologia, mas não na vida real.
“A neurobiologia interpessoal é tanto uma forma de entender o mundo por
meio de muitas disciplinas quanto a realidade da nossa natureza
interconectada”, disse Dan numa entrevista. Minha reti cação seria remover
o pre xo “neuro”, o que nos daria a mais ampla “biologia interpessoal”, na
qual o termo guarda-chuva interpessoal abrange não só o cérebro e o sistema
nervoso, mas também toda a nossa constituição mental e física.
O cérebro em si é o órgão central de um supersistema que se estende
pelo corpo e in uencia todos os aspectos do funcionamento siológico,
desde o calibre dos vasos sanguíneos até as contrações dos intestinos, os
batimentos cardíacos, a formação de células imunológicas na medula, a
secreção de hormônios pelas glândulas sexuais e o funcionamento dos rins.
Aqui também é tudo uma coisa só: as emoções afetam os nervos e vice-
versa; os nervos agem sobre os hormônios; os hormônios agem sobre o
sistema imunológico; o sistema imunológico age sobre o cérebro; o cérebro,
sobre os intestinos; os intestinos, sobre o cérebro; e todos eles agem sobre o
coração e vice-versa. Por sua vez, nosso corpo in uencia nosso cérebro e
nossa mente, e necessariamente o cérebro, a mente e o corpo de outras
pessoas.
Devido a uma vida inteira de experiência pessoal, todos conhecemos o
poder da biologia interpessoal. Pense no efeito que outras pessoas podem ter
sobre você: ele pode ser literalmente visceral. Poetas e compositores nos
falam sobre car com as pernas bambas, levar uma echada no coração, ou
mesmo, na imagem vívida de Bruce Springsteen, ser apunhalado no cérebro
por uma lâmina serrilhada e cega.7 Jerry Lee Lewis tinha razão: nós
realmente sacudimos os nervos e chacoalhamos o cérebro uns dos outros.8
Como se sabe, quanto mais próximos somos de alguém, mais nossa
siologia interage com a dessa pessoa. Por esse motivo, o fenômeno da
biologia interpessoal foi bem estudado no caso de relacionamentos íntimos.
Pessoas casadas têm taxas de mortalidade mais baixas do que seus
contemporâneos solteiros da mesma faixa etária, sejam eles separados,
divorciados, viúvos ou pessoas que nunca se casaram.9 Pessoas solteiras
apresentam um risco elevado para doenças cardíacas e certos tipos de
câncer, para doenças infecciosas como pneumonia e gripe, e para distúrbios
relacionados aos hábitos de vida, como cirrose hepática e doenças
pulmonares. De modo revelador, o grau de proteção proporcionado pelo
status de casado é cinco vezes maior para os homens do que para as
mulheres, achado que remete aos respectivos papéis de cada gênero na nossa
cultura, com implicações profundas para a saúde (tópico ao qual voltarei no
capítulo 23). De modo interessante, “pessoas infelizes no casamento
apresentam um estado de espírito pior do que pessoas solteiras”.10
Em outros estudos, os níveis de hormônios do estresse de casais casados
perfeitamente saudáveis aumenta naqueles que apresentam graus mais altos
de hostilidade durante con itos, e sua função imunológica diminui. Os
resultados foram os mesmos tanto para recém-casados quanto para
septuagenários.11
Devido à sua vulnerabilidade e dependência, as crianças têm uma
siologia especialmente suscetível ao estado emocional de seus cuidadores.
Os níveis de hormônio do estresse de crianças pequenas, por exemplo, são
altamente in uenciados pelo clima emocional da casa, sejam con itos
abertos ou uma tensão à or da pele12 A asma é um exemplo bem estudado:
a in amação pulmonar da criança é diretamente afetada pelas emoções da
mãe ou do pai.13 Nas palavras de um artigo recente: “Ficou demonstrado de
modo consistente que pais num estado de saúde mental desfavorável, como
‘depressão’, ‘estresse’ ou ‘irritação crônica’, podem apontar para uma
condição de futura piora na asma da criança.”14
O racismo é outro fator de risco para a asma. Num grupo grande de
mulheres pretas americanas, experiências de discriminação racial foram
associadas à ocorrência da doença na idade adulta.15 E isso levanta a questão
incontornável sobre a qual todos nós precisamos re etir: será a in amação e
a constrição das vias respiratórias dessas mulheres um caso de patologia
individual, ou a manifestação de um mal-estar social?
Quanto mais aprendemos, mais percebemos que nossa saúde é uma
consequência integral de “todas as nossas relações”, e não só as mais
próximas (familiares, amigos, outros relacionamentos íntimos, etc.). Os
renomados pesquisadores do estresse americanos Teresa Seeman e Bruce
McEwen observaram, em 1996, que a biologia humana “parece ser
altamente sensível” também a fatores como o status social de uma pessoa em
relação a outras, ou mesmo a quão estável ou precária a ordem social se
apresenta em determinado momento.16 Num estudo britânico, pessoas
desempregadas tinham marcadores de in amação no corpo mais altos;
quanto mais prolongado o desemprego, maior o risco. Os níveis de
in amação mais severos foram registrados na Escócia, parte do Reino
Unido em que o desemprego era mais endêmico e crônico.17 Até quem está
empregado pode sofrer consequências siológicas: num estudo sobre
servidores públicos britânicos, um cargo mais baixo na hierarquia era um
indicador de morte por doenças cardíacas mais importante do que fatores
de risco normalmente listados, como tabagismo, colesterol ou hipertensão.
De modo análogo, pesquisadores australianos constataram que um emprego
ruim é pior para a saúde mental do que o desemprego.18 Portanto, da
próxima vez que ouvir de algum colega a reclamação, “Este emprego está me
matando”, pode lhe dizer que talvez ele esteja certo.
A biologia interpessoal também explica por que a solidão pode matar,
especialmente no caso de pessoas idosas isoladas de fontes de prazer,
conexões sociais ou apoio. Um amplo exame de vários estudos, envolvendo
mais de 300 mil participantes, concluiu que o efeito letal da falta de
relacionamentos interpessoais é comparável a fatores de risco como fumar e
consumir bebida alcoólica, e supera até mesmo os perigos advindos da falta
de atividade física e da obesidade.19
O renomado monge budista e líder espiritual ich Nhat Hanh, falecido
em 2022, por muito tempo ensinou o conceito de “interser”. Nós não apenas
somos, ele a rmou: nós “intersomos”. “Não existem entidades separadas”,
escreveu ele, “apenas manifestações que se apoiam umas nas outras para
serem possíveis.”20 Nesse caso também, estaríamos bastante equivocados se
relegássemos essas observações ao domínio das crenças místicas. Até
mesmo um cientista sem um apo de espiritualidade, mas ciente do
conjunto de indícios cada vez maior, concordaria dizendo “É, isso resume
mais ou menos a situação”.
4

Tudo aquilo que me cerca:


despachos da nova ciência

Muito do que deixa as pessoas bem ou mal vem não de dentro


delas mesmas, mas das suas circunstâncias. Isso me faz pensar
muito mais em justiça social e nas questões mais amplas que
ultrapassam o âmbito do indivíduo.
– ELIZABETH BLACKBURN1

Em 2009, Elizabeth Blackburn dividiu o Prêmio Nobel de Fisiologia e


Medicina por seu trabalho sobre os telômeros, minúsculas estruturas de
DNA localizadas nas extremidades dos cromossomos. Não muito diferentes
das ponteiras plásticas postas nas extremidades dos cadarços de sapato para
evitar que se es apem, essas pequenas capas ajudam a proteger a identidade
dos cromossomos. E que bom que isso acontece, porque à medida que os
cromossomos começam a se desintegrar, nós também nos desintegramos.
Monitorar o comprimento e a estabilidade dos telômeros ao longo da vida
na verdade pode nos fornecer muitas informações sobre saúde e
longevidade.
Ninguém pensaria nisso olhando para eles, mas o que se descobriu a
respeito dessas minúsculas estruturas biológicas também tem implicações
sociais gigantescas. Um dos achados de Blackburn foi que os telômeros
exibem efetivamente as marcas, ou melhor, os marcadores das
circunstâncias nas quais vivemos. Surpreendentemente, ela descobriu que
fatores como pobreza, racismo e a deterioração dos centros urbanos podem
ter um impacto direto em nosso funcionamento genético e molecular.
Como me disse numa entrevista a psicóloga Elissa Epel, colaboradora de
pesquisa de Blackburn e coautora do sucesso de vendas O segredo está nos
telômeros: Receita revolucionária para manter a juventude, viver mais e
melhor: “Esses efeitos não são pequenos.”
A neurocientista Candace Lewis – cuja própria área de pesquisa é a
epigenética, campo em expansão que investiga o impacto da experiência de
vida na atividade dos nossos genes – vê as coisas da mesma forma. “Cada
vez mais, a ciência está provando esse modelo holístico de quem somos”,
disse ela. “É mais do que apenas aquilo que está contido na minha pele: é
tudo o que me cerca. Não ver isso é remover a cura da medicina.” Por ter
observado moléculas e cadeias de DNA, Lewis também se pegou erguendo
os olhos para a pessoa como um todo, e do indivíduo para questões sociais
mais amplas. “Como especialista na complexidade do cérebro e do
comportamento, sei que a coisa não se resume a cérebro e comportamento”,
disse a ex-pesquisadora do programa Fulbright. “Um dos pontos mais
importantes a serem lembrados no meu trabalho é quão maleáveis somos
como organismo, quão reativos somos a estímulos ambientais ao longo da
vida.”
A pressuposição dominante em nossa cultura é de que a herança
genética determina a maior parte do nosso destino, de quem somos, daquilo
que nos a ige e daquilo de que somos capazes. Em 2000, num
pronunciamento na Casa Branca, Bill Clinton declarou que os achados do
Projeto Genoma Humano eram “o mapa mais assombroso jamais produzido
pela humanidade”, emendando que “estamos hoje aprendendo o idioma no
qual Deus criou a vida”. A nova ciência, previu aquele que em breve se
tornaria ex-presidente, “vai revolucionar o diagnóstico, a prevenção e o
tratamento da maioria, senão de todas as doenças humanas”, levando à cura
de males como o de Alzheimer, o de Parkinson e o câncer “por meio do
ataque às suas origens genéticas”.2
Duas décadas mais tarde, sabemos que pouca coisa desse tipo
aconteceu.3 E por um bom motivo: na verdade os genes não são a linguagem
da vida, assim como um alfabeto embaralhado ou um dicionário
aleatoriamente organizado não são uma peça de Shakespeare, e uma escala
musical não é o equivalente a um solo de John Coltrane. Para que letras ou
palavras se transformem numa linguagem, elas precisam ser organizadas,
enunciadas, declinadas, pontuadas por pausas, ENFATIZADAS ou
suavizadas. Assim como qualquer bloco de construção, os genes ajudam a
criar a linguagem da existência, mas é por meio das engrenagens da
epigenética que eles são ativados, acentuados ou atenuados. Entre vários
outros, um dos mecanismos da epigenética é acrescentar determinadas
moléculas a sequências de DNA para mudar a função do gene, modi cando
o número de receptores para determinados mensageiros químicos e
in uenciando as interações entre genes.4
Em outras palavras, no m das contas, a experiência determina como
nosso potencial genético irá se expressar. É disso que trata a área da
epigenética, que signi ca “por cima” dos genes. Os processos epigenéticos
agem sobre os cromossomos, entregando e traduzindo mensagens do
entorno que lhes “dizem” o que fazer. Tudo isso ocorre sem alterar em
absolutamente nada os genes em si. Como explica Martha Henriques, da
BBC, a epigenética oferece “um modo de se adaptar a condições instáveis
sem provocar uma mudança mais permanente em nossos genes”.5
Não que os genes não tenham importância; com certeza têm. Só que eles
não são capazes de ditar nem mesmo os comportamentos mais simples,
quanto mais de explicar a maioria das doenças ou apontar possíveis curas
para elas. Longe de serem árbitros autônomos do nosso destino, os genes
respondem ao seu entorno; sem sinais do ambiente eles não teriam como
funcionar. Na verdade, a vida para nós seria impossível não fossem os
mecanismos epigenéticos que “ligam” ou “desligam” os genes em reação a
sinais internos e externos ao nosso corpo.6
A epigenética renova nossa compreensão do desenvolvimento humano,
desde o embrião até a pessoa adulta, e até mesmo de como nossa espécie
chegou aonde chegou. Conversei com um dos principais pesquisadores
dessa área, Moshe Szyf, na prestigiosa faculdade de medicina da McGill
University. “A teoria evolucionária é difícil de mudar porque ela se tornou
quase uma religião, uma religião da ciência”, disse ele. “E qualquer
questionamento dela ca parecendo uma heresia, um questionamento do
sistema como um todo, o que obviamente não é. A epigenética não nega a
evolução. A epigenética faz parte da evolução, mas exige um olhar novo
sobre como ela funciona.” A nova biologia aprimora a visão darwiniana
padrão de mutações espontâneas e seleção aleatória como motor da
adaptação das espécies; ela demonstra que as circunstâncias em si podem
determinar a forma como os genes se ajustam ao entorno.
Dito de outra forma: nossa vida é o que acontece quando a vida age
sobre a vida.
Szyf e sua equipe em Montreal conduziram um dos mais citados estudos
de epigenética, com implicações importantes para a nossa forma de ver o
desenvolvimento, o comportamento e a saúde. Eles trabalharam com ratos
de laboratório para examinar o efeito das interações da mãe e do lhote,
durante os primeiros dias após o parto, na forma como os descendentes
reagiam ao estresse pelo resto da vida: se de modo adequado e con ante, ou,
pelo contrário, com ansiedade e hiper-reatividade. O foco era o eixo HPA, o
circuito de regulação do estresse entre o hipotálamo e a hipó se e as
suprarrenais.7 Em especial, os pesquisadores observaram as moléculas
receptoras do cérebro responsáveis por modular o estresse, ou seja, por
garantir um comportamento adequado na presença deste. Criaturas com
reações ao estresse mal autorreguladas serão mais ansiosas, menos capazes
de enfrentar desa os ambientais corriqueiros e apresentarão estresse
excessivo mesmo em circunstâncias normais.
O estudo mostrou que a qualidade do cuidado materno inicial tinha um
impacto causal na capacidade bioquímica do cérebro dos descendentes de
reagir ao estresse de forma saudável até a idade adulta. Marcadores
epigenéticos cruciais, ou seja, o modo como determinados genes se
expressavam, eram diferentes no cérebro dos ratos que tinham recebido
mais ou menos cuidado no contato com a mãe.8 De modo impressionante,
os descendentes por sua vez transmitiam aos próprios descendentes o tipo de
cuidado materno que houvessem recebido. Szyf e seus colegas mostraram
também que, nas descendentes mulheres, a qualidade do cuidado materno
afeta a atividade receptora do estrogênio, um hormônio feminino
fundamental, impactando os padrões de cuidado materno em sucessivas
gerações.9 Por meio da manipulação engenhosa da população de ratos
estudada, inconcebível numa pesquisa com humanos, constatou-se que
tanto os efeitos siológicos quanto os comportamentais de padrões iniciais
de cuidado eram não genéticos, ou seja: não eram transmitidos por meio do
chamado código genético, que permanecia intacto. Eram, isso sim,
epigenéticos, ou seja: determinados pela forma como os diversos tipos de
cuidado materno in uenciavam a atividade genética no cérebro dos
descendentes. (O comportamento materno especí co monitorado por esses
pesquisadores era quão “amorosamente” as mães “limpavam” ou lambiam
seus lhotes.)
Pode ser que você se pegue dizendo: “Tá, mas isso eram roedores num
laboratório. O que esses achados signi cam para pessoas no mundo real?”
Uma pergunta sensata, para a qual a natureza providenciou uma resposta
eloquente na forma de uma nevasca devastadora em janeiro de 1998,
justamente na mesma província em que Szyf e sua equipe tinham
trabalhado.10 Considerada um dos piores desastres naturais da história do
Canadá, a nevasca deixou muitos moradores de Quebec sem calefação e
energia elétrica. Quanto mais “estresse objetivo” as grávidas tiveram que
suportar durante esses dias difíceis – em fatores concretos e mensuráveis
como blecaute, frio intenso e estragos em casa11 –, mais a siologia de seus
lhos foi marcada por essa adversidade até próximo da puberdade. (Os
participantes tinham origens socioeconômicas, culturais e étnicas
semelhantes, e moravam numa mesma área fora do centro metropolitano.)
“Ao longo dos anos [de acompanhamento das crianças]”, disse Suzanne
King, professora de psiquiatria na McGill University, “observamos que esse
estresse objetivo explicava como as crianças se diferenciavam em toda uma
série de coisas: linguagem, IMC [índice de massa corporal] e obesidade,
secreção de insulina, o sistema imunológico.”12 Até o QI delas foi afetado.
“Vimos também um aumento da incidência de asma”, acrescentou Szyf,
“bem como um aumento dos genes in amatórios e imunes vinculados à
autoimunidade.”
Eu deveria enfatizar que as mães não são as únicas a transmitirem para
os lhos perturbações crônicas no aparato de estresse do corpo. Num
experimento, ratos machos saudáveis foram incomodados por uma série de
fatores de estresse: mudanças frequentes de gaiola, luz ou ruído branco
constantes, exposição ao cheiro de raposas, con namento dentro de um
pequeno tubo, e assim por diante. Eles então eram cruzados com fêmeas não
estressadas, que proporcionavam aos lhotes um cuidado materno
totalmente adequado. Seus descendentes apresentaram reações
enfraquecidas ao estresse e padrões atenuados de hormônio do estresse. Em
outras palavras: apesar de todos os esforços das mães, os pais haviam
transmitido os efeitos perturbadores pelo seu esperma.13 Em humanos, o
estresse paterno no início da vida de uma criança também pode ter efeitos
duradouros, no mínimo até a adolescência. A adversidade tanto nas mães
quanto nos pais apresenta “vínculos con áveis” com o per l epigenético dos
lhos, concluiu um grupo de pesquisadores.14
As circunstâncias socioeconômicas também podem alterar o epigenoma,
a rede de in uências epigenéticas sobre os genes. O incansável Szyf se uniu a
cientistas do Canadá e do Reino Unido para estudar o funcionamento
epigenético de uma ampla gama de genes em amostras de sangue de homens
britânicos de meia-idade. Os alvos do estudo tinham começado a vida em
extremos opostos do espectro pobreza-riqueza, alguns pobres, outros ricos.
A expressão dos genes daqueles nascidos mais ricos era marcadamente
distinta daquela observada em seus equivalentes criados em situação de
desvantagem.15
Outro estudo observou taxas mais elevadas de in amação em afro-
americanos do que em pessoas de origem étnica caucasiana, efeito
epigenético que perdurava mesmo ao se comparar pessoas de mesmo nível
socioeconômico.16 “Constatamos que as experiências de racismo e
discriminação respondiam por mais de 50% da diferença entre pretos e
brancos na atividade dos genes que aumentam a in amação”, escreveu a
autora principal, April ames, num artigo intitulado “O racismo encurta
vidas e prejudica a saúde dos negros ao promover genes que conduzem à
in amação e à doença”.17
De modo bem semelhante à expressão dos genes, os telômeros
manifestam os caprichos do destino e da história, da classe e da raça, do
estresse e do trauma. De que maneira? No nascimento os telômeros têm
muitas “unidades”, os pares de DNA que os constituem, e na velhice bem
menos. “Começamos com cerca de 10 mil quando bebês, e baixamos para 4
mil ao morrer”, a rmou Elissa Epel. Cada vez que uma célula do nosso
corpo se divide, os telômeros se encurtam; quando eles cam curtos demais,
a célula-hospedeira morre, ou pode se deteriorar e se tornar disfuncional. À
medida que eles encolhem, a função imune é prejudicada, a in amação
aumenta, e camos mais propensos a adoecer.
Os telômeros já foram chamados de “relógios celulares”, no sentido de
que medem não a idade cronológica, mas a idade celular. Duas pessoas, até
mesmo gêmeos idênticos, podem ter a mesma idade computada em anos,
meses, semanas e dias, mas mesmo assim uma pode ser biologicamente
mais velha do que a outra dependendo de quanto estresse, adversidade ou
trauma teve que suportar. Isso acontece porque o estresse encurta os
telômeros. (Os médicos deveriam tomar um cuidado especial: os telômeros
de residentes em medicina sofrem mais desgaste do que o de outros jovens
adultos da mesma faixa etária.)18 Um dos estudos de Epel constatou que
mães que cuidavam de lhos com doenças crônicas tinham telômeros mais
curtos do que suas semelhantes de mesma idade. Esse dé cit de idade
biológica era proporcional tanto ao número de anos de prestação desses
cuidados quanto ao grau de estresse conforme percebido pelas mães.19
Resultados semelhantes foram observados em cuidadores de pessoas com
demência: telômeros encurtados e imunidade prejudicada, o que reforça a
ideia de que “o estresse psicológico crônico tem impacto negativo no
funcionamento das células imunes e pode acelerar seu envelhecimento”.20
Em outras palavras, o estresse envelhece nossos cromossomos, e portanto
envelhece a nós.
Assim como pobreza e racismo afetam o funcionamento epigenético,
esses fatores também encurtam os telômeros, e portanto a vida. Esse vínculo
desolador foi ilustrado vividamente por um estudo com homens pretos
americanos em 2014. “Nossos achados literalmente sugerem que o racismo
envelhece as pessoas”, comentou seu autor principal.21 O mesmo vale para as
mulheres. Como parte do Estudo Nacional da Saúde Feminina (SWAT, na
sigla em inglês) nos Estados Unidos, compararam-se os telômeros de
mulheres de meia-idade pretas e brancas. Os resultados foram chocantes: as
pretas eram em média mais de sete anos biologicamente mais velhas do que
suas equivalentes brancas, achado condizente com taxas mais elevadas de
pobreza, estresse, hipertensão, obesidade e problemas de saúde correlatos.22
Como observou Epel: se soubermos o que procurar, os efeitos do nosso
ambiente socioeconômico estão visíveis dentro das nossas células. “O
desfavorecimento de alguns bairros, a criminalidade, a renda naquele CEP”,
disse ela, “tudo isso está ligado ao envelhecimento celular. Isso, para mim, é
uma das maiores demonstrações de que a nossa saúde está fora do nosso
corpo.” Szyf falou num tom parecido:

Nós passamos um século obcecados com mudanças químicas, pensando


que tudo que é químico é verdadeiro, e qualquer coisa que não seja
química é falsa. O que a epigenética nos ensinou é que as mudanças
sociais na verdade não são diferentes das mudanças químicas.

Uma se manifesta na outra.


Felizmente, a porta dos efeitos ambientais se abre para os dois lados: de
fato, as experiências que aumentam a resiliência ao estresse podem alongar
nossos telômeros, mesmo diante da doença ou da adversidade. Isso foi
demonstrado pelo trabalho de Epel e seus colegas com pessoas que
meditam, pelo trabalho de Gene Brody com adolescentes americanos
desfavorecidos, e em outra pesquisa com homens afetados pelo câncer de
próstata.23 Este será um tema recorrente conforme avançarmos: a aparente
má notícia cederá lugar a algo empoderador, contanto que a abordemos de
modo sensato. Ao aprender sobre os impactos da adversidade, podemos
também encontrar caminhos rumo à cura.
5

Motim no corpo: o mistério do


sistema imunológico rebelde

Várias vezes tive de ngir que estava me sentindo bem quando


estava me sentindo péssima.
– VENUS WILLIAMS

“Eu meio que me machuquei”, me contou Mee Ok1 recentemente, “porque


estava indo muito bem e aí tropecei enquanto subia uma escada correndo.
Então dei uma topada com o dedão.” Seu humor caloroso e travesso permeia
o relato, bem como uma certa sensação de orgulho. Para a maioria de nós,
essa seria uma reação estranha a um acidente doloroso assim. Para a Mee
Ok de sete anos atrás, porém, seria impossível falar assim dessa lesão,
ocorrida ao se movimentar vigorosamente contra a gravidade.
Diagnosticada aos 27 anos com esclerodermia, ela havia cado inteiramente
debilitada em pouco tempo, apesar de tudo que a medicina convencional
tinha a oferecer. Moradora da região de Boston, fora avaliada e tratada num
dos estabelecimentos mais venerados da ciência médica ocidental.
Oriunda da expressão grega que signi ca “pele dura”, a esclerodermia é
um transtorno autoimune que se manifesta em in amações debilitantes nas
articulações e em um doloroso enrijecimento dos tecidos conjuntivos. Um
nome mais inclusivo da doença é esclerose sistêmica, já que a acumulação
de tecido enrijecido pode ocorrer em muitos órgãos, entre eles o esôfago, os
vasos sanguíneos e os pulmões. No caso de Mee Ok, ele transparecia num
cruciante inchaço das mãos, dos ombros e dos joelhos. “Doía tudo”, recorda
ela. “A dor inundava meu corpo inteiro.” Ela logo foi obrigada a largar o
emprego como assistente de um importante acadêmico em Harvard. Antes
capaz de digitar 120 palavras por minuto, começou a ver as próprias mãos se
enrijecerem como garras, retesando-se quase a ponto de carem paralisadas.
O simples fato de tocar o teclado era uma agonia. A primeira vez que a
entrevistei, em 2014, sua sionomia era soturna, o rosto uma máscara
enrijecida, e os lábios contraídos mal conseguiam cobrir os dentes. Ela era
irreconhecível para si mesma, e totalmente incongruente com a pessoa que
se vê hoje, de sorriso fácil e reativo.
Poucos anos depois de a doença se manifestar, quando ainda estava com
30 e poucos, Mee Ok quis pôr m à própria vida. Diante de um diagnóstico
que era uma sentença de morte, obrigada a andar de cadeira de rodas,
incapaz até mesmo de sair da cama sem ajuda e prevendo que seu tormento
só aumentaria quanto mais vivesse, ela investigou a possibilidade de suicídio
assistido. “Se eu estivesse num país em que a eutanásia fosse legalizada, teria
me encaixado em todos os critérios. A dor era inacreditável”, contou ela.
“Não havia nenhum prognóstico que realmente me desse um motivo para
continuar viva. Eu estava perdendo meu corpo tão depressa que sabia que,
se esperasse muito mais tempo, caria presa e não seria mais capaz sequer
de apertar um botão.”
Hoje, desa ando toda a lógica convencional da medicina, Mee Ok, que
já não toma nenhum remédio, anda, viaja e pratica caminhadas de forma
independente. Está escrevendo seu livro de memórias, ainda que ao ritmo
de 50 palavras por minuto, uma verdadeira vitória em comparação ao seu
estado não muito tempo atrás.
A esclerodermia é uma das 80 ou mais doenças correlacionadas
denominadas autoimunes, cada qual representando uma verdadeira guerra
civil dentro do corpo. De fato, a autoimunidade equivale a um ataque do
próprio sistema imunológico contra o corpo que ele deveria defender. A
forma especí ca da doença depende dos tecidos ou órgãos que se tornarão
alvo dessa rebelião interna destruidora. Se o que estiver sendo atacado for o
sistema nervoso, o resultado pode aparecer na forma de esclerose múltipla;
se for o intestino, de doença celíaca ou de uma doença in amatória
intestinal (DII) como a doença de Crohn ou a colite ulcerativa; se forem as
articulações e os tecidos conjuntivos, de lúpus eritematoso sistêmico (LES),
artrite reumatoide (AR) ou esclerodermia; se for a pele, de psoríase ou
eczema autoimune; se for o pâncreas, de diabetes tipo 1; se forem os
pulmões, de brose pulmonar; se for o cérebro, talvez de Alzheimer. Em
muitas dessas doenças, várias partes do corpo são afetadas ao mesmo
tempo. A síndrome da fadiga crônica, conhecida também como
encefalomielite miálgica (EM), que afeta milhões de pessoas mundo afora, é
um dos mais conhecidos acréscimos recentes a essa lista.
Praticamente todas as doenças autoimunes são caracterizadas por
in amação dos tecidos, órgãos e outras partes do corpo, o que explica por
que os tratamentos médicos de primeira linha muitas vezes começam com
medicamentos anti-in amatórios. Quando anti-in amatórios não esteroides
como ibuprofeno ou uma artilharia mais pesada como os corticoides em si
passam a se mostrar ine cazes, os médicos podem receitar medicamentos
destinados a suprimir a atividade imunológica do corpo.
No caso de Mee Ok, como a doença havia afetado primeiro as
articulações, os médicos acharam que fosse artrite reumatoide. Foram
receitados corticoides: análogos sintéticos do cortisol, hormônio natural do
estresse secretado pelas glândulas suprarrenais em reação a uma ameaça.
Em última instância, foi o fracasso tanto dos corticoides quanto dos
imunossupressores que levou Mee Ok ao desalento suicida. Seus médicos
não tinham mais nada a lhe prescrever. (Devo acrescentar que a doença de
Mee Ok era tão extrema que, segundo o pensamento médico padrão, sua
recuperação foi totalmente inesperada, na verdade inexplicável. Entrei em
contato com seu clínico em Boston, que con rmou os detalhes.)
Embora sejam muitas vezes perturbadores e altamente debilitantes, os
sintomas autoimunes podem no início ser nebulosos e difíceis de identi car,
nem tanto para o paciente que deles padece e busca validação e apoio, mas
para o pro ssional de medicina em busca de achados precisos. Assim, não é
incomum que tais doenças, com frequência sobrepostas, passem
despercebidas pelo radar do diagnóstico. Foi essa a experiência da estrela do
tênis Venus Williams, cuja doença se manifestou por meio de inchaço nas
mãos, cansaço persistente e articulações deformadas, sintomas que seriam
alarmantes para qualquer um, porém mais ainda para uma atleta de alto
nível. “Eu ia a médicos, mas como nunca conseguia nenhuma resposta não
podia fazer nada a não ser seguir em frente”, disse ela a um jornalista. “Você
quase que se acostuma a ter todos esses sintomas”, falou. “Diz a si mesma
para deixar para lá. Simplesmente continuar. Com o tempo, você começa a
se perguntar o que está acontecendo e se está cando louca.”2 Finalmente
descobriu-se que Williams sofria de síndrome de Sjögren, doença que afeta
principalmente as glândulas produtoras de umidade, fazendo as pessoas
carem com a boca e os olhos secos, mas que pode também causar
disfunção em muitos órgãos como pulmões, rins, pâncreas e vasos
sanguíneos. Como muitas outras pessoas, ela cou aliviada ao saber en m
que havia uma razão objetiva, e até mesmo um nome para as atribulações
físicas que sentia.
No caso de Mee Ok, coube à própria paciente fazer o diagnóstico: não é
uma inversão de papéis rara na era da internet, em especial nos casos em
que os médicos já jogaram a toalha. “Meu corpo simplesmente continuou a
enrijecer”, recordou ela.

Era como se eu estivesse passando por uma mumi cação, uma


automumi cação ao longo do tempo. Ela ia se espalhando cada vez mais
pelo meu corpo, e a dor era simplesmente inacreditável… Eles me
davam corticoides e me diziam que eu teria que tomá-los para sempre,
que a artrite nunca sararia… que aquilo não tinha cura. Eu insisti em
fazer testes para esclerodermia, e foi aí que descobri meu diagnóstico,
seis meses depois de iniciados os sintomas.

As doenças autoimunes estão entre os grandes mistérios insolúveis da


pro ssão médica. A maioria é considerada de natureza “idiopática”, o que
signi ca apenas “de origem desconhecida”. Naturalmente, se não
conseguimos identi car a causa de uma doença, nossos esforços para curá-
la ou revertê-la carão prejudicados. Em muitos casos, a supressão dos
sintomas, ou às vezes a reparação ou a remoção cirúrgica do tecido
dani cado é o que de mais moderno a medicina tem a oferecer. Essas
medidas trazem um alívio bem-vindo para muita gente, mas não conseguem
reverter o curso da doença e, como no caso de Mee Ok, relegam uma
quantidade muito grande de pessoas à deterioração e à de ciência
prolongadas.
Por mais perturbadora que seja essa falta de clareza, tanto para médicos
quanto para pacientes, essas doenças também apresentam alguns outros
fatores intrigantes, cienti camente falando.
O primeiro mistério é por que elas estão se tornando mais frequentes.
Em muitos países ocidentais, as taxas de todas as doenças autoimunes, de
doença celíaca a DII, de lúpus a diabetes tipo 1, e até mesmo das alergias
estão aumentando de forma constante, intrigando os pesquisadores.3 “No
último meio século, a prevalência de doenças autoimunes […] aumentou de
forma acentuada no mundo desenvolvido”, observou um artigo de 2016 do
e New York Times. “Estima-se que um em cada 13 americanos tenha uma
dessas doenças muitas vezes debilitantes, e que duram em geral toda a
vida.”4 No Reino Unido, o diagnóstico da doença de Crohn mais do que
triplicou entre 1994 e 2014,5 enquanto no Canadá a taxa de DII em crianças
cresceu mais de 7% ao ano entre 1999 e 2010, atribuindo a esse país uma das
mais altas taxas dessa doença no mundo.6
Essas tendências descartam de imediato a explicação médica padrão:
causas genéticas. Seja qual for a in uência da genética, e embora ela sem
dúvida esteja presente em alguns casos, logicamente não pode explicar o
aumento de transtornos autoimunes. “Os genes não mudam num intervalo
tão curto”, disse em 2012 ao Medical News Today Virginia Ladd, diretora-
executiva da Associação Americana de Doenças Relacionadas à
Autoimunidade. “O rápido crescimento das doenças autoimunes […] sugere
claramente que há fatores ambientais em jogo.”7 Em outras palavras, alguma
coisa ou uma combinação de coisas em nosso ambiente está in amando
nosso corpo.
Para a maioria de nós, ouvir “fatores ambientais” num contexto ligado a
doenças tende a fazer nossa mente pensar em fatores materiais muito
difundidos, como poluição atmosférica, tintas com chumbo e radiação
emitida por aparelhos de telefonia celular. Uma teoria interessante, porém
não comprovada, é que o aumento do consumo de ultraprocessados é
responsável pelo aumento mundial de doenças autoimunes.8 Os estudos
ainda não identi caram esse vínculo.9 Seja como for, uma compreensão
completa da saúde e da doença requer uma visão bem mais abrangente da
palavra ambiente: uma visão biopsicossocial.
O segundo mistério é a distribuição de gênero altamente desigual das
doenças autoimunes. Cerca de 70% a 80% das pessoas atingidas são
mulheres, entre as quais essas doenças são uma causa importante de
incapacitação e morte. A artrite reumatoide, por exemplo, tem três vezes
mais probabilidade de atingir mulheres do que homens; o lúpus afeta as
mulheres numa proporção de nove para um. A doença de Mee Ok, esclerose
sistêmica, é três vezes mais comum em pessoas do sexo feminino.10 Mais
intrigante ainda é por que o desequilíbrio entre gêneros está aumentando,
como por exemplo na esclerose múltipla, doença crônica do sistema
nervoso, altamente debilitante e potencialmente vitalícia.
No Canadá dos anos 1930, a proporção do diagnóstico de EM entre os
gêneros era mais ou menos equivalente; hoje, mais de três mulheres para
cada homem recebem um diagnóstico de EM no país.11 A tendência se
re ete internacionalmente. “Há uma incidência cada vez maior de esclerose
múltipla em mulheres na Dinamarca. O risco de as dinamarquesas
desenvolverem EM mais do que duplicou em 25 anos, enquanto nos homens
se manteve praticamente o mesmo”, observou um artigo recente no Danish
Medical Journal. Então, em total sincronia com as observações de Ladd: “A
explicação para essas mudanças epidemiológicas precisa ser buscada no
entorno, uma vez que a genética só explica uma pequena parte do risco de
EM. As mudanças são rápidas demais para serem explicadas por alterações
nos genes.”12
Nenhum dos especialistas que tratou Mee Ok perguntou sobre as
condições, tanto físicas quanto emocionais, que precederam a doença que
lhe arruinou a vida. E isso apesar das numerosas pesquisas vinculando
estresse, trauma e in amação, e apesar dos múltiplos estudos que ao longo
de muitas décadas exploraram tais conexões na artrite reumatoide, na EM e
em outras doenças autoimunes. Essas linhas de investigação não só deixam
de ser exploradas, como também parecem proibidas nos círculos médicos
tradicionais. “Passei a me sentir um pouco excêntrica ao falar sobre essas
questões”, contou-me uma especialista em doenças reumatológicas num dos
hospitais-escola mais conhecidos dos Estados Unidos.

Desde que me formei, mudei drasticamente minha maneira de praticar a


medicina, pois comecei a observar em meus pacientes a relação entre o
estresse e o surgimento da doença deles, e o tamanho do papel que o
trauma, tanto psicológico quanto físico, desempenha nela.

Essa médica, que pediu anonimato por medo da oposição dos colegas
(!), pôde observar em primeira mão o que quali ca de “resultados notáveis”
entre seus pacientes, tanto em termos de recuperação quanto até, em alguns
casos, de não precisar mais tomar qualquer medicação. “Estou cercada por
estimados colegas da universidade pesquisadores, sabe, e ninguém está
olhando para essas coisas.” Ao ouvir isso, lembrei do médico de Harvard que
me disse que os médicos seguem esse tipo de o “por sua própria conta e
risco”, ainda que ele achasse que isso está mudando.
Se até mesmo os pro ssionais de medicina que se aventuram além da
ortodoxia médica podem se sentir intimidados e incompreendidos, qual
será a experiência dos pacientes? Outro aspecto lamentável da prática
médica ocidental – não universal, mas vista com demasiada frequência – é
uma hierarquia de poder que coloca os médicos como especialistas
incensados e os pacientes como receptores passivos de tratamento. Por
maior que seja a dedicação e a boa intenção dos médicos, esse desequilíbrio
compromete a capacidade de ação dos pacientes sobre a própria saúde e o
próprio processo de cura. Perguntas essenciais sobre sua vida nunca são
feitas, enquanto eles, por sua vez, não têm autocon ança su ciente para
insistir que suas intuições e percepções em relação a si mesmos possam
contribuir para o processo, quanto mais conduzi-lo.
Se os médicos de Mee Ok tivessem feito perguntas nessa linha quando
ela começou a apresentar aqueles inquietantes sintomas, teriam sabido que
ela sofrera dois abandonos importantes antes de completar 1 ano: nascida na
Coreia, foi posta num orfanato pela mãe solteira aos 6 meses. Com 1 ano, foi
adotada e levada para os Estados Unidos por um casal evangélico que a
criou segundo os mais rígidos princípios fundamentalistas. Antes de ela
completar 10 anos, a mãe adotiva teve um colapso nervoso. Em algum
momento da sua adolescência, num acesso de remorso religioso, o pai
adotivo lhe confessou ter abusado dela sexualmente durante boa parte da
primeira infância, dos 2 anos em diante. Ela havia reprimido por completo
essas lembranças, escondendo-as bem fundo abaixo da superfície da sua
consciência junto com todos os sentimentos a elas associados: dor, pânico,
raiva. Como veremos adiante ao discutir a cura, a improvável recuperação
de Mee Ok, verdadeiramente uma ressurreição do leito de morte, deve-se ao
fato de ela ter confrontado esse baú de sofrimento havia muito enterrado.
No cemitério emocional do que não podia se dar ao luxo de sentir, Mee
Ok construiu um edifício impressionante: uma personalidade positiva,
sempre disposta a tudo, que não só a impedia de sentir o próprio desespero
e a levava a ignorar as próprias necessidades, mas também a ajudou a
alcançar um sucesso muito além daquele ao que ela de fato acreditava fazer
jus. Em seu trabalho como assistente do mundialmente famoso professor, a
Mee Ok adulta achava o emprego estressante, e com frequência suportava as
tensões e pressões de todos à sua volta. “Eu na verdade não era eu mesma
quando estava lá”, disse ela. “Vivia tendo que me mostrar uma pessoa que
funcionava num nível muito mais elevado do que eu realmente funcionava.”
Esse hiperfuncionamento por cima de um abalo interno oculto é um tema
recorrente entre os muitos pacientes autoimunes com quem já deparei em
todos os meus anos de clínica e de ensino.
Imediatamente antes de a excruciante in amação nas articulações se
manifestar, Mee Ok estava num relacionamento amoroso complicado, cujos
muitos altos e baixos lhe cobraram um alto preço psíquico e que culminou
numa separação devastadora. Toda a mágoa que ela não se permitiu
externar a vida inteira, todo o seu pânico de ser abandonada, tudo isso veio
à tona quando o relacionamento terminou. Foi uma reação de luto do corpo
todo. Mais uma vez, nada em sua história, desde a infância até o presente,
foi considerado um indício pelos especialistas altamente treinados que
trataram sua esclerodermia. “Meu corpo na verdade parecia um campo de
batalha, e eu estava perdendo”, disse Mee Ok. Eu entendia a língua que ela
estava falando: há muito tempo imagino a doença autoimune como algo
semelhante a um poderoso exército invadindo a própria pátria, num
violento motim contra o corpo. De fato, sem disporem de um escoamento
consciente e na falta de uma resolução, as emoções in amadas de Mee Ok se
rebelaram, manifestando-se na in amação de seus tecidos.
Hoje em dia, os especialistas em microbiologia falam em “in amação
neurogênica”, uma in amação induzida pelo estresse disparada por
descargas do sistema nervoso, sistema que hoje entendemos ser
poderosamente in uenciado pelas emoções.13 E há pesquisas que
relacionam adversidades precoces, tais como os traumas suportados por
Mee Ok na infância, com in amação na vida adulta. Um estudo americano
recente constatou que o abuso emocional e físico na infância mais do que
dobra o risco de lúpus eritematoso sistêmico, sendo a in amação um dos
caminhos prováveis.14 Conexões entre o estresse e um comprometimento
autoimune foram encontradas em outros estudos.15 Em 2007, cientistas
britânicos constataram que adultos que tinham sofrido maus-tratos na
infância apresentavam taxas sanguíneas mais elevadas de determinadas
substâncias indicadoras de in amação produzidas no fígado,16
independentemente de comportamentos pessoais e considerações a respeito
do estilo de vida. “Os maus-tratos na infância são um fator de risco
previamente não descrito, independente e evitável para in amação na idade
adulta”, escreveram os pesquisadores.17 “A in amação talvez seja um
mediador de desenvolvimento importante para relacionar experiências
adversas no início da vida a má saúde na idade adulta”, acrescentaram com
cautela. Muitos estudos desde então atestam não se tratar de “talvez”.
Alguns médicos já notaram uma relação entre a artrite reumatoide e
alguns tipos ou aspectos da personalidade. Ainda teremos muito mais a
dizer sobre personalidade no capítulo 7, mas, para evitar mal-entendidos, é
bom fazer um rápido esclarecimento aqui. O que denominamos traços de
personalidade, além de re etirem um temperamento e qualidades genuínas
natas, expressam também os modos como as pessoas, na infância, tiveram
de se adaptar ao seu ambiente emocional. Eles re etem muitas coisas que
não são nem inerentes nem imutáveis em relação a alguém, por mais estreita
que seja a identi cação da pessoa com elas. Tampouco se trata de falhas de
caráter: embora possam nos causar di culdades, esses traços surgiram como
modos de sobrevivência.
Já em 1892, o grande médico de origem canadense William Osler, da
Universidade Johns Hopkins – posteriormente condecorado como cavaleiro
pela rainha Vitória por suas contribuições para a medicina britânica – havia
notado “a associação da doença com choque, preocupação e tristeza”. Muitos
anos mais tarde, uma pesquisa de 1965 revelou a prevalência, em pessoas
com tendência a artrite reumatoide, de uma série de traços de abnegação:
um “comportamento compulsivo de autossacrifício em relação aos outros,
de supressão da raiva e de preocupação excessiva com aceitação social”.18
Um especialista canadense em doenças autoimunes mais perceptivo do que
o habitual, C. E. G. Robinson, escreveu em 1957 que seus pacientes com AR
“em geral se esforçavam muito para agradar, tanto nos contatos pro ssionais
quanto pessoais, e das duas uma: ou ocultavam a hostilidade, ou a
expressavam de modo indireto. Muitos eram perfeccionistas”. A ocorrência
da doença era muitas vezes antecedida por estresse. Sabiamente, ele
acrescentou:
Com frequência é necessário tanto tempo para lidar com os problemas
emocionais do paciente acometido por artrite reumatoide crônica
quanto com os transtornos articulares ou sistêmicos […] Penso que o
aspecto emocional e psicológico de muitos pacientes reumatoides seja de
suma importância.19

Quatro décadas depois de Robinson publicar seus comentários,


pesquisadores americanos também constataram que o grau de estresse
interpessoal estava correlacionado com a gravidade da doença num grupo
de mulheres com artrite reumatoide.20
Um bom exemplo é o de Julia, 42 anos, moradora de uma das províncias
da região das pradarias do Canadá diagnosticada com artrite reumatoide
aos 29. Atingida por trás num acidente de carro, no dia seguinte ela sentiu
um pouco de dor no ombro esquerdo, que logo se resolveu… apenas para
ressurgir em diversas articulações do corpo inteiro, migrando com uma
imprevisibilidade espantosa. “A dor aparecia em uma articulação e depois
sumia”, contou ela. “Aí ao mesmo tempo eu acabava com 26 articulações
todas in amadas simultaneamente.” Exames de sangue revelaram um dos
indicadores de artrite reumatoide muito elevado, o que cravou o
diagnóstico. Seu per l emocional estava alinhado às personalidades hiper-
responsáveis e supressoras da raiva descritas na literatura, traços
desenvolvidos numa família de origem em que o pai era alcoólatra e a mãe
uma mulher emocionalmente dependente, para quem ela não pudera revelar
o abuso sexual que tinha sofrido de um amigo da família que vitimizara
também sua irmã mais nova, que Julia tentara proteger.
Nenhum dos médicos que tratou Julia nunca lhe perguntou sobre sua
vida interior. Qual a relevância disso? A relevância é que os padrões de
personalidade do tipo observado por Robinson e outros são reversíveis,
portanto a doença também pode ser. Apesar de ter sido informada de que
sua artrite reumatoide teria uma progressão inevitável, Julia hoje está livre
de sintomas e de medicação. “Hoje em dia tenho lindas conversas com
minha artrite reumatoide; só de contar me dá vontade de chorar”, disse ela.
“Estou me sentindo ótima.” O que tal a rmação poderia signi car, e por que
ela causava em Julia uma emoção tão profunda? Voltaremos a essas “lindas
conversas” mais adiante, ao falarmos sobre a cura.21

TRISTEZA E IRRITAÇÃO: MIRAY, BIANCA E A ESCLEROSE MÚLTIPLA

Miray é uma médica turca de 51 anos que hoje trabalha como coordenadora
de estudos clínicos num hospital canadense. A primeira vez que foi
acometida por diplopia, ou visão dupla, ela estava com 18 anos, mas sem as
técnicas de imagem avançadas disponíveis hoje no começo não foi
diagnosticada. “Consultei um oalmologista, e ele disse: ‘ah, isso é só
temporário’”, lembrou ela.

Então tomei corticoides por seis semanas e passou. Aos 22 anos, tive
várias crises. Toda vez que encontrava minha mãe, eu começava a ver
dobrado. Fui estudar em outra cidade e cou tudo bem, mas sempre que
voltava para Istambul tinha outro ataque toda vez que via minha mãe.

Aos 24 anos, Miray fez uma ressonância magnética que con rmou o
diagnóstico de esclerose múltipla. Depois de emigrar para o Canadá, passou
anos livre de qualquer sintoma. Durante a gravidez, porém, seu marido
passou por alguns problemas pro ssionais e tornou-se abusivo. “Ele sentia
uma raiva, um ódio das mulheres”, disse ela, “e projetava tudo em mim.” Um
estresse levava a outro.

Como ele não ganhava dinheiro su ciente para contratar alguém, eu


trabalhava no hospital de manhã até a tarde, depois tinha que car na
loja das quatro à meia-noite. Quando dei à luz, as coisas pioraram. Ele
começou a gritar e a car extremamente bravo. Vivia me diminuindo,
zombando de mim e me ridicularizando.
Miray acabou saindo de casa, e depois de muitos anos reviu os pais.
Quando isso aconteceu, ela em pouco tempo parou de andar, o que perdura
até hoje. Os gatilhos emocionais de medo e raiva reprimidos que lhe tinham
sido instilados na infância eram ativados na presença da família, e isso por
sua vez in amava seu sistema nervoso.
A esclerose múltipla é outra doença autoimune para a qual as histórias
pessoais, a adversidade na infância e a in uência decisiva do estresse já
foram extensamente estudadas. O primeiro a descrever essa doença, o
médico francês Jean-Martin Charcot, às vezes chamado de pai da neurologia
moderna, propôs em 1872 que a EM era resultado de “tristeza e irritação
prolongadas”. Como no caso das percepções de seu contemporâneo mais
jovem e também gigante da medicina William Ostler sobre a artrite
reumatoide, desde então muitas informações vieram se somar à formulação
pioneira de Charcot. “A maioria dos pacientes de EM cresceu num ambiente
familiar infeliz”, revelou um estudo de 1958 em dois hospitais de Montreal.
“A discórdia conjugal, os lares desfeitos, o alcoolismo e a falta de amor e de
carinho de pai e mãe foram apresentados como motivos de infelicidade.” A
grande maioria havia sofrido um estresse emocional prolongado antes do
surgimento da doença. Igualmente importantes como gatilhos de recaída
eram “preocupações de natureza nanceira, vida doméstica infeliz e
aumento de responsabilidade, seja isoladamente ou combinados a outros
fatores como cansaço, excesso de esforço físico, excesso de trabalho,
acidentes, lesões e parto”.22 Uma década mais tarde, outro estudo (do qual
participou George Engel, cunhador do adjetivo “biopsicossocial”) também
concluiu que “a maioria dos pacientes […] relatou experiências psicológicas
estressantes anteriores ao início dos sintomas que acabaram levando ao
diagnóstico de esclerose múltipla, achados corroborados por membros da
família quando disponíveis”.23
Os indícios não param de se acumular. Constatou-se que pacientes de
EM que passam por estresses de vida importantes apresentam uma
incidência quase quatro vezes maior de crises da doença.24 Por m, uma
análise importante da literatura apresentada numa conferência internacional
em Portugal, em 2013, constatou uma série de padrões em pacientes com
EM, entre eles:

mais estresse indesejado ou acontecimentos traumáticos ocorridos de


seis meses a dois anos antes do início dos sintomas;
uma correlação cumulativa entre estresse e recaída: após um
acontecimento de vida estressante, o risco de recaída duplica ou
triplica; após três ou mais acontecimentos, o risco aumenta de cinco a
sete vezes;
históricos de trauma na infância, duas ou três vezes mais do que a
população geral;
históricos de abuso físico e sexual correlacionados a taxas de recaída
mais elevadas;
estarem menos em contato com as próprias emoções de modo geral, e
portanto serem menos capazes de se proteger do estresse;
apoio social para mitigar o efeito dos estresses da vida.25

Ao longo dos anos, entrevistei dezenas de pessoas com EM, muitas delas
tempos antes de ter conhecimento desses estudos. Ainda não encontrei uma
só exceção a esses achados gerais. A “tristeza e irritação prolongadas” a que
Jean-Martin Charcot se referiu um século e meio atrás têm uma in uência
brutal na presença e na gravidade da doença. Assim como em outros
distúrbios autoimunes, em praticamente todos os casos os padrões da
infância que tinham levado essas pessoas a se tornarem excessivamente
exigentes, hiper-responsáveis e emocionalmente estoicas em relação às
próprias necessidades eram evidentes, assim como o eram os estresses
anteriores à doença, como por exemplo con itos interpessoais, crises
familiares, perda de um relacionamento ou obrigações suplementares no
trabalho.
Bianca, médica assim como Miray, também teve visão dupla (diplopia)
como primeiro sintoma da EM. Hoje com 37 anos, ela apresentou o sintoma
pela primeira vez aos 20 e poucos, num período de estresse com as provas
da faculdade. “Ao longo dos anos”, disse-me ela quando falamos pela
internet, ela de sua casa em Bucareste e eu de Vancouver,

durante todo o tempo em que tive visão dupla eu estava me preparando


para provas ou passando por muito estresse no trabalho. Hoje faço a
conexão de que os outros sintomas, como dormência ou sensação de
formigamento ou paralisia, em geral acontecem quando tenho
problemas pessoais e emocionais.

Ao contrário da expectativa médica, Bianca fez sua doença funcionar a


seu favor. Ela aprendeu a torná-la sua amiga, e a se permitir ser instruída
por um distúrbio que a maioria de nós naturalmente consideraria pura falta
de sorte. “Passei a vida inteira fazendo mais do que precisava, trabalhando
demais e tentando agradar aos outros”, disse ela. “Com a EM, nalmente tive
motivo para relaxar e me concentrar em mim mesma.”

POR QUE AS DOENÇAS AUTOIMUNES ESTÃO AUMENTANDO?

Já que as explicações genéticas não acertam o alvo, a caça aos esquivos


“fatores ambientais” prossegue: no mundo moderno, necessariamente
haverá muitos.26 Acredito, porém, que um desses fatores se destaque, seja
onipresente e na maioria dos casos tristemente ignorado. Nesse caso, o
próprio tratamento dos distúrbios in amatórios oferece uma pista essencial
e até mesmo óbvia de suas origens, pista essa que pode ajudar a solucionar o
mistério de onde no mundo essas doenças provêm. Nós, médicos, com
frequência receitamos grandes quantidades de hormônios do estresse
sintéticos para in amações da pele, das articulações, do cérebro, dos
intestinos, dos pulmões, dos rins e assim por diante. Fazemos isso por um
bom motivo: os hormônios muitas vezes aliviam ou melhoram os sintomas,
ainda que com muitos efeitos colaterais potencialmente negativos. No
entanto, raramente nos ocorre perguntar a nós mesmos ou a nossos
pacientes se o estresse em si teria um pouco a ver com a doença que estamos
tratando.
Muitos indícios apontam para essa possibilidade. Um estudo sueco
recente do Journal of the American Medical Association mostrou que pessoas
com transtornos relacionados ao estresse tinham um risco
signi cativamente maior de desenvolver uma doença autoimune.27 De
modo revelador, aqueles cuja doença mental relacionada ao estresse tinha
sido tratada com medicamentos do tipo ISRS – a mais receitada classe de
antidepressivos,28 entre os quais o mais conhecido provavelmente é o Prozac
– tinham um risco menor para a autoimunidade: uma indicação clara do
“corpomente”, para usar a expressão de Candace Pert que designa a relação
entre psicologia e siologia em humanos, e o papel das emoções nas
doenças.
E não só em humanos. Num estudo de 2013, ratos de laboratório foram
submetidos a três semanas de estresse a m de imitar “a diversidade de
acontecimentos estressantes na vida humana diária”. Isso signi cou
mergulhar os animais em água fria, emitir cheiros de predadores na sua
direção, obrigá-los a suportar luzes fortes, con namento ou isolamento, ou
seja: estresses imprevisíveis, de duração variável, aos quais eles não
conseguiam se adaptar com facilidade. Os pesquisadores chamaram isso de
“estresse crônico variável”. Constatou-se que os ratos expostos a essas
situações tinham um risco elevado de autoimunidade patogênica, em outras
palavras, uma atividade imunológica direcionada contra si mesmos.29
Acredito que a vida em nossa cultura atual transforma qualquer um de
nós em ratos de laboratório submetidos a um “estresse crônico variável” fora
do nosso controle.30
Um alerta necessário: ao trazer para o primeiro plano o papel dos fatores
biográ cos nas doenças, devemos prestar atenção para evitar a
culpabilização. “Algumas pessoas veem o lúpus como um agressor externo”,
escreveu uma britânica que sofre da doença. “Mas pre ro pensar que z isso
comigo mesma […] Esforcei-me demais, vivi no limite demais, me estressei
demais. Porém, apesar das consequências, eu não poderia mudar o jeito
como vivi minha vida. Isso é o que eu sou, portanto essa doença também é
quem eu sou.”31
Há sabedoria nessa visão, mas ouço nela também uma autoacusação
desnecessária e uma falta de compaixão demasiado típica. Ninguém é sua
doença, e ninguém fez isso consigo mesmo, pelo menos não num sentido
consciente, proposital ou culposo. A doença é o desfecho de gerações de
sofrimento, de condições sociais, de condicionamento cultural, de traumas
de infância, da siologia suportando o peso do estresse e da história
emocional das pessoas, tudo isso em interação com o entorno físico e
psicológico. Sim, ela é com frequência uma manifestação de traços de
personalidade intrínsecos, mas essa personalidade não é mais quem nós
somos do que as doenças às quais pode nos predispor.
No entanto, mesmo que nossa autora britânica se engane ao se
identi car excessivamente com a própria doença, mesmo assim ela está nos
apontando um profundo e fértil conjunto de perguntas. Será que uma
doença como “agressora externa” é sequer concebível em se tratando de
distúrbios tão crônicos, tão fora de controle quanto os que examinamos
neste capítulo?32 E se a doença na verdade não for uma entidade xa, mas
um processo dinâmico expressivo de vidas reais em condições concretas?
Que novos (ou antigos) caminhos para a cura, impensáveis na perspectiva
médica predominante, poderiam advir de uma mudança tão paradigmática
de perspectiva?
6

Não é uma coisa: a doença


como processo

O câncer é tanto uma doença das células quanto o


engarrafamento é uma doença dos carros. Um estudo de todo
o ciclo de vida do motor de combustão interna não ajudaria
ninguém a entender nossos problemas de tráfego […] Um
engarrafamento se deve a um fracasso do relacionamento
normal entre os carros dirigidos e seu entorno, e pode ocorrer
quer os carros em si estejam funcionando normalmente ou
não.
– SIR DAVID SMITHERS, The Lancet, 1962

V, antes conhecida como Eve Ensler,1 ganhou fama nos anos 1990 como
autora de Os monólogos da vagina, peça teatral quali cada pelo e New
York Times como “provavelmente a mais importante peça política da última
década”. Seu estrondoso sucesso nos palcos deu origem a uma vida de
ativismo. Destemida advogada e defensora dos direitos das mulheres, V
percorreu o mundo para testemunhar as sangrentas consequências do
estupro em massa e da brutalidade misógina na Bósnia e na República
Democrática do Congo, dilacerada pela guerra.
O político, para V, é pessoal. Em seu dilacerante mas triunfal livro de
memórias, em que conta sobre ter sobrevivido a um câncer de útero em
estágio 4, In the Body of the World (No corpo do mundo), ela faz uma
pergunta de franqueza e sensibilidade espantosas: “Será que eu tenho câncer
de estupro?” Desde uma idade muito tenra e ao longo de muitos anos, seu
pai a violentou sexualmente, agressão crônica à qual se sobrepuseram vários
abusos emocionais, e posteriormente uma violência física aterrorizante.
Durante todo esse tempo, sua mãe, estropiada pela herança do próprio
sofrimento infantil, permaneceu alheia e/ou calada. A Eve criança sentia
estar “traindo” a mãe por ter um caso com o próprio pai. “Quando se é
criança e seu próprio pai comete incesto, você se sente a traidora”, disse-me
ela numa entrevista pela internet. “E minha mãe me odiava por isso. Me
odiava pelo quanto ele me adorava.” A autoculpabilidade tóxica é um dos
tormentos impostos à criança traumatizada. V passou grande parte da vida
se odiando, como acabam fazendo muitas vítimas de abuso precoce.
“Como peguei isso?”, escreve ela sobre o início do câncer que teve.

Teria sido a preocupação diária, durante 57 anos, de não ser boa o


bastante? Teria sido a pressão de encher o Madison Square Garden com
18 mil pessoas ou o Superdome com 40 mil? Teria sido a fala de 200 mil
mulheres repetida em centenas de cidadezinhas por tantos anos após
cada apresentação, após cada discurso, mulheres en leiradas me
mostrando suas cicatrizes, suas feridas, suas tatuagens de guerra? Teriam
sido os pesticidas dos gramados suburbanos? Teria sido o fato de o meu
primeiro marido transar com uma amiga minha? Teria sido por eu
transar com homens casados? Teria sido a falta de limites? Teria sido o
excesso de muros?

Quando lhe perguntei o que ela pensa hoje, V fez um prefácio à sua
resposta com uma risada talvez sardônica. “Eu acho que é uma combinação
de tudo isso”, falou. “Mas acho que, se havia algum único motivo subjacente
para eu ter cado doente, ele não foi reconhecido… eu não tinha ido fundo
o su ciente no processamento do meu trauma.” Ela então fez uma profunda
observação sobre a natureza da doença em si:

Uma doença não é igual a uma coisa. Ela é um uxo de energia, uma
corrente; é uma evolução ou involução que ocorre quando não se está
desperto e conectado, e o trauma essencialmente governa sua vida. Acho
que é um baita erro identi car a doença como uma coisa, porque isso a
transforma em matéria dura quando ela na verdade é uma condição bem
mais psicológica, espiritual, emocional.

Esse ponto de vista conquistado a duras penas suscita algumas perguntas


desconhecidas e potencialmente férteis. E se, escreve ela,

quando você adoecesse não estivesse num estágio [de uma doença], mas
sim num processo? E se o câncer fosse um professor, assim como a
desilusão amorosa, ou conseguir um emprego novo, ou ir à escola? E se,
em vez de ser isolado e de nido por alguma categoria terminal, você
fosse identi cado como alguém no meio de uma transformação capaz de
aprofundar a própria alma e de abrir o próprio coração?

A sobrevivência de V a um diagnóstico quase terminal muito se deveu


aos heroicos esforços e capacidade da medicina moderna, que incluíram
cirurgias complexas e quimioterapia. Na sua opinião, porém, não foi só isso
que a salvou. A própria V gerou um poderoso complemento para essas
intervenções na sua maneira de abordar a cura: uma disposição para
vivenciar a doença não como uma “coisa”, um inimigo externo, mas sim
como um processo que abarca sua vida inteira – presente, passado e futuro –
e, em última instância, até como professora.

ALÉM DA METÁFORA DA GUERRA


Estamos acostumados a ver a doença como uma coisa da qual se livrar ou
um inimigo a combater, como na expressão “guerra contra o câncer”.
(“Guerra” essa, só para deixar registrado, que tem passado longe de ser
vencida.)2 Algum dia, dizemos a nós mesmos, com pesquisas su cientes,
nós como sociedade “venceremos” e erradicaremos o câncer; enquanto isso,
mantemos uma atitude tenazmente desa adora, conforme expressada na
hashtag viral #FuckCancer. Nossa linguagem cotidiana dá voz à nossa
postura combativa: ouvimos sempre falar em amigos ou familiares “lutando”
corajosamente contra a EM; ou eles prevalecerão nessa batalha, ou então
“sucumbirão”.
Pode ser que essas metáforas bélicas sejam atraentes porque sua força
está à altura de nossos sentimentos de raiva e desespero; só que isso não as
torna úteis. Num trabalho anterior, citei a oncologista canadense Karen
Gelman, uma renomada especialista em câncer de mama, que vê com
descon ança a representação militar do tratamento e da pesquisa do câncer.
“O que acontece no corpo é uma questão de uxo: há as entradas e há as
saídas”, disse ela

e não se pode controlar todos os aspectos desse uxo. Precisamos


compreendê-lo, saber que há coisas que podemos in uenciar e outras
que não. Não se trata de uma batalha, mas de um fenômeno de puxa-
empurra para encontrar equilíbrio e harmonia, de sovar as forças em
con ito até formar uma só massa.3

Reparei na estreita semelhança entre o seu uso da palavra uxo e a


linguagem de V: uma fala como especialista médica, a outra por meio de
uma compreensão duramente conquistada e de origem subjetiva.
Para além das declarações de guerra, existe outra classe ainda mais
popular de equívocos de compreensão que obscurecem nossa visão da
doença: “Eu tenho câncer.” “Ela tem EM.” “Meu sobrinho tem TDAH.” Em
cada uma dessas frases está a pressuposição não veri cada de que existe um
eu (ou um alguém) distinto e independente da coisa chamada doença que
esse “eu” tem, como por exemplo na frase “eu tenho uma TV de tela plana”.
Aqui está minha vida, e ali a doença que nela se aboletou. Vista assim, a
doença é algo externo dotado de uma natureza própria, que existe
independentemente da pessoa em quem surge. Considerando aonde essa
perspectiva nos levou, está na hora de pensar em uma nova.
Já demos uma olhada nos incontáveis caminhos hormonais,
neurológicos, moleculares, imunológicos, intracelulares e epigenéticos que
tornam nossa siologia inseparável de nossa vida emocional, psicológica,
espiritual e social. A compreensão de V do trauma e do estresse como fontes
importantes do processo que quase a acabou matando está completamente
alinhada com a ciência moderna. Num estudo britânico de cinco décadas
que acompanhou quase 10 mil pessoas do nascimento até os 50 anos de
idade, constatou-se que a adversidade no início da vida – por exemplo, em
caso de abuso, desfavorecimento socioeconômico, di culdades familiares –
aumentava muito o risco de câncer antes dos 50 anos. Mulheres que
vivenciavam duas ou mais adversidades desse tipo tinham um risco duas
vezes maior ao chegar à meia-idade.4
“Esses achados sugerem que o risco de câncer pode ser in uenciado pela
exposição a condições e acontecimentos estressantes no início da vida”,
escreveram os pesquisadores, de novo empregando uma linguagem
cuidadosamente reticente com os verbos “sugerem” e “pode”. Para minha
sensibilidade médica, por mais preocupado que eu esteja com a maneira
como as pessoas adoecem e encontram a cura, esses resultados,
corroborados incontáveis vezes por vários outros estudos, não sugerem coisa
alguma: eles gritam bem alto. O impacto desorganizador dos hormônios do
estresse no sistema imunológico como risco de câncer está longe de ser um
segredo da ciência. Também já vimos como o estresse e o trauma são
condutores importantes de in amação, outra engrenagem central no
aparato que provoca o câncer. De forma parecida, meninas vítimas de abuso
sexual e físico têm, na idade adulta, um risco maior de apresentar
endometriose, doença dolorosa e muitas vezes debilitante que aumenta o
risco do câncer de ovário e cujas origens intrigam o pensamento médico
convencional.5 Considerado da perspectiva psiconeuroimunológica mente-
corpo, o quebra-cabeça se torna bem menos difícil de resolver.6
Rea rmando uma questão essencial para o nosso tema: e se víssemos a
doença como um desequilíbrio do organismo inteiro, não só como uma
manifestação de moléculas, células ou órgãos invadidos ou desnaturados
pela patologia? E se aplicássemos as descobertas da pesquisa ocidental e da
ciência médica num arcabouço de sistemas, buscando todas as conexões e
condições que contribuem para a doença e para a saúde?
Tal reestruturação revolucionaria nosso modo de praticar a medicina.
Em vez de tratar a doença como uma entidade sólida que impõe ao corpo
sua malévola vontade, estaríamos lidando com um processo, processo esse
impossível de separar de nossa história pessoal e do contexto e da cultura
em que vivemos. Essa mudança de abordagem tem muito a seu favor, e não
só por levar em conta a biologia interpessoal. Quando deixamos de ver a
doença como uma coisa concreta e autônoma, dotada de uma trajetória
predeterminada, e dispomos da ajuda adequada e de uma vontade de olhar
tanto para dentro quanto para fora, podemos começar a exercer alguma
in uência na questão. A nal, se a doença é a manifestação de algo em nossa
vida mais do que apenas sua cruel perturbadora, nós temos alternativas:
podemos tentar buscar novas compreensões, fazer novas perguntas, talvez
novas escolhas. Assumimos nosso lugar de direito como participantes ativos
do processo, em vez de continuarmos a ser suas vítimas, impotentes a não ser
pela nossa con ança em milagrosos pro ssionais da medicina.
A doença em si é tanto um clímax do que veio antes quanto um
indicador de como as coisas podem se desenrolar no futuro. Nossa dinâmica
emocional, que inclui nosso relacionamento com nós mesmos, pode ser um
dos fatores determinantes desse futuro. Já foi demonstrado que uma atitude
de impotência e desesperança no momento do diagnóstico, por exemplo,
exerce um efeito adverso importante na sobrevivência de mulheres com
câncer de mama mesmo 10 anos depois.7 Inversamente, uma diminuição
dos sintomas depressivos está associada a uma sobrevida mais longa.8
Mesmo num estudo com mulheres que precisam fazer biópsia devido a
anomalias no colo do útero identi cadas em exames de rotina, aquelas que
tinham uma visão desanimadora da vida antes do diagnóstico tinham muito
mais probabilidade de receber um diagnóstico de câncer.9 Nos homens, a
capacidade de o sistema imunológico reagir ao câncer de próstata diminuía
naqueles com tendência a reprimir a raiva.10 Outro estudo sobre a próstata
constatou que o apoio social reduzia esse risco.11
Steven Cole12 é um pesquisador prolí co, cujo trabalho lançou uma
forte luz sobre o processo das doenças. “Hoje sabemos que a doença é um
processo de longo prazo”, conta ele, “um processo siológico que ocorre
dentro do corpo, e o modo como vivemos in uencia quão rápido isso vai
nos alcançar num nível clínico… Quanto mais entendemos sobre as
doenças, menos claro ca quando se tem uma e quando não.” Dentro do
mito do normal, é claro, esse tipo de nuance é praticamente
incompreensível: ou a pessoa está “doente” ou então está “bem”, e em que
campo ela se encontra deveria ser uma coisa óbvia. Mas na verdade não
existe uma linha divisória entre a doença e a saúde. Ninguém de repente
“pega” uma doença autoimune nem um câncer, embora essas doenças
possam se fazer notar de modo súbito e com um impacto brutal.
Poucos anos atrás, a revista e New Yorker publicou um artigo
intitulado “O que há de errado comigo?”, um comovente relato em primeira
pessoa de mais uma doença autoimune “idiopática”.13 O artigo era também
um retrato perfeito da doença como um processo de longo prazo, e não uma
entidade distinta. “Eu adoeci”, escreve a autora com um humor dolorido,

do mesmo jeito que Hemingway diz que se empobrece: “primeiro aos


poucos, depois de repente.” Uma forma de contar esta história é dizer
que passei muito tempo doente, no mínimo uns 12 anos, antes de
qualquer médico que consultei acreditar que eu tivesse qualquer coisa.
Outra forma é dizer que ela começou em 2009, o estressante ano em que
minha mãe morreu, quando fui subjugada por um cansaço debilitante,
meus nódulos linfáticos passaram meses doendo e um exame sugeriu
que eu tinha contraído recentemente o vírus de Epstein-Barr.
Os sinais característicos do processo da doença estão presentes: a
duração prolongada, a incompreensão dos pro ssionais diante da falta de
marcadores especí cos no exame físico, nas análises de sangue ou nos
estudos de imagem; e o estresse interpessoal repentino que nalmente
acarreta as manifestações plenas da doença. Mais para o nal do texto, a
autora menciona uma pista reveladora quanto à origem de sua doença, pista
que deveria ter sido um sinal para os médicos que a trataram: “Em maio,
meu endocrinologista cogitou, depois de várias ressonâncias magnéticas,
que eu pudesse ter um transtorno ‘idiopático’ do hipotálamo, provavelmente
sem tratamento.”
A pista? Já vimos que o hipotálamo é o centro do aparato do estresse do
corpo e do cérebro, um modulador-chave da atividade imunológica, e o
ápice do sistema nervoso autônomo. É ele quem traduz em dados
siológicos nosso funcionamento emocional, e portanto nossos
relacionamentos interpessoais e nossa relação com nós mesmos. Traduz
medo, perda, tristeza e estresse em reações em nosso uxo sanguíneo,
órgãos, células, nervos, nódulos linfáticos, mensageiros químicos e
moléculas por todo o organismo. Assim, de um ponto de vista mais amplo
da biologia interpessoal, a doença da autora no m das contas talvez não
fosse tão idiopática assim, mas o desfecho compreensível de um estresse
crônico e agudo. Ainda que impossível de tratar com as técnicas médicas
atuais, ela não precisa ser impossível de curar, principalmente se incluirmos
uma avaliação mais sensata e baseada na ciência da complexidade
interconectada do processo da doença e da unidade “corpomente”.
Voltando ao tema do câncer, o trabalho de Cole e seus colegas mostrou
que a ativação da resposta do corpo ao estresse é capaz de promover o
crescimento e o espalhamento de tumores. É importante ressaltar, como eles
alertaram,

que o estresse em si não causa câncer; no entanto, dados clínicos e


experimentais indicam que o estresse e demais fatores, tais como estado
de ânimo, mecanismos de adaptação e apoio social, podem in uenciar
de forma signi cativa os processos celulares e moleculares subjacentes
que facilitam o crescimento de células malignas.14

Isso levanta uma questão-chave. O estresse não pode “causar” câncer


pela simples razão de que nosso corpo naturalmente contém células
potencialmente malignas a todo instante. O corpo contém mais de 37
trilhões de células, todas em estágios variados de desenvolvimento,
maturidade e decomposição. A transformação maligna é uma ocorrência
frequente, um subproduto acidental da divisão celular natural. Em
circunstâncias normais, as defesas do organismo conseguem eliminar essas
ameaças ao bem-estar. Sabemos por exemplo, graças às autopsias, que
muitas mulheres têm células de câncer de mama, da mesma forma que
muitos homens têm células de câncer de próstata, e nunca desenvolvem
câncer. A pergunta é: o que leva a evolução dessas células a uma doença
clínica? O que impede o sistema imunológico de enfrentar com sucesso a
ameaça interna? É aí que o estresse desempenha seu papel incendiário: por
meio da liberação de proteínas in amatórias na corrente sanguínea, por
exemplo, proteínas capazes de causar danos ao DNA e impedi-lo de se
autorreparar diante de transformações malignas. Essas proteínas, chamadas
citoquinas, podem também inativar genes que normalmente impediriam o
crescimento de um tumor, capacitar mensageiros químicos que sustentam o
crescimento e a sobrevivência de células tumorais, estimular a bifurcação de
vasos sanguíneos que levam nutrientes para alimentar o tumor e minar o
sistema imunológico. Mesmo nos níveis celular e molecular, a geração de má
saúde é um processo multifacetado e com muitos passos.
Em 1962, o respeitado oncologista britânico David Smithers publicou
um artigo de força profética. Ele explorou o processo do câncer: não como
uma doença de células individuais descontroladas, mas como a
manifestação de um ambiente em desequilíbrio, “apenas o [acontecimento]
terminal numa cadeia progressiva de circunstâncias bem mais longa e sem
um ponto inicial de nido”. Médicos e pesquisadores não vivenciam a
“qualidade essencialmente dinâmica do câncer”, escreveu ele; “eles veem seus
efeitos estáticos, não o processo em ação”.15 A atividade celular, assinalou
Smithers, “só é possível em relação ao seu entorno, e nenhuma de suas ações
pode ser explicada apenas pelas leis que governam eventos iniciados
intracelularmente”. Essa presciente a rmação já foi mais do que validada
pelo meio século de pesquisa de lá para cá.
“Hoje tenho uma visão bem mais complexa da causalidade”, a rmou
Steve Cole.

Se você pega uma doença, toda uma série de coisas precisa ter dado
errado. Parte disso pode ter a ver com seus genes; parte pode ter a ver
com a exposição a algum patógeno. Parte ainda tem a ver com uma vida
dura, passível de causar desgaste e danos ao corpo e ao que sem isso
seriam tecidos resilientes. É melhor pensar nesse processo como uma
causalidade em várias etapas… Uma das coisas que muitas doenças têm
em comum é a in amação, que age como uma espécie de fertilizante
para o seu desenvolvimento. Descobrimos que quando nos sentimos
ameaçados ou inseguros, especialmente ao longo de um período
prolongado, nosso corpo está programado para ativar os genes
in amatórios.

UMA MÉDICA CURA A SI MESMA

Ameaçada e insegura durante um período prolongado foi exatamente como


a obstetra e ginecologista Lissa Rankin se sentiu desde a infância, estado
emocional que sua formação em medicina só fez exacerbar. Seu livro, e
Anatomy of a Calling (A anatomia de uma vocação), começa com um relato,
digno de um pesadelo, de como ela, então residente em medicina, teve que
passar a noite inteira correndo de uma sala de parto para outra, lidar com
sucessivos partos complicados, dar suporte a pais depois que seus quatro
bebês morreram, enquanto era o tempo todo repreendida por seus
superiores para sufocar a própria tristeza, mesmo na privacidade do
vestiário. “Os médicos se tornam mestres em sufocar as próprias emoções”,
disse ela. “Não podemos chorar quando estamos sofrendo ou quando
alguém nos magoou, nem quando camos tristes.” Conversei recentemente
com ela, que mora na Califórnia. “Na escola de medicina, eu era assediada
sexualmente o tempo inteiro pelos meus professores de cirurgia”, contou ela.
“O tempo inteiro. Tinha que aguentar e pronto… Nunca procurei o diretor
da faculdade, nunca contei para ninguém nem pedi proteção, porque isso
fazia parte da minha ferida: eu não tinha permissão para pedir ajuda, nem
para ser ‘carente’ ou reclamar.”
Aos 27 anos, Rankin deu entrada na unidade coronariana do hospital
em que trabalhava por causa de um preocupante episódio de taquicardia
que não reagia às medidas não invasivas habituais. Após ser tratada com
eletrochoques para restabelecer um ritmo cardíaco normal, ela foi mandada
direto de volta ao trabalho. Aos 33, já tomava vários remédios para
diferentes problemas, entre eles três para hipertensão e palpitações, anti-
histamínicos e um corticoide – hormônio do estresse, lembremos –, além de
injeções semanais para alergia, que segundo ela precisaria tomar até o m
da vida. Ela também foi tratada de uma anomalia no colo do útero, um
estágio anterior ao câncer que ressurgiu logo depois da intervenção. Durante
todo esse tempo – eis algo que vai soar familiar – nenhum médico lhe
perguntou que estresses poderiam estar afetando-a, promovendo os
problemas autoimunes e potencializando malignidades.
Hoje em dia, Rankin goza de plena saúde e não toma remédio algum.
No seu caso, a cura não veio de um tratamento médico convencional, mas
graças à transformação pessoal que ela foi guiada a realizar, jornada iniciada
quando, aos 35 anos, chegou às raias do suicídio. “Seis meses depois de
pedir demissão do trabalho, eu já tinha parado de tomar todos os meus
remédios”, relata ela, hoje mãe, curadora espiritual, orientadora de estudos e
autora de vários livros. Sua principal percepção foi reconhecer a vida como
um terreno para as diversas doenças das quais sofria, tanto físicas quanto
mentais: ver que elas não eram entidades separadas, mas sim processos
dinâmicos que expressavam suas interações com seu mundo. “Eu sempre
tinha sido o estereótipo de uma boa moça: superestudiosa, primeira aluna
da turma, sempre me esforçando para desenvolver meu talento e meu
intelecto, não para satisfazer a mim mesma, mas para ser aceita pelos
outros”, disse ela. Rankin aprendeu que essa pressão incansável estava se
manifestando na forma de problemas de saúde. Era preciso se livrar dela.
Como Lissa Rankin percebeu, interagir sem ideias preconcebidas com o
processo que a doença representa pode fazer muito bem. Ela pode ser uma
convidada que nunca desejamos ver, mas um mínimo de hospitalidade não
nos custa nada: acolher, por assim dizer, a visita indesejada. Isso pode
inclusive conduzir a uma oportunidade de descobrir por que essa visita
especí ca apareceu, e o que isso pode nos dizer sobre nossa vida.
7

Uma tensão traumática:


apego versus autenticidade

A maioria de nossas tensões e frustrações vem da necessidade


compulsiva de desempenhar o papel de alguém que não somos.
– JÁNOS (HANS) SELYE, The Stress of Life

Do jeito que Anita Moorjani conta, ca parecendo que a doença que quase a
matou não foi um infortúnio aleatório. “A pessoa que eu era antes de ter
câncer”, me disse essa autora de sucesso,

tinha medo de decepcionar os outros. Eu vivia tentando agradar. Me


perdia tentando satisfazer os outros, e fui cando esgotada. Eu não
conseguia dizer não; era sempre a salvadora da pátria, e a que estava a
postos para ajudar qualquer um. Nem quando tive câncer aprendi que
estava tudo bem ser eu mesma. Para ver isso precisei entrar em coma.

Hoje vibrante aos 61 anos, Moorjani está convencida de que o estresse


crônico induzido pela supressão compulsiva das próprias necessidades foi
uma das raízes de seu linfoma metastático, considerado terminal quando ela
recebeu o diagnóstico, aos 43. “Minha personalidade era de um jeito que eu
precisei de uma coisa tão drástica quanto o câncer para me dar motivo para
cuidar de mim mesma.”
Muitos de nós já ouvimos esses sentimentos: a ideia de “encontrar um
lado bom” em meio à tragédia não é nem um pouco desconhecida, e
tampouco se limita à esfera das crises de saúde. Mas o conceito de que
aspectos da nossa personalidade possam contribuir para o surgimento de
patologias é um anátema para muitos. Em seu ainda in uente ensaio de
1978, “A doença como metáfora”, a falecida diretora de cinema, ativista e
brilhante intelectual Susan Sontag, então sobrevivente do câncer aos 45
anos, rejeitou terminantemente a possibilidade de a sua má saúde talvez
signi car algo além de uma calamidade do corpo. “As teorias segundo as
quais doenças são causadas por estados mentais […] são sempre uma
mostra de quanto não se entende sobre o terreno físico de uma doença”,
escreveu ela.1 A rmar que as emoções contribuem para as doenças era, para
ela, promover “fantasias punitivas ou sentimentaloides”, manipular
“metáforas absurdas” e suas “armadilhas”. Ela considerava essa visão
especialmente de mau gosto porque a via como um jeito de culpar o
paciente. “Eu decidi que não seria culpabilizada.”2
A dura rejeição feita por Sontag da conexão mente-corpo reverberou
não só nas rodas intelectuais, mas também em alguns dos mais venerados
centros de pensamento médico. Poucos anos depois, a futura primeira
editora mulher do New England Journal of Medicine, Marcia Angell, citou-a
em tom de aprovação, descartando como “folclore” a ideia de que “o estado
mental seja um fator na causa e na cura de doenças especí cas”, um “mito”
cujas provas são, no melhor dos casos, “empíricas”. Como Sontag, Angell via
nessa linha de raciocínio uma tendência insidiosa a culpar o paciente:
“Numa fase em que já estão suportando o peso da doença, os pacientes não
deveriam ser ainda mais sobrecarregados por ter que aceitar a
responsabilidade por esse desfecho.”3
Concordo inteiramente que ninguém, em momento algum, deveria ser
levado a sentir culpa pelo que quer que aconteça com seu corpo, quer essa
culpa venha da própria pessoa, quer seja imposta por terceiros. Como já
a rmei, a culpa é inadequada, injusta e cruel; e também anticientí ca. Mas
precisamos tomar cuidado para não cair numa falácia. A rmar que aspectos
da personalidade contribuem para o surgimento de doenças, e de modo
mais geral perceber conexões entre traços, emoções, históricos de
desenvolvimento e doenças não signi ca culpar. Signi ca entender o
contexto geral com o objetivo de prevenir e curar, e em última instância de
alcançar autoaceitação e autoperdão.
Meu propósito ao reformular o ponto de vista de Sontag, portanto, é
proporcionar uma visão mais útil. Eu me solidarizo com sua apreensão em
relação a ser culpada por ter cado doente, apesar de ver sua recusa da
con uência mente-corpo como equivocada e cienti camente insustentável.
Um exame direto e honesto dos fatores biográ cos capazes de perturbar
nosso bem-estar biológico nos ajuda a reagir à doença de forma inteligente e
e caz ou, de preferência, a mitigar os riscos antes mesmo de a doença
ocorrer. Isso vale tanto para os indivíduos quanto para a sociedade.
Não há nada de radical na ideia de que determinados traços de
personalidade podem acarretar riscos para doenças; na verdade, isso é a
rea rmação, em termos cientí cos modernos, de uma percepção bem mais
antiga. Os caminhos siológicos que ligam um temperamento irascível aos
males do coração, por exemplo, já são bem compreendidos há muito tempo;
entre eles estão, por exemplo, uma pressão arterial e um ritmo cardíaco
aumentados, uma formação maior de coágulos e vasos sanguíneos
comprimidos. 4, 5, 6 Já na Antiguidade, Hipócrates falava sobre o
temperamento “colérico”, que atribuía a um excesso de cólera (bile amarela).
A língua inglesa ainda se refere a pessoas habitualmente mal-humoradas
como bilious, referente à bile. Na medicina tradicional chinesa, também o
fígado – origem da bile – é associado à raiva, à amargura e ao ressentimento.
Em 1896, o renomado clínico geral e professor de medicina Sir William
Osler, muitas vezes chamado de pai da medicina moderna, a rmou diante
de alunos de pós-graduação no hospital Johns Hopkins de Baltimore que
“não é a pessoa delicada e neurótica que terá tendência a angina [um dos
sintomas principais da doença coronariana], mas a pessoa robusta, vigorosa
de mente e corpo, o homem intenso e ambicioso […] cujo motor está
sempre na velocidade máxima”. Ele estava prenunciando o conceito
moderno da personalidade de tipo A – ambiciosa, compulsivamente
preocupada, impaciente, facilmente irritável e propensa a adoecer do
coração –, uma dinâmica biopsicossocial fácil de compreender tanto do
ponto de vista cientí co quanto “empírico”.
Em 1987, a psicóloga Lydia Temoshok7 sugeriu o que se tornou
conhecido como “personalidade de tipo C”, referente a traços fortemente
associados com a ocorrência de malignidades.8 Esses traços não poderiam
ser mais distantes, no espectro do temperamento, dos traços de tipo A: entre
eles estava “ser cooperativo e tranquilizador, ser pouco assertivo, ter
paciência, não expressar emoções negativas (em especial a raiva) e obedecer
a autoridades externas”. Ela havia entrevistado 150 pessoas com melanoma,
e constatado que esses pacientes eram “excessivamente agradáveis,
simpáticos ao extremo, nunca reclamavam e nunca eram assertivos”. Eles
eram identi cados como “pessoas que vivem tentando agradar”: embora
a itos com o avanço da doença, suas preocupações estavam focadas numa
direção especi camente externa, para longe de si mesmos, e nos efeitos que
sua doença estava tendo em suas famílias. Essa abnegação foi extremamente
bem tipi cada num artigo que li certa vez no e Globe and Mail, escrito
por uma mulher que acabara de receber um diagnóstico de câncer de mama.
“Estou preocupada com meu marido”, disse ela ao médico na mesma hora.
“Não vou ter forças para apoiá-lo.”9
Por volta da mesma época, uns 10 anos depois de eu começar a clinicar,
passei a notar padrões semelhantes na vida de muitos pacientes meus,
pessoas com todo tipo de doença. Isso apesar da minha falta de
familiaridade, na época, com o grande volume de pesquisas que, no último
meio século, tinham lançado luz sobre como o estresse, inclusive o estresse
da supressão de si, pode perturbar nossa siologia, incluindo nosso sistema
imunológico. Sem conhecer o trabalho de Temoshok na ocasião, cheguei a
conclusões semelhantes porque elas praticamente se impuseram a mim; não
tive como não ver o que estava vendo. Repetidamente, eram as pessoas
“simpáticas”, as que punham compulsivamente as expectativas e
necessidades dos outros à frente das suas e reprimiam emoções
supostamente negativas, que apareciam na minha clínica com doenças
crônicas ou passavam a ser tratadas por mim na ala de cuidados paliativos
que eu dirigia num hospital. Fiquei impressionado com o fato de esses
pacientes terem uma probabilidade mais alta de câncer e prognósticos
piores.
O motivo, acredito, é bem direto: a repressão desarma a capacidade da
pessoa de se proteger do estresse. Num estudo, a resposta siológica ao
estresse dos participantes foi medida em como a pele deles reagia
eletricamente a estímulos emocionais desagradáveis, ao mesmo tempo que
os pacientes relatavam quanto esses estímulos os incomodavam. Numa tela
eram mostradas a rmações ofensivas, como “Você merece sofrer”, “Você é
feio”, “Ninguém te ama” e “A culpa é toda sua”. Três grupos de participantes
foram avaliados assim: pessoas com melanoma, pessoas com doenças
cardíacas, e um grupo de controle saudável. No grupo do melanoma houve
uma diferença consistentemente grande entre o que as pessoas relatavam –
ou seja, até que ponto elas se sentiam conscientemente chateadas com as
mensagens desdenhosas e ofensivas – e o nível de estresse físico que as
reações de sua pele revelavam. Em outras palavras, elas tinham reprimido as
próprias emoções até abaixo do nível consciente. Não há como isso não
afetar o corpo: a nal de contas, se você passa a vida estressado sem saber que
está estressado, há pouco que possa fazer para se proteger das consequências
psicológicas de longo prazo disso. Sendo assim, os cientistas concluíram que
a repressão deveria ser vista como “um construto mente-corpo, não somente
um construto mental”.10
Alguns anos mais tarde, psicólogos da Universidade da Califórnia em
Berkeley investigaram os efeitos siológicos não da repressão, processo em
grande parte inconsciente, mas da supressão, de nida como “a inibição
consciente do próprio comportamento emocional sob estímulo emocional”.
Se eu sei que estou com medo, mas decido esconder tal fato de um cão
raivoso capaz de “farejar o medo”, estou suprimindo meus sentimentos;
reprimi-los, por sua vez, seria ngir compulsivamente concordar com
opiniões que se consideram repulsivas e só se dar conta depois. No estudo
de Berkeley, mostrou-se aos participantes vídeos que geralmente
provocavam nojo, como pacientes sendo tratados por queimaduras ou um
braço sendo cirurgicamente amputado. Alguns participantes foram
instruídos especi camente a não revelar emoções durante a exibição,
enquanto o grupo de controle cou livre para exprimir emoções por meio
de expressões faciais ou corporais. Em várias avaliações siológicas, o grupo
da supressão revelou uma ativação maior do sistema nervoso simpático, ou
sistema de luta ou fuga: em outras palavras, uma reação de estresse.11 Pode
ser que haja determinadas situações em que uma pessoa, por motivos
perfeitamente válidos, opte deliberadamente por não expressar o que sente;
se alguém faz isso de forma habitual ou por compulsão, o impacto tem
grande probabilidade de ser tóxico.
Já z minha própria lista dos traços de personalidade mais
frequentemente presentes em pessoas com doenças crônicas, conforme
observado por mim e muitos outros. Eles podem lembrar algumas das
histórias que contei até aqui. Quer uma pessoa apresente um, alguns ou
todos esses traços, todos eles, cada um ao seu modo, têm a ver com
autossupressão e/ou autorrepressão. Constatei que eles não estão apenas
presentes, mas são proeminentes nas pessoas com todo tipo de doença
crônica, do câncer às doenças autoimunes e problemas dermatológicos
persistentes, passando por toda uma gama de doenças, entre elas enxaqueca,
bromialgia, endometriose, encefalomielite miálgica (síndrome da fadiga
crônica) e muitas outras.
Sem qualquer ordem especí ca, esses traços são:

uma preocupação automática e compulsiva com as necessidades


emocionais dos outros, ao mesmo tempo que ignora as próprias;
uma rígida identi cação com papéis, deveres e responsabilidades
sociais (intimamente relacionada ao próximo traço);
uma sensibilidade excessiva e concentrada em fatores externos e a
realização de múltiplas tarefas concomitantes, com base na convicção
de que é preciso justi car a própria existência fazendo e dando;
uma repressão da agressividade e da raiva saudáveis e autoprotetoras; e
ter e externar compulsivamente duas crenças: “Sou responsável pelo
modo como os outros se sentem” e “Nunca devo decepcionar
ninguém”.

Essas características nada têm a ver com desejo ou escolha conscientes.


Ninguém acorda de manhã e resolve: “Hoje vou pôr os desejos do mundo
inteiro em primeiro lugar e não levar em consideração os meus”, ou “Mal
posso esperar para reprimir minha raiva e frustração, e em vez disso ngir
que estou contente”. Ninguém tampouco nasce com esses traços: se você já
tiver conhecido um bebê recém-nascido, sabe que eles têm zero compunção
quanto a demonstrar o que sentem, tampouco pensam duas vezes antes de
chorar com medo de incomodar alguém. O motivo por que esses hábitos de
personalidade, como podemos chamá-los, se desenvolvem e se tornam
proeminentes em algumas pessoas é ao mesmo tempo fascinante e
preocupante. Na base, esses hábitos são padrões adaptativos: adaptações
para preservar algo essencial e inegociável.
O motivo de esses traços e sua notável prevalência na personalidade de
pessoas com doenças crônicas serem com tanta frequência ignorados, ou
então nem sequer percebidos, é o cerne de nossa temática: eles estão entre
os modos de ser mais normalizados da nossa cultura. Normalizados como?
Principalmente sendo considerados forças dignas de admiração, e não riscos
em potencial. Esses perigosos traços de autonegação tendem a passar
despercebidos pelo nosso radar, porque são facilmente fundidos com seus
análogos mais saudáveis: compaixão, honra, diligência, gentileza,
generosidade, temperança, consciência, e assim por diante. Repare que as
qualidades dessa última lista, embora possam super cialmente se parecer
com as da primeira, não supõem nem exigem que uma pessoa releve, ignore
ou suprima quem é e o que sente e necessita. A verdadeira compaixão, por
exemplo, é uma oferta de oportunidades iguais, concedida a outros
justamente pelo fato de conhecermos e honrarmos aquilo que nós próprios
sentimos. Podemos muito bem admirar alguém que ponha as necessidades
dos outros na frente das próprias numa crise, ou alguém que lidere uma luta
pelos direitos de muitos, mas esses sacrifícios são feitos de maneira
consciente e limitada no tempo, de acordo com a situação em pauta e com
plena consciência dos riscos.
Tenho um hábito um tanto fora do padrão na hora de ler o jornal:
costumo há muito tempo ler os obituários, onde amigos e parentes prestam
homenagem a pessoas queridas que faleceram. Com frequência noto neles
um comovente paradoxo. Escritos com afeto e tristeza, esses emocionantes
textos com frequência revelam e involuntariamente celebram os traços de
abnegação de seu nado parente ou amigo, sem reconhecer que estes podem
ter tido um papel central na doença que pôs m à vida ali lembrada.
Considere, por exemplo, o caso de um médico de Ontario que chamaremos
Stanley, morto de câncer. A proximidade de Stanley com a mãe foi louvada
no obituário publicado na seção diária “Vidas vividas” do e Globe and
Mail, jornal canadense de circulação nacional:12

Stanley e a mãe tinham um relacionamento incrivelmente especial, um


vínculo aparente em todos os aspectos da vida deles até a morte dela.
Casado e com lhos pequenos, Stanley fazia questão de ir jantar com os
pais todos os dias, enquanto a esposa Lisa e os quatro lhos do casal
esperavam por ele em casa. Quando chegava era recebido por mais um
jantar, que saboreava e apreciava. Sem nunca querer decepcionar
nenhuma das duas mulheres de sua vida, Stanley acabou jantando duas
vezes por dia durante anos, até que o ganho de peso gradual começou a
levantar suspeitas.13

Outra coluna homenageia uma mulher que, apesar do câncer


metastático, “não abriu mão de nenhuma das suas atividades”, entre elas
“vários treinos de hóquei, conselho escolar, uma orquestra e outras
atividades extracurriculares”, e chegou até mesmo a assumir novas – todas
direcionadas a ajudar terceiros – à medida que a doença se espalhava por
seu corpo. Sou totalmente a favor de uma participação entusiástica na
própria comunidade. Mas existe algo chamado vontade de viver, e existe o
fato de ser levado a derivar a própria sensação de valor de uma atividade
constante, a ponto de não conseguir fazer uma pausa para cuidar de si
quando acontece uma tragédia.
Como último exemplo, temos um viúvo lembrando da esposa (morta de
câncer no seio aos 55 anos) nos seguintes termos: “Ao longo de toda a vida,
ela nunca brigou com ninguém […] Não tinha ego; simplesmente se fundia
ao entorno de forma muito discreta”. A frase “não tinha ego” deveria nos
fazer parar e pensar. Apesar do objetivo de transmitir uma falta de
arrogância ou soberba admiráveis, para mim essas três palavras revelam
uma história mais profunda. Um ego saudável é um elemento vital de um
ser humano pujante; ego não só no sentido de superioridade, mas de
identidade estável e base do respeito próprio, da autorregulação, da
capacidade de tomar boas decisões, de uma memória em bom estado e
muito mais. Sem saber, o que o marido enlutado estava descrevendo era a
mesma repressão da vida inteira dos próprios sentimentos – em especial a
raiva saudável – que mina o sistema imunológico e representa um risco de
outras doenças.
De onde vem esse abandono de si? “O tipo C”, assinalou Lydia
Temoshok, “não é uma personalidade, mas sim um padrão de
comportamento que pode ser modi cado.”14 Concordo plenamente com o
ponto de vista dela. Justamente por ninguém nascer com esses traços
enraizados, nós podemos desaprendê-los. Existe um caminho para a cura;
não é uma estrada fácil, longe disso, e iremos analisá-la em detalhes mais
adiante. Mas vejamos primeiro se conseguimos identi car as origens desses
padrões.
Um tema recorrente, talvez o tema central de todas as minhas palestras
ou workshops, é a tensão inescapável, e para a maioria de nós o eventual
con ito, entre duas necessidades essenciais: o apego e a autenticidade. Esse
con ito é o terreno inicial da forma de trauma mais generalizada em nossa
sociedade, a saber: o trauma “com T minúsculo” expressado por uma
desconexão de si, mesmo na ausência de algum abuso ou ameaça
avassaladora.
O apego, conforme de niu meu colega e antigo coautor, o psicólogo
Gordon Neufeld, é o anseio por proximidade: proximidade com os outros
não só no sentido físico, mas também emocional. Seu principal objetivo é
facilitar o ato de cuidar ou a condição de ser cuidado. Para os mamíferos e
até para as aves, o apego é indispensável à vida. Para o bebê humano em
especial, que ao nascer é um dos mais imaturos, dependentes e indefesos
animais que existem, e que assim permanece de longe pelo período mais
longo, a necessidade de apego é obrigatória. Sem adultos de con ança
propensos a cuidar de nós, e sem nosso impulso de sermos próximos desses
cuidadores, simplesmente não conseguiríamos sobreviver nem por um dia
sequer. Como veremos no próximo capítulo, todos chegamos ao mundo
“esperando encontrar” apego, da mesma forma que nossos pulmões esperam
encontrar oxigênio. Arraigado em nosso cérebro, nosso impulso de
conseguir apego é mediado por vastos e complexos circuitos neuronais, que
governam e promovem comportamentos destinados a nos manter próximos
daqueles sem os quais não podemos viver. Para muita gente, esses circuitos
de apego se sobressaem em relação àqueles que nos conferem racionalidade,
a capacidade de tomar decisões objetivas, ou à vontade consciente, fato que
explica muito de nosso comportamento em várias áreas.
Na primeira infância, nossa dependência é algo obrigatório e de longa
duração. Tudo, desde o choro até a fofura – dois sinais impossíveis de
ignorar transmitidos pelos bebês –, é um comportamento intrínseco criado
pela natureza para fazer com que nossos cuidadores continuem sendo gentis
e atenciosos. Mas a necessidade de apego não termina quando largamos as
fraldas: ela segue nos motivando ao longo de toda a vida. Como vimos no
capítulo 3, apegos insatisfatórios podem provocar o caos até mesmo na
siologia de um adulto. O que distingue nossos primeiros relacionamentos
de apego – e, fator crucial, os estilos de adaptação que desenvolvemos para
mantê-los – é que eles formam o modelo de como vamos abordar todos os
nossos relacionamentos importantes, muito depois de já termos saído da
fase de dependência total. Nós os levamos para nossas interações com
cônjuges, sócios, patrões, amigos, colegas; nós os levamos para todos os
aspectos de nossa vida pessoal, pro ssional, social e até mesmo política.
Consequentemente, o apego é uma preocupação fundamental da cultura,
como se pode ver, de maneira trivial, nos tabloides que noticiam quem ama
quem, quem larga quem e quem mente para quem. O apego nunca está
distante de nossa mente, e junto com ele a frustração do apego, como na
“satisfação” que, de acordo com a música de Mick Jagger, nunca
conseguimos ter.
Nossa outra necessidade central é a autenticidade. Existem várias
de nições para ela, mas eis uma que, na minha opinião, melhor se aplica a
esse debate: a qualidade de ser verdadeiro em relação a si mesmo, e a
capacidade de moldar a própria vida com base num profundo
conhecimento desse verdadeiro eu. O que pode não car aparente é que a
autenticidade não é uma aspiração abstrata, um simples luxo para aquele
pessoal esotérico que se interessa por autoconhecimento. Assim como o
apego, ela é um impulso enraizado no instinto de sobrevivência. Em sua
essência mais concreta e pragmática, autenticidade signi ca simplesmente o
seguinte: reconhecer nossos instintos quando eles surgem e honrá-los.
Imagine nossa antepassada africana na savana, ao pressentir a presença de
um predador natural: quanto tempo ela sobreviveria se os seus instintos
naturais de alerta para o perigo estivessem suprimidos?
A raiz da palavra autenticidade é o grego autos, ou “si”, que tem uma
relação próxima com “autor” e “autoridade”. Ser autêntico ou autêntica é
honrar uma noção de si advinda de uma essência própria única e genuína,
conectar-se a esse GPS interno e usá-lo para orientar-se. Uma noção
saudável de si não impede de cuidar dos outros, ou de se deixar afetar ou
in uenciar por eles. Não é algo rígido, mas sim expansivo e inclusivo. O
único ditame da autenticidade é sermos nós, não expectativas impostas por
terceiros, os verdadeiros autores e as verdadeiras autoridades de nossa
própria vida.
A semente do problema não é o fato de termos essas duas necessidades,
mas sim o fato de a vida com demasiada frequência promover um impasse
entre elas. O dilema é o seguinte: o que acontece se nossa necessidade de
apego for posta em risco por nossa autenticidade, nossa conexão com aquilo
que verdadeiramente sentimos? Em outras palavras, o que acontece quando
as circunstâncias jogam uma contra a outra duas necessidades inegociáveis?
Essas circunstâncias podem incluir dependência dos pais, doença mental,
violência e pobreza na família, con ito aberto ou uma profunda infelicidade
– os estresses induzidos pela sociedade tanto em crianças quanto em
adultos. Mesmo sem eles, a tensão trágica entre apego e autenticidade pode
surgir. Não sermos vistos e aceitos por quem somos já basta.
As crianças muitas vezes recebem o recado de que determinadas partes
suas são aceitáveis enquanto outras não, dicotomia que, se internalizada,
conduz inevitavelmente a uma clivagem na própria noção de si. A a rmação
“criança boazinha não grita”, dita num tom irritado, traz em si uma ameaça
involuntária, mas muito e ciente: “Crianças com raiva não são amadas.” Ser
“bonzinho” (ou seja: enterrar a própria raiva) e se esforçar para o pai ou a
mãe aceitá-lo se torna para a criança uma forma de sobreviver. Ou então
uma criança pode internalizar a ideia de que “só sou digna de amor quando
estou fazendo bem as coisas”, o que a predispõe a uma vida de
perfeccionismo e rígida identi cação de papéis, sem contato com sua parte
vulnerável que precisa saber haver espaço para o fracasso – ou até mesmo
para ser apenas espetacularmente comum – e ainda assim receber o amor de
que precisa.
Embora as duas necessidades sejam essenciais, existe uma ordem:
durante a primeira fase da vida, o apego invariavelmente vem primeiro.
Assim, quando os dois entram em con ito mais adiante na vida de uma
criança, o desfecho está praticamente predeterminado. Se a escolha for entre
“esconder meus sentimentos até de mim mesmo e conseguir os cuidados
básicos de que preciso” e “ser eu mesmo e passar necessidade”, escolherei
todas as vezes a primeira opção. Assim, nosso verdadeiro eu vai se
adaptando aos poucos, numa trágica transação na qual garantimos nossa
sobrevivência física ou emocional abrindo mão de quem somos e de como
nos sentimos.
O fato de não escolhermos conscientemente esses mecanismos de
adaptação os torna ainda mais tenazes. Não podemos simplesmente
expulsá-los com a força da vontade quando eles não mais nos servem
justamente por não termos lembrança de eles um dia não terem estado ali,
nem noção de nós mesmos sem eles. Como um papel de parede, eles se
misturam ao cenário de fundo; são nosso “novo normal”, literalmente nossa
segunda natureza, por oposição à nossa natureza original ou autêntica.
Conforme esses padrões vão cando programados em nosso sistema
nervoso, a necessidade percebida de ser o que o mundo exige se embaralha
com nossa noção de quem somos e de como buscar o amor. A
inautenticidade, portanto, é confundida com a sobrevivência, porque as
duas eram sinônimos nos nossos anos de formação, ou pelo menos assim
parecia para nosso eu mais jovem.
Aqui podemos ver a perigosa desvantagem de nossa assombrosa e tão
alardeada capacidade de adaptação a circunstâncias diversas e desa adoras.
A nal, a maioria das adaptações se destina a situações especí cas, e não é
uma reação eternamente aplicável em todos os casos possíveis. Eis uma
analogia tirada das manchetes de jornal: durante a escrita deste livro, o
Texas está enfrentando uma onda de frio.15 As pessoas se adaptam vestindo
mais roupas, aquecendo as casas quando há energia elétrica disponível e se
enrolando em cobertores quentes; todas são estratégias necessárias para
sobreviver num inverno inclemente. Essas mesmas adaptações, que
deveriam ser temporárias, poriam em risco a saúde e a vida caso não fossem
descartadas quando chegasse o calor abrasador do verão. As adaptações
internas que fazemos em nossa própria personalidade para poder sobreviver
às adversidades no início da vida apresentam o mesmo risco quando as
condições mudam, mas temos bem menos consciência do perigo. Por mais
que o tempo mude, o equipamento de proteção agora soldado à
personalidade nunca é retirado.
É revelador perceber que muitos dos traços de personalidade que
passamos a acreditar ser nós mesmos, e dos quais talvez até sintamos
orgulho, na verdade exibem as cicatrizes de onde, num passado remoto,
perdemos a conexão com nós mesmos. As origens dessas cicatrizes são mais
evidentes no seu formato, por assim dizer: em muitos casos, a origem de
traços especí cos pode ser rastreada até tipos especí cos de ferida. Por
exemplo, se não recebemos a atenção plena e incondicional de que todos
precisamos, uma das formas de nos proteger dessa privação é começarmos a
nos preocupar com a beleza física ou outros atributos ou capacidades
passíveis de chamar atenção. Uma criança que não tem uma experiência de
si como um ser digno de amor de modo consistente e incondicional pode
muito bem, quando adulta, tornar-se assustadoramente amável ou
charmosa, como no caso de vários políticos ou personalidades da mídia.
Alguém que não for valorizado ou reconhecido por quem é no início da vida
pode desenvolver um apetite desmedido por status ou riqueza. Se não
conseguimos nos sentir importantes apenas por quem somos, podemos
buscar signi cado nos tornando ajudantes compulsivos, síndrome essa que
conheço bem.
E a última parte desse truque de desaparecimento é a seguinte: como já
mencionei, na nossa cultura muitas dessas compensações para aquilo que
perdemos são consideradas não apenas normais, mas até mesmo
admiráveis. Valorizadas como “força”, elas muitas vezes envelopam e isolam
o eu autêntico, assumindo seu lugar.
Esses traços e os comportamentos deles resultantes são “extremamente
viciantes”, na expressão de Gordon Neufeld. De modo um tanto engraçado,
essa força de atração fenomenal existe exatamente porque esses
comportamentos não funcionam, ou, para ser mais exato, funcionam de
modo apenas temporário. Gosto do comentário astuto do médico e
pesquisador do trauma Vincent Felitti sobre dependência: “É difícil se fartar
de algo que quase funciona.” De modo bem parecido com a onda que um
dependente sente imediatamente após se drogar, o alívio que compramos
com nossas pseudoforças compensatórias não dura: camos ansiando por
mais e mais, um número incontável de vezes. Na verdade, a analogia é
totalmente adequada do ponto de vista siológico, pois as substâncias
químicas cerebrais liberadas quando experimentamos momentos em que
nos sentimos amados, valorizados ou aceitos são nossos próprios opioides
internos, ou endor nas. E, da mesma forma que um opioide como a heroína
não sacia, a onda temporária de endor na da valorização, apreciação,
aprovação ou sucesso não tem como solucionar a dor da alma. Nós nos
sentimos compelidos a perseverar na busca dessas fontes externas de alívio
efêmero, só para termos que reabastecê-las quando a emoção passa. Daí a
aparente robustez da personalidade: vivemos experimentando as mesmas
emoções e estados corporais a elas associados, e insistimos em manifestar os
mesmos comportamentos. No entanto, é mais próximo da verdade pensar
na personalidade como um fenômeno recorrente, não um fenômeno xo ou
permanente, de modo bem parecido a como quadros individuais de uma
imagem projetados em rápida sucessão criam a ilusão de ótica de uma
narrativa única e contínua.
Para a maioria de nós, pode ser preciso algum tipo de crise para
começarmos a questionar a veracidade e a solidez desse conceito de nós
mesmos que nos faz agir, antes que nos ocorra que ele talvez esconda algo
mais verdadeiro em relação a nós. Essas crises podem assumir a forma de
alguma catástrofe relacional, como um divórcio ou quase; de uma
dependência debilitante que perturbe de tal forma nosso funcionamento
que não possa mais ser ignorada ou tolerada; a perplexidade da meia-idade,
que pode nos anuviar quando estamos na casa dos 40 ou 50 anos; uma
súbita depressão que nos abate quando estamos seguindo o que pensávamos
ser nosso alegre caminho; ou ainda um problema de saúde como o
enfrentado por Anita Moorjani. Tudo isso pode acontecer, e muitas vezes
parece ter sido impressionantemente criado com este m: apontar para a
necessidade de uma reavaliação fundamental de quem pensamos ser.
De modo notável, Susan Sontag identi cou involuntariamente em suas
re exões particulares a dinâmica emocional para a qual seu câncer era uma
metáfora perfeita. “Estou sendo devastada pela autocomiseração e pelo
autodesprezo”, escreveu ela em seu diário.16 O câncer, claro, é uma doença
devastadora, que destrói o corpo por dentro. Sontag também situou a
origem do ódio por si mesma em sua infância atormentada. “Todo mundo
que teve uma infância ruim sente raiva. Eu devo ter sentido raiva no começo
(cedo). Aí ‘ z’ alguma coisa com essa raiva. Eu a transformei em… no quê
mesmo? Em ódio por mim mesma.” De modo arrepiante, Sontag tocou o elo
proibido logo após seu diagnóstico original de câncer de mama em 1971,
uns oito anos antes de escrever Doença como metáfora. “A primeira coisa que
pensei foi: o que z para merecer isso? Levei a vida errada, fui reprimida
demais.” A palavra errada nesse contexto é algo delicado, claro, que depende
muitíssimo do espírito em que é dita. Sontag não levou uma vida incorreta;
essa seria uma visão dura, acusadora. Mas a palavra leva a entender também
que ela tampouco pôde ter a vida que talvez tivesse desejado para si.
Ao reler Doença como metáfora hoje, sabendo o que sei, co triste.
Sontag desdenhou a conexão entre emoção, personalidade e doença de
modo mais veemente e mais articulado do que qualquer outra pessoa, e com
uma ironia amarga e também involuntária. A vida e a morte dessa
pensadora potente, matizadas de tragédia, têm muito a nos revelar.
Abandonada quando bebê pela mãe e uma segunda vez poucos anos
depois, após um breve reencontro, Sontag aprendeu cedo a reprimir a
própria raiva: “Sempre inventei desculpas para ela. Nunca autorizei minha
raiva, minha indignação.” Adulta, ela a rmou “fervilhar de ressentimento.
Só que não me atrevo a mostrar”. “Profundamente negligenciada, ignorada,
não percebida quando criança”, ela compensou desenvolvendo traços de
caráter que promoveram seu sucesso no mundo.

Uma das coisas mais saudáveis a meu respeito – minha capacidade de


“aguentar”, de sobreviver, de me reerguer, fazer, prosperar – está
intimamente ligada à minha maior fragilidade neurótica: minha
facilidade de me desconectar dos meus sentimentos […] Quando eu era
pequena, sentia-me abandonada e mal-amada. Minha reação a isso foi
querer ser muito boa.

“A culpa é um horror”, disse Sontag numa declaração tocante; e, de fato,


é mesmo. Só que a culpa não existe quando não existe escolha. Não há
nenhuma condição concebível na qual um ser humano tenha menos poder
de ação ou menos alternativas do que na primeira infância. O imperativo de
sobreviver supera todo o resto, e essa sobrevivência depende da manutenção
do apego, seja qual for o custo em matéria de autenticidade. É por isso que
tantas infâncias, em especial numa cultura que ao mesmo tempo gera e se
alimenta de estresse, são marcadas por um tenso impasse entre os dois, cujo
desfecho é previsível e cujas consequências duram a vida inteira.
Há outra coisa também que passei a saber, e que torço para ser um
consolo tão grande para você quanto para mim: deixar a culpa e a
responsabilização para trás na estrada rumo à cura, trocar a autoacusação
pela curiosidade, a vergonha pela “capacidade de reação”, tudo isso não é
apenas necessário, mas também sempre possível. “O que mudou para mim
foi perceber que eu tinha escolha”, diz Anita Moorjani. “Quando você está
condicionado a alguma coisa, não tem sequer consciência de estar agindo
assim. Nem a consciência de estar se autossuprimindo, porque você está
operando no modo de sobrevivência.”
O advento da inautenticidade pode não ser uma escolha, mas com
consciência e autocompaixão a autenticidade pode.
PARTE DOIS

A DISTORÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO

Se nossa sociedade valorizasse de fato o signi cado dos


vínculos emocionais das crianças nos primeiros anos
de vida, não toleraria mais o fato de crianças serem
criadas, ou de pais e mães terem de passar di culdade,
em situações que não têm a menor chance de fomentar
um crescimento saudável.
– STANLEY GREENSPAN, A evolução da mente*

*Stanley Greenspan (1941-2010), ex-diretor do Programa Clínico


de Desenvolvimento Infantil do Instituto Nacional de Saúde
Mental dos Estados Unidos.
8

Quem realmente somos?


Natureza humana,
necessidades humanas

Por trás de uma doutrina de ordem social ou mudança social


há sempre alguma concepção da natureza humana, seja
implícita ou explícita.
– NOAM CHOMSKY, Natureza humana: justiça vs. poder

Qual é nossa natureza? Trata-se de uma pergunta ancestral, em parte por ser
de abordagem tão difícil. Se considerarmos o vasto horizonte de feitos e
conquistas, das que representam uma a rmação de vida às francamente
assassinas, com certeza “ser humano” parece ser algo bastante plástico e
maleável.
Embora possa não ser óbvio por que um livro sobre saúde no século
XXI deveria se preocupar com um tema tão amplo e tão esquivo, acredito
que essa questão seja central e tenha implicações muito abrangentes. A
relativa saúde de qualquer forma de vida depende de suas necessidades
essenciais serem ou não atendidas. Assim, saber que tipo de seres somos é
saber do que precisamos para sermos esses seres do modo mais pleno. Quem
pensamos ser dita o modo como organizamos nossa vida, tanto do ponto de
vista individual quanto coletivo, e determina até que ponto uma cultura
preenche ou não os requisitos de uma saúde e de um funcionamento ideais.
Toda sociedade pressupõe coisas a respeito da natureza humana, e a
nossa não é nenhuma exceção. “É da natureza humana”, dizemos, dando de
ombros diante do comportamento manipulador e autocentrado de alguém,
alguém esse que muitas vezes somos nós mesmos. “De modo interessante”,
observa o educador Al e Kohn, “as características que explicamos assim são
quase sempre negativas; um ato de generosidade raramente é descartado
com a justi cativa de ser ‘apenas a natureza humana’.”1 Há uma tendência
nessa cultura de considerar as pessoas inerentemente agressivas,
materialistas e individualistas, seja com aprovação ou consternação.
Podemos valorizar a gentileza, a caridade e o senso comunitário, a “melhor
parte da nossa natureza”, por assim dizer, mas essas qualidades muitas vezes
são mencionadas num tom enlevado, como se fossem exceções a uma regra
rígida.
Nem toda cultura aceita isso como a quintessência da humanidade. O
antropólogo Marshall Sahlins, que estudou diversas sociedades na bacia do
Pací co, escreveu: “Para a maior parte da humanidade, o interesse próprio
tal como o conhecemos é algo antinatural […] considerado loucura […] Em
vez de expressar a natureza humana, tal avareza é considerada uma perda de
humanidade.”2 Alguns povos chegam a nomear essa loucura. A palavra cri
wétiko (com variantes em outros idiomas nativos como ojibwa e powhatan)
denota uma criatura, espírito ou mentalidade de cobiça e dominação, que
canibaliza povos e os leva a explorar e aterrorizar outros povos. (De modo
notável, na língua quíchua dos Andes peruanos, uma entidade semelhante,
associada aos colonizadores espanhóis implacáveis e ávidos por ouro, se
chama pishtako.) Longe de representar nossa natureza, tal busca incansável
de um interesse próprio de estreita de nição é vista como seu contrário:
“uma doença muito contagiosa e que se espalha depressa”, segundo o
estudioso indígena americano Jack Forbes.3
A meu ver, debates sobre uma natureza humana xa têm pouca
serventia, e acho até que podem levar a uma compreensão equivocada. Basta
um exame super cial de nossa história para con rmar que não somos de
um jeito só: Jesus era humano, Hitler também. Podemos ser nobres e
narcisistas, generosos e genocidas, engenhosos e estúpidos. Pelo visto somos
tudo isso. Sendo assim, por onde começar?
Em vez de tentar legislar sobre as muitas visões con itantes do que um
ser humano é, poderíamos, isso sim, ver nossa natureza como um leque de
desfechos possíveis. Gosto muito desta formulação de Robert Sapolsky,
professor de neurologia e biologia na Universidade Stanford:4 “A natureza de
nossa natureza é não se ater particularmente aos limites de nossa natureza.”
Se nos atemos a alguma coisa, talvez seja justamente a essa falta de limites;
por mais estranho que possa soar, nosso milagroso talento de adaptação
também poderia ser uma fragilidade. Como a nossa natureza é muito
in uenciável, condições diferentes evocam versões diferentes de nós, que
vão de benignas a desastrosas. Quando endeusamos – quando gravamos em
pedra, de um ponto de vista mental – o modo especí co como o
comportamento humano se apresenta em determinado lugar e momento,
cometemos o erro de confundir como estamos nos comportando com como
somos. Esse erro pode nos impedir de considerar outras possibilidades,
mesmo que nossa maneira de funcionar atual não nos faça bem. Então
replicamos condições inadequadas ao nosso bem-estar, e a triste saga
continua. Por isso, na busca pela visão de um mundo mais saudável, melhor
seria nos desfazermos de qualquer crença xa ou limitadora acerca do que
nos constitui, e em vez disso perguntar: que circunstâncias produzem que
tipo de desfecho?
Algumas necessidades e potenciais básicos estão codi cados em nossa
biologia. O modo como nossa natureza se desdobra depende de quão bem
essas necessidades são supridas, de como esses potenciais são incentivados
ou frustrados. Isso é válido ao longo da vida, mas em nenhum momento
gera mais consequências do que durante o processo de desenvolvimento.
Cronologicamente, podemos delinear o arco do desenvolvimento partindo
da concepção até a adolescência, embora, é claro, sob muitos aspectos,
nunca paremos de crescer, mudar, nos adaptar e nos desenvolver e, se
tivermos sorte, de fazer isso em direção a mais saúde e mais sabedoria.
Mais do que qualquer outro fator, o que determina que potenciais vão
ou não se manifestar é o entorno: as condições sob as quais o
desenvolvimento ocorre, que suprem ou não nossas múltiplas necessidades.
Isso vale tanto para nós quanto para qualquer outra forma de vida.
Considere uma bolota de carvalho. Poderíamos dizer que é da natureza de
uma bolota de carvalho virar um carvalho, mas só se o clima e o solo forem
adequados, e contanto que nenhum esquilo empreendedor a surrupie para
seu sustento invernal. Mesmo que a bolota consiga criar raízes e brotar, o
tamanho da árvore que vai nascer dessa bolota e o desenvolvimento de
galhos saudáveis dependerão dos nutrientes que o solo consegue prover, das
condições climáticas, da luz e da irrigação, de seu distanciamento ou
proximidade de outras árvores da mesma espécie, e assim por diante.
Nós também temos necessidades que o entorno precisa suprir se
quisermos prosperar. Antes de explorar essa dinâmica, precisamos mais
uma vez descartar o mito prevalente de que os traços genéticos explicam o
comportamento humano. Isso não é verdade. Embora tenhamos uma
determinada carga biológica, não somos geneticamente programados para
sentir, acreditar ou agir de nenhuma forma especí ca. Como disse Robert
Sapolsky quando conversamos: “Somos mais livres em relação à genética do
que qualquer outra espécie na face da Terra.” Graças à nossa adaptabilidade
e capacidade de invenção, por exemplo, podemos habitar uma gama de
biomas mais ampla do que qualquer outro mamífero de grande porte. Além
disso, como vimos em nosso debate sobre epigenética, a expressão dos
genes, que em si são inertes, depende do entorno. Assim, a experiência é a
in uência decisiva em como nossa biologia se manifesta em nossa vida. “Em
última instância, o indivíduo [está] geneticamente determinado a não estar
geneticamente determinado”, foi o que disseram dois cientistas franceses,
rea rmando em termos biológicos a espirituosa observação de Sapolsky
sobre “a natureza de nossa natureza”.5
Embora seja da nossa natureza nos ajustar e sobreviver numa gama
quase in nita de ambientes, certamente mais do que os carvalhos, nem
todos eles promovem necessariamente nosso máximo bem-estar ou nossa
máxima saúde. Alguns entornos, sejam eles físicos, emocionais ou sociais,
tornarão o bem-estar uma luta inglória ou um luxo para os que tiverem
sorte, em vez de uma norma disponível para todos.
As necessidades que lançam as premissas da saúde humana não são nem
de longe arbitrárias. Elas foram surgindo ao longo de milhões de anos com
os progenitores hominídeos e hominínios6 que precederam o advento
relativamente tardio de nossa espécie, no máximo 200 mil anos atrás. Até
onde é possível falar de modo coerente sobre necessidades humanas,
precisamos levar em conta como elas se desenvolveram ao longo de muitas
eras antes da história oral ou escrita. Aquilo que denominamos civilização
abarca pouco mais de 5% da nossa existência como espécie; na totalidade do
período de existência do gênero humano, ela representa menos de 1%. A
encruzilhada evolutiva que forjou quem somos e o que necessitamos estava
submetida a condições muito distintas das nossas. Assim, embora expresse
aspectos do nosso potencial, a civilização não pode em si ser usada como
uma baliza válida.
Em e Continuum Concept: In Search of Happiness Lost (O conceito de
continuum: em busca da felicidade perdida), Jean Liedloff sugeriu que toda
vida se desenvolve como “uma expectativa em relação a seu entorno”.
Podemos considerar que nossos pulmões têm uma expectativa em relação
ao oxigênio, nossas células em relação à água e nutrientes, nossos ouvidos
em relação à vibração de ondas sonoras. É esta a essência da evolução: a
programação de longo prazo das criaturas e de todas as partes que as
constituem para que cheguem na vida prontas para um determinado tipo de
entorno. O mesmo vale para toda forma de vida, desde órgãos até
organismos e espécies. “Se alguém quiser saber o que é correto para qualquer
espécie, é preciso conhecer as expectativas inerentes dessa espécie”, acrescentou
Liedloff.7 Uma expectativa inerente é uma necessidade intrínseca, algo que,
se negado, interfere em nosso equilíbrio físico e psicológico, levando a
desfechos de saúde piores do ponto de vista físico, mental e social.
Eis uma expectativa inerente em ação: você entra numa mercearia e
escolhe um chocolate. Sorri ao cumprimentar a pessoa atrás do guichê com
um olá. A pessoa no caixa está tendo um dia ruim; talvez esteja com dor de
cabeça, passando por uma crise familiar, ou o time dela esteja enfrentando
uma derrota acachapante no último minuto de jogo. Ela encara você com a
cara fechada (se é que chega a encarar), pega seu dinheiro com um
grunhido monossilábico e lhe dá o troco com um gesto brusco. Sua
siologia se altera: você sente uma tensão quando seu corpo se retesa, seu
ritmo cardíaco se acelera e sua respiração se encurta. Você se irrita.
Dependendo do seu estado de humor no dia, pode sentir raiva, ou mesmo
imaginar coisas ruins acontecendo com a pessoa da loja.
Por quê? Segundo o neurocientista e in uente pesquisador Stephen
Porges, uma de nossas necessidades inerentes é a reciprocidade, estar em
sincronia; o “bom encontro” como diz o cumprimento antigo em inglês well
met. Ele chama isso de expectativa neural. Nosso cérebro pode interpretar a
falta de reação de boas-vindas como uma agressão, uma ameaça à
segurança.
A expectativa inerente de reciprocidade e conexão de nosso sistema
nervoso faz sentido se considerarmos como nossa espécie se desenvolveu.
Durante a maior parte de nosso passado evolutivo, até 10 ou 15 mil anos
atrás, os seres humanos viviam em pequenos grupos de caçadores-
coletores.8 De fato, se a existência humana fosse medida na duração de uma
hora num relógio, nós só estaríamos habitando novos ambientes nos
últimos seis minutos ou algo assim. Liedloff descreveu esses nossos
ancestrais como “pessoas cujas boas relações são mais importantes do que
suas negociações”. Sua observação direta dos povos aborígines em seu
habitat na oresta está de acordo com o grande volume de pesquisa
acumulado, por exemplo, pela psicóloga Darcia Narvaez, professora emérita
da Universidade de Notre Dame. Descobrimos que esses grupos defendiam
valores que enfatizavam a hospitalidade, o compartilhamento, a
generosidade e a troca recíproca, não com o objetivo de enriquecimento
pessoal, mas sim de conexão. Esses valores eram diretrizes inteligentes e
testadas ao longo do tempo para a sobrevivência mútua. E as tradições que
eles produziram, passadas de pai para lho, de geração em geração,
caracterizaram a vida humana durante a maior parte da nossa existência.
Sim, a violência, o mau comportamento e tudo o mais existiam; nunca
fomos “perfeitos”. Mas sabíamos algo sobre criar o contexto adequado para
nossa humanidade poder orescer e dar frutos; pode-se dizer que era a
única coisa que sabíamos.
Essas diretrizes, e as tradições que as inscreviam no comportamento
cultural, sobreviveram por muito tempo mesmo depois de as sociedades se
assentarem (ou seja, deixarem de ser nômades), como povos ocidentais em
contato com povos indígenas constaram por muitas centenas de anos. “A
comunidade existe para eles, e eles existem para a comunidade”, escreveu
Frans de Waal sobre o povo do Kalahari, também conhecido como san,
grupo que muitos pensam representar um modo de vida que remonta à pré-
história. “O povo san dedica muito tempo e atenção à troca de pequenos
presentes que abarca muitos quilômetros e múltiplas gerações.”9
Nenhuma espécie de hominínio poderia ter sobrevivido por tempo
su ciente para evoluir se os seus membros tivessem se considerado
indivíduos atomizados, programados pela natureza para combater seus
semelhantes. Ao contrário de nosso modo de operação atual, uma visão
tradicional de interesse próprio seria aumentar a própria conexão e
pertencimento à comunidade, para o bem de todos. O autêntico interesse
próprio não precisa ser confundido com uma postura descon ada e
competitiva em relação aos outros.
Decorre daí minha pressuposição de que a nossa natureza, caso tudo o
mais permaneça constante, espere ou mesmo pre ra como estado basal uma
condição de cuidado, de relativa harmonia e equilíbrio, do tipo que se
consegue quando a prioridade é a interconexão. Não que nossa natureza seja
ser assim, mas ela quer que essas coisas estejam presentes. Quando elas
estão, nós vicejamos; quando não, sofremos.
O que pensar, portanto, do postulado moderno segundo o qual somos
fundamentalmente agressivos e egoístas? De onde vem tal ideia?
Num sistema capitalista, os conceitos e expressões da natureza humana
ao mesmo tempo espelharão o ideal individualizado e competitivo e o
justi carão como sendo o status quo inevitável. Faz sentido: caso se suponha
que o que é normal é natural, a norma vai perdurar; por outro lado, quando
começam a surgir suspeitas de que o modo como as coisas são talvez não
seja como devessem ser… bem, nesse caso talvez o quo não dure muito
tempo como status. É assim que as culturas materialistas criam conceitos, na
realidade mitos, sobre a busca e o predomínio do egoísmo e da agressividade
como bases do comportamento, incentivando características que atribuem
um valor menor à conexão com os outros e com a própria natureza. Em
nossa sociedade capitalista atual, sugeriu Darcia Narvaez, nós nos tornamos
“atípicos da espécie”, uma ideia perturbadora de se conceber: nenhuma
outra espécie jamais teve a capacidade de ser in el a si mesma, de ignorar as
próprias necessidades, quanto mais de se convencer de que é assim que as
coisas devem ser.
Como os próximos capítulos vão explorar, a cultura de hoje em dia
apressa o desenvolvimento humano em linhas pouco saudáveis, a começar
pela concepção, levando a um “normal” que, do ponto de vista das
necessidades e da história evolutiva de nossa espécie, é uma pura e simples
aberração. E isso, para a rmar o óbvio, é um risco de saúde em tamanho
real.
9

Uma base robusta ou frágil: as


necessidades irredutíveis das
crianças

Nascemos sem saber quem somos, não sabemos como pensar.


Só sabemos como sentir. É por meio dos sentimentos que o
modo como somos criados traça a trajetória de nossa vida
futura.
– NATASHA KHAZANOV1

Um dia, em 1997, Raffi Cavoukian acordou de repente às seis da manhã.


“Sobressaltei-me na cama”, contou-me ele, “boquiaberto, com os olhos
arregalados e as palavras ‘honrar a criança’ dançando bem na frente dos
meus olhos, como expressão e como nome de uma loso a.” Na década
seguinte, o mundialmente querido trovador infantil tirou uma folga do
palco e do estúdio de gravação para se dedicar a imaginar, possibilitar e
defender um mundo que honrasse as crianças. Ele até hoje mantém esse
compromisso.2 Ao falar sobre isso, brilha com o mesmo entusiasmo
brincalhão e o mesmo respeito profundo pelos jovens que permeiam sua
música; eram essas mesmas qualidades que inspiravam meu lho Aaron,
quando pequeno, a se fantasiar no Halloween como seu herói da música,
com direito a uquelele e barba pintada no rosto. “No fundo, honrar a criança
signi ca respeitar a pessoa”, diz Raffi. “As crianças estão aqui para aprender
a própria canção.”
A questão das necessidades de desenvolvimento das crianças não é nem
abstrata nem sentimentaloide: ela é de uma importância prática urgente.
Embora muitas vezes nos re ramos à infância como “os anos de formação”,
nossas normas sociais são um testemunho consternador de nossa
valorização de quão formadores esses anos realmente são, de exatamente
quanto está sendo “formado”. As implicações individuais e coletivas são
muito maiores do que tendemos a imaginar.
“Descobrimos quem somos de dentro para fora”, diz Raffi. “O que está
sendo formado não é nada menos do que a sensação de ser humano. E estou
escolhendo com cuidado as minhas palavras: a sensação de ser humano.”
Nossa cultura muitas vezes subordina o conhecimento sentido ao intelecto.
Esse sistema de classi cação invertido subverte a forma de criar nossos
lhos, o que por sua vez serve para reforçar o erro de alto a baixo na cultura.
Nós somos acima de tudo, a rma o cantor, “criaturas do sentir”.
A ciência concorda com ele. O neurocientista António Damásio explora
a primazia do sentimento em seu contundente livro O erro de Descartes:
Emoção, razão e o cérebro humano. “A natureza parece ter construído o
aparato da racionalidade não só por cima do aparato de regulação biológica,
mas também a partir dele e dentro dele”, escreve o autor.3 Regulação
biológica signi ca o funcionamento das estruturas homeostáticas4 e
emocionais de nosso cérebro e corpo que, antes e depois do nascimento,
estão muitos meses à frente do córtex pensante na la do desenvolvimento,
da mesma forma que, no contexto mais amplo, o precederam em muito ao
longo da evolução de nossa espécie.
Essas áreas do sistema nervoso formam a estrutura inconsciente de
nossos pensamentos e sentimentos conscientes, e portanto de nossos atos.
“Os primeiros elementos da composição psicológica de uma criança a se
estabelecerem são os mais formativos do seu horizonte de vida”, observa
Jean Liedloff. “O que ela sente antes de conseguir pensar é um poderoso
determinante do tipo de coisa em que ela pensa quando o pensamento se torna
possível.”5 Na realidade, o impacto vai muito além do conteúdo dos
pensamentos: pesquisas mostraram, sem sombra de dúvida, que as
experiências precoces moldam comportamentos, padrões emocionais,
crenças inconscientes, estilos de aprendizado, dinâmicas relacionais e a
capacidade de manejar o estresse e de se autorregular.
O novo conhecimento é bem resumido em dois parágrafos curtos de um
artigo publicado na revista Pediatrics, periódico o cial da Academia
Americana de Psiquiatria; seus autores são ligados ao que talvez seja o
principal instituto do mundo dedicado à infância, o Centro da Criança em
Desenvolvimento da Universidade Harvard:

A arquitetura do cérebro se constrói por meio de um processo em


andamento que começa antes do nascimento, adentra a idade adulta e
estabelece ou uma base robusta ou então uma base frágil para toda a
saúde, aprendizado e comportamento que se seguem.
A interação dos genes com as experiências literalmente molda os
circuitos do cérebro em desenvolvimento e é criticamente in uenciada
pela reatividade mútua do relacionamento adulto-criança, em especial
durante os primeiros anos da infância.6

Em outras palavras, o desenvolvimento inicial prepara o terreno, sólido


ou movediço, para todo o aprendizado, comportamento e saúde (ou falta de
saúde) que virão. As palavras dos pesquisadores, se levadas ao pé da letra,
poderiam chamar nossa atenção para muita coisa em nossa atual cultura,
que grita por uma reforma imediata.
Se a emoção é o terreno da cognição, os relacionamentos são as placas
tectônicas que moldam esse terreno. Entre estes, as primeiras interações
emocionais de uma criança com o(s) cuidador(es) que a protege(m) são a
principal in uência no modo como o cérebro será programado; aqui
também, o inconsciente vem em primeiro lugar, seguido por coisas como o
intelecto.7 Nas palavras do renomado psiquiatra do desenvolvimento
Stanley Greenspan e colegas: “A principal arquiteta da mente é a interação
emocional, não a interação intelectual.”8
Dada essa ordem de funcionamento, a sensação de segurança das
crianças, sua con ança no mundo, suas relações com os outros, e acima de
tudo sua conexão com as próprias e autênticas emoções dependem da
disponibilidade constante de cuidadores sintonizados, não estressados e
emocionalmente con áveis. Quanto mais estressados ou perturbados os
cuidadores, mais precária será a arquitetura emocional da mente da criança.
Se isso parece uma acusação aos pais, essa não é nem de longe a minha
intenção. Correndo o risco de me repetir em excesso, permita-me a rmar
mais uma vez que culpar os pais não é só cruel e injusto, mas tampouco faz
sentido. Basta dizer que a qualidade dos primeiros cuidados é determinada
em grande parte, de modo decisivo até, pelo contexto societal em que eles
ocorrem. Como vamos ver, as crianças são cada vez mais atacadas por um
acúmulo de poderosas in uências – sociais, econômicas, culturais – que
atropelam e sob muitos aspectos subjugam seu aparato emocional interno a
imperativos que nada têm a ver com bem-estar; que são, na verdade,
inimigos do crescimento saudável da mente. Segundo Greenspan, “esse
crescimento está sendo seriamente ameaçado pelas instituições e padrões
sociais modernos”. “Há um descaso crescente pela importância das
experiências emocionais que constroem a mente em quase todos os aspectos
da vida diária, inclusive na criação dos lhos, no ensino e na vida familiar.”
Podemos ver o resultado na quantidade crescente de crianças, adolescentes e
jovens com supostas doenças mentais9 como TDAH, depressão e ansiedade,
ou apresentando comportamentos de automutilação em particular ou nas
redes sociais.
Como disse Gordon Neufeld numa sessão do Parlamento Europeu em
Bruxelas: “O desabrochar do potencial humano é espontâneo, mas não
inevitável […] Todos nós envelhecemos, mas nem todos viramos adultos.
‘Criar’ verdadeiramente um lho, portanto, seria conduzir essa criança ao seu
pleno potencial como ser humano.”10 Por que então, em nossa cultura
moderna, fracassamos cronicamente em alcançar esse objetivo? O problema
começa com não conseguir entender as necessidades da criança em
desenvolvimento.
Neufeld resume com eloquência o que toda criança, independentemente
do temperamento, precisa em primeiro lugar: “As crianças devem se sentir
convidadas a existir na nossa presença, exatamente como são.” Com isso em
mente, a principal tarefa dos pais, além de prover o necessário à
sobrevivência da criança, é transmitir-lhe com palavras, atos e (acima de
tudo) presença energética uma mensagem simples: de que ela é exatamente
a pessoa que eles amam, acolhem e desejam. A criança não precisa fazer
nada, nem ser diferente sob qualquer aspecto para conquistar esse amor; na
verdade ela não pode fazer nada porque esse abraço de aceitação não tem
como ser conquistado, tampouco é passível de revogação. Ele não depende
do comportamento nem da personalidade da criança; ele simplesmente
existe, quer a criança esteja sendo “boa” ou “má”, “levada” ou “comportada”.
Sendo assim, devemos ignorar comportamentos perigosos ou
inaceitáveis? Não, isso tampouco seria uma coisa amorosa de se fazer, já que
entre as necessidades das crianças estão também a condução e a orientação,
que incluem o estabelecimento de limites. O que fazemos, isso sim, é nos
esforçar ao máximo para monitorar e neutralizar atos indesejados a partir de
um lugar de amor incondicional: um modo de ser que leve as crianças a
entenderem que nada que elas façam vai ameaçar a relação, mesmo que
suscite uma raiva momentânea ou demande correção. Operar a partir dessa
atitude pode inclusive nos permitir ver o “mau comportamento” da criança
sob uma perspectiva mais ampla e compassiva: talvez ela esteja expressando
uma necessidade frustrada, uma comunicação não ouvida, uma emoção não
processada. Nós entendemos e reagimos às necessidades e emoções que a
criança está “expressando com ações”, em vez de simplesmente punir o
comportamento e expulsar a emoção.
O que Neufeld diz sobre o amadurecimento ser “espontâneo, mas não
inevitável” é fundamental. A mesma evolução que ao longo de muitos
milênios nos tornou criaturas sociáveis e empáticas pressupõe também um
tipo especí co de ambiente de desenvolvimento ou, para remeter ao capítulo
8, tem essa “expectativa”. “Nós de fato nascemos para o amor”, a rmam a
autora de ciência Maia Szalavitz e o psiquiatra infantil e neurocientista
Bruce Perry, “[mas] os presentes da nossa biologia são potenciais, não
garantias.”11 Determinados tipos de experiência regam as sementes do amor
e da empatia que a natureza plantou em nós; na falta dessa nutrição
constante, o crescimento ca comprometido.
A essência dessas experiências pode ser expressada numa só palavra:
segurança.
Daniel, meu lho mais velho e coautor deste livro, identi ca a falta de
segurança como um aspecto central de suas próprias lembranças mais
antigas. “Eu não sabia o que poderia acontecer”, diz ele,

porque tudo virava de cabeça para baixo a qualquer instante,


dependendo da disposição de vocês dois ou do estado da relação de
vocês em determinado dia. Quando era pequeno, tinha pesadelos
recorrentes em que o chão se abria debaixo dos meus pés e eu caía para
outra dimensão, e lá a mesma coisa acontecia. Não é difícil decifrar esses
sonhos: no mundo da minha infância, o piso não era o piso.

De fato, sem um “piso” de apego seguro, é difícil para alguém jovem


sentir qualquer chão sólido em que a vida possa ser vivenciada.
Apesar de todo o amor que sentíamos por nossos três lhos, Rae e eu
não sabíamos como proporcionar o ambiente de estabilidade que eles
requeriam, pois em nossos primeiros anos de vida tínhamos deixado de ter
alguns cuidados essenciais. A organização de nossa vida no m do século
XX tampouco nos ajudou a criar o entorno necessário, devido às tensões da
nossa relação e às minhas tendências ambiciosas e compulsivas em relação
ao trabalho, engessadas e intensi cadas pelas exigências da formação e da
prática da medicina. E estávamos longe de ser o único casal com essas
limitações.
De onde vem uma sensação de segurança? Mais uma vez, o ingrediente-
chave são interações carinhosas e sintonizadas com os cuidadores. Um
estudo da Universidade Duke feito em 2010 revelou que “o cuidado e o
carinho no início da vida têm efeitos positivos duradouros na saúde mental
em boa parte da idade adulta”. Os cientistas examinaram quase 500
binômios mãe-bebê, registrando o afeto das mães com seus lhos de 8
meses e dividindo-as em categorias como “carinhosa” ou “ocasionalmente
negativa” ou “tátil” ou “extravagante”. Mais de três décadas depois, os lhos
crescidos eram submetidos a uma bateria de testes de saúde mental para
avaliar seu nível de ansiedade e de perturbação emocional. Descobriu-se que
os adultos que tinham recebido os maiores níveis de afeto materno na
primeira infância tinham os níveis mais baixos de perturbação.12 O líder da
pesquisa se arriscou a dizer que “talvez demonstrar afeto nunca seja demais
[…] Da perspectiva de políticas públicas, os achados certamente se somam
às pesquisas segundo as quais deveríamos conseguir proteger tempo para
mães e pais poderem ser afetuosos com os lhos.” Considero um sinal de
insanidade cultural o fato de algo tão elementar, tão essencial, estar tão
ameaçado que precisamos insistir com os responsáveis pelas políticas
públicas para que o “protejam”.
Durante muito tempo, partiu-se do pressuposto de que os bebês eram
impelidos a se apegar aos cuidadores só por causa de sua dependência e sua
vulnerabilidade em relação a alimento, calor e abrigo. Hoje sabemos que as
necessidades sociais e emocionais estão igualmente codi cadas em nosso
circuito neural pela evolução, e que nosso desenvolvimento ideal requer que
elas sejam supridas. O neurocientista Jaak Panksepp nomeou o aparato
cerebral que governa essas necessidades de sistema do “PÂNICO/LUTO”
porque, assim como o alarme de um carro, essas são as emoções ativadas na
ausência de um apego seguro. O recado é: somos programados para nos
apegar, para nos conectar uns com os outros, algo que conseguimos fazer
graças ao vínculo precoce com nossos cuidadores. Não só isso, mas a
programação funciona nos dois sentidos: os bebês, nas palavras de
Panksepp, “nasceram para chorar” justamente para ativar as estruturas
cerebrais de cuidado e comportamentos afetuosos dos pais, algo que ele
denominou sistema do CUIDAR.13
Re etir sobre isso me levou de volta ao diário da minha mãe. Dessa vez
o diário não tinha nada a ver com a guerra nem com nazistas: era apenas
uma mulher de 24 anos tentando amar seu bebê dentro das restrições das
normas culturais, incluindo conselhos médicos que contrariavam seus
instintos maternos. Segundo a prática aceita na época, o médico orientou
que eu fosse amamentado de acordo com um rígido cronograma. Sendo a
obediente lha de um médico, minha mãe temeu desobedecer. Ainda no
hospital, quando eu estava com poucas semanas de idade, ela escreve:

Agora você está mesmo me dando trabalho. Para variar, berrou da meia-
noite e meia até as duas da manhã, quando a enfermeira apareceu e
sugeriu que eu o amamentasse pelo menos um pouquinho, então
nalmente dormiu. Meu lho comilão, eu com certeza preciso lhe avisar
que não podemos transformar isso num hábito. Na verdade, em breve
vamos ter de eliminar a mamada das sete da manhã. Acredite, meu
precioso lhinho, meu coração se parte ao meio quando o escuto
choramingar suas amargas queixas, mas você agora já está bem
grandinho para entender que, me perdoe, a noite é feita para dormir,
não para comer.

Essa era a minha mãe, seguindo ordens médicas e portanto, por 90


longos minutos, suportando minhas desesperadas vocalizações e o seu
próprio desconforto emocional, e lidando com isso da melhor maneira que
era capaz, usando o senso de humor seco que seria sua marca registrada até
morrer, em 2001.
Quando revisito esse material hoje, versado na neurobiologia do apego
mãe-bebê, vejo uma jovem em cujo cérebro o instintivo sistema do
CUIDAR descrito por Panksepp está em con ito com a norma cultural. Ao
sucumbir aos ditames antinaturais das autoridades médicas, seu coração de
mãe sofre.
E o bebê dessas páginas hoje amareladas? O que ele vivencia? Umas três
décadas depois, em 1975, Jean Liedloff alertou os leitores de seu e
Continuum Concept da “moda atual de deixar o bebê chorar até ele se cansar
e desistir, prostrar-se e se transformar num ‘bebê bonzinho’”. E eu de fato me
tornei um bebê muito bonzinho. Ainda com 4 ou 5 anos, cava deitado na
cama antes de o dia raiar, suportando estoicamente as pontadas de dor de
uma otite média e choramingando baixinho para não incomodar o sono dos
meus pais.
Embora isso sem dúvida seja o total oposto das intenções da maioria dos
pais e mães, uma criança a cujo choro não se reage, que não é alimentada
nem abraçada junto ao calor do corpo do pai ou da mãe, quando
incomodada aprende uma lição clara, ainda que tácita: que as suas
necessidades não serão providas, que ela precisa se esforçar constantemente
para encontrar descanso e paz, que não pode ser amada do jeito que é. Ao
sobrecarregar o sistema de PÂNICO/LUTO do meu cérebro, a não
reatividade da minha pobre mãe também ajudou a programar meu cérebro
para minhas tendências crônicas que expressam a ativação excessiva desse
sistema: a ansiedade e a depressão. “Quando nosso cérebro não recebe todo
o devido cuidado”, escreve Darcia Narvaez, “ele se torna mais reativo ao
estresse e sujeito a ser dominado por nossos sistemas de sobrevivência:
medo, pânico, raiva.” Como se eu não soubesse.
“A questão passa a ser: quais são as necessidades irredutíveis da
criança?”, disse Gordon Neufeld. “Irredutível”, no seu entender, seria uma
necessidade de que a criança não pode prescindir de modo a alcançar o
potencial com que a natureza lhe dotou; aquela que, não provida, acarretará
consequências negativas. Como disse ele ao Parlamento Europeu: “O
segredo para se tornar plenamente humano, tanto no sentido evolutivo
quanto emocional, não é o ensino, o aprendizado ou a genética, e sim o
verdadeiro amadurecimento.” Não se pode ensinar o amadurecimento;
tampouco se pode fazer uma criança alcançá-lo por meio da insistência, de
tentações ou coerção. O que devemos fazer é garantir as condições de
desenvolvimento que satisfaçam as suas necessidades inegociáveis; a partir
daí, a natureza mais ou menos se encarrega do resto. Segundo a astuta
formulação de Neufeld, a maturidade humana tem quatro necessidades
irredutíveis. Essas quatro necessidades são ao mesmo tempo simultâneas e
construídas umas sobre as outras, como uma pirâmide. Convido você, leitor,
leitora, a re etir sobre quão bem nossa cultura as satisfaz ou deixa de
satisfazer para nossos lhos.14

1. A relação de apego: uma sensação profunda de contato e conexão


das crianças com seus responsáveis.

Observe como minha própria expectativa neural em relação a esse contato,


instilada no meu eu bebê por milênios de evolução, foi frustrada logo em
meus primeiros dias e semanas de vida. Não esqueça que o que importa é a
sensação de apego que a criança tem; isso não tem nada a ver com quanto a
mãe ou o pai a amam ou se sentem conectados com ela. Muitos pais e mães
jovens e bem-intencionados, entre os quais eu e minha mulher nos
incluímos, cometem o erro de julgar a relação pelo que eles estão sentindo,
pelo tanto de apego que eles estão vivenciando. No entanto, o que faz a
maior diferença não é tanto o que é enviado quanto o que é recebido pela
criança. É preciso pais e mães relativamente maduros e/ou com uma grande
rede de apoio que lhes permita se sintonizarem com as necessidades
emocionais da criança independentemente das próprias.

2. Uma sensação de segurança no apego que permite à criança


descansar do trabalho de conquistar o direito de ser quem é e do jeito
que é.

Uma vez estabelecida a segurança básica, a criança pode relaxar. Essa é a


condição que Neufeld identi ca como “descanso”, em que a criança não
precisa se esforçar para se vincular ao pai ou à mãe nem para manter o
equilíbrio de contato adequado. Esse estado é o solo em que as raízes do
desenvolvimento saudável podem se ncar. A partir daí, podemos esperar
que decorra o crescimento emocional, social e intelectual.
Apesar do amor da minha mãe por mim, fui basicamente posto para
trabalhar desde o momento em que nasci; não há descanso para os
inocentes. Ao contrário da sua a rmação a ita e tentando ser bem-
humorada de que eu deveria ser um menino “bem grandinho para entender
que […] a noite é feita para dormir, não para comer” antes de completar 3
semanas de idade, ainda faltavam anos para eu ser siologicamente capaz de
“entender” o que quer que fosse, quanto mais que minhas necessidades eram
negociáveis.

3. Permissão para sentir as próprias emoções, em especial luto, raiva,


tristeza e dor; em outras palavras, segurança para ficar vulnerável.

“Como a emoção é o motor do amadurecimento, quando as crianças


perdem a sensibilidade emocional elas cam empacadas na própria
imaturidade”, explica Neufeld. Para as emoções permanecerem acessíveis, o
entorno precisa permitir que elas sejam expressadas com segurança, ou seja:
a expressão de sentimentos pela criança não pode ameaçar a relação de apego
com a mãe ou o pai.
Por motivos que já começamos a vislumbrar, muitas crianças na nossa
cultura se isolam dos próprios sentimentos autênticos.15 E como não fazê-lo,
considerando as expectativas conformistas da sociedade ampli cadas por
conselhos generosos a pais e mães dados por “especialistas” em
comportamento? Considere a orientação do psicólogo e autor de enorme
sucesso Jordan Peterson:

Uma criança com raiva deve car sentada sozinha até se acalmar. Só
então se deve autorizar que ela retorne à vida normal. Isso signi ca que
quem vence é a criança, não a sua raiva. A regra é: “Venha car conosco
assim que for capaz de se comportar como deve.” Esse é um arranjo
muito bom para a criança, para o pai, a mãe e para a sociedade.16

Mas será mesmo? Repare no pressuposto: a raiva numa criança pequena


não é nem normal nem aceitável. Contrariando sua necessidade nata de
acolhimento incondicional, qualquer reação positiva à criança deve ser
absolutamente condicional. Ela não deve ser aceita como quem é, apenas
como está sendo. O problema é o seguinte: mesmo que a mãe ou o pai
vençam esse jogo de modi cação de comportamento, a criança sai
perdendo. Nós lhe instilamos a ansiedade de ser rejeitada caso seu eu
emocional venha à tona. Isso tem um preço alto para a saúde, tanto física
quanto mental. Embora a expressão de uma emoção possa ser inibida, ou
mesmo sua experiência consciente bloqueada, a emoção em si é uma
energia impossível de destruir. Ao banir da consciência os sentimentos, nós
apenas os trancamos em um subsolo de emoções que continuarão a
assombrar muitas vidas.
Eu sei, por experiência própria, que o endurecimento precoce do meu
coração à minha própria dor me protegeu não só do luto, mas também da
alegria. Redescobrir a alegria, ou, melhor ainda, descobri-la pela primeira
vez, continua sendo parte da minha jornada de vida até hoje.

4. A experiência do livre brincar para poder amadurecer.

Em vez de uma atividade frívola e infantil que deve ser “superada”, a


brincadeira é uma exigência para o desenvolvimento saudável de todas as
espécies mamíferas. Jaak Panksepp cunhou um nome para o sistema
neuronal que governa a recreação genuína, sistema que existe em conjunto
com o PÂNICO/LUTO e o CUIDAR. “O sistema do BRINCAR”, escreveu
ele, “pode ser especialmente importante no desenvolvimento epigenético e
no amadurecimento do neocórtex.” Uma falta de vínculo seguro na infância
e uma falta de brincadeiras nessa primeira fase, declarou ele, podem
contribuir para a gênese de distúrbios como o TDAH, bem como da
irritabilidade e violência em adultos.17 O brincar autêntico – sem objetivos,
interativo, que mobiliza a alegria e a imaginação e, algo mais raro do que
nunca hoje em dia, presencial – não pode ocorrer quando as crianças vivem
em condições de estresse ou privação. (E tampouco é compatível com estar
distraído e hipnotizado pela tecnologia digital, questão problemática que
vamos revisitar no capítulo 13.)
Se o objetivo geral do desenvolvimento é gerar nas crianças uma noção
sentida de estar vivo num mundo que cuida dela – “a sensação de ser
humano”, na maravilhosa expressão de Raffi – nós nos desvirtuamos
totalmente. É preciso uma cultura em bom estado de funcionamento, com
estruturas societais capazes de se inspirar nos ditames da natureza, para
servir de apoio a pais e mães na garantia das necessidades irredutíveis da
criança. Como e por que tantas das necessidades de nossas crianças não
estão sendo supridas será tema dos próximos capítulos.
10

Problemas no limiar:
antes de virmos ao mundo

As desventuras de meu Tristram começaram nove meses antes


de ele sequer vir ao mundo.
– WALTER SHANDY, The Life and Opinions of Tristram Shandy,
Gentleman (1759), por Laurence Sterne

Querido lho, querida lha: posso sentir você chutar minha barriga por
dentro. Estou me sentindo no momento extremamente triste,
desanimada e assustada, mas eu te amo e vou proteger e alimentar você
com todo o amor do mundo. Essa adrenalina que você está sentindo não
é para você nem por sua causa. Um dia vou te contar sobre a sua
gestação, e espero que, se você carregar lembranças ambivalentes ou
dolorosas, quando eu lhe disser a verdade possa se curar. Meu lhinho,
minha lhinha querida: seu papai também vai te amar quando te
conhecer. Ele não consegue sentir você se mexer dentro de mim como
eu.

Assim escreveu minha esposa quando estávamos aguardando a chegada


de nosso inesperado terceiro lho. Foi um período difícil para nós, e em
especial para Rae. Ela estava estressada, infeliz e ansiosa; o que deveria ter
sido um período alegre de preparação mútua foi arrastado e solitário. Eu, o
papai da história, tinha 40 e poucos anos, e visto de fora era um médico e
colunista de sucesso. Mas quem eu era dentro de mim mesmo e das quatro
paredes da nossa casa? Um homem deprimido, ansioso e psicologicamente
subdesenvolvido, a anos de distância de conhecer suas feridas internas; um
homem cuja família suportava o fardo de seus comportamento
disfuncionais, erráticos e emocionalmente hostis; um homem cujo vício
pelo trabalho assumia em casa a forma de uma ausência física e emocional,
ou até mesmo de negligência; um homem viciado no próprio drama interno,
que não sabia como ser responsável pelos próprios atos e estados mentais ou
por seu impacto na família, muito menos no futuro lho ou lha.
A correspondência em forma de diário de Rae com o bebê crescendo em
sua barriga mostrava quanto ela entendia por intuição, bem antes de mim,
sobre o desenvolvimento humano e a dinâmica que tão frequentemente
distorce seu curso natural em nossa cultura. No capítulo sobre trauma,
assinalei que antes de nos tornarmos os criadores de nosso entorno nós
somos a sua criação. Antes de desenvolvermos a capacidade para participar
da construção de nosso universo, o mundo nos molda. Por meio de quê? No
início, por meio dos corpos, mentes e circunstâncias de nossos pais, eles
próprios moldados pela condição do mundo à sua volta e pelas histórias das
gerações que os precederam. Assim, nossos próprios “corpomentes” são
desde o início produtos da cultura mais ampla, de uma trajetória de vida
que começa na concepção.
Antes de prosseguirmos, um aviso se faz necessário. Muitos leitores vão
car um pouco alarmados com a expressão “começa na concepção”, que foi
altamente politizada no debate cultural/religioso atual sobre o direito ao
aborto. É fácil ver como um reconhecimento baseado na ciência dos direitos
dos não nascidos pode se tornar munição política para uma visão contrária
à livre escolha/“pró-vida”. Mais motivo ainda para eu ser extremamente
claro em relação ao que quero e ao que não quero dizer. Como médico,
tenho plena consciência do sofrimento imposto quando o direito de livre
escolha da mulher é negado. Não existe neste capítulo, nem em qualquer
outra parte deste livro, uma argumentação a favor de negar o direito à
autonomia quando se trata de tomar decisões tão importantes na vida de
alguém.
Nunca foi mais vital falarmos sobre desenvolvimento humano e sua
trajetória desde o útero até o túmulo. Essa é também uma questão altamente
delicada. Para começar, encarar qualquer coisa que tenha a ver com
maltratar crianças é difícil, e muitas vezes doloroso. Pior ainda: quando
esses temas surgem, mães e pais podem car com a impressão de estarem
sendo julgados, castigados ou atacados, o que constitui um duplo infortúnio:
primeiro porque na nossa cultura muitos pais e mães – e falo eu próprio
como pai de três lhos – já carregam uma culpa debilitante, e já se sentem
na defensiva; segundo porque a culpa não ajuda nem é de modo algum
justi cável. Estamos todos fazendo o nosso melhor. Meu argumento, e na
realidade a premissa de todo este livro, é que o nosso melhor merece
melhorar, e pode melhorar se incorporarmos o conjunto cada vez maior de
conhecimentos de que dispomos hoje. Meu objetivo é simplesmente expor
uma dinâmica que nossa cultura toda precisa entender. Este capítulo e o
próximo começam em nossos primórdios, e acompanham o fracasso de
nossa cultura em seguir os modelos de desenvolvimento da gestação e do
nascimento conforme estabelecidos pela evolução.
As “lembranças ambivalentes ou dolorosas” da criança que Rae antevia
em seu diário de gravidez não são uma invenção poética. As experiências
intrauterinas podem não ser acessíveis por meio de lembranças conscientes,
mas talvez residam num outro tipo de memória: as impressões emocionais e
neurológicas entranhadas nas células e no sistema nervoso do organismo
humano. O psiquiatra omas Verny chama esse processo de “memória do
corpo amplo”. Pioneiro em reconhecer a in uência de longo prazo do
período intrauterino na saúde emocional, Verny publicou, em 1982, o
revolucionário A vida secreta da criança antes de nascer. Na continuação do
livro, ele escreveu: “Antes do acontecimento do parto, antes mesmo de
termos experimentado um fragmento de visão ou de audição no útero, nós
registramos em nossas células a experiência e a história de nossa vida.”1
Nas últimas décadas, uma enxurrada de novas informações ressaltou a
importância crucial do entorno físico, da saúde e do equilíbrio emocional
das mulheres durante a gravidez para o desenvolvimento pleno da criança.
Enquanto isso, nossa época trouxe também aumentos expressivos no
número de crianças, adolescentes e jovens que enfrentam depressão,
ansiedade e outras di culdades de saúde mental. A genética por si só não
consegue nem de longe explicar essas mudanças tão abruptas. Se levamos a
sério a reversão de tendências como essas, é fundamental ligarmos os
pontos olhando para o entorno. “O entorno não começa no parto; o entorno
começa assim que se tem um entorno”, disse o neurocientista Robert
Sapolsky. “Assim que se vira um feto, passa-se a estar sujeito a quaisquer
informações que cheguem por meio da circulação sanguínea, dos níveis
hormonais e dos nutrientes da mãe.”2
Autorretrato na gestação, Rae Maté, 1988, materiais mistos. Rae pintou
esse quadro na primeira metade da gravidez mencionada neste capítulo.

Um fator que intervém logo no início são os estresses aos quais as


gestantes estão submetidas, sejam eles emocionais, econômicos, pessoais,
pro ssionais ou sociais. Como assinala a médica e psicanalista Ursula Volz-
Boers: “A vida intrauterina não é o paraíso que algumas pessoas tentam nos
fazer crer. Nós somos os receptores de toda a felicidade e de todas as a ições
e di culdades de nossos pais.”3 Mas é claro que até mesmo os fatores mais
iniciais têm fatores que os antecederam, a saber, as pressões intoleráveis a
que a sociedade contemporânea submete o universo da criação dos lhos, a
família e as jovens pessoas em desenvolvimento – além, como nos ensina a
epigenética, da própria ativação do DNA em si. Precisamos re etir sobre até
que ponto a nossa cultura, inclusive a taxa de emprego e os sistemas de
tratamento e seguro-saúde, apoia ou prejudica a capacidade das mulheres de
considerarem as necessidades de seu bebê ainda por nascer uma prioridade
social alta.
A quantas mulheres se pergunta, durante as consultas do pré-natal,
sobre seu estado mental e emocional, sobre os estresses que elas podem estar
enfrentando seja em casa, seja no trabalho? Quantos futuros médicos e
médicas sequer aprendem a fazer essas perguntas? Quantos cônjuges são
ajudados a compreender sua responsabilidade em proteger a parceira
grávida de estresse e esforço indevido? Quantas empresas tomam
providências para aliviar a carga de trabalho de suas funcionárias gestantes?
Esta última pergunta tem uma resposta particularmente desoladora: as
mulheres com frequência relatam um meio pro ssional hostil à gestação, em
especial nos empregos que não são bem remunerados. Mesmo em locais de
trabalho que as apoiam, contudo, elas muitas vezes precisam suportar a
pressão que já absorveram e que fazem sobre si mesmas para ter um alto
desempenho, progredir na carreira, e até mesmo se destacar numa
sociedade obcecada com competência. O trabalho raramente “ ca no
trabalho”.
Como Rae intuiu, o bebê sente diretamente o estresse da mãe. “Ao
escutar atentamente movimentos e batimentos cardíacos, os pesquisadores
estão descobrindo que fetos de mãe estressadas ou deprimidas reagem de
um modo diferente em relação aos de mulheres emocionalmente saudáveis”,
já relatava o e New York Times em 2004. “Após o nascimento, indicam os
estudos, esses bebês têm um risco signi cativamente aumentado de
desenvolver problemas de aprendizado e comportamento, e podem eles
próprios estar mais vulneráveis à depressão ou à ansiedade conforme
crescerem.” Neurotransmissores essenciais, como a serotonina e a
dopamina, que mais tarde desempenham papéis-chave na regulação do
humor, no controle dos impulsos, na atenção, na motivação e na modulação
da violência – e que têm participação nas próprias di culdades de
aprendizado, de comportamento e de humor mencionadas no artigo – são
afetados pelo estresse pré-natal da mãe. Bebês de mães estressadas durante a
gravidez têm níveis mais baixos dessas substâncias no cérebro e níveis mais
alto do hormônio do estresse cortisol. De modo nem um pouco
surpreendente, o mesmo estudo mostrou que esses recém-nascidos tinham
também habilidades de aprendizado menos desenvolvidas, eram menos
reativos aos estímulos sociais e tinham uma capacidade menor de se
acalmarem quando agitados.4
Além dos níveis de substâncias cerebrais, indícios sugerem que os
estados mentais da mãe durante a gestação e o pós-parto moldam a própria
estrutura do cérebro em desenvolvimento da criança. Num estudo, a
professora de enfermagem Nicole Letourneau e seus colegas (ela ocupa a
cátedra de pesquisa sobre saúde mental mãe-bebê na Universidade de
Calgary, no Canadá) descobriram que a massa cinzenta da criança, o córtex
cerebral, aparecia mais na na ressonância magnética de crianças em idade
pré-escolar cuja mãe tivesse tido depressão no segundo trimestre da
gravidez. Como assinalam os pesquisadores, esses achados em exames de
imagem do cérebro podem prenunciar problemas como depressão,
ansiedade, controle prejudicado dos impulsos e di culdade de atenção na
criança.5 A depressão pós-parto tinha efeitos parecidos, indicando haver
determinados períodos críticos no desenvolvimento, tanto antes quanto
depois do parto, em que o humano jovem está particularmente vulnerável
ao entorno. Esses achados estão alinhados com os de diversos outros
estudos, que apontam impactos do estresse materno em estruturas cerebrais
como a amígdala,6 responsável por processar o medo e as emoções, e em
distúrbios neurológicos como o autismo.7
Outros achados sugerem fortemente que muitos problemas de saúde no
adulto – desde transtornos de saúde mental até hipertensão, de doenças do
coração a diabetes, da função imunológica a in amação, e de metabolismo
da glicose a equilíbrio hormonal – ocorrem com maior probabilidade por
causa do estresse intrauterino.8 Entre os pesquisadores, existe um “consenso
universal”, para citar um artigo importante, de que o que denominamos
origens desenvolvimentais das doenças na idade adulta começa no útero.9
Está lembrado dos telômeros, os marcadores de saúde e envelhecimento
dos cromossomos? Demonstrou-se que essas estruturas são mais curtas, ou
seja, mais prematuramente envelhecidas, em adultos de 25 anos cuja mãe
tivesse passado por um estresse importante durante a gestação.10 Sabemos
também, graças à nossa seção sobre epigenética, que altos níveis de estresse
na mãe durante a gravidez podem in uenciar de forma negativa o
funcionamento genético da criança, prejudicando potencialmente suas
capacidades de reação ao estresse por toda a vida. Demonstrou-se que esses
efeitos perduram até uma fase avançada da meia-idade.11
O estresse materno na gestação chegou até a ser correlacionado com
uma má constituição da ora microbiana intestinal do bebê – uma mistura
menos saudável de bactérias – com base em amostras fecais de recém-
nascidos dias ou mesmo meses após o nascimento, com uma incidência
maior de problemas intestinais e alergia entre esses bebês.12 (Uma ora
microbiana intestinal de citária também é constatada depois de muitas
cesarianas, quando o bebê não atravessa o canal vaginal materno.)
Embora o estresse emocional da mãe exerça in uência direta no
desenvolvimento e na futura saúde da criança, ele não é um fator isolado;
aqui também, a biologia interpessoal in ui. Como no caso meu e de Rae,
existe uma inter-relação total entre os estados psicológicos da mulher e os
do pai da criança. Um grande estudo sueco mostrou recentemente que a
depressão paterna no ano que vai da pré-concepção ao nal do segundo
trimestre aumentava em quase 40% o risco de prematuridade extrema
(entre a 22a e a 31a semanas de gestação). O efeito na verdade era maior do
que o da depressão na própria mãe, que só aumentava o risco de um parto
prematuro moderado (32a semana ou mais).13 “Também se sabe que a
depressão paterna afeta a qualidade dos espermatozoides, têm in uência
epigenética no DNA do bebê e pode também afetar o funcionamento da
placenta”, ressaltou um dos pesquisadores.
À primeira vista, o fato de a melancolia do pai representar um risco
maior do que a da mãe parece uma anomalia. Como sempre, o importante é
o contexto. Em nosso mundo, o contexto social da procriação atribui às
mulheres papéis insuportavelmente estressantes em todos os aspectos da
vida, incluindo os relacionamentos íntimos. Além de serem elas que gestam
e parem os lhos, espera-se também que aliviem os estresses
psicoemocionais dos homens de sua vida. Ser mãe de uma criança pode ser
uma exigência da natureza, mas ser mãe de um homem adulto é ao mesmo
tempo antinatural e impossível. Não é de espantar que o estresse do pai seja
terceirizado para a mãe, mediante um custo para os lhos e até mesmo para
o bebê em gestação.
Existe também um vínculo socioeconômico previsível: num estudo
recente da Wayne State University, que examinou um ambiente urbano de
baixa renda e de alto estresse nos Estados Unidos, anomalias na
conectividade cerebral foram identi cadas em ressonâncias magnéticas de
crianças ainda em gestação por mães que relatavam altos níveis de
depressão, ansiedade, preocupação e estresse nos três últimos meses.14 Nem
é preciso dizer que fatores físicos, como nutrição e qualidade do ar,
interagem com o status socioeconômico, predispondo-as a problemas como
depressão, ansiedade e TDAH.15 “Pessoas pobres estão mais expostas a tudo
isso, seja um ar de má qualidade ou o estresse psicossocial e outros fatores”,
assinalou Shanna Swan, endocrinologista reprodutiva e vice-presidente de
medicina preventiva no Centro Médico Mount Sinai, de Nova York. “Trata-
se de um problema societal, e as mudanças não vão se dar num nível
individual. Mas num nível social.”16 Assim, a desigualdade de oportunidades
começa no útero até mesmo no sentido biológico mais básico.17
Muito antes de dispormos de exames de imagem do cérebro, ultrassons e
monitores cardíacos fetais, os povos ancestrais entendiam intuitivamente a
santidade do ambiente intrauterino. Certa vez dei uma palestra sobre
dependência química para um grupo de Primeiras Nações – termo usado
para designar alguns dos povos originários da América do Norte – e citei
estudos sobre desenvolvimento pré-natal como os mencionados aqui.
Depois da palestra, um rapaz veio falar comigo. “A tradição no nosso clã era
que quem estivesse com raiva ou chateado não podia sequer chegar perto de
uma mulher grávida, sabia?”, disse ele. “Não queríamos que ninguém
impusesse seus problemas ao bebê.” Em algumas sociedades tribais
africanas, os bebês eram saudados com rituais ainda na barriga da mãe,
inclusive por músicas que mais tarde os acolheriam no mundo.18 Imagine
ouvir sua própria melodia e letra, já conhecidas, na cerimônia em que você
fosse acolhido em sua nova casa, o mundo exterior.
Apesar de essas tradições coletivas terem em sua maioria se perdido com
o colonialismo e a atomização da família, ainda podemos aprender com elas
e aplicar suas lições.
“Sabemos que a depressão, o estresse e a ansiedade pré-natais podem
fazer surgir problemas comportamentais na criança”, me disse a professora
Letourneau. “Podemos tentar consertar esses comportamentos nas crianças
anos depois, ou medicá-las, ou dar lá atrás às mulheres grávidas o apoio que
elas necessitam.”
Apoio. Se quisermos construir um mundo que proporcione isso,
podemos começar perguntando a seus futuros receptores o que o mundo
signi ca para eles. Recentemente perguntei a Rae o que teria servido de
apoio para ela na época da sua terceira gravidez; se eu pudesse recomeçar do
zero, já teria feito isso há muito tempo. Não tenho como aprimorar a
sensibilidade nem a precisão da sua resposta:

Teria ajudado se eu tivesse tido uma comunidade ao meu redor. Se


houvesse na nossa cultura um consenso maior do que é preciso para
gestar um bebê. Teria ajudado se eu tivesse tido um médico, assistente
social ou parente que pudesse ter me defendido. Se o médico tivesse me
perguntado, nem que fosse uma vez só, como eu estava me sentindo
emocionalmente… Se alguém tivesse ligado para o meu marido e dito:
“Você tem noção de que está machucando seu lho? Sejam quais forem
os seus problemas com a sua esposa, seu papel agora é protegê-la e o
bebê que ela está gestando.” Precisamos nos dar conta de que adentrar
uma gestação deveria ser como adentrar um santuário, um lugar e um
tempo sagrados: um bebê está sendo construído.
A saúde mental precisa entrar no currículo assim que uma mulher
engravida: da mesma forma que existem aulas de parto físico no pré-
natal, deveriam existir aulas de parto emocional. O foco da mulher deve
ser o bebê, não o marido e nem mesmo o trabalho; o foco do marido,
assim como o de todo mundo, deve ser apoiar a mulher. Pais e mães
devem saber que seu trabalho é mútuo, que embora quem esteja grávida
seja a mulher, o marido também está. A sociedade precisa proteger as
gestantes, porque todo mundo está criando essa criança. É preciso um
mundo para gerar um lho.
11

Qual é a minha escolha? O


parto numa cultura
medicalizada

No início do século XXI, precisamos reumanizar o parto, e


compreender que existem limites ao nosso domínio sobre a
natureza.
– MICHEL ODENT1

Em minhas décadas como médico de família, já auxiliei quase mil partos. O


procedimento padrão era realizar uma episiotomia em todas as mulheres
que estivessem parindo, exatamente como eu havia aprendido na faculdade.
“Agora está na hora de fazer um cortezinho”, anunciava eu quando a cabeça
do bebê chegava ao períneo, pronta para sair pelo canal vaginal. Após injetar
um anestésico junto à abertura da vagina, eu fazia uma incisão de alguns
centímetros, “aparava” o bebê e o passava para a enfermeira. Então
começava a fechar a ferida que eu mesmo in igira. Eu não sabia como fazer
diferente.
Anos depois, por acaso aprendi com algumas parteiras – que na Idade
das Trevas dos anos 1980 ainda trabalhavam ilegalmente aqui na Colúmbia
Britânica – que as episiotomias são totalmente desnecessárias na maioria
dos trabalhos de parto. Havia um processo orgânico tentando acontecer, me
explicaram elas gentilmente, que permitia a uma criança nascer sem que eu
precisasse intervir cirurgicamente. É mesmo? Mais surpresas estavam por
vir. Na verdade, as mulheres podem parir sem estar com os pés em estribos,
e mesmo sem se reclinar numa estreita engenhoca de metal. “Tente fazer
cocô deitado com as pernas para cima”, sugeriu uma parteira quando
questionei sua a rmação. Outra notícia surpreendente era que, exceto nos
casos em que houver complicações, o melhor é entregar o bebê para ter
contato pele a pele com a mãe, em vez de ser cutucado e examinado sob
luzes fortes e ter tubos de sucção en ados na boca. O cordão umbilical
também não precisa ser cortado na hora: pode-se esperar ele parar de
pulsar, entregando mais células vermelhas repletas de oxigênio para o bebê.2
A natureza quase parece saber o que está fazendo.
Essas práticas outrora hereges foram desde então validadas por
pesquisas médicas robustas. Os médicos hoje têm en m – ou, mais
exatamente, deveriam ter – permissão para apoiar sem hesitação o que os
seres humanos, com ou sem qualquer “pro ssional” ajudando, vêm fazendo
há centenas de milhares de anos. Como descreve a jornalista americana
Anne Fadiman em seu esclarecedor trabalho sobre o con ito de culturas
médicas que afeta os imigrantes hmong nos Estados Unidos, essas mulheres
asiáticas resistiram teimosamente a algumas de nossas “melhores práticas” e
preferiram seus próprios costumes, entre os quais “ car de cócoras durante
o parto e recusar incisões episiotomiais que alargassem o canal vaginal […]
Muitas hmong estavam acostumadas a ser sustentadas por trás pelo marido,
que massageava a barriga delas com saliva e zumbiam bem alto pouco antes
de o bebê sair”.3 Resumindo: elas tinham do seu lado a tradição, a intuição,
uma consciência corporal nata, a natureza, e – decerto sem saber – o que há
de mais moderno na ciência.4 Sem falar nos maridos, que estavam
literalmente amparando-as.
O advento da obstetrícia moderna trouxe várias coisas pelas quais
devemos ser gratos, poupando muitas mulheres e bebês de sofrimento,
doença e morte desnecessários. O problema é que, junto de seus triunfos, e
alinhada à abordagem mecanicista da medicina ocidental em geral, a prática
obstétrica ignora as necessidades genuínas e naturais das mães e dos bebês;
na verdade, ela muitas vezes as atropela. Trazer bebês ao mundo não se
resume apenas a fazer força, cortar e aparar. O parto é um limiar
importantíssimo no desenvolvimento humano, e o modo como o bebê o
atravessa tem consequências que podem perdurar pela vida inteira. Ao
patologizar o processo do parto, a prática médica atual contradiz o
conhecimento da natureza e do corpo humano. Pior ainda: ela com
frequência viola até mesmo os próprios compromissos de se alinhar com a
ciência e de, em primeiro lugar, “não fazer mal”. Não precisamos abandonar
as grandes conquistas do ofício da medicina para honrar o conhecimento
tradicional baseado numa experiência ancestral. Podemos abraçar as duas
coisas.
Não vou defender nenhum tipo de parto, seja “natural” ou não,
tampouco vociferar contra qualquer outro, e muito menos julgar as escolhas
individuais de qualquer mulher relacionadas a esse acontecimento de
signi cado gigantesco. Meu interesse, alinhado com o foco geral deste livro,
é o contexto cultural em que hoje em dia essas escolhas são feitas, incluindo
por quem e de que forma elas são feitas. Como disse a poeta Adrienne Rich
no livro Of Woman Born (Nascidos da mulher): “Para que todas as mulheres
tenham escolhas de verdade ao longo de todo o processo, precisamos
compreender plenamente a potência e a impotência personi cadas na
maternidade na cultura patriarcal.” Reduzir as mulheres a receptoras
passivas de tratamento nesse que é talvez o momento mais importante da
vida delas é desumanizá-las, e não só no sentido gurado; isso atrapalha os
processos siológicos, hormonais e psicológicos que evoluíram em nossa
espécie ao longo de milhões de anos de modo a garantir o vínculo
necessário entre mãe e bebê e o desenvolvimento saudável de nossos lhos.
Alguns anos atrás, conversei com Michel Odent, obstetra mundialmente
renomado por sua adoção e defesa de práticas de parto não medicalizadas.
“Precisamos desindustrializar o parto, parar de perturbar o primeiro contato
entre mãe e bebê”, disse ele com um charmoso sotaque francês. “Imagine só”,
continuou, rindo, “se a mãe gorila desse à luz e você tentasse pegar o bebê
dela. Aí você entenderia o que signi ca o instinto materno protetor e
agressivo. Na nossa civilização, suprimimos esse instinto há muito tempo.” A
supressão de um conhecimento nato é uma das tendências infelizes da
medicina.
A intervenção médica, que num sistema saudável só seria utilizada
quando necessária para reduzir os riscos, maximizar a saúde e garantir a
sobrevivência, se tornou a abordagem padrão. Um exemplo claro é o forte
crescimento da taxa de cesarianas, intervenção que, quando necessária,
pode salvar vidas e, quando não, tirá-las. Segundo as melhores estimativas,
cerca de 10% a 15% dos partos deveriam terminar com cesarianas para
garantir desfechos saudáveis. Aqui, na minha província natal da Colúmbia
Britânica, essa taxa hoje aproxima-se dos 40%, como acontece em muitas
outras partes do mundo, com alguns países inclusive ultrapassando essa
marca; no mundo inteiro, o número desses partos entre 2000 e 2015 dobrou.
“Um uso notavelmente alto da cesariana foi observado em partos de baixo
risco obstétrico, em especial entre as mulheres com maior instrução, por
exemplo, no Brasil e na China”, observou uma pesquisa detalhada e quase
global feita pela revista Lancet em 2018.5
Isso seria aceitável se o fato de esses procedimentos serem generalizados
tivesse algum “valor agregado” demonstrável, mas não é o caso. “As cesáreas
aumentaram ao longo dos últimos 30 anos para além dos 10-15% dos partos
considerados ideais, e sem benefícios signi cativos, sejam maternos, sejam
perinatais”, observou o relatório da Lancet.6 Até mesmo o Colégio
Americano de Obstetras e Ginecologistas manifestou, em 2014, “uma
preocupação signi cativa de o parto por cesariana estar sendo usado em
excesso”.7
“Se quisermos encontrar alternativas seguras à obstetrícia, precisamos
redescobrir o ofício das parteiras”, disse Odent numa conferência sobre
parto em 1986, quando os médicos da América do Norte ainda travavam
uma batalha de unhas e dentes para impedir as parteiras de desempenharem
seu papel tradicional. Em muitas jurisdições essa luta está longe do m,
enquanto em muitos outras reina, no melhor dos casos, uma trégua
relutante. “Redescobrir o ofício das parteiras equivale a devolver o parto às
mulheres”, acrescentou Odent. “Imaginem como seria o futuro se as equipes
cirúrgicas estivessem a serviço das parteiras e das mulheres, em vez de
controlá-las.”8 De fato, ele estava sugerindo que a medicina fosse uma
auxiliar da natureza, não sua governante, uma interpretação radical da
expressão em inglês attending physician, algo como “médico auxiliar”.
Estamos falando aqui de autonomia, uma necessidade humana
indispensável. As práticas em torno do nascimento expressam os valores
ocultos ou explícitos de uma cultura em termos de quem exerce o poder e de
quanto controle genuíno as pessoas podem ter sobre o próprio corpo.
Pesquisas atuais constatam que as intervenções no parto podem perturbar
os processos hormonais, reduzir seus benefícios e gerar novos desa os.9 Fiz
uma pergunta a Sarah Buckley, médica que atua na Nova Zelândia, militante
e autora de um artigo altamente elogiado sobre a siologia normal do parto:
o que explica a rápida ascensão das taxas de interferência medicalizada?
Esperava ouvir uma resposta baseada unicamente em critérios médicos. Na
verdade, a resposta dela foi muito perceptiva quanto ao mecanismo da
aculturação em direção ao bem mais abrangente mito do normal.

Os médicos são os agentes das expectativas da sociedade de fazer as


mães entenderem, num momento em que elas estão muito expostas e
vulneráveis, que a tecnologia é superior ao corpo, e que o corpo das
mulheres está intrinsecamente destinado a fracassar. É bem evidente que
a cultura deseja impor às mulheres essa visão de seus corpos como
inerentemente defeituosos e necessitados de um cuidado tecnológico de
alto nível.

E isso irá perdurar, acrescentou ela, “na forma como ela cria seu lho ou
sua lha de modo a se conformar às demandas da cultura”.
Embora o sexismo sistêmico desnivele o debate especi camente contra
as mulheres, existe também uma causa mais especí ca de intervenção
médica desnecessária, que faz parte dos fundamentos da visão médica
ocidental: uma descon ança em relação aos processos naturais e um medo
do que pode dar, tem chance de dar ou com certeza vai dar errado.10
Michael Klein, ex-diretor do departamento de medicina de família do
Hospital Feminino da Colúmbia Britânica, conduziu extensas pesquisas
sobre o parto medicalizado. “Os médicos aprendem num ambiente muito
parcial, que considera o parto algo assustador e perigoso”, disse ele. O
paradigma que domina a formação de medicina “considera o parto nada
mais do que um acidente em potencial, uma oportunidade para o seu
assoalho pélvico se deformar. As mulheres são bombas prestes a explodir
que precisam ser desativadas.” Ao longo da minha formação e residência em
medicina, me ensinaram a prever os problemas, complicações e riscos do
parto. Até aí, tudo bem. O problema é que nada na minha formação me
incentivava a me alinhar com a natureza. Coube às minhas pacientes e
colegas parteiras me ensinar que o parto vai além do procedimento
mecânico de extrair um bebê do corpo da mãe, é algo que tem um propósito
atávico e advindo da evolução, tanto do ponto de vista siológico quanto
emocional.
Sherri Dolman, uma conhecida minha que mora na Califórnia, teve que
travar um combate intenso e prolongado para ter autonomia em relação a
suas gestações. Apesar do nal triunfante, o que ela relata é uma história de
terror para a medicina. “Passei três anos tentando engravidar daquele bebê”,
contou ela. “E quando consegui passei a não poder mais tomar decisões nem
por minha lha, nem por mim mesma. Não vou conseguir esquecer isso
nunca mais.” Dolman foi coagida a fazer uma cesárea que não queria e,
conforme se provou depois, de que não precisava. “Meu médico não
respeitou minhas decisões, e não acho que tenha me respeitado como um
ser humano autônomo”, disse ela. “Creio que ele achava que sabia mais do
que eu. Não consigo pensar num só exemplo de quando dizem para um
homem o que ele pode ou não pode fazer com o próprio corpo, mas para as
mulheres isso é dito diariamente.”
Aos 34 anos, Dolman já tinha um lho de 17, nascido quando ela
própria ainda era uma adolescente assustada. Como seu parto tinha se
prolongado, provavelmente devido ao estresse, ela havia passado por uma
cesariana. Dessa vez fazia questão de ter um parto vaginal. Após três anos de
tentativas, ela e o companheiro engravidaram de uma menina. “Desde o
primeiro instante jurei que dessa vez não faria cesárea. Iria parir minha lha
do jeito que a natureza previra. Iria con ar no meu corpo, e conseguir o
apoio de que necessitava para fazer isso.” Ela fez seu dever de casa e
entrevistou o máximo de médicos que conseguiu. “Todos eles disseram:
‘quem já fez cesárea só pode parir por cesárea.’ Nem sequer se dispuseram a
conversar comigo sobre o assunto. ‘Eu aceito a senhora como paciente, mas
vamos marcar uma cesárea’, diziam.”
Medicamente falando, os pro ssionais que ela consultou estavam
totalmente equivocados. Na época em que Sherri engravidou da lha, a
segurança do parto vaginal após cesariana (PVAC) estava documentada
havia tempos, e demonstrou-se que o suposto risco de ruptura uterina
devido à pressão das contrações do trabalho de parto é mínimo, e não
representa nenhum impedimento para um parto não medicado. De fato, um
especialista em medicina perinatal que avaliou o útero de Dolman com um
exame de imagem detalhado a rmou que a chance de isso acontecer não era
maior do que se ela nunca tivesse engravidado. Num sinal de quão
profundamente arraigado é o doutrinamento, o obstetra continuou relutante
quanto à alternativa vaginal. O único médico que nalmente concordou em
apoiar a preferência de Dolman por um parto natural desistiu no último
instante.
Depois de uma sessão de monitoramento fetal que não mostrou
qualquer anormalidade, Dolman foi sicamente impedida de sair do
hospital, ameaçada de prisão e pressionada a aceitar o parto cirúrgico da
lha. Depois dessa experiência traumática, ela passou a sofrer do que chama
de “uma versão do TEPT”.

Passei a não conseguir mais funcionar na vida cotidiana. Eu me sentia


um fracasso como mãe, incapaz de reconfortar ou de tocar minha lha
em seus primeiros instantes de vida. Me sentia desconectada dela. Sentia
que não tinha tido participação alguma no fato de ela estar ali. Ela
chorava quando precisava de mim, mas eu não me sentia su ciente. Ao
longo do primeiro ano de vida dela, fui dormir chorando todas as noites.
Os dois partos subsequentes de Dolman foram sua redenção, a
reconquista da capacidade plena de ação.
Sob os cuidados de uma parteira, ela conseguiu ter um parto vaginal
bem-sucedido ao nal da terceira gestação. Embora o tenha descrito como
“muito, muito doloroso”, a rma que foi “uma das experiências mais incríveis
e emocionantes” que já teve. Como no caso de muitas mulheres, a permissão
que Dolman teve de fazer as próprias escolhas foi um elemento-chave para
superar o sofrimento. “Por mais dor que sentisse, eu tinha apoio e estava no
controle do meu próprio corpo. Isso para mim foi muito empoderador,
independentemente do que acontecesse: o mais importante era estar no
comando do meu corpo.” Dez anos depois, falar sobre isso ainda a deixa
com os olhos marejados. “São lágrimas de alegria”, me garantiu ela depressa.

Minha lha vive me pedindo: “Me conta a história de como eu nasci.”


Acha hilária a parte em que eu estava tendo contato pele a pele com ela e
ela fez cocô em mim, e ri toda vez que conto essa história. Só isso já foi
uma experiência de vínculo, o simples fato de dividir isso com ela. Faz
parte da vida.

Em 2011, Dolman deu à luz mais um bebê, um menino saudável de 4,1


Kg. Foi também um parto vaginal, igualmente conduzido num hospital sob
os cuidados de uma parteira, cinco anos depois de ela ter sido severamente
advertida por 10 obstetras registrados a não tentar parir assim.
Nem todos os triunfos se parecem, e tampouco deveria ser assim.
“Minha experiência médica me ensina que não convém se agarrar demais a
nada”, disse Danielle, residente em anestesiologia. “Mesmo assim, eu tinha
crenças e ideias sobre como via as coisas acontecerem […] A princípio
pretendia ter um parto domiciliar na água, num chalé que tínhamos alugado
na oresta.” Não foi assim que aconteceu. Após um longo trabalho de parto
em casa com pouca evolução, a parteira recomendou a hospitalização e uma
anestesia epidural para Danielle poder relaxar um pouco. Ministraram nela
o hormônio do parto ocitocina para acelerar a evolução, mas não adiantou.
Depois de 36 horas de um intenso trabalho de parto, Danielle aceitou a
necessidade de uma cesariana. Até hoje a experiência lhe causa empolgação.
Embora o processo de Danielle tenha sido diferente do de Sherri, ambos
os partos têm em comum um aspecto central: a mãe se sentia no comando.

As pessoas me ouviam. Todo mundo parava para escutar minhas


preocupações. Até a cirurgiã-assistente entrou para falar comigo, uma
mulher que tem um consultório de medicina de família aqui. Ela foi
falar comigo, me olhou nos olhos e estava totalmente presente. Eu me
senti segura com todo mundo lá.

Nessas palavras podemos escutar o segundo fator determinante para a


qualidade da experiência da mulher: segurança e apoio.
Um sistema de saúde que respeite as forças das mulheres e suas
vulnerabilidades é aquele que lhes dá a melhor chance de ter uma
experiência de parto que elas possam valorizar. Essa visão perpassa uma
pequena joia de preparação para a gravidez, A Is for Advice (e Reassuring
Kind) (C de conselho, do tipo que tranquiliza), escrito pela parteira Ilana
Stanger-Ross, nascida no Brooklyn e que exerce seu ofício na Colúmbia
Britânica. “As mulheres que relatam as experiências de parto mais positivas
são as que sentem ter compreendido todas as decisões tomadas, e que
puderam ter voz no processo decisório”, observa ela. “Isso vale inclusive para
partos complicados em mulheres que torciam para parir ‘naturalmente’,
aqueles que exigem múltiplas intervenções ou que terminam com
cirurgias.”11
Aprender sobre a siologia do parto é maravilhar-se com a sabedoria
nata da natureza e sua maior conquista evolucionária: o corpo humano. A
síntese biológica é a seguinte: o trabalho de parto dos mamíferos é mais do
que um processo de expelir o bebê do útero. É uma preparação para a vida.
Conforme projetado pela natureza, o trabalho de parto promove a liberação
de hormônios como estrogênio, ocitocina e prolactina, que ativam uma série
de sistemas neurais que governam as emoções e o comportamento,
garantindo o bem-estar do bebê a curto e a longo prazo: calor, carinho,
vínculo, proteção e assim por diante. Em outras palavras, o parto prepara o
modelo que será seguido pelo relacionamento mãe-bebê, por sua vez o locus
central da fase inicial de desenvolvimento da criança.12
Por ter passado algumas décadas afastado do jogo de aparar bebês, fui
pego de surpresa por uma expressão que Stanger-Ross usou quando
conversamos: “trauma obstétrico”. “Isso virou uma expressão”, disse ela.
“Infelizmente, muitas mulheres sentem que a sua experiência de parto foi
um trauma, o que naturalmente vai ter impactos na relação mãe-bebê. Se o
parto foi traumático, como isso se traduz no momento em que você segura o
recém-nascido no colo?”
De modo muito oportuno, tive uma imagem alarmante dessa tendência
por meio de uma conversa no dia em que concluí este capítulo. Estava em
uma videochamada sendo entrevistado por uma jornalista de Nova York
sobre a pandemia de covid-19 que na época assolava sua cidade. Em
determinado momento, Courtney, como irei chamá-la, me mostrou toda
orgulhosa seu lho de 3 meses. Ao saber qual era o tema do meu trabalho,
ela despejou a terrível história de sua experiência recente no Centro Médico
Mount Sinai, nas mãos de uma das obstetras mais proeminentes e
conceituadas de Nova York. Impossível imaginar uma história mais óbvia de
trauma obstétrico normalizado.
Aos 37 anos e saudável, Courtney esperava ter um parto sem
complicações. Com 30 semanas, sua médica lhe telefonou para anunciar,
como por decreto, que devido à idade dela o trabalho de parto seria
induzido com 39 semanas. Esse era o “protocolo do consultório” para
qualquer mulher acima dos 35 anos. “Ela sabia minha idade desde o início,
desde que eu tinha entrado no consultório no maio anterior”, disse
Courtney. “Fiquei tão chocada que desliguei o telefone; praticamente não
falei nada. Tive que tomar meia taça de vinho. Fiquei tão chateada que nem
dormi naquela noite.” A partir daí, foi tudo ladeira abaixo. Courtney
recordou com muita dor
o súbito desaparecimento de qualquer exibilidade, e a imposição de
ditames tirânicos. Aquele não era o tipo de atendimento que eu
esperava. Não estou acostumada a ser pressionada por médicos nem
tratada com arrogância. O tom dela se tornou muito tóxico, e ela não
parava de dizer: “Esse bebê é imeeenso. Ele vai ser imeeenso.” Eu disse a
ela: “Peraí, que eu saiba os ultrassons são conhecidos por serem ruins na
previsão do peso.” E ela respondeu: “Não aqui no Sinai. O seu bebê vai
pesar no mínimo quatro quilos.”

(Peso real do bebê ao nascer: três quilos e meio.)


Courtney cogitou procurar outro médico, mas com a gestação muito
adiantada e ainda impressionada com as credenciais de sua médica, acabou
cando.

Com 38 semanas, ela começou a dizer: “Isso não está com uma cara
nada boa para um parto vaginal, não mesmo. Eu não sei o que lhe dizer.”
E eu continuava a insistir: “Eu realmente não quero uma cesárea.” E foi
essa a nossa dinâmica. Nos últimos dias de gravidez, eu estava num
estado mental horrível: chorava a toda hora, quase em colapso
nervoso… Na data combinada, fomos para o Sinai, e lá foi uma cena
horrível. Passamos três horas numa sala de espera, com um milhão de
coisas diferentes acontecendo, e eu não parava de dizer para o meu
companheiro: “Que porra estou fazendo aqui? A gente tem todo o
direito de voltar para casa e entrar em trabalho de parto naturalmente.”

Sentindo-se desempoderada, com sua intuição invalidada naquele


momento que era o mais vulnerável de toda a sua vida, intimidada por uma
especialista médica altamente gabaritada, e tendo sido criada numa cultura
em que a autoridade dos “especialistas” superava a da própria pessoa,
Courtney não teve forças para se a rmar. Ela nalmente autorizou a
indução, após 15 horas de um trabalho de parto sem evolução.
Fiquei muito fraca. Vomitei. Tudo ali era como o maior pesadelo que eu
poderia imaginar. Falei: “Foda-se, vamos fazer a cesárea e pronto. Tipo,
que escolha eu tenho a essa altura?” Então nós entramos no centro
cirúrgico, eu vomitando na mesa de operação e totalmente
descompensada, aos prantos. Morta de medo, me tremendo toda. Eles
começam cirurgia; demora uma eternidade. Aí ela me diz: “Ah, eu não
tinha me dado conta de que os seus músculos abdominais eram tão
fortes.” E eram mesmo, porque faço pilates há vinte anos. E eu pensando:
“Não se deu conta por quê? Você tem me examinado regularmente há
nove meses, e programou essa cirurgia semanas atrás.” E na manhã
seguinte ela me disse “Vou ligar para o departamento de imagem do
hospital e reclamar de quanto seus ultrassons erraram o peso do bebê!”.
Passei uma semana no hospital sem dormir à noite, aos prantos por ter
sido tão violada.

Perguntei a Courtney se ela havia pensado em trabalhar com uma


parteira. “Não sou tão radical assim”, disse ela. “Mas eu me rendi
completamente ao sistema.”
Agora considere que essa história revoltante aconteceu num contexto
privilegiado, branco e de classe média. Para as mulheres pobres, em especial
as não brancas, o tratamento das mães em trabalho de parto pode ser
consideravelmente mais brutal, com consequências que podem inclusive ser
fatais. Segundo um relatório de 2019 da Organização Mundial da Saúde,
“42% das mulheres [numa pesquisa global] disseram ter enfrentado abuso
físico ou verbal ou discriminação em centros de saúde durante o parto,
algumas delas levando socos, tapas, ouvindo gritos ou comentários
zombeteiros, ou sendo imobilizadas à força”.13 E isso tampouco se limita ao
Terceiro Mundo. No meu próprio país, um vídeo feito num celular e vazado
recentemente mostra a equipe de um estabelecimento de saúde em Quebec
provocando e agredindo verbalmente uma mulher indígena em trabalho de
parto. Pode-se ouvir “enfermeiras chamando-a de burra e dizendo que ela só
presta para transar, e que seria melhor que morresse”. Minutos depois, a
mulher de fato morreu.14

“Para mim, a situação de parto ideal é uma mulher sozinha num quarto
silencioso, com a iluminação baixa e uma parteira sentada ao seu lado
tricotando”, disse-me Michel Odent num comentário sarcástico, porém
astuto, sobre o efeito prejudicial para o trabalho de parto de luzes fortes,
máquinas barulhentas e pro ssionais de medicina andando para lá e para cá
dando ordens.
Isso nos leva de volta ao debate sobre “expectativa inerente” do capítulo
que trata da natureza humana. Como todo organismo, nós entramos em
cena já antecipando que a vida irá transcorrer dentro de determinados
parâmetros. Por sermos as criaturas adaptáveis que somos, podemos
suportar algo que não seja o melhor, mas isso tem um custo. “As
experiências do bebê num parto sem trauma precisam ser aquelas, e apenas
aquelas, que correspondem às expectativas ancestrais dele e da mãe”, escreve
Jean Liedloff em seu estudo sobre a sociedade aborígine da oresta.
Enquanto outros mamíferos buscam locais escuros, tranquilos e isolados
para parir, assinala ela, nós propiciamos o trauma do parto com “o uso de
instrumentos de aço, luzes fortes, luvas de borracha, o cheiro de antisséptico
e anestésico, vozes falando alto ou máquinas ruidosas”.15
Mesmo que ninguém mais perceba nada fora do normal, as mães
sentem. Ainda me lembro de minha mulher sussurrar para mim durante o
parto do nosso primeiro lho, referindo-se à enfermeira que não parava de
insistir com ela dizendo “força, moça, força” “por favor, mande aquela
mulher calar a boca”.16 Na ausência de segurança e conexão emocional, o
corpo da pessoa se tensiona, sobretudo sob o efeito de hormônios
sensibilizantes. Alheios à necessidade da mulher de silêncio, segurança e
sintonia, os hospitais criam um ciclo que se autoperpetua, instigando muitas
das complicações de parto que então precisam intervir para contornar.
Ilana Stanger-Ross resumiu o conhecimento tradicional e a ciência
moderna em palavras que, num sistema mais são, nem sequer precisariam
ser ditas: “Precisamos tratar uma pessoa em trabalho de parto como alguém
pleno, que está vivenciando uma travessia sagrada na vida”, disse-me ela.
“Essas mulheres não são pacientes doentes. Elas são pessoas em trabalho de
parto, que é um estado muito normal de se estar.”
12

Uma horta na Lua: a criação


dos filhos sabotada

Todos nós perdemos nossos lhos… Olhem só para eles, pelo


amor de Deus: violentos nas ruas, letárgicos nos shoppings,
hipnotizados em frente à televisão. Durante meu tempo de
vida, algo terrível aconteceu que tirou nossas crianças de nós.
– RUSSELL BANKS, O doce amanhã

A sociedade moderna está lotada de especialistas em criação de lhos. Basta


passar os olhos por qualquer livraria, e você vai ver prateleiras e mais
prateleiras de volumes dedicados a ajudar mães e pais a percorrer esse
terreno pedregoso, da concepção até a entrada na faculdade. Existem
incontáveis blogs de pais, grupos nas redes sociais e palestras on-line. Uma
playlist no site da TED Talks oferece “Histórias direto da linha de frente da
criação dos lhos”. Apesar de irônica, a linguagem bélica faz sentido para
muita gente: a luta para ser um “bom pai” ou uma “boa mãe” pode parecer
uma longa batalha contra o tempo, contra nós mesmos e até contra nossos
lhos. Já chegamos às prateleiras perdidos e à procura de orientação.
Queremos fazer o que é melhor para nossos lhos, só não sabemos como.
Quem dera tivéssemos uma bússola interna para nos guiar.
A boa notícia é que nós temos: todos nós, pelo fato de sermos humanos,
somos dotados de um impulso e de um talento natural para criar lhos. A
má notícia é que as pressuposições que nos orientam e os preconceitos
dominantes da sociedade só fazem nos distanciar desse conhecimento nato,
tão inerente à nossa espécie que não tem como ser ensinado, apenas ativado
ou desativado.
Neste capítulo, vamos nos debruçar sobre duas maneiras como a ideia da
cultura ocidental moderna a respeito do que é normal prejudica a criação
dos lhos: a erosão de nosso instinto de fazê-lo e a criação de condições de
isolamento ou de estresse inimigas da criação de crianças saudáveis. Se é
preciso um mundo para criar um lho, é preciso uma cultura tóxica para
nos fazer esquecer como fazer isso.

MANUAL DA SUPRESSÃO DO INSTINTO

Recentemente, um manual de criação de lhos escrito por uma economista


sem histórico em psicologia do desenvolvimento, a não ser pelo fato de ser
ela própria mãe, tornou-se um sucesso de vendas. Depois de analisar os
números, Emily Oster apresenta Cribsheet: A Data-Driven Guide to Better,
More Relaxed Parenting, From Birth to Preschool (A planilha do berço: um
guia baseado em dados para criar os lhos melhor e com mais
tranquilidade, do nascimento ao jardim de infância). O livro desvaloriza,
entre outras coisas, práticas tão ancestrais quanto a amamentação e dormir
na mesma cama com um recém-nascido. Conforme expressado num per l
favorável publicado na revista e New Yorker, “Um dos principais lemas
[desse] livro é que as preferências de pais e mães têm importância. O que
você quer?”. O elogio é revelador: o princípio dominante é aquilo que o pai
ou a mãe preferem, não aquilo de que a criança precisa. É aí que está o
problema: qualquer contexto cultural tende a moldar a preferência de seus
membros à sua própria imagem. O que nós adultos “preferimos” em
circunstâncias antinaturais pode muito bem estar em con ito com aquilo
que a natureza nos faria escolher. Acontece que os pais e mães de hoje em
dia escutam as dicas de uma cultura que perdeu o contato tanto com as
necessidades da criança em desenvolvimento quanto com aquilo de que pais
e mães precisam para suprir essas necessidades.
As intenções de Oster sem dúvida são boas. Por volta da época do
lançamento de seu livro, o site do e New York Times publicou um artigo
de opinião assinado por ela com o seguinte título: “Os números de que todos
os pais e mãe cheios de culpa precisam”.1 Libertar outros pais e mães de
sentirem vergonha é um objetivo louvável. No entanto, tirando o fato de até
mesmo os números mais cuidadosamente escolhidos serem um antídoto
ruim para a culpa, e se a questão fosse mais complexa? E se a angústia que
pais e mães sentem re etisse não uma falta de informação ou de números,
mas sim uma alienação cultivada há muito tempo e culturalmente induzida
por seus próprios instintos mais profundos? De modo bem semelhante aos
genes em que estão codi cados, os instintos não se a rmam de maneira
automática ou autônoma. Eles precisam ser despertados pelo entorno
adequado, caso contrário corremos o risco de perder contato com eles. Isso
vale tanto para os seres humanos quanto para outros animais forçados a
viver em circunstâncias antinaturais. Podemos considerar que a proliferação
de “especialistas em criação de lhos” da nossa época seja um sinal dessa
desconexão, não uma solução para ela.
A cultura do início do século XXI não é exatamente a única responsável
por isso, claro. Da mesma forma que no caso das teorias sobre a natureza
humana, as atitudes, abordagens e doutrinas relacionadas à criação dos
lhos ao longo da civilização ocidental re etiram, e reforçaram, sua época e
local especí cos. Trata-se de uma trajetória das mais desoladoras, em que
existe infanticídio, terror e abuso, tudo normalizado na respectiva época.
Por volta do século XIV, como escreve o psico-historiador Lloyd deMause,
“não havia imagem mais popular do que a da moldagem física das crianças,
que eram vistas como uma cera, um gesso ou uma argila a ser batida para
tomar forma”.2 O intuito era, do nascimento em diante, destruir o espírito
independente da criança. Também foi por volta dessa época, assinala ele,
que os manuais para criação de lhos começaram a se multiplicar
loucamente.
Em meados do século XIX veio o que deMause denomina o modo de
socialização, cujo objetivo é a promoção de uma personalidade socialmente
funcional, que “desempenhe bem junto com outras”, ou seja, que se
conforme às expectativas da sociedade. Essa abordagem tornou-se “a origem
de todos os modelos psicológicos do século XX”. Entre eles está aquele
popularizado pelo emblemático Benjamin Spock, para muitos o guru da
criação dos lhos. Em Meu lho, meu tesouro, best-seller que in uenciou
gerações, o bom doutor propunha uma cura para o que chamava de
“resistência crônica ao sono na infância”. O modo de garantir que o bebê
não “exercesse tal tirania”, escrevia ele, era “dizer boa-noite com carinho,
mas com rmeza, sair do quarto e não voltar mais”. Isso mesmo: a “tirania”
de um bebê siológica e emocionalmente programado para ansiar pela
proximidade física do pai ou da mãe, como fazem todos os lhotes de
mamíferos.
Hoje em dia, o modo de socialização segue dominando boa parte dos
conselhos que pais e mães continuam recebendo de “especialistas” e pares.
Recentemente, Jordan Peterson deu sua contribuição a respeito de como
criar “so sticados habitantes do mundo fora da família”. Em seu enorme
sucesso de vendas 12 regras para a vida: Um antídoto para o caos, Peterson
alerta os pais:

A nal, vocês amam seus lhos. Se os seus atos os tornam desagradáveis


para vocês, pensem no efeito que vão ter nas outras pessoas, que gostam
muito menos deles do que vocês. Essas outras pessoas vão puni-los […]
Não deixem isso acontecer. Melhor ensinar aos seus monstrinhos o que é
desejável e o que não é.3

Para alcançar esse objetivo, Peterson recomenda a intimidação gestual e


física.
A “socialização” talvez seja uma abordagem mais gentil do que tratar as
crianças como uma massa moldável inanimada, mas mesmo assim está
centrada em algo distinto das necessidades delas, a saber, as exigências da
sociedade, da qual pais e mães agem como bem-intencionados porém
involuntários agentes. Para ver que outras coisas poderiam ser possíveis,
olhar para culturas mais antigas e mais em contato com a natureza do que a
nossa pode ajudar. Essas culturas não precisam de “especialistas em criação
dos lhos”, pois o conhecimento foi transmitido de geração em geração,
quer por meio de instruções ou da simples imitação. Compare o conselho de
Spock com aquele que uma idosa da população cri me deu certa vez: “No
nosso clã, não se permitia que as crianças sequer tocassem o chão antes de
completarem 2 anos. Elas passavam o tempo inteiro no colo.” Ou então
comparem as dicas de Peterson para lidar com “monstrinhos” com a
descrição da antropóloga Ashley Montagu das práticas tradicionais de
criação dos lhos entre os inuítes netsilik, nos territórios do Noroeste do
Canadá: “Embora viva em condições extremamente difíceis, a mãe netsilik é
uma pessoa tranquila, que trata os lhos com afeto e um cuidado amoroso.
Ela nunca recrimina seu bebê nem interfere nele de modo algum a não ser
para atender às suas necessidades.”4 De alguma forma, ao que parece, essas
crianças conseguiram crescer e se tornar membros produtivos e, sim, parte
de suas comunidades, mesmo sem as admoestações severas de Peterson.
Na realidade, nosso instinto parental nato é perfeitamente calibrado para
garantir o provimento daquilo que muitos “especialistas” gostariam que
ignorássemos: as necessidades de desenvolvimento da criança.
E há uma reviravolta nesse roteiro: não estamos falando apenas das
necessidades das crianças. Num sentido real, não podemos sequer falar
sobre as necessidades do bebê sem levar em conta as da mãe. “Um bebê não
existe isoladamente”, a rmou certa vez o pediatra britânico D. W. Winnicott,
que explicou: “Mostre-me um bebê, e certamente estará me mostrando
alguma outra pessoa cuidando desse bebê […] O que existe é uma ‘dupla de
cuidados’ […] A unidade não é o indivíduo, mas sim o conjunto indivíduo-
entorno.”5 Ou, nas palavras de Ashley Montagu: “Quando um bebê nasce,
nasce junto uma mãe. Há indícios consideráveis de que, nessa hora e por
meses depois disso, as necessidades de contato da mãe superam as do
bebê.”6 E isso é bom: se não fossem os incentivos siológicos e emocionais
intrínsecos nos cuidadores, a parentalidade seria ainda mais árdua do que já
é. Menos bebês teriam suas necessidades de sobrevivência atendidas se o
provimento dessas necessidades não fosse recompensador para pais e mães.
Com nossa maestria habitual, nossa constituição interpessoal-biológica
exige que nossas demandas sejam mútuas. (Um dos impactos negativos do
modo de agir de nossa cultura é que o estresse tende a minimizar essas
recompensas natas, tornando o ato de criar lhos mais frustrante e mais
desa ador do que normalmente deveria ser.)
A poeta Adrienne Rich expressou as profundas alegrias desse
funcionamento recíproco:

Lembro das vezes em que, ao amamentar cada um de meus lhos, via os


olhos deles se abrirem totalmente e encararem os meus, e me dava conta
de que estávamos ambos ligados um ao outro, não só pela boca e pelo
peito, mas por nosso olhar mútuo: a profundidade, a calma, a paixão
daquele olhar azul-escuro tão maduro e tão rme. Lembro do prazer
físico de ter meu seio cheio mamado num momento em que eu não
tinha nenhum outro prazer físico no mundo exceto aquele, cheio de
culpa, de comer compulsivamente.7

De um ponto de vista neurobiológico, Rich acertou em cheio o alvo. Em


estudos de imagem, o sorriso de um bebê ativa as mesmas áreas de
recompensa no cérebro da mãe que são ativadas pela junk food ou por
drogas viciantes, liberando as mesmas substâncias químicas e causando a
mesma euforia.8 A natureza, essa tra cante sem escrúpulos.
Assim como todas as estruturas cerebrais complexas, os sistemas de
vínculo dos mamíferos, sejam baleias, chimpanzés, ratos ou seres humanos,
dependem da experiência para seu desenvolvimento e ativação. Para que os
circuitos cerebrais do cuidado possam funcionar, para que possam por
assim dizer “ser ligados”, o entorno precisa primeiro despertá-los, em
seguida mantê-los. Tanto homens quanto mulheres possuem no cérebro
circuitos latentes de cuidados com as crianças “à espera do ambiente certo
para ampli car seu potencial”, nas palavras do neurocientista Jaak Panksepp,
o mesmo da nomenclatura PÂNICO/LUTO, BRINCAR e CUIDAR.
Panksepp identi cou e mapeou os centros, circuitos, conexões e substâncias
químicas cerebrais relacionados responsáveis por coreografar o que
denominou “o encantador balé de emoções entre a mãe e seu bebê”. Entre
eles estão mensageiros químicos como a vasopressina, a ocitocina e as
endor nas – opioides naturais do corpo –, todos responsáveis por despertar
em pais e mães hábitos de cuidado essenciais para a sobrevivência dos
lhotes. Lembre-se: são essas as substâncias que, somadas, formam o
“coquetel do amor” liberado pelo trabalho de parto natural. O contato pele a
pele e o aleitamento também causam sua liberação na mãe. A siologia do
bebê e da mãe é, portanto, corregulada por suas interações, e o efeito dessas
interações ou sua ausência pode car gravado num jovem humano pela vida
inteira. Da mesma forma, na falta dessas interações, os instintos de cuidar
podem car silenciados, com consequências de longo prazo para o
relacionamento entre pai/mãe e lhos.9 Nesse aspecto, bem como de outras
maneiras cruciais, nossa cultura se tornou desprovida de contato.
Recordemos que a civilização, da revolução do Neolítico e do advento da
agricultura em diante, não passa de um ín mo fragmento no curso da
existência de nossa espécie, não mais de 12 mil anos dos milhões desde que
os hominínios passaram a viver na Terra e dos estimados 200 mil desde que
a nossa própria espécie entrou em cena. Antes disso e, em muitos lugares,
até muito mais recentemente – e até hoje em algumas localidades isoladas –
as pessoas viviam em pequenos grupos de caçadores-coletores. “As
primeiras experiências comuns de nossos antepassados (e primos, os
caçadores-coletores que viviam em pequenos bandos) proporcionavam uma
coletividade social para o desenvolvimento da natureza humana, para a
essência do que signi ca ser humano”, escreve Darcia Narvaez (os grifos são
dela). A pesquisa por ela conduzida identi cou sete práticas precoces de
criação dos lhos compartilhadas pelos grupos de caçadores-coletores,
práticas que constituem aquilo que ela denomina “ninho evoluído”. Ao ler a
lista, convido o leitor a comparar as experiências nela mencionadas com as
do bebê ou da criança medianos de nossa própria época.
Em meio aos estresses gerados por nossa cultura, até mesmo pais e mães
instruídos de classe média têm di culdade para prover essas necessidades,
isso quando nem sequer estão conscientes da sua existência:

Uma experiência perinatal tranquilizadora


Pronta reação às necessidades do bebê e evitação de perturbações
Contato intenso e presença física constante, incluindo contato em
movimento (carregar e segurar no colo)
Amamentação frequente iniciada pelo bebê por um período de dois a
cinco anos, sendo quatro a idade média do desmame
Uma comunidade de cuidadores adultos variados, afetuosos e reativos
Um clima de apoio social positivo (para mãe e bebê)
Livre brincar criativo na natureza com companheiros de idades
variadas10

“O ninho”, segundo me disse Narvaez,

compreende a mãe relaxada e não estressada durante a gravidez,


processos de parto gentis, experiências perinatais tranquilizadoras,
ausência de separação mãe-bebê, ausência de circuncisão no bebê,11
ausência de procedimentos dolorosos, amamentação e, depois disso, um
contato afetuoso constante durante o primeiro ano e, na realidade,
durante toda a infância e vida.

Lembre-se de que foi de Narvaez a a rmação sobre os seres humanos


serem atípicos da espécie que citei no capítulo 8: eles são os únicos seres na
face da Terra que rotineiramente frustram as necessidades intrínsecas da
própria espécie para um desenvolvimento saudável. “Na nossa cultura”, disse
ela, “nós em grande parte tiramos nossas crianças do ninho. Falta a nós a
maioria dos componentes daquilo que ajuda um bebê a crescer e alcançar
seu potencial pleno, e seu sistema a se desenvolver de modo adequado. É
isso que signi ca tirar do ninho.”
Entre os povos indígenas que a receberam na selva da América do Sul,
Jean Liedloff certa vez observou uma exceção às práticas sociais que provava
uma das regras cardeais relacionadas à disciplina das crianças por pais e
mães:

Certa vez vi um pai jovem perder a paciência com o lho de 1 ano. Ele
gritou e fez um gesto violento enquanto eu observava; pode ser até que
tenha batido na criança. O bebê gritou com um terror ensurdecedor e
inconfundível. O pai cou paralisado com aquele som terrível que havia
causado; cou claro que tinha cometido uma ofensa em relação à
natureza. Eu via essa família sempre, pois minha casa era vizinha à dela,
mas nunca vi o homem perder outra vez o respeito pela dignidade do
lho.12

A palavra dignidade se destaca: quantos de nós pensam em bebês nesses


termos? No entanto, tal omissão talvez só faça sublinhar nossas falhas no
que diz respeito às crianças. Pense: mesmo que você nunca tenha chamado
um bebê de “digno”, certamente já deve ter encontrado alguns bebês
indignados. E a palavra não está sendo usada no sentido gurado. Até
mesmo os bebês, talvez especialmente eles, sabem quando sua integridade
física e emocional está sendo ignorada ou violentada. A história de Liedloff
se alinha com os achados de Narvaez sobre caçadores-coletores em
pequenos grupos, e sobre o que se observou nas culturas originárias: de
modo geral, essas culturas não normalizavam o fato de bater nos lhos, e
continuam a não fazê-lo. Ao desembarcar no litoral do “Novo Mundo”, os
cristãos europeus imbuídos, ou assim pensavam, do bondoso espírito de
Jesus, caram consternados ao ver que os “selvagens” da América do Norte
evitavam castigar sicamente as crianças.13 A ética puritana, por sua vez, era
“lançar mão da vara e das reprimendas”, nas palavras de um pastor do
século XVII em Massachusetts.14
Esse costume pode ter caído em desuso desde então, mas não
totalmente. “Defender a teoria de que não há justi cativa para a punição
física”, escreve Jordan Peterson (grifo dele), pressupõe que “a palavra não
possa ser proferida com e cácia para terceiros sem estar acompanhada pela
ameaça de punição”.15 Para o professor, “terceiros” nesse caso signi ca uma
criança de 2 anos, a quem em outro trecho ele se refere com a encantadora
expressão “o pestinha decidido”. Para Peterson, imerso na ideologia
behaviorista, disciplinar muitas vezes se resume a intimidar as crianças, algo
que conseguimos fazer, escreve ele, pelo fato de sermos “maiores, mais fortes
e mais capazes do que ela”, e podermos portanto sustentar nossas ameaças.
Ele se gaba, orgulhoso: “[Quando] minha lha era pequena, eu era capaz de
paralisá-la e imobilizá-la com um olhar de censura.” Na Grã-Bretanha, duas
manchetes do e Telegraph, de 2011 e 2012 respectivamente, ressaltaram
que tais atitudes não são nem de longe um caso isolado: “A palmatória
passou tempo demais descansando: permitir que os professores empreguem
nem que seja a mais leve dose de força física vai melhorar a disciplina” e
“Disciplina escolar: poupar a palmatória mimou as crianças – O que pode
ser feito para reverter o colapso da disciplina desde a proibição dos castigos
físicos?”.
De volta ao mundo da ciência, a Academia Americana de Pediatria, após
avaliar quase uma centena de estudos, emitiu em 2018 uma declaração
alinhada com os conhecimentos ancestrais. O texto pedia o m das surras e
castigos verbais contra crianças e adolescentes. Esses tratamentos, segundo
assinalou a organização formada por 67 mil especialistas em pediatria, só
fazem aumentar a agressividade a longo prazo, e prejudicam o
desenvolvimento do autocontrole e da responsabilidade. Ao elevar os níveis
de hormônio do estresse, eles podem causar danos ao desenvolvimento
saudável do cérebro e acarretar problemas de saúde mental.16 Mais
recentemente, um estudo de Harvard mostrou que os danos causados no
sistema nervoso e na psique da criança que apanha podem ser tão
profundos quanto os causados por violências mais graves.17 A boa notícia é
que a maré está virando, e os pais mais jovens são cada vez menos
propensos a usar a punição corporal, talvez num bem-vindo exemplo do
futuro nos fazendo voltar ao passado.
Num outro exemplo da desconexão moderna em relação ao instinto e ao
corpo, temos a amamentação. Segundo extensas pesquisas na América do
Norte e em outras partes do mundo, a prática con rma os benefícios tanto
para a saúde da criança quanto, a longo prazo, da mãe.18 Como disse à
revista e New Yorker Lori Feldman-Winter, presidente da Academia
Americana de Pediatria, ao desvalorizar a prática a economista Emily Oster
está simplesmente equivocada do ponto de vista da ciência. “É basicamente
tão ruim quanto os antivacina”, comentou ela.19
Noutro trecho, Oster escreve que “a maternidade pode ser solitária e
isoladora”. Nada mais verdadeiro, mas esses atributos se referem não à
maternidade em si, mas à maternidade numa cultura alienante. Plantar uma
horta na Lua seria sem dúvida uma empreitada enlouquecedora, mas isso
nada nos revela sobre jardinagem, apenas que determinadas condições
precisam estar presentes se quisermos ter sucesso. Em determinado
momento, Oster recorda a vez em que foi ao casamento do irmão “e tentei
amamentar minha lha aos berros em um closet onde fazia 38°C”. Difícil
pensar numa metáfora mais adequada para as condições anormalmente
estressantes que nossa cultura impõe a bebês e mães do que esse closet:
levada a sentir vergonha ou afastada e isolada, escondida, claustrofóbica,
apertada, suando em bicas. Considerando como a neurobiologia
interpessoal funciona, é de espantar que o bebê esteja aos berros? Num
ambiente estressado, como muitas vezes constatei no exercício da medicina
de família, a amamentação em si pode se tornar uma obrigação onerosa e
frustrante, fonte de infelicidade materna e de desconforto para o bebê.
O mesmo vale para determinadas formas de “treinamento de sono”. A
pressuposição de que os bebês precisam ser treinados para dormir tem por
base uma visão cultural segundo a qual a criança deve se adaptar à rotina e
aos objetivos de pais e mães, o que para pais e mães que trabalham ou estão
estressados e sem apoio pode ser um anseio legítimo, inevitável até. Mas
deveríamos deixar bem claro o que está sendo perdido. Como assinala o
psicólogo Gordon Neufeld, o contato físico é a única forma que o bebê tem
de se conectar com o pai ou a mãe. Sua “resistência” a ser posto para dormir
e ver o pai ou a mãe seguir o conselho de Spock de “dar boa-noite com
carinho, mas com rmeza, sair do quarto e não voltar mais” é simplesmente
uma expressão da sua necessidade essencial. Anular nossa reação ao
desconforto de um bebê pode também enfraquecer nossos próprios
instintos de criação, com consequências que perduram muito depois da
primeira infância da criança.
Em 2006, escrevi um artigo de jornal intitulado “Por que não acredito
mais que os bebês devam chorar até dormir”, assinalando que deixar bebês
sozinhos estressa o cérebro deles, com efeitos potencialmente negativos.
Além de machucar o coração da mãe. Citei minha falecida sogra, Monica,
que tinha uma lembrança dolorosa de ser uma jovem mãe no m dos anos
1940 e início dos 1950 e seguir o conselho médico de ignorar o choro de
seus bebês. “Para mim era uma tortura fazer isso”, contou ela. “Ia contra
todas as minhas emoções maternas.” Alguns anos depois, o site do jornal
republicou o artigo, que foi logo compartilhado mais de 80 mil vezes e gerou
várias reações. Uma delas foi ótima:

Esse artigo não passa de uma baboseira do lóbulo pré-frontal. Não há


hipótese de os padrões cerebrais de um bebê serem psicologicamente
dani cados de modo permanente numa idade tão precoce. Não tem
como nosso córtex pré-frontal adotar padrões que vão perdurar até a
idade adulta. Não tem como. Se fosse assim, as últimas três gerações a
dominarem este mundo (os baby boomers, os pré-baby boomers e a
geração X) teriam sido todas emocionalmente instáveis e assoladas por
questões psicológicas.

“Bom”, pensei comigo mesmo, “não tenho mais nada a dizer.”

POR QUE O ESTRESSE PARENTAL TEM IMPORTÂNCIA

Especialmente no início da vida, mas ao longo de toda a infância, o ser


humano jovem usa os sistemas emocionais e nervosos dos adultos
cuidadores para regular os próprios estados internos. A matemática
interpessoal-biológica é implacável: quanto mais estressado o adulto, mais
estressada a criança.
Extensas pesquisas demonstraram que, quando estressados, pais e mães
cam com menos paciência, e castigam mais e são mais duros com os lhos
pequenos. O estresse prejudica sua capacidade de carem calmos, de reação
e sintonia. Como assinalou um artigo recente de pesquisadores renomados:
“Em ambientes mais estressantes para pais e mães, as crianças não só
apresentam menos proteção em relação a fatores de estresse ambientais, mas
têm também maior probabilidade de construir relações com os cuidadores
que induzam ao estresse.”20 Outro estudo mostrou que, enquanto o estresse
elevado induz atitudes mais punitivas nas mães, níveis adequados de apoio
as diminuem de modo favorável. A ciência moderna rea rma mais uma vez
o conhecimento ancestral.
O estresse parental se expressa também de modos menos explícitos,
como por meio da distração e da ausência emocional. Muitos pais e mães,
embora amorosos, vivem frequentemente preocupados com questões
genuínas que têm a ver com problemas de relacionamento, econômicos ou
pessoais, e como consequência simplesmente não se mostram tão atenciosos
ou “presentes”. Isso afeta o desenvolvimento tanto quanto a raiva ou a frieza
parental. “Experimentos com primatas mostram que os bebês podem
apresentar reações severas à separação apesar de a mãe estar visualmente,
mas não psicologicamente, disponível”, relata o pesquisador, psicólogo e
teórico de renome Allan Schore.21 Ele chama esse não contato de “separação
próxima”: tão perto, e ao mesmo tempo tão longe. Devido aos estresses
habitualmente suportados por pais e mães, essa é uma dinâmica vivida por
muitas crianças na nossa sociedade. A mensagem que a criança recebe é:
“Você não merece a minha atenção. Precisa se esforçar para conquistá-la.”
Quer recordemos explicitamente ou não essas experiências, as impressões
que elas deixam sobrevivem em nosso inconsciente e em nosso sistema
nervoso.
A alienação imposta pelas di culdades nanceiras torna as coisas ainda
mais estressantes. “O caráter intranquilo da criação de lhos nos tempos
modernos tem uma motivação poderosa: a ansiedade econômica”, noticiou
o e New York Times em 2018.

Pela primeira vez, as crianças dos Estados Unidos têm 50% de chance de
serem menos prósperas do que seus genitores. Para pais e mães, dar às
crianças o melhor começo na vida passou a signi car fazer tudo que
pudessem para garantir que seus lhos alcancem uma classe mais alta,
ou pelo menos não desçam daquela em que nasceram.22

O impacto involuntário de uma criação tão temerosa e tão movida a


status é que as necessidades emocionais irredutíveis da criança passam para
o segundo plano em relação ao desespero de pais lutando para garantir o
sucesso acadêmico e nanceiro de seus descendentes. Recentemente, uma
pessoa próxima testemunhou uma mãe de classe média gritando com o lho
de 5 anos que não queria fazer o dever de casa: “Você não está pensando no
seu futuro acadêmico!”, esbravejava a pobre mãe com a criança em idade
pré-escolar. Quem dera o pequeno pudesse ter retrucado: “Ah, é? E você não
está pensando no meu futuro psicoemocional!”
Para algumas famílias de dois genitores de uma determinada classe
social, o fato de os dois trabalharem pode ser uma escolha. “Eu amo meus
lhos! Eles não incríveis”, escreve Oster.

Mas eu não seria feliz cando em casa com eles. Não que goste mais do
meu trabalho… se eu tivesse de escolher, as crianças ganhariam todas as
vezes. Mas o “valor marginal” do tempo que passo com eles se deteriora
depressa… A primeira hora com meus lhos é ótima, mas na quarta já
estou pronta para passar um tempo com a minha pesquisa. Meu
trabalho não tem essa queda livre de valor marginal: os altos não são tão
altos, mas a satisfação de hora em hora declina bem mais devagar.23

Oster é sábia ao valorizar a qualidade das horas passadas com os lhos


em vez da simples quantidade, e ela tem todo o direito de defender a própria
escolha, assim como todos nós. A autoexpressão e a validação femininas por
meio da realização de um trabalho signi cativo fora do ambiente doméstico
passou tempo demais sendo sufocada e frustrada.
E é claro que nem a oportunidade de retornar a um emprego
signi cativo, nem a pressão para retomar o trabalho, seja qual for o custo
para a criação dos lhos, tem uma distribuição igualitária entre as mulheres:
como sempre, a classe é uma variável de extrema importância. Muitos pais e
mães são forçados a entrar para a força de trabalho por pura necessidade
econômica, ou então a retornar ao trabalho demasiado cedo. Como eles
podem pensar no futuro dos lhos quando mal conseguem sustentá-los no
presente? Esse é o caso especialmente nos Estados Unidos, onde menos de
20% das mães recentes têm acesso à licença-maternidade. O problema é
ainda maior para as famílias não brancas, declarou ao e Guardian Myra
Jones-Taylor, diretora de políticas na ONG de desenvolvimento infantil Zero
to ree. “Mães e pais simplesmente não têm condições nanceiras de car
em casa com seus bebês”, disse ela.24 Alguns países aplicam políticas bem
mais civilizadas, em especial na Europa Setentrional, onde até o pai pode
tirar licença.
Uma em cada quatro mulheres americanas volta ao trabalho em até duas
semanas após dar à luz, apenas um terço da licença-maternidade pós-parto
recomendada pelo Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas. Até
mesmo essa parca recomendação do colégio parece ter por intenção
simplesmente permitir ao corpo da mãe se curar e se recuperar do esforço
do parto, em especial considerando quantos partos hoje em dia envolvem
intervenção cirúrgica. Essa ausência tão breve do trabalho após o parto
deixa totalmente de fora as necessidades da criança. Pelas exigências
neurobiológicas do bebê, para seu desenvolvimento saudável é necessário
um período bem mais longo com a mãe, idealmente um mínimo de nove
meses até ele alcançar um estado de relativa maturidade biológica. Para o
bebê, a perda súbita de contato com a mãe é um choque, como sabemos a
partir de estudos com animais, mesmo aqueles cujo período de dependência
é bem mais curto que o nosso.25
MÃES E PAIS, ESSES SERES SOLITÁRIOS

O antropólogo britânico Colin Turnbull passou três anos vivendo com os


pigmeus no que se conhecia então como Congo Belga, na África Central.
Até recentemente, esses povos levavam uma vida que remontava a milhares
de anos, provavelmente com poucas alterações. Ele relatou suas observações
no clássico e Forest People (O povo da oresta). “O bebê naturalmente
conhece seus verdadeiros pai e mãe, e tem por eles um afeto especial”,
escreve o autor, “mas desde a mais tenra idade aprende que é lho de todos,
pois todos são lhos da oresta.”26 Na civilização dos caçadores-coletores
que viviam em pequenos bandos, a família estendida e o clã formavam uma
rede indispensável de apoio afetuoso e prestativo. Longe de ser uma
empreitada de duas pessoas (e menos ainda de uma pessoa só), a criação de
um lho funcionava no contexto de um amplo círculo de vínculos num clã
multigeracional, onde o afeto consistente era exempli cado, incentivado e
compartilhado.
O afeto era também suplementado, de um modo ao mesmo tempo
compassivo e absolutamente natural, por um grupo seleto de outras
cuidadoras denominadas por Narvaez alomães, do pre xo grego alo, que
denota “algo diferente do normal”. As alomães “pegam o bebê quando a mãe
precisa de um descanso […] Carregam, ninam e brincam com a criança.
Realizam as tarefas rotineiras […] Elas formam um anteparo para a relação
mãe- lho e pai- lho.” Sabemos, graças a muitos estudos, que quanto mais
apoio os pais recebem, mais atenção conseguem dedicar aos lhos. “Essa era
a tradição em quase todas as sociedades”, escreve Narvaez,

ter um “período de resguardo” para a mãe e o recém-nascido durante o


qual as mulheres da comunidade cuidam da mãe, servindo-lhe chás e
alimentos nutritivos que favorecem o aleitamento e a recuperação. Elas
cuidavam de tudo na casa, para a mãe poder car na cama e dedicar
toda a sua atenção a se vincular ao bebê e amamentá-lo.27
De fato, essas culturas tinham uma política socializada de “cuidados
com as crianças para todos”, o que lhes trazia inúmeros benefícios.
Quando eu estava trabalhando neste capítulo, um ataque terrorista
pavoroso a um hospital de Cabul, no Afeganistão, matou 24 pessoas, entre
elas algumas lactantes. Num dos vídeos mais comoventes que já vi, mulheres
foram até lá acalentar e alimentar os bebês órfãos. “Vim aqui hoje
amamentar esses bebês”, disse uma jovem das redondezas através da
máscara que usava para se proteger da covid-19, “porque eles perderam a
mãe nesse atentado sangrento. Tenho um bebê de quatro meses… e vim
aqui lhes dar um pouco de amor de mãe por meio do aleitamento.”28 Pode
ser que o instinto alomaterno seja tão natural quanto o próprio instinto
materno.
Resumindo: nunca foi a intenção da natureza, se é que podemos usar
esses termos, que uma jovem mãe abalada e confusa como Emily Oster
tivesse que passar por di culdades isolada dentro de um closet, ou de
comprometer os próprios instintos e desejos de se vincular tranquilamente à
própria lha. Não faz parte da criação dos lhos impor esses estresses a
mães e pais; o problema, por assim dizer, é o local de trabalho sociocultural.
Dizer que nos afastamos de um modelo de criação coletiva seria um
eufemismo. A unidade familiar nuclear e isolada de hoje em dia é
diametralmente oposta ao nosso “nicho evolucionário evoluído”, cujos
vestígios cam mais fracos a cada nova década, a cada novo giro da roda do
“progresso” econômico ou tecnológico. Com os precedentes evolucionários
estilhaçados, somos forçados a suportar violações em série de nossa herança
instintiva.
Pense no que aconteceu com as comunidades de bairro em poucas
gerações. Eu e muitos outros da mesma faixa etária ainda nos lembramos de
ter crescido em bairros onde quase todo mundo se conhecia, onde as
crianças passavam o dia brincando na rua e onde todos os adultos,
conhecidos por todo mundo, eram pais e mães postiços, e cavam de olho
em nós ou não hesitavam em nos repreender quando saíamos da linha. As
famílias faziam suas compras em lojas de bairro: a mercearia, a padaria, a
loja de utilidades do lar e o mecânico de automóveis ofereciam suas
mercadorias e serviços a uma distância que se podia percorrer a pé.
(Observação pessoal: na minha infância em Budapeste, a calçada em frente
ao nosso prédio era quase tão larga quanto um parquinho, e desempenhava
esse papel para dezenas de crianças dos apartamentos em volta. Visitei meu
antigo bairro numa viagem recente à Hungria, e vi quanto a calçada agora é
estreita, imprensada entre uma via expressa de várias pistas e um drive-thru
do McDonald’s ao lado de um posto de gasolina.)
Que estranhas parecem hoje essas lembranças, quase como se tivessem
saído do programa infantil Vila Sésamo. As lojinhas de bairro são uma
espécie ameaçada. Apesar de ambientes comunitários pujantes em alguns
locais, em geral cada vez mais nos locomovemos de carro, muitas vezes sem
qualquer outra companhia, para o trabalho ou para fazer compras em algum
estabelecimento sem alma e/ou sem janelas muito distante. No lugar de
conhecidos, cruzamos com estranhos que nos vendem produtos
manufaturados em massa. As interações econômicas antes enriquecidas
pelas relações pessoais, fosse no banco, no posto de gasolina ou no caixa de
uma loja grande, foram sendo substituídas por transações emocionalmente
estéreis e cada vez mais mecanizadas. As calçadas dos bairros, em grande
parte vazias, não são mais animadas pelas brincadeiras ruidosas de crianças
de idades variadas: em sua maioria, essas crianças frequentam escolas
segregadas em grupos de mesma idade. A necessidade de ganhar a vida
força muitas pessoas a se mudarem para muito longe de suas famílias
estendidas.
A frequentação das igrejas e outros vetores de participação com viés
social está em declínio. “No início sem perceber, fomos apartados uns dos
outros e de nossas comunidades no último terço do século”, escreveu em
2000 o professor de políticas públicas de Harvard Robert D. Putnam.29
Criaturas sociais por natureza, nós nos tornamos peixes fora d’água.
As mães, cuja necessidade de conexão é especialmente decisiva, estão
entre as mais afetadas por essas mudanças. Adrienne Rich observa que,
durante a relativa a uência de meados do século XX,
a mudança para os subúrbios, primeiro para a casinha, depois para a
casona, o isolamento do “lar” em relação aos outros lares […] As mães
da classe trabalhadora em seus novos apartamentos e as esposas
acadêmicas com sua recém-adquirida a uência, todas perderam alguma
coisa: elas se tornaram num grau mais extremo mulheres mais limitadas
ao ambiente doméstico, mulheres isoladas.30

Essas tendências estão se rmando internacionalmente e com força cada


vez maior sob a in uência do capitalismo globalizado.
Embora não haja sentido em car ansiando por um passado idealizado,
um declínio na coesão e no apoio comunitário é discernível e lamentável.
“Em décadas anteriores, os vínculos sociais existiam”, relatou numa
entrevista James Garbarino, que estudou a vida inteira desenvolvimento
infantil e é professor de psicologia humanística na Universidade Loyola.

Embora o valor do individualismo existisse, as estruturas sociais que


mantinham as pessoas unidas eram mais evidentes. Muitas dessas
estruturas se atro aram, ou as pessoas optaram por abrir mão delas sem
se darem conta da importância que elas tinham para o seu bem-estar no
passado. As pessoas não sabiam conscientemente quão importantes
eram essas estruturas, por isso sentiram que podiam se livrar delas sem
custo.

Joni Mitchell tinha razão: nós realmente não sabemos o que temos até
não termos mais.
Uma cultura onde a natureza se tornou a exceção é uma cultura em
apuros. Para realizar o trabalho que a evolução nos con ou, e para acessar e
con ar em nossos instintos naturais previstos para esse trabalho, precisamos
uns dos outros e de apoio comunitário e social, exatamente como nossos
lhos precisam de nós. Criar os lhos em situação de isolamento é criar os
lhos em situação de estresse, assim como tentar acompanhar os últimos
conselhos contrainstintivos de “especialistas” do complexo industroparental
(com minhas desculpas a Dwight Einsenhower).31 Uma criação dos lhos
atormentada, por sua vez, é um criadouro de mal-estar pessoal e societal.
13

Forçar o cérebro na direção


errada:
a sabotagem da infância

Não existe algo mais revelador da alma de uma sociedade do


que o modo como ela trata suas crianças.
– NELSON MANDELA1

“O senhor já foi acusado de culpar as mães?”, perguntei ao pediatra e


pesquisador de Harvard Jack Shonkoff. “Eu me preocupo bastante com isso”,
respondeu ele. “Se falamos sobre quão in uente é o ambiente das relações,
podemos acabar descambando num terreno escorregadio, com as pessoas
dizendo: ‘Pais e mães estão fazendo um trabalho ruim; a culpa é deles.’”
Shonkoff, cujo trabalho já lançou luz em grande parte da ciência do
desenvolvimento humano inicial, resumiu então o dilema central encarado
por alguém que tenta se relacionar de modo honesto com essas questões:
“Não se pode dizer que pais e mães são extremamente importantes na vida
dos lhos, mas que se houver um problema isso não tem nada a ver com
eles. A verdade, no entanto, é que pais e mães não criam os lhos isolados
da sociedade.”
Uma visão mais ampla requer uma lente mais aberta. Sim, mães e pais
são responsáveis por seus lhos; e não, eles não criaram o mundo em que
precisam criá-los.
Nossa ecologia cultural não dá apoio a uma criação de lhos
sintonizada, presente, atenciosa e conectada. Como vimos, a
desestabilização começa com o estresse transmitido aos bebês ainda no
útero, com a mecanização do parto, com a atenuação do instinto materno e
paterno e com a negação das necessidades de desenvolvimento da criança.
Ela prossegue com as pressões econômicas e sociais, cada vez mais
intoleráveis, exercidas hoje em dia sobre pais e mães e com a erosão dos
vínculos comunitários, e é magni cada pela desinformação que pais e mães
recebem a respeito de como educar os lhos. Reforçado por sistemas
educacionais que com grande frequência estressam os alunos com pressões
para competir, o processo culmina com a exploração de crianças e jovens
para a glória do mercado de consumo.
Mães e pais fazem amorosamente o seu melhor; eu pelo menos z.
Também sei muito bem que o meu “melhor” era limitado pelo que eu ainda
não sabia nem sobre mim mesmo, nem sobre criar lhos. Por mais nobres
que sejam nossas intenções, nossa capacidade de segui-las é muito
in uenciada por nossas experiências iniciais e traumas não resolvidos, pelas
expectativas sociais que somos encarregados de transmitir a nossos lhos e
pelos estresses da vida. Saber disso me liberta do sentimento de culpa,
sobretudo quando vejo as marcas que as limitações do meu eu mais jovem
deixaram nos meus lhos? Não, não automaticamente. Mas pelo menos
tenho consciência de que a culpa e a responsabilização não servem para
nada, e além disso não são o mais importante, em especial quando
entendemos o contexto. Como ressaltou James Garbarino em 1995:
“Precisamos deixar de lado a culpabilização dos pais e dar uma boa olhada
no desa o de criar lhos num ambiente socialmente tóxico.”2
Na época codiretor do Centro de Desenvolvimento da Vida em Família e
professor de desenvolvimento humano na Universidade Cornell, Garbarino
observou que, dentre as muitas facetas do ambiente socialmente hostil para
a criação dos lhos estavam “a violência, a pobreza e outras pressões
econômicas sobre pais e mães e seus lhos, a ruptura das relações, a
crueldade, o desalento, a depressão, a paranoia, a alienação: todas as coisas
que desmoralizam as famílias e comunidades”. Ele escreveu também sobre
“muitas, muitas outras que são sutis, mas igualmente graves. No topo da
lista está a partida dos adultos da vida das crianças”.3 Essa ruptura radical
das normas evolucionárias passa bastante despercebida. Pior: nós a
confundimos com o estado natural das coisas.
Uma consequência automática do enfraquecimento de laços
comunitários e familiares é que nossas crianças precisam procurar em
outros lugares os vínculos que lhes são necessários. Assim como os lhotes
de muitas espécies, as crianças precisam se apegar a alguém na vida: sua
neuro siologia assim exige. Na ausência de uma gura con ável à qual se
apegar, elas cam assustadas e desorientadas. A ação do seu cérebro
começa a dar defeito. De fato, circuitos cerebrais essenciais relacionados a
capacidades como aprendizado, interação social saudável ou regulação
emocional não se desenvolvem adequadamente.
Nada no cérebro de uma criança lhe diz a quem ela deveria se apegar. A
pressuposição da natureza, se é que podemos usar esse termo, é que pais e
mães estarão presentes de forma consistente. As crianças nascem com essa
expectativa codi cada em seu corpo e seu sistema nervoso. O cérebro
imaturo não consegue suportar o que Gordon Neufeld chama de “vácuo do
apego”: uma situação em que não existe uma gura de apego disponível com
a qual se conectar. Inevitavelmente, assim como, na ausência da mãe, um
patinho recém-nascido con a e segue a primeira criatura que vê – ganso,
esquilo, guarda orestal ou mesmo robô em forma de carro de brinquedo –,
o vácuo precisa ser e será preenchido por quem quer que esteja por perto.
Hoje em dia, para nossos lhotes, “quem quer que esteja por perto” a
partir da mais tenra idade é na maior parte das vezes o grupo de pares. À
deriva devido ao declínio da comunidade multigeracional liderada pelos
adultos, crianças e adolescentes precisam buscar aceitação uns nos outros.
Do ponto de vista do desenvolvimento, isso é uma missão impossível.
Que que claro: o desejo, ou mesmo a necessidade, de formar conexões
próximas com o grupo de mesma idade é algo natural e saudável. Essas
amizades podem estar entre os vínculos mais ricos formados ao longo de
uma vida. Da perspectiva do desenvolvimento emocional, porém, a
orientação dos pares – a substituição dos adultos como fonte e local
primários de vínculo para a criança em prol de indivíduos de mesma idade –
é um desastre.4 Como diz o ditado, os cegos são mais capazes de guiar
outros cegos do que criaturas imaturas de guiar umas às outras até a
maturidade psicológica. Aaron, o mais novo de meus dois lhos, hoje com
43 anos, agora pode ver como essa dinâmica o limitou. “Quando eu era
adolescente, vivia obcecado com o que meus amigos achavam de mim,
quanto gostavam de mim, o que era preciso para eu corresponder às
expectativas deles”, relembrou ele pouco tempo atrás. “Isso me fez continuar
imaturo até a idade adulta.” É claro que essa orientação dos pares não tinha
a ver com os pares do meu lho em si: ela era um desfecho natural da falta
de disponibilidade do pai e da mãe como adultos emocionalmente
sintonizados em seus primeiros anos de vida.
Como vimos, a segurança emocional, formada por meio de conexões
seguras baseadas num valor incondicional, é um pré-requisito para o
amadurecimento. Em geral, uma vez que as crianças são absorvidas pelo
mundo dos pares, elas perdem a segurança da conexão primária com os
adultos.5
Em culturas cujas prioridades estejam na ordem correta, as primeiras
amizades orescem num contexto comunitário, supervisionadas por adultos
carinhosos. Na nossa sociedade, as interações entre pares não ocorrem no
contexto de relacionamentos adultos protetores, mas sim longe deles.
Quando as crianças passam grande parte do seu tempo longe dos
adultos cuidadores, o cérebro delas é forçado a escolher entre dois vínculos
que competem entre si: o chamado natural da conexão com pai e mãe, ou o
canto da sereia do mundo dos pares. Se pais e mães saem perdendo nessa
competição, as crianças precisam necessariamente olhar umas para as
outras. Ou seja, elas também saem perdendo. Tudo isso é exacerbado pelos
atrativos de uma cultura pop que considera celebridades adolescentes
imaturas ídolos a serem “seguidos” – termo revelador – nas redes sociais por
vários milhões de crianças e adolescentes. Em épocas anteriores, esses
jovens teriam considerado mais adequado copiar guras adultas maduras.
Alguns pais e mães que estejam lendo isso talvez protestem: “Mas os
amigos do meu lho parecem ótimos, tolerantes e com a mente aberta!” Por
mais reais e merecedoras de celebração que essas qualidades sejam, uma
criança que busque seu apoio e conforto primários no grupo de pares é mais
um sinal de “adaptação” do que um motivo de esperança, principalmente
em idades mais precoces. Até mesmo para os mais nobres dos pares, é difícil
proporcionar o tipo de conexão sólida que a segurança do desenvolvimento
demanda. Entre outras falhas, as crianças não podem contar umas com as
outras para se manterem internamente consistentes: muitos de nós serão
capazes de lembrar um primeiro dia infeliz de aula, em que camos
chocados ao constatar que nossos antes amigos tinham se metamorfoseado
durante as férias de verão em pessoas bem menos amigáveis. As crianças
tampouco podem oferecer umas às outras a apreciação positiva
incondicional que promove o crescimento sadio, qualidade que até mesmo
para adultos bem-intencionados é um desa o proporcionar. Em geral, os
pares imaturos são, em sua constituição, incapazes de aceitar uns aos outros
“como são”; de abrir espaço para a experiência vulnerável das emoções,
quanto mais para sua franca expressão; de aliviar o estado de estresse uns
dos outros; ou de celebrar ou mesmo tolerar as diferenças de temperamento.
Com sua imaturidade natural, o grupo de pares só pode oferecer uma
aceitação altamente condicional, e portanto insegura, que muitas vezes exige
autossupressão e conformidade no lugar da verdadeira individualidade.
Em casos mais extremos, a orientação dos pares expõe as crianças à
ameaça de rejeição, ostracismo e bullying. Segundo uma matéria de 2001
assinada por Natalie Angier no e New York Times:

O noticiário está repleto de relatos de como o bullying é prevalente.


Num dos maiores estudos já conduzidos sobre desenvolvimento infantil,
pesquisadores dos Institutos Nacionais de Saúde [dos Estados Unidos]
observaram que cerca de 25% de todas as crianças do ensino
fundamental avançado eram ou perpetradoras ou vítimas (ou em algum
caso ambos) de situações graves e crônicas de bullying, comportamentos
que incluem ameaças, ridicularização, xingamentos, socos, tapas,
provocações e zombarias.6

Padrões semelhantes foram relatados na Europa.7 Da Espanha à


Alemanha, da Inglaterra à República Tcheca, agentes públicos e
administradores de escolas tiveram que enfrentar essa questão. A
Organização Mundial da Saúde estimou em 2012 que um terço das crianças
relatou já ter sofrido bullying por parte de seus pares.8 Ultimamente,
ouvimos um número excessivo de relatos de crianças ou adolescentes que
manifestam ou no mínimo ngem indiferença diante do sofrimento real, e
chegam até a “curtir” isso. Lemos relatos frequentes de bullying ou agressões
sexuais compartilhados nas redes sociais por adolescentes como se fossem
historinhas divertidas, muito embora a dor causada também tenha levado a
suicídios e automutilações.
Em 2019, a morte por overdose de um adolescente angustiado num
subúrbio de Vancouver chocou o mundo. Conforme noticiado pelo National
Post:

No dia 7 de agosto, Carson Crimeni, um menino de 14 anos descrito na


imprensa como solitário e desesperado para se encaixar, consumiu
drogas com um grupo de adolescentes mais velhos num parque de skate
em Langley, na Colúmbia Britânica. Conforme ele foi cando cada vez
mais desorientado, os mais velhos começaram a lmá-lo. Zombaram e
riram dele. Eles publicaram os vídeos na internet e os divulgaram.
“Moleque de 12 anos fritado de bala”,9 escreveu um deles na legenda de
um vídeo de Carson todo suado. Com seu moletom cinza de capuz e sua
calça preta, o menino parece minúsculo no vídeo. “Ele tomou 15
cápsulas”, escreveu alguém na legenda de outro vídeo segundo o canal
Global News. Nos vídeos mais recentes, os olhos do menino giram e
saltam das órbitas. Ele sua tanto que chega a encharcar o moletom. Seu
nariz não para de escorrer.
Horas depois, ele foi encontrado quase morto, já num estado
comprometido demais para poder ser ressuscitado. Mesmo nesse momento
terrível, relatou o canal CBC, “outro adolescente postou na rede social uma
foto da ambulância com a legenda: ‘O Carson quase morreu kkkk.’”10 Muito
pouco tempo depois, não havia mais “quase”.
A tragédia de Carson Crimeni pode ter sido um caso extremo, mas
muitas crianças hoje em dia vivem assombradas pela rejeição, pela zombaria
ou pelo bullying de seus pares, ou então podem elas próprias se tornar
praticantes de bullying. Numa atmosfera assim, a reação de proteção de uma
criança é reprimir suas emoções vulneráveis. Essa fuga da vulnerabilidade,
quer instigada por situações de estresse em casa ou no contexto de um
grupo de pares, inibe o amadurecimento, o surgimento de um eu
verdadeiramente independente.
“Há indicadores de que as crianças de hoje estão perdendo sentimentos
delicados”, a rmou Gordon Neufeld em seu contundente pronunciamento
no Parlamento Europeu.11

Muitas crianças perderam sua tristeza e sua decepção […] seus


sentimentos de alarme […] seus sentimentos de vergonha e
constrangimento. De modo interessante, as pesquisas revelam que,
quando as crianças perdem a capacidade de se sentirem encabuladas,
perdem também a empatia. Na verdade, o fato de ligar para os outros
também é uma emoção vulnerável, já que ela nos expõe à decepção.
Sabemos que a experiência que mais fere é ter de enfrentar a separação
[…] Infelizmente, as crianças de hoje em dia estão submetidas a mais
separação [de pais e mães] e mais interação com os pares do que nunca.

O resultado, conclui ele, “é uma perda signi cativa de emoção”,


conforme o aparato defensivo do jovem cérebro se imobiliza num esforço de
“se defender […] contra uma sensação de vulnerabilidade por demais
avassaladora”. Mais uma vez, vemos o aparato emocional da criança se
enfraquecendo, sua sensação de ser humana empobrecida.
Mas por que nossas crianças deveriam permanecer abertas para a
própria vulnerabilidade? Nós devemos querer que elas estejam propensas a
ser machucadas? Gordon e eu ressaltamos esse tema no livro que
escrevemos juntos:

Nossas emoções não são um luxo, mas sim um aspecto essencial de


nossa constituição. Nós as temos não apenas pelo prazer de sentir, mas
porque elas têm um valor de sobrevivência crucial. Elas nos orientam,
interpretam o mundo para nós, nos dão informações vitais sem as quais
não podemos vicejar. Elas nos dizem o que é perigoso e o que é
inofensivo, o que ameaça nossa existência e o que vai alimentar nosso
crescimento. Imagine quão comprometidos estaríamos se não
conseguíssemos nem escutar, nem sentir o gosto das coisas, nem frio ou
calor ou dor física. Sufocar as emoções é perder uma parte indispensável
de nosso aparato sensorial e, para além disso, uma parte indispensável
de quem somos. São as emoções que fazem a vida valer a pena, que a
fazem ser empolgante e lhe dão signi cado. Elas conduzem nossas
explorações do mundo, motivam nossas descobertas e estimulam nosso
crescimento. Até num nível celular, os seres humanos estão ou no modo
de defesa ou no de crescimento, mas não podem estar nos dois ao
mesmo tempo. Quando as crianças deixam de ser vulneráveis, elas
param de se relacionar com a vida como uma in nita possibilidade, com
elas mesmas como dotadas de um potencial sem limites, e com o mundo
como uma arena acolhedora e afetuosa para a expressão de si mesmas. A
invulnerabilidade imposta pela orientação dos pares aprisiona as
crianças em suas limitações e medos. Não é de espantar que tantas delas
ultimamente estejam sendo tratadas por causa de depressão, ansiedade e
outros transtornos.
O amor, a atenção e a segurança que só os adultos são capazes de
oferecer liberam as crianças da necessidade de se tornar invulneráveis, e
lhes restitui o potencial de vida e aventura que as atividades de risco, os
esportes radicais ou as drogas jamais serão capazes de proporcionar.
Sem essa segurança, nossas crianças são forçadas a sacri car sua
capacidade de crescer e amadurecer psicologicamente, de criar
relacionamentos signi cativos e de concretizar seus anseios mais
profundos e mais potentes de autoexpressão. Em última análise, a fuga
da vulnerabilidade é uma fuga de si. Se não mantivermos nossas
crianças perto de nós, o custo nal é a perda da capacidade delas de se
agarrar ao seu eu mais genuíno.

Por que a fuga da vulnerabilidade inibe o amadurecimento? Nada na


natureza “se torna ele(a) mesmo(a)” sem estar vulnerável: o crescimento até
da mais imponente árvore exige brotos macios e tenros, assim como o
crustáceo de carapaça mais dura precisa primeiro trocar de casca e
amolecer. O mesmo vale para nós: sem vulnerabilidade emocional não há
sofrimento. Até mesmo nossas características mais “duras”, como a
resiliência, a determinação, a autocon ança e a coragem, se forem autênticas
e não simples bravatas, precisam desse estado mais macio como um
precursor necessário.
Além de impedir amadurecimento, a supressão dos sentimentos
vulneráveis reforça a sensação de vazio. Ela promove o tédio, prejudica a
verdadeira intimidade, solapa a curiosidade e o aprendizado, alimenta a
demanda por distração do momento presente e conduz a uma compulsão
pelo estímulo excessivo por meio de jogos competitivos, ruído de fundo
incessante, situações e comportamentos sociais de risco, consumismo e a
busca de uma válvula de escape por meio de substâncias químicas.
O imperativo do lucro que dá vida à sociedade materialista é
extremamente competente em explorar essas pseudonecessidades
culturalmente criadas das crianças e jovens. “Deveríamos estar
profundamente preocupados com a alma da nossa sociedade”, escreve o
professor de direito da Universidade da Colúmbia Britânica Joel Bakan em
Childhood Under Siege (Infância em estado de sítio).12 Meticulosamente
documentado e chocante, o livro de Bakan mostra as diversas formas como
as empresas lançam mão de uma compreensão so sticada e sinistra das
necessidades emocionais infantis para gerar lucro. Nesse caso, a
manipulação tem sido e continua a ser muito consciente. Em 1983, as
grandes empresas gastaram 100 milhões de dólares em publicidade
direcionada a crianças. Menos de três décadas mais tarde, o número tinha
saltado para 15 bilhões.13
Ao mesmo tempo que o estresse parental e a orientação dos pares
enfraquecem as conexões das crianças com adultos afetuosos, o cerco
corporativo a suas mentes imaturas explorou e exacerbou o vazio gerado
pela perda de conexão. Eles agem simbioticamente para remover da infância
a riqueza emocional que alimenta nosso desenvolvimento. Uma década
atrás, Bakan alertou:

A criança americana média assiste a 30 mil anúncios de TV por ano, a


maioria dos quais lhe oferece diretamente produtos […] e todos
transmitem uma série de mensagens sutis e corrosivas: de que elas vão
encontrar felicidade por meio de sua relação com produtos e coisas, não
com pessoas; de que, para serem descoladas e aceitas pelos pares, elas
precisam comprar determinados produtos; de que as empresas de
alimentos ultraprocessados e os fabricantes de brinquedos, não os pais e
os professores, são quem sabe o que é melhor para elas; de que as marcas
corporativas são as verdadeiras bases do seu valor e da sua identidade
social.14

Essas tendências só zeram se acelerar desde então, com a expansão


ainda maior das redes sociais e da publicidade digital.
Bakan entrevistou alguns dos principais marqueteiros infantis do
mundo. Um deles, o dinamarquês Martin Lindstrom, manifestou sérias
dúvidas quanto aos resultados do seu trabalho. Segundo Lindstrom, escreve
Bakan, “a exposição constante e cada vez mais profunda das crianças ao
marketing está levando a um ‘desastre em matéria de crianças e de seu
futuro […] muito pouco saudável, e o que estamos vendo agora é só o
começo’”. Lindstrom previu que sua indústria continuaria a erodir a
imaginação e a capacidade criativa das crianças. Apesar disso, ele continuou
no emprego. “Esses marqueteiros são inteligentes, perceptivos e um tanto
maus”, explicou Bakan, “porque entendem o que estão fazendo. Quando
você fala com ele, que também é pai, [Lindstrom] se mostra bastante crítico
em relação ao assunto, e acha que está tudo indo numa direção horrível.”
A compreensão da mente infantil por Lindstrom, conforme resumida
por Bakan, é alarmante de tão certeira:

As emoções são o motor de tudo para as crianças […] e os marqueteiros,


para terem sucesso, precisam mobilizar as emoções mais fundamentais
no nível mais profundo. O amor, que conota cuidado, afeto e romance, é
uma dessas emoções fundamentais […] O medo é outro, como na
violência, no terror, no horror, na crueldade e na guerra. Há também o
domínio, a aspiração das crianças a ganhar independência dos adultos.
(Grifos do original.)

Essa hábil análise não se destina a ajudar a mente da criança a se


desenvolver em direção à saúde, à dignidade, ao domínio genuíno e à
independência autêntica, mas sim ao total oposto: ela se destina a
transformar essa mente, de forma deliberada, numa presa e numa
prisioneira pela vida afora das forças movidas a lucro do mercado. Seu
objetivo é sabotar diretamente a infância, período de crescimento em que o
jovem humano é projetado pela natureza para progredir em direção às suas
plenas capacidades, amadurecer emocionalmente, aprofundar-se em
empatia e autoconhecimento, aprender a se conectar com os outros de
formas mutuamente bené cas, começar a concretizar seus potenciais
criativos e assimilar o modelo para cuidar da geração seguinte.
Tudo que o colosso corporativo empurra para as crianças – alternativas
de brincadeira pré-fabricadas, video games, brinquedos produzidos em
massa, eletrônicos, plataformas centradas nos pares na internet e programas
de televisão idiotizantes e super ciais destinados a crianças muito pequenas
e em idade pré-escolar, além da divulgação maciça de imagens reluzentes,
sem alma e com viés pornográ co da sexualidade para consumo de
adolescentes e, cada vez mais, até de crianças mais novas, tudo isso tem
efeitos deletérios. “Estamos forçando o cérebro na direção contrária”,
confessou Lindstrom a Bakan. Do ponto de vista psicológico e
neurobiológico, o mago do marketing estava cem por cento certo. O fato de
o Facebook (recentemente rebatizado de Meta), por meio da sua marca
Instagram, ter notoriamente veiculado programas que prejudicam a saúde
mental de meninas adolescentes é só a última revelação do ataque
corporativo à mente das crianças.15
Embora a ameaça representada para os cérebros e mentes infantis pelo
mundo onipresente, compulsivo e comercializado dos aparelhos e redes
digitais tenha desde o início provocado uma profunda preocupação entre
aqueles que observavam seus impactos, ela segue se expandindo
descontroladamente. Re ro-me aqui tanto ao uso de aparelhos digitais por
crianças pequenas quanto ao uso compulsivo desses mesmos aparelhos
pelos adultos na frente delas.
Conversei com Shimi Kang, psiquiatra formada por Harvard,
especialista em dependência em adolescentes, e mais recentemente autora
de Tecnologia na infância: Criando hábitos saudáveis para crianças em um
mundo digital. “Atualmente temos mães que amamentam olhando o celular,
ou que deixam o bebê segurá-lo enquanto estão trocando sua fralda”, disse
ela.

A troca de fraldas antes era toda uma experiência dinâmica entre o


cuidador ou a cuidadora e o bebê. Era preciso dar um jeito de fazer a
criança parar quieta, e agora basta lhe dar um telefone e ela ca deitada
quietinha. Pode-se ir a qualquer restaurante e ver muitas, muitas, muitas
crianças sendo alimentadas diante de um iPad ou de um computador.
Vê-se isso por toda parte. O celular é superatraente para esse cérebro
jovem.

O que se deixa de lado é a neurobiologia do apego, a liberação de


substâncias químicas cerebrais relacionadas ao vínculo e reguladoras de
humor como a ocitocina, a serotonina e as endor nas, presentes nos
circuitos cerebrais tanto da mãe e do pai quanto do bebê quando seus
olhares se cruzam numa conexão sintonizada e atenta, substâncias que se
sabe, como assinala Kang, são “a chave para a felicidade e o sucesso a longo
prazo”. A mensagem involuntária, porém dolorosa para a criança, mais uma
vez, é: “Você não tem importância.”
Embora não seja preciso ser um estudioso do cérebro para ver o que
torna esses aparelhos “superatraentes para o cérebro jovem”, a ciência
cerebral com certeza tem uma participação na sua concepção. “Os video
games, as redes sociais, os eletrônicos e os aplicativos são projetados para
manter os cérebros jovens grudados na tela procurando formas de
recompensá-los com doses de dopamina”, escreve Kang.16 Como veremos, a
dopamina é a substância química essencial no processo da dependência, seja
em relação a substâncias químicas ou a comportamentos. É uma das
substâncias químicas de “prazer” do corpo, e induz um estado de euforia,
motivação, energia e grati cação. Quando Kang a rma que os aplicativos e
aparelhos digitais são “projetados” para injetar doses de dopamina no
cérebro das crianças, ela está sendo muito precisa. “O celular”, disse ela, “foi
projetado pelos maiores neurocientistas e psicólogos do mundo, que
pegaram todas as nossas mais so sticadas pesquisas sobre o cérebro e toda a
nossa compreensão da motivação humana e dos ciclos de recompensa e os
embutiram nesses dispositivos.” Ela citou como exemplo uma empresa com
um nome e uma missão tão descarados que daria para pensar que tivesse
saído de um lme ou de um livro satírico: Dopamine Labs. “Ela foi fundada
por um neurocientista e desenvolvedor de soware”, explicou ela, “cuja
plataforma de trabalho inteira consiste em consultar outras empresas para
ajudá-lo a atrair as pessoas e liberar dopamina… Isso se chama design
persuasivo.” A questão toda, naturalmente, é o vício. Do ponto de vista
estritamente prático de uma corporação, seria impossível imaginar um per l
de consumidor mais desejável do que alguém que não consegue se fartar
daquilo de que não precisa, mas de que sente precisar.
Um estudo de 2019, publicado no prestigioso periódico JAMA
Pediatrics, foi um dos primeiros a investigar os efeitos neurobiológicos nas
crianças do hábito de assistir a telas. “Numa única geração”, escreveram os
autores,

por meio do que se descreveu como um imenso “experimento sem


controle”, a paisagem da infância foi digitalizada, afetando o modo como
elas brincam, aprendem e constroem relações […] O uso começa na
infância e aumenta com a idade, e foi estimado recentemente em mais
de duas horas diárias em crianças abaixo dos 9 anos, além do uso na
creche e na escola [… Os] riscos incluem atraso na linguagem, sono
ruim, prejuízo às funções executivas e à cognição de modo geral e
menor contato entre pais e lhos, inclusive menos leitura juntos.

O estudo, conduzido com crianças em idade pré-escolar por meio de


exames de imagem avançados do cérebro, constatou que o aumento do
tempo de tela estava vinculado a um menor funcionamento da matéria
branca do cérebro “em importantes feixes de bras que sustentam
competências de linguagem centrais e competências literárias emergentes”.17
Mari Swingle atende muitos jovens com problemas de comportamento,
dé cit de atenção e padrões de dependência. Neuropsicóloga, é autora
daquele que se pode considerar o livro mais completo sobre o cérebro e a
cultura digital, i-Minds: How and Why Constant Connectivity Is Rewiring
Our Brains and What to Do About It (iMentes: como e por que a
conectividade constante está reprogramando nosso cérebro e o que fazer a
respeito). “Estamos vendo características autistas em crianças sem autismo”,
disse ela.

Falta de reação de sorriso, atraso nas competências verbais, aquilo que


eu antigamente costumava chamar pelo afetuoso apelido de “crianças
ocupadas”: hoje são apenas crianças que vivem meio que correndo para
lá e para cá sem objetivo ou transformadas em zumbis quando estão fora
das telas… Crianças, e agora adultos, aliás, acostumadas a estar nas telas
por períodos prolongados. Uma caminhada não chega aos pés, fazer
canoagem não chega aos pés, nem mesmo a prática de skate em alta
velocidade ou de esqui… muitas coisas… até mesmo essas coisas agora
estão sob pressão.

Swingle também está muito preocupada com os impactos da exposição


constante às telas no desenvolvimento do cérebro:

Menos capacidade para se concentrar nas coisas normais, básicas,


inclusive os estados de observação, contemplação e transição em que as
ideias surgem, e que muitos abaixo dos 20 anos hoje consideram um
vazio, dizendo estarem entediados… Num nível biológico, além de
cultural, essas mudanças no estado cerebral afetam o aprendizado, a
socialização, a recreação, a construção de relacionamentos amorosos, a
parentalidade e a criatividade: em suma, todos os fatores que constituem
uma sociedade e uma cultura. Os processos neuro siológicos que
regulam o humor e o comportamento estão cando desregulados.18

Ela entende o apelo das mídias digitais para pais e mães bem-
intencionados, a saber sua função como “mediador do estresse e do
cansaço”. Relacionar-se com elas exige pouco ou nenhum planejamento: elas
estão “disponíveis instantaneamente, e proporcionam a pais e mães,
cuidadores e até mesmo educadores momentos muito necessários de trégua
e alívio”. Temos aqui um caso da solução de um dilema alimentando outro.
Essas formas de alívio, por mais compreensíveis que sejam em nossa época
extremamente estressada, têm um custo, e quem paga a maior parte dele são
nossas crianças.
Como no caso do marketing, as pessoas que inventam e propagam essas
tecnologias têm consciência da natureza problemática de seus produtos, e
inclusive se importam com isso… pelo menos no que diz respeito aos
próprios lhos. Em uma matéria publicada em 2019, a Business Insider
mostra em detalhes como importantes executivos do Vale do Silício, entre
eles fundadores e CEOs da Apple, Google ou mesmo Snapchat, aplicativo
explicitamente destinado às crianças (!), se esforçam extensivamente para
limitar o tempo de tela dos lhos em casa.19, 20 Numa atitude reveladora, o
CEO da Apple Steve Jobs proibiu os lhos pequenos de brincarem com o
então recém-lançado iPad.
As notícias são todas ruins? É claro que não; nada é assim tão simples.
Ellen Friedrichs, educadora de saúde baseada no Brooklyn que trabalha com
os mais diversos tipos de jovens, observa que, para alguns de seus alunos,

a internet tem sido uma boia salva-vidas. Para a criança queer que mora
numa cidade pequena, ou faz parte de uma comunidade religiosa em
que todos os domingos precisa se sentar e escutar um sermão
homofóbico… é possível entrar na internet e encontrar “a sua galera” de
um jeito que nunca antes foi possível.

A “boia salva-vidas” tampouco é exclusiva aos jovens marginalizados.


No exato instante em que escrevo estas palavras, meu principal contato no
último ano e meio com parentes, amigos e alunos do mundo inteiro tem
sido por meio da tela de um computador. A maioria de nós, que
atravessamos a crise de covid-19, hoje dá outro valor para o modo como a
tecnologia pode favorecer a comunidade e, para muita gente, mitigar um
isolamento que de outra forma seria insuportável. Apesar disso, não
deveríamos deixar que essas vantagens nos levem a um falso otimismo ou à
complacência. Os prazeres e tesouros da conectividade digital não são
capazes nem de acompanhar as crises nascentes de desconexão, nem de
tranquilizar preocupações com o que o mundo digital está codi cando no
sistema operacional cognitivo e emocional de nossas crianças.

Quando as escolas da província canadense de Quebec reabriram, depois do


lockdown provocado pela covid-19 em maio de 2020, matérias
supostamente não essenciais como música, teatro, artes e educação física
tinham sido retiradas do currículo. Pressupunha-se que as matérias
acadêmicas fossem mais importantes, o que suscita a pergunta: mais
importantes para quê? Priorizar a “prontidão para a empregabilidade” está
muito distante de pavimentar um desenvolvimento saudável, algo que
deveria ser o objetivo principal do sistema educativo, bem como da criação
dos lhos de modo geral. Mesmo nos estreitos quesitos de “construção de
competências”, nossas ideologias educacionais dominantes estão
equivocadas, uma vez que as habilidades cognitivas na verdade dependem
de uma arquitetura emocional sólida, na qual o brincar é um elemento de
construção indispensável.
“Costumávamos pensar que a escola formava cérebros”, disse Gordon
Neufeld em Bruxelas. “Hoje sabemos que é a brincadeira que forma os
cérebros que a escola pode então usar… É no brincar que o crescimento
mais acontece.”
Essas matérias consideradas supér uas pelas autoridades escolares de
Quebec acessam circuitos cerebrais essenciais. Todos os jovens mamíferos
brincam, e isso por motivos cruciais. Como o neurocientista Jaak Panksepp
identi cou, temos em nosso cérebro um sistema especí co do “BRINCAR”,
que é comum a outros mamíferos. A brincadeira é um dos principais
motores do desenvolvimento cerebral, além de essencial para o processo de
amadurecimento emocional. “Como espécie, nós evoluímos culturalmente
em grande medida por causa da nossa tendência a brincar e do que ela gera
em matéria de inteligência e produtividade”, escreve James Garbarino.21 E a
verdadeira brincadeira, insiste Gordon Neufeld, não está baseada em
desfechos: a diversão é a atividade em si, não o resultado nal. O livre
brincar é uma das “necessidades intrínsecas” da infância, e está sendo
sacri cado tanto em prol do consumismo quanto da cultura digital. “A
cultura não está respeitando tarefas normais do desenvolvimento”, a rmou o
neurocientista Stephen Porges.

Tarefas normais de desenvolvimento são brincar com outra pessoa, não


com um Xbox. Não falar ao celular ou por mensagem de texto, mas
interagir cara a cara. Todas essas coisas são exercícios neurais que geram
resiliência, criando no indivíduo uma capacidade de regular os próprios
estados emocionais internos.
Vou ser bem claro: na minha opinião, a in uência do problema digital/
das telas é tão pernicioso que é quase impossível quanti cá-lo. Em 2016,
observou-se que as crianças britânicas entre os 5 e os 15 anos passaram três
horas por dia na internet, e mais de duas assistindo à televisão. Por sua vez,
o tempo gasto lendo livros por lazer caiu de uma hora por dia (ainda tão
recentemente quanto em 2012) a pouco mais de meia hora quatro anos
depois.22 A grande maioria dos “jogos” de hoje em dia acontece sozinho(a)
em frente a uma tela, com avatares pixelados e vozes incorpóreas
substituindo os companheiros de jogo de verdade. Exatamente quanto
tempo tudo isso deixa para o brincar livre, criativo, emergente, interativo,
individual ou coletivo? Que tipo de cérebros estamos criando?
A mesma pergunta pode ser feita em relação ao sistema educativo. Em
2016, um professor universitário e bolsista do programa Fulbright chamado
William Doyle, recém-chegado de um semestre na Universidade da
Finlândia Oriental, escreveu no e Los Angeles Times que, durante aqueles
cinco meses, sua família “teve a experiência de um sistema escolar
espantosamente livre de estresse, e espantosamente bom”. Seu lho de 7 anos
foi posto numa turma mais jovem, não por causa de um atraso no
desenvolvimento, mas porque crianças menores de 7 anos “não recebem
nenhum treinamento acadêmico formal […] Muitas frequentam creches e
aprendem por meio de brincadeiras, canções, jogos e conversas”. Uma vez na
escola, as crianças têm obrigatoriamente um intervalo de 15 minutos ao ar
livre para cada 45 minutos de ensino em sala de aula. Os mantras educativos
que Doyle recorda mais ter escutado eram: “Deixem as crianças serem
crianças”, “O trabalho da criança é brincar” e “Crianças aprendem melhor
brincando”. E com relação aos resultados? A Finlândia obtém
consistentemente os primeiros ou quase primeiros lugares nos testes
educativos do mundo ocidental, e foi considerada o país mais alfabetizado
do mundo.23
“A mensagem de que competir é adequado, desejável, exigido ou mesmo
inevitável nos é inculcada desde a creche até a pós-graduação; ela é o
subtexto de toda aula”, escreve o consultor em educação Al e Kohn em seu
excelente livro No Contest: e Case Against Competition – Why We Lose in
Our Race to Win (Sem comparação: uma crítica à competitividade – Por que
acabamos perdendo em nossa corrida para vencer), que documenta o
impacto negativo da competitividade para o aprendizado genuíno, e como
competição, elogios, notas, recompensas e sanções impostas a crianças
recalcitrantes destroem a motivação intrínseca e minam a segurança
emocional.24 “Elogios motivam as crianças? Certamente sim”, observa Kohn
com sarcasmo. “Eles motivam as crianças a conquistar elogios.”
“E daí?”, você poderá perguntar. “Qual é o problema de um parabéns
merecido?” Na verdade, existem elogios e elogios. Os psicólogos do
desenvolvimento concordam que elogiar a tentativa de uma criança é útil e
ajuda na autoestima, enquanto valorizar a conquista só faz programá-la para
car sempre buscando aprovação externa, não para quem é, mas para o que
faz, para o que os outros exigem dela. Isso é mais uma barreira para o
surgimento de um eu saudável.
A despeito de todo o nosso amor e dedicação como pais, mães e
educadores, o mundo em que temos de criar lhos hoje em dia mina nossos
maiores esforços de inúmeras formas, todas disfarçadas de “é assim mesmo e
pronto”. Não há nada de anódino nessa a rmação: as consequências são
descomunais. O presente, tal como ele é hoje, empobrece o futuro.
14

Um template para a angústia:


como a cultura forma nosso
caráter

“E é aí”, declarou o Diretor, num tom sentencioso, “é aí que


está o segredo da felicidade e da virtude: gostar do que você
tem que fazer. Todo condicionamento tem por objetivo fazer as
pessoas gostarem de seus destinos sociais inexoráveis.”
– ALDOUS HUXLEY, Admirável mundo novo

Lembra do comentário seco de Bessel van der Kolk de que “nossa cultura
nos ensina a focar em nossa singularidade pessoal, mas num nível mais
profundo nós mal existimos como organismos individuais”? Não sei se a
comparação vai trazer frustração ou reconforto (talvez ambos?), mas nós
humanos, com nossa falta de um eu autodeterminado e independente, não
somos tão diferentes assim de nossa criatura sociável irmã, a formiga.
Num formigueiro, todas as larvas nascem com praticamente o mesmo
conjunto de genes: rainha, operárias e guerreiras nascem todas iguais. Qual
criatura vai se tornar o quê, inclusive que traços biológicos vai manifestar,
depende inteiramente das necessidades do clã. O oncologista e escritor
Siddhartha Mukherjee descreveu esse fenômeno num texto fascinante
publicado na revista e New Yorker. “As formigas têm um sistema de castas
poderoso. Uma colônia típica contém formigas que desempenham papéis
radicalmente distintos, e apresentam estruturas físicas e comportamentos
marcadamente distintos.” Irmãos geneticamente idênticos vão se diferenciar
e se tornar adultos biologicamente diferentes com base apenas nos sinais do
entorno físico e social. Quando uma rainha é retirada de uma colônia de
formigas da espécie Myrmecia pilosula, por exemplo, as operárias “iniciam
uma campanha cruel de combate mortal umas contra as outras, picando,
mordendo, lutando, arrancando patas e cabeças”, até algumas vencerem e se
tornarem… bem, se tornarem rainhas. Sem qualquer alteração na estrutura
do DNA, a siologia de uma nova rainha se modi ca: “ela” então se torna
fértil e dominante, e vive mais do que teria vivido em sua encarnação
anterior de operária.1 O psiquiatra Michael Kerr, antes da Universidade de
Georgetown, observou a mesma dinâmica em seu livro sobre os sistemas
familiares humanos. “Aquilo em que cada larva vai se transformar é
determinado por um processo no nível da colônia. Nesse sentido, uma
jovem larva nasce numa posição funcional dentro da colônia, e seu
desenvolvimento é determinado por essa posição.”2
Apesar de todo o nosso apego ao nosso conceito individual de nós
mesmos, somos nesse quesito bem semelhantes às formigas. “Há muito
menos autonomia para um ser humano do que gostaríamos de pensar”,
disse-me Kerr numa entrevista. “Nosso funcionamento como indivíduos
não pode ser entendido separadamente da nossa relação com o grupo
maior.” Em outras palavras, nosso temperamento e nossa personalidade
re etem as necessidades do meio em que nos desenvolvemos. Os papéis que
nos vemos atribuídos ou negados, como nos encaixamos na sociedade ou
somos dela excluídos, e aquilo em que a cultura nos induz a acreditar em
relação a nós mesmos determina grande parte da saúde de que gozamos ou
das doenças que nos a igem. Assim, como de muitas outras maneiras, a
doença e a saúde são manifestações do macrocosmo social.
Se a família nuclear moderna é o principal receptáculo para o
desenvolvimento infantil, esse receptáculo está por sua vez contido num
contexto maior, formado por entidades como a comunidade, o bairro, a
cidade, a economia, o país e assim por diante. Na nossa época, o maior de
todos os contextos é o capitalismo de consumo hipermaterialista e sua
expressão globalizada. Suas pressuposições fundamentais – e na realidade
bastante distorcidas – a respeito de quem e do que somos aparecem no
corpo e na mente daqueles que as vivenciam. Considerando os inúmeros
vínculos entre biogra a e biologia, as normas culturais também podem
transparecer na nossa siologia.
Podemos ver nisso, ampliado por uma lente de aumento, o cabo de
guerra entre apego e autenticidade. Da mesma forma que somos
condicionados a nos encaixar na família, mesmo que isso signi que nos
afastar de nosso verdadeiro eu, somos também condicionados – poder-se-ia
dizer preparados – a preencher os papéis sociais que esperam de nós e
assumir as características necessárias para fazê-lo, seja qual for o custo
cumulativo disso para o nosso bem-estar.
Conheci Ulf Caap uns 14 anos atrás. Então vice-presidente de recursos
humanos na IKEA América do Norte, Ulf parecia ter tudo a seu favor. No
entanto, esse líder corporativo mundialmente respeitado tinha me
procurado como parte de uma jornada pessoal advinda de uma profunda
insatisfação existencial. Ele havia se dado conta de algo muito
desconfortável: sua vida – um sucesso retumbante pelos parâmetros
“normais” da nossa sociedade – e a rotina que esta lhe exigia acabavam
sendo, nas suas palavras, “uma farsa, uma ilusão, uma fraude…
Praticamente não existia nada de mim ali”. Outra pessoa muito bem-
sucedida segundo os padrões sociais, a escritora e atriz Lena Dunham,
famosa pelo seriado 3 disse algo parecido na entrevista que z com ela. Num
programa de recuperação para a dependência química, lhe propuseram o
exercício de listar os próprios valores. “Eu percebi”, disse ela, “que era
incapaz de pensar num valor sequer que não pertencesse a outra pessoa.”
Ulf desde então se tornou um amigo e colaborador ocasional; juntos,
criamos e conduzimos workshops para altos executivos que compartilham
essa mesma sensação de que o eu autêntico deles e sua persona pro ssional
são diametralmente opostos. Não digo apenas que eles deixam na porta do
escritório seus verdadeiros pensamentos, sentimentos, desejos e
necessidades, para no nal do expediente recuperá-los como se recupera um
carro estacionado. Para que a “farsa” se sustente, essas partes autênticas do
eu precisam ser guardadas em algum lugar de longo prazo, e a chave jogada
fora. “Eu negava meus valores pessoais para ter sucesso”, reconheceu Ulf.
Hoje septuagenário e um retrato da saúde, está convencido de que essa
supressão de si e essa desconexão estavam sugando sua energia vital:
“Reconheci que meus passos no caminho até o trabalho não eram mais tão
leves quanto antes. Eu estava sendo atraído para a doença.”
Ulf teve o bom-senso – e o privilégio, como ele iria concordar – de
explorar e transcender a própria alienação. “Passei 40 anos levando uma
vida insana”, disse ele, em retrospecto. “Meu foco era 99% aquilo que a
sociedade e a corporação para que eu trabalhava consideravam sucesso. Não
tinha foco nenhum naquilo de que precisava. Se eu zesse o que a
corporação exigia, seria bem-sucedido.” Ele não poderia ter desenhado uma
imagem mais precisa dessa percepção do que a que o jovem monge trapista
omas Merton, escritor católico americano mais in uente do século XX,
articulou em sua autobiogra a, A montanha dos sete patamares:

A lógica do sucesso material repousa sobre uma falácia: o estranho erro


de que nossa perfeição depende dos pensamentos, opiniões e aplausos
dos outros! Essa é mesmo uma vida estranha, passada sempre na
imaginação alheia, como se esse fosse o único lugar em que a pessoa
pudesse nalmente se tornar real!4

Crises de identidade como a de Ulf não são geradas de forma consciente:


elas são o desfecho de como nos desenvolvemos em nossos respectivos
contextos, da família para fora. “O sucesso que tive foi cem por cento
externo”, me disse Ulf. “Inteiramente externo, e baseado num construto
mental que fabriquei aos 5 e aos 15 anos daquilo que é necessário para ser
aceito.” Nesse sentido, como assinalou o psicólogo social Erich Fromm, a
família funciona involuntariamente como “agente psíquico” para a
sociedade formar o que ele chamou de personalidade social.
A personalidade social, nas palavras de Fromm, é “a personalidade
central comum à maioria dos integrantes de uma cultura”. Ela é distinta da
personalidade individual que cada um de nós tem e exibe para o mundo. A
personalidade social, por nos de nir e nos governar, garante que
preenchamos o molde “normal” em nossa respectiva cultura. O conceito de
Fromm me parece uma potente representação de como funcionamos em
sociedade: igual às formigas.
Eu me re ro aqui não só a “nós” num sentido individual. O “nós”
coletivo é muito mais cego e perigoso. Por exemplo, nenhum de nós gosta de
ver gente dormindo na rua, mas como sociedade toleramos níveis crescentes
de pessoas desabrigadas. Ninguém quer a vida sobre a Terra ameaçada, mas
apesar disso a marcha da mudança climática parece irrefreável. Alguma
coisa em nós normaliza essas calamidades, independentemente de o
resultado ser que na verdade facilitamos, negamos ou simplesmente
encaramos essas coisas com uma resignação passiva. Sem dúvida movido
pelos horrores que moldaram minha infância, passei a vida inteira me
perguntando como tantas pessoas boas podem ser hipnotizadas a ponto de
se aliarem ao indefensável. Deve haver algum mecanismo capaz de nos
aculturar a ponto de nos fazer aceitar como normal aquilo que é nosso
inimigo e inimigo do mundo que habitamos; certamente não se trata de
uma inclinação nata. De alguma forma, os valores e expectativas do sistema
acabam se entranhando em nós, a tal ponto que passamos a confundi-los
com nós mesmos.
Como disse Fromm, muitas vezes o comportamento das pessoas não é
uma questão de decisão consciente de seguir o padrão social, mas sim de
“querer agir como precisam agir”.5 Assim, uma cultura cria integrantes que
irão servir aos seus propósitos. Justapor realidade e cção pode nos ajudar.
Em Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, os indivíduos estão “tão
condicionados que praticamente não conseguem evitar se comportar como
devem”.6
Assim, aquilo que se considera normal e natural se estabelece não
segundo aquilo que é bom para as pessoas, mas sim segundo aquilo que se
espera delas, que traços e atitudes favorecem a manutenção da cultura. Estes
são então consagrados como “a natureza humana”, enquanto os desvios em
relação a eles são vistos como anormais. Em sua maioria, caso não haja um
despertar do impulso de autenticidade – muitas vezes do tipo rude –, as
pessoas irão se desenvolver e se comportar de modos que parecem
con rmar as ideias dominantes.
Quais são alguns dos traços da personalidade social imbuída em nossa
cultura?

O PRIMEIRO “TRAÇO” DE PERSONALIDADE: SEPARAÇÃO DE SI

Já a rmei que traços de personalidade adquiridos, como uma identi cação


excessiva com algum dever, papel ou responsabilidade socialmente impostos
em detrimento das necessidades de uma pessoa, pode pôr em risco a saúde.
Essa e outras características condicionadas advêm da negação das
necessidades de desenvolvimento da criança, da deformação da natureza. A
cultura as cimenta por meio do reforço e da recompensa, incentivando as
pessoas a desempenharem tarefas mesmo sob estresse crônico, ou em
circunstâncias que elas talvez quisessem naturalmente evitar. Meu próprio
vício em trabalho como médico me valeu grande respeito, gratidão,
remuneração e status no mundo inteiro, mas ao mesmo tempo minou
minha saúde mental e o equilíbrio emocional da minha família. E por que
eu era viciado em trabalho? Porque, devido às minhas primeiras
experiências, precisava ser necessário, querido e admirado, o que substituía
o amor. Nunca tomei a decisão consciente de perseguir esse propósito, mas
mesmo assim ele “funcionou” muito bem para mim nos âmbitos social e
pro ssional.
Mecanismos para distanciar a pessoa de si estão por toda parte. Eles
começam a agir em nós desde nossos primeiros instantes de existência, com
ênfase no ambiente em que a parentalidade se dá e nas práticas socialmente
corroboradas de criação dos lhos que negam as necessidades da criança. É
claro que o distanciamento de si é ampli cado de forma potente pelos
traumas explícitos. No entanto, mesmo na ausência de feridas pessoais, ele
pode ser causado por um sistema educativo conformista e centrado na
competitividade, por expectativas sociais de “encaixe”, pela tentativa de obter
a aprovação dos pares e por uma ansiedade socialmente induzida e
generalizada em relação ao próprio status.
Numa cultura louca por imagem, que se sustenta em grande parte
fazendo as pessoas se sentirem inadequadas em relação a si mesmas – ou, de
modo mais insidioso ainda, capitalizando (o jogo de palavras não é
acidental) esses sentimentos preexistentes –, a mídia apresenta ideais de
perfeição física com os quais jovens e velhos se comparam, e que levam as
pessoas a sentirem vergonha do próprio corpo. Meu amigo Peter Levine
escreveu há alguns anos um artigo sobre o procedimento cosmético de
injetar toxina botulínica nas pessoas; a substância relaxa temporariamente
os músculos, apagando assim as rugas naturais decorrentes do
envelhecimento. Mas ela também diminui as reações do rosto, tornando-o
pouco natural. “Há mães que fazem botox enquanto estão amamentando”,
me disse Peter. “Elas não conseguem comunicar suas emoções a seu bebê,
tampouco captar as emoções dele. Elas perdem esse tipo de contato.” Em
muitas outras esferas, entre elas as redes sociais, também apresentamos com
frequência uma versão arti cial, “botocada” de nós mesmos: uma imagem
não de quem somos, mas de como gostaríamos que os outros nos vissem. “O
que temos com a internet é uma espécie de botox das massas”, disse Peter.
“Simplesmente perdemos a capacidade de ser reais, que é
fundamentalmente o que nos torna humanos e faz com que nos sintamos
conectados uns com os outros.”

O SEGUNDO TRAÇO DE “PERSONALIDADE”: FOME DE CONSUMO

Uma das grandes conquistas da cultura do consumo de massa foi nos


convencer de que aquilo que fomos condicionados a desejar com fervor é
também aquilo de que necessitamos. Nas palavras da psicanalista franco-
búlgara Julia Kristeva: “Os desejos são fabricados exatamente da mesma
forma que as mercadorias destinadas a satisfazê-los. Nós consumimos
nossos desejos, sem saber que aquilo que consideramos ‘desejo’ foi
arti cialmente produzido.”7 Isso me lembra uma resposta dada pelo jovem
Bob Dylan, durante uma turnê pela Inglaterra em 1965, a dois fãs
desesperados por um autógrafo. “A gente precisa do seu autógrafo”, suplicou
um deles pela janela traseira da limusine do cantor e compositor. Dylan
relutou. “Precisam nada”, disse ele, seco. “Se precisassem eu daria.” E é
exatamente essa a questão: a personalidade social gerada por nossa
sociedade de consumo confunde desejo com necessidade, a ponto de o
sistema nervoso se irritar quando os objetos que desejamos nos são negados.
Oferta, permita-me lhe apresentar a demanda.
Como observou pesarosamente omas Merton em 1948:

Vivemos numa sociedade cuja política inteira é excitar cada nervo do


corpo humano e mantê-lo no mais alto grau de tensão arti cial,
tensionar cada desejo humano até o limite e criar o máximo possível de
novos desejos e paixões sintéticas de modo a supri-los com os produtos
de nossas fábricas, grá cas, estúdios de cinema e todo o resto.8

Viver constantemente nesse “mais alto grau de tensão arti cial” deixa
muitas pessoas insatisfeitas, nervosas, ansiosas: totalmente imersas num
processo viciante que as aliena das necessidades reais, das emoções reais, das
preocupações reais, da vida real.
Se não conseguimos alcançar aquilo que desejamos, vivenciamos isso
como um fracasso pessoal, mesmo as condições sociais estando mobilizadas
contra nós para tornar esse desejo inalcançável. “Lembro que, quando
criança, eu adorava assistir aos comerciais do sabão em pó Tide”, me contou
o ator, diretor de cinema e ativista político americano Danny Glover.

Quando penso nisso agora, vejo que não é por eu ter tido qualquer
a nidade com alguma coisa relacionada ao Tide. Eu via os comerciais do
ponto de vista que me fazia desejar que minha cozinha fosse daquele
jeito, que minha máquina de lavar tivesse aquele aspecto, eu desejava
aquilo tudo… Somos postos numa situação em que estamos cercados
por uma porção de coisas que 99% do tempo não vamos ter, e isso cria
uma sensação de desvalorização, porque você não consegue ter essas
coisas.

As palavras de Glover se encaixam com perfeição na observação do


crítico social Neil Postman, já em 1985, em sua emblemática crítica cultural
Amusing Ourselves to Death (Mortos de diversão). Comerciais cheios de
pessoas com ar feliz “não dizem nada sobre os produtos que estão sendo
vendidos. Mas dizem tudo sobre os medos, caprichos e sonhos das pessoas
que talvez os comprem. O que o anunciante precisa saber não é aquilo que o
produto tem de certo, mas o que há de errado com o comprador”.9
Movido por uma convicção de insu ciência culturalmente abastecida,
nós nos tornamos viciados em consumo. “Consumir é um jeito de silenciar a
dor”, me disse Glover.

Conheço gente com recursos de sobra para desviar a dor comprando


coisas desnecessárias… A estrutura do capitalismo cria uma situação em
que o valor da pessoa se resume a sua capacidade de consumir. Não me
importa se ela está consumindo no Walmart ou em lojas de
departamentos de luxo. Quando falamos em vício, seja em drogas ou
outras formas de comportamento, todos eles simbolizam a sensação de
ser desvalorizado como ser humano dentro de um sistema. É
basicamente isto: sentir-se alienado dentro do sistema.

O TERCEIRO TRAÇO DE “PERSONALIDADE”: PASSIVIDADE HIPNÓTICA

Ao contrário dos habitantes da distopia de Huxley, nós não somos


autômatos criados em tubos de ensaio para serem de determinado jeito e
programados para desempenhar somente determinadas funções
preordenadas. Como cidadãos de países ostensivamente democráticos,
temos livre-arbítrio até certo ponto, só que na prática essa liberdade
raramente cruza a fronteira daquilo que é socialmente aceitável. Sem nos
atrever a balançar o barco, afundamos junto com ele.
O abandono de si programado na personalidade social nos torna
passivos mesmo diante de ameaças à nossa existência como espécie. Pessoas
saudáveis conectadas às suas emoções reais e necessidades autênticas não
estariam suscetíveis a induções que incentivam necessidades arti ciais e a
compra de produtos para satisfazê-las, não importa quão inteligentemente
embalados. Tampouco aceitariam o inaceitável, a não ser talvez mediante
ameaça de força, e mesmo nesse caso não estariam inclinadas a internalizar
isso como o modo normal de as coisas serem.
“As crianças”, observou o grande e renomado intelectual Noam
Chomsky, “vivem perguntando por quê: elas querem explicações, querem
entender as coisas.” Mas em pouco tempo, segundo ele, “você entra na escola
e é arregimentado. Ensinam-lhe que é assim que você tem que se comportar,
não de outras formas. As instituições da sociedade são construídas de forma
a reduzir, modi car, limitar os esforços e o controle sobre o próprio
destino”.10
A origem do problema está em como as crianças são criadas dentro da
família moderna, ela mesma uma representação microcósmica da cultura.
“A família”, assinalou Erich Fromm, “tem a função de transmitir as
exigências da sociedade para a criança em fase de crescimento.” Ela faz isso
de todas as maneiras que examinamos nos capítulos sobre desenvolvimento
infantil. As sementes da personalidade social são plantadas quando as
crianças são privadas do aleitamento materno; quando a expectativa,
imbuída pela natureza, de serem seguradas no colo são frustradas; quando
são deixadas sozinhas para “chorar até cansar”; quando são incentivadas a
reprimir os próprios sentimentos; quando são programadas para
corresponder às expectativas dos outros; quando lhes é negado o livre
brincar espontâneo; quando são “disciplinadas” por medidas punitivas como
as técnicas de “castigo” que as ameaçam com a perda daquilo por que mais
anseiam, a saber uma aceitação positiva incondicional; quando lhes é
negada uma conexão com a natureza. Tudo isso contribui para o vazio
interior, para o vácuo que os vícios e compulsões consumistas mais tarde
tentarão preencher, ao mesmo tempo que nosso espírito independente é
subjugado pelas demandas de uma cultura desequilibrada e materialista.
Que lindo seria se fosse verdade o ideal democrático de que “nós, o
povo” somos quem criamos a sociedade em que desejamos viver. Com
certeza esse é um sonho que vale a pena tentar realizar. Mas só acreditar nele
não basta. Ele não vai e não tem como virar realidade até encararmos o
modo como as coisas são hoje: somos nós quem somos criados à imagem de
nosso mundo distorcido, desordenado e desnaturado, de modo a mantê-lo
funcionando da melhor forma possível ao mesmo tempo que somos
esmagados por ele.
PARTE TRÊS

REPENSAR O ANORMAL:
AS DOENÇAS COMO
ADAPTAÇÕES

Muita Loucura é a mais divina Sensatez


Para um Olho atento
Muita Sensatez a maior das Loucuras
É a maioria
Que nisso vence, como em tudo,
Se você concorda, é são
Se discorda, é um perigo absoluto
E posto numa Corrente
– EMILY DICKINSON
15

Não sendo você: a


desmistificação da
dependência

Não derivo absolutamente prazer algum dos estimulantes aos


quais às vezes me entrego tão loucamente. Não foi tentando
alcançar o prazer que arrisquei a vida, a reputação e a razão.
Foi na desesperada tentativa de escapar de lembranças
torturantes.
– EDGAR ALLAN POE

Bruce, cirurgião vascular do Oregon, estava usando seu avental cirúrgico


quando a polícia adentrou a sala. “Saí do hospital algemado”, recorda ele
daquele dia ensolarado sete anos antes. “Foi mais do que humilhante. Eu
trabalhava numa cidade pequena, então todo mundo cou sabendo. Saiu na
primeira página do jornal local várias vezes. Eu caí em desgraça, pura e
simplesmente.” Aquela gura em quem tantos con avam na cidade vinha
passando receitas em nome dos pacientes apenas para buscar ele próprio os
remédios e alimentar seu vício. “Eu estava passando receitas su cientes para
que a primeira descon ança da polícia fosse de que estava operando alguma
espécie de cartel de drogas”, relatou ele. Em poucos meses, o esquema foi
desvendado.
O que poderia levar um médico com a formação e a competência de
Bruce, casado e pai de adolescentes, a tamanho precipício de autoengodo,
desonestidade e práticas pro ssionais antiéticas? Ele com certeza devia
entender que estava pondo em risco a própria saúde, a família e o ganha-
pão. Por que, aliás, qualquer pessoa se entregaria – se for essa a palavra certa
– a comportamentos tão autodestrutivos?
Essa é uma pergunta com a qual me deparei quase diariamente ao longo
da minha carreira, mas de modo mais insistente nos 12 anos em que
trabalhei no Downtown Eastside de Vancouver, bairro conhecido por ser a
área de uso de drogas mais concentrada de toda a América do Norte. Em
seus poucos quarteirões quadrados, milhares de pessoas vivem no desespero
da dependência química de todo tipo, cheirando, ingerindo, fumando ou
injetando álcool, opioides, nicotina, maconha, cocaína, metanfetamina, cola,
álcool 70. Até mesmo visitantes vindos de Nova York, Detroit ou Bristol
cam rotineiramente chocados com o que veem ali.
“Se o sucesso de um médico se mede pelo tempo de vida de seus
pacientes, eu sou um fracasso, porque muitos de meus pacientes morrem
jovens”, dizia eu com frequência. Eles morriam em decorrência de
complicações do HIV, ou então de hepatite C ou de infecções nas válvulas
do coração, no cérebro, na coluna vertebral, na corrente sanguínea.
Sucumbiam ao suicídio, a overdoses ou à violência, ou então morriam ao
serem atingidos por algum veículo ao cambalearem chapados para o meio
de ruas movimentadas. Ao contrário de viciados “alto nível” como Bruce,
hoje limpo e novamente na ativa, meus pacientes tinham perdido tudo: a
saúde, a aparência, os dentes; família, trabalho, lar. Alguns tinham jogado
fora uma vida confortável de classe média, e uns poucos tinham
surpreendentemente passado do luxo ao lixo. Ao longo de todo o caminho,
eles sabiam muito bem que estavam apostando o derradeiro trunfo: a
própria vida. Mesmo assim, tendo chegado a fundos de poço mais abissais
do que a maioria de nós poderia sequer imaginar, eles insistiam no vício,
como descrevi em meu livro de 2009 sobre dependência química, In the
Realm of Hungry Ghosts (No reino dos fantasmas famintos).
As opiniões prevalentes sobre dependência evoluíram um pouco na
última década em direção a uma maior compaixão, mais ciência e mais bom
senso. Apesar disso, mitos equivocados e perigosos sobre a origem da
dependência e sua própria natureza ainda dominam muitos círculos, dos
tratamentos médicos ao direito penal e às políticas públicas. Mesmo o bem-
intencionado mundo da reabilitação e recuperação tem seus pontos cegos.
Considerando as falhas óbvias ou mesmo os estragos devastadores causados
por nossas abordagens padrão, muitas vozes estão en m defendendo um
outro ponto de vista.
Como prelúdio para re etir a respeito, vamos abordar diretamente as
duas principais concepções equivocadas: de que a dependência é produto ou
de “escolhas erradas”, ou então de uma “doença”. Nem uma nem outra
conseguem explicar essa praga social impossível de eliminar, além disso
ambas prejudicam nossos esforços no sentido de remediá-la.
Considerando os avanços de compreensão da medicina, a visão das
escolhas erradas a essa altura mal deveria merecer menção, mas ainda tem
grande in uência na mentalidade de muita gente, e serve de base para o
ataque do sistema judiciário aos usuários de drogas. De tão errada, ela chega
a ser risível, e de fato seria se suas consequências não fossem tão trágicas.
Ela foi expressada de forma sucinta em 2017 pelo então procurador-geral
dos Estados Unidos, general Jeff Sessions, remetendo aos tempos ruins da
guerra às drogas dos anos 1980: “Como disse Nancy Reagan, precisamos
dizer ‘não e pronto’”, disse ele a uma plateia na Virgínia. “Educar as pessoas e
lhes contar a terrível verdade sobre as drogas e o vício resultará em mais
pessoas fazendo escolhas melhores.”
O sucesso exato de todas as campanhas de guerra às drogas, que tiveram
meio século para realizar os objetivos que propuseram, pode ser visto num
único e sórdido fato: no exato instante em que Sessions discursava, seu país
perdia em três semanas para a overdose o mesmo número de vidas que fora
perdido no Onze de Setembro. Naquele ano, mais de 70 mil americanos
morreriam de overdose de alguma droga.1 Quatro anos depois, em 2021,
esse número ultrapassava 100 mil.2No mesmo ano, minha província natal de
Colúmbia Britânica teve mais de 1.700 dessas mortes, quase o dobro de
pessoas mortas por covid-19 na província na data em que escrevo.
A visão da dependência como “escolhas erradas” – que, sejamos
honestos, é praticamente a mesma coisa que dizer “a culpa é toda sua” – não
é só desastrosamente ine caz: ela é absolutamente cega. Nunca conheci
ninguém que, em qualquer sentido signi cativo da palavra, jamais tenha
“escolhido” se viciar, muito menos meus pacientes de Downtown Eastside,
cuja vida se esvaía aos poucos ou era rapidamente interrompida nas ruas,
quartos de hotel e ruelas do gueto de drogas de Vancouver.
Se um dissidente socialmente conservador viesse protestar dizendo:
“Mas eles não escolheram continuar viciados?”, eu lhe responderia com a
seguinte frase de Nora Volkow, diretora do Instituto Nacional de Abuso de
Drogas dos Estados Unidos: “Estudos [recentes] mostraram que o uso
recorrente de drogas conduz a mudanças duradouras no cérebro que minam
o controle voluntário.”3 Traduzindo: em se tratando de vício, “livre-arbítrio” é
sob muitos aspectos um non sequitur neurobiológico.
Na verdade, eu iria bem mais longe: a maioria das pessoas viciadas
tinham pouca escolha antes mesmo de se tornarem viciadas. Seu cérebro já
chegou prejudicado pela experiência de vida, especialmente suscetível aos
efeitos de sua droga “predileta” (outra expressão duvidosa). Na verdade isso
vale quer o alvo seja uma substância química ou um comportamento.
Resumindo: o modelo da escolha ignora a questão do que levaria uma
pessoa a se viciar para começo de conversa.
Embora o paradigma da doença, ainda defendido por muitos
especialistas em dependência química e programas de tratamento, seja mais
compassivo, ele também deixa de fora o elemento humano. Ele separa a
mente do corpo, ou nesse caso o cérebro da mente, e vê o cérebro de um
ponto de vista exclusivamente bioquímico. A verdade é que os
acontecimentos pessoais e sociais do dia a dia, ltrados pela mente, vão
moldando o cérebro ao longo da vida. Não se pode cienti camente separar
biologia e biogra a, sobretudo em se tratando de um processo com tantas
camadas psicológicas quanto o vício.
Não que não haja valor no fato de considerar o aspecto neuroquímico da
dependência. O brilhante trabalho de Volkow e outros demonstrou que,
com o tempo, as substâncias que causam dependência modi cam o cérebro,
fazendo com que funções essenciais como a regulação dos impulsos – que
ajudaria a pessoa a resistir ao apelo do vício – quem signi cativamente
comprometidas, ao mesmo tempo que circuitos de recompensa e motivação
passam a depender das drogas desejadas. Nesse sentido, o cérebro se torna
de fato um órgão comprometido, com menos capacidade de fazer escolhas
racionais, em vez disso obsessivamente decidido a satisfazer os impulsos do
vício.
Entretanto, nosso erro está em focar apenas nas drogas: não é preciso um
vício em substâncias químicas para causar mudanças na química do cérebro.
Exames de imagem revelaram mudanças igualmente prejudiciais também
no cérebro de viciados em outras coisas que não substâncias químicas, como
por exemplo os gamers inveterados.4 O consumo compulsivo de alimentos
que ativem o aparato de recompensa do cérebro também pode produzir
esses efeitos.5
Não obstante tudo isso, a equiparação do vício com uma doença em
grande parte geneticamente programada e passível de tratamento,6, 7
conforme já foi dito, representa do ponto de vista cientí co e humano um
passo à frente em relação ao modelo acusatório das “escolhas erradas”. Da
mesma forma que não nos ocorreria culpar o dono de um rim doente, não
faz sentido repreender alguém por ter um cérebro “doente”, principalmente
se essa “doença” tiver sido herdada.8 O problema é que, como é tão típico da
medicina, o paradigma da doença transforma um processo em patologia.
Repare também que “tratável” é bem diferente de “curável”, o que diz menos
a respeito da natureza da dependência do que da incapacidade do sistema
médico de compreendê-la.
A palavra doença também surge com frequência no mundo da
recuperação em 12 passos. Participantes de programas como Alcoólicos
Anônimos falam em “minha doença”, e podem dizer “a minha doença quer
me matar” ou “a minha doença me fez magoar quem eu amo”. Esses
programas sem dúvida alguma já ajudaram milhões de pessoas, e a
linguagem usada é uma parte grande do esforço de ajudá-las a pensar e a
agir de outras maneiras. Vou apenas sugerir que “doença” é mais útil de um
ponto de vista terapêutico como metáfora do que como um fato. Como no
caso da maioria dos distúrbios crônicos, ver a dependência química como
um processo dinâmico a ser enfrentado, e não como uma força demoníaca a
ser temida ou combatida, pode em última instância expandir as
possibilidades de cura.

Para uma abordagem mais robusta da dependência, precisamos levar em


conta não apenas os genes ou circuitos cerebrais das pessoas, mas
também seus verdadeiros encontros com o mundo. Precisamos
examinar de perto as experiências de vida das pessoas.9 Vícios de
qualquer tipo não são males anormais, doenças voluntariamente
autoin igidas, transtornos cerebrais ou falhas genéticas. Quando
adequadamente entendidos, eles nem sequer são tão intrigantes assim.
Como no caso de outras doenças aparentemente misteriosas
mencionadas neste livro, sua origem está nos mecanismos de adaptação.
Eles certamente assumem alguns dos traços de uma doença: um órgão
disfuncional, danos a tecidos (em especial no uso prolongado de
drogas), sintomas físicos, prejuízo de determinados circuitos cerebrais,
ciclos de remissão e recaída, e até a morte. Mas chamá-los de “doenças” é
passar ao largo tanto da sua natureza quanto da oportunidade de lidar
com eles de modo inteligente. Os vícios, no seu começo, representam as
defesas de um organismo contra um sofrimento que ele não sabe como
suportar. Em outras palavras, trata-se de uma reação natural a
circunstâncias antinaturais, de uma tentativa de aliviar a dor de feridas
sofridas na infância e de estresses suportados na idade adulta.

DUAS PERGUNTAS ESSENCIAIS

Ao longo de minhas décadas de prática da medicina e de milhares de


conversas, aprendi que a primeira pergunta a ser feita não é o que há de
errado numa dependência, mas sim o que ela tem de “certo”. Que benefício a
pessoa está obtendo desse hábito? O que esse hábito lhe traz? O que ela está
obtendo que de outra forma não consegue obter? Essas perguntas são
cruciais para se entender qualquer dependência, seja em substâncias como
álcool, opioides, cocaína, metanfetamina, cola de sapateiro ou junk food, ou
em comportamentos como jogo, promiscuidade sexual compulsiva,
pornogra a ou bulimia. Ou ainda, aliás, poder e lucro – nesse caso
começamos naturalmente a tender na direção de vícios que ultrapassam em
muito os hábitos individuais e adentram o reino das xações coletivas.
Assim como nunca conheci ninguém que tenha escolhido se tornar
viciado, tampouco jamais conheci qualquer um cujos vícios, pelo menos no
início, não suprissem alguma necessidade humana fundamental. Repetidas
vezes, por exemplo, já ouvi dizer que os vícios das pessoas lubri cam as
engrenagens da conexão social. O escritor, professor universitário e ex-
presidiário canadense métis10 Jesse istle, autor do livro de memórias From
the Ashes (Das cinzas), me contou que “usar substâncias me dava acesso a
amigos. E me dava poder, autocon ança. E por um tempo funcionou; deve
ter funcionado nos primeiros três anos. Fiquei praticamente blindado”. A
multitalentosa artista televisiva Lena Dunham, por sua vez, recordou:
“Aquilo me tornava mais sociável. Mais relaxada, facilitava minha
comunicação.” No seu caso, “aquilo” era uma dependência química, entre
outras coisas, de tranquilizantes: remédios altamente viciantes receitados de
modo excessivamente liberal pelos médicos. A euforia invadia também sua
expressão criativa: segundo ela me disse, a droga “me fazia escrever feito
uma louca porque eu perdia totalmente a inibição”.
“Quentura” é uma palavra usada com frequência para designar a
sensação de estar drogado: ela representa uma sensação que os viciados
conhecem bem. A atriz e autora de livros infantis Jamie Lee Curtis me falou
sobre um “banho morno”:

a sensação que se tem quando você está com frio e entra numa banheira
não quente, mas morninha, um banho cálido em que a sensação de
tranquilidade vai subindo conforme você afunda no calor. Essa era uma
sensação que eu conhecia bem e adorava. Passei dez anos perseguindo
essa sensação, saindo e tornando a entrar em esquemas os mais variados,
de roubar opioides a manipular médicos para consegui-los.

As palavras de Curtis me zeram pensar no que eu ouvia com


frequência de meus hipermarginalizados pacientes de Downtown Eastside.
“O que a heroína lhe traz?”, perguntei certa vez a um paciente recém-
chegado ao Onsite, centro de desintoxicação no segundo andar do Insite, na
época o único centro de consumo assistido da América do Norte, onde eu
trabalhava como médico. Com quase 40 anos, braços de haltero lista,
cabeça raspada e uma imensa argola de latão no lóbulo direito, aquele
homem de aspecto feroz me encarou bem nos olhos e disse:

Doutor, eu não sei como dizer isso exatamente para o senhor. É como
quando você tem 3 anos e está doente, se tremendo todo de febre, e sua
mãe pega você no colo, enrola você num cobertor quentinho e faz você
tomar uma canja de galinha morna: é essa a sensação que a heroína traz.

Seu colega morador de Downtown Eastside, o poeta Bud Osborn,


também mencionou o calor tranquilizador que a heroína lhe permitia
experimentar. “Eu sentia uma quentura no fundo das entranhas, que sempre
tinham sido muito frias.”
O guitarrista de rock11 e astro de reality show Dave Navarro me disse
que encontrava nos seus vícios “uma espécie de amor e aceitação”, outro
tema recorrente entre os usuários. Seu colega de podcast e escritor, o ator
britânico Russell Brand, também falou de amor. “A primeira vez que usei
heroína, foi uma sensação muito sagrada, muito espiritual, muito cálida e
maternal”, disse ele. “Tive a sensação de ser pego no colo… de que nada
tinha importância, e me senti seguro.” Seu uso da palavra maternal é mais
do que metafórico: ele remete diretamente à neurobiologia do vício em
opioides.
Outros encontram em seus hábitos compulsivos uma experiência que as
pessoas passam anos tentando ter em cavernas, mosteiros e retiros caros. “O
álcool lhe dá três ou quatro horas de paz”, disse o ator e ex-apresentador do
Saturday Night Live Darrell Hammond quando conversamos. “Apenas paz.
As conversas na cabeça, os pensamentos negativos cessam. Isso é precioso.”
Paz e tranquilidade não são características que a maioria de nós associa à
vida de alguém com uma dependência, mas esses estados “preciosos” muitas
vezes são aquilo que se busca – e que, por um momento, se encontra.
O vício em tranquilizantes de Lena Dunham lhe proporcionou uma
ilusão temporária de normalidade, ilusão essa reforçada pelo fato de que, na
nossa sociedade, suas drogas prediletas são muitas vezes adquiridas por
meios “legítimos”, ou seja, por receita médica. “Remédios trazem a promessa
mágica de fazer a pessoa ter um funcionamento normal, ou melhor do que o
normal”, diz ela. “Dá para sentir o cheiro quando uma pessoa bebeu; no caso
do crack, a pessoa acaba debaixo de um viaduto. Já quem toma Rivotril12
pode passar um longo tempo pensando: ‘Nossa, encontrei a solução para
conseguir funcionar no mundo.’”
Vale a pena perguntar: quem nunca ouviu falar numa “doença” que faz a
pessoa “se sentir normal”? Ou quando foi a última vez que adoecer fez você
“funcionar melhor do que o normal”?
À luz desses depoimentos, a insistência de Jeff Sessions em “escolhas
melhores” soa ainda mais absurda. Será que devemos instalar na beira das
estradas e nos refeitórios escolares outdoors mais verídicos, que digam:
“Diga não aos analgésicos”? Ou “Diga não a uma sensação cálida e
reconfortante”? Diga não para a paz interior; para a calma, o
empoderamento, uma sensação de valor pessoal; para a comunidade e a
amizade; para uma expressão pessoal sem entraves; para uma fugidia
sensação de normalidade e conforto; para o amor? “Eu de fato reparei”, me
disse Navarro, “que sempre que recomeçava a usar alguma substância eu
conseguia me sentir da forma que um ser humano normal supostamente deve
se sentir”. Experimente dizer não para isso.
Em última instância, todos os incentivos ao vício podem ser resumidos
como uma fuga dos limites do eu, ou seja, da experiência concreta e vivida
de sentir desconforto e isolamento dentro do próprio corpo. Por baixo das
superfícies de funcionamento “normal”, sejam elas quantas forem, esse
alienante desconforto pode ser perturbador a ponto de se tornar um
tormento: uma sensação persistente de ser anormal, não merecedor e
de ciente. Keith Richards, do Rolling Stones – talvez o ex-viciado em
heroína mais conhecido do mundo –, resume essa estratégia de fuga em sua
autobiogra a, Vida: “Eu acho que era uma busca pelo esquecimento […] os
contorcionismos que se faz simplesmente para não ser você mesmo por
algumas horas.”13
Por que seria preciso escapar de si? Ansiamos por escapar quando
estamos aprisionados, quando estamos sofrendo. A dependência nos chama
quando a vida consciente se resume a estar preso num tormento interior, em
dúvidas, perda de signi cado, isolamento, desvalorização; se resume a sentir
frio na barriga e desesperança; a não ter fé na possibilidade de liberação,
nem ninguém que nos acuda; a ser incapaz de suportar os desa os externos
ou o caos ou vazio interiores; a ser incapaz de regular os próprios estados
mentais desagradáveis, achar as próprias emoções insuportáveis; e acima de
tudo se resume ao desespero para aliviar a dor que esses estados in igem. A
dor, portanto, é o tema central. Não é de espantar que as pessoas se re ram
com frequência ao efeito anestesiante bené co de suas dependências: só
alguém que está com dor anseia por anestesia.
Como tentativa de escapar de si, a lógica interna da dependência é
inexorável. O que eu sou é intolerável. Me tirem daqui.
E nesse ponto chegamos à segunda pergunta fundamental relacionada à
dependência, pergunta que no meu caso se tornou uma espécie de mantra:
não pergunte o porquê do vício, pergunte o porquê da dor. É essa a pergunta à
qual nem o paradigma médico dominante baseado na doença, nem o
preconceito popular têm a menor possibilidade de responder, ou sequer
cogitariam fazer. Sem ela, contudo, não conseguimos ter a menor pista de
por que esse transtorno da mente, do corpo e do espírito está crescendo
tanto.
Para mapear o terreno difícil e inóspito em que a dependência nasce,
vale a pena perguntar às pessoas que a atravessaram. Escutar suas
experiências de vida deixa bem claro o que precisa ser tranquilizado, e por
quê. Falta-nos espaço para narrar todas as trágicas histórias de origem dos
muitos indivíduos que entrevistei para este livro, dos famosos aos anônimos.
Segue uma breve e representativa amostra.

Quando a lenda do hóquei canadense eoren Fleury tinha 14 anos,


seu técnico começou a abusar sexualmente dele. “Ele passou a ter uma
rotina toda vez que eu aparecia: primeiro se masturbava nos meus pés,
depois me chupava, então me deixava dormir.” E, segundo ele me
contou, as coisas nem de longe paravam por aí. Ele tinha um pai
alcoólatra e ninguém a quem recorrer na sua caótica família de origem.
Pelo contrário: estava louco para fazer felizes aqueles pais
economicamente depauperados e emocionalmente disfuncionais. Anos
depois, já uma estrela, quando ganhava milhões de dólares por ano
como obstinado atacante do New York Rangers, ele era totalmente
viciado em álcool e cocaína.
Bruce, especialista em cirurgia dependente de opioides, também teve
uma infância desprovida de cuidado. “Meu pai era ausente”, contou.
“Não tive um pai na minha vida quando era criança. Ele foi embora
quando eu era bem pequeno, uns 4 anos. E minha mãe era jovem
demais para assumir as tarefas que eu precisava que ela assumisse. Ela
me teve aos 16 anos, ela própria basicamente uma criança. Cresci sem
ter qualquer apoio. Minha vida teve muita dor.”
A mundialmente conhecida fotógrafa Nan Golding, que diz ter usado
drogas durante “a maior parte da vida”, tinha 11 anos quando a irmã
mais velha se suicidou aos 18. “Foi um trauma imenso e de nidor para
mim”, disse Golding. De nidor, mas não primário. “Fui criada numa
família muito neurótica”, recorda ela, recorrendo a um certo grau de
eufemismo. “A agitação por causa da minha irmã mais velha era
constante… Algumas de minhas primeiras lembranças são dela
atirando coisas em todo mundo, menos em mim. Eles a internaram em
hospitais psiquiátricos e chegaram a mandá-la para um orfanato. Havia
muita violência, muito caos, muita gritaria.”
Quando o falecido poeta de rua de Downtown Eastside Bud Osborn
tinha 3 anos, seu pai se enforcou na cadeia, para onde a polícia de
Toledo o levara depois de ele tentar se jogar da janela. “Quando
criança, Osborn tinha uma pessoa que considerava um refúgio: a avó”,
escreve o jornalista de Vancouver Travis Lupick em Fighting for Space
(Lutando por espaço), seu livro sobre o movimento a favor da reforma
da política de drogas de que Osborn se tornou um líder importante.
“Essa avó foi morta a tiros pela tia dele, que em seguida se matou.” Aos
5 anos, Bud viu a mãe ser espancada e estuprada. Um ano mais tarde,
ele se atirou da varanda na tentativa de tirar a própria vida.
O ex-astro do Saturday Night Live Darrell Hammond era física e
emocionalmente agredido pela mãe, como sabe qualquer um que tenha
assistido ao doloroso e revelador documentário autobiográ co Cracked
Up (cujo título, um jogo de palavras, poderia ser traduzido livremente
como Rindo de quê?).
Lena Dunham sofreu abuso sexual muito jovem, além de outro fator
que é uma garantia dos efeitos traumáticos duradouros desse tipo de
experiência: o isolamento emocional. Numa sessão de terapia recente,
sob os efeitos do medicamento quetamina, ela teve a experiência de
“testemunhar essa tristeza avassaladora devida ao fato de estar sozinha
quando criança”.

Embora cada história de vida tenha suas especi cidades, e o trauma,


muitas faces, alguma generalização é tanto possível quanto necessária, em
especial quando o abuso e a negligência encontram as camadas mais baixas
do status racial e social. Durante meus 12 anos no Downtown Eastside de
Vancouver, aprendi que todas as minhas pacientes mulheres – muitas delas
indígenas, e muitas envolvidas na indústria do sexo – tinham sofrido abuso
sexual na infância ou na adolescência, um dos marcadores do legado
multigeracional que o passado colonial brutal do Canadá deixou. Vários
estudos em grande escala con rmam a dinâmica do trauma de infância, que
inclui abuso sexual, na potencialização de uma dependência subsequente.
Segundo um estudo com mais de 100 mil estudantes publicado em 1997,
adolescentes que tenham sofrido maus-tratos ou abuso sexual tinham uma
probabilidade duas a quatro vezes maior de estarem usando drogas do que
aquelas que não mencionavam terem sido molestadas dessa forma.14
Aquelas que sofriam abuso tanto físico quanto sexual tinham pelo menos o
dobro de probabilidade de usar drogas do que outras que tivessem sofrido
um dos dois tipos de abuso. O consumo de álcool revelou um padrão
semelhante: numa amostragem nacional de 10 mil adolescentes, as que
tinham histórico de abuso sexual tinham uma probabilidade três vezes
maior de começar a beber na adolescência.15

Agora que desbastamos o emaranhado de crenças equivocadas sobre a


dependência, compreendemos um pouco o que ela faz pelas pessoas sob seu
domínio, e começamos a pensar que tipos de experiências de vida poderiam
tornar essas “vantagens” tão palpáveis e atraentes, proponho abrir ainda
mais a cortina no próximo capítulo. Outro mito, ao mesmo tempo
convincente e altamente nocivo, é de que existe uma categoria que podemos
rotular de “viciados”, referente a determinado grupo identi cável de pobres
almas infelizes, e outro, perfeitamente segregado “dessa gente”, formado pelo
restante de nós, as pessoas “normais”.
Para modi car um pouco uma frase do grande humorista George
Carlin, esse clube é bem grande… e somos todos sócios.
16

Quem se identificar levante a


mão: uma nova visão da
dependência

Há tempos já deveria ter surgido uma nova abordagem – tanto


porque nosso entendimento sobre a neurociência por trás da
dependência mudou quanto porque muitos dos tratamentos
existentes simplesmente não funcionam.
– MAIA SZALAVITZ1

Uma vez traçado o contorno do que a dependência é e do que não é, e


reconhecidas sua força e sua função na vida das pessoas, eu gostaria de
propor uma nova de nição de trabalho, na minha opinião mais verdadeira e
mais potente do que as anteriores. Ao deixar de lado o determinismo
genético, ela abre uma possibilidade para a cura. Mas preciso fazer um
alerta. Apesar de mais precisa e mais esperançosa, minha de nição é
também mais ecumênica: ela torna ainda maior a “grande tenda” da
dependência. É possível que você acabe constatando que também está nela.
A dependência é um processo psicológico, emocional, siológico,
neurobiológico, social e espiritual complexo. Ela se manifesta por meio de
qualquer comportamento em que uma pessoa encontra alívio ou prazer
temporários, e portanto pelo qual anseia, mas que a longo prazo tem
consequências negativas para a própria pessoa ou para os outros, e mesmo
assim ela se recusa ou não consegue abrir mão dele. Sendo assim, as três
principais características da dependência são:

alívio ou prazer de curto prazo, e portanto ssura;


sofrimento de longo prazo para si ou para os outros;
incapacidade de parar.

Duas coisas a observar logo de cara: em primeiro lugar, minha de nição


não menciona doença, mas isso não quer dizer que precise excluir essa
visão. Conforme expus no capítulo 6, a maioria das doenças é mais bem
compreendida como processos complexos que se manifestam na vida inteira
da pessoa, não como “coisas” pontuais. No m das contas, como no caso de
muitos transtornos, chamar a dependência de doença pode realçar aspectos
relevantes sem chegar perto de explicar o fenômeno, quanto mais de indicar
um caminho para curá-lo em sua origem.
Em segundo lugar, essa de nição não se limita às drogas. O mesmo
impulso que muitas vezes se aplica a substâncias químicas pode ativar
diversos tipos de comportamento, de promiscuidade sexual compulsiva a
pornogra a, de vício em compras a vício na internet (ambos hábitos que
conheço bem), de gaming a jogos de azar, de qualquer tipo de compulsão
por comida ou bebida a vômitos autoprovocados, de trabalho a esportes
radicais, da obsessão por malhar à busca compulsiva por relacionamentos,
do uso de substâncias psicodélicas à meditação. A questão não é algum alvo
externo, mas sim a relação interna que a pessoa tem com isso. Você sente
ssura e usa ou pratica algo que lhe traz alívio ou prazer temporários e que
favorece ou acarreta consequências negativas, mas não consegue parar? Seja
bem-vindo à nossa reunião. Tem café de cortesia ali nos fundos da sala.
Se você já me ouviu falar sobre esse tema, seja pessoalmente ou no
YouTube, provavelmente sabe o que vou perguntar agora. Em geral, nesse
ponto eu faço uma pausa e peço às pessoas que levantem a mão se a resposta
for a rmativa para a seguinte pergunta: “Segundo a de nição que acabei de
dar, quem aqui é ou algum dia já foi dependente?” Seja qual for o tamanho
da plateia, praticamente ninguém deixa de levantar a mão, a não ser, como
gosto de brincar, alguém que provavelmente esteja mentindo. Eis quão
absolutamente normais são as dependências hoje na nossa cultura. Convido
você, destemido leitor, a submeter-se ao mesmo teste, levantando ou não a
mão.
É claro que nem todas as dependências são iguais, exceto em linhas
muito gerais. Meus pacientes com HIV e hepatite C de Downtown Eastside
certamente se distinguem da maioria de nós quanto ao grau de sofrimento
que os fez mergulhar no vício, em quanto a dependência domina a vida
deles e também nas consequências duríssimas que seus vícios lhes trazem.
Isso sem falar na carência de recursos internos ou externos, muitas vezes por
motivos socioeconômicos e raciais que não foram criados por eles. Esses
pacientes se distinguem também pelo grau de ostracismo e punição que a
sociedade lhes in igiu e segue lhes in igindo.
Essas diferenças gritantes de grau têm importância, e não devemos nem
equalizá-las nem apagá-las. Mas elas não mudam o fato de que o processo
de dependência tem determinados traços intrínsecos conhecidos por todos
que o vivenciam. Ele não poupa ninguém, nem mesmo os que estão no topo
da pirâmide. Isso inclui aqueles cujos hábitos destrutivos, segundo o torto
sistema de valores da nossa cultura, são considerados “bem-sucedidos”.
Essas diferenças tampouco eliminam o fato de a maioria de nós, cidadãos
“normais”, termos muito mais semelhanças do que tenderíamos a admitir
com aqueles que desprezamos ou de quem sentimos pena devido às suas
dependências mais graves ou mais óbvias. A linha que separa “nós”, os
certinhos, “deles”, os excluídos, não é sequer tênue: ela é imaginária.
Nesse ponto, é útil recordar o espectro de gravidade no que diz respeito
ao trauma. Todo tipo de sofrimento, desde as feridas de desenvolvimento
menos óbvias a que nos referimos com T minúsculo aos mais explícitos
traumas com T maiúsculo, podem demandar o alívio da dor na forma de
uma dependência. Repetindo: o trauma/a ferida tem a ver com o que
acontece dentro de nós e como esses efeitos perduram, não com o que nos
acontece. Uma investigação sobre “o porquê da dor” precisa deixar espaço
para o tipo de ferida emocional que pode se esquivar de uma lembrança
consciente ou que, com muito mais frequência, parece insigni cante para
quem está se lembrando.
Não é incomum as pessoas pensarem que tiveram uma “infância feliz”.
Contanto que a vida esteja correndo razoavelmente bem, falta-nos motivos
para questionar essa visão. Quando a dependência se faz presente na própria
pessoa ou em alguém que ela ama, certamente alguma investigação é
necessária.2 Ao olhar com compaixão para dentro de si mesmas, a maioria
das pessoas conseguirá se situar em algum ponto do espectro de
trauma/ferida psicológica. Lembranças felizes genuínas não descartam o
sofrimento emocional, mas o mais habitual é recordar as primeiras e
suprimir a consciência do último. Na minha experiência, até as pessoas com
as narrativas mais insistentes de “infância feliz”, se lhes forem feitas as
perguntas certas, muito rapidamente se dão conta de que a sua história está
repleta de pontos cegos.
Em 2015, a escritora e artista do teatro Stephanie Wittels Wachs perdeu
o irmão mais novo, Harris, por overdose. Ela própria é uma viciada em
trabalho confessa, o que prejudica sua vida familiar. Até o dia em que me
convidou para seu podcast Last Day, ela estava convencida, na verdade
irredutivelmente convicta, de que ela e Harris tinham sido criados num lar
normal e feliz. Entre as provas dessa normalidade e dessa felicidade por ela
lembradas estavam a participação da mãe em muitas das atividades
escolares – acompanhante de passeios, presidente da associação de pais e
mestres, e assim por diante – e uma vida doméstica em que os papéis dos
pais eram estáveis no sentido tradicional: pai que trabalhava fora, mãe dona
de casa. A sensação de segurança inspirada por todos esses elementos pode
muito bem ter sido verdadeira; Wittels Wachs certamente parece ter sido
criada por uma mãe e um pai que amavam os lhos da melhor forma que
conseguiam, e proviam as suas necessidades físicas e sociais. No entanto,
embutidas nessa “normalidade” havia experiências de profunda dor
emocional que ela descartara por completo até serem resgatadas das
profundezas pelas minhas perguntas. “Essa conversa toda me pegou
desprevenida”, confessou ela depois aos seus ouvintes. “Ele tem absoluta
razão. Meu discurso sobre minha infância feliz está incompleto.”
David Sheff foi igualmente “pego desprevenido” por uma
conscientização semelhante. Seu livro Querido menino, que narra o vício
quase fatal de seu lho Nick em estimulantes, foi um sucesso de vendas, e
mais recentemente serviu de tema a um lme comovente estrelado por Steve
Carrell e Timothée Chalamet. Não tinha havido nenhum trauma com T
maiúsculo na sua família, nenhum abuso ou adversidade grave. Perplexo,
Sheff foi obrigado a fazer a si mesmo algumas perguntas desconfortáveis
para entender o que levou seu primogênito cheio de vida, talentoso e muito
sensível a uma dependência que quase lhe custou a vida. Em retrospecto,
Sheff viu que a dor de Nick devia ter surgido bem no início, na esteira de um
relacionamento disfuncional entre os pais. “Nós não deveríamos ter estado
juntos”, contou ele. “Tínhamos problemas terríveis no nosso casamento,
terríveis.” O autoengodo desempenhava um papel importantíssimo: ao
mesmo tempo que tinha um caso extraconjugal com uma amiga da família,
Sheff alimentava

na minha mente a fantasia de que, se eu fosse feliz e ela também, as


crianças cariam juntas, sabe, e nós teríamos uma família feliz e
estaríamos meio que libertando as crianças daquelas duas famílias
traumáticas… Eu realmente acreditava estar fazendo aquilo em certa
medida por causa do Nick. Eu estava justi cando meus atos, tentando
fazer com que casse tudo bem.

É um grande mérito de Sheff ter se disposto a olhar para trás com os


olhos abertos e ver como as coisas de fato eram. Não conheço os detalhes,
mas, segundo Sheff, ele e o lho hoje têm conversas honestas sobre o
passado e cheias de compaixão mútua, além da compreensão compartilhada
de que a dor da infância de Nick foi um dos principais motivadores das
di culdades que teve depois.
Assim como eu, Dan Sumrok já encontrou ocasionalmente algum cético
do trauma. Dono de uma longa barba grisalha que desce até o meio do peito
e de um estilo de oratória arrebatado, esse meu amigo e colega na medicina
da dependência parece a encarnação de um profeta bíblico. Se Dan prega
algum evangelho, porém, é o da sanidade. Ao longo da sua carreira de
médico de família, primeiro na escola de medicina da Universidade do
Tennessee em Memphis, depois em Nashville, e mais recentemente numa
região rural, ele já tratou quase 25 mil pessoas com dependência em
opioides. Ele também vê além da perspectiva médica da dependência como
doença, seja genética ou não; também na sua experiência, o trauma é o fator
originário. “Comecei a escrever sobre esse tema em 1980, quando tinha
acabado de concluir o serviço militar. Era calouro na faculdade de medicina,
e minha vida estava se desmilinguindo. Eu diria que meus melhores amigos
eram George, Jack e Jim: os irmãos uísque.”3 “Algumas pessoas”, a rma Dan,

os verdadeiros militantes dos Doze Passos, me dizem, assim como


alguns dos programas de tratamento já disseram: “Nem tudo tem a ver
com trauma, sabe, Sumrok.” Como quero muito tranquilizá-los, eu digo:
“Prometo que estou mantendo a mente aberta. Estou esperando para ver
a primeira pessoa para quem tudo não tenha a ver com trauma.”

Seria preciso esperar muito tempo.


Seja qual for o grau da ferida, toda dependência é uma espécie de
história de refugiados: pessoas que fugiram de sentimentos intoleráveis e
nunca processados causados pela adversidade, e se refugiaram num estado
de liberdade temporária, ainda que ilusória. Mais uma vez, tente dizer não
para isso.

Talvez seja uma surpresa para muita gente saber que nenhuma droga em si é
viciante, nem mesmo as mais notórias drogas “de alto risco”, como o crack
ou a metanfetamina. A maioria das pessoas que experimentam drogas,
qualquer droga, mesmo repetidas vezes, nunca se torna dependente. Os
motivos disso lançam um pouco mais de luz sobre a natureza da
dependência.
Muitas vezes pergunto às pessoas na plateia: “O álcool gera dependência,
sim ou não? A comida gera dependência, sim ou não? E o trabalho, sim ou
não? E o sexo, sim ou não? E a pornogra a ou as compras, sim ou não?” A
resposta correta, contida na própria pergunta, é “sim ou não”, a depender do
grau em que esteja a dor que precisa ser aliviada.
O especialista em medicina interna de San Diego Vincent Felitti foi um
dos principais pesquisadores do hoje célebre (embora não o su ciente)
Estudo sobre Experiências Adversas na Infância (EAI). Esse estudo surgiu
depois que Felitti decidiu escutar as histórias de vida de pacientes numa
clínica para obesidade, todos os quais relataram traumas de infância.
Realizada na década de 1990 na rede de atendimento de saúde californiana
Kaiser Permanente, a pesquisa mostrou que, num grupo de 1.700 pessoas
em sua maioria brancas e de classe média, quanto maior a adversidade à
qual uma criança tivesse sido exposta, maior era o risco de ela desenvolver
dependências, questões de saúde mental e outros problemas médicos na
idade adulta.4 A adversidade era classi cada em três rubricas gerais: abuso
(psicológico, físico, sexual); negligência (física, emocional); disfunção
doméstica (alcoolismo ou uso de drogas em casa, divórcio ou perda de
genitor ou genitora biológico(a), depressão ou doença mental em casa, mãe
tratada com violência, membro da família na prisão). Os impactos dessas
experiências não apenas se somavam: eles multiplicavam um ao outro. Um
adulto que relatasse uma pontuação EAI de 6 tinha um risco de usar drogas
por via intravenosa 46 vezes maior do que uma criança sem nenhuma das
adversidades citadas.
“Acredita-se com frequência”, disse Felitti ao discutir sua pesquisa,

que o uso repetido de muitas drogas ilícitas em si vai gerar a


dependência. Nossos achados contestam essa visão […] A dependência
tem relativamente pouco a ver com as supostas propriedades viciantes
de determinadas substâncias, com exceção do fato de todas elas
proporcionarem um desejado alívio psicoativo […] Em outras palavras,
trata-se de uma tentativa compreensível de autotratamento com algo
que quase funciona, criando assim um impulso de consumir mais
doses.5

Os achados de Felitti sobre adversidade na infância fazem cair ainda


mais por terra o mito de determinismo genético que comecei a desmontar
no capítulo sobre epigenética. Nenhum gene isolado da dependência nunca
foi encontrado, e tampouco vai ser. Talvez exista algum conjunto de genes
que predisponha as pessoas a uma suscetibilidade à dependência, mas
predisposição e predeterminação não são a mesma coisa. O que vale para
uma doença física vale também para a dependência: os genes são ligados e
desligados pelo entorno, e hoje sabemos que a adversidade precoce afeta a
atividade genética de maneiras que criam um molde para uma futura
disfunção. Estudos tanto em humanos quanto em animais con rmaram que
qualquer risco genético de abuso de substâncias pode ser neutralizado com
uma criação num ambiente de cuidado.6
Um dos e-mails de agradecimento mais felizes que já recebi foi da mãe
de um menino de 4 anos. O marido, ex-alcoólatra, se recusava a ter lhos,
tamanho o medo que sentia de transmitir para seus descendentes o “gene do
alcoolismo”. Depois de ler meu livro sobre dependência, ele reconheceu as
origens traumáticas do seu vício e abandonou o medo desse gene não
existente. E foi bem a tempo: sua mulher já tinha quase passado da idade de
ter lhos. Mal pude reprimir uma risadinha de satisfação. Eu já fora
agradecido por “salvar” a vida de pessoas que nunca tinha visto, mas nunca
por ter sido o causador de uma vida a distância.
O modo como a adversidade na infância gera a neurobiologia da
dependência tem a ver com a ciência interpessoal-biológica que já
examinamos. Experiências de estresse intrauterino podem predispor à
dependência, por exemplo, ao alterar a capacidade cerebral de reagir ao
estresse de maneira funcional. Elas também podem ter in uência de longo
prazo nas partes do cérebro que modulam o sistema de incentivo-motivação
que é prejudicado em todas as dependências, sejam elas de drogas ou de
comportamentos.7 Como me disse Bruce Perry, psiquiatra, neurocientista,
autor e destacado pesquisador do trauma: “O trabalho que zemos, e o
trabalho que muita gente também fez, demonstrou que fundamentalmente a
quantidade e densidade dos receptores de dopamina nessas áreas [do
cérebro] é determinada no útero.”8
Quem quer que tenha cunhado a gíria em inglês dope para designar as
drogas entendeu alguma coisa, porque todas as dependências, seja de drogas
ou comportamentos, têm a ver com dopamina. A dopamina é o
neurotransmissor fundamental do sistema da motivação, sem o qual todos
os mamíferos cariam inertes, inativos e totalmente desmotivados. Um rato
de laboratório faminto cujo cérebro for arti cialmente privado de seu
aparato de dopamina irá morrer de fome parado em frente a um prato de
comida. Na verdade, todo dependente é um viciado em dopamina que
terceiriza a caça à substância química natural que torna o presente
empolgante e vibrante. Em praticamente toda sensação ou qualidade
“positiva” que as pessoas obtêm de suas substâncias ou comportamentos
prediletos há a participação de alguma substância química cerebral
endógena, ou seja, que é produzida naturalmente. A dependência começa
como uma tentativa de induzir sensações que fomos biologicamente
programados para gerar, e que geraríamos internamente, caso
circunstâncias pouco saudáveis não tivessem nos atrapalhado.
O vício em sexo, por exemplo, não tem nada a ver com uma “libido
exacerbada” e tudo a ver com dopamina. Zachary Alti, assistente social e ex-
professor adjunto das universidades Fordham e Rutgers de Nova York, é
especialista em terapia sexual e vícios comportamentais, em especial o vício
em pornogra a. “Estudos estão sugerindo”, disse-me ele,

que ao vermos uma imagem pornográ ca temos um pico de dopamina


no cérebro. Quando vemos várias imagens seguidas, temos um pico
atrás do outro. Enquanto nas dependências que envolvem substâncias o
mais comum é ter um ou alguns picos de dopamina pouco antes do uso,
no caso das dependências comportamentais a substância, o componente
primário, é a própria dopamina. Sobretudo no caso do vício em
pornogra a, esses picos de dopamina acontecem várias vezes seguidas.

Como no caso de empresas de smartphones e aplicativos, quem produz


pornogra a sabe muito bem que seu lucro depende do sequestro do cérebro
dos consumidores. A socióloga Gail Dines, autora do chocante livro
Pornland: How Porn Has Hijacked Our Sexuality (Pornolândia: como a
pornogra a sequestrou nossa sexualidade), de 2010, menciona um artigo no
periódico especializado Adult Video News em que um integrante da
indústria alardeia um estudo da Universidade Stanford sobre vício em sexo
virtual que mostra que 20% dos usuários de pornogra a são viciados.
“Numa abordagem genuinamente capitalista”, observa ela, o artigo tem o
título alto-astral de “Exploiting the Data”, ou “Explorando os dados”.9
Mas e as sensações de amor que as pessoas obtêm de seus vícios, em
especial dos opioides, a quentura mencionada por Jamie Lee Curtis e
outros? Essa é, em grande parte, uma função do aparato interno de opioides
do cérebro, em que os neurotransmissores são as endor nas, nosso próprio
opioide natural e endógeno. Vinte anos atrás, Jaak Panksepp sugeriu que o
vício em opioides estava enraizado nos mecanismos evolucionários
cerebrais que promovem os vínculos sociais: o cuidado, a proximidade
emocional e os elos sociais. “Seria de esperar”, escreveu dele,

que indivíduos que vivenciam di culdades e inseguranças sociais


severas estivessem especialmente vulneráveis ao abuso de opioides, e
essa previsão se con rmou em alguns estudos clínicos. Com efeito, a
mesma dinâmica pode ajudar a explicar por que o vício em opioides é
particularmente disseminado entre pessoas socialmente
desfavorecidas.10

A atual crise de overdoses por opioides nos Estados Unidos, e em menor


grau no Canadá e no Reino Unido, trouxe tragicamente para a realidade a
agudeza dessa observação.
O sistema de endor nas, para se desenvolver, também depende de
relacionamentos de apoio e sintonia no início da vida. “Interações cara a
cara ativam o sistema nervoso simpático da criança”, escreve Louis
Cozolino, psicólogo, neurocientista e professor de psicologia na
Universidade Pepperdine. “Esse níveis mais altos de ativação estão
relacionados a uma produção maior de oxitocina, prolactina, endor nas e
dopamina, alguns dos mesmos sistemas bioquímicos envolvidos na
dependência.”11 A familiaridade de uma criança com um(a) genitor(a)
atento(a) e emocionalmente disponível favorece o desenvolvimento ideal
dos sistemas cerebrais; a falta dessa proximidade inibe o desenvolvimento
saudável.
O trabalho tem sido o principal, mas não o único, vício da cantora e
compositora Alanis Morrissette. Usando termos que remetem à endor na,
ela hoje se refere a esse fato como uma compensação. “Existe um anseio por
intimidade na fama”, observou ela quando conversamos. “Pensando bem,
você é alvo de todos os olhares. Todo mundo é hiper-reativo. Todo mundo
presta atenção em você… Você ca correndo atrás dessa sensação de ser
amada, adorada, olhada.” Morrissette estava tentando obter por meio da
fama o estado de êxtase da primeira infância que tantos nunca vivenciam,
ou vivenciam de modo demasiado breve.
Quando Robert Palmer cantou sobre ser viciado em amor, ele poderia
estar falando com todos nós que levantamos a mão: todos os dependentes
de drogas, de trabalho, jogadores, compradores e comedores compulsivos,
todos os que vivem correndo incessantemente atrás da nova injeção de
ânimo ou de tranquilidade. Só que na verdade não é o amor que vicia, e sim
nossas tentativas desesperadas de lidar com a falta dele usando qualquer
meio necessário.
A realidade é dura, eu sei. Mas é melhor nós a encararmos.
17

Um mapa impreciso da nossa


dor: onde erramos em relação
à doença mental

Nós não entendemos nenhum grande transtorno mental do


ponto de vista biológico.
– ANNE HARRINGTON1

Aos 19 anos, calouro de jornalismo na Universidade da Flórida, Darrell


Hammond mergulhou em sua primeira experiência de intensa perturbação
mental. “Senti um terror impossível de expressar”, relembrou o comediante.
“Nem sei como sobrevivi a tanto medo. Os médicos estavam me tratando
para depressão e paranoia, e também para psicose, porque eu disse a eles ter
visto alguém falando, e as palavras não saíam ao mesmo tempo que a boca
dele se movia.” Receitaram-lhe o antidepressivo amitriptilina, além do
antipsicótico tioridazina. Ao longo das décadas seguintes, Hammond
calculou ter sido avaliado por até 40 psiquiatras e recebido vários
diagnósticos, entre eles depressão, transtorno bipolar e TEPT complexo, e
outros dos quais nem sequer se lembrava. A pressuposição que conduzia seu
tratamento era a mesma que domina boa parte do pensamento médico: que
esses tormentos são causados por uma doença biológica do cérebro. Assim,
ele foi tratado com um coquetel de medicações que vivia mudando. Ao
longo de anos de sucesso pro ssional, incluindo uma carreira inédita de 14
anos no Saturday Night Live – onde sua versatilidade foi expressada em
papéis que iam de Bill Clinton até um vulgar e divertido Sean Connery,
talvez seu personagem mais amado –, ele continuou se sentindo perdido,
irritadiço, isolado e desanimado. Os únicos recursos que conseguia
encontrar para pôr m a essa infelicidade eram a automedicação com
bebidas alcoólicas e a automutilação explícita: seu corpo ainda carrega as
cicatrizes de mais de 50 cortes autoin igidos.
Trinta e cinco anos depois do começo de sua odisseia psiquiátrica,
Hammond conheceu um médico do Weill Cornell Medical College de Nova
York, Nabil Kotbi, que mudou sua vida com duas frases curtas: “Não quero
que você chame o que tem de doença mental. Você foi ferido.” A
compreensão de que seus sintomas não eram manifestações de um
transtorno misterioso, me disse Hammond, “foi como um coro de ‘Aleluia’…
O que [Kotbi] parecia estar me dizendo era que a doença mental vem de um
lugar muito especí co. Ela tem uma história, e nessa história a única pessoa
que não tem poder nenhum é você”. Nas décadas que separaram seu
primeiro contato com o sistema de saúde mental e seu encontro com esse
psiquiatra especí co, ninguém tinha perguntado a Hammond sobre
experiências traumáticas na infância.

Não consigo descrever o que foi entrar num consultório sentindo muita
dor, e o médico olhar para mim e dizer: “Você não deveria estar se
sentindo assim.” Na época ninguém dizia: “Ei, você deve ter sido vítima
de abuso infantil.” Na época, se você se sentisse mal sem motivo
aparente, diziam que você era bipolar. Era a única coisa que eles sabiam.
“Ele tem altos e baixos inexplicáveis”, sabe como é? Eles me deram [o
estabilizador de humor] lítio e depois Depakote. Nenhum dos dois
funcionou. Na verdade nada funcionou antes de a verdade sobre a
minha vida ser reconhecida.
A verdade sobre a vida de Hammond incluía uma série de abusos
sofridos por sua mãe.2
Embora os distúrbios mentais certamente apresentem alguns aspectos de
uma doença – já que o cérebro parece funcionar como um órgão doente –, a
psiquiatria convencional põe ênfase demais na biologia, reduzindo tudo em
grande parte a um desequilíbrio de substâncias químicas cerebrais ditadas
pelo DNA. A psiquiatra Kay Red eld Jamison, hoje uma das autoras mais
eloquentes em relação ao clássico transtorno maníaco-depressivo,
atualmente conhecido como transtorno bipolar, escreveu o livro de
memórias Uma mente inquieta. Trata-se de uma leitura fundamental para
qualquer um que queira entender a experiência de uma consciência
exacerbada que alterna episódios de hiperanimação e de um desespero
paralisante. No entanto, entremeadas às lembranças lindamente narradas de
Jamison estão pressuposições equivocadas que são um exemplo da narrativa
genética simplista à qual a psiquiatria ainda se agarra. Aqui, ela recorda um
episódio de mania: “Minha mente nesse dia estava a mil, graças à seja qual
for a poção de neurotransmissores que Deus tinha programado nos meus
genes.” Na verdade, nem os genes nem Deus têm grande coisa a ver com a
história.
Em Touched With Fire (Tocada pelo fogo), livro igualmente comovente,
Jamison explicita mais ainda a questão, a rmando que “a base genética do
transtorno maníaco-depressivo é especialmente convincente, na verdade
quase incontroversa”.3 Vinte e cinco anos mais tarde, sabemos que as provas
sólidas e cientí cas não apenas não são convincentes como são quase
inexistentes. As provas “quase incontroversas” em que Jamison se apoiou são
as publicações sobre história familiar, adoção e estudos com gêmeos, todas
repletas de falsas pressuposições.4 As provas das causas genéticas às quais ela
alude só são “convincentes” para quem já compactua da mesma opinião; no
que diz respeito às provas em si, elas não passam de cção cientí ca.5 Além
disso, elas são também deselegantes: em meus trabalhos sobre transtornos
mentais e dependência, inclusive os meus próprios, sempre encontrei
material mais do que su ciente nas histórias pessoais dos indivíduos para
explicar seu sofrimento psíquico sem ter que lhes sobrepor uma narrativa
dominada pelo predeterminismo genético.
A expressão “doença mental”, ao mesmo tempo que descreve um
fenômeno real, concentra nossa atenção sobretudo na siologia do cérebro,
de modo análogo ao que, digamos, uma angina denota uma restrição no
fornecimento de oxigênio ao músculo cardíaco devido ao estreitamento das
artérias cardíacas. Ela também sugere que o problema recai necessariamente
no âmbito da medicina. Apesar de quaisquer verdades parciais que possam
conter, essas pressuposições são altamente questionáveis e limitam nossa
compreensão. Pior: elas causam danos, tanto no sentido de submeterem
muita gente a tratamentos inadequados quanto de substituir pontos de vista
que poderiam ser bem mais completos, humanos e úteis. O determinismo
biológico que guiou os médicos de Darrell Hammond também colocou seu
transtorno além do alcance da sua própria ação para se curar, reforçando
assim o fato por ele mencionado de “você ser o único a não ter nenhum
poder”. Esse ponto de vista ameaça manter quem sofre, em grande parte, no
papel de receptor(a) passivo(a) do tratamento, cujos sintomas são aliviados
por remédios que em muitos casos devem ser tomados até o m da vida.
Com sua abordagem predominantemente biológica, a psiquiatria comete
o mesmo erro de outras especialidades médicas: pega processos complexos
intrinsecamente relacionados à experiência de vida e ao desenvolvimento
emocional, cola neles a etiqueta “doença” e encerra o assunto.
Pouca coisa na formação dos médicos os prepara para se perguntar
sobre a experiência de seus pacientes, muito menos para buscarem ali as
origens dos seus mal-estares. É fácil recorrer a explicações simples, que
exijam pouco tempo ou energia emocional. Muitos médicos se sentem bem
pouco à vontade para encarar as próprias tristezas e feridas ocultas – o que
Carl Jung chamou de nosso lado da sombra. E não só os médicos; como me
disse um conhecido colega: “Os pacientes também têm in uência nisso. Eles
tampouco querem examinar a própria vida. Isso demandaria entrar num
processo de recuperação, mudar alguma coisa. Recuperar-se da própria
infância é um trabalho imenso. Vale a pena, mas exige muito esforço.” O
evangelho da causação genética nos protege de ter que confrontar nossas
mágoas, deixando-nos mais ainda à mercê delas.
Pode-se dizer que essa limitação é especialmente calamitosa na área do
sofrimento mental, e ainda menos justi cada. A nal, ao contrário do câncer
ou da artrite reumatoide, nenhum achado físico, exame de sangue, biópsia,
radiogra a ou exame de imagem é capaz de corroborar ou descartar
diagnósticos psiquiátricos. Como esta a rmação talvez surpreenda muitos
leitores, vale a pena repeti-la. Não existe nenhum marcador físico mensurável
de doença mental a não ser os subjetivos (a descrição que a própria pessoa
faz de como está se sentindo, digamos) e os comportamentais (padrões de
sono, apetite, etc.).
Assim como qualquer conceito, a doença mental é um construto: um
arcabouço especí co que nós desenvolvemos para compreender um
fenômeno e explicar aquilo que observamos. Ele pode ser válido sob alguns
aspectos e equivocado em outros; com certeza não é objetivo. Se não for
contido, ele se torna uma lente generalizada através da qual percebemos e
interpretamos as coisas. Esse modo de ver pode dizer tanto sobre os vieses e
valores da cultura que o origina quanto sobre o fenômeno que está sendo
visto, seja um conceito religioso como “pecado” ou um biomédico como
“doente mental”.6 Em determinadas culturas, por exemplo, pessoas que têm
visões podem se tornar profetas ou xamãs. Na nossa, o mais provável é
serem consideradas loucas. É de perguntar como Joana d’Arc ou a santa e
compositora de música sacra medieval Hildegard de Bingen se sairiam nas
mãos do sistema de saúde mental contemporâneo. Certa vez especulei em
voz alta, diante de uma plateia de centenas de pessoas, o que aconteceria se
eu chegasse para o primeiro-ministro do Canadá e proclamasse, à la Joana
d’Arc, ter visto um futuro no qual ele lidera o combate global à mudança
climática, começando por abrir mão do nanciamento de campanha
advindo da indústria dos combustíveis fósseis.
Além da tendência materialista típica do lado esquerdo do cérebro na
cultura moderna, como chegamos a essa visão da doença mental como um
fenômeno essencialmente biológico? Isso parece ser em parte resquício de
uma outrora sedutora aspiração da ciência médica, uma missão não
cumprida. “A psiquiatria hoje está no limiar de se tornar uma ciência exata,
tão precisa e quanti cável quanto a genética molecular”, escreveu o
jornalista Jon Franklin numa série de reportagens vencedora do prêmio
Pulitzer em 1984.7 Como no caso da promessa em última instância não
cumprida da revolução genômica de explicar a saúde e a doença, o
entusiasmo inicial pela perspectiva de uma psiquiatria baseada na ciência foi
virtualmente sem freios. Quase 40 anos depois, não estamos mais perto de
cruzar esse limiar imaginário; na verdade, estamos mais distantes. Quando a
quinta edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais) foi lançada pela Associação Americana de Psiquiatria, em 2013,
David Kupfer, chefe da força-tarefa responsável pela publicação, reconheceu
esse fato. “No futuro”, a rmou ele no release para a imprensa,

esperamos ser capazes de identi car transtornos usando marcadores


biológicos e genéticos que forneçam diagnósticos precisos, passíveis de
serem feitos de modo inteiramente con ável e válido. Para nossa
decepção, porém, essa promessa que aguardamos desde os anos 1970
permanece distante. Há várias décadas dizemos aos pacientes que
estamos esperando os biomarcadores. Continuamos esperando até
hoje.8

O jornalista e escritor Robert Whitaker, ex-diretor de publicações da


Escola de Medicina de Harvard, acreditava piamente na teoria do
desequilíbrio químico em relação à doença mental… até deixar de acreditar.
“Assim que comecei a escrever sobre psiquiatria, eu achava que isso fosse
verdade”, contou ele. “A nal, por que não acharia?” Sua desilusão veio de
pesquisas que ele descobriu ao trabalhar como repórter para o e Boston
Globe.

Eu perguntava às pessoas: “Me digam só uma coisa: onde foi que vocês
encontraram que a depressão se deve à serotonina, ou onde de fato
encontraram que a esquizofrenia se deve a um excesso de dopamina?”
Pedi para ler as fontes e, juro por Deus, a resposta foi: “Bom, nós na
verdade não encontramos isso. É uma metáfora.” O mais incrível é que,
quando você examina a questão na própria pesquisa, constata que eles
não encontraram mesmo! A divergência entre o que estão dizendo e o
que está nas suas próprias publicações cientí cas, é essa a chave… Isso
me deixou estupefato.

Esses não achados evidentes estão documentados no livro de Whitaker,


Anatomy of an Epidemic (Anatomia de uma epidemia), e foram
corroborados em outros escritos.9
Ao contrário do que eu também costumava acreditar, um diagnóstico
como TDAH, depressão ou transtorno bipolar não explica nada. Nenhum
diagnóstico nunca explica nada. Diagnósticos são abstrações, ou então
resumos: às vezes úteis, mas sempre incompletos. São condensações
pro ssionais para descrever constelações de sintomas que uma pessoa pode
relatar, ou observações de terceiros sobre os padrões de comportamento,
pensamentos e emoções de alguém. Para o indivíduo em questão, um
diagnóstico pode parecer explicar e validar uma vida inteira de experiências
antes difusas ou nebulosas demais para serem identi cadas. Isso pode ser
um primeiro e positivo passo rumo à cura. Falo por experiência própria.
O beco sem saída surge quando pressupomos ou acreditamos que o
diagnóstico equivale a uma explicação, visão especialmente ine caz em se
tratando de doenças de algo tão inerentemente abstrato quanto a mente.
Como me disse a psicóloga britânica Lucy Johnstone:

Na doença física, tem-se em princípio uma forma de veri cação. Pode-se


dizer: “Vamos analisar o exame de sangue ou os níveis de enzimas.” E na
maioria dos casos pode-se con rmar ou descartar a doença. Mas em
psiquiatria a argumentação é simplesmente circular, não? Por que essa
pessoa tem oscilações de humor? Porque ela tem transtorno bipolar.
Como se sabe que ela tem transtorno bipolar? Porque ela apresenta
oscilações de humor.
Penso no Ursinho Pooh e no Leitão de A. A. Milne, caminhando pela
neve num círculo involuntário e estremecendo ao se depararem a cada
curva com mais pegadas de “Efalante”.
Uma objeção ouvida com frequência em relação aos diagnósticos de
saúde mental, particularmente em relação às crianças, é que eles
“patologizam” ou “estigmatizam” sentimentos ou comportamentos normais
e saudáveis. Não é natural crianças se sentirem entediadas, irritadiças,
zangadas ou tristes? Minha resposta seria sim… mas não é tão simples
assim. Embora o excesso de diagnóstico seja certamente um risco, não acho
que o pico de casos de, digamos, TDAH nas últimas décadas se deva
exclusivamente a pais e mães in uenciáveis, professores e professoras
incapazes, psicólogos escolares zelosos demais e empresas farmacêuticas
inescrupulosas. Como discuti em capítulos anteriores, o mundo em que as
crianças nascem hoje poderia muito bem ter sido projetado para promover
perturbações na função cognitiva e na autorregulação emocional. Tudo que
vi me diz que estamos sim testemunhando uma transformação completa no
bem-estar mental das crianças.
Então por que insisto em criticar o modelo de diagnóstico? Porque
diagnósticos nada revelam sobre os acontecimentos e as dinâmicas
subjacentes que ocasionam as percepções e experiências consideradas. Eles
mantêm nosso olhar xo nos efeitos, não em suas múltiplas causas. Pode
haver vários motivos pelos quais uma criança tenha di culdade para prestar
atenção ou se mostre irrequieta, desinteressada e agitada: ansiedade,
estresses em casa, tédio em relação ao material que ela considera
desinteressante, resistência às restrições de precisar car sentada em sala de
aula, medo de sofrer bullying, um professor ou uma professora autoritária,
trauma, ou até mesmo, acredite, o mês de aniversário. Um estudo da
Universidade da Colúmbia Britânica examinou o histórico de receitas
médicas de quase 1 milhão de crianças em idade escolar do estado ao longo
de 11 anos, e constatou que crianças nascidas em dezembro tinham uma
probabilidade 39% maior de serem diagnosticadas com TDAH do que
colegas nascidos em janeiro do ano anterior. O motivo? Crianças nascidas
em dezembro entravam no mesmo ano quase um ano mais novas do que
seus colegas de janeiro, portanto estavam 11 meses atrasadas no
desenvolvimento cerebral. Essas crianças estavam sendo medicadas não
para um “transtorno cerebral genético”, mas para a maturação naturalmente
mais tardia dos circuitos cerebrais de atenção e autorregulação.10
Ou então considere o diagnóstico, segundo o DSM-5, de transtorno
desa ador de oposição (TDO), muitas vezes associado ao TDAH e outras
“doenças”. “Se a sua criança ou adolescente tem um padrão frequente e
persistente de raiva, irritabilidade, confronto ou comportamento vingativo
com você ou outras guras de autoridade, ela pode ter transtorno desa ador
de oposição”, aconselha a Clínica Mayo.11 A pista reside na palavra com: a
oposição, por de nição, só pode surgir no contexto de uma relação. Eu
posso padecer isoladamente dos sintomas de um resfriado, ou quebrar o
tornozelo sozinho. Mas não posso me opor a ninguém ou car zangado ou
irritado com alguém a menos que essa pessoa tenha algum tipo de relação
comigo. “Se não acreditam no que estou dizendo”, digo eu às vezes para
plateias formadas por terapeutas, pais e mães, professores e professoras ou
pro ssionais da área médica, “tranquem-se no quarto hoje à noite,
certi quem-se de estar totalmente sozinhos e tentem se opor a alguém. Se
conseguirem, postem no YouTube: vai viralizar num segundo”.
Como uma criança se desenvolve no contexto dos relacionamentos, seu
comportamento só será inteligível para nós se examinarmos o ambiente
relacional. Vistas assim, essas crianças que supostamente sofrem de TDO
são aquelas a quem falta uma conexão su ciente com adultos cuidadores, e
que têm uma resistência natural a serem controladas por pessoas em quem
não con am inteiramente ou de quem não se sentem próximas o bastante.
Essa aversão, além do mais, só faz aumentar diante de qualquer tentativa de
criticá-la ou convencê-la a mudar. Quali car isso de “transtorno” não diz
nada sobre a experiência interna da criança, e re ete apenas o ponto de vista
de quem considera essa recalcitrância um estorvo. Fazer isso também não
leva em conta por completo como a dinâmica de poder emocional funciona:
não existe transtorno algum em resistir a guras de autoridade nas quais,
seja por que motivo for, não con amos e com as quais não nos sentimos
seguros.
Se hoje estamos vendo mais jovens num modo de resistência
automático, a pergunta à qual devemos voltar é: como nossa cultura
perturba os relacionamentos saudáveis entre adultos e crianças? Por que
estamos diagnosticando crianças com um transtorno, em vez de
“diagnosticar” – e tratar – sua família, comunidade, escola e sociedade?
O psiquiatra, escritor e destacado pesquisador do trauma Bruce Perry12
passou a desdenhar quase por completo os diagnósticos. Não se trata de um
preconceito automático: sua visão negativa das normas e práticas da sua
área se manifestam depois de décadas avaliando dezenas de milhares de
crianças em di culdade, e extensas contribuições à vasta literatura sobre
adversidade e aquilo que de nimos como “transtornos”. “Quando comecei
na psiquiatria”, contou Perry,

bem depressa cou claro que os diagnósticos não tinham relação com a
siologia, que eram apenas descritivos, e que havia centenas de
caminhos siológicos para uma pessoa ter um problema de atenção, por
exemplo. Só que os pro ssionais agiam como se esses rótulos descritivos
fossem de fato alguma coisa… Eu sabia que, se estivéssemos fazendo
“pesquisa”, se estivéssemos usando essas descrições vazias que
denominamos “diagnósticos” e depois estudando intervenções e
desfechos, tudo que iríamos conseguir era lixo. E foi isso que zemos.

Hoje em dia, Perry é enfático ao declarar que “até jogar o jogo do DSM
está totalmente errado”. Quando convidado a contribuir numa das edições
do manual, ele disse não. “Falei: ‘Escutem, daqui a 25 anos nós vamos olhar
para trás e não vamos acreditar que pensávamos nas pessoas assim.’ Esse
não é um jeito válido de pensar sobre as complexidades do ser humano.” Na
clínica que ajuda a administrar, ele pratica o que prega. “Nós não fazemos
diagnósticos há uns 15, 20 anos”, disse ele, “e isso realmente não interferiu
na nossa capacidade de fazer um bom trabalho clínico. Na verdade
conseguimos fazer um trabalho clínico melhor sem usar esses rótulos.”
Com base nas minhas observações como médico de família e na minha
compreensão do desenvolvimento humano, eu segui a mesma linha.
Quando trabalho com qualquer distúrbio de saúde mental, como depressão,
ansiedade, TDAH ou dependência, não me interessa tanto o diagnóstico
formal em si. Meu foco para o “diagnóstico” são as di culdades especí cas
que a pessoa está enfrentando na vida e os traumas que movem essas
di culdades. Quanto às “receitas”, meu principal interesse é no que vai
promover a cura das feridas psíquicas que os padrões traumáticos atuais
representam.
Assim, farei uma a rmação que talvez surpreenda: não tenho nada
contra a farmacologia. Ninguém que tenha sentido ou testemunhado os
efeitos bené cos de remédios psiquiátricos pode negar que a neurobiologia
deve, de fato, ter um papel na dinâmica e na potencial diminuição do mal-
estar mental, assim como tem em todas as nossas experiências. Às vezes, a
cura a que acabo de me referir pode ser auxiliada – certamente não
garantida, mas assistida – pelo uso inteligente desses remédios. Essa não é
apenas minha opinião pro ssional, mas também minha experiência pessoal.
Quando eu tinha 40 e poucos anos, decidi começar a tomar Prozac,
remédio que aumenta a serotonina. (Um dos principais neurotransmissores
ou mensageiros químicos do cérebro, considera-se que a serotonina
in uencia funções como a regulação do humor e a diminuição da
agressividade.) Meu ceticismo em relação à tendência crescente de medicar
milhões de pessoas foi eclipsado pela minha ânsia por um alívio da
gravidade diária do meu estado mental, conforme resumi com desânimo
num registro de diário da época: “Estou sem energia para viver. Passei todos
os ns de semana dos dois últimos meses – todos os meus ns de semana livres
– irritado, passivo, desmotivado, deprimido e deprimente como companhia.”
Logo me tornei outra pessoa. Em poucos dias, minha mulher observou
aliviada que meus traços faciais relaxaram. Eu então acordava de manhã
com energia em vez de amargura, parei de me irritar tanto com meus
familiares, sorria e gargalhava bem mais, e era capaz de sentir e expressar
ternura quando antes só conseguia ser frio e cortante. Era como se alguém
tivesse posto um curativo no meu coração machucado, fazendo-o parar de
doer ou de se ferir a cada mínimo toque. Eu me peguei dizendo
maravilhado à minha cunhada: “Quer dizer que as pessoas podem se sentir
assim normalmente? Eu não fazia ideia!” Tive uma experiência semelhante à
que, alguns anos depois, em 1994, a escritora Elizabeth Wurtzel descreveria
em seu relato pessoal intitulado Nação Prozac. “Um dia de manhã, acordei
realmente querendo viver”, escreveu ela. “Era como se a névoa da depressão
tivesse se dissipado de cima de mim, do mesmo jeito que o fog de São
Francisco vai subindo conforme o dia avança. Seria o Prozac? Sem dúvida.”
Como acontece com muitos novos convertidos, minha reticência inicial
logo deu lugar a um período de entusiasmo exagerado. No consultório, me
tornei uma espécie de promotor do Prozac, sucumbindo ao erro de procurar
patologias onde havia apenas infelicidade cotidiana. “Você tem um
desequilíbrio químico no cérebro: está com falta de serotonina”, explicava
animadamente para pacientes em quem detectasse sintomas de depressão, já
com o receituário a postos. Mal sabia eu que estava a rmando fatos não
cientí cos. Sim, o remédio estava me ajudando, pelo menos a curto prazo. E
sim, já vi outros casos em que os remédios psiquiátricos zeram melhorar,
ou até mesmo salvaram vidas. Mas precisamos evitar a falácia de deduzir
dos benefícios (em alguns casos) observáveis das medicações o fato de a
origem demonstrada da doença mental estar na bioquímica do cérebro,
muito menos de esses desequilíbrios siológicos terem causa genética.
O fato de um remédio ter determinados efeitos positivos nada revela
sobre a gênese de um sintoma. Se uma aspirina alivia a dor de cabeça, a dor
de cabeça pode ser explicada por uma de ciência herdada de ácido
acetilsalicílico no cérebro, o ingrediente ativo da aspirina? Se uma dose de
bourbon faz você relaxar, o seu sistema nervoso tenso está sofrendo de uma
carência de uísque determinada pelo DNA? Existem 50 ou mais
neurotransmissores cerebrais cujas interações complexas nós só agora
estamos começando a explorar, sem falar nas quase in nitas possibilidades
inerentes à interseção da experiência com a biologia do corpo e do cérebro
ao longo de toda a vida. Mais uma vez, a siologia do cérebro é uma
manifestação e produto da vida, com seu movimento e seu contexto.
Além disso, como escreve Bruce Perry: “O cérebro é um órgão histórico.
Ele armazena nossa narrativa pessoal.” Como ele faz isso na forma de
elementos químicos e redes neurais, não é de espantar que experiências
difíceis possam resultar numa neurobiologia perturbada. Mesmo quando
exames de imagem do cérebro mostram determinadas anomalias – como
acontece no caso de muitas pessoas traumatizadas –, essas anomalias não
provam que o “transtorno” tenha uma origem neuroquímica. Um recém-
publicado estudo de três décadas acompanhou pessoas do início da vida até
os 29 anos. A má qualidade do cuidado na infância estava associada, 30 anos
depois, a um volume maior da estrutura cerebral fundamental para as
emoções, o hipocampo, bem como a um risco elevado de traços de
“personalidade borderline” e de suicídio. Em outras palavras, a genética
cerebral não “causava” nem a “doença” nem as diferenças neuro siológicas:
elas eram todas resultado da experiência de vida.13
O autor britânico Johann Hari explorou os vícios e a depressão tanto do
ponto de vista pessoal quanto jornalístico. Em sua obra de sucesso, Lost
Connections (Conexões perdidas), ele narra a própria experiência de
desânimo devastador, seguida pela exultação com o diagnóstico de
depressão que nalmente “explicava” seus perturbadores estados mentais.
“Isso vai soar esquisito”, escreve ele, “mas o que senti nessa hora foi um
choque de felicidade, como quem encontra inesperadamente um monte de
dinheiro en ado no encosto do sofá. Existe um termo para descrever o que
estou sentindo! É um distúrbio médico, como diabetes ou síndrome do
cólon irritável.”
Como no meu caso, a primeira experiência de Hari com medicamentos
foi positiva. “Foi só anos mais tarde”, relata ele em Lost Connections, “que
alguém me assinalou todas as perguntas que o médico não me fez naquele
dia. Tipo: existe algum motivo que pode estar fazendo você se sentir mal? O
que tem acontecido na sua vida? Algo o está machucando que talvez você
queira mudar?” As respostas teriam sido todas sim: Hari estava carregando
tanto traumas do passado quanto estresses do presente que ele considerava
fazerem parte do seu “normal”. Com o tempo, começou a ver que o modelo
médico estreito que o ajudara a manejar seus sintomas também o estava
deixando muito distante da cura. Ele não desacredita inteiramente a
abordagem biológica, segundo me contou, mas também observou com
tristeza que “ela acabou abafando as percepções muito mais sensatas que as
pessoas têm a respeito de por que cam mal e como solucionar seu mal-
estar. Na verdade, como dizer… ela nos proporcionou um mapa impreciso
da nossa dor”.
Não há qualquer controvérsia em relação ao fato de que quanto maior o
grau de adversidade na infância, maior o risco de perturbações mentais,
inclusive psicose. Um estudo constatou que pessoas que haviam passado por
cinco tipos de maus-tratos na infância eram muito mais propensas a
receberem um diagnóstico de psicose do que as que não tivessem vivenciado
esses acontecimentos traumáticos.14 Um artigo importante de 2018
publicado no Schizophrenia Bulletin concluiu que a gravidade dos traumas
de infância estava correlacionada à intensidade das ilusões e alucinações.15
Richard Bentall, psicólogo, acadêmico e membro da Academia Britânica,
resumiu esse fato cientí co alguns anos atrás: “As evidências de uma relação
entre o infortúnio na infância e um futuro transtorno psiquiátrico são
aproximadamente tão fortes do ponto de vista estatístico quanto a relação
entre tabagismo e câncer de pulmão”, escreveu ele. “Hoje existem também
fortes indícios de que esse tipo de experiência afeta a estrutura cerebral, o
que explica muitos dos achados anormais em exames de imagem
neurológicos relatados no caso de pacientes psiquiátricos.”16 Isso ia no
mesmo sentido de um estudo de Harvard, cuja conclusão era: “Essas
mudanças no cérebro podem ser mais bem compreendidas como reações
adaptativas destinadas a facilitar a sobrevivência e a reprodução diante da
adversidade. Sua relação com a psicopatologia é complexa.”17
Existe uma coisa que os cientistas que avaliam trabalhos de pesquisa não
dizem, embora seja óbvio e cristalino para muitos clínicos que trabalham
com o sofrimento mental: não são necessários maus-tratos explícitos para
exercer impactos negativos na neurobiologia do cérebro ou no
funcionamento da mente. A neurobiologia é um contínuo, assim como a
“doença mental” e a saúde. Feridas emocionais durante o desenvolvimento
podem ter consequências siológicas mesmo sem abuso ou negligência.
Como explica Bruce Perry, experiências adversas na infância – do tipo
grave, que merece a designação o cial de EAI – têm consequência, mas “não
são tão determinantes quanto nosso histórico de relacionamentos… O mais
forte fator para prever como você funciona no presente é a sua
conectividade relacional atual, e o segundo componente mais forte na nossa
visão é o seu histórico de conectividade”.

“Deixe de ser tão sensível”, é algo que as pessoas ouvem com frequência. Em
outras palavras, “deixe de ser tão você”. As vulnerabilidades genéticas não
determinam doenças, mas podem gerar uma sensibilidade que torna a
pessoa mais vulnerável às vicissitudes da vida do que outra com uma
predisposição mais robusta, efeito que está longe de ser trivial. Pessoas
sensíveis sentem mais e são mais facilmente subjugadas pelo estresse, não
apenas de um ponto de vista subjetivo, mas também siológico. Tanto
macacos quanto seres humanos, por exemplo, podem herdar genes que
in uenciam a produção de determinadas substâncias químicas cerebrais
como a serotonina, capazes de torná-los mais suscetíveis a experiências
negativas; ou então, por outro lado, mais suscetíveis ao efeito das positivas.
(E, naturalmente, essa sensibilidade também é um contínuo.)
“Os genes afetam quão sensível se é em relação ao entorno, e o entorno
afeta quão relevantes podem ser as diferenças genéticas de cada um”,
a rmou o renomado geneticista R. C. Lewontin. “Quando um ambiente
muda, tudo pode acontecer.”18 Algumas pessoas sentirão mais dor, e
portanto terão mais necessidade de fugir em direção às adaptações
representadas pelas doenças mentais ou pela dependência. Elas terão mais
necessidade de se desconectar, de se dissociar, de se dividir em partes, de
criar fantasias para explicar realidades que não conseguem suportar. Mas
isso é bem diferente de dizer que elas têm uma doença neurobiológica
hereditária. Essas são as crianças que Tom Boyce, professor de pediatria e
psiquiatria na Universidade da Califórnia em São Francisco, descreve como
crianças orquídeas, “ultrassensíveis ao ambiente em que se encontram, o que
as torna especialmente vulneráveis em condições de adversidade, mas com
uma vitalidade, uma criatividade e um sucesso fora do normal em
ambientes onde existe apoio e cuidado”.19 Os mesmos genes da
“sensibilidade” que num ambiente de estresse podem ajudar a potencializar
o sofrimento mental podem, em circunstâncias positivas, ajudar a promover
mais resiliência mental, e portanto mais felicidade.20 Pessoas sensíveis têm
potencial para serem mais atentas, perceptivas, inventivas, artísticas e
empáticas, contanto que sua sensibilidade não seja esmagada por maus-
tratos ou desprezo. Os mais sensíveis dentre nós foram os que deram as
contribuições culturais mais duradouras; muitos também suportaram as
dores mais intensas ao longo da vida. A sensibilidade pode ser o típico
combo: dádiva e maldição, dois em um.
Muitas das pessoas com doenças mentais que conheci apresentam essa
qualidade, às vezes em graus espantosos. Nunca esquecerei uma conversa
que tive ainda na faculdade de medicina com um rapaz psicótico mais ou
menos da mesma idade que eu. Alto e desalinhado, ele cou me encarando
com um olhar penetrante enquanto eu lhe lançava algumas perguntas
relacionadas a um projeto de pesquisa insigni cante pelo qual estava sendo
pago. Fiquei assombrado com suas sacadas sobre a vida, a sociedade, os
segredos da existência e os seres humanos. Enquanto escutava, desejei ter
acesso a tamanha consciência. “Não é verdade o que você está pensando”,
interrompeu ele. “Não é verdade que sou mais inteligente do que você.”

Apesar da sensação causada pela genética na mídia e de todas as regiamente


nanciadas pesquisas de sequenciamento de DNA no mundo cientí co,
ninguém jamais identi cou qualquer gene que cause uma doença mental,
nem qualquer grupo de genes que codi que distúrbios de saúde mental
especí cos ou cuja presença indique um transtorno mental. A professora
Jehannine Austin, acadêmica e pesquisadora, dirige uma clínica de
aconselhamento de saúde mental em Vancouver.21 “Todo mundo tem alguns
genes que predispõem à doença mental”, me disse ela, mas eles estão “muito,
muito longe de causar alguma coisa… Literalmente, o que separa aqueles de
nós que sofrem dessas doenças dos que não sofrem é o que nos acontece
durante a vida”.
Creio que a questão do apetite persistente por causas genéticas seja mais
complexa. Existem os fatores que já abordamos: por um lado a reticência a
encarar o trauma, e por outro a negligência em relação à ciência do
desenvolvimento. Há também a preferência padrão por uma explicação
simples e de rápida compreensão, além da nossa tendência a procurar
causalidades de um para um para quase tudo. A vida, em sua maravilhosa
complexidade, não se presta a reduções assim tão fáceis.
Outras dinâmicas psicológicas e sociológicas aumentam o atrativo das
teorias genéticas. O primeiro não deveria ser nenhuma novidade: todos
odiamos nos sentir culpados. Seja por nossos próprios atos como
indivíduos, pelas mágoas que causamos aos nossos lhos como pais, ou por
nossas muitas falhas como sociedade, nós nos esquivamos toda vez que o
ajuste de contas vem bater à nossa porta. A genética, essa neutra e impessoal
subordinada da natureza, parece nos absolver da responsabilidade e de sua
ameaçadora sombra, a culpa. Se os genes de fato governam nosso destino
como deuses caprichosos e microscópicos, então não precisamos assumir
nada.
O argumento da genética é usado para justi car desigualdades e
injustiças sociais de outra forma difíceis de defender. De modo muito
semelhante às falsas ciências do passado – frenologia, eugenia e outras –, ela
cumpre uma função profundamente conservadora: se fenômenos como a
dependência ou o desequilíbrio mental são determinados em sua maior
parte pela hereditariedade biológica, isso nos poupa de olhar para como
nosso ambiente social apoia ou não os pais de crianças pequenas, e como
atitudes, preconceitos e políticas sociais sobrecarregam, estressam e excluem
determinados segmentos da população, aumentando assim sua propensão
ao sofrimento. O escritor Louis Menand disse isso bem num artigo da e
New Yorker: “‘Tudo está nos genes’: uma explicação para como as coisas são
que não ameaça como as coisas são. Por que alguém que vive na nação mais
livre e mais próspera da Terra deveria se sentir infeliz ou ter um
comportamento antissocial? Não pode ser o sistema! Deve ser uma falha
interna de algum tipo.”22
Existe nisso tudo um paradoxo cruel. Como nos agarramos ao
fundamentalismo genético para evitar os desconfortos da responsabilidade
pessoal ou do ajuste de contas social, nós nos desempoderamos de modo
radical – e desnecessário – para lidar de forma ativa ou proativa com
sofrimentos de todo tipo. É totalmente possível abraçar a responsabilidade
sem carregar a bagagem inútil da culpa ou da responsabilização. De modo
ainda mais deplorável, passamos ao largo da excelente notícia de que, se
nossa saúde mental não é ditada por nossos genes, então não somos suas
vítimas. Pelo contrário: há muito que todos e cada um de nós podemos
fazer.
18

A mente é capaz de coisas


incríveis:
da loucura ao significado

Talvez a linha entre sanidade e loucura deva ser traçada em


relação à nossa localização. Talvez seja possível ser ao mesmo
tempo louco quando visto de uma perspectiva e são quando
visto de outra.
– RICHARD BENTALL, Madness Explained: Psychosis and Human Nature

Se não devemos ver as di culdades mentais apenas como doenças, o que


elas são então? O ponto de vista que passei a priorizar caminha de mãos
dadas com meu jeito de abordar muitos outros distúrbios que estão debaixo
do guarda-chuva “doença”: em vez de ver essas di culdades como intrusas
externas, considere o que elas podem estar expressando sobre a vida em que
surgem. Essa estrutura, na realidade, é ainda mais intuitiva em se tratando
de mazelas que, contra nossa vontade, xam residência na mente, no mundo
emocional, na personalidade da pessoa.
Comecemos com algo um tanto simples, hoje em ascensão: a depressão,
estado que conheço intimamente. O signi cado literal da palavra é bem
revelador. Deprimir algo signi ca empurrá-lo para baixo, como uma bola de
borracha numa piscina. Gosto especialmente dessa analogia porque é
possível sentir quanta força é preciso aplicar para manter a bola submersa, e
o modo como ela “quer” encontrar um caminho de volta à superfície.
Mantê-la submersa tem um custo.
O que é empurrado para baixo quando alguém está deprimido pode ser
facilmente identi cado pela ausência: a emoção, o uxo contínuo de
sentimentos que nos lembram que estamos vivos. Ao contrário de quem
segura a bola de borracha, uma pessoa deprimida não escolhe essa
submersão da energia vital: ela se impõe, transformando uma paisagem
emocional antes vibrante num árido deserto. O único “sentimento” que
permanece, em geral, é mais sensação do que emoção: um latejar, uma dor
indistinta que ameaça consumir tudo e às vezes o faz. Se catalogarmos essa
depressão de sentimentos como uma doença, corremos o risco de não
reconhecer sua função adaptativa original: distanciar a pessoa de emoções
insuportáveis numa época da vida em que vivenciá-las signi ca se expor a
uma calamidade ainda maior. Lembre-se do que chamei de trágica tensão
entre autenticidade e apego. Quando vivenciar e expressar o que sentimos
ameaça nossos relacionamentos mais próximos, nós suprimimos esses
sentimentos. Para ser mais exato, nós não: é nossa mente que faz isso por
nós, de modo automático e inconsciente.
A história de origem da minha depressão é fácil de identi car. Ela está
documentada nas inúmeras fotos de família, da primeira infância em diante,
em que quase nunca há sequer um esboço de sorriso no meu rosto. Quem
aparece nessas fotos é um menino, no melhor dos casos, sério demais para a
idade, quando não taciturno. Sob as condições da guerra e do genocídio,
absorvi os sentimentos da minha sofrida e aterrorizada mãe; nas minhas
primeiras fotos me vejo quase espelhando esses sofrimentos. “A criança
consegue […] sentir a tensão, a rigidez e a dor no corpo da mãe ou de
qualquer outra pessoa com quem esteja”, escreve o pensador de psicologia e
guia espiritual A. H. Almaas. “Se a mãe está sofrendo, o bebê também está.
A dor nunca é descarregada.”1 Eu não teria conseguido suportar tamanho
tormento emocional se o tivesse sentido integralmente; nenhum bebê teria.
Tampouco houve espaço para minha própria tristeza e raiva ao ser separado
da minha mãe com menos de 1 ano.
Como já observei, circunstâncias extremas como as que vivenciei na
infância não levam necessariamente a uma clivagem em relação ao próprio
eu. As emoções mais perigosas, e portanto as mais frequentemente exiladas,
são o luto agudo e a raiva saudável, dois sentimentos com frequência
rotulados de “negativos”.2 É claro que uma criança também pode ter motivos
para banir sua alegria, seu entusiasmo ou seu orgulho se esses sentimentos
causarem reprovação, inveja ou simplesmente uma total incompreensão por
parte do pai e da mãe demasiado estressados, distraídos ou deprimidos. Seja
como for, reprimir a emoção rejeitada é a melhor forma de evitar níveis
avassaladores de vulnerabilidade, de escapar de um abismo doloroso demais
entre si e o mundo ao redor. Mas existe um porém: não temos como
escolher as emoções que serão forçadas para baixo da consciência,
tampouco temos como reverter voluntariamente o mecanismo mesmo
depois de a sua utilidade já ter se esgotado. “Todo mundo sabe que a
supressão não é nem um pouco sutil e nem um pouco exata”, escreveu o
romancista americano Saul Bellow em As aventuras de Augie March; “se
você retém algo, retém também o que está em volta.” Assim, a repressão das
emoções, embora possa ser adaptativa em uma circunstância, pode se
transformar num estado de desconexão crônica, num afastamento da vida.
Ela passa a car programada no cérebro, entranhada na personalidade.
O neurocientista Jaak Panksepp, que estudou a fundo como poucos a
biologia dos sistemas emocionais do cérebro, referia-se com desdém ao
modelo de doença siológica. “As descrições populares da depressão como
‘desequilíbrio químico’ são banais [… Todos] os problemas da vida,
inclusive a morte, são acompanhados por ‘desequilíbrios químicos’”,
assinalou ele. Panksepp também via a depressão como uma adaptação da
mente à perda de conexão, como um “mecanismo de fechamento”
siológico para pôr m a um sofrimento “que, se sustentado, seria perigoso
para um bebê mamífero”.3 Em outras palavras, longe de expressar uma
patologia hereditária, a depressão surge como um mecanismo de adaptação
para aliviar a dor e a raiva e inibir comportamentos que possam representar
perigo. Não que os neurotransmissores não estejam envolvidos na
depressão, é só que as suas anomalias re etem experiências, em vez de serem
sua causa principal. Perturbações no cérebro manifestam os estresses da
existência durante períodos de formação e, uma vez estabelecidas, tornam-
se motivo de mais estresse. Daí, concluiu Panksepp, “os diversos sintomas e
variantes da doença depressiva”.
Para mim, foi transformador entender que meus próprios problemas de
saúde mental carregam signi cados genuínos oriundos da minha vida na
minha família de origem num contexto histórico especí co. Constatei que o
mesmo se aplica universalmente, para onde quer que eu olhe, sejam quais
forem as “doenças” mentais consideradas, ou até mesmo quão extrema a
situação pareça ser. Na verdade, os casos mais agrantes são os mais fáceis
de decodi car. Quando examinadas, as manifestações de todos os diversos
diagnósticos de doença mental têm um signi cado, da depressão até o que
se denomina esquizofrenia e o transtorno do dé cit de atenção com
hiperatividade, de padrões alimentares problemáticos a lesões
autoprovocadas.

“Antes de eu passar a atender como psicóloga, havia quem me considerasse


uma doente mental grave”, recorda a terapeuta nova-iorquina Noël Hunter
em seu livro Trauma and Madness in Mental Health Services (Trauma e
loucura nos serviços de saúde mental). Antes de buscar ajuda no início da
idade adulta, ela vivia um sofrimento intenso e tinha uma sensação de “estar
sendo controlada”. “Eu estava simplesmente fora de controle”, me disse ela,
“e tinha muito medo de ser internada. Nessa época consultei uns seis ou sete
psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras, e recebi cerca de oito
diagnósticos diferentes ao longo de todo o processo.” Foram-lhe receitadas
cinco medicações, das quais lhe garantiram que ela iria depender pelo resto
da vida. “Eu tinha medo de um dia ter lhos, porque poderia lhes transmitir
meus defeitos genéticos”, escreve ela. “O fato de existirem abusos
incomensuráveis na minha família inteira, de a frieza e a cobiça superarem o
cuidado e o amor, e de a negligência emocional só se equiparar a uma falta
de limites intrusiva, tudo isso parecia irrelevante.”4 O signi cado, uma vez
buscado, foi cristalino e nada tinha de louco: a “paranoia” de Hunter era
uma marca emocional exata e dedigna da infância. Sem entrar em
detalhes, houve um tempo em sua vida em que, jovem e impotente, ela de
fato tinha sido controlada por guras poderosas e hostis de maneiras que a
feriam e assustavam, maneiras que violaram suas expectativas neurais e
distorceram sua noção da realidade.
A mente é uma máquina de fabricar signi cado. A partir de emoções
que, num momento de vulnerabilidade, ela foi e talvez ainda seja incapaz de
conter, ela irá gerar histórias que “façam sentido”. Só que na história não
contada do indivíduo as emoções eram reais, e portanto continuam a ser.
Elas podem voltar à tona de diversas formas, como a crença de Hunter em
estar sendo “controlada” quando jovem. Para outras mentes, essas narrativas
parecem a própria loucura. “Como a coisa parece um pouco fantástica, nós
dizemos: ‘Isso não faz o menor sentido’”, observou Hunter. Na minha
experiência, a história por trás de rótulos de diagnóstico como os dela é
sempre perfeitamente coerente caso se busque a verdade na textura
emocional e no registro biográ co, em vez de no conteúdo em si da fantasia
paranoica. Passar a ver essa coerência e integrá-la na sua noção de si
permitiu a Hunter compreender-se e regular-se de outra forma. Ela há
muito tempo não toma mais os agentes farmacológicos “que teria de tomar
para o resto da vida”. Já testemunhei vários exemplos assim, e conheço
muitos outros.
Leslie, 40 anos, terapeuta recém-formada e hoje mestranda em
psicologia, tentou se matar ou fez gestos suicidas sérios mais de uma dúzia
de vezes dos 17 aos 30 e poucos anos. Leslie tinha insônia crônica, chorava
descontroladamente e não conseguia manter relacionamentos. Seu
prontuário médico era um pot-pourri de nomenclaturas tiradas do DSM:
depressão crônica, transtorno da personalidade borderline, distimia,
transtorno do pânico, TDAH e, por um curto tempo, transtorno bipolar. Ela
também fora diagnosticada com cistite crônica e bromialgia. Em
determinado momento, tomava cinco remédios psiquiátricos diferentes,
entre os quais dois antidepressivos, um antipsicótico e um tranquilizante à
base de benzodiazepina, e fora-lhe receitado um terceiro antidepressivo
destinado a aliviar as dores físicas, além de um anti-in amatório.
A jornada de cura de Leslie – ela hoje também não toma mais remédios
– teve como foco encontrar o signi cado de seus multifacetados
sofrimentos. Sua crença incapacitante na própria falta de valor acabou se
revelando uma estratégia de autoproteção que saiu pela culatra. Por
estranho que isso possa soar, essa foi a melhor das piores alternativas. Uma
criança em sofrimento como Leslie foi – aqui também, os detalhes
importam menos do que as linhas gerais – tem duas alternativas para
processar a própria experiência. Ela pode concluir que as pessoas nas quais
con a para amá-la são incompetentes, maldosas ou de outra forma
incapacitadas para a tarefa, e que ela está sozinha neste mundo assustador;
ou então pode concluir que ela própria é a culpada por… bem, tudo. Por
mais dolorosa que seja essa segunda alternativa, ela é altamente preferível à
outra, que supõe um risco à própria vida de uma jovem criatura dotada de
zero poder e recursos. A primeira opção não é nem de longe uma opção. É
melhor acreditar que “a culpa é minha; eu sou má”, pois isso permite
acreditar que existe uma chance de “se eu me esforçar e for boazinha, serei
digna de amor”. Assim, mesmo a crença debilitante na própria falta de valor,
quase universal entre pessoas com algum diagnóstico de saúde mental e
dependência, começa como um mecanismo de adaptação, tópico que
revisitaremos no capítulo 30.
E o estado de pânico crônico de Leslie? Seu suposto “transtorno
cerebral” era na verdade a expressão de uma mente alarmada por uma ferida
precoce. Para o cérebro de uma criança na situação dela, viver num estado
de medo e alerta exacerbados, mesmo na ausência de qualquer perigo
imediato, é um estado adaptativo. Uma vez que se tornam habituais, essas
adaptações à adversidade não conseguem discernir entre ameaças grandes e
pequenas… ou ameaça nenhuma. A capacidade de distinguir entre
segurança e ameaça evolui de modo saudável em condições de segurança,
mas é comprometida em caso de insegurança inicial prolongada. Desfechos
possíveis incluem sentir-se cercado quando não há ameaça ou, pelo
contrário, manter-se alheio ao perigo quando ele está presente.5
Leslie aprendeu até a ter compaixão pelas próprias compulsões
autodestrutivas. “Elas na verdade estavam tentando me proteger da dor
profunda que eu estava sentindo ou tentando não sentir”, disse ela. Entre
essas compulsões estava o costume de se agelar com um cinto de couro,
como sua mãe fazia quando ela era criança. Quando lhe perguntei que efeito
isso tinha, ela respondeu: “Eu meio que me acalmava um pouco. Ficava
menos desregulada.” Era surpreendente, mas verdadeiro: os próprios
padrões e comportamentos mentais que parecem causar tamanho caos em
nossa vida se originam como tentativa, uma tentativa temporária e
parcialmente e caz, de regular nosso sistema nervoso, de equilibrar nosso
corpo e nossa mente.
A incidência de lesões autoin igidas está em alta, em especial entre os
jovens. Se resistirmos a recorrer ao padrão de “doença mental” como
explicação para esse comportamento, podemos perguntar em vez disso: por
que as pessoas se ferem? Como no caso de Leslie, por paradoxal que pareça,
esses comportamentos desempenham o papel de tranquilizar a pessoa. Eles
trazem um alívio de curto prazo. O fato de cada vez mais pessoas estarem
recorrendo aos ferimentos autoprovocados é um sinal da prevalência
crescente do estresse e do trauma. O comediante Darrell Hammond me
disse que cortar-se lhe causava

uma crise mais administrável do que o terror dentro de você, aquele que
está acontecendo no seu cérebro… É só olhar para os braços de alguém
que se corta: não são cortes de suicídio. Não são cortes de morte. Ou são
cortes de “quero que alguém saiba que estou sofrendo”, ou de “quando eu
começar a cuidar deste braço, correr para achar um bandeide e me
limpar, estarei tendo uma crise, mas uma crise administrável, enquanto
a que está acontecendo dentro da minha cabeça não é”.

A escritora indígena canadense Helen Knott descreve o mesmo processo


com uma eloquência devastadora:
Aqueles breves instantes em que a lâmina a ada deslizava pela minha
pele me traziam um alívio do ódio que eu sentia por mim mesma. Era
como se, no instante em que a pele se abria, o corte se tornasse uma
brecha por onde todas as minhas emoções fodidas e bagunçadas podiam
se derramar… Eu não queria morrer nessa época; não era por isso que
me cortava. Eu estava fazendo aquilo para poder suportar viver.6

Assim, muitos atos e crenças que de uma determinada perspectiva


parecem pura insanidade, de outra fazem sentido, e sempre fazem sentido
inicialmente. Nossa tarefa, se o objetivo for a cura, é lhes atribuir um sentido
novo, no aqui e agora, com o benefício do discernimento e da compaixão de
um adulto.

Podemos tirar essa mesma lição da vida trágica do grande ator cômico
Robin Williams. Em 10 de agosto de 2014, na véspera de se matar, Williams
foi a uma festa no bairro chique em que morava na Bay Area de São
Francisco. As outras pessoas da festa devem ter visto a persona efervescente
e sociável pela qual ele era tão conhecido. Mas por baixo daquela máscara
ele estava desesperado.
Williams estava acometido pela demência por corpos de Lewy,
transtorno cerebral neurodegenerativo caracterizado por sintomas
semelhantes aos do Parkinson e por uma demência crescente. Ao contrário
da depressão ou da ansiedade, essa doença tem marcadores siológicos
especí cos, mesmo que eles só possam ser identi cados na autópsia. “Robin
estava cando louco e sabia disso”, revelou sua esposa depois da morte dele.
“Vivia dizendo: ‘Eu só quero reprogramar meu cérebro.’” Mas a ideia de tirar
a própria vida não era novidade para ele: numa entrevista de 2010, ele se
recriminou por “não ter tido peito para ir até o m”.
Além da irreverência e sagacidade evidentes em seu trabalho de
comediante, ele tinha uma doçura e uma vulnerabilidade que tocou muitos
corações, um amor que se derramava para o mundo, mas que nunca
conseguia estender a si mesmo.
A origem da angústia do ator pode ser remontada à sua infância. A
escritora Anne Lamott foi criada perto de Williams em Illinois. Numa muito
compartilhada postagem de Facebook, ela escreveu que, quando criança,
“éramos dois no mesmo barco: assustados, tímidos, com uma autoestima
péssima e uma grandiosidade horrível”. O dilema do ator ao longo de toda a
vida, disse ela, sempre seria “como se manter a um passo do abismo”.
Na mesma postagem, Lamott aludia à hereditariedade como causa
provável dos sofrimentos do amigo. No entanto, posso escutar nas palavras
do próprio Williams informação mais do que su ciente para explicar suas
di culdades mentais sem recorrer a superstições genéticas. “Meus únicos
companheiros, meus únicos amigos quando criança eram minha
imaginação”, disse ele certa vez, em uma admissão de profunda solidão.7 No
início, ele cultivou essa extraordinária capacidade de criar personagens
imaginários estranhos e hilariantes como uma forma de romper seu
isolamento numa família com uma mãe emocionalmente distante e um pai,
como recordava ele, “assustador”. Como muitas crianças sensíveis na cultura
dos pares, ele sofreu bullying na escola. Encontrou alguma liberdade na
fantasia, uma vez que seus personagens “podiam dizer e fazer coisas que eu
próprio tinha medo de fazer”. Seu talento cômico teve a função original de
lhe valer alguma proximidade com a mãe. “Você ca com um desejo
esquisito de se conectar com ela por meio da comédia e do entretenimento”,
disse ele ao apresentador de podcast Marc Maron em 2010. Os termos
escolhidos não foram gentis com ele mesmo: não há nada de esquisito no
fato de uma criança buscar apego em relação ao pai ou à mãe. O anormal,
isso sim, é uma criança ter que fazer isso. Os mesmos mecanismos de
adaptação que potencializaram seus maiores dons acabaram portanto se
tornando as grades da sua prisão: mais uma vez, a dupla sina da criança
sensível demais. Por baixo da sua persona de comediante brilhante e
turbulenta, ele aprendeu a suprimir seus verdadeiros sentimentos. Até o dia
da sua morte, foi um mestre nessa arte.
A cocaína, como deu a entender certa vez, lhe proporcionava uma
trégua da própria energia exacerbada, da mesma forma que damos Ritalina
a uma criança hiperativa para acalmá-la. Ele tinha uma vida inteira de
desconforto com ele mesmo, típica do dependente químico, a necessidade
de fugir da consciência de si mesmo: “sonambulismo em atividade”, era
como chamava isso. Num episódio da série televisiva de sucesso dos anos
1970 Mork & Mindy, ele fazia tanto o alienígena recém-chegado Mork
quanto seu verdadeiro eu. “Se você aprendesse a dizer não, provavelmente
teria muito mais tempo livre”, diz Mindy ao ator. “Talvez essa seja a última
coisa que eu quero”, responde Robin com uma expressão indescritivelmente
triste no rosto.
Não foi por falta de autoconsciência que o abismo no m acabou
levando a melhor sobre Williams. Muito antes de desenvolver um
transtorno degenerativo, ele sofria do que denominava “síndrome do me
ame por favor”, autodiagnóstico bem mais preciso do que qualquer coisa que
algum psiquiatra adepto do DSM pudesse inventar. Eu me pego desejando
que alguém o tivesse guiado para ligar os pontos, para ver essa “síndrome”
como o endosqueleto emocional de suas oscilações maníaco-depressivas,
dependências e tendências suicidas, e muito provavelmente também do seu
transtorno cerebral terminal.8, 9 A partir daí, ele poderia ter remontado
ainda mais os elos até o menino assustado e isolado que um dia fora. E
encontrado o signi cado que poderia tê-lo salvado.

Mas o que dizer sobre distúrbios em grande parte considerados doenças


cerebrais, de origem majoritariamente genética, como o variado grupo de
padrões de comportamento e pensamento denominado esquizofrenia,
frequentemente caracterizado por psicoses, ilusões e alucinações? A ciência
é clara, e mais uma vez desmente o preconceito popular. Nenhum “gene da
esquizofrenia” nunca foi encontrado ou, para ser mais exato, alegações
quanto à sua descoberta tiveram que ser seriamente retratadas. Amplos
estudos constataram que no máximo apenas 4% do risco pode ser atribuído
a uma ampla variedade de genes – nenhum deles especí co ao distúrbio,
uma vez que são vistos também em casos de TDAH ou autismo.10 Nesse
caso também, o que está sendo transmitido, se é que alguma coisa está
sendo transmitida, é uma sensibilidade, não uma doença. Até mesmo a
nomenclatura deveria nos fazer parar e pensar: a origem grega de
“esquizofrenia” signi ca “mente cindida”. Segue-se naturalmente a pergunta:
por que uma mente precisaria se cindir?
A autofragmentação é uma das defesas evocadas quando a experiência
de como as coisas são não pode ser suportada. Apenas aqueles para quem a
vida real é uma provação insuportável são impelidos a fugir dela. Não se
trata aqui de nenhum destino genético xo, mas sim de uma necessidade de
sobrevivência composta por vulnerabilidade constitucional e uma
experiência de vida avassaladora. Uma das formas de um organismo escapar
desse sofrimento, seja qual for sua origem, é se desconectar sempre que
emoções perturbadoras são provocadas. Diante do trauma, a cisão em
relação ao presente é uma forma de autodefesa instantânea.11 Vista sob essa
ótica ela é uma dinâmica milagrosa, que permite a criaturas vulneráveis
sobreviverem ao intolerável.
Nas psicoses ocorre um aspecto fundamental das doenças mentais
graves: a desintegração. Nesses estados extremos, em que processos mentais
normalmente inter-relacionados se separam por completo, a pessoa pode
car totalmente desconectada do aqui e agora. É o caso da esquizofrenia,
mas esse ausentar-se da realidade pode assumir toda uma gama de formas,
de brandas a severas, a depender do grau de sofrimento e da sensibilidade
genética do indivíduo.
Uma fuga mais branda da realidade é a dissociação. Helen Knott,
submetida a exploração sexual quando muito jovem, descreve bem isso:

Meus sentimentos saíam do meu corpo. Meu espírito ia se sentar fora de


mim como se fosse uma aparição não reconhecida. Eu não sabia a vida
de quem estava vivendo, que corpo habitava. Aquela não era minha
história, minha vida, minha realidade… Se tentasse entrar no que estava
sentindo, eu tinha medo de despencar pela borda das emoções, e não
sabia o que faria comigo mesma.12
O que chamamos de transtorno se revela na verdade uma forma
engenhosa de uma psique agredida se ausentar do sofrimento.
É também o que recorda o ex-astro da Liga Nacional de Hóquei do
Canadá eoren Fleury, sexualmente molestado pelo próprio técnico
quando adolescente, e que ao crescer se tornou um defensor das vítimas de
abuso sexual na infância.

As primeiras poucas vezes em que ele me pegou não foram tão ruins
porque eu não estava presente. Quando abria os olhos ele estava ali, em
pé na minha frente se limpando. Eu sabia que alguma coisa tinha
acontecido, mas não tinha certeza do quê. A mente é capaz de algumas
coisas incríveis. Mesmo anos depois, na terapia, quando eu falava sobre
isso com a terapeuta, eu saía… deixava meu corpo. Ela precisava
literalmente me sacudir para me trazer de volta.13

Por mais horrendas que tenham sido as circunstâncias causadoras, posso


ouvir no uso da palavra incríveis uma valorização das partes de si que na
época se mobilizaram para protegê-lo da dor, atitude que recomendo
vivamente a qualquer um que zer descobertas parecidas.

Um distanciamento crônico e re exivo é uma das marcas do transtorno de


dé cit de atenção com hiperatividade (TDAH),14 hoje diagnosticado no
mundo inteiro com frequência crescente e alarmante. Nesse caso não se
trata de um “sair do corpo” de grau dissociativo, mas a pessoa se desconecta
de si mesma, do que está fazendo e dos outros de maneiras que perturbam o
funcionamento e que muitas vezes são altamente frustrantes, como posso
a rmar por experiência própria. Os traços do TDAH incluem falta de
atenção, distração e baixa tolerância ao tédio, mau controle dos impulsos e
(principalmente em pessoas do sexo masculino) di culdade de car parado.
Em consequência, milhões de crianças estão recebendo estimulantes, e
centenas de milhares sendo até tratadas com medicações antipsicóticas não
por terem psicose, mas simplesmente para serem acalmadas, para se
tornarem mais dóceis. Isso representa um experimento social imenso e
descontrolado de controle químico do comportamento infantil, já que não
conhecemos os efeitos a longo prazo desses remédios no cérebro em
desenvolvimento. O que sabemos graças aos estudos com adultos deveria
nos fazer pensar um pouco. Já se sabe, desde 2010 pelo menos, que o uso
prolongado de antipsicóticos está associado à diminuição do volume
cerebral em pacientes adultos.15 Em criança, já estamos vendo algum dano
sistêmico de curto prazo. Aqui em Vancouver, o Hospital Infantil da
Colúmbia Britânica precisou criar uma clínica especial só para lidar com as
consequências metabólicas desses remédios, entre elas obesidade, diabetes e
riscos para a saúde cardiovascular.
O TDAH é às vezes considerado a doença mental “mais hereditária”, o
que na minha opinião equivale um pouco a dizer que o quartzo é o cristal
mais mastigável. Alguns especialistas estimam – equivocadamente, devo
dizer – a hereditariedade dos traços de TDAH numa faixa de 30% a 50%.16
Para mim a tese genética nunca fez sentido, muito embora eu e dois de meus
lhos tenhamos sido diagnosticados com essa “doença cerebral”. A distração
é a prima menos radical da dissociação, e faz parte da mesma família de
adaptações escapistas. O organismo recorre a ela em circunstâncias de
estresse em que não há outro recurso para o alívio, em que não se pode nem
mudar a situação nem fugir dela. Foi esse o imperativo na minha própria
infância, e também a situação de meus três lhos sensíveis – traço esse que
eles podem ter herdado, conforme discutido no capítulo anterior – num lar
emocionalmente caótico caracterizado, em meio a muito amor, por
ansiedade, depressão e con ito parental. Essa adaptação então se inscreve no
cérebro, sem que este seja em si a fonte original do problema.
É verdade que estamos vendo mais crianças perturbadas hoje em dia,
mas pôr a culpa do comportamento da criança no cérebro dela não faz
sentido, assim como não faz sentido culpar os pais. Como vimos no caso de
outros distúrbios, quando a frequência de uma síndrome aumenta muito
num curto período não é possível que a causa seja genética. Jaak Panksepp
sugeriu que o TDAH não é uma doença cerebral, mas sim um problema
advindo em parte de um desenvolvimento prejudicado, nas condições
sociais modernas, do que ele denominou sistema nato do BRINCAR. A
solução por ele proposta: mais oportunidades de brincadeira para as
crianças, de modo a encorajar a “construção do cérebro social”.17
Da mesma forma que a depressão é “explicada” pelos partidários da
biologia como o resultado de uma carência do neurotransmissor serotonina,
o TDAH é atribuído a uma insu ciência de dopamina, a molécula do
cérebro ligada ao incentivo-motivação. Assim, receitamos estimulantes que
aumentam a dopamina, como Ritalina ou Adderall. Embora a dopamina
com certeza pareça estar implicada nesse caso, também a prática médica
ignora a interação entre siologia e entorno. Hoje em dia, várias pesquisas já
vincularam os sintomas de TDAH a traumas ou estresse precoce, e
demonstraram que ambos podem ter impacto nos circuitos da dopamina no
cérebro, e que essa adversidade pode interferir na subsequente capacidade
da criança de se concentrar e organizar tarefas.18, 19 Esses traumas ou
estresses precoces podem incluir a depressão materna ou perturbações mais
explícitas do meio familiar. Um dos estudos examinou dados de 65 mil
crianças de 6 a 17 anos. Os pais daquelas diagnosticadas com TDAH
relataram uma prevalência bem maior de eventos adversos.20
Chegou a hora de encarar os ambientes em constante mutação e cada
vez mais estressantes em que nossas crianças estão crescendo, antes de
interferirmos quimicamente na sua siologia cerebral. Quando eu atendia
crianças que se encaixavam nos critérios desse distúrbio, minha abordagem
era observar o ambiente familiar e ajudar pais e mães a compreenderem os
estresses que estavam sem querer transmitindo para os lhos. Em todos os
casos, sem exceção, essas crianças eram, como diz a expressão popular, bois
de piranha. Sensíveis no enésimo grau, seus “sintomas” expressavam as
di culdades não resolvidas de todo o sistema familiar, ele próprio
sobrecarregado pelas pressões exercidas por uma cultura cada vez mais
hostil ao desenvolvimento. Se víssemos o distúrbio e os traços a ele
associados como manifestações de uma falta de desenvolvimento
biopsicossocial, e não sintomas de uma doença, nós nos perguntaríamos
como proporcionar as condições certas para uma plasticidade cerebral e um
crescimento psicológico saudáveis. E todos nós – médicos, mães, pais,
educadores – respeitaríamos em primeiro lugar a neurobiologia do
relacionamento.21
Seria bom aprendermos com nossos amigos cães. Uma publicação de
veterinária relatou em 2017 que alguns “cães problemáticos” – mais
agitados, mais vulneráveis à distração e menos obedientes do que outros –
podem ser tratados com medicações estimulantes para aliviar os “sintomas”,
tornando-os assim mais fáceis de treinar. “Mais interessante é o fato de
determinadas condições ambientais e sociais afetarem o surgimento de
sintomas de TDAH”, relatou o Psychology Today.

Cães que têm muitos contatos sociais com outros cães e muitas
interações com humanos parecem apresentar menos sintomas [típicos]
de TDAH. Quanto mais você se conectar sicamente e brincar com o
cão, menos problemas haverá. Cães deixados sozinhos por períodos
prolongados também têm mais propensão a apresentar sintomas
hiperativos quando você volta. Outra associação interessante que os
pesquisadores descobriram é que cães que dormem sozinhos (isolados
do dono ou de outros cães) têm mais problemas.22

Se psicólogos, médicos e educadores tivessem tanta percepção, empatia e


imaginação quanto esses veterinários, talvez menos crianças fossem
medicadas.

Quando buscado, o signi cado aparece prontamente no transtorno bipolar,


também conhecido como maníaco-depressivo. “Adoeci pela primeira vez
aos 21 anos”, recorda Caterina. “A coisa acabou virando um verdadeiro surto
psicótico. Eu me considerava a essência do mal. Sentia que era uma pessoa
horrível que não merecia existir. Entrava em estados de catatonia e ouvia
vozes, todas me dizendo quanto eu era sem valor, quanto era má.”
Essa entrevista foi única pelo fato de ter ocorrido na presença dos pais
de Caterina, em vez de individualmente como de costume. Os dois tinham
intuído que os problemas da lha vinham de algo além da química cerebral
dela, e queriam a minha opinião.
O surto maníaco de Caterina ocorreu depois de uma discussão hostil
com a mãe. “Fiquei magoada e com raiva de alguma coisa que ela disse”,
relatou Caterina.

Achei que tivesse estragado minha família, e que fôssemos todos


desmoronar. No começo foi assustador… mas depois começou a me dar
uma sensação muito boa, e isso foi progredindo, progredindo, até eu
passar a me sentir muito poderosa: eu era capaz de salvar o mundo. Não
era mais uma força destruidora; podia pôr toda a arte de volta no
mundo.

(Hoje com 26 anos, ela estuda artes plásticas em Toronto.) Num quadro
típico de mania, Caterina se sentiu hiperenergizada e passou uma semana
sem dormir, até ser internada. Os remédios que lhe foram receitados
aliviaram seus sintomas, mas ela não foi guiada a re etir sobre a origem de
suas ilusões de poder malévolo ou de bondade maravilhosa. “O senhor acha
que isso é algo que devemos investigar?”, perguntou-me ela. “Meus
psiquiatras acham que as ilusões são só uma espécie de febre.” Respondi
fazendo outra pergunta. “E se as suas ilusões forem de uma precisão
perfeita? Não precisão no sentido concreto, mas em relação à sua realidade
emocional?” Assinalei que ambas as fantasias – “eu tinha destruído minha
família” e “eu poderia salvar o mundo” – tinham algo em comum. Caterina
logo captou a semelhança. “Nas duas eu tenho uma sensação de controle!
Sou muito poderosa.”
A origem dessa sensação de poder avassaladora logo começou a surgir.
“Meus pais passaram por uma fase muito difícil quando eu tinha 11 anos”,
recordou Caterina. “À noite eles tinham brigas horríveis… cavam gritando
um com o outro. Meu pai chorava comigo… o que era compreensível, porque
ele estava passando por muita coisa e nós dois éramos muito chegados.” Essa
“proximidade”, na verdade uma falta de limites nada saudável que os
psicólogos denominam “fusão”, havia perdurado durante os anos de
formação de Caterina. Por mais prejudicial que fosse essa dinâmica,
Caterina achava que proteger os pais era o seu dever moral: ela via sua
incapacidade de manter a família unida como um símbolo de vergonha,
uma prova da sua falta de valor. Absorver as tristezas de um pai ou de uma
mãe não é uma responsabilidade que a natureza atribuiu a uma criança. “A
inversão de papéis entre criança ou adolescente e pai ou mãe, a não ser que
seja muito temporária, é quase sempre não só sinal de patologia no pai ou
na mãe, mas uma causa de patologia na criança”, escreveu o psiquiatra
britânico John Bowlby,23 grande pioneiro das pesquisas sobre apego e
desenvolvimento da personalidade.
A fase psicótica de Caterina pode ser vista como uma espécie de
assombração interior, em que todas as intensas emoções que ela teve que
reprimir quando criança para poder desempenhar seu papel
“compreensível” ressurgiram para tomar de assalto sua mente adulta. Seus
pais, eles próprios traumatizados em suas famílias de origem e por tragédias
políticas em seus países natais, eram incapazes de lidar com as próprias
emoções, que dirá com as da jovem lha. Em última instância, suas
autoacusações de extrema maldade e ilusões de potência quase divina eram
dois polos de um “poder” com que ela nunca deveria ter sido
sobrecarregada.
Um estudo de 2013 examinou quase 6 mil pessoas diagnosticadas com
bipolaridade na França e na Noruega. “Nossos resultados demonstram
associações consistentes entre traumas de infância e características clínicas
mais severas no transtorno bipolar”, relataram os pesquisadores. “Além
disso, eles mostram a importância de incluir o abuso emocional, além do
mais frequentemente investigado abuso sexual, na abordagem das
características clínicas do transtorno bipolar.”24 Notemos, mais uma vez, que
as formas mais sutis de ferida emocional como as que Caterina suportou
quando criança, embora mais difíceis de estudar, não são menos prejudiciais
para uma jovem sensível.
“O senhor acha então que as pessoas deveriam focar no conteúdo
emocional das ilusões e tentar entendê-las?”, perguntou Caterina quando
estávamos encerrando a entrevista. “Acha que essa é uma forma de curá-las,
em vez de medicá-las?” “Não é necessariamente uma questão de em vez de”,
sugeri. “Se você não estivesse tomando remédios, não seria capaz de ter essa
conversa. Meu problema com a abordagem habitual não é o fato de os
médicos receitarem remédios; só que com demasiada frequência isso é a
única coisa que eles fazem.”
Aconselhei a família a seguir fazendo terapia para destrinchar seus
traumas individuais e seu enredamento mútuo.

Uma extensa literatura cientí ca hoje também associa os relacionamentos


perturbados com a comida a traumas e estresse familiar precoce. Lembre
que o Estudo sobre Experiências Adversas na Infância (EAI) começou
depois que o pesquisador-chefe, Vincent Felitti, passou a prestar atenção nas
histórias de vida dos pacientes na clínica de obesidade que dirigia. “Nós
conseguíamos ajudá-los a emagrecer”, esclareceu Felitti, “mas não a manter
o peso. Eu cava me perguntando por quê, até nalmente entender o
recado: ‘Você não entendeu?’, disseram eles. ‘Nós estamos nos
empanturrando com a nossa própria dor.’”
Como no caso de outras pessoas com problemas de saúde mental
“genéticos”, coisa que a anorexia muitas vezes é considerada, as histórias
pessoais de indivíduos sempre revelam algum signi cado. Uma colega
médica que sofria de anorexia na adolescência, por exemplo, se
autodescreve como perfeccionista, traço com o qual ninguém nasce. O
perfeccionismo surge como uma adaptação para se encaixar num entorno
onde a pessoa percebe não ser bem-vinda sendo somente quem é, com todas
as suas “imperfeições”.
De modo bem semelhante ao que ocorre nos vícios ou comportamentos
de lesões autoin igidas, ou então em distúrbios como o transtorno
obsessivo-compulsivo, nos padrões de alimentação perturbada sempre existe
uma “recompensa”. Aos 17 anos, Andrea, hoje com 27, se tornou “para lá de
supermeticulosa” em relação ao que comia.
Eu cozinhava para os outros e nunca comia nada. Mas tudo que comia
era sempre pesado e medido. Na faculdade, lembro de comer no café da
manhã iogurte grego com granola ou muesli, e de medir absolutamente
tudo em copos medidores. Tudo era anotado numa planilha para eu
saber o que estava comendo. Era uma forma de controle absoluta.

Com 1,70 metro de altura, Andrea emagreceu até pesar 48 quilos.


Passou sete anos sem menstruar.
Esse impulso desesperado de ter pelo menos algum controle sobre o
próprio corpo em situações de crise é quase universal nas pessoas com
anorexia ou bulimia que entrevistei. A psicóloga Julie T. Anné, especializada
no tratamento de transtornos alimentares, vai direto ao ponto: segundo ela,
há “três faltas” típicas em suas clientes – falta de controle, falta de identidade
e falta de valor próprio –, aliadas a uma necessidade de anestesiar a dor.
“Num mundo relacional… a psique humana inventa uma forma brilhante
de sobreviver emocionalmente”, explicou ela. “Na nossa cultura isso se torna
a busca da perfeição no que diz respeito ao corpo e ao eu. Também
conhecida como anorexia.” Apesar disso, é extremamente raro para esses
indivíduos profundamente feridos, assim como para os portadores de todos
os fardos mental-emocionais com quem tivemos contato, ouvir as
perguntas-chave: De onde isso veio? Que problema verdadeiro isso está
tentando resolver?

Um dos papéis mais amados de Robin Williams, e que lhe valeu um Oscar,
foi em Gênio indomável, em que ele interpreta um bondoso psicólogo
encarregado de ajudar um zelador de Boston que agrediu um policial.
Interpretado por Matt Damon, esse talentoso rapaz – que se revela um
diamante bruto intelectual – enterrou sua vulnerabilidade sob uma camada
ossi cada de raiva e confronto. A cena mais emblemática do lme mostra
Williams encarando Damon bem de perto e repetindo uma a rmação
simples, mas potente: “Não é culpa sua”, até o rapaz por m desabar e
abraçá-lo, aos prantos. Essa mensagem, “não é culpa sua”, transmite não só
uma compaixão irrestrita, algo por que o personagem de Damon ansiava
internamente, mas também sabedoria. Desde os problemas de
comportamento até as doenças mentais declaradas, a culpa não é de
ninguém, tampouco, como vimos, do cérebro ou dos genes da própria
pessoa. Essas coisas são expressões de feridas não intencionais, e têm
signi cado.
O signi cado vai além da vida individual da pessoa, sua família de
origem, sua infância. Se quisermos tratar os inúmeros distúrbios aos quais
este livro até agora dedicou sua atenção, precisamos examinar a história
mais ampla através de uma lente maior. Se eu pudesse destilar minha
mensagem e imortalizá-la num lindo momento cinematográ co, faria Robin
Williams encarar todos nós bem nos olhos – inclusive eu mesmo – e dizer,
num tom convicto: “Não é culpa sua… e não é nada pessoal.” Isso tem a ver
com nosso mundo em sofrimento; é a manifestação das ilusões e mitos de
uma cultura alienada da nossa essência.
Examinemos agora esse contexto mais amplo.
PARTE QUATRO

AS TOXICIDADES DA
NOSSA CULTURA

Tornar uma ferida visível e pública costuma ser o


primeiro passo para curá-la, e a mudança política
muitas vezes se segue à cultural à medida que o que
antes era tolerado passa a ser visto como intolerável,
ou o que antes não merecia atenção se torna óbvio.
– REBECCA SOLNIT, In the Dark
19

Da sociedade para a célula:


incerteza, conflito e perda de
controle

A história do mundo é a história de 10 mil anos de uma


guerra de cérebros entre ricos e pobres… Os pobres vencem
algumas batalhas… mas é claro que há 10 mil anos os ricos
vêm ganhando a guerra.
– ARAVIND ADIGA, O tigre branco

Sabemos que o estresse crônico, venha de onde vier, põe o sistema nervoso
em alerta, distorce o aparato hormonal, prejudica a imunidade, favorece a
in amação e mina o bem-estar físico e mental. Vejo isso todos os dias, e
concordo com János Selye, pai das pesquisas sobre estresse, que “sem
hesitação” a rmou que “para o ser humano os fatores de estresse mais
importantes são emocionais”.1 Neste estágio de nossa exploração do trauma,
da doença e da cura, eu acrescentaria apenas que os principais fatores
determinantes do estresse emocional humano se estendem do pessoal para o
cultural. Somos na realidade seres biopsicossociais.
Relembrando o que já vimos sobre o estresse: em primeiro lugar, sua
siologia e suas consequências incluem a ativação aguda ou crônica, a
potencial superativação, e até mesmo a exaustão do eixo hipotálamo-
pituitária-adrenal (HPA) que conecta os centros emocionais do nosso
cérebro e todo o aparato siológico do corpo.2 Além disso, há o que Bruce
McEwen chamou de “carga alostática”: o desgaste ocasionado no corpo por
precisar manter o equilíbrio interno diante de circunstâncias instáveis e
desa adoras, entre as quais se destaca o trauma. Nessa cultura, muitas
pessoas estão fadadas a suportar fortes cargas alostáticas, prejudicando sua
saúde mental e física, conforme demonstrado – se é que mais provas se
fazem necessárias – por um estudo recente de Yale que revela o impacto
cumulativo do estresse no envelhecimento biológico acelerado. “Nossa
sociedade está vivenciando mais estresse do que nunca, o que conduz a
desfechos negativos tanto psiquiátricos quanto físicos”, observaram os
pesquisadores.3
É claro que não existem “oportunidades iguais” em relação ao estresse,
da mesma forma que elas não existem na vida econômica. A estrutura de
uma sociedade baseada em poder e riqueza, com disparidades estruturais de
raça e gênero, deixa algumas pessoas com uma carga siológica bem maior
do que outras. É verdade que, numa cultura que incita indivíduos e grupos a
competirem selvagemente entre si, os gatilhos psicológicos para o estresse
não poupam nenhuma categoria social, mas mesmo assim seus efeitos têm
uma distribuição desigual. E embora os estresses pessoais causados pela
desconexão de si e pela perda de autenticidade possam cruzar fronteiras de
classe, a pressão alostática imposta por desequilíbrios de poder tem um peso
maior nos politicamente desempoderados e economicamente
desfavorecidos.
Quais são, na nossa sociedade, os gatilhos emocionais mais
disseminados do estresse? Minha observação de mim mesmo e dos outros
me levou a concordar inteiramente com a conclusão de um artigo sobre a
literatura relacionada ao estresse, a saber que “fatores psicológicos como
incerteza, con ito, falta de controle e falta de informação são considerados os
estímulos mais estressantes e ativam intensamente o eixo HPA”.4 Uma
sociedade que favorece essas condições, como o capitalismo inevitavelmente
faz, é um gerador superpotente de fatores de estresse que afetam a saúde
humana.
O capitalismo é “bem mais do que uma simples doutrina econômica”,
observa Yuval Noah Harari em seu in uente sucesso de vendas Sapiens.

Ele hoje engloba toda uma ética: um conjunto de ensinamentos sobre


como as pessoas deveriam se comportar, educar seus lhos, e até mesmo
pensar. Seu princípio mais importante é que o crescimento econômico é
o deus supremo, ou pelo menos um substituto para o deus supremo,
porque a justiça, a liberdade e até a felicidade, tudo isso depende do
crescimento econômico.5

A in uência do capitalismo é hoje tão profunda e abrangente que seus


valores, pressupostos e expectativas in uenciam de forma poderosa não só a
cultura, a política e o direito, mas também subsistemas como o ensino
superior, o sistema escolar, a ciência, o noticiário, o esporte, a medicina, a
criação dos lhos e o entretenimento popular. A hegemonia da cultura
materialista é hoje total, e seu descontentamento, universal. Neste capítulo e
nos seguintes, vamos explorar como isso afeta nossa saúde.

Na faculdade de medicina, fui ensinado a pensar na vida e na saúde em


termos puramente individualistas. O fato de ser tão difícil não vermos as
coisas assim é por si só um aspecto característico da visão de mundo
“normal” gerada pelo capitalismo.
Nisso, como em tantas outras coisas, o sistema médico espelha e reforça
a ética dominante. Numa cultura atomizada e materialista, as pessoas são
induzidas a levar tudo para o lado pessoal, a ver as próprias di culdades
mentais e físicas como infortúnios ou mesmo fracassos que pertencem
somente a elas. Veja por exemplo o retrato pintado pelo ex-primeiro-
ministro britânico Tony Blair, até hoje um requisitado e bem-remunerado
palestrante defensor da ética dessocializante, ou seja, de remover o “social”
da nossa sociedade. Muitos problemas de saúde, disse ele,
não são, estritamente falando, de modo algum problemas de saúde
pública. Eles estão ligados ao estilo de vida: obesidade, tabagismo,
consumo excessivo de álcool, diabetes, doenças sexualmente
transmissíveis… Nada disso é epidêmico no sentido epidemiológico;
essas coisas são resultado de milhões de decisões individuais, em milhões
de instantes.6

Esse ponto de vista demonstra certo descaso pelos muitos estudos


vinculando esses “milhões de decisões” ao trauma e ao estresse, incluindo os
estresses impostos pelo baixo status socioeconômico ou ocupacional e pela
pobreza, uma ferida aberta na sociedade britânica desde o desmantelamento
do “Estado de bem-estar social” e das instituições comunitárias,
acompanhado pela perda de poder dos sindicatos de trabalhadores. Apesar
dos consideráveis indícios, o fato de por baixo dessas “decisões individuais”
haver um meio social forjado pelo capitalismo avançado não parece ter
ocorrido ao sr. Blair. Isso não é nenhuma surpresa: a recusa em reconhecer
as condições econômicas e políticas gerais como relevantes para a saúde e a
felicidade individuais é um traço central da ideologia materialista. As chaves
do reino jamais seriam con adas a ninguém inclinado a ligar esses pontos.
A cultura in uencia nosso bem-estar por meio de todo tipo de circuito
biopsicossocial, entre eles as causas epigenéticas; as in amações induzidas
por estresse; o dano aos telômeros e o envelhecimento precoce; como e do
que nos alimentamos; as toxinas que ingerimos ou inalamos. Ela exerce sua
in uência por meio de muitos outros mecanismos que agem de fora para
dentro: por efeitos transmitidos de pais para lhos; de uma pessoa para
outra; de condições sociais, políticas e econômicas para corpos individuais –
“da sociedade para a célula”, nas palavras do cientista molecular e
pesquisador Michael Kobor. Contrariando a visão de Blair, ela também
in uencia e limita poderosamente quase todas as “decisões individuais” que
a maioria de nós toma em relação ao próprio bem-estar.
Todos os fatores de estresse representam a ausência ou a ameaça de
perda de algo que um organismo percebe como necessário para a
sobrevivência. A perda iminente de uma fonte de alimento, por exemplo, é
um fator de estresse importante para qualquer criatura. O mesmo vale, na
nossa espécie, para a ausência ou a ameaça da perda do amor, ou de um
trabalho, ou de dignidade, ou de autoestima, ou de signi cado.
Em 2020, poucas semanas antes de o novo coronavírus se espalhar como
uma metástase e devastar a economia mundial, ninguém menos do que
Kristalina Georgieva – diretora do Fundo Monetário Internacional, comitê
executivo de planejamento do capital internacional – já alertava para o fato
de que a economia mundial corria o risco de voltar às terríveis condições da
Grande Depressão devido às desigualdades e à instabilidade do setor
nanceiro. “Se eu tivesse que identi car um tema para este início de década”,
disse ela, “seria o aumento da incerteza.”7 A maioria da população do meu
próprio país, por exemplo, não precisava dessa alarmante previsão para
saber que as coisas não estavam indo bem. Apenas um mês antes de a
diretora do FMI fazer sua previsão, quase 90% dos canadenses expressavam
preocupação com o fato de o preço dos alimentos estar subindo mais
depressa do que a renda deles. Cerca de um em cada oito lares canadenses
tinha vivenciado insegurança alimentar no ano anterior.8 Na minha
província natal da Colúmbia Britânica, 52% das mulheres relatavam em
2017 um “estresse emocional extremo” relacionado à sua situação
nanceira.9 São tendências internacionais, que vêm aumentando há
décadas.
O aumento dos distúrbios de saúde mental e física crônicos em muitos
países nas últimas décadas, da depressão ao diabetes, não pode ser uma
coincidência. “O neoliberalismo10 tornou o mundo do trabalho muito
menos seguro, e consequentemente mais estressante e mais prejudicial para
a saúde”, escrevem dois acadêmicos britânicos, “resultando numa in nidade
de doenças crônicas, entre elas dores musculosqueletais e doenças
cardiovasculares.”11 Não acho que isso seja surpreendente; basta ver como
vivemos num sistema que não para de fomentar o estresse da incerteza de
massa. A globalização, com suas políticas desastrosas impostas aos
chamados países em desenvolvimento por organismos como o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial – por exemplo, o corte de
programas sociais, a eliminação dos direitos do trabalhador e os incentivos à
privatização – também permearam as nações industrializadas. Foi o que o
lósofo político John Ralston Saul chamou de “teoria econômica da
cruci xão: é preciso ser morto econômica e socialmente para poder renascer
limpo e saudável”.12
Os impactos de nosso sistema econômico na saúde não são nem difíceis
de entender nem difíceis de rastrear. Um estudo de 2013 comparando as
condições de saúde e de estresse de jovens suecos às de jovens gregos
durante a catástrofe nanceira que então submergia a Grécia constatou que
os universitários de Atenas estavam em clara desvantagem. Eles relatavam
níveis superiores de estresse, tinham “menos esperança no futuro”, e
apresentavam sintomas “signi cativamente mais generalizados de depressão
e ansiedade”, bem como, um mau sinal, níveis mais baixos de cortisol.13 Esse
último dado é um marcador do estresse prolongado: um sinal de que o
mecanismo saudável e protetor de reação ao estresse das pessoas estava
entrando em colapso. Ele com frequência prevê futuras doenças.14 “Pode-se
suspeitar que a crise social da Grécia esteja começando a ter efeitos
biológicos nos residentes do país”, alertou o estudo. De modo semelhante,
no Canadá, constatou-se que quando as mulheres são submetidas à pressão
econômica os níveis de hormônio do estresse em seus lhos aumentam
signi cativamente antes dos 6 anos, elevando o risco de desenvolverem
doenças.15
Muitas pessoas vivem à mercê de forças que de modo algum são capazes
de in uenciar, quanto mais de controlar. Como ninguém sabe quando virá a
próxima recessão cíclica, ou quando mais um meganegócio vai sofrer um
enxugamento de pessoal, uma fusão ou uma relocalização geográ ca, o
ganha-pão das pessoas ca ameaçado quase sem aviso prévio. Mesmo antes
dos estragos econômicos da covid-19, tínhamos quase nos acostumado com
notícias de que mais uma empresa estava mandando embora massas de
trabalhadores. “Crise do varejo se aprofunda com demissão de 3.150
funcionários em uma semana”, era uma manchete do e Guardian em
janeiro de 2020, poucas semanas antes de a pandemia se instalar na
Inglaterra; poucos meses antes, o e New York Times havia publicado uma
matéria sobre a insegurança crescente das famílias nos Estados Unidos:

Os custos de moradia, saúde e educação estão abocanhando uma fatia


cada vez maior do orçamento familiar, e aumentou mais depressa do que
a renda. As famílias de classe média hoje trabalham mais horas, lidam
com novos tipos de estresse e correm mais riscos nanceiros do que na
geração anterior.16

Como comentou recentemente num artigo para a Rolling Stone


amplamente compartilhado o célebre antropólogo, pesquisador e escritor
Wade Davis: “Embora vivam num país que se congratula por ser o mais rico
da história, a maioria dos americanos vive na corda bamba, sem nenhuma
rede de segurança para protegê-los contra uma queda.”17 Não se poderia
imaginar um plano melhor para a sobrecarga alostática.
Embora o país capitalista mais avançado do mundo apresente a mais
selvagem ética individualista, deixando a maior parte da sua população
atolada em insegurança, não estamos falando de uma tendência exclusiva
dos Estados Unidos. A in uência econômica e cultural desse país no resto
do mundo é tão brutal que, como argumentou Morris Berman: “Se o século
XX foi o ‘século americano’, o século XXI vai ser o ‘século americanizado’.”18
A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico relatou que
as pressões sobre a classe média mundo afora aumentaram desde os anos
1980.19 Assim, justamente no terreno em que o capitalismo pode se gabar de
seus maiores sucessos – o progresso econômico – encontramos um sem-
número de pessoas numa situação crônica de incerteza e perda de controle,
sujeitas a medos geradores de estresse que se traduzem em perturbações do
aparato hormonal, do sistema imunológico e do organismo como um todo.
Não é de espantar, portanto, que a insegurança relacionada ao trabalho
ou à perda dele possa causar doenças. Estudos nos Estados Unidos
mostraram que o risco de derrame e infarto em pessoas com idade entre 51
e 61 anos mais do que dobra após um período de desemprego prolongado.20
Os resultados se mantêm mesmo depois de levados em conta o aumento
esperado de comportamentos relacionados ao estresse como tabagismo,
consumo de bebida alcoólica e de comida. Na verdade, demonstrou-se que a
perda de emprego repetida aumentava o risco de infarto tanto quanto o
cigarro, a bebida e a pressão alta.21 Até mesmo o medo de perder o emprego
é um indicador tão forte de como será a saúde de uma pessoa mais velha
quanto a perda do trabalho em si. Nos 15 anos entre o nal dos anos 1970 e
meados dos 1990, a proporção de funcionários americanos de grandes
empresas que se diziam “frequentemente com medo de serem mandados
embora” quase dobrou, de 24% para 46%.22 Empregos com pressão
temporal, ritmo acelerado e alta carga de trabalho, aliados a um controle
menor sobre esses fatores, também estão associados a um aumento do
estresse e à falta de saúde.23
Um dos marcadores típicos do estresse é a in amação. Já encontrei
vínculos entre as duas coisas em muitos dos pacientes sob meus cuidados. A
in amação está presente numa extensa gama de patologias, de distúrbios
autoimunes a doenças vasculares do coração e do cérebro, do câncer à
depressão. Uma de minhas entrevistas mais reveladoras feitas para este livro
foi com o cientista Steven Cole. “Um tema que ressurge de modo
recorrente”, disse ele

é o aumento da atividade genética in amatória em pessoas que


enfrentam uma sensação de ameaça ou insegurança por mais do que um
curto período. Podemos detectar essa mesma atividade em
camundongos e macacos. Até mesmo nos peixes se pode ver que quanto
maior o estresse, a ameaça ou a incerteza aos quais se está exposto, mais
o corpo aciona seu programa defensivo, que envolve mais in amação.

Enquanto a maioria das pessoas vivencia a perda de controle e uma


diminuição da segurança, outras gozam de um excesso dessas coisas. Para
esse estrato da sociedade, nem mesmo o con ito é uma fonte tão grande
assim de estresse: em qualquer disputa, quanto maior o poder, menor a
ameaça. Antigamente, apenas pessoas acusadas de tendências marxistas
falavam em “luta de classes”. Nos anos mais recentes, contudo, a realidade do
domínio da elite e a erosão das classes média e baixa se fez sentir
independentemente da ideologia. Ninguém menos do que o multibilionário
e magnata dos investimentos Warren Buffett previu o que vai acontecer.
“Existe, sim, uma luta de classes”, disse ele ao e New York Times em 2006,
“mas quem está travando essa luta é a minha classe, a classe dos ricos, e nós
estamos ganhando.”24 O magnata dos sorvetes Ben Cohen, um homem rico
dotado de consciência social, foi ainda mais franco ao declarar em 2020 ao
mesmo jornal: “O que temos nos Estados Unidos é uma democracia que
existe para o bem das corporações. Isso é um desastre. Nós olhamos para
ela, nós a vivemos e ela segue piorando.”25 No nosso mundo globalizado, o
jeito americano de fazer as coisas serve de modelo para muitos países.
Até mesmo economistas ganhadores do Nobel como Joseph E. Stiglitz se
juntaram ao coro. Stiglitz é um especialista a quem não faltam credenciais:
além de contemplado com o Nobel, foi economista-chefe do Banco Mundial
e presidente do Conselho de Consultores de Economia do presidente Bill
Clinton. Nesse cargo, costumava formular muitas das políticas cujos efeitos
hoje passou a condenar. Atualmente professor da Universidade Colúmbia,
ele documentou e denunciou os impactos sociais, políticos e de saúde da
crescente desigualdade no mundo globalizado dominado pela elite. Stiglitz
lamenta o que chama de mudança “da coesão social para a guerra de
classes”.
“O sistema político parece estar fracassando tanto quanto o sistema
econômico”, escreve ele em e Price of Inequality (O preço da
desigualdade), lançado em 2012. Aos olhos de muitos, prossegue ele, “o
capitalismo não está conseguindo entregar o que foi prometido, mas está
entregando o que não prometeu: desigualdade, poluição, desemprego e, o
mais importante de tudo, a degradação dos valores, a ponto de tudo ser
aceitável e ninguém poder ser responsabilizado”.26 (Grifo do original.)
É aqui que a análise de Stiglitz e de outros críticos tardios do capitalismo
revela seus limites. E se, eu poderia lhes perguntar, o sistema não estivesse
de modo algum fracassando, mas funcionando maravilhosamente bem?
Supor que os danos demonstrados representam um “fracasso” é ignorar que
para algumas pessoas – que por acaso são também a classe que ganha a
maior parte da riqueza e que exerce o maior poder – o sistema está
funcionando de fato muito bem. O banco suíço UBS revelou em outubro de
2020 que, durante a turbulência no mercado provocada pela covid-19, a fatia
de bilionários internacionais havia aumentado suas fortunas para mais de 10
trilhões de dólares entre abril e julho daquele ano. O então indivíduo mais
rico do mundo, o fundador da Amazon, Jeff Bezos, havia aumentado sua
fortuna em mais de 74 bilhões de dólares; o dono da Tesla, Elon Musk, em
mais de 103 bilhões.27 “Os 20 maiores bilionários do Canadá caram
coletivamente 37 bilhões de dólares mais ricos”, noticiou o e Toronto Star.

Isso no meio de uma crise econômica que deixou milhões de canadenses


desempregados ou trabalhando em expediente reduzido e lutando para
pagar as contas, e nosso governo pedindo dinheiro emprestado para
bancar auxílio nanceiro a pessoas e empresas de modo a evitar
di culdades ainda maiores.28

A ideia de que o capitalismo deveria proporcionar igualdade e


oportunidade para todos precisa ser aceita na con ança, já que a história e a
realidade material não dão nenhuma mostra disso.
No reino da tomada de decisões política, um estudo americano muito
divulgado mostrou que a opinião das pessoas normais não faz diferença
alguma para as políticas públicas: é a falta de controle em escala maciça.29
“Quando uma maioria de cidadãos discorda das elites nanceiras ou de
interesses organizados, ela em geral perde”, concluíram os autores,
acrescentando que “mesmo quando grandes maiorias apoiam uma mudança
de política, elas em geral não conseguem”.30
“Por que os ricos têm tanto poder?”, indaga uma matéria do e New
York Times assinada pelo colega de Stiglitz laureado com o Nobel de
Economia Paul Krugman, outro antigo defensor, desde então arrependido,
do ímpeto globalizante que alimentou o domínio dos governos e da
população por corporações multinacionais. Ele responde à própria
pergunta: “[Porque] os Estados Unidos são menos uma democracia e mais
uma oligarquia.”31 Desse ponto de vista, encontro poucos motivos para pôr
em xeque a astuta a rmação do defensor dos consumidores e ativista social
Ralph Nader de que os dois principais partidos políticos dos Estados Unidos
são, na prática, “um partido corporativo ostentando duas cabeças com
maquiagens distintas”. Também em muitos outros países, por trás da
fachada democrática, o verdadeiro poder é exercido por alguns poucos
endinheirados.
Onde isso deixa o restante de nós? Ao ser empossado como reitor da
Universidade de Glasgow em 1972, o enérgico líder trabalhista escocês
Jimmy Reid fez um discurso que o e New York Times chamou de “o maior
desde o Pronunciamento de Gettysburg do presidente Lincoln”.32 Reid pode
não ter estudado psicologia ou neurobiologia do estresse, mas entendia tudo
sobre incerteza, perda de controle e con ito na vida das pessoas que
representava. “Alienação é a palavra exata e corretamente empregada para
descrever o principal problema social hoje na Grã-Bretanha”, declarou ele.

As pessoas se sentem alienadas pela sociedade… Deixem-me logo de


cara de nir o que quero dizer com alienação: ela é o grito de homens e
mulheres que se sentem vítimas de forças econômicas cegas fora do seu
controle. É a frustração das pessoas comuns excluídas dos processos
decisórios. A sensação de desespero e falta de esperança que invade
aqueles que sentem, e com razão, não ter in uência alguma no processo
de moldar ou determinar o próprio destino.33

Lembre-se: o discurso de Reid foi feito ao nal de uma breve era de


programas sociais relativamente esclarecidos no pós-guerra, uma época em
que o sistema que ele criticava estava exibindo sua face mais benevolente. O
que ele poderia dizer hoje?
20

O espírito humano roubado: a


desconexão e seus
descontentes

Enquanto pessoas podem ser individualmente deslocadas por


fatalidades em qualquer sociedade, somente uma sociedade de
livre mercado produz um deslocamento em massa como parte
do seu funcionamento normal, mesmo em períodos de
prosperidade.
– BRUCE ALEXANDER, The Globalization of Addiction

Como palestrante sobre os temas do estresse e do trauma, ouço com


frequência a pergunta: que lições podemos tirar da pandemia de covid-19?
A principal delas, com certeza, é o caráter indispensável da conexão,
qualidade que o materialismo globalizado foi retirando cada vez mais da
cultura moderna, bem antes de o isolamento imposto pelo vírus nos fazer
lembrar de quanto a vida ca espiritualmente mais pobre sem ela. Os
impactos na saúde são incomensuráveis.
Hoje, é obrigatório para observadores de todos os matizes políticos e
linhas losó cas lamentar a gritante e crescente ausência de sentimento
social. “Esse sentimento básico de ser humano, de pertencer a um projeto
coletivo com um destino compartilhado, é exatamente o que falta hoje em
dia”, escreveu recentemente no e New York Times o muitas vezes perspicaz
colunista conservador David Brooks.1 E essa falta, poderíamos dizer, é
proposital: qualidades como amor, con ança, cuidado, consciência social e
engajamento são baixas inevitáveis – “custos embutidos”, na gíria capitalista
– de uma cultura que valoriza a aquisição acima de tudo.
Uma sociedade que não valoriza a comunidade, nossa necessidade de
pertencimento, de cuidar uns dos outros e de sentir a energia do cuidado
uir na nossa direção, é uma sociedade que virou as costas para a essência
do que signi ca ser humano. A consequência inevitável é a patologia. Isso
não é uma a rmação moral, mas uma avaliação objetiva. “Quando as
pessoas começam a perder uma sensação de signi cado e se desconectam, é
daí que vem a doença, é aí que acontece o colapso da nossa saúde – mental,
física, social”, disse o psiquiatra e neurocientista Bruce Perry. Se fosse
encontrado um gene ou um vírus que causasse no bem-estar da população
os mesmos impactos que a desconexão, as notícias a respeito dele seriam
bradadas em manchetes de primeira página. Como ela penetra tantos níveis
e é tão invasiva, nós quase não prestamos atenção; é a água em que
nadamos. Estamos imersos no mito normalizado de que cada um de nós é
apenas um indivíduo tentando alcançar objetivos particulares. Quanto mais
nos de nirmos assim, mais nos distanciaremos de aspectos vitais de quem
somos e daquilo que necessitamos para sermos saudáveis.
Entre os psicólogos existe um amplo consenso sobre quais são nossas
necessidades básicas, algumas das quais já exploramos. Elas foram listadas
de maneiras diversas como:

pertencimento, inter-relação ou conexão;


autonomia: sensação de controle da própria vida;
domínio ou competência;
autoestima genuína, não dependente de conquistas, obtenção, aquisição
ou valorização por terceiros;
autocon ança: sensação de possuir os recursos pessoais e sociais
necessários para se sustentar ao longo da vida;
propósito, signi cado, transcendência: saber-se parte de algo maior do
que preocupações isoladas e egocêntricas, seja esse algo explicitamente
espiritual ou simplesmente universal/humanista, ou então, levando em
conta nossa origem evolucionária, a natureza. “A a rmação de que a
vida física e mental do homem e a natureza são interdependentes
signi ca apenas dizer que a natureza é interdependente de si mesma,
pois o homem faz parte da natureza.” Assim escreveu Karl Marx aos 26
anos em 1844.2

Nada disso lhe ensina nada que você já não saiba ou intua. Pode
examinar sua própria experiência: o que acontece quando cada uma das
necessidades mencionadas é suprida? O que acontece na sua mente e no seu
corpo quando elas faltam, são negadas ou removidas?

Bruce Alexander é autor do essencial e Globalization of Addiction: A


Study in Poverty of the Spirit (A globalização da dependência: um estudo
sobre a pobreza do espírito) e professor emérito de psicologia na
Universidade Simon Fraser. Nós dois trabalhamos com a ostracizada
comunidade de usuários de drogas do Downtown Eastside de Vancouver no
início dos anos 2000. Ouvindo Bruce falar, tal escolha de trajetória de
carreira teria deixado perplexo o eu mais jovem dele, fascinado como era
pela ideologia do egoísmo materialista. “Na minha opinião da época”, disse
ele,

não importava se umas poucas pessoas morressem ao nosso redor; nós,


os fortes, conseguiríamos ter êxito por nós mesmos e por todo mundo.
Eu hoje me converti. Essas ideias são incrivelmente tóxicas. Elas
simplesmente não permitem às pessoas serem pessoas.

Assim como mencionei a autenticidade e o apego como duas


necessidades básicas, Bruce também identi cou a “necessidade vital das
pessoas de pertencimento social, junto com as igualmente vitais
necessidades de autonomia individual e realização pessoal”, e chama o
casamento das duas de integração psicossocial.3 Bruce e eu concordamos que
uma cultura sã teria na integração psicossocial tanto um objetivo quanto
uma norma. A autenticidade e o apego deixariam de estar em con ito; não
haveria nenhuma tensão fundamental entre pertencer e ser você mesmo.
O deslocamento, na formulação de Bruce, descreve uma perda de
conexão consigo mesmo, com os outros e com uma noção de signi cado e
propósito, todas as quais constam na lista de necessidades essenciais citadas.
Para não haver risco de a palavra deslocamento evocar algo como “estar
perdido”, ele logo sugere uma metáfora clara. “Pense num ombro deslocado”,
falou, “um ombro desarticulado, fora do lugar. O braço não foi cortado, mas
está ali pendurado, sem funcionar mais. Inútil. É essa a experiência que as
pessoas deslocadas têm de si. É uma dor insuportável.” Mais do que uma
experiência individual, a mesma dor intensa muitas vezes ocorre no nível
social quando grandes grupos de pessoas se veem privados de autonomia,
inter-relação, autocon ança e signi cado. É o deslocamento social, que
juntamente com o trauma pessoal é uma poderosa fonte de disfunção
mental, desespero, dependências e doenças físicas.4 Anormal do ponto de
vista das necessidades humanas, esse deslocamento é hoje um aspecto
intrínseco da “normalidade” da nossa cultura. Exemplos extremos incluem o
deslocamento físico e psíquico forçado das populações indígenas
americanas pelo colonialismo, e mais recentemente o esvaziamento
econômico induzido pela globalização de regiões inteiras dos Estados
Unidos, do Cinturão da Ferrugem às cidades mineradoras dos Apalaches,
que resultaram num aumento expressivo de mortes por suicídio e overdose
na classe trabalhadora. Essas mortes foram quali cadas de “mortes por
desespero” pelos economistas da Universidade Princeton Anne Case e
Angus Deaton, seu marido vencedor do Nobel.5
Ainda que surja de formas diferentes em diferentes camadas sociais, o
deslocamento não poupa nenhuma classe de pessoas. O privilégio societal
pode proteger alguns de nós de sermos externamente destruídos pelos
ventos da tormenta do deslocamento, mas não consegue nos poupar dos
impactos internos de ter negadas nossas necessidades de interconexão,
propósito e autoestima genuína. Nem conquistas, nem atributos, nem
avaliações externas de nosso valor têm qualquer possibilidade de compensar
essa falta.

Lembre que o líder trabalhista escocês Jimmy Reid de nia “alienação” como
o afastamento das pessoas de uma sociedade que as impede de moldar ou
determinar o próprio destino. A palavra tem outros signi cados também,
entre os quais o afastamento da nossa essência, de nós mesmos e dos outros.
Já no século XIX, Karl Marx reconheceu todos eles e acrescentou mais um: a
desconexão de nosso trabalho enquanto atividade signi cativa sobre a qual
temos in uência e controle. Nisso Marx foi visionário. O trabalho perpassa
várias das necessidades básicas anteriormente listadas, entre elas
competência, domínio e noção de propósito. Segundo um relatório de 2013
do Instituto Gallup, só 30% das pessoas empregadas nos Estados Unidos se
sentem comprometidas com o próprio trabalho; em 142 países, a proporção
de pessoas empregadas que se sente comprometida com o trabalho é de
somente 13%. “Para a maioria de nós”, escreveram dois importantes
consultores de economia no e New York Times, “o trabalho é uma
experiência exaustiva e desanimadora, e sob alguns aspectos evidentes isso
está piorando”.6
A alienação é inevitável quando nossa noção interna de valor passa a
depender do status, e está sujeita a padrões impostos pelo meio externo de
sucesso e aquisições competitivos, bem como de uma aceitação – eu deveria
dizer “aceitabilidade” – altamente condicional por parte de terceiros. Com a
erosão da classe média nas últimas décadas, pessoas que se avaliavam em
termos de sucesso material sofreram o que percebem como uma
desvalorização. Para angústia e raiva profunda de muita gente, a promessa
do sonho de ascender à classe média em grande medida desapareceu. Mas
mesmo aqueles empoleirados no topo da pirâmide econômica podem
vivenciar uma desvalorização de si, pelo simples motivo de que os valores
materialistas vão na contramão da necessidade de signi cado, de um
propósito outro que não empreendimentos em benefício próprio.
Não há qualquer juízo moral aqui. Objetivamente, a concentração em
desejos individuais evanescentes em detrimento das necessidades
comunitárias resulta numa diminuição da conexão com nosso eu mais
profundo, ou seja, com as partes de nós que geram e sustentam o verdadeiro
bem-estar. Sejam quais forem os “ganhos” que nossa personalidade consiga
angariar, seja qual for a sensação momentânea de segurança que
obtenhamos por meio de nossas diversas identidades, por mais que
envernizemos nossa imagem ou autoimagem com ganhos materiais, tudo
isso são substitutos frágeis para as recompensas (e desa os) de se estar
desperto para a própria humanidade. Um investidor que diariamente lidava
com milhões de dólares disse ao jornalista vencedor do Pulitzer Charles
Duhigg: “Minha sensação é de estar jogando a vida fora. Quando eu morrer,
por acaso alguém vai ligar se eu ganhei um ponto percentual a mais na
revenda? Meu trabalho parece totalmente sem signi cado.” Essa perda de
signi cado, segundo Duhigg, afeta “até mesmo pro ssionais que têm
habitualmente uma boa autoimagem, como os de medicina e direito”. Por
que isso?, perguntou-se o autor. A resposta:

Horários opressivos, politicagem interna, competição exacerbada


causada pela globalização, uma cultura do “sempre disponível” gerada
pela internet… mas também algo que esses pro ssionais têm di culdade
para identi car, um sentimento subjacente de que seu trabalho não vale
o esforço hercúleo que eles estão lhe dedicando.7

Na verdade se trata de simples economia: um aumento arti cial (do


conceito de si, da identidade, da ambição material) leva fatalmente a uma
baixa ou mesmo a um crash quando a bolha inevitavelmente estoura.
Assim como nossas outras necessidades, o signi cado é uma expectativa
inerente. Sua negação tem consequências graves. Longe de ser uma
necessidade puramente psicológica, nossos hormônios e nosso sistema
nervoso detectam sua presença ou sua ausência. Como constatou um estudo
médico de 2020, “a presença e a busca de signi cado na vida são
importantes para a saúde e o bem-estar”.8 Dito de forma simples, quanto
mais signi cativa você considerar sua vida, provavelmente melhores serão
seus indicadores de saúde mental e física. É um sinal dos tempos em si o
fato de nem sequer precisarmos de estudos assim para con rmar o que
nossa experiência de vida ensina. Quando você se sente mais feliz, mais
realizado, mais visceralmente à vontade: quando estende a mão para ajudar
os outros e se conectar com eles, ou quando está concentrado em realçar a
importância do seu pequeno e autocentrado eu? Todos sabemos a resposta,
mas apesar disso o que sabemos nem sempre sai ganhando.
As corporações são engenhosas em explorar as necessidades das pessoas
sem de fato supri-las. Em seu livro Sem logo, Naomi Klein expôs de forma
vívida como as grandes empresas começaram nos anos 1980 a mirar o
desejo natural das pessoas de pertencer a algo maior do que elas mesmas.
Empresas de marcas conhecidas como Nike, Lululemon e e Body Shop
comercializam muito mais do que produtos: elas vendem signi cado,
identi cação e um sentimento quase religioso de pertencimento por meio
da associação às suas marcas. “Isso pressupõe uma espécie de vazio e de
anseio nas pessoas”, sugeri ao entrevistar a prolí ca escritora e ativista.
“Exato”, respondeu Klein. “Elas aproveitam um anseio e uma necessidade de
pertencimento, e fazem isso explorando a percepção de que simplesmente
vender tênis de corrida não basta. Nós humanos queremos fazer parte de
um projeto transcendente.”
Diga o que for sobre a ética corporativa, social ou ecológica de empresas
como Ford e General Motors, os empregos sindicalizados que elas
proporcionaram de fato garantiram a muitas gerações de famílias um
trabalho remunerado, e para muita gente até signi cativo. A rápida
desindustrialização da classe trabalhadora na América do Norte levou à
perda não só da segurança em relação à renda, mas também de signi cado,
exacerbando a epidemia de deslocamento. A proliferação de empregos no
setor de serviços e de “bicos” em armazéns da Amazon não substituiu a
sensação de pertencimento que esses empregos corporativos promoviam em
muitas comunidades. O efeito devastador dessas tendências na noção de
propósito e conexão das pessoas foi mostrado com brutal honestidade duas
décadas atrás na série da HBO e Wire pelo personagem do estivador
Frank Sobotka, que lamentou tristemente com seu amigo lobista: “Sabe qual
é o problema, Bruce? A gente antes fazia as paradas aqui neste país,
construía as paradas. Agora tudo que a gente faz é en ar a mão no bolso do
cara ao lado.”

Não é só nossa sanidade individual e social que depende de conexão: nossa


saúde física também. Como somos criaturas biopsicossociais, a epidemia
crescente de solidão na cultura ocidental é muito mais do que um fenômeno
somente psicológico: é uma crise de saúde pública.
Um renomado estudioso da solidão, o falecido neurocientista John
Cacioppo, e sua colega e esposa Stephanie Cacioppo publicaram em 2018,
um mês antes de ele morrer, uma carta na e Lancet. “Imaginem”,
escreveram eles,

um distúrbio que torne a pessoa irritadiça, deprimida e autocentrada, e


que esteja associado a um aumento de 26% no risco de morte
prematura. Imaginem também que nos países industrializados cerca de
um terço da população seja afetado por esse distúrbio, com uma em
cada 12 pessoas gravemente afetada, e que essas porcentagens estejam
subindo. Renda, educação, sexo e etnia não são fatores de proteção, e o
distúrbio é contagioso. Seus efeitos não são atribuíveis a qualquer
peculiaridade de caráter de algum subconjunto de indivíduos, mas
resultam do fato de o distúrbio afetar pessoas normais. Esse distúrbio
existe: a solidão.9

Hoje sabemos, sem sombra de dúvida, que a solidão crônica está


associada a um risco elevado de doença e morte prematura. Demonstrou-se
que ela aumenta a mortalidade por câncer e outras doenças, e seus danos
foram comparados aos de fumar 15 cigarros por dia. Segundo pesquisas
apresentadas na convenção anual da Associação Americana de Psicologia
em 2015, a epidemia de solidão é um risco de saúde pública no mínimo tão
grande quanto as taxas crescentes de obesidade.10 A solidão, me disse o
pesquisador Steven Cole, pode comprometer o funcionamento genético. E
não é de espantar: até nos papagaios o isolamento compromete o reparo do
DNA, encurtando os telômeros que protegem os cromossomos.11O
isolamento social inibe o sistema imunológico, favorece a in amação,
mobiliza o aparato do estresse e aumenta o risco de morte por doença
cardíaca e AVC.12 Eu me re ro aqui ao isolamento social anterior à covid-
19, mas a pandemia exacerbou intensamente o problema, a um custo alto
para o bem-estar de muita gente.
O aumento da solidão como risco de saúde caminha de mãos dadas com
a consolidação de valores e práticas que ultrapassam qualquer conceito de
“escolhas individuais”. Essa dinâmica inclui o corte de programas sociais,
menos espaços “coletivos” disponíveis como bibliotecas públicas, cortes em
serviços destinados a pessoas em situação de vulnerabilidade e idosos,
estresse, pobreza e o inexorável monopólio da vida econômica que destrói as
comunidades locais. Para ilustrar, examinemos uma situação conhecida: o
Walmart ou outra megaloja decide abrir uma lial numa determinada
localidade. Os incorporadores cam felizes, os políticos recebem bem os
novos investimentos e os consumidores cam satisfeitos com a grande
variedade de mercadorias a preços mais em conta. Mas quais são os
impactos sociais? Os pequenos comércios, de propriedade dos moradores
ou por eles administrados, não conseguem competir com o gigante do
marketing e precisam fechar as portas. Pessoas cam desempregadas, ou
precisam arrumar outros empregos com um salário menor. As conhecidas
lojas de ferragens, farmácias, açougues, padarias e outros comércios
desaparecem dos bairros. As pessoas não vão mais a pé até a lojinha da
esquina, onde interagem umas com as outras e com os comerciantes locais,
mas dirigem, cada uma isolada no próprio carro, até um armazém sem
janelas e esteticamente árido, a quilômetros de onde moram. Elas inclusive
talvez nem saiam de casa: por que se dar ao trabalho quando se pode
comprar pela internet?
Não é de espantar que pesquisas internacionais mostrem um aumento
da solidão. A porcentagem de americanos que se dizem solitários dobrou de
20% para 40% desde os anos 1980, noticiou o e New York Times em
2016.13, 14 Alarmada com as consequências nefastas para a saúde, a Grã-
Bretanha achou necessário criar um Ministério da Solidão.
Ao descrever as origens sistêmicas da solidão, o ministro da Saúde dos
Estados Unidos, Vivek Murthy, escreveu:

Nosso mundo do século XXI exige focarmos em atividades que parecem


estar constantemente competindo por nosso tempo, atenção, energia e
comprometimento. Muitas dessas atividades são competições em si.
Competimos por empregos e status. Competimos por posses, dinheiro,
reputações. Tentamos pagar as contas e melhorar de vida. Enquanto isso,
os relacionamentos que valorizamos muitas vezes acabam
negligenciados.15

É fácil deixar passar que aquilo que Murthy denomina “nosso mundo do
século XXI” não é nenhuma entidade abstrata, mas a manifestação concreta
de um sistema econômico especí co, de uma visão de mundo distinta e de
um modo de viver.

Mesmo assim, é possível nossa cultura de consumo cumprir suas promessas,


ou ser capaz disso? Será que essas promessas, se cumpridas, levariam a uma
vida mais satisfatória?
Quando z essa pergunta ao renomado psicólogo Tim Kasser, professor
emérito de psicologia no Knox College, sua resposta foi inequívoca: “As
pesquisas mostram de modo consistente”, disse ele,

que quanto mais as pessoas valorizam aspirações materialistas como


objetivos, menor sua felicidade e satisfação com a vida, e menos
numerosas as emoções agradáveis que elas vivenciam no dia a dia.
Depressão, ansiedade e abuso de substâncias também tendem a ser mais
elevados em pessoas que valorizam objetivos incentivados pela
sociedade de consumo.
Ele aponta quatro princípios centrais do que denomina CCA
(capitalismo corporativo americano): “gera e incentiva um conjunto de
valores baseados no interesse próprio, um forte desejo de sucesso nanceiro,
altos níveis de consumo e estilos interpessoais baseados na competição”.16
Existe um efeito gangorra, constatou Tim, entre as preocupações
materialistas, por um lado, e valores pró-sociais como empatia,
generosidade e cooperação, por outro: quanto mais os primeiros são altos,
mais baixos cam os segundos. Por exemplo, quando as pessoas se
preocupam fortemente com dinheiro, imagem e status, elas têm uma
probabilidade menor de praticar atividades ecologicamente bené cas e
experimentam mais vazio e mais insegurança. Têm também
relacionamentos interpessoais de pior qualidade. Por sua vez, quanto mais
inseguras as pessoas se sentem, mais elas focam em coisas materiais. Como
o materialismo promete satisfação, mas em vez disso produz uma
insatisfação vazia, ele gera mais ssura. Essa espiral generalizada e que se
autoperpetua é um dos mecanismos por meio dos quais a sociedade de
consumo se protege explorando as inseguranças que ela mesma gera.
A desconexão, sob todas as suas formas – alienação, solidão, falta de
signi cado e deslocamento –, está se tornando o produto mais abundante da
nossa cultura. Assim enfraquecidos por tamanha desnutrição da mente, do
corpo e da alma, não é de espantar que estejamos mais dependentes de
substâncias, cronicamente doentes e mentalmente desordenados do que
nunca.
21

Eles não estão nem aí se você


morrer: a sociopatia como
estratégia

Nem todos os psicopatas estão na prisão. Alguns estão na sala


do conselho.
– R. D. HARE1

Rob Lustig a rma que os endocrinologistas são os mais infelizes dos


médicos, os mais propensos a sofrer burnout. Ele deve saber do que está
falando, já que é essa a sua especialidade. Endocrinologistas são especialistas
em doenças metabólicas, as que afetam as glândulas produtoras de
hormônios como suprarrenais, tireoide, pituitária e pâncreas. Perguntei-lhe
por que o desânimo é um risco pro ssional tão grande para ele e seus
colegas. “Cada vez mais nós cuidamos de pessoas que não melhoram”,
respondeu Lustig. “É como tentar esvaziar um bote inundado com uma
colher enquanto a água entra por um rombo imenso no fundo.” Ele ca mais
entristecido ainda com isso já que a sua subespecialidade é trabalhar com
crianças, entre as quais as taxas de obesidade, diabetes e condições
correlatas vêm aumentando nas últimas décadas. Uma quantidade cada vez
maior de crianças está apresentando marcadores de doenças
cardiovasculares antes encontradas apenas em adultos.2
A água que não para de inundar o bote, segundo Lustig, vem de uma
cultura em que grandes corporações, sem a regulamentação dos governos,
decidiram de modo deliberado e com grande engenhosidade eleger como
alvo os circuitos cerebrais de prazer e recompensa para gerar compulsões
viciantes. “É por isso que eles contratam neurocientistas e usam aparelhos
de ressonância magnética funcional”, disse ele. A neurociência, cujo objetivo
inicial era desvendar os mistérios da consciência e do cérebro, se tornou
mais uma escrava da motivação maior: o lucro. Na verdade, e não estou
inventando, existe uma área chamada neuromarketing. “Seu objetivo é
comercializar a felicidade num frasco”, acrescentou Lustig. Ou num
hambúrguer, num smartphone novo ou num de seus muitos aplicativos. Em
suma, essas corporações estão agindo como inescrupulosos tra cantes no
mercado a céu aberto e perfeitamente legal da dependência em massa.
O que o sistema vende como felicidade na verdade é prazer, uma
distinção losó ca e econômica que faz toda a diferença entre lucro e
prejuízo. O prazer, assinalou Rob Lustig, é: “Que gostoso isso. Quero mais.”
Felicidade, por sua vez, é: “Que gostoso isso. Estou satisfeito. Me sinto
completo.” Isso se encaixa perfeitamente no meu entendimento das
dependências e da química cerebral. Embora tenham algumas semelhanças,
prazer e felicidade consomem combustíveis neuroquímicos distintos: o
prazer usa a dopamina e os opioides, ambos os quais operam em descargas
rápidas de curto prazo, ao passo que a felicidade está baseada no aparato
mais constante e de liberação mais lenta da serotonina. É muito difícil se
tornar dependente de substâncias ou comportamentos serotoninérgicos.
Todas as dependências, porém, recrutam os sistemas cerebrais da dopamina
(incentivo/motivação) e/ou dos opioides (prazer/recompensa). Na ausência
de felicidade, o prazer, em especial quando buscado na forma da grati cação
instantânea, pode ser viciante, e portanto lucrativo. A felicidade não vende
produtos exceto quando evanescente, e nesse caso não se trata de felicidade,
apenas do tipo falso de “felicidade” ao qual faz referência o mago
publicitário Don Draper em Mad Men3 ao re etir: “O que é felicidade? É o
instante antes de você precisar de mais felicidade.” A verdadeira felicidade,
por não ser uma commodity, não perde a validade.
O neuromarketing é uma invasão estratégica da consciência humana,
conscientemente direcionada à hiperativação e constante agitação das
funções dopamina-endor na do cérebro. Essa empreitada foi copiosamente
catalogada, por exemplo, no trabalho de jornalismo investigativo de Michael
Moss sobre a indústria alimentícia escrito em 2013, Sal, açúcar, gordura:
Como a indústria alimentícia nos sgou, um dos livros mais lidos no ano de
sua publicação. Ele também documentou uma conspiração corporativa
deliberada para fazer as pessoas se viciarem em junk food, sem ligar a
mínima para as consequências na saúde das pessoas. Trabalhos meticulosos,
aliando a competência de cientistas e ases da publicidade, foram conduzidos
para descobrir o “ponto ideal”, a mistura perfeita de açúcar, sal e gordura4
que mais excitaria os centros de prazer do cérebro. Essa invasão ou
hackeamento da mente – para usar uma expressão atual – com o intuito de
induzir uma dependência em massa mina diretamente o livre-arbítrio, e
digo isso de um ponto de vista neuroquímico. O poder do córtex pré-frontal
de resistir à ssura ca programado para diminuir, e a capacidade dos
circuitos emocionais inferiores de subverter o pensamento racional se
exacerba. Esse é um exemplo lamentável de como a prevalência do
materialismo do livre empreendedorismo sequestrou a ciência da
neuro siologia para desregular o cérebro, da mesma forma que “desregula”
os mercados nanceiros.
Chamar essas atividades de “conspiração” não é nenhuma hipérbole,
ainda que a palavra tenha perdido parte do signi cado por excesso de uso,
em especial depois do Onze de Setembro e da pandemia de covid-19. No
entanto, mesmo que teorias da conspiração sem sentido se instalem com
demasiada facilidade entre os crédulos e raivosos, o medo subjacente de ser
manipulado é totalmente sensato. A história dos delitos corporativos, que
incluem ataques diretos à saúde, é um compêndio de bem documentados
esquemas para enganar o público em troca de lucro. Todos eles secretos, até
o momento em que não são mais. Longe de serem aberrações, esses
esquemas são todos rigorosamente éis à lógica aquisitiva do sistema.
Engodos prejudiciais à vida porém lucrativos foram repetidamente
denunciados em praticamente todas as indústrias e nas mais prestigiosas
empresas, de farmacêuticas à extração de matérias-primas, da aviação civil à
fabricação de automóveis e produção de alimentos. Não precisamos insistir
excessivamente nesse ponto, a não ser para relembrar que os cabeças dessas
indústrias são pessoas poderosas e “respeitáveis”, lantropas até, em cuja
mentalidade a negação de valores em prol da sociedade se tornou aceitável,
mais virtude do que pecado, e de uma forma ou de outra compulsória.
Não me espanta mais que, mesmo quando reveladas, essas manipulações
não gerem qualquer consequência de longo prazo num público por demais
dessensibilizado para protestar, ou por demais resignado para imaginar
alternativas dotadas de signi cado. Ataques públicos maciços à saúde e à
ética humanas foram, na falta de expressão melhor, totalmente
normalizados. “As maiores conspirações são abertas e notórias”, disse o
delator Edward Snowden ao ator e apresentador de podcast britânico
Russell Brand em 2021.

Elas não são teorias, mas sim práticas: práticas expressadas por meio da
lei, de políticas e sistemas de governo, da tecnologia, do sistema
nanceiro… Nós camos insensíveis a elas. Isso nos torna incapazes de
relacionar a banalidade dos métodos da sua conspiração à ganância de
suas ambições.5

Isso é realismo da conspiração, não teoria da conspiração. O fato de essa


farsa generalizada nas mais altas esferas da sociedade ser ignorada, ou no
melhor dos casos tolerada por grande parte da população, é uma prova da
e ciência do controle da elite e da passividade da personalidade social
inculcada por nossa cultura.6

Rob Lustig chama os Estados Unidos de “capital mundial da droga”, e não


está se referindo à cocaína, heroína ou metanfetamina, nem mesmo a
opioides largamente comercializados como o OxyContin. Ele está se
referindo ao açúcar, substância declarada em 2013 pelo principal
representante da saúde pública dos Países Baixos “viciante, e a droga mais
perigosa de todos os tempos”. “Viciante” não é um exagero. Um estudo da
Escola de Medicina de Harvard revelou que pessoas que ingerem alimentos
com alto índice glicêmico – o que signi ca, na prática, alimentos
ultraprocessados que elevam rapidamente os níveis de açúcar no sangue –
cam com fome mais depressa. Em exames de ressonância magnética
funcional, elas têm ativadas as mesmas regiões do cérebro estimuladas por
drogas como cocaína ou heroína.7 Sem nunca perder uma chance de lucro,
empresas multinacionais promovem um marketing vigoroso de alimentos
ricos em açúcar para as crianças, e se aproveitam de pessoas que, devido ao
trauma, à miséria e à opressão extremos, estão particularmente vulneráveis
a substâncias viciantes. Entre elas estão as pessoas pretas nos Estados
Unidos e os moradores de comunidades no Brasil. Em muitos países “em
desenvolvimento” – expressão que consegue ser ao mesmo tempo
condescendente e eufemística – exércitos de mulheres empobrecidas são
recrutados para ir de porta em porta vender alimentos ultraprocessados
para cidadãos já subnutridos.
Os custos em matéria de saúde e longevidade são muito maiores até do
que as piores projeções para a pandemia de covid-19. Um relatório
publicado na e Lancet constatou que, em 2017, 11 milhões de mortes no
mundo inteiro podiam ser atribuídas a dietas carentes em legumes e
verduras, sementes e castanhas, mas ricas em sal, gordura e açúcar.8
Segundo outro estudo apresentado à Associação Americana do Coração,
refrigerantes sozinhos podem ser responsáveis por até 180 mil mortes
mundo afora.9 Já houve quem chamasse isso de coca-colonização.
Em consequência da “corporativização” da agricultura, resultado do
Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em
inglês), o México hoje compete com os Estados Unidos pela liderança
mundial em obesidade e doenças correlatas. “Segundo um estudo da OCDE,
cerca de 73% da população mexicana está acima do peso, comparados a um
quinto da população em 1996”, noticiou a BBC em agosto de 2020.10 “A
obesidade infantil triplicou em uma década, e cerca de um terço dos
adolescentes também [estão acima do peso]”, segundo a CBS News. “De
acordo com especialistas, quatro em cada cinco dessas crianças gordas
permanecerá assim por toda a vida.”11 Mais de 400 mil casos de diabetes são
diagnosticados anualmente no México, e a quantidade de pessoas que
morrem supera os mortos nas terríveis guerras do narcotrá co no país.12
O Canadá está chegando lá depressa, e Austrália, Nova Zelândia e Ásia
também estão no páreo. Na China, a taxa de obesidade em adultos dobrou
nas duas décadas entre 1991 e 2011, de 20,5% para 42,3%. Lá também, a
Coca-Cola in uenciou as políticas de governo para aumentar seus lucros.13
O primeiro-ministro britânico Boris Johnson, antes conhecido pelo
físico avantajado, tornou-se um defensor do emagrecimento depois de se
encontrar de perto com o novo coronavírus, que o deixou na UTI por
alguns dias em 2020. “Eu em geral não acredito em políticas que funcionem
como babás ou queiram mandar nas pessoas”, disse o primeiro-ministro
após se recuperar. “Mas a realidade é que a obesidade é um dos reais fatores
de comorbidade. Perder peso, para ser bem sincero, é uma das formas de
reduzir os riscos no caso de você contrair covid.” Ele instituiu políticas
governamentais incentivando hábitos alimentares mais saudáveis e
regulamentando a publicidade e a venda de ultraprocessados. Corretíssimo,
poder-se-ia dizer. Só que, se tivesse optado por respeitar a ciência, Johnson
poderia ter listado a pobreza e o fato de ser preto, asiático ou pertencente a
alguma outra minoria étnica como riscos importantes para a comorbidade e
a morte em decorrência da covid-19. Poderia ter reconhecido também a
obesidade em si como uma doença gerada pela sociedade, e em dramática
ascensão desde o advento de políticas de austeridade e laissez-faire que o seu
partido vem defendendo há cerca de meio século. Quase dois terços dos
adultos do seu país são obesos ou estão acima do peso, bem como um terço
das crianças de 6 anos. Segundo o Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla
em inglês), no ano estatístico de 2018-2019 houve 876 mil internações na
Grã-Bretanha em que a obesidade foi um fator, um aumento de quase 25%
em relação aos 12 meses anteriores.14
Nem toda falta de saúde relacionada à alimentação ou ao tabagismo
pode ser atribuída diretamente ao “hackeamento” comercializado da mente
do público, assim como a epidemia de drogas com receita médica não se
deve exclusivamente à manipulação corporativa. É mais verdadeiro a rmar
que a manipulação é possibilitada justamente pelos estresses, desconexões e
deslocamentos da vida impostos pelo capitalismo globalizado. Ted
Schrecker e Clare Bambra – professores respectivamente de políticas
públicas de saúde e geogra a da saúde pública na Universidade de Durham
– estudaram os impactos na saúde das tendências econômicas recentes. “Os
países que atualmente são mais neoliberais e tiveram os maiores aumentos
em políticas neoliberais entre 1980 e 2008 […] têm correspondentemente as
taxas mais altas de obesidade e sobrepeso”, observam eles. “Isso mostra que
o timing e a expansão internacional da epidemia de obesidade espelham a
ascensão e a difusão do neoliberalismo.”15 É essa a questão que Boris
Johnson não quis enfrentar em sua campanha de promoção do
emagrecimento.
A epidemia mundial de obesidade é um dos marcadores da epidemia
internacional de estresse discutida nos capítulos anteriores, e dos desa os de
estilo de vida a ela relacionados endêmicos à nossa época: falta de tempo,
falta de exercício, insegurança crescente, falta de conexão familiar, perda de
comunidade e erosão do tecido social. São muitos os aspectos da vida que
levam as pessoas a terem dietas pouco saudáveis e adotarem hábitos
prejudiciais, sendo os principais culpados a dor emocional, o estresse e o
deslocamento social. Além disso, como vimos, o consumo compulsivo de
comida – como todas as dependências – é em si uma resposta ao estresse e
uma forma de aliviar os impactos do trauma. “A questão não é o que você
está comendo”, disse com inteligência alguém, “mas o que está comendo
você.” O estresse leva as pessoas a “escolher” alimentos pouco saudáveis e a
ganhar peso nos lugares errados, favorecendo as doenças. Isso também
deprime os circuitos de serotonina/contentamento, transferindo o
funcionamento cerebral para os mecanismos de prazer de curto prazo
abastecidos pela dopamina.
A elite corporativa, auxiliada por seus ultra bem-remunerados adeptos
nas áreas da ciência e da psicologia, sabe muito bem como lucrar com o
estresse gerado pelo sistema que lhe dá poder. Caso contrário, não estaria
fazendo o seu trabalho.

As big food (ou seja, as grandes corporações de alimentos ultraprocessados)


não são nenhuma exceção em se tratando de enganar o público. A indústria
farmacêutica “manipulou sistematicamente o país inteiro por 25 anos”,
escreveu Nicholas Kristof em 2017 no e New York Times,

e seus executivos são responsáveis por muitas das 64 mil mortes de


americanos devido às drogas no ano passado, muito mais do que o
número de americanos mortos nas guerras do Vietnã e do Iraque
somadas. A crise dos opioides ocorreu porque pessoas gananciosas –
tra cantes de drogas latino-americanos e executivos de farmacêuticas
americanos – perderam sua humanidade ao verem os lucros espantosos
que poderiam ser obtidos.

E qual foi a resposta do governo? Nas palavras de Kristof: “Nossa


política era: ‘Se você viciar 15 pessoas em opioides, você é um canalha que
merece apodrecer no inferno; se viciar 150 mil, você é um gênio do
marketing que merece um bônus colossal.’”16 Já cou amplamente
estabelecido que a big pharma, da qual fazem parte empresas como a
Purdue, controlada pela família Sackler, promove opioides como o
OxyContin junto aos médicos como analgésicos relativamente seguros. Ela
fez isso sabendo perfeitamente do potencial viciante dos remédios. Ao longo
dos anos, centenas de milhares de pessoas morreram.
Enquanto isso, os Sackler vestiram o manto de virtuosos benfeitores
públicos, tornando-se um fenômeno estabelecido no mundo da lantropia
de alto coturno. A família que tanto lucra com as drogas emprestou sua
generosidade – e seu sobrenome lindamente gravado – a hospitais,
faculdades de medicina e museus mundo afora, da América do Norte à
Europa e Israel.
A a rmação de Kristof sobre consequências diferenciais estava próxima
demais da minha própria experiência. Se algum de meus pacientes no
Downtown Eastside fosse pego vendendo menos de 100 gramas de cocaína
– como muitos faziam, tamanho era o desespero deles para bancar o vício
arbitrariamente tornado ilegal –, ele seria preso. Enquanto isso, na mesma
semana em que escrevo isto, anunciou-se um acordo judicial que enfureceu
muita gente: ao custo de meros 4,5 bilhões em multas, a família Sackler pôde
manter sua fortuna sem ter que encarar nenhum indiciamento criminal.
Livres como passarinhos, ou abutres talvez, com bilhões de dólares no
bico.17
Sejamos honestos: as empresas de remédios estavam apenas seguindo o
exemplo da indústria do tabaco, que durante décadas e com igual descaso
pela vida humana negou e ativamente ocultou os riscos de saúde dos seus
produtos, e continua a resistir a esforços de regulamentação.18 O cigarro
mata cerca de 45 mil canadenses a cada ano, 10 vezes mais do que o número
que morre por overdose de opioides, sem contar as centenas de milhares que
têm doenças e debilidades relacionadas ao tabagismo. O número de mortes
anuais devido ao tabaco no mundo inteiro ultrapassa os 7 milhões.19 Para
cada pessoa que morre, 30 convivem com doenças crônicas.
Como os exímios tra cantes de drogas que são, as empresas de cigarro
não deixam escapar nenhum ponto de vista, e miram nos mais vulneráveis.
“Durante décadas, cigarros mentolados foram promovidos agressivamente
para pessoas pretas nos EUA”, noticiou o e New York Times. “Segundo a
FDA [Food and Drug Administration, órgão regulador de alimentos nos
Estados Unidos, similar à Anvisa no Brasil], cerca de 85% dos fumantes
pretos preferem marcas mentoladas, como Newport ou Kool. Pesquisas
mostram que cigarros mentolados são mais viciantes e mais difíceis de
abandonar do que produtos de tabaco simples.”20 (Enquanto este livro
estava sendo escrito, o governo Biden acenou com planos de proibir a venda
de cigarros mentolados.) Hoje restritos, embora longe de impedidos, de
anunciar seus produtos nos países mais ricos, os mercadores multinacionais
de tabaco, álcool, refrigerantes e comida ultraprocessada passaram a focar
no chamado mundo em desenvolvimento, onde as regras são mais frouxas e
os governos ainda mais exíveis. Milhões vão adoecer, milhões vão morrer;
vão não: já estão morrendo.
Que tipo de pessoa causaria conscientemente a doença e a morte de
milhões de outras? O professor de direito Joel Balkan,21 cujo livro A
corporação: A busca patológica por lucro e poder serviu de base para o
premiado documentário de mesmo título, se propôs avaliar empresas à luz
das medidas de saúde mental padrão que aplicaríamos às pessoas. Uma
avaliação inteiramente justa, visto que a lei dos Estados Unidos equipara
empresas a “pessoas” desde o m do século XIX. “Vistas dessa perspectiva”,
ponderou ele, “muitas corporações se encaixam no critério de ‘psicopatas’ e
agem sem consciência: sem ligar para como suas ações afetam os outros,
sem qualquer vontade de respeitar as normas sociais ou legais e sem sentir
culpa nem remorso.” O caso é claro: do ponto de vista da saúde mental, o
que mais dizer sobre “pessoas” que não se responsabilizam, gozam de poder
ilimitado e estão bastante dispostas a ocultar verdades, divulgar mentiras e
espalhar doença e morte?
Se alguém precisar de uma segunda opinião, o psicanalista nova-
iorquino Steven Reisner tem uma na ponta da língua.22 “O narcisismo e a
sociopatia descrevem os Estados Unidos corporativos”, disse ele. “Mas é um
equívoco pensar que nos Estados Unidos da América do século XXI
narcisismo e sociopatia sejam doenças. Nos Estados Unidos de hoje,
narcisismo e sociopatia são estratégias. E estratégias muito bem-sucedidas,
em especial nos negócios, na política e no entretenimento.” Chame de mito
da anormalidade a ideia de que esses traços antissociais de alguma forma
são contrários à natureza humana; mas é mais verdadeiro dizer que eles são
a norma.
Por que essas estratégias deveriam ser usadas? O santo patrono da
ideologia do livre-mercado sem rédeas e ganhador do Nobel Milton
Friedman não media palavras em relação ao tema, tampouco defendia
qualquer freio de mão ético. “Bem, em primeiro lugar”, comentou ele certa
vez numa entrevista,
existe alguma sociedade que o senhor conheça que não funcione na base
da ganância? Acha que a Rússia não funciona na base da ganância? Acha
que a China não funciona na base da ganância? […] O mundo funciona
com indivíduos tentando cada um defender os próprios interesses
distintos.23

Friedman também a rmou como sendo uma regra rígida o fato de “os
negócios terem uma única responsabilidade social: usar seus recursos e
desenvolver atividades no sentido de aumentar seus lucros”.24 Repare no uso
da expressão “responsabilidade social”: Friedman acreditava piamente que
um capitalismo corporativo com interesses autocentrados e minimamente
regulamentado era o melhor para todo mundo. Quem disse isso não foi um
vilão de cinema consciente da própria perfídia enquanto enrolava o bigode
com os dedos, fadado a responder por seus atos até o nal do lme, mas um
teórico cuja eminência nos círculos político-econômicos normais até hoje
diz muito sobre o tipo de sociedade que somos.
Bakan me disse que no começo imaginava as corporações como formas
de vida pouco saudáveis que afetavam “uma sociedade democrática e
basicamente sadia”. Ele não pensa mais assim. “A patologia entrou em
metástase: o patógeno infectou o hospedeiro”, disse ele.

A humanidade não tem diante de si desa o mais grave e com maiores


consequências do que a crise climática que, enquanto escrevo estas palavras,
devasta muitas áreas do mundo e ameaça a vida no planeta. Na minha
opinião, nenhuma questão ilustra de modo mais vívido o comportamento
sociopata daqueles que ocupam as esferas corporativas e governamentais,
que foram repetidamente avisados com antecedência, mas durante décadas
minimizaram ou negaram a ameaça em prol de lucro ou poder.
Foi em 1800 que o grande naturalista e geógrafo alemão Alexander von
Humboldt soou o primeiro alarme relacionado ao impacto da atividade
humana no clima, após ver os danos ambientais causados pelas fazendas
coloniais na Venezuela. Ele profetizou que nossa interferência na ecologia
poderia ter “impactos imprevisíveis nas futuras gerações”.25 Mais de dois
séculos depois, mais de 1.100 cientistas renomados de 153 países
consideraram necessário fazer um alerta urgente. “Declaramos de modo
claro e inequívoco que o planeta Terra está enfrentando uma emergência
climática”, escreveram eles. “Para garantir um futuro sustentável, precisamos
mudar nosso modo de viver. [Isso] acarreta transformações signi cativas
nos modos como a sociedade global funciona e interage com os
ecossistemas naturais.”26 Quatro décadas antes, teve lugar em Genebra a
primeira conferência internacional do clima, sendo em grande parte
ignorada. Desde então, alarmes foram soados repetidas vezes por cientistas,
ativistas e pro ssionais de saúde mundo afora. Em 1992, muito antes de a
defensora do clima Greta unberg chamar às falas os políticos do mundo
devido ao fracasso deles em proteger o clima – na verdade antes mesmo de
unberg nascer –, a ativista canadense Severn Cullis-Suzuki, então com 12
anos, discursou diante dos líderes reunidos na primeira conferência da
ONU sobre o clima realizada no Rio de Janeiro. “Venho aqui hoje sem
nenhuma agenda oculta”, disse ela. “Perder meu futuro não é como perder
uma eleição, ou então alguns pontos no mercado de ações. Estou aqui para
falar por todas as futuras gerações.” Sabemos o que foi feito, ou mais
precisamente o que não foi feito, diante de uma catástrofe iminente que
agora já afeta pessoas no mundo inteiro, e que ameaça a própria base da
nossa existência.
“A saúde está inextricavelmente ligada à mudança climática”, alertou o
e Journal of the American Medical Association já em 2014. Os impactos
disso na saúde são bem documentados. Quatro anos mais tarde, a e
Lancet publicou: “A vulnerabilidade ao calor extremo vem subindo
constantemente desde 1990 em todas as regiões, com 157 milhões de
pessoas a mais expostas a eventos de calor extremo em 2017 em comparação
com 2000.”27 Mais recentemente ainda, no que o e Wall Street Journal
denominou “uma súplica sem precedentes”, editores de 200 periódicos de
saúde internacionais, entre eles e Lancet, e British Medical Journal e e
New England Journal of Medicine, chamaram o fracasso dos líderes políticos
no enfrentamento à crise climática de “a maior ameaça à saúde pública
global”.28 Os danos da mudança climática incluem males físicos agudos e
crônicos como doenças cardiovasculares e suscetibilidade a infecções, além
de problemas de saúde mental. Pessoas em especial situação de risco são as
que sofrem de doenças cardíacas ou renais, diabetes e problemas
respiratórios. Nem preciso mencionar a insegurança alimentar e a falta de
acesso à água, fatores importantes de estresse que já afetam milhões.
Na raiz do cínico e ativo descaso pela saúde de nossa Terra está a
sociopatologia de suas entidades mais poderosas, cujo trá co planetário de
venenos retira qualquer metáfora da expressão “cultura tóxica”.

As petrolíferas injetaram bilhões de dólares para impedir a ação dos


governos. Bancaram think tanks e pagaram cientistas aposentados e
organizações comunitárias fajutas para lançar dúvidas e desdém sobre a
ciência climática. Patrocinaram políticos, em especial no Congresso dos
Estados Unidos, para bloquear tentativas internacionais de reduzir as
emissões de gases de efeito estufa. Investiram pesado no greenwashing da
sua imagem pública.

Assim noticiou o e Guardian em 2019, cenário também amplamente


noticiado pelo e New York Times e muitos outros veículos. E tampouco
estamos falando apenas no passado: em 2020, as 100, ou mais, maiores
empresas americanas canalizaram grande parte de suas doações de
campanha para políticos com histórico de retardar as leis relacionadas ao
clima. Sem dúvida essa generosidade se deveu muito à certeza de que esses
mesmos políticos também apoiariam avidamente os interesses das grandes
corporações. A nal, em comparação com o lucro nanceiro, o clima não
passa de um trocado.

De uma perspectiva médica, o comentário de Joel Bakan sobre a metástase


da patologia não poderia ser mais adequado. Se uma célula do corpo
começa a se multiplicar à custa do organismo como um todo, destruindo
tecidos próximos e se espalhando para outros órgãos, privando o hospedeiro
de energia, desativando suas defesas e eventualmente ameaçando sua
própria vida, chamamos esse crescimento irrefreado de câncer. A mesma
transformação anormal e maligna está hoje acometendo nosso mundo,
governado por um sistema que parece programado para ir contra a vida. O
anormal se tornou a norma; o antinatural se transformou no inexorável.
Na lógica do lucro a religião é a ganância, e a saúde não passa de dano
colateral. “Não é que eles queiram que você morra”, comentou o
endocrinologista Rob Lustig num tom falsamente destinado a me
reconfortar. “Eles só querem o seu dinheiro. Simplesmente não estão nem aí
se você morrer por isso.”
22

A noção de si sob ataque:


como raça e classe se
entranham na pele

Quando papai disse que a gente era indígena, meu irmão


levantou a mão e, chorando, perguntou a ele: “Mas a gente
ainda é parte humano, né?”
– HELEN KNOTT, In My Own Mocassins

Quando eu era criança na Hungria do pós-guerra, depois do genocídio que


havia tirado a vida da maioria de meus parentes distantes e da minha
comunidade, eu era frequentemente ofendido por causa da minha
identidade étnica. Nunca me esquecerei de como um amigo certa vez saiu
em minha defesa: “Deixem ele em paz”, ralhou ele com quem estava me
oprimindo. “Ele não tem culpa de ser judeu.” Carreguei por muito tempo a
vergonha corrosiva desse “erro” do qual não tinha culpa, pois tinha
absorvido a visão que os outros tinham sobre mim.
Apesar dessa experiência direta de ser apontado cedo na vida como
“outro”, meu status desde a adolescência de integrante de uma cultura
dominante – um homem de meia-idade com aparência de branco na
América do Norte – também in uenciou minha forma de ver o mundo.
Ainda tenho tendência a não ver de cara o que pessoas de outras origens
carregam, que provações elas precisam enfrentar. É fácil demais para os
privilegiados entre nós imaginar que andamos pelas mesmas ruas do
restante das pessoas. Embora uma imagem de satélite da Terra possa sugerir
que sim, não é desse jeito que as coisas funcionam no nível do chão. Pessoas
indígenas no Canadá ou pessoas pretas nos Estados Unidos pisam o mesmo
chão de seus conterrâneos brancos, encaram os mesmos obstáculos no dia a
dia e lutam contra as mesmas adversidades? Certamente não.
Logo no começo de sua autobiogra a publicada postumamente, o
revolucionário líder negro Malcolm X relembra quanto se sentiu rebaixado
ao tentar se reinventar segundo os padrões de uma sociedade que rejeitava
quem ele era. Quando jovem, ele alisava o cabelo, chegando a queimar o
couro cabeludo para eliminar o crespo natural dos os. “Esse foi meu
primeiro passo realmente grande rumo à autodegradação”, escreve ele.
“Literalmente queimar minha pele para deixar meu cabelo parecido com o
de um branco.”1 Muitos anos mais tarde, já líder da Nação do Islã, Malcolm
desa ou uma plateia a confrontar o ódio que sentia de si mesma. “Quem
lhes ensinou a odiar a textura dos seus cabelos?”, perguntou ele. “Quem lhes
ensinou a odiar a tal ponto a cor da sua pele que vocês a clareiam para
carem iguais aos brancos? Quem lhes ensinou a odiar o formato do seu
nariz e da sua boca? Quem lhes ensinou a odiar a si mesmos do alto da
cabeça até as solas dos pés?” Fiz uma expressão de reconhecimento ao ler
essas palavras, pois eu também sempre sentira uma consciência excessiva da
minha aparência “étnica” facilmente identi cável no Leste Europeu.
As perguntas fulminantes de Malcolm vão muito além do autoconceito
mental ou emocional. A autorrejeição tem dimensões siológicas poderosas,
relacionadas a todos os aspectos do bem-estar. Desde a mais tenra idade, ela
representa um dos estragos mais agudos e mais íntimos do racismo.
O médico canadense Clyde Hertzman2 criou o conceito de
“embutimento biológico”, com o qual queria dizer exatamente o que temos
examinado de inúmeras formas neste livro: que nosso entorno e nossas
experiências sociais, nas palavras dele, “entranham-se na pele cedo na vida”,
moldando nossa biologia e nosso desenvolvimento. Hertzman quis dizer
“entranhar” no sentido literal, referindo-se ao que os acontecimentos da
vida fazem com a pele, com o sistema nervoso e com as vísceras. Por
exemplo, não é uma fatalidade genética o fato de, no Canadá, pessoas
indígenas terem mais doenças ou morrerem antes das outras. O racismo e a
pobreza se entranham na pele de muitas formas.
Este capítulo é um breve exame, sob o viés do trauma, de um tema
gigantesco: como dois dos principais fatores sociais determinantes para a
saúde – raça e status econômico – se tornam biologicamente embutidos. No
capítulo a seguir abordarei um terceiro, o gênero. No entanto, embora os
esteja tratando separadamente aqui, seria uma falácia pensar nessas três
categorias como entidades independentes. Para muitos indivíduos, as três se
entrecruzam de maneiras que tornam quase impossível destrinchar o que
depende de quê – daí a expressão “intersecional”. É difícil separar, por
exemplo, os impactos na saúde por ser mulher num sistema patriarcal e ao
mesmo tempo uma pessoa não branca num ambiente racializado, ou por ser
pobre numa cultura que venera a riqueza, ou por viver como pessoa LGBT
numa sociedade em que a LGBTfobia ainda é endêmica.
Valerie (Vimalasara) Mason-John, palestrante de origem afro-britânica e
canadense, que dá aulas e mindfulness e já escreveu diversos livros, conta
que vivenciou intimamente a interseção de todas essas quatro variáveis.3
Todas contribuíram para seu mergulho na bulimia e na dependência
química, a começar pelo tormento racial vivenciado durante sua primeira
infância na Grã-Bretanha, no orfanato Barnardo, de Barkingside, Essex.
“Diariamente, tinha um menino que chegava para mim e dizia: ‘E aí,
crioulagem? Vai pra casa comer canjica e vê se acorda branca.’ Era sem m”,
contou Vimalasara. “As pessoas viviam me dizendo que minhas mãos eram
iguais às de um macaco. Aos 4 anos eu já estava tentando descolorir a pele.”
Hoje vivendo no Canadá, a rmou:

É impossível isolar minha sexualidade do meu gênero e/ou da minha


raça: todos esses fatores podem entrar em jogo quando alguém se
relaciona comigo. A interseção desses fatores determinantes impactou
minha vida inteira. Não dá para saber qual das minhas identidades vai
ser oprimida quando saio de casa de manhã. Às vezes são todas, às vezes
só uma, mas a identidade que continuamente vira uma ameaça para os
outros é a minha pele preta.

Como a rma secamente o escritor afro-americano Ta-Nehisi Coates: “A


raça é lha do racismo, não sua mãe.” Em outras palavras, o próprio
conceito de raça surge da imaginação distorcida do racista. Embora os
impactos do racismo sejam reais, em termos siológicos ou genéticos a raça
não existe. Diferenças super ciais na cor da pele, na morfologia do corpo ou
nos traços do rosto não criam “raças”. Historicamente, a ideia de raça nasceu
do impulso capitalista europeu de enriquecer subjugando, escravizando e, se
necessário, destruindo povos indígenas de outros continentes, da África à
Austrália e América do Norte. De fato, a palavra raça não existia de
nenhuma forma signi cativa até ser criada no m do século XVIII.
Psicologicamente, no nível individual, o “outro” que o racismo acarreta é um
antídoto para a insegurança: se eu não me sinto bem em relação a mim
mesmo, pelo menos posso me sentir superior a alguém e obter uma sensação
de poder e status me dizendo privilegiado em relação a essa pessoa. “O
antissemita”, escreveu o lósofo francês Jean-Paul Sartre,

é um homem que tem medo. Não do judeu, claro, mas de si mesmo e da


própria consciência, da própria liberdade, dos próprios instintos, das
próprias responsabilidades, da própria solidão, da mudança, da
sociedade e do mundo… A existência do judeu apenas permite ao
antissemita sufocar as próprias angústias.4

O impacto pernicioso do racismo advém da sua própria natureza, que é


ver e tratar o outro, em última instância igualzinho a você, segundo sua
fantasia egocêntrica, ressentida e deturpada de quem ele é. O brilhante
escritor James Baldwin certa vez a rmou: “O que os brancos precisam fazer
é tentar encontrar dentro do próprio coração por que foi preciso inventar
um crioulo para começo de conversa. Se foram vocês, as pessoas brancas,
que o inventaram, então precisam descobrir por quê.”
Ao recordar a vergonha que sentia quando criança por ser judeu, me
identi co plenamente com a poderosa formulação do psicólogo afro-
americano Kenneth Hardy:5 a “noção de si agredida”. Nesse estado, diz
Hardy, “a alma do ser se torna eternamente ferida […] É quando a de nição
de si é feita por terceiros. Quando minha noção de quem sou é de nida pelo
que eu não sou, não pelo que sou.” E ele acrescenta: “Quem eu sou, portanto,
se transforma numa reação a como sou de nido; quem eu sou é sempre uma
reação a outra coisa.”6
A escritora Helen Knott, que tem origens dane-zaa, heniyaw e europeia,
conhece bem essa experiência da noção de si agredida pelo fato de ser
indígena no Canadá moderno. “Eu me tornei ‘outra’ na minha aula de
estudos sociais do oitavo ano”, escreve ela. “A excluída. A índia selvagem. A
índia selvagem e cruel.”7 A mácula e a tensão de ser de nida por
preconceitos externos não podia deixar de penetrar sua noção central de
quem era.
Knott e eu nos falamos por Zoom numa manhã de inverno em 2019,
pouco depois de eu ler seu poético livro de memórias sobre trauma,
dependência e redenção, In My Own Moccasins (algo como “Na minha
própria pele índia”). “Ser de nida como outra me foi socialmente
inculcado”, disse ela.

Isso estava presente na minha família e em como os integrantes dela


interagiam com o mundo exterior. Minha mãe vivia dizendo: “Você não
é morena o bastante, nem branca o bastante.” Aonde quer que você vá,
tem sempre consciência da sua alteridade num recinto. Você pode estar
sentada em algum lugar e calculando: “Será que este é um espaço seguro
para eu ter a conversa que quero ter? Será que estou me tornando menos
visível ou mais?” É um cálculo quase inconsciente de segurança, quase o
tempo inteiro.
Knott vinha re etindo sobre como as mulheres em sua vida carregavam
as marcas do racismo na própria postura, “e até mesmo no modo como seus
corpos se transformam em espaços públicos [dominados por brancos]”, diz
ela. E me deu um exemplo vívido:

Quando minha avó entra numa mercearia, até onde minha memória
alcança, de repente… seus ombros se encolhem, o rosto se vira para o
chão. Ela não faz contato visual com ninguém; apenas avança com o
passo arrastado. Isso acontece em qualquer tipo de espaço público de
maior porte. Sua postura inteira muda. Tirando isso, ela tem sido a
nossa matriarca, aquela que ocupa o espaço. É ela quem conta as
histórias, chama as pessoas e lhes diz para fazerem isso ou aquilo. Agora
que está mais velha, com 79, nos últimos anos isso mudou um pouco.
Ela tomou um pouco mais de liberdade porque pensa: “Não ligo mais
para isso.”

Quando perguntado por que “vive falando o tempo todo sobre raça”,
Hardy dá uma resposta ao mesmo tempo correta do ponto de vista médico e
muito sincera: “Se eu não falar, surgem uma porção de coisas siológicas
dentro de mim.” A supressão emocional e seus danos biológicos são de fato
uma das muitas feridas in igidas pelo racismo. No capítulo 3, mencionamos
que o racismo encurta vidas. Um estudo que examinou os telômeros
protetores de cromossomos de homens afro-americanos constatou que
experiências explícitas de racismo e a noção de si agredida, inclusive pela
internalização do viés racial, “atuam juntas para acelerar o envelhecimento
biológico”.8
O preconceito socialmente arraigado, seja em sua forma sutil ou
explícita, cobra da saúde um preço enorme e até muito recentemente em
grande parte silenciado. Esse silêncio, não na ciência ou nos dados, mas no
discurso público, foi en m quebrado após o assassinato de George Floyd em
maio de 2020 e a chegada do novo coronavírus. O primeiro, que veio se
somar a uma incontável sequência de mortes parecidas de pessoas negras,
fez milhões de pessoas no mundo inteiro verem as injustiças raciais
venenosas entranhadas nas sociedades ocidentais, mais agrantemente nos
Estados Unidos; o segundo fato demonstrou claramente que a brutalidade
policial é apenas um dos vetores de um racismo letal. Americanos latinos e
pretos tiveram três vezes mais probabilidade de contrair covid-19 e duas
vezes mais probabilidade de morrer da doença. Na Grã-Bretanha, as
comunidades não brancas também foram desproporcionalmente afetadas
devido a péssimas condições de moradia, desvantagens econômicas e
problemas de saúde preexistentes enraizados na discriminação e na
desigualdade.
Por trás dos estudos e estatísticas desanimadores está a vida
atormentada de seres humanos reais, retratada com amarga eloquência por
muitos grandes autores. Nenhum artigo de pesquisa, por exemplo, teria a
menor chance de transmitir com mais força a estressante experiência do
con namento, da privação, do medo e da indignação reprimida do que as
palavras de Ta-Nehisi Coates ao relembrar a própria juventude no centro
pobre de Baltimore: “Nós não podíamos sair. O chão que pisávamos estava
cheio de armadilhas. O ar que respirávamos era tóxico. A água prejudicava
nosso crescimento. Nós não podíamos sair… Não ser violento o su ciente
podia me custar meu corpo. Nós não podíamos sair.”9
“Nos Estados Unidos, destruir o corpo preto é uma tradição… uma
herança”, a rma Coates. Embora essa destruição tenha cado mais explícita
nos linchamentos perpetrados por turbas de outros tempos e na violência
o cialmente sancionada que perdura até hoje, ela causa efeitos mais
insidiosos e ainda mais generalizados por meio da impressão direta do
racismo no corpo. De forma importante, esses efeitos aparecem na siologia
das pessoas como se estivessem ali desde o começo. “Doenças cardíacas,
diabetes, obesidade, depressão, abuso de substâncias, taxa de
aproveitamento escolar, mortalidade prematura, incapacidade ao se
aposentar, envelhecimento acelerado e perda de memória, tudo isso tem
determinantes sociais no início da vida”, assinalou Clyde Hertzman.10 De
modo nada surpreendente, as pessoas pretas nos Estados Unidos têm mais
diabetes, obesidade e hipertensão, além de complicações que podem ser
fatais, como o AVC, para os quais seu risco é dobrado. Por exemplo, um
afro-americano de 45 anos morador do Sudeste dos Estados Unidos tem a
mesma propensão ao AVC de um homem branco de 55 anos da mesma
região e de um homem branco de 65 anos que mora do Meio-Oeste. Ao
examinar a literatura, achei muito espantoso as diferenças raciais nas taxas
de pressão arterial já serem mensuráveis em crianças e adolescentes.11 Por
quê? “Hiper” signi ca “demasiado”, “tensão” signi ca “tensão”, e a
discriminação racial induz tensão. Por motivos semelhantes, crianças
americanas pretas têm seis vezes mais probabilidade de morrer de asma do
que crianças não pretas.12
Isso tudo está alinhado com o que vimos ao longo deste livro. Para
crianças pequenas, estar subordinadas em seu meio social – seja na família
ou em sala de aula – conduz a respostas cardiovasculares, do sistema
nervoso e hormonais, exacerbadas ao estresse e a riscos mais altos de
problemas médicos crônicos. Isso permanece verdadeiro também para os
adultos. A supressão da autenticidade individual bagunça a biologia e gera
doenças; um caos ainda maior irá acontecer em corpos pertencentes a
grupos cuja autossupressão foi sistematicamente imposta, muitas vezes com
grande violência.
James Baldwin certa vez a rmou que “ser preto e relativamente
consciente neste país é sentir raiva quase o tempo inteiro”. Baldwin disse
essas palavras em 1961. Décadas de direitos civis e um presidente preto
depois, elas ainda soam verdadeiras. Baldwin também compreendia que a
raiva por si só, mesmo que justi cada, não podia ser o m da história. Logo
na frase seguinte, ele chamou de “o primeiro problema” “como controlar
essa raiva para que ela não destrua você”.13 Estou convencido de que uma
raiva assim, e ainda por cima sua supressão obrigatória numa sociedade que
teme e pune a raiva preta, contribui para o risco aumentado que os homens
afro-americanos enfrentam de morrer de câncer de próstata e as mulheres
afro-americanas de sucumbir ao câncer de mama.
Independentemente da genética, as diferenças raciais desa am as
categorias econômicas: por exemplo, o mencionado risco de câncer de
mama para mulheres pretas perpassa as fronteiras de classe. Próximo ao
momento do parto, mães pretas morrem três ou quatro vezes mais que mães
brancas não hispânicas. E seus bebês têm pelo menos duas vezes mais
chances de morrerem do que bebês brancos, outra tendência que se mantém
em todos os níveis educacionais e status socioeconômicos. “Em termos
simples”, alertou um artigo recente na revista da Escola de Saúde Pública T.
H. Chan, de Harvard, “para as mulheres pretas mais do que para as brancas,
dar à luz pode equivaler a uma sentença de morte”.14 E como não se espantar
com o achado de que ter um médico não preto dobra o risco de um bebê
preto morrer, sua “penalidade”, por assim dizer, pelo crime de ter nascido
preto.15 Para bebês brancos, a raça do pro ssional de saúde não faz
diferença. Em suma, é “o racismo, não a raça em si, que ameaça a vida de
mulheres e bebês afro-americanos”, concluiu um exame recente de vários
estudos.16
Já vimos como os fatores de estresse emocionais, entre os quais o
racismo ocupa a linha de frente, “se entranham na pele”: acionamento de
genes que favorecem a in amação, envelhecimento precoce de
cromossomos e células, danos a tecidos, aumento da glicose no sangue,
estreitamento de vias aéreas. Mesmo sem desvantagem econômica, os
estresses do preconceito racial se acumulam ao longo do tempo, intoxicando
o corpo e minando sua capacidade de se manter. Essa carga alostática, o
desgaste, simplesmente se torna excessiva. Quando os chamados
biomarcadores – como pressão arterial, hormônios do estresse, indicadores
de taxa de glicose no sangue, proteínas in amatórias e lipídios – foram
aferidos, eles eram signi cativamente mais altos em pretos do que em
brancos, com as mulheres pretas apresentando taxas consistentemente mais
altas do que os homens pretos. Em ambas as raças, pessoas pobres tiveram
taxas mais altas do que seus pares economicamente mais favorecidos, mas
pretos não pobres tinham maior probabilidade de apresentar taxas altas do
que brancos pobres. As diferenças eram especialmente pronunciadas em
mulheres pretas não pobres, se comparadas a mulheres brancas não pobres,
ilustrando uma vez mais a interseção de raça e gênero como determinantes
da saúde numa sociedade racialmente estrati cada.17
“Quando se tem o racismo como mecanismo, tem-se um trauma
geracional”, a rmou a psicoterapeuta Eboni Webb, do Tennessee. Sua voz
mansa durante nossa chamada de Zoom não conseguiu disfarçar a dura
realidade de sua história familiar. “Todas as mulheres da minha família têm
a pele muito clara”, disse Webb.

Mas os brancos não entraram na nossa história por nossa vontade, e sim
à força. As mulheres da minha família foram brutalizadas através das
gerações. Essa agressão em si é um trauma, mas a maneira como
tivemos que construir uma armadura para nós mesmas também é um
trauma. Lembro dos meus pais me dizendo que, se alguma coisa
acontecesse na escola, era para eu chorar em casa. Nada de chorar lá. É
claro que as emoções são traumatizantes: o que acontece com um povo
que não pode mostrar a gama completa das próprias emoções? Para
pessoas não brancas que estão criando lhos, não é só “o racismo existe”,
mas “o racismo pode ser uma ameaça à vida”. Nossa experiência de
infância é aprender a viver usando nossas defesas de sobrevivência, e
isso simplesmente não mudou. Nós não temos o luxo de criar nossos
lhos de nenhuma maneira ideal.

Viver usando as próprias defesas de sobrevivência é uma fórmula que


de ne a ativação do aparato de estresse do corpo ao longo da vida inteira,
com inúmeras consequências.

Em 1957, minha família e eu fomos recebidos de braços abertos pelo


Canadá, com outros quase 38 mil conterrâneos húngaros refugiados de uma
ditadura stalinista brutal. Eu tinha 13 anos. O país parecia de fato
verdadeiro, forte e livre, como diz a letra do hino nacional canadense. O que
eu não sabia, e ninguém estava dizendo, era que nesse mesmo ano, enquanto
nos adaptávamos às vantagens da vida na Colúmbia Britânica, uma menina
de 4 anos das Primeiras Nações chamada Carlene teve um al nete espetado
na língua em seu primeiro dia de aula numa escola pública administrada
pela igreja, não muito longe de onde eu morava. Seu crime tinha sido falar
seu idioma de origem em sala de aula. Essa menininha passou uma hora
sem recolher a língua para dentro da boca por medo de cortar os lábios.
Pouco depois começaram anos de abuso sexual. Aos 9 anos Carlene já era
alcoólatra, e mais tarde se tornou dependente de opioides para aliviar a dor.
Nós nos conhecemos numa cerimônia de cura não faz muito tempo, e foi
então que ela me contou sua história, soluçando e tremendo de emoção.
Achei que já tivesse escutado tudo. Mas não. Hoje avó e sóbria há muitos
anos, ela sofre ao ver os netos vítimas da dependência. Para ela, nosso hino
nacional era uma farsa cruel: “o verdadeiro Norte forte e livre” não existia. E
não existe até hoje.
Sendo assim, no Canadá, onde menosprezar os Estados Unidos é quase
um esporte nacional, não temos motivo algum para nos sentir superiores. O
preconceito da polícia, que inclui uma violência brutal, atinge notoriamente
os povos originários e as pessoas não brancas. Quase 30% da população
carcerária neste país é formada por pessoas indígenas, que não representam
mais de 5% da população total.18
Mais ou menos a mesma porcentagem de meus clientes empobrecidos e
dependentes no Downtown Eastside de Vancouver eram de origem
indígena, herdeiros de um tóxico legado colonial de extermínio e expulsão: a
destruição genocida da existência comunitária; muitas décadas de
transferência involuntária de crianças indígenas para colégios internos do
governo, rígidos e cristãos, onde os idiomas e as culturas originárias eram
proibidos sob pena de castigo e onde reinava uma cultura de abuso sexual e
físico estarrecedora e estrutural; o período conhecido como “Sixties
Scoop”,19 quando o sistema de proteção à infância (!) do Canadá raptou
milhares de crianças das Primeiras Nações de seus lares e as pôs em famílias
não indígenas; situações de vida atrozes nas reservas; um trauma
multigeracional que perdura até hoje; e a invasão e poluição recorrentes das
terras indígenas para projetos econômicos que bene ciam corporações
distantes. Em 2021, o mundo se horrorizou com a descoberta de milhares de
pequenas ossadas nos antigos terrenos de colégios internos espalhados pelo
Canadá. Sabe-se que muitos outros milhares de pessoas desapareceram e
ainda não tiveram seus restos mortais encontrados, e suas mortes,
profundamente gravadas e pranteadas na consciência de suas famílias e
comunidades, só recentemente tiveram um reconhecimento formal por
parte das instituições governamentais e eclesiásticas responsáveis. Quase 2
mil túmulos sem identi cação tinham sido encontrados até o nal de 2021.
Ainda há outros 5 a 10 mil aguardando descoberta.
As condições de saúde e de vida em nossas populações de Primeiras
Nações são um escândalo, equiparadas apenas ao fracasso crônico dos
governos, em todas as instâncias, de remediar as circunstâncias sociais,
econômicas e culturais que as produzem. A expectativa de vida dos povos
originários é 15 anos menor do que a dos outros canadenses, a mortalidade
infantil de duas a três vezes mais alta, e o diabetes tipo 2 quatro vezes mais
prevalente, e isso numa população que pouco mais de um século atrás
desconhecia o diabetes.20 O alto nível de açúcar no sangue é o de menos: o
diabetes é uma das principais causas de cegueira, falência cardíaca e renal e
amputações de membros. Os povos das Primeiras Nações do Canadá estão
desenvolvendo essas doenças na casa dos 40 anos, enquanto em outros
setores da população elas ocorrem principalmente depois dos 70. As taxas
não param de subir. “Em 2005”, constatou um estudo,

quase 50% das mulheres das Primeiras Nações e mais de 40% dos
homens das Primeiras Nações com 60 anos ou mais tinham diabetes,
comparados a menos de 25% dos homens não Primeiras Nações e
menos de 20% das mulheres não Primeiras Nações de 80 ou mais […]
Os adultos das Primeiras Nações estão apresentando uma epidemia de
diabetes que afeta desproporcionalmente as mulheres em idade
produtiva.21

Segundo um artigo de 1994, as taxas de suicídio entre jovens em


algumas comunidades indígenas do Canadá – Primeiras Nações, inuítes,
métis – eram mais altas do que as de qualquer outro grupo culturalmente
identi cado do mundo.22 E segue sendo assim.
Esther Tailfeathers é uma médica indígena na reserva de Blood Tribe,
em Alberta, comunidade que já teve mais do que o seu quinhão de
dependências químicas severas. Ela me convidou duas vezes para ir até lá e
apoiar seus programas contra a dependência, uma delas após um período de
três meses em que a comunidade de 7.500 pessoas tinha perdido 20 para a
overdose.23 Perguntei a Tailfeathers como tinha sido para ela, hoje uma
bem-sucedida pro ssional, crescer como indígena no Canadá. “Às vezes um
horror”, ela respondeu.

Nós fomos uma das primeiras famílias originárias a se mudarem para a


cidade de Cardston e alugar uma casa. Como não havia ônibus escolar,
eu tinha que percorrer um longo trajeto a pé até a escola, do outro lado
da cidade. No primeiro ano, lembro de ser seguida por um grupo de
crianças o caminho inteiro até em casa. O líder desse grupo catou uma
pedra grande e jogou em mim, e depois disso todas as outras crianças
começaram a jogar pedras também. Essa foi minha primeira lição de
bullying e de ódio.

Não foi a última. “Quando eu tinha uns 19 anos, tivemos imensos


protestos por reivindicação de terras. Fui espancada pela RCMP24 e posta na
cadeia.”
“O mais triste”, acrescentou ela, “era que seria de pensar que as coisas
tivessem melhorado, porque sabemos o que aconteceu, a começar pelos
colégios internos e tudo que veio depois. Mas não acho que tenha
melhorado. Piorou, na verdade.”

Em 1848, um médico berlinense de 27 anos, Rudolf Virchow, foi despachado


para a Alta Silésia a m de investigar um surto mortal de tifo, infecção
bacteriana que então grassava nessa região empobrecida e em grande
maioria de língua polonesa da Alemanha. Junto com suas recomendações
para conter a epidemia, Virchow causou indignação ao exigir reformas
sociais, políticas e econômicas. Entre elas a introdução do polonês como
língua o cial, separação entre Igreja e Estado, criação de organizações
comunitárias, ensino livre para os dois sexos e acima de tudo “democracia
livre e ilimitada”.
Hoje venerado como pai da patologia moderna, Virchow desprezava
qualquer separação entre saúde, condições sociais e cultura. “A medicina
nos conduziu imperceptivelmente ao campo social, e nos pôs na posição de
confrontar diretamente os grandes problemas da nossa época”, escreveu ele.
Quando argumentaram que o seu conselho tinha mais a ver com política do
que com medicina, Virchow deu a seguinte resposta, que nunca envelheceu:
“A medicina é uma ciência social, e a política nada mais é do que medicina
em grande escala.”
Apesar de todo o renome de Virchow, quase dois séculos mais tarde
muitos médicos e cientistas ainda lutam no mundo todo contra a
indiferença política, pro ssional e social para aplicar as lições mais gerais
que ele tirou de suas investigações. Ao iniciar suas pesquisas sobre o
impacto da estrati cação social na saúde, seu contemporâneo, o
epidemiologista Sir Michael Marmot,25 descobriu que “a desigualdade e a
saúde estavam completamente fora da agenda, com exceção de alguns
desbravadores que escreviam sobre os males do capitalismo”.26 Seus achados
ao longo das décadas, publicados em diversos artigos e livros, vêm
demonstrando em bases sólidas os vínculos entre disparidades sociais e
saúde.
Não há por que repetir em detalhes o que diz a ciência. Tanto a
desigualdade quanto a pobreza agitam a mistura hoje conhecida de função
genética alterada, in amação, envelhecimento cromossômico e celular,
desgaste siológico, perturbações hormonais, efeitos cardiovasculares e
debilidade imunológica, todos os quais se combinam para causar doenças,
de ciências e morte. Biologicamente implantados in utero, na infância e
durante a adolescência, todos esses fatores são exacerbados ainda mais pela
presença de adversidades ou ameaças em qualquer estágio da vida. Os níveis
de hormônio do estresse, por exemplo, são muito mais altos em crianças de
classes mais baixas, o que representa um risco biológico para futuras
doenças de muitos tipos.27
Embora nós, canadenses, gostemos de nos orgulhar de nosso sistema
público de saúde – e com razão, especialmente se espiarmos por cima do
Paralelo 49 e considerarmos a barafunda em nosso vizinho mais ao sul,
onde reina a lei do mais forte – pesquisas mostram que, no máximo, apenas
por volta de 25% da saúde da população pode ser atribuída ao sistema de
saúde. Metade é determinada pelos ambientes sociais e econômicos.28
A meu ver, existem vários motivos para se pensar que até mesmo esses
50% estejam gravemente subestimados. “Me diga o seu CEP”, a rmou um
palestrante numa conferência sobre saúde em Chicago, em 2014, “e eu lhe
direi quanto tempo você vai viver.” A diferença de expectativa de vida entre
os bairros mais pobres de Chicago e os mais abastados é próxima de 30
anos.29 “É basicamente a diferença entre o Iraque e o Canadá num raio de
poucos quilômetros”, comentou um médico amigo meu. Os canadenses com
tendência à superioridade patriótica talvez queiram analisar um estudo
semelhante feito em nosso país em 2006. Na cidade de Saskatoon, as pessoas
em bairros mais pobres tinham uma probabilidade duas vezes e meia maior
de morrer no intervalo de um ano. A taxa de mortalidade infantil no centro
da cidade era o triplo da observada nas regiões mais ricas.30
Em 1974, a antropóloga Ashley Montagu, já citada neste livro, cunhou a
expressão “sequelas cerebrais sociogênicas”. Tecnologias desde então
disponíveis con rmam que ambientes estressados, entre os quais aqueles
onde há penúria, interferem no desenvolvimento cerebral. Mais
recentemente, um cientista chamou a pobreza de “neurotoxina”. Exames de
imagem do cérebro de crianças e jovens de comunidades desfavorecidas
revelaram uma redução da superfície do córtex cerebral, bem como
hipocampos e amígdalas reduzidos – regiões subcorticais que participam da
formação da memória e do processamento das emoções.31 Já se observou
que o sistema de serotonina do cérebro em adolescentes é prejudicado pelos
estresses da pobreza, o que aumenta o risco de turbulência emocional.32
O médico de Toronto Gary Bloch, que atende uma população
empobrecida da zona central da cidade, vem encabeçando uma campanha
dentro e fora da comunidade médica para aumentar a conscientização de
como desigualdades de renda, raça e gênero se entrecruzam para promover
doenças. Ele quer que os médicos reconheçam a pobreza como um fator de
risco para a saúde, da mesma forma que fariam com a hipertensão, o
tabagismo ou a má alimentação. É claro que na prática essas três coisas
tendem a caminhar juntas. Amigo da nossa família há anos, Gary, um
homem afável de 47 anos, de sorriso franco e atitude decidida, prescreve
suplementos alimentares e encaminha pacientes para assistentes nanceiros
que possam ajudá-los com problemas relacionados a auxílios e impostos,
qualquer coisa que possa contribuir para aliviar a pobreza deles. Ele
compartilhou comigo uma história reveladora que ouviu de um assistente
social.

Um médico diz: “Tome este antibiótico três vezes ao dia… de estômago


cheio”, e eu sempre gargalho histericamente, e as mulheres pobres e
trabalhadoras que conheço também riem porque sabem que “Tá, três
refeições ao dia, que papo é esse? De estômago cheio?” Outro me contou:
“Tive um paciente idoso que precisava tomar remédio para diabetes e
morava num abrigo de Toronto para pessoas em situação de rua… Por
causa da idade, ele tinha a mobilidade reduzida, e não tomava nenhum
dos remédios para diabetes porque o efeito colateral da medicação era
diarreia, e ele morava num abrigo com 60 homens mais jovens e dois
banheiros… Não tinha chance nenhuma de chegar ao banheiro se
precisasse ir depressa, então não tomava os comprimidos.

“A peça faltante da qual venho tratando é o vínculo entre saber como as


questões sociais afetam a saúde das pessoas e o que fazer em relação a isso”,
disse Gary; uma tarefa digna de Sísifo na atual conjuntura social. “O trauma
social é algo com que eu lido o tempo inteiro”, disse ele.

Sinceramente, não consigo me lembrar de terem ensinado isso quando


eu estava na faculdade. O conjunto de conhecimento tradicional, a
cultura médica, ainda não incorporou as intervenções nas questões
sociais como uma parte central da medicina. O trauma social é um
monstro imenso para se encarar, e quase posso sentir de forma tangível
quanto essa entidade é forte e quanto ela é real. É um desa o tentar
enfrentá-la.

Se os pro ssionais de saúde levassem a sério as informações relacionadas


aos determinantes sociais, sugere em tom de galhofa o especialista
canadense em saúde Dennis Raphael, eles poderiam parar de emitir avisos
do tipo “Pare de fumar” e recomendar, em vez disso, “Não seja pobre”, e
outros conselhos correlatos: “Não viva em moradias úmidas de baixa
qualidade”; “Não exerça um trabalho manual estressante e mal
remunerado”; “Não more perto de uma via expressa movimentada ou de
uma fábrica poluente”; “Tenha a possibilidade de tirar férias no exterior e
tomar sol”.33 Em outras palavras, imigre para um universo paralelo mais
gentil, mais são e mais igualitário.
O monstro da desigualdade tem muitos tentáculos com os quais faz a
vida se esvair da existência das pessoas. Para começar, a impressão biológica
da desigualdade não afeta apenas os muito pobres. Em sociedades
dominadas por princípios materialistas, a posição relativa de uma pessoa na
pirâmide social in uencia a saúde em todas as camadas. O vínculo da
posição social com a saúde é conhecido como gradiente social, escala que
atravessa todos os segmentos da sociedade. É fácil ver por quê. O status
social dá às pessoas graus maiores ou menores de controle, cuja ausência já
sabemos ser um gatilho para o estresse siológico e a doença. Isso cou
demonstrado nos famosos estudos de Michael Marmot em Whitehall, que
constataram que a posição das pessoas no serviço público britânico se
correlacionava com seus riscos de receberem diagnósticos de doenças
cardíacas, câncer e saúde mental.34 Quanto mais baixa a posição nessa
escala, mais altos os riscos, independentemente de fatores comportamentais
como tabagismo e pressão arterial. E isso num grupo de pessoas com
relativa segurança econômica e empregos de classe média! “É mais fácil
esvaziar prédios contaminados do que modi car estruturas sociais”,
comentou outro cronista importante da desigualdade, o epidemiologista
britânico Richard Wilkinson. “Poderíamos especular sobre qual seria a
diferença na resposta se a inclinação do gradiente social de morte e doença
fosse contrária, e as pessoas de status mais alto se saíssem pior.”35
Por m, numa cultura baseada em valores de competição e
materialismo, somos confrontados não apenas com condições materiais
concretas, por mais pertinentes que sejam, mas também com o modo como
as pessoas são induzidas a verem a si mesmas. Quando as pessoas se julgam
ou são julgadas pelos outros segundo seu sucesso nanceiro, estar situado
mais abaixo na pirâmide – ainda que numa posição relativamente estável – é
por si só uma fonte de estresse que prejudica o bem-estar. Na frase
provocadora do neurocientista Robert Sapolsky: “A saúde é particularmente
corroída pelo fato de esfregarem o tempo todo no seu nariz aquilo que você
não tem.”36
Racismo, pobreza, desigualdade: na nossa sociedade, esfregam o tempo
todo na cara das pessoas aquilo que elas não têm, e o que o sistema lhes
lembra todos os dias que elas não merecem.
23

Os amortecedores da
sociedade: por que as
mulheres sofrem mais

Muitas das minhas pacientes não fazem ideia de como


expressar sua raiva de forma saudável. Essa raiva acumulada
contribui para deixá-las deprimidas e, creio eu, também para
outros sintomas médicos.
– JULIE HOLLAND, Mulheres em ebulição

Este capítulo tem por objetivo desvendar um aparente mistério da medicina:


por que as mulheres sofrem de males físicos crônicos com muito mais
frequência do que os homens, e por que têm uma probabilidade muito
maior de serem diagnosticadas com distúrbios de saúde mental. Digo
“aparente” porque, com tudo que se sabe sobre a unidade “corpomente” e
nossa natureza biopsicossocial, as respostas estão bem na nossa cara. O fato
de não as reconhecermos tem tudo a ver com não prestarmos atenção no
jeito “normal” de as coisas funcionarem numa cultura patriarcal que, apesar
de séculos de resistência e progresso femininos, é tão frequentemente
dominada por preocupações masculinas subliminares quanto por dinâmicas
explícitas de poder.
Quando digo que “nós” não reconhecemos essas coisas, me re ro não só
à minha pro ssão como médico e à sociedade como um todo, mas também
ao meu próprio pertencimento à classe sexual dominante e ao
condicionamento que tal pertencimento inculcou em mim. A verdade é que
no discurso eu jogo muito melhor o jogo da igualdade de gênero do que na
realidade. Sempre foi e continua sendo preciso uma mulher muito forte e
decidida, minha esposa Rae, para viver me alertando, com frequência bem
maior do que deveria, para os aspectos do nosso relacionamento pessoal
ligados a esse tema. Sinto que Rae e eu não somos nem de longe os únicos a
materializarem o modo como as transações inconscientes entre homens e
mulheres se dão diariamente em nossa cultura, em detrimento de ambos os
sexos, mas em especial mediante um custo para o bem-estar físico e
emocional das mulheres.
O abismo de gênero na saúde é real, ainda que insu cientemente levado
em conta. As mulheres estão mais sujeitas a sofrer de doenças crônicas
mesmo muito antes da velhice, e convivem com a má saúde e com
de ciências por mais anos. “As mulheres sofrem mais”, escreveu
recentemente um renomado médico americano, assinalando que elas têm
um risco bem maior de apresentarem dor crônica, enxaqueca, bromialgia,
síndrome do cólon irritável e distúrbios autoimunes como artrite
reumatoide.1 Conforme observado no capítulo 4, a artrite reumatoide atinge
mulheres com frequência três vezes maior do que homens, o lúpus afeta as
mulheres nove vezes mais, e a proporção mulheres-homens na esclerose
múltipla vem aumentando há anos. As mulheres também têm uma
incidência maior de tumores malignos não ligados ao tabagismo. Mesmo
em se tratando de câncer de pulmão, uma fumante tem duas vezes mais
chance de desenvolver a doença.2 As mulheres também apresentam o dobro
de incidência de ansiedade, depressão e TEPT se comparadas aos homens.3
“Estamos criando um normal que não é nem um pouco normal”, disse a
psiquiatra e escritora Julie Holland quando a entrevistei.
Neste exato momento, talvez uma em cada quatro americanas ou mais
está tomando algum medicamento psiquiátrico, mas se incluirmos
coisas como remédios para dormir ou ansiolíticos a taxa é mais alta
ainda. Em qualquer reunião de funcionários ou de pais e professores que
se faça, mais ou menos um quarto das pessoas presentes, talvez até mais,
toma todos os dias medicamentos para moderar seus sentimentos ou
comportamentos.

A demência relacionada ao mal de Alzheimer também parece afetar as


mulheres de forma desproporcional, assim como as pessoas pretas nos
EUA.4
Esse último fato por si só já deveria nos dar motivo para re etir, uma vez
que contém uma pista importante sobre as origens desses distúrbios. A nal
de contas, este livro vem analisando os impactos siológicos das
necessidades de desenvolvimento não atendidas, do estresse e do trauma.
Um tema recorrente, além de qualquer dúvida cientí ca, tem sido que essas
perturbações emocionais frequentemente servem de gatilho para
in amações e outros tipos de dano siológico e mental. Podemos nos
perguntar que fardos e estresses as mulheres de todas as cores e classes
poderiam ter em comum com pessoas pretas como grupo? Para mim, a
resposta é clara: ambos os grupos são alvos preferenciais numa cultura que
não respeita, mas menospreza, distorce ou até impele as pessoas a
suprimirem quem são. Se essa avaliação for precisa, seria de esperar que, da
mesma forma que essas pressões se entrecruzam e se acumulam, a
incidência de doenças também fosse aumentar. E aumenta mesmo,
imensamente.5
No capítulo anterior, examinamos como o racismo e a desigualdade são
embutidos biologicamente, e as disparidades de saúde que decorrem desse
fato. Aqui, damos o passo lógico de observar os estresses de ser mulher
numa sociedade patriarcal. Esses estresses também se entranham na pele,
bagunçando todos os sistemas do corpo, inclusive o imunológico.
Uma irrequieta bombeira de 38 anos da pequena cidade de Manitoba,
que aqui chamarei de Liz, me contou sobre seu calvário pessoal quando nos
conhecemos num congresso de saúde em Toronto. Na época, ela estava
afastada do trabalho havia quase um ano por causa da doença de Crohn, o
mesmo distúrbio intestinal autoimune de Glenda, do capítulo 2, cujos
sintomas incluem cansaço, sangue nas fezes e cólicas. Quando esse
transtorno se resolveu, ela passou a manifestar sintomas de estresse pós-
traumático: medo debilitante, fantasias medonhas, insônia. “Tinha tremores
todos os dias”, contou ela.

Sentia pânico de coisas das quais não tinha motivo para sentir medo.
Desenvolvi uma descon ança de mim mesma, e passei a não saber como
iria reagir em várias situações. Chorava com muita facilidade, por
motivos que não conseguia explicar… quando estava em público, ou
então no meio de alguma atividade. Tinha pensamentos suicidas. E
bebia muito para dar conta desses sintomas; passei a beber todos os dias.

A essa altura, já não será surpresa nenhuma para o leitor saber que a
história de Liz contém um trauma de infância. Ela fora abusada sexualmente
aos 7 anos, abuso que perdurou pelo resto da infância e da adolescência.
Sabemos que o trauma sexual é um fator de risco para toda sorte de
distúrbios da mente e do corpo, e que as meninas têm uma probabilidade
maior do que os meninos de serem submetidas a esse tipo de abuso. Não é
mais segredo que, bem depois da infância, as mulheres da nossa cultura
enfrentam uma ameaça constante de assédio sexual, tanto no âmbito
privado quanto no pro ssional. Embora o movimento #MeToo tenha
lançado uma necessária luz sobre esse agelo, há muito tempo tem sido
assim. Quando minha mulher tinha 16 anos e trabalhava numa sorveteria,
ouviu o patrão, com idade su ciente para ser seu avô, comentar com uma
risadinha com o lho enquanto os dois passavam atrás dela: “Essa daí eu
pegaria fácil.” “Fiquei chocada e enjoada, achei aquilo muito esquisito”,
recorda ela. “Nunca tinha ouvido esse verbo ser usado assim, mas aquilo me
soou nojento. Era uma objeti cação total. Naturalmente, eu não disse nada.”
Ou antinaturalmente, no caso – de toda forma essa experiência é tão
frequente para mulheres e meninas a ponto de ser inteiramente “normal”. E
é assim no mundo inteiro.6
Estamos ouvindo cada vez mais sobre os riscos que as mulheres
enfrentam em pro ssões tradicionalmente masculinas, como as forças de
segurança pública ou de combate aos incêndios. Além do risco de trauma
secundário que todos os socorristas são obrigados a enfrentar, um clima de
masculinidade tóxica no trabalho também cobrou seu preço de Liz,
ajudando a provocar a in amação intestinal e os distúrbios mentais que a
acometeram. Caso ela demonstrasse qualquer vulnerabilidade, ou se
deixasse afetar pelas tragédias que com frequência testemunhava, era tratada
com sarcasmo e desprezo. “Era um lugar bem machista”, lembrou ela.

Se você tiver alguma questão, você é um problema. Em especial se for


mulher e falar sobre isso, você é considerada “mole”. Eles tentam
prejudicar você sicamente, sabotar você de alguma forma. Ficavam
jogando absorventes internos na minha cama. Nem sei por que eles
faziam isso. Era um símbolo bem forte de feminilidade.

Esse tipo de bullying também afeta o corpo e o espírito. Num estudo


sobre mulheres bombeiras feito em 2017, assédio e ameaças no trabalho
foram relacionados a ideação suicida e sintomas psiquiátricos mais severos,7
achados que se estendem também a outras pro ssões menos dominadas por
homens. Além da saúde mental, a saúde física também sofre.8
Uma reação saudável à agressão por parte de qualquer criatura senciente
é a raiva, função do sistema evolucionário cerebral que serve para proteger
nossos limites, sejam eles físicos ou emocionais.9 O comentário da minha
amiga Julie Holland na epígrafe deste capítulo, sobre a raiva das mulheres
ser reprimida em detrimento da sua saúde, vai invariavelmente no mesmo
sentido do que pude observar de pessoas com depressão, doenças
autoimunes e câncer. A abdicação arraigada do “não” natural e espontâneo
na nossa cultura não se restringe às mulheres, mas com certeza lhes é
imposta de maneira mais ampla e com mais força. A dinâmica vai ainda
mais fundo do que o simples fato de conter deliberadamente a raiva. Como
já distingui anteriormente, a repressão (por oposição à supressão) ocorre
sem consciência explícita, e os sentimentos saudáveis são banidos para
baixo do nível da consciência: para longe da nossa mente, onde não sejam
vistos. “A afabilidade não deixa espaço para nada que não seja agradável”,
escreve Holland. “Quando nem sequer sabemos por que estamos com raiva,
não podemos conversar com a pessoa responsável nem lidar seja lá como for
com o problema. Nós choramos; nós comemos; nós nos acalmamos de mil
maneiras diferentes.”10
Mecanismos de autossupressão criados na primeira infância são
reforçados por um condicionamento social persistente e gênero-dependente.
Muitas mulheres acabam se autossilenciando, o que é de nido como “a
tendência a silenciar pensamentos e sentimentos de modo a manter
relacionamentos seguros, em especial os relacionamentos íntimos”. Essa
negação crônica da própria experiência autêntica pode ser fatal. Num estudo
que acompanhou quase 2 mil mulheres ao longo de uma década, as que
“relataram que em con itos com os cônjuges em geral ou sempre
guardavam seus sentimentos para si tinham mais de quatro vezes mais risco
de morrer durante o acompanhamento em comparação às mulheres que
sempre falavam o que estavam sentindo”.11 O que acontece em casa também
acontece no trabalho. Outro estudo demonstrou que, para mulheres com
chefes que não as apoiavam, a repressão da raiva – uma adaptação natural a
um entorno em que se expressar seria se arriscar a perder o emprego –
aumentava o risco de doenças cardíacas.12
Recorde a seguinte lista de traços de abnegação que predispõem a
doenças, mencionada nos capítulos 5 e 7: um agir compulsivo e
autossacri cante em prol de terceiros, a supressão da raiva e uma
preocupação excessiva com aceitação social. Esses traços de personalidade,
encontrados em toda a gama de distúrbios autoimunes, são justamente
aqueles inculcados nas mulheres por uma cultura patriarcal. “Eu estava me
negando como pessoa, negando meus próprios desejos, minhas vontades”,
disse a socorrista Liz. “Não estava prestando atenção no que eu necessitava.
Todo mundo era mais importante. Meu trabalho era mais importante do
que qualquer preocupação que eu tivesse. Eu não estava me escutando em
relação a nenhum assunto.”13
Esse “não se escutar” de modo a priorizar as necessidades alheias é uma
origem importante dos papéis prejudiciais à saúde que as mulheres
assumem. Ele é uma das formas ignoradas pelos médicos, mas perniciosas,
como o “normal” da nossa sociedade impõe um custo grande à saúde das
mulheres. Mais sobre isso adiante.

A sexualização das mulheres é outra fonte de má saúde. Ser valorizada


conforme o uso que outra pessoa pode fazer de você é uma agressão para o
eu. Meninas e mulheres têm uma probabilidade muito maior de serem
submetidas a isso, ou mesmo de se verem convencidas de que existe
empoderamento nessa sexualização. A célebre cantora e compositora
canadense Alanis Morrissette me falou sobre a “embriaguez de poder” que
recorda ter sentido quando a atenção masculina que recebeu como jovem
estrela do pop e celebridade televisiva começou a assumir um viés carnal.
Por um lado, recorda ela:

Meu intelecto ou o fato de eu ser uma pessoa eram diminuídos para


onde quer que eu olhasse, ou mesmo totalmente eliminados. Ao mesmo
tempo, de uma hora para outra, eu tinha um poder que podia exercer
em termos de ser objeti cada ou sexualizada. Sob certos aspectos era
sedutor me sentir empoderada assim, ser considerada atraente ou
mesmo literalmente estuprada em condição de vulnerável.14 Havia um
elemento naquilo que me dava uma sensação de poder. Era uma espécie
de ponto de vista jovem do tipo: “Ah, vou pegar o poder onde conseguir
encontrar.”

Veja bem, a época à qual Morrissette está se referindo veio décadas antes
do surgimento de plataformas como o OnlyFans, onde jovens mulheres
fornecem “conteúdo” explícito de todo tipo para assinantes (em sua imensa
maioria homens). Uma matéria do e New York Times – no caderno de
Economia, ainda por cima – disse tudo: “Desempregada, vendendo nudes
na internet, e nem assim consegue pagar as contas.”15
Os jovens estão cada vez mais obtendo sua primeira rodada de educação
sexual da pornogra a na internet, hoje em dia muito facilmente acessível.
Não é de imagens eróticas vitorianas que estamos falando, nem da coleção
de revistas de mulher pelada do seu padrasto. Segundo a socióloga e autora
de Pornland (Pornolândia) Gail Dines, o tipo de pornogra a mais popular
(leia-se: mais rentável) da internet hoje é conhecido na indústria como
“gonzo”, gênero caracterizado por “sexo hardcore, sicamente punitivo, em
que mulheres são humilhadas e degradadas”.16 Essas imagens sexuais
sicamente violentas e emocionalmente hostis estão sendo acessadas por
crianças cada vez mais novas: a maioria das fontes situa a idade média da
primeira exposição a esse conteúdo por volta dos 11 anos.
As meninas precisam lidar com uma fusão tóxica de sexualidade e
subserviência. Dines observa que as revistas voltadas para mulheres e
adolescentes do sexo feminino estão publicando cada vez mais conteúdo
voltado para ajudar as mulheres a tirar o máximo proveito da mudança
cultural diversi cando seus talentos para agradar outra pessoa, em geral do
sexo masculino. Meninas são incentivadas a exercer sua sexualidade não
como uma forma natural ou emergente de autoexpressão, mas como uma
forma de atrair e manter um parceiro, ou uma forma de “se empoderar”
dentro de uma estrutura de poder opressiva. Quando a normalização do
sexo abusivo converge com a busca por atenção das redes sociais, os
resultados podem ser medonhos: no verão de 2020, veio à tona um “desa o
do TikTok” que viralizou em que adolescentes mostravam “vídeos pós-sexo
dos hematomas e cortes em seus membros numa tentativa de imitar o
recente lme da Net ix que mistura rapto e pornogra a, 365 dias”.17
Enquanto isso, a pornogra a ensina muitos meninos a associarem prazer e
dominação, e a suprimirem qualquer sentimento de ternura. A supressão
das emoções vulneráveis, claro, é uma das manifestações do trauma
masculino, e conduz inexoravelmente a uma diminuição da compaixão por
outras pessoas, especialmente quando essas pessoas têm algo que queremos,
como em todos os casos de estupro ou agressão sexual não consentida.

Os fardos que as mulheres precisam suportar em culturas patriarcais, e as


formas como eles frustram e limitam as perspectivas de autorrealização
autêntica feminina, já foram reconhecidos há muito tempo… pelas
mulheres. Em 1792, aos 33 anos, Mary Wollstonecra publicou seu
espantosamente radical Reivindicação dos direitos da mulher, em que
observava que as mulheres “são obrigadas a assumir um temperamento
arti cial antes de as suas faculdades terem adquirido qualquer força”.18
Duzentos anos depois, a indomável pensadora feminista radical Andrea
Dworkin captou as dimensões viscerais da vida num corpo feminino sob o
patriarcado: “Essa perda de si é uma realidade física, não apenas um
vampirismo psíquico, e como realidade física ela é arrepiante e extrema,
uma erosão literal da integridade >do corpo e de sua capacidade de funcionar
e de sobreviver.”19 Não tenho certeza se Dworkin conhecia os dados
cientí cos que corroboravam sua a rmação, mas seu uso da palavra literal
estava certíssimo.
Tamanha perda de si, para usar a expressão de Dworkin, torna-se o
destino das mulheres em grande parte porque, além do seu papel de ter que
suprir as necessidades econômicas e físicas da família, elas são as cuidadoras
emocionais escolhidas, e pagam caro por isso. Na realidade, na nossa cultura
a tarefa de cuidar recai na maioria das vezes sobre as mulheres. A expressão
contemporânea trabalho emocional transmite bem a natureza pro ssional
desse papel estressante e externamente imposto. Talvez mais até do que o
trabalho doméstico e o parto, é esse o “trabalho da mulher” e ele nunca
termina.
As mulheres muitas vezes funcionam como a cola emocional – o tecido
conectivo, por assim dizer – que mantém unidas famílias nucleares e
distantes e comunidades. Não é nenhuma coincidência elas sofrerem bem
mais do que os homens com doenças do tecido conectivo real, entre elas
lúpus, artrite reumatoide, esclerodermia, bromialgia e seus vários parentes
e variantes. Esses distúrbios, portanto, assim como a maioria das doenças
crônicas, re etem dinâmicas sociais na linha das que estamos investigando,
não apenas uma siologia individual que saiu dos trilhos.
Não é nenhum segredo que o estresse de cuidar de alguém enfraquece o
sistema imunológico. Cuidadores de pacientes com Alzheimer, por exemplo,
cuja imensa maioria é mulher, têm uma função imunológica
signi cativamente diminuída e uma cicatrização pior, sofrem com mais
doenças respiratórias e apresentam taxas muito mais elevadas de depressão
do que pares equivalentes não cuidadoras.20 A imunidade não é a única
função prejudicada pelo estresse de cuidar. Constatou-se que mães que
cuidam de crianças emocionalmente comprometidas têm indicadores
anormais de cortisol, um funcionamento metabólico pior quando medido
por exames de sangue e uma distribuição de gordura corporal menos
saudável.21 Conforme mencionado no capítulo 4, elas também têm os
telômeros mais curtos, o que indica um envelhecimento precoce.
A expectativa de apagamento de si de cuidar e ao mesmo tempo ignorar
as próprias emoções e necessidades só foi reforçada pela pandemia de covid-
19. “As mães são os amortecedores da nossa sociedade”, proclamou uma
manchete do e New York Times em outubro de 2020. Uma pesquisa com
mulheres casadas revelou que o cuidado com os lhos era uma fonte
importante de estresse, e que as mulheres em grande parte internalizavam
suas frustrações. Em vez de pedir aos parceiros que aumentem sua
participação em casa, revelou a pesquisa, “as mães se culpam por esses
con itos e se sentem responsáveis pela sua redução, inclusive tomando
medidas como parar de trabalhar, começar a tomar antidepressivos ou
ignorar as próprias preocupações ligadas à covid-19”.22
“Todo esse trabalho extra está afetando a saúde das mulheres”, a rmou a
autora britânica Caroline Criado Perez em Mulheres invisíveis, seu premiado
livro sobre o viés implícito que favorece os homens em praticamente todos
os aspectos da vida social, econômica, cultural, acadêmica e até mesmo
médica. Ela dá um exemplo fascinante da divisão assimétrica de tarefas
entre homens e mulheres:
Sabemos há muito tempo que as mulheres (em especial abaixo dos 55
anos) têm prognósticos piores do que os homens depois de uma cirurgia
cardíaca. Mas foi só depois da publicação de um estudo canadense em
2016 que os pesquisadores conseguiram isolar a carga de cuidadoras que
as mulheres suportam como um dos fatores por trás dessa discrepância,
ao notar que as que passam por cirurgias cardíacas tendem a voltar
imediatamente aos seus papéis de cuidadoras, ao passo que os homens
tinham uma probabilidade maior de ter alguém cuidando deles.23

Nossa sociedade reforça a sensação dos homens de ter direito aos


cuidados femininos de uma forma quase impossível de se expressar em
palavras. Re ro-me aqui à maternagem automática que as mulheres
proporcionam a seus parceiros homens, ao apoio emocional que constitui a
argamassa invisível de muitos relacionamentos heterossexuais: uma
dinâmica muito convencional que revela quão tenazes são os construtos
sociais de gênero, e quanto estamos imersos neles. Alguns homens só têm
consciência dos cuidados que recebem quando estes desaparecem, e
experimentam um forte ressentimento quando são retirados; nos momentos
em que sua parceira está ocupada com outras coisas, como lhos recém-
nascidos. Muitas mulheres já reclamaram comigo que seu cônjuge ca
distante e mal-humorado sempre que elas pegam nem que seja um
resfriado. Como observei atendendo famílias, as crianças podem perder
parte da atenção materna quando o marido exige uma energia de
maternagem da parceira. (Nem é preciso dizer que a sintonia estável do pai
com os lhos também ca comprometida quando ele assume um papel
infantil na parceria.) Com frequência, a mãe perde vitalidade ou desenvolve
sintomas físicos ou emocionais que assinalam a rebelião do seu corpo contra
a sobrecarga, impondo uma pressão ainda maior tanto a ela mesma quanto a
seus dependentes.
Confesso que aquilo que “observei atendendo famílias” espelha o
cenário que ocorria em nossa própria casa, em especial quando as crianças
eram pequenas. Para ser honesto, não é uma dinâmica que eu possa relegar
ao passado. Entrevistei Rae, a maior autoridade nesse tema. “É como se a
sua tensão fosse uma responsabilidade minha, que eu tivesse negligenciado”,
disse ela.

Você me vê por uma lente negativa, como se o problema de alguma


forma devesse ser comigo. Eu começo a me questionar. Passo a tomar
cuidado com você, como se estivesse pisando em ovos. Começo a me
sentir deprimida, isolada, sozinha. O que me sobra é muito
ressentimento, e isso é realmente estressante e frustrante.

Então veio o diagnóstico de especialista. “Acho que existe uma raiva da


mãe que surge com a frustração masculina, e ela é descontada na mulher”,
concluiu Rae. “Ela precisa mantê-lo feliz. Ele não faz diferença entre ela e a
sua raiva e frustração: a mulher se torna para ele um simples objeto.”
Quando conversei com Julie Holland, ela confessou que a taxa
desproporcionalmente alta de ansiedade e depressão nas mulheres vem, em
grande parte, do fato de elas absorverem a angústia masculina e de sua
responsabilidade culturalmente orientada de aliviá-la. Nesse sentido, as
mulheres estão tomando os antidepressivos e ansiolíticos pelos dois sexos.
“As meninas recebem todo tipo de mensagens explícitas e implícitas de que
o jeito de conseguir as coisas é concordar e buscar consenso, garantir que
todo mundo esteja feliz”, disse ela.

Elas veem a própria mãe, sabe? Eu com certeza via minha mãe fazendo
isso pelo meu pai: preparando o jantar, lavando a louça, a roupa. Ele
depois do jantar cava lendo o jornal… Você assume a dor do outro.
Quando comecei a sair com meu companheiro Jeremy, lembro de lhe
dizer coisas como: “Se você estiver se sentindo triste ou com medo,
quero levá-lo na direção da luz.”

Concordei com um meneio de cabeça quando Julie disse isso. Mais de


meio século atrás, eu deveria dizer, Rae assumiu praticamente a mesma
tarefa, ou “fardo”. “Eu vi sua luz quando nos conhecemos”, recorda ela, “e vi
sua sombra. Eu ia curar você; ia dissipar aquela escuridão.” Uma empreitada
pouco invejável, para não dizer outra coisa.
Em Down Girl: e Logic of Misogyny (Menina triste: a lógica da
misoginia), a lósofa feminista contemporânea Kate Manne, professora
associada de loso a na Universidade Cornell, nos propõe um jeito prático
de conceitualizar as expectativas que se tem das mulheres e das demandas às
quais elas são submetidas: mercadorias e serviços codi cados como femininos,
aqueles que “ela deve fornecer”. Entre eles estão “atenção, afeto, admiração,
empatia, sexo e lhos (ou seja, trabalho social, doméstico, reprodutivo e
emocional); […] um porto seguro, acalento, segurança, tranquilidade e
conforto”. A isso são contrapostas as prerrogativas e privilégios codi cados
como masculinos, aos quais “ele tem direito”: por exemplo “poder, prestígio
[…] posição, reputação, honra […] status hierárquico, mobilidade social e o
status conferido por usufruir da lealdade, do amor, da devoção, etc. de uma
mulher valorizada”.24 Não é difícil intuir quais desses agrupamentos de
atributos pode acarretar e gerar mais autossupressão, sacrifício e estresse.
Não esqueça também que Manne está se referindo a mulheres de relativo
privilégio. Muitas outras, além dos papéis de gênero atribuídos, precisam
também dar conta da pesada carga da pobreza, da maternidade solo e da
discriminação racial. Já vimos o custo para a saúde que esses infortúnios
somados cobram.

Quando digo patriarcado, não estou me referindo à vontade consciente, nem


com frequência sequer à consciência propriamente dita de homens
individuais, mas sim a um sistema de poder. Embora o patriarcado seja
muito antigo, uma vez que surgiu nos primórdios da civilização, o
capitalismo o adaptou confortavelmente às próprias necessidades: além do
lar, podemos vê-lo na economia, na política e em todas as outras instituições
da sociedade. Os homens também pagam um preço por isso, embora
tenham direito aos duvidosos “benefícios” do sistema que os privilegia.
Quando reduzo minha esposa a um objeto cujo propósito é me satisfazer,
em que papel estou me colocando? O de uma criança impotente e
dependente, cujo bem-estar emocional depende da disposição da mamãe de
atender ao que se percebe serem minhas necessidades. Essa criança num
corpo de adulto bate o pé, reclama, ca emburrada e exige coisas da sua
cuidadora. Ela nunca se sacia, nunca ca satisfeita. Ambos os parceiros,
cada um a seu modo, são impotentes.
O sofrimento dos homens também faz parte do ciclo patriarcal, onde é
tanto efeito quanto causa. O tabu da vulnerabilidade, em especial, é
profundamente prejudicial tanto para homens quanto para mulheres. A
raiva pode ser mais permissível para os homens, mas o mesmo não vale para
tristeza, dor ou “fraqueza” – que na verdade signi ca apenas reconhecer os
próprios limites. Muitos ex-combatentes tiveram que superar esse estatuto
do patriarcado ao enfrentarem angústia, depressão, pensamentos suicidas e
outras manifestações do estresse pós-traumático para as quais não existe
cura sem um uxo desimpedido de emoções vulneráveis. A masculinidade
tóxica, assim como a supressão do feminino, é letal. Ela ceifa suas vítimas de
muitas formas, entre elas o alcoolismo e outras dependências químicas, o
vício em trabalho, a violência e as inclinações suicidas,25 todas defesa ou
fuga da vulnerabilidade, da tristeza e do medo.
“Em nossa cultura, nós ‘transformamos meninos em homens’ por meio
da desconexão”, a rma o terapeuta Terry Real. “Aprender a nos desconectar
dos próprios sentimentos, das próprias vulnerabilidades e das outras pessoas
é o que denominamos autonomia e independência. Essa é uma ferida
traumática, e uma ferida oculta por ser culturalmente normativa. Ela é
quase pré-verbal.” Em seu livro I Don’t Want to Talk About It: Overcoming
the Secret Legacy of Male Depression (Não quero falar sobre isso: como
superar o legado secreto da depressão masculina), Real fala sobre fragilidade
masculina e sobre a negação da sensibilidade dos homens. “Para mim, a
fragilidade tem a ver tanto com o trauma quanto com a injunção contra ser
humano”, me disse ele.

A essência dessa masculinidade [tóxica] é a invulnerabilidade. Quanto


mais vulnerável você for, mais “mulherzinha” você é. Quanto mais
invulnerável você for, mais “másculo” é. Assim, a fragilidade de ser
humano, a simples vulnerabilidade humana, é suprimida. Os homens
tentam corresponder a um padrão desumano, e são assombrados o
tempo inteiro por uma sensação de não conseguir alcançar esse padrão.

Ao ouvir Real falar, lembrei dos bombeiros que jogavam OBs na cama
de Liz e da vulnerabilidade da qual estavam tentando fazê-la sentir
vergonha, da mesma forma que eles sentiam vergonha da sua.
“Os caras que eu atendo são todos chefes de empresas que se saíram
lindamente no mundo, mas na vida pessoal são histórias de terror”,
con denciou Real. A dominação masculina cobra um preço alto nos dois
sentidos, e a julgar por todos os indicadores ela custa mais do que rende.
24

Nós sentimos a dor deles:


nossa política impregnada de
trauma

Nos círculos internos da política, quase todos os políticos são


vistos como pessoas difíceis, corrompidas até, que numa
espécie de inversão da aula de moral e cívica têm de ser
toleradas por terem sido eleitas.
– MICHAEL WOLFF, Landslide: The Final Days of the Trump Presidency

Depois de começar nossa jornada nos níveis individual e celular, chegamos


agora à camada mais externa da cebola biopsicossocial: a política. Você pode
estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com as questões deste livro,
com doença e saúde, com trauma? Que importância tem a política? Por que
tocar nesse assunto?
Independentemente de onde cada um se insere (ou deixa de se inserir)
no espectro político, não é difícil concluir que hoje a política e a cultura de
mídia que a cerca estão mais tóxicas do que nunca. É verdade que as notícias
da atualidade, desde as fofocas de cidade pequena até questões de política
internacional, sempre serviram de combustível para conversas. Hoje em dia,
elas são tão incendiárias que muitas vezes nenhuma conversa parece
possível, a ponto de muita gente – chegando a 60% dos americanos, segundo
uma pesquisa – car apreensiva com a perspectiva de um feriado em
família.1 Os autores de um estudo de 2010 com americanos formados pela
Universidade de Nebraska-Lincoln descobriram que “um grande número de
americanos acredita que sua saúde física foi prejudicada pela exposição à
política, e um número maior ainda a rma que a política teve custos
emocionais e causou a perda de amizades”.2 Talvez eles estejam mais certos
do que pensam. Na matéria “Estressado com a política? Ela também pode
estar fazendo seu corpo envelhecer mais depressa”, a pesquisadora de
telômeros Elissa Epel (ver capítulo 4) sugere que o desgaste alostático
causado pela política pode encurtar essas estruturas cromossômicas que
cuidam da saúde.3 Um psicólogo da região da cidade de Washington chegou
a cunhar um nome para esse mal-estar dos governados: “transtorno do
estresse das manchetes.”4
A toxicidade da vida política talvez fosse menos preocupante se
conseguíssemos pelo menos uma trégua momentânea. Nossos celulares
viraram máquinas portáteis indutoras de estresse, sempre zumbindo
urgentemente com alguma atualização, das mais banais às mais graves,
relacionadas ao con ito e à incerteza, questões em grande parte fora do
nosso controle. Os feeds das redes sociais nos “alimentam” (do verbo em
inglês feed) com tudo que conseguimos comer, e mais até. A coisa nunca
para.
Não que estejamos de todo impotentes: provavelmente todos nós
poderíamos, por exemplo, ajustar nossos hábitos de consumo de notícias
para ltrar melhor o rancor, o desprezo, a ansiedade e o pessimismo.
Poderíamos praticar uma escuta melhor e exercitar mais a empatia com
aqueles de quem discordamos. Poderíamos adotar um regime rigoroso de
mindfulness: cinco minutos de respirações profundas antes e depois de rolar
a tela, sem exceção. Talvez todas essas medidas sejam salutares. Talvez elas
também não bastem. Na minha opinião, existe algo acontecendo além e por
baixo dos frequentemente deplorados “hiperpartidarismo”, “polarização” e
“radicalização” que estamos vendo.
Quanto mais eu olho para quem povoa a paisagem política – tanto quem
está no topo quanto nós, que estamos na base (ou em algum ponto entre
uma coisa e outra, para os mais privilegiados dentre nós) –, mais vejo
feridos elegendo feridos, traumatizados liderando traumatizados e, de modo
inexorável, implementando políticas que cristalizam condições sociais
traumáticas. Por baixo de toda a pose, de todas as críticas e de todas as
manobras, o pulso das correntes emocionais subjacentes lateja sem cessar.
Não posso provar isso, claro. A psicologia social não se presta ao tipo de
conclusão categórica que se pode obter nas ciências duras. O que posso fazer
é apontar esse fato, oferecendo minhas observações e citando exemplos e
pesquisas quando possível, e con ar que as pessoas seguirão buscando
sozinhas. Considero essa questão realmente de suma importância, e não só
pelo fato de o trauma alimentar com um combustível emocional in amável
os debates familiares já acalorados ao redor da mesa de jantar.
Para começar, a cultura política é um dos muitos caminhos pelos quais
mitos tóxicos se transformam em verdades normalizadas. Conforme
discutimos, a política tem íntima ligação com a personalidade social: o
conjunto de características desejáveis que mais dispõem as pessoas a
funcionarem bem dentro de um determinado sistema, mesmo que alguns
desses traços sejam literalmente repugnantes. O mesmo vale para aqueles
que conduzem o barco. Uma sociedade como a nossa exige de seus líderes
um determinado conjunto de disposições e visões de mundo – chamemos
isso de personalidade política –, sem o qual a carreira deles jamais decolaria,
considerando as exigências para o cargo. Os traços mais propícios para
conduzir um sistema socioeconômico que traumatiza populações como se
fosse a coisa mais natural do mundo, naturalmente, são aqueles que
dessensibilizam o candidato a aspectos vitais da vida emocional, ou mesmo
desabilitam por completo seu circuito de compaixão. Isso sempre começa
com o próprio eu, cedo na vida. Pode haver exceções, mas eu
particularmente não vi muitas, sobretudo nos altos escalões do poder.
Quando o trauma se manifesta na arena política, as consequências para
as pessoas e para o planeta são colossais. A nal de contas, políticos
elaboram políticas, e políticas criam ou cimentam justamente as condições
culturais que sabemos serem prejudiciais à nossa saúde. O nível de
consciência ou cegueira em relação ao trauma que eles e nós introduzimos
no debate político não tem como não se traduzir no mundo em que
acabamos vivendo. Se a doença é a forma de o corpo individual nos alertar
para algo que está desregulado, algo contrário ao que a nossa natureza
tenciona para nós, então certamente doenças sociais como as dependências
e catástrofes globais como a mudança climática são todos sinais de algo
errado no corpo político. O mesmo vale para a atitude resignada e cínica que
cerca a política de modo geral, e para os níveis por vezes ridículos de
descon ança e maldade que permeiam o debate público a respeito de
qualquer tema, das eleições ao aborto e à maneira como deveríamos
conduzir pandemias sanitárias.
Uma paranoia irreal em relação às vacinas, por exemplo, não é a mesma
coisa que um ceticismo saudável. Tampouco o desprezo desdenhoso e
arrogante em relação aos antivacina ou antilockdown equivale a uma
cidadania responsável. No meu trabalho sobre trauma, já observei que o que
revela a vida interna psíquica das pessoas, mais do que as ideias que elas
defendem, é a ressonância emocional do seu modo de falar e de agir – de
quem e como elas estão sendo. Quando tentamos identi car o conteúdo do
seu discurso ou suas crenças sem nos importar com o combustível
energético, estamos errando o alvo. O mesmo vale para a esfera
sociopolítica: se quisermos entender por que indivíduos e grupos pensam e
se comportam da maneira que pensam e se comportam – e deveríamos
querer isso se de fato nos importamos com as consequências –, precisamos
estar dispostos a ver as cicatrizes traumáticas que existem por baixo das
reações emocionais extremas. Isso pode ser complicado quando nós
mesmos estamos convencidos da nossa própria razão e do erro alheio, o que
é um motivo maior ainda para tentar.
Tudo isso é mais do que pura especulação. Já se demonstrou que
experiências traumáticas na infância têm in uência direta na orientação
política adulta. Michael Millburn, professor emérito de psicologia na
Universidade de Massachusetts, descobriu que quanto mais rígido o estilo
de criação ao qual as pessoas foram expostas quando pequenas, mais
propensas elas cavam a apoiar políticas autoritárias ou agressivas, como
guerras no exterior, leis punitivas e pena de morte. “Nós usamos os castigos
físicos na infância como um marcador de ambientes familiares
disfuncionais”, disse ele. “Havia um apoio signi cativamente maior à pena
capital, oposição ao aborto e defesa do uso da força militar em especial entre
os homens que tinham sido expostos a altos níveis de castigos físicos,
principalmente se eles nunca tivessem feito psicoterapia”. Esse último achado
me intrigou. “A psicoterapia”, explicou Millburn, “remete a um potencial de
autoexame, de autorre exão.”
A con uência da política e do trauma não é um conceito novo. Décadas
atrás, a grande psicoterapeuta suíça-polonesa Alice Miller apontou como as
práticas rígidas de criação de lhos que durante muito tempo estiveram em
voga na Alemanha ajudaram a preparar o modelo do autoritarismo nazista.
Ela também argumentou, de modo persuasivo, que o sofrimento e a
opressão intensos na infância dos líderes fascistas alemães, em especial de
psicopatas monstruosos como Adolf Hitler e Hermann Göring, tinham
desempenhado um papel decisivo na formação de suas vidas mental-
emocionais, e necessariamente de suas tendências políticas. “Entre todas as
guras de proa do Terceiro Reich”, escreveu ela em For Your Own Good:
Hidden Cruelty in Child-Rearing and the Roots of Violence (Para o seu
próprio bem: crueldade oculta na criação dos lhos e as raízes da violência),
“não consegui encontrar uma sequer que não tivesse tido uma criação rígida
e severa.”5 Podemos substituir “rígida e severa” por “traumatizante”: a nal,
Miller não estava se referindo a lares che ados por pais e mães gentis com
horários rigorosos de voltar para casa, mas ao tipo de ambiente que
imprimiria na criança uma visão de mundo matizada pelo medo e/ou
exigiria que ela se anestesiasse diante do sofrimento, a começar pelo próprio.
As crenças subliminares que os líderes têm sobre a natureza humana, o
mundo e sua posição nele, e os impulsos inconscientes que motivam seus
atos são de grande consequência para a sua maneira de fazer política, ou
seja, para nossa vida e nosso mundo. A visão de mundo que eles
desenvolveram cedo na vida, sob o impacto de infortúnios que eles não
escolheram e que não podiam controlar, permeia décadas mais tarde o que
eles sentem em relação ao Universo e a seus semelhantes, seu modo de
interagir com eles e os atos que dirigem a eles. Apesar disso, como assinala a
psicoterapeuta britânica Sue Gerhardt: “Nós raramente abordamos as
dinâmicas psicológicas e emocionais subjacentes de nossas guras públicas
ou de nossa cultura como um todo.”6
Examinemos rapidamente duas duplas de inimigos políticos, uma no
Canadá, outra nos Estados Unidos; todas essas quatro pessoas convenceram
milhões de outras a depositar nas mãos delas um poder imenso. O que as
torna tão atraentes e tão lamentáveis, a depender de quem está observando,
deve muito a traços de personalidade forjados no caldeirão do trauma
precoce.
No meu próprio país, o ex-primeiro-ministro Stephen Harper era muito
admirado pelos conservadores por suas opiniões gélidas e linha-dura em
relação ao crime, por alegar a irrelevância da ciência climática e a rmar que
a dependência era escolha de marginal, sendo pelo mesmo motivo execrado
pelos progressistas. Apesar de criado por um pai rigoroso e “certinho” cujo
próprio pai desaparecera misteriosamente anos antes e nunca fora
encontrado, Harper recorda uma infância idílica. Concordo inteiramente
com o comentário do jornalista do e Toronto Star Jim Coyle de que, ao
contrário das recordações de Harper, “não é difícil imaginar que a vida sob o
comando desse patriarca tenha sido sufocante”.7 A nal de contas, trata-se de
um homem caracterizado pelo próprio biógrafo como “autocrático, fechado
e cruel”, e cujo ex-chefe de gabinete quali cou de “descon ado, fechado e
vingativo, dado a rompantes de raiva extrema por detalhes sem
importância”. Um colunista canadense certa vez escreveu sobre os “olhos
mortos de sociopata” de Stephen Harper, enquanto outro jornalista o
descreveu como “frio e inescrutável”. Nenhuma criança nasce com olhos
mortos: uma expressão assim revela uma evitação para não ver algo terrível
a uma jovem alma.
O homem que sucedeu Harper na Colina do Parlamento de Ottawa
transmite uma energia muito diferente e de absoluta simpatia. Justin
Trudeau é conhecido por usar um tom de voz caloroso e uma linguagem
inclusiva. Ele já chorou de tristeza em público em mais de uma entrevista
coletiva, inclusive quando um astro da música canadense morreu de câncer
no cérebro em 2017.8 Não há nada de errado com um político que mostra
seu lado vulnerável – quem dera isso fosse mais normalizado –, mas, como
muitos notaram, há também algo de inautêntico ou mesmo obsequioso na
personalidade de bom moço de Trudeau. Recentemente, ele precisou se
desculpar por ter feito um passeio particular em família num feriado
nacional criado para relembrar o trauma in igido a nossos povos
originários, história em relação à qual já se mostrou extremamente
contrito.9 Essa cegueira ética e emocional traz a marca de uma infância
traumática. Justin foi criado numa família em que o pai – Pierre, o famoso e
irascível primeiro-ministro das décadas de 1960 e 1970 – era obcecado por
trabalho, status e virilidade. Quando menino, Justin cava sob os cuidados
de uma mãe 30 anos mais jovem do que o marido garanhão com quem ela
muitas vezes entrava em con ito, cujo desânimo era aprofundado por um
transtorno bipolar. Em alguns momentos ela exibia um alto-astral que
beirava a histeria, e tinha interações sexuais constrangedoramente públicas
com astros do naipe de Mick Jagger. O atual primeiro-ministro se lembra de
“ car desesperado […] para criar uma sensação de magia em cada instante
que passávamos em família”.10 Admito estar especulando; nem Trudeau
nem qualquer outro político nunca me procuraram para fazer terapia. Mas
acho que não é exagero dizer que essa criação turbulenta talvez o tenha
preparado para fazer da simpatia extrema e da obsequiosidade o seu métier.
Segundo a narrativa popular, não poderia ter havido opostos mais
extremos na política dos Estados Unidos, seja do ponto de vista do apelo
demográ co, dos valores éticos ou da personalidade, do que os adversários
na eleição presidencial de 2016, Donald J. Trump e Hillary Clinton. As
diferenças são fáceis de identi car, e as semelhanças mais sutis, porém
instrutivas. Talvez seja uma surpresa para os apoiadores de ambos, por
exemplo, ler uma análise da Scienti c American publicada em 2016
apontando quantas das características que de nem a psicopatia são com
frequência encontradas em políticos importantes. Uma delas era a “frieza”,
traço em que tanto Trump quanto sua então adversária se destacavam.11
O visual caricato de Donald Trump, o caos que ele criou no sistema
político americano e a turbulência cultural que cercou sua ascendência
também podem facilmente esconder a pessoa triste e profundamente ferida
que ele é. Foi preciso alguém que o conhecesse melhor do que a maioria, sua
sobrinha psicóloga Mary Trump, para dissipar tanto o rebuliço quanto o
desprezo até chegar ao sombrio xis da questão. Hoje sabemos, graças à
reveladora biogra a escrita por Mary em 2020, Too Much and Never Enough:
How My Family Created the World’s Most Dangerous Man (Demais e nunca
o bastante: como minha família criou o homem mais perigoso do mundo),
que o jovem Donald teve motivos de sobra para afastar a realidade da mente
e dos olhos; para se tornar exageradamente grandiloquente, narcisista,
combativo e totalmente oportunista. “Bem lá no fundo, não tenho problema
nenhum em descrevê-lo como um psicopata”, disse Mary sobre o pai de
Donald, o patriarca Fred. “Ele não tinha nenhum sentimento
verdadeiramente humano, e com frequência tratava os lhos com desprezo.”
O pai da própria Mary, Fred Jr., irmão mais velho de Donald, foi levado pelo
trauma de infância ao alcoolismo e a uma morte precoce aos 41 anos. O que
Donald foi levado a fazer o mundo inteiro viu. As revelações de Mary
Trump não deveriam ter sido necessárias para desvendar o sofrimento por
trás da personalidade do agressivo presidente-vendedor, mas no nosso
mundo cego em relação ao trauma isso foi, sim, necessário. “Ele é uma
criança traumatizada de almanaque”, me disse o psiquiatra Bessel van der
Kolk.
O jornalista Tony Schwartz pôde ver isso de perto ao trabalhar como
ghost-writer do sucesso de vendas de Trump, A arte da negociação. “Mentir
é algo que ele faz com total naturalidade”, disse Schwartz anos depois à e
New Yorker. “Mais do que qualquer outra pessoa que eu já tenha conhecido,
Trump tem a capacidade de se convencer de que o que quer que esteja
dizendo em determinado momento é verdade, ou mais ou menos verdade,
ou pelo menos deveria ser verdade.”12 Uma “total naturalidade”, como já
observamos, não é a natureza verdadeira de ninguém. A natureza original
de ninguém leva à mentira; várias pessoas têm talento para mentir, mas
nenhuma nasce com ele. Friedrich Nietzsche escreveu em algum lugar que
as pessoas mentem para sair da realidade quando esta as feriu, e isso é
particularmente verdade em relação à história das origens de Donald
Trump. A mentira, seja ela automática ou proposital, no início o protegeu de
uma rejeição devastadora na infância, e mais tarde lhe foi útil na arena do
poder político.
Hillary Clinton ainda é admirada e defendida por muitos como uma
tenaz sobrevivente e a real vencedora da eleição de 2016. Em comparação
com Trump, pelo menos, ela é o retrato da tranquilidade, da elegância, da
empatia, do trabalho árduo e da razão. O que quase nunca se pergunta é: de
onde vêm essa ambição e essa “tenacidade” incansáveis, e a que preço? Será
que deveríamos mesmo comemorar essas coisas, ou será essa também, à sua
própria maneira, uma norma pouco saudável, ainda que não tanto quanto as
bravatas verborrágicas de Trump? Essas perguntas foram completamente
ignoradas em meio à névoa santi cada da campanha de Hillary, de formas
que considero literalmente inacreditáveis. Um momento em especial me
marcou, e demonstra a facilidade com que normalizamos e endeusamos as
personalidades “vencedoras” de nossos líderes.
Na véspera da con rmação da sua candidatura, um vídeo em
homenagem à vida e às conquistas de Hillary foi transmitido para o mundo,
com narração do ator Morgan Freeman. Nele, a candidata mencionava uma
lição de vida que aprendeu na infância com o pai severo e exigente. “Não
choramingue, não reclame, faça o que precisa fazer e da melhor forma que
conseguir.” Ao que tudo indica, isso é um eufemismo. Como sabemos por
meio de relatos biográ cos, o pai de Hillary podia ser cruel e dado a
caprichos. “Ele fazia comentários sarcásticos mordazes para a esposa e a
única lha, e batia nos três lhos, às vezes além da conta, para mantê-los na
linha.”13 No vídeo, a secretária de Estado Clinton também contou: “Minha
mãe queria que eu fosse resiliente, corajosa.” Ela então relata um exemplo de
como essa “resiliência” era inculcada.

Eu tinha 4 anos, e éramos várias crianças no bairro. Eu saía na rua com


um laço no cabelo, e as crianças todas tiravam sarro da minha cara. Foi
minha primeira experiência com bullying, e quei apavorada. Um dia
entrei correndo em casa e minha mãe veio falar comigo: “Aqui nessa casa
não tem lugar para quem é covarde. Volte lá fora e pense em que jeito vai
dar no que essas crianças estão fazendo.”

Isso não é um chamado à resiliência, mas sim à repressão. A mensagem


que uma criança pequena recebe numa circunstância dessas é: “Aqui nessa
casa a vulnerabilidade é motivo de vergonha, não existe lugar para o seu
medo. Não sinta nem demonstre o seu medo, engula o que está sentindo,
você está sozinha. Não espere empatia nenhuma aqui.” Ainda assim,
ninguém na plateia pareceu achar esse golpe na sensibilidade de uma
criancinha perturbador. Nenhum comentarista da mídia sequer captou que
esse exemplo escolhido a dedo de criação supostamente inspiradora era na
verdade uma celebração pública do trauma. Nenhum observador sugeriu
que uma menina pequena que busca a segurança do abraço de um pai ou de
uma mãe não é de forma alguma covarde, mas uma menina de 4 anos
normal.
Em todo caso, a lição de vida sobre enfrentar a dor fez seu trabalho.
Mais de 60 décadas depois, em campanha, Hillary cou doente e
desidratada por causa de uma pneumonia, mas escondeu de todo mundo a
sua “fraqueza” até desmaiar na rua. “Estou me sentindo ótima”, garantiu ela
no mesmo dia ao público, de modo nada convincente. “O dia aqui em Nova
York está lindo.” Sem dúvida foi a mesma dinâmica de autossupressão que a
levou a tolerar as traições do marido, descritas pela falecida escritora Joan
Didion como “a conhecida sexualidade predatória do adolescente
interiorano”. Estereotipadamente impactada pelo trauma, Hillary culpou a si
mesma pela in delidade do marido. Ele estava sob muito estresse e ela não
tinha cuidado o su ciente das suas necessidades emocionais, foi o que disse
a uma amiga, alinhando-se assim ao papel atribuído à mulher na cultura do
patriarcado. “Ela acha que não foi inteligente o bastante, nem sensível o
bastante, nem livre o bastante das próprias preocupações e di culdades para
entender o preço que estava pagando”, foi como essa con dente próxima
resumiu a opinião de Hillary.14
A falta de empatia internalizada se revelou durante a campanha
presidencial, quando ela descuidadamente – mas de modo ainda mais
revelador – chamou metade da base eleitoral de Trump de “um bando de
deploráveis”, revelando a uma grande parte dos Estados Unidos o que o país
no fundo já sabia: que muitas elites urbanas a consideram, com arrogância e
desprezo, pessoas cujas reivindicações econômicas, políticas e morais
podem ser ignoradas. A resposta dos deploráveis foi dada em novembro na
forma de um espantoso maremoto político.
“Tanto Hillary Clinton quanto Donald Trump”, escreveu com
perspicácia em 2016 o colunista conservador David Brooks, “defendem uma
visão da vida descon ada, dura, combativa, olho por olho e dente por dente:
a ideia de que ter sucesso neste mundo é uma labuta inclemente e que, dada
a natureza egoísta dos outros, a vulnerabilidade é algo perigoso.”15 Essa
sensação de perigo, eu acrescentaria apenas, começou muito antes de eles
entrarem na vida pública. Embora seus respectivos apoiadores
provavelmente estremecessem diante da ideia de que os dois sejam sequer
remotamente parecidos, Trump e Clinton formavam uma dupla forjada no
sofrimento infantil.
Ao ler as biogra as de líderes de muitos países, em vários períodos
históricos, pode-se ver como cada um deles, à sua própria maneira, teve
uma infância emocionalmente árida; todos “superaram” essas adversidades
devido justamente aos traços de personalidade que os fariam entrar para os
livros de história como ícones e operadores de grandes mudanças,
independentemente dos grandes males que tenham causado. Em ambos os
casos, esses traços são vistos por muita gente até hoje como louváveis e
dignos de imitação. Não há nada mais normal do que isso.
E é aí que entramos nós, o resto. Sustentada e ampli cada pela máquina
movida pelo lucro da mídia, a cultura política usa nossos mais profundos
anseios de estabilidade, segurança ou até mesmo supremacia, mirando com
força e precisão nossa “criança interior” ferida. Na verdade, grande parte da
política faz muito mais sentido se virmos como as pessoas, milhões e
milhões delas ao mesmo tempo, se voltam inconscientemente para seus
líderes de modo a suprir as próprias necessidades infantis não atendidas.
Como diz o cientista cognitivo George Lakoff: “Todos nós pensamos em
termos de uma metáfora em grande parte inconsciente: o País como
Família.”16
Perguntei a Daniel Siegel o que leva as pessoas a seguirem líderes como
Donald Trump, que exalam hostilidade e têm um viés autoritário. “As
pessoas na verdade podem car empolgadas por uma gura pública estar
expressando agressão ou assertividade, o contrário de impotência”,
respondeu o psiquiatra e pesquisador da mente, observando como esses
traços podem parecer empoderadores para aqueles carentes de uma
sensação de verdadeiro poder. “É como uma criança querendo estar com um
pai ou uma mãe que vai protegê-la. Existe uma sensação de: ‘Eu vou estar
seguro e tudo vai car bem.’” O que Dan descreve é também uma memória
sensorial, marca indelével e geralmente inexplorada da infância, um anseio
armazenado no “corpomente” e ativado pelas inseguranças da atualidade
projetadas na arena política.
Do lado liberal, idealizar os líderes como bons, empáticos, cuidadores e
inclusivos pode ser uma outra forma de anseio mal direcionado por uma
parentalidade sintonizada. Uma celebridade democrata importante, o
compositor de canções de paródia conhecido como Randy Rainbow, tuitou
uma foto de Joe Biden sorrindo ao lado de Kamala Harris na noite em que
ela foi anunciada como sua companheira de chapa. A legenda da imagem
dizia: “Boa noite, mamãe e papai. Nos vemos amanhã.”17 Pessoas tomadas
por idealizações infantis desse tipo, ainda que meio brincando, tendem a
ignorar indícios perturbadores.

Adjacente à política, e na verdade cada vez mais sobreposto a ela, está o


imenso território do entretenimento, do esporte pro ssional, das modas e
obsessões que denominamos cultura popular. De fato, uma das funções
sociais da cultura pop é distrair as pessoas das coisas que de fato importam;
imagine se toda a energia hoje gasta analisando a vida pessoal de
celebridades ou os intrincados detalhes de eventos esportivos fosse em vez
disso dedicada a mobilizar as populações para enfrentar coletivamente as
grandes questões do nosso tempo.
A eleição de um ex-apresentador de reality show para o mais alto cargo
de seu país é apenas um dos exemplos da membrana cada vez mais na que
separa essas duas esferas. “Bonito como um astro de cinema” foi um dos
elogios aos quais o atual primeiro-ministro do Canadá teve direito ao
decolar rumo ao estrelato mundial. Trinta anos atrás, Bill Clinton, então
candidato de primeira viagem à presidência, adentrou a consciência
nacional tocando saxofone no programa de TV e Arsenio Hall Show. Hoje
em dia, o ex-presidente Barack Obama se sujeita a entrevistas bajuladoras
com apresentadores de programas de entrevistas exibidos tarde da noite,18
isso quando não está promovendo on-line uma de suas festas recheadas de
celebridades em Martha’s Vineyard. Notícia é entretenimento e vice-versa.
Pode-se lamentar essas trivialidades como uma degradação da vida
política. Menos compreendido é o modo como a cultura popular nos
prepara para uma forma especí ca de relação passiva de espectadores com a
política. A veneração do herói e a projeção emocional que movem o showbiz
atual se abastecem com um supercombustível destilado em grande medida a
partir do trauma. Pense em quão esperados, quão absolutamente normais
são os seguintes fenômenos: uma brilhante estrela, muitas vezes na
vanguarda do seu ofício, se apaga em meio às chamas do vício, da
instabilidade emocional ou das lesões autoprovocadas; surgem revelações
sobre as predações sexuais desse ou daquele adorado gurão ou astro; um
atleta ou uma personalidade do entretenimento revela ter suportado
violações sexuais ao longo de toda a carreira, ou desde antes da fama até;
uma estrela infantil anteriormente imaculada se transforma num símbolo
sexual objeti cado, muitas vezes com um nal infeliz.
No melhor dos casos, a máquina da cultura pop trata esses incidentes
como interrupções perturbadoras: abaixamos a cabeça por um breve
instante, num silêncio solene em memória das vítimas, antes de voltar a
olhar, fofocar, consumir. E o que consumimos, exatamente? Às vezes arte;
com razoável frequência uma diversão inócua. Mas ingerimos também a dor
de pessoas feridas, vendidas como entretenimento, para aliviar ou talvez
validar nossos próprios problemas. Veneramos as “personalidades” que
escondem um sofrimento patológico, depois demonstramos surpresa
quando as coisas dão errado.
Por sua vez, muitas celebridades buscam a fama exatamente porque o
amor de uma base de fãs é o mais perto que elas podem chegar de preencher
um vazio de estima familiar da vida inteira. Figuras emblemáticas como
Marilyn Monroe, Elvis Presley, Kurt Cobain e Amy Winehouse são porta-
vozes de uma triste classe de superastros derrubados pela colisão de seus
tormentos infantis com os holofotes da fama. Todos quatro chegaram ao
estrelato graças a um carisma advindo de uma mistura de capacidade
extraordinária com desespero abastecido pelo trauma, tiveram seu talento
idolatrado e explorado, e suas feridas ignoradas mesmo quando expostas no
palco.
Muitos outros sofrem em segredo durante longas e ilustres carreiras,
como no caso de Aretha Franklin, cuja irmã Erma certa vez a rmou:
“Aretha é uma mulher que sofre muito, mas que não gosta de mostrar.” É
claro que ela mostrava sim, para quem se desse ao trabalho de ver. A
reverenciada cantora do hino de autoa rmação “Respect” teve uma infância
mais do que problemática, e continuou a sofrer abuso em seus
relacionamentos adultos. A desconexão é dolorosamente aparente no
espantoso documentário do show Amazing Grace, lmado em 1972 numa
igreja de Los Angeles. Aos 30 anos, com um domínio de palco e uma
profundidade emocional assombrosos, Aretha sacode as arquibancadas e
eletriza o público. A máscara de autocon ança só cai quando o pai pastor
sobe ao púlpito para elogiar os dons da lha. Na presença desse patriarca
emocionalmente cruel, ela se retesa, e seu rosto adota uma curiosa mistura
de deferência ensaiada com dissociação involuntária, como se ela não
estivesse de todo dentro do próprio corpo, o mesmo corpo que, poucos
minutos antes, havia canalizado de forma tão transcendente a palavra divina
e a deliciosa dor do anseio. Na música, essa magní ca artista se enchia do
poder e da força que não podia exercer na vida pessoal. Sua sina foi ser uma
lenda num ramo e numa cultura que prefere o endeusamento à empatia.
Nós desviamos o olhar da dor para evitar que a vida atrapalhe a magia.
Devo dizer que me anima o fato de celebridades como Alanis
Morrissette, Dave Navarro, Lena Dunham, Ashley Judd, Russell Brand e
Jamie Lee Curtis, todos entrevistados para este livro, além de outros como
Oprah Winfrey e as cantoras Jewel, Sia e Lady Gaga, terem recentemente se
aberto em relação ao próprio trauma e ao impacto que ele teve na vida e na
carreira delas. Na política, Hunter Biden, lho do atual presidente dos
Estados Unidos, falou publicamente sobre alguns dos traumas por trás do
seu histórico de dependência; apesar do histórico lamentavelmente punitivo
em relação aos “crimes” ligados às drogas, seu pai pelo menos deu
recentemente algumas declarações na mídia mais compassivas com os
problemas do lho.

De modo geral, o sistema funciona com uma elegância cíclica: uma cultura
fundamentada em crenças equivocadas sobre quem e o que somos cria
condições que frustram nossas necessidades básicas, gerando uma
população que sente dor e vive desconectada de si mesma, dos outros e de
qualquer signi cado. Uns poucos escolhidos, em especial aqueles com
mecanismos precoces de adaptação que os preparam para negar a realidade,
bloquear a empatia, temer a vulnerabilidade, abafar a própria noção de certo
e errado e evitar com todas as forças examinar-se demasiado de perto, serão
alçados a posições de poder. De lá vão liderar uma maioria que anseia tanto
por conforto e estabilidade, tão esmagada pelo cinismo e pela alienação que
trocará instintos autênticos e autoa rmação coletiva pelo pseudoapego de
falsas promessas e de um carisma tranquilizador. Para completar o círculo,
nossos líderes feridos, com suas prioridades falseadas, implementam
políticas sociais que mantêm as condições iguais ou então as pioram.
Ao fazer campanha para Bernie Sanders em 2020, a ex-senadora pelo
estado americano de Ohio Nina Turner gostava de parafrasear Mateus 7,16:
“E conhecerás a árvore pelos frutos que ela gerar.” A julgar pela safra atual, a
árvore da nossa vida social e da nossa política está permeada de trauma
desde as raízes até os frutos. Se quisermos ter alguma esperança de mudar
esse jogo, esperança de que certamente depende o futuro do planeta, muitos
de nós – ou pelo menos tantos quantos conseguirem – terão de fazer aquilo
de que muitos de nossos líderes são constitutivamente (mas não
constitucionalmente) incapazes: olhar com coragem para dentro, para então
poder olhar melhor e mais honestamente ao redor e para fora.
PARTE CINCO

OS CAMINHOS
DA INTEIREZA

Uma mudança de visão de mundo pode mudar o


mundo que se vê.
– JOSEPH CHILTON PEARCE, The Crack in the Cosmic Egg:
New Constructs of Mind and Reality
25

A mente no comando:
a possibilidade de cura

A mente exclama, explica, demonstra, protesta; mas dentro de


mim uma voz se ergue e lhe grita: “Quieta, mente, vamos
escutar o coração!”
– NIKOS KAZANTZAKIS, Relatório ao Greco

Após navegar pelos círculos concêntricos da saúde e da doença humanas, do


celular ao social, e de traçar as conexões recíprocas e inextricáveis entre eles,
passamos agora à “boa notícia”: a cura. A notícia pode até ser encorajadora,
mas isso não quer dizer que seja fácil. A nal, como abordar a cura nesta
época conturbada? Como avançar em direção à saúde no contexto de um
sistema socioeconômico decididamente desinteressado em remediar
qualquer das suas doenças de origem, e diante de uma pandemia que ao
mesmo tempo realçou e nos privou de tantas coisas em que nem sequer
prestávamos atenção? Como manter viva a esperança quando as chances
parecem estar tão contra nós?
E, a nal, o que é a cura?
Quando falo em cura, estou me referindo a nada mais, nada menos do
que um movimento natural em direção à inteireza. Repare que não a de no
como a condição de estar totalmente inteiro, ou “iluminado”, ou qualquer
ideal psicoespiritual desse tipo. Ela é uma direção, não um destino; uma
linha num mapa, não um ponto.
Curar-se tampouco é sinônimo de autoaprimoramento. Mais exato seria
dizer que é um resgate de si. Na verdade, nossa cultura moderna de
desenvolvimento pessoal – em grande medida cooptada pelas mesmas
forças consumistas responsáveis pelos distúrbios que vimos – pode com
demasiada facilidade obscurecer ou complicar a jornada em direção à cura.
Quando nos curamos, estamos ocupados em resgatar as partes perdidas de
nosso eu, não em tentar mudá-las ou “melhorá-las”. Como me disse o
especialista em psicologia profunda e guia de vida selvagem Bill Plotkin,1 a
questão crucial não é “nem tanto olhar para o que está errado, mas sim para
onde a inteireza da pessoa não se realizou ou não foi plenamente
vivenciada”.
Curar-se também é diferente de sarar: sarar signi ca estar livre de
doença; curar-se signi ca tornar-se inteiro. “É possível sarar sem se curar, e
é possível se curar sem sarar”, assinala minha colega Lissa Rankin.2
“Idealmente, curar-se e sarar acontecem juntos, mas nem sempre é assim.”
Veremos exemplos disso nos capítulos a seguir.
Fiz uma distinção parecida em relação à dependência: é possível estar
em abstinência sem estar limpo. O primeiro estado é a ausência ou evitação
de algo – em si um objetivo louvável –, enquanto o segundo é uma
capacidade nova e positiva de viver no presente, livre para vivenciar a
existência como ela é. De modo análogo, sarar é eliminar sintomas ou
distúrbios que prejudicam a vida, curar-se é o processo de nos reencontrar
com as qualidades internas que ainda vivem em nós como possibilidades
inerentes, como acredito que seja sempre o caso, e fazem a vida valer a pena.
Não nos curamos “para” sarar, ainda que esse desejo compreensível esteja
presente. Melhor ver a cura como um m em si.
O que se segue não é uma tentativa de prescrever uma solução que
funcione para todo mundo – nenhuma funciona – mas de apontar a
possibilidade de cura nos níveis individual e social, mesmo no contexto de
nossa cultura cada vez mais ansiosa e desordenada. Também pretendo, até
onde puder, fazer sugestões em relação ao que a cura nos demanda, e às
condições internas e externas mais propícias para que ela oresça.

Qualquer movimento em direção à inteireza começa com reconhecer nosso


próprio sofrimento e o sofrimento do mundo. Isso não signi ca car preso
num vórtice eterno de dor, melancolia e, principalmente, vitimização; uma
nova e rígida identidade baseada no “trauma” – ou na “cura”, aliás – pode
constituir uma armadilha em si. A cura real signi ca apenas nos abrir para a
verdade da nossa vida, passada e presente, do modo mais simples e objetivo
de que formos capazes. Reconhecer onde fomos feridos e, até onde
conseguirmos, fazer uma auditoria sincera do impacto dessas feridas na
forma como elas in uenciaram nossa própria vida e a daqueles que nos
cercam.
Por inúmeros motivos compreensíveis, isso pode ser excepcionalmente
difícil. Seja qual for o grau de desconforto recoberto por nossas ilusões, a
verdade dói, e não gostamos de sentir dor se isso puder ser evitado, mesmo
quando sentimos que do outro lado da dor talvez exista algo melhor. Como
escreveu Nadezhda Mandelstam em suas potentes memórias de vida sob o
regime stalinista, Hope Against Hope (Esperança apesar de tudo): “É muito
difícil encarar a vida.” Muitos de nós só estarão prontos para buscar a
verdade quando concluirmos que o custo de não fazê-lo é alto demais, ou
quando nos familiarizarmos o su ciente com a dor que o anseio pelo real
nos causa. O dramaturgo grego Ésquilo tocou de modo sublime o ponto
certo ao fazer seu coro declarar:

Zeus nos fez saber


que o Timoneiro impõe a lei
de que devemos sofrer, sofrer rumo à verdade.3

Há exceções, mas eu mesmo nunca conheci ninguém que não tenha sido
impulsionado em seu caminho de crescimento e mudança por um revés ou
uma perda, uma doença, angústia ou alienação. Felizmente – ou não,
dependendo de como escolhermos ver esse fato – a vida costuma entregar o
sofrimento necessário bem na nossa porta.
Verdade é uma pequena grande palavra, facilmente mal interpretada.
Não estou falando de nenhuma verdade espiritual suprema; tampouco estou
me referindo a uma veracidade puramente intelectual ou a fatos passíveis de
veri cação, no sentido de “verdadeiro ou falso”. Se fosse só isso, poderíamos
“estudar, estudar rumo à verdade”, e os funcionários das instituições
acadêmicas seriam todos Budas modernos. Apesar de todos os seus méritos,
aonde nossa capacidade intelectual espantosa nos fez chegar? Exatamente
onde estamos: um mundo injusto, em risco de autoextinção, com dor e
privação inimagináveis e desnecessárias num universo de abundância, onde
aumenta a alienação e o desespero. Na verdade, nosso talento intelectual é
recrutado com demasiada facilidade pela parte de nós que deseja negar
como as coisas são; existe um motivo para “racionalidade” e “racionalizar”
serem termos linguísticos irmãos.
A verdade à qual me re ro é muito mais modesta e simples: o ato de
olhar com clareza para aquilo que é, para como de fato as coisas estão neste
exato momento. É esse o tipo de verdade que traz a cura. Para acessá-la,
precisaremos acessar algo mais versátil do que nossa inteligência.
O intelecto se torna uma ferramenta bem mais inteligente quando
permite ao coração falar; quando se abre para como a verdade reverbera
dentro de nós, em vez de tentar racionalizá-la. “E agora vou lhe contar meu
segredo, um segredo bem simples”, aconselha a raposa ao Pequeno Príncipe
na adorada história de Antoine de Saint-Exupéry: “Só se vê bem com o
coração; o essencial é invisível para os olhos.” O intelecto pode ver fatos
veri cáveis, contanto que a negação não os oculte nem os distorça, como
com frequência faz para proteger nossas partes feridas ou avessas à dor. É
possível declamar, declarar e reiterar fatos sem a mais ín ma parcela do que
estou chamando de verdade. O tipo de verdade que cura se dá a conhecer
pela sensação que ela provoca, não só pelo “sentido” que faz.
Se alguma parte disso lhe parecer vago ou pouco cientí co, lembre-se de
que o coração, antes de ser um conceito abstrato, é um órgão vivo que bate.
Stephen Porges mostrou, de maneira brilhante, que os circuitos neurais de
interação social e de amor estão intrincadamente ligados ao coração e às
suas funções. Mais do que isso, o coração tem também um sistema nervoso
próprio.4 O cérebro verbal e pensante se atribuiu a honra de ser o único, mas
não. Na verdade, ele divide essa distinção com o trato digestivo e o coração.
Em outras palavras, o coração sabe coisas, da mesma forma que uma
intuição sentida “nas entranhas” também é um tipo de saber. Na verdade, o
plexo neural do trato digestivo já foi adequadamente chamado de “segundo
cérebro”, assim como o coração. Dessa forma, podemos falar em três
cérebros, projetados para funcionar de maneira harmoniosa, todos
conectados pelo sistema nervoso autônomo. Sem esse saber do coração e do
trato digestivo, nós muitas vezes funcionamos como “répteis geniais”, na
expressão bem adequada de Joseph Chilton Pearce.5
No entanto, não podemos tampouco ignorar a mente, já que é lá que
grande parte da ação acontece. Se o coração é nossa melhor bússola no
caminho da cura, a mente – consciente e inconsciente – é o território a ser
navegado. A cura traz alinhamento e cooperação entre os dois, com
frequência depois de uma vida inteira de um se escondendo do outro e de
um sendo desconsiderado pelo outro.
“Tudo tem a mente no comando, a mente em primeiro plano, tudo é
criado pela mente”, disse Buda 2.500 anos atrás. Volto a essa frase do grande
mestre Gautama porque ela é fundamental para compreendermos nossa
relação com aquilo que consideramos real. Ela é também a base da
abordagem terapêutica que uso em meu trabalho e, quando estou
consciente, no meu caminho pessoal. Construímos com nossa mente o
mundo em que vivemos: é esse o ensinamento principal. A contribuição da
psicologia e da neurociência modernas foi mostrar como, antes de nossa
mente poder criar o mundo, o mundo cria nossa mente. Então geramos
nosso mundo a partir da mente que o mundo instilou em nós antes de
podermos ter qualquer poder de escolha em relação a isso. O mundo em
que nascemos, é claro, era em parte produto da mente de outras pessoas,
numa cadeia causal que remonta à origem dos tempos.
Pode ser que isso soe pessimista. Mas as palavras de Buda propõem uma
saída, já que continuamos a ser aqueles que criam o mundo que vemos, o
mundo que pensamos ser real, a cada instante. E é aí que entra a cura. Não
podemos fazer nada em relação ao mundo que criou nossa mente, que talvez
tenha nos instilado crenças limitantes, prejudiciais e falsas sobre nós
mesmos e os outros. No entanto, e é essa a boa notícia que mencionei,
podemos aprender a ser responsáveis pela mente com que criamos nosso
mundo daqui para a frente. A capacidade de cura nasce da disposição para
fazer justamente isso, assumir essa responsabilidade. Essa disposição não é
uma declaração que se faz uma vez e pronto, mas sim um compromisso de
cada instante, que pode ser refeito quando perdemos contato com ele. Eu,
por exemplo, preciso me lembrar de fazer isso o tempo todo. Ela também
não é um convite a uma ingenuidade autoimposta nem a um alegre
pensamento supostamente positivo. Tem a ver com a disposição de
reconsiderar toda a nossa visão.
Se a mente ferida pode ser tirânica, ela é uma tirana cujo anseio secreto
é ser deposta. Já vi isso várias vezes na minha própria vida, ao vivenciar a
liberdade que vem quando se abre mão de alguma crença ou percepção
infeliz à qual, poucos segundos antes, a mente ainda se agarrava. Também
tive a grande sorte, por meio do meu trabalho, de encontrar casos e mais
casos de reviravoltas espantosas. Em todos eles, a mudança essencial
ocorreu não nas circunstâncias ou na história das pessoas, mas no seu modo
de se relacionar com elas. Isso ca evidente nas histórias a seguir de duas
pessoas que, no sentido mais literal e de modos que a maioria de nós sentirá
sorte de nunca ter precisado vivenciar, sofreram rumo à verdade. Se elas
podem fazer isso, qualquer um de nós também pode.
Numa manhã de 2019, entrevistei Sue Hanisch em sua aconchegante
casinha de Sedgwick, vilarejo situado no verdejante Lake District da
Inglaterra, uns 120 quilômetros ao norte de Liverpool. Enquanto
tomávamos chá, essa terapeuta ocupacional e especialista em trauma de 62
anos e fala mansa me contou a história de sua subida ao monte Kilimanjaro:
um feito notável para qualquer um, e ainda mais para ela, 13 anos depois de
uma bomba do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês) na
estação de trem de Victoria, em Londres, lhe arrancar a parte inferior da
perna direita e lesionar gravemente o pé esquerdo. “Lembro de uma
enfermeira chorando e de outra sentindo ânsia de vômito ao ver minhas
pernas”, recordou ela. A explosão do artefato de cinco quilos largado dentro
de uma lata de lixo ocorreu exatamente 50 anos depois de o avô de Sue
perder a vida no bombardeio de Coventry pela Luwaffe, em 1940.
Seguiram-se várias cirurgias e anos de pessimismo. Quarenta pessoas
tinham se ferido naquele dia; o homem que estava ao lado de Sue morrera
na hora. Sua mente carregava uma culpa imensa por ter sobrevivido, e em
igual medida pela própria depressão. “Aquele homem estava entre mim e a
bomba. É quase assim: como eu me atrevi a sobreviver, e como me atrevo a
não aproveitar plenamente a vida no planeta Terra quando ele não teve essa
opção?”
Quando Sue se propôs subir o Kilimanjaro com sua prótese abaixo do
joelho na perna direita e seu pé esquerdo cirurgicamente reconstruído e
quase insensível, suas feridas psíquicas já tinham se curado de modo
signi cativo. Essa liberação viera com a integração de suas experiências na
trama da própria vida, à medida que ela foi desviando energia das histórias
limitantes que antes contava a si mesma sobre o que tudo aquilo signi cava.
“Estar no planeta Terra é uma bênção contraditória”, disse ela suavemente.
“É uma experiência difícil. Mas também recebi a oportunidade de encontrar
o ouro na ferida. Tive experiências incríveis por causa do que me
aconteceu.” Para ela, essas experiências invariavelmente envolvem outras
pessoas.

Reparei como as conexões que estabeleço com as pessoas são aquilo por
que realmente vale a pena viver, na verdade a única coisa. São as
conexões que me fazem sentir que estou aqui, e que também me fazem
querer estar aqui. Como posso estender a mão para os outros e ajudá-los
a se sentir conectados? Essa é a única coisa que me parece ter uma
importância verdadeira.

Algumas das conexões profundas que Sue estabeleceu foram com as


últimas pessoas com quem alguém teria esperado que ela criasse um laço.
Com seu espírito sempre aventureiro, alguns anos depois do atentado ela
acabou indo parar nas matas da região sul-africana de KwaZulu-Natal numa
missão de paz de que participavam, entre outros, vários irlandeses do norte,
veteranos da mesma organização cuja bomba havia mutilado seu corpo e
mudado para sempre a sua vida. “A ideia”, disse ela, “era ouvir o outro lado
da história, ver as di culdades uns dos outros e estar num ambiente
diferente onde precisaríamos proteger uns aos outros.”
Em determinado momento, o grupo precisou atravessar um rio. O
dilema de Sue era que ela não podia molhar a prótese metálica, e pensar na
travessia a estava deixando bastante nervosa. Ela não precisava ter se
preocupado: uma travessia segura e seca já tinha sido planejada. Dois
homens a carregaram nos ombros, um deles ex-militante do IRA.

O fato de ser um cara do IRA me tomou de emoção. Eu comecei a


chorar, e Don, era esse o nome dele, também. A experiência de trabalhar
com esses homens me fez perceber quanto eles tinham sido
traumatizados pelo que acontecera na vida deles. Don, por exemplo, era
o caçula de 17 irmãos. Tinha segurado a primeira arma aos 8 anos e sido
criado num reformatório. Já tinha sido preso, sofrido bullying, e estava
passando por um momento muito difícil na vida. Estava carregando o
fardo de ter matado gente sem uma consciência tranquila. Foi bom para
mim estar com aquelas pessoas de cuja vida eu nunca tivera nenhuma
percepção antes. Me dei conta de que eu poderia perfeitamente ter sido
Don se tivesse crescido naquelas circunstâncias.

A subida ao Kilimanjaro veio alguns anos depois na vida de Sue.


Também nessa ocasião ela foi acompanhada por um homem da Irlanda do
Norte, que havia escutado a sua história e queria chegar com ela ao cume da
montanha. Ambos chegaram, e então esses dois montanhistas improváveis
zeram algo ainda mais improvável: eles dançaram, emprestando um novo
signi cado à expressão “o ápice da experiência”. “Tive que ser convidada de
volta à vida”, re etiu ela. “E o que me convidou de volta foi o amor.”
Outra conversa reveladora com uma mulher que havia passado por um
inferno pessoal acabou servindo de apoio para minha própria e improvável
reconciliação com o passado. Minha interlocutora foi Bettina Göring,
sobrinha-neta de Hermann Göring, o Reichsmarschall cuja Luwaffe havia
matado o avô de Sue, e um dos pilares do regime criminoso que assassinou
meus avós. Nós tínhamos sido reunidos pela diretora de uma série
documental em que éramos ambos personagens; a diretora intuíra, com
razão, que poderíamos ter algo a oferecer um ao outro. Nos falamos por
Skype, eu de Vancouver, Bettina da Tailândia, onde hoje reside e trabalha em
meio período como facilitadora de cura para outras pessoas. O fato de essa
conversa ter de fato acontecido, e de ter sido tão sincera, exige uma palavra
que não uso com frequência: milagre. Fora Bettina quem dera o pontapé
inicial, ao me escrever dizendo quanto valorizava meu trabalho. A magia
desse encontro, para mim, foi o fato de duas pessoas que tinham começado
a vida em polos tão distintos – uma descendente de mártires, a outra
parente de um notório criminoso – serem ambas impelidas numa jornada
de cura na qual, por um feliz acaso, iriam se encontrar e encontrar também
uma compreensão mútua.
Nascida 11 anos depois da guerra, Bettina havia passado a vida inteira
suportando um legado sombrio. Menina hipersensível, carregava todo o
fardo familiar de trauma multigeracional, e acabou absorvendo a culpa pela
monstruosa depravação do tio-avô. Após ter sido abandonado pela mãe
com 6 semanas de vida, Hermann Göring crescera sob o regime rigoroso e
cruel de criação que Alice Miller havia identi cado ao estudar a vida de
todos os grandes líderes nazistas e denominado “pedagogia venenosa”. O
vício em mor na e a compulsão alimentar foram algumas das escapatórias
que ele tentou usar para fugir de seu horrendo mundo interior, cujas
monstruosidades ele tanto contribuiu para in igir aos outros.
Bettina contou como havia buscado uma cura para si. Segundo ela, foi
numa autoinvestigação de grupo na Austrália que se deu conta “de toda a
culpa que sentia, embora não zesse sentido algum… quero dizer, eu sabia
no meu cérebro e na minha mente que aquilo não fazia sentido, mas mesmo
assim eu sentia”. Ela estremeceu ao me contar isso. “Foi muito doloroso
encarar essa vergonha, encarar o horror e tudo que tinha feito parte dele.”
Dotada de uma forte capacidade de empatia, ela decidiu usar esse recurso
interno, e corajosamente se abriu para vivenciar a psique do tio-avô, ou seja,
para sentir dentro de si suas ressonâncias e vibrações. Fez isso não para
perdoar Göring, mas para perdoar a si mesma, para abrir mão da escuridão
com que sempre havia se identi cado. “Eu encarei aquilo”, me disse ela. “Foi
horrível. Foi como atravessar a noite mais escura da alma. Encarei o pior do
pior, o monstro. Foi muito assustador. Mas quando saí me senti muito mais
livre.”
Foi exatamente como me senti depois de nos despedirmos. Meu próprio
passado não tinha mudado em nada, mas minha noção do que era possível,
sim. Fui lembrado de algo que meu colega, o especialista em trauma Bessel
van der Kolk, tinha me dito num dia ameno de outono 10 anos antes,
enquanto almoçávamos num congresso em que ambos estávamos
apresentando trabalhos, no norte do estado de Nova York. Não me lembro
mais daquilo que na conversa ou no meu comportamento provocou o
comentário dele, mas de repente, do outro lado da mesa, Bessel me olhou
por cima da armação dos óculos e disse: “Gabor, você não precisa car
arrastando Auschwitz por onde quer que vá.” Nesse instante, Bessel me viu.
Apesar de todas as minhas interações positivas com a vida, apesar do amor,
da alegria e da sorte imensos com que também fui contemplado, essa
desesperança em relação a mim mesmo era uma sombra sempre à espreita,
pronta para exterminar a luz toda vez que eu sofria algum revés ou cava
desanimado, e até mesmo em momentos inocentes nos quais baixava a
guarda.
O campo de prisioneiros mental que Bessel identi cou fora construído e
cercado pelo signi cado forjado por minha mente de bebê a partir de
acontecimentos dolorosos, assustadores e muito além do meu controle, não
só pelos acontecimentos em si. Esse signi cado, a história sem m cuja moral
é “Sou um ser estragado, sem qualquer esperança de cura”, tinha
in uenciado bastante minha experiência subjetiva da vida,
independentemente de fatores externos e de tudo que testemunhei e aprendi
que indicava o contrário, e até mesmo contrariava meus valores e
convicções de base a respeito da humanidade. Sempre acreditei – e acreditei
não é uma palavra forte o bastante aqui, porque me re ro a uma convicção
mais poderosa do que a crença – que dentro de todo mundo existe um
potencial de desenvolvimento e de crescimento, pouco importando o que a
pessoa vivenciou, no que acreditou ou o que fez. E ao lado de todo mundo lá
estava eu, a única exceção! Eis quanto a mente é poderosa: ela é capaz de
manter de modo rígido e por muito tempo as próprias convicções, mesmo
quando essas visões são prejudiciais para nós, contrárias à experiência e até
dissonantes em relação a outras crenças semelhantes.
As jornadas mais inspiradoras em direção à inteireza são as mais
improváveis, porque desmentem a ideia de que alguns traumas são
incuráveis. Ao escrever este capítulo, tive o prazer de conversar com Edith
Eger, judia húngara como eu, psicoterapeuta internacionalmente admirada e
escritora, hoje com 90 e poucos anos. As mesmas diretoras de cinema que
tinham me conectado com Bettina também me apresentaram a Edith.
Em junho de 1944, cinco meses depois de eu nascer, Edith tinha 16 anos
quando ela e a família foram transportadas para Auschwitz de Košice,
mesma cidade da Eslováquia na qual minha mãe foi criada e de onde meus
avós foram deportados. Muito provavelmente os dois viajaram no mesmo
trem de Edith. Assim como minha avó e meu avô, os pais dela foram
mandados para as câmaras de gás assim que chegaram. A sobrevivência de
Edith, e muito mais do que isso, sua transcendência em relação aos horrores
que teve de suportar, estão retratados em seu livro A bailarina de Auschwitz,
cujo título em inglês é e Choice, “a escolha”. A que escolha ela estava se
referindo? Certamente não onde e quando nasceu, nem o que aconteceu
com seus parentes mais próximos. O que ela encontrou, isso sim, foi uma
forma de exercer a única escolha que tinha, que era o próprio ponto de vista
e a atitude emocional em relação ao passado imutável. Aqui ela explica
como, décadas mais tarde, chegou a perdoar o próprio Hitler. Isso aconteceu
em Berghof, nos Alpes bávaros, onde cava a residência do Führer de 1933
em diante. “É fácil demais criar uma prisão a partir da nossa dor, do nosso
passado”, escreve ela.
Então fui até o local da antiga casa de Hitler e o perdoei. Não teve nada a
ver com Hitler. Foi algo que z por mim. Eu estava me desapegando,
liberando essa parte de mim mesma que passara a maior parte da vida
gastando energia mental e emocional para manter Hitler acorrentado.
Enquanto eu me agarrasse a essa raiva, continuaria acorrentada junto
com ele, presa no passado traumatizante, tranca ada dentro da minha
dor. Perdoar signi ca elaborar um luto daquilo que aconteceu, daquilo
que não aconteceu, e abrir mão da necessidade de um outro passado.
Signi ca aceitar a vida como foi e como é.6

Poderíamos dizer que Edith passou a “escolher” o próprio passado, não


no sentido de apreciá-lo ou corroborá-lo, mas de simplesmente deixá-lo ser
como é. “É claro que não quero dizer que foi aceitável Hitler assassinar 6
milhões de pessoas”, acrescenta ela. “Só que isso aconteceu, e não quero que
esse fato destrua a vida à qual me agarrei e pela qual lutei contra tudo e
contra todos.”
Quando Bessel aconselhou que eu poderia abrir mão de Auschwitz, quis
dizer justamente que eu não precisava viver agarrado à dor e ao
ressentimento do passado, nem às crenças que havia desenvolvido numa
época em que não tinha como fazer outra coisa. Essa é uma liberdade que
vale a pena buscar.
Quando tornei a falar com Edith Eger, em 2019, ela estava terminando
de escrever A liberdade é uma escolha, seu segundo livro de re exões sobre a
cura. Fiquei comovido, pois sabia que era improvável tornar a encontrar
alguém tão intimamente próximo da história da minha própria origem.
“Edie”, falei, “ainda não consegui superar, e aqui estou eu, 76 anos depois.”
Ela riu baixinho. “Talvez você nunca supere, Gabor. Nem precisa. Só precisa
se permitir viver com isso.” Nada precisava mudar, estava me lembrando
Edith, apenas a forma como eu guardava minha história na mente.
Nenhum de nós precisa ser perfeito, nem exercitar uma compaixão de
santo, nem alcançar qualquer marco emocional ou espiritual para poder
dizer que está no caminho da cura. Tudo de que precisamos é estar
dispostos a participar de qualquer processo que queira se dar dentro de nós
para que a cura possa ocorrer naturalmente.
Qualquer um, seja qual for sua história, pode começar a ouvir a inteireza
chamando, quer com um grito ou com um sussurro, e decidir avançar na
sua direção. Com o coração como guia e a mente como uma disposta e
curiosa companheira, seguimos qualquer caminho que pareça se identi car
mais com esse chamado.
26

Quatro disposições e cinco


compaixões: alguns princípios
de cura

Tudo na natureza cresce e luta à sua maneira, estabelecendo a


própria identidade, insistindo nela a todo custo, contra
qualquer resistência.
– RAINER MARIA RILKE, Cartas a um jovem poeta

Ninguém consegue planejar a trajetória de cura de outra pessoa, porque não


é assim que a cura funciona. Não existem mapas para algo que precisa
encontrar o próprio arco individual. Podemos contudo mapear o território,
descrevê-lo, nos familiarizar com ele, nos preparar para enfrentar seus
desa os. Podemos aprender que leis naturais parecem reger a cura, e em
especial que atitudes e atributos ela desperta e aos quais reage dentro de nós.
Assim como o parto natural, a cura não pode ser determinada nem
apressada, mas certamente podemos ajudá-la a progredir. Nas palavras
eloquentes da poeta e cantora Jewel: “A natureza não se pode forçar/ Só
cultivar.” Essa tinha sido sua experiência pessoal de cura, me contou ela
numa entrevista.
As quatro disposições que se seguem não são um passo a passo nem
uma recomendação rígida. Elas representam princípios de cura que se
revelaram sinalizações úteis para muitas pessoas. Eu formulei pela primeira
vez esses princípios enquanto escrevia When the Body Says No (Quando o
corpo diz não), e desde então os revisei, condensando-os de seis em quatro.
(Num capítulo posterior, proporei duas outras disposições que harmonizam
a cura individual e social, das quais a justiça é um dos pilares centrais.) Cada
uma dessas disposições representa uma qualidade correspondente a uma
necessidade humana, com frequência atro ada ou enterrada à força cedo na
vida devido a condições emocionais ou físicas adversas, ou então, nesta
nossa cultura confusa e reprimida, simplesmente a ambientes incapazes de
dar apoio ao seu desenvolvimento. Um dos aspectos essenciais da cura é
acolher novamente em nossa vida cada uma dessas qualidades, e deixar que
elas nos transmitam seus ensinamentos.

1. AUTENTICIDADE

Sem meias palavras, a autenticidade é uma qualidade que, na nossa cultura,


mais se vende do que se pratica. Até a Coca-Cola é vendida como “a
original”. Nós nos vemos cercados pelo fenômeno em ascensão da falsa
autenticidade: alguém representando o “real” para uma plateia ou uma
câmera, mas sem convencer: as palavras podem não se encaixar na
cadência, ou pode haver oposição ou bravata demais na atitude.
É difícil isolar a autenticidade. Embora sinônimos como “genuinidade”,
“verdade”, “originalidade” e tais venham à mente, a autenticidade em si
dribla qualquer de nição exata que capte por completo a sua essência.
Assim como seu estado natural irmão, o amor, a autenticidade não é um
conceito, mas algo vivido, vivenciado, fruído. Na maioria das vezes você
sabe quando ela está presente. Já tentou explicar para alguém o que é o amor
em termos puramente intelectuais? O que vale para o amor vale também
para a autenticidade.
A busca da autenticidade está repleta de armadilhas. Para começar,
temos o paradoxo de que não se pode buscar a autenticidade, apenas
personi cá-la. Por de nição, buscar uma autoimagem idealizada é
incompatível com ser autenticamente quem se é. Precisamos começar nos
aceitando plenamente, como descobriu Anita Moorjani em seu encontro
com uma doença fatal.1 “Bastava a mais ín ma resistenciazinha do outro…
por exemplo, se eu tivesse desagradado alguém um mínimo que fosse – era
assim que eu era antes – quem cedia era eu”, me disse ela. “Hoje não tenho
medo de não gostarem de mim ou de decepcionar alguém. Não tenho medo
do que costumava considerar defeitos meus. Me dei conta de que eles são
apenas o outro lado de ser quem eu sou.”
Uma das abordagens mais diretas da autenticidade é reparar quando ela
está ausente, então lançar mão de um pouco de curiosidade e de um
ceticismo suave contra as crenças pessoais limitantes que a estão
substituindo, ou simplesmente a impedindo de aparecer.
A falta de autenticidade se revela por meio de tensão ou ansiedade,
irritabilidade ou arrependimento, depressão ou cansaço. Quando qualquer
uma dessas perturbações surgir, podemos nos indagar: será que existe
alguma orientação interna que estou contrariando, a que estou resistindo,
ignorando ou evitando? Existem verdades que estou evitando expressar, ou
mesmo imaginar, por medo de perder minha segurança ou minha noção de
pertencimento? Num encontro recente com outras pessoas, eu de alguma
forma abandonei a mim mesmo, minhas necessidades e meus valores? Que
medos, racionalizações ou narrativas conhecidas me impediram de ser eu
mesmo? Eu nem sequer sei quais são meus valores?
A capacidade crescente de admitir para si mesmo: “Ai, isso dói”, ou: “Eu
não estava falando sério quando disse o que disse, sabe?”, ou: “Tenho muito
medo de estar nessa situação”, é o impulso em direção à autenticidade se
fortalecendo. Quando prestamos atenção su ciente, oportunidades reais de
escolha começam a surgir antes de trairmos nossas verdadeiras vontades e
necessidades. Enquanto antes essa consciência só teria sido notada a
posteriori, agora talvez nos peguemos parando na hora e dizendo: “Humm,
sinto que estou prestes a sufocar esse sentimento ou pensamento… será que
é isso mesmo o que eu quero fazer? Será que existe outra alternativa?” O
surgimento de novas escolhas no lugar das dinâmicas antigas e pré-
programadas é um sinal certeiro de que nosso eu autêntico está voltando a
aparecer.

2. AÇÃO

Capacidade de ação é a capacidade de assumir livremente responsabilidade


pela nossa existência, exercitando uma “capacidade de resposta” em todas as
decisões essenciais que afetam nossa vida, no máximo grau possível. Ser
impedido de agir é uma fonte de estresse. Essa privação pode advir de
condições sociais ou políticas: pobreza, injustiça, marginalização ou o
aparente colapso do mundo à nossa volta. No caso de uma doença, essa
privação com frequência se deve a restrições internas.
Exercitar a ação tem um poder de cura imenso. A psicóloga Kelly Turner
estudou muitos casos de suposta remissão espontânea do que fora
diagnosticado como um tumor maligno em estágio terminal. “Já trabalhei
como orientadora psicológica em vários hospitais e consultórios de
oncologia”, relata ela, “e sei, por experiência própria, que os pacientes que
ouvem e seguem instruções são considerados ‘bons’, ao passo que os
pacientes ‘chatos’ são os que fazem muitas perguntas, trazem as próprias
pesquisas ou então, o pior de tudo, contestam as ordens médicas.”2 Mas são
esses últimos, constatou ela, os que encontram formas de assumir o controle
da própria cura, que têm mais probabilidade de melhorar a longo prazo. Em
retrospecto, observa Turner, todos os seus sobreviventes com remissão
radical gostariam de ter começado muito antes a serem agentes ativos do
próprio destino, em vez de pacientes dóceis nas mãos dos médicos.
Como no caso da autenticidade, o capitalismo vende uma versão fajuta
da capacidade de ação por meio de mantras de poder pessoal do tipo “seja
tudo que você conseguir ser” e “faça do seu jeito”. A escolha pessoal se torna
uma marca, sem que se dê qualquer atenção aos contextos nos quais essas
escolhas se dão. Muitas vezes a liberdade que está sendo anunciada é a
liberdade duvidosa de poder escolher entre esse ou aquele produto ou
serviço para envernizar a identidade que não conseguem nem podem nos
satisfazer. A capacidade de ação tampouco signi ca algum tipo de falsa
onipotência ou domínio total sobre os acontecimentos e circunstâncias. A
vida é muito maior do que nós, e não contribuímos para nossa própria cura
ngindo controlar aquilo que não controlamos.
Capacidade de ação signi ca ter algum poder de escolha sobre quem e
como vamos “ser” na vida, com que partes de nós mesmos nos identi camos
e quais iremos expressar. Isso com frequência começa renegociando nossa
relação com os traços de personalidade que passamos muito tempo
pensando serem idênticos a quem realmente somos, aqueles que no início
surgiram para nos manter seguros, mas que agora nos mantêm presos. Não
existe liberdade em ter obrigação de ser “bom”, ou o mais exímio ou
talentoso, ou na necessidade de agradar, entreter ou ser “interessante”.
Tampouco podemos exercer a capacidade de ação quando nos opomos
automaticamente às demandas dos outros: uma reatividade por re exo não
deixa espaço para a “capacidade de reação”, ou para aquilo que, no primeiro
capítulo, denominamos exibilidade de reação, uma capacidade que o
trauma prejudica muito.
Capacidade de ação não é nem atitude nem afeto, nem uma aceitação
cega ou uma rejeição da autoridade. É uma autoconcessão do direito de
avaliar as coisas livre e plenamente, e de escolher com base em instintos
autênticos, sem se curvar às expectativas do mundo ou aos ditames de um
condicionamento pessoal arraigado.

3. RAIVA

As pessoas muitas vezes me pedem para de nir a “raiva” saudável. Eis o que
ela não é: raiva cega, bravata, ressentimento, desprezo, maldade ou
amargura. Tudo isso vem de um acúmulo pouco saudável de emoções não
expressadas ou não integradas, que precisam ser vivenciadas e
compreendidas em vez de extravasadas. Tanto a raiva suprimida quanto a
raiva desproporcional são tóxicas.
Em sua forma natural, saudável, a raiva é um limite que serve de defesa,
uma dinâmica ativada ao percebermos uma ameaça à nossa vida ou à nossa
integridade física ou emocional. Como nosso cérebro é programado para
senti-la, não temos muito como evitá-la: é o sistema autoprotetor da RAIVA
identi cado por Jaak Panksepp. Seu funcionamento pleno é um dos traços
padrão de nossa inteireza, essencial para a sobrevivência: pense num animal
protegendo seu território ou seus lhotes. O movimento em direção à
inteireza com frequência envolve uma reintegração dessa emoção muitas
vezes banida ao nosso repertório de sentimentos disponíveis. Isso não
equivale a atiçar o ressentimento ou cultivar a rabugice, muito pelo
contrário. A raiva saudável é uma reação de momento, não um animal que
guardamos no porão, alimentando-o com vergonha ou histórias que
justi quem nossa forma de agir. Ela tem a ver com a situação e tem uma
duração limitada: ao surgir quando é necessária, cumpre sua tarefa de
afastar a ameaça e depois arrefece. Não se torna nem uma experiência a ser
temida ou odiada, nem um fator crônico de irritação.
O fato – e algumas pessoas podem precisar fazer força para se lembrar
disso – é que estamos falando de um sentimento válido e natural, que por si
só não pretende causar nenhum dano. Em sua forma pura, a raiva não tem
conteúdo moral, certo ou errado: ela simplesmente é, e seu único desejo é
um desejo nobre, manter a integridade e o equilíbrio. Se e quando ela se
transforma numa versão tóxica de si mesma, podemos tratar as histórias e
interpretações que não ajudam, os padrões de pensamento donos da
verdade ou de auto agelação que continuam a atiçá-la, sem invalidar a
emoção em si. Podemos também observar como nossa incapacidade de
dizer não serve de combustível para um ressentimento crônico que nos
deixa propensos a rompantes prejudiciais.
Muitos de nós aprendemos a reprimir nossa raiva a ponto de nem
sequer sabermos a cara que ela tem. Nesse caso, o melhor é nem idealizar
nem exagerar: imaginar uma explosão bombástica de ira ou um monólogo
moralista cheio de palavrões não vai nos ajudar. Assim como a
autenticidade, a raiva genuína não é um espetáculo. A mensagem central da
raiva é um não conciso e potente, dito com a maior ênfase que o momento
exige. Sempre que nos pegamos tolerando ou tentando encontrar
explicações para situações que repetidamente nos causam estresse,
insistindo que “não é tão ruim assim”, “eu dou conta” ou “não quero criar
caso por causa disso”, provavelmente existe uma oportunidade para treinar
dar à raiva algum espaço para se manifestar. Mesmo a admissão claramente
enunciada “eu não gosto disso” ou “não quero isso” pode ser um passo à
frente.
Pesquisas sugerem que expressar a raiva pode fazer bem para a saúde
física, por exemplo em pessoas com esclerose lateral amiotró ca (ELA) ou
bromialgia, dois distúrbios que intrigam a mentalidade médica
convencional. Já relatamos (no capítulo 2) que pacientes com ELA são
percebidos por seus médicos como extraordinariamente gentis. De modo
revelador, em outro estudo sobre a ELA, os mais “agradáveis” desses
pacientes – ou seja, aqueles menos propensos a ter contato com a raiva –
também apresentaram uma evolução mais rápida da doença e uma maior
deterioração da qualidade de vida.3 O mesmo se aplica à bromialgia, que
muitos estudos relacionaram ao trauma de infância. Um estudo de 2010
publicado no periódico European Journal of Pain concluiu que “a raiva e
uma tendência geral a inibir a raiva prognosticam mais dor na vida
cotidiana de pacientes mulheres com bromialgia. Uma intervenção
psicológica poderia focar numa expressão saudável da raiva para tentar
mitigar os sintomas de bromialgia”.4
A questão, para a maioria de nós, não é car ou não com raiva, mas
como se relacionar de maneira sadia com os sentimentos que vão e vêm
naturalmente com a maré da vida, entre os quais a raiva.

4. ACEITAÇÃO

A aceitação começa ao permitirmos às coisas serem como são, seja como


elas forem. Isso nada tem a ver com complacência ou resignação, embora às
vezes estas possam passar por aceitação – pense na expressão “fazer o quê?”,
quando a pessoa dá de ombros –, da mesma forma que um egoísmo teimoso
pode passar por autenticidade. Aceitação é, isso sim, o reconhecimento,
sempre preciso, de que neste momento as coisas não podem ser diferentes do
que são. Nós nos abstemos de rejeitar ou corroborar. Em vez de resistir à
verdade ou negar ou fantasiar uma saída, tentamos simplesmente estar com
ela. Ao fazer isso, promovemos uma relação alinhada com o momento
presente, o agora.
Aceitação signi ca também aceitar quão difícil pode ser aceitar. Pode
parecer um paradoxo, mas a verdadeira aceitação não nega nem exclui
nenhum aspecto de como as coisas são, nem mesmo nosso impulso de rejeitar
como as coisas são. Raiva, tristeza, expectativa, resistência e até ódio: dentro
de uma atitude de aceitação todos esses sentimentos têm espaço para se
expressar. Às vezes nos aceitar começa encarando o fato de não sabermos o
que estamos sentindo, ou de nossos sentimentos serem contraditórios.
Rejeitar qualquer parte da nossa experiência é uma autorrejeição
antinatural, mas que mesmo assim parece normal para muitos de nós. Você
cometeu alguns erros graves? Constata que está cheio de ódio, mágoa ou
incompreensão? Essas coisas também são candidatas à aceitação: por baixo
delas sempre existe dor. Na verdade, o ódio, a mágoa e até mesmo a
incompreensão podem ser tentativas da psique de não sentir dor ou tristeza.
Uma dor saudável – a joia com tanta frequência escondida dentro de
queixas engessadas – com frequência aguarda do lado de lá da aceitação de
como as coisas são e têm sido. Isso também pode ser difícil de aceitar, mas,
quando bloqueamos a energia da dor que deseja nos atravessar, nós só
fazemos aumentá-la. Como diz Gordon Neufeld: “Seremos salvos num
oceano de lágrimas.”
É preciso fazer uma distinção entre aceitar e tolerar. Estar com alguma
coisa e aguentar essa coisa têm muito pouco a ver um com o outro. Aceitar
energiza, porque abre espaço para as outras três disposições: permite a
entrada da raiva se esta estiver presente, aumenta nossa sensação de livre
ação e abre espaço para qualquer que possa ser nossa experiência autêntica.
Tolerar o intolerável, por sua vez, enrijece. Por exemplo, resignar-se com
pessimismo a situações como abuso ou negligência signi ca rejeitar partes
cruciais de si, bem como necessidades e valores que merecem ser
respeitados e uma integridade que deve ser protegida. Isso está muito
distante da verdadeira aceitação.
Darlene, terapeuta de família de 38 anos moradora de San Jose, na
Califórnia, só começou a aceitar que as realidades do seu casamento eram
intoleráveis ao desenvolver uma doença autoimune. Com base na criação
cristã fundamentalista que tivera, ela realmente acreditava que o dever
ditado por Deus era “aceitar” – leia-se: suportar – a infelicidade que as
marcas de trauma do próprio marido lhe impunham. “Quando o vínculo
entre meu estresse e minha doença cou claro para mim”, contou ela, “em
determinado momento eu me lembro de pensar ‘caramba, quei aqui nessa
posição de mártir que reverencia Deus, insistindo nesse casamento abusivo,
só que não vai dar: isso vai me matar!’”
O mesmo vale para a injustiça ou a opressão no nível social. Aceitar que
o que quer que esteja acontecendo no momento está acontecendo – o
simples fato em si – não signi ca aceitar que deveria ser assim. Para lidar
com racismo, pobreza ou qualquer outro mal social, precisamos primeiro
reconhecer que eles são realidades da vida nesta cultura. Eles existem, e
precisamos reconhecer nossa dor e nossa tristeza pelo fato de existirem.
Agora podemos nos perguntar como seria possível trabalhar de modo
e ciente para eliminar não só a expressão desses males, mas as raízes deles.
Podemos avançar rumo a uma raiva saudável, à capacidade de ação, à
autonomia em movimento.

AS CINCO COMPAIXÕES

O aclamado neurocirurgião James Doty5 che a o Centro de Pesquisa e


Educação em Compaixão e Altruísmo da Universidade Stanford. “Existe um
subconjunto de pessoas que acreditam que a compaixão é uma coisa mole,
que não é digna de estudo cientí co”, disse ele durante uma conversa pública
que tivemos no centro de retiro californiano 1440 Multiversity.6
Mas eu lhe garanto: os dados cientí cos de que dispomos hoje
demonstram que essas práticas de mindfulness, autocompaixão e
compaixão estão entre as mais poderosas que existem para mudar nossa
siologia e trazer benefícios para nossa própria saúde, tanto mental
quanto física, e também em termos de longevidade.

A compaixão, tanto como bálsamo quanto como salvação, não se limita


ao universo individual. Se quisermos sonhar com um mundo mais saudável,
menos fragmentado, teremos de canalizar e ampli car o poder de cura da
compaixão.
Em meu trabalho com clientes e na formação de milhares de terapeutas,
distingui cinco níveis de compaixão que se sobrepõem e se reforçam de
modo não hierárquico. Juntos eles nos incentivam, nos guiam e nos
orientam no caminho rumo à inteireza. Como escreveu o dramaturgo (e
médico) Anton Tchékhov: “É a compaixão que nos faz ultrapassar a
anestesia na direção da cura.”

1. Compaixão humana comum

A palavra compaixão vem do latim, e signi ca “sofrer junto”. Quer


vivenciemos ou não a dor do outro de modo assim tão vívido, a compaixão
de nível mais básico é a capacidade de estar na presença do sofrimento. É
também comover-se com a consciência de que alguém está passando por
di culdades; isso não é percebido como um fato neutro.
A compaixão interpessoal envolve necessariamente empatia, a
capacidade de alcançar e se identi car com os sentimentos alheios. Nossa
experiência dessa compaixão pode variar dependendo de quem estamos
observando, ou mesmo de como estamos nos sentindo em determinado
momento. Com certeza ela pode se desgastar ou diminuir, como é capaz de
atestar qualquer um que já tenha sentido a “fadiga de compaixão”
relacionada ao trabalho. Para a maioria de nós, ela volta quando obtemos o
descanso e o reabastecimento necessários. Sua ausência em qualquer um,
patente nos sociopatas e psicopatas, é sempre um sinal de ferida na alma ou,
nas palavras de A. H. Almaas, de “supressão da dor”. Quando notarmos essa
falta de empatia em nós mesmos, no lugar do autojulgamento – em si uma
falta de compaixão – podemos muito bem perguntar que dor nós ainda não
sentimos e metabolizamos totalmente. Podemos aprender muito sobre
nosso histórico de feridas emocionais observando em que situações, e em
relação a quem, nosso coração naturalmente maleável tende a endurecer e se
fechar.
Compaixão não é a mesma coisa que pena, que em algum nível está
sempre associada a uma história preexistente sobre si ou sobre o outro.
Enquanto a compaixão gera as melhores políticas sociais, a pena não
empodera ninguém. Para sentir pena de você, primeiro eu tenho que nos
colocar em papéis desiguais e ver seu infortúnio de cima, a partir de uma
posição elevada imaginária. Ainda que haja de fato no mundo uma
diferença de poder entre nós – advinda de uma hierarquia racial ou
econômica, digamos –, tratá-la como um fator permanente, essencial em
relação a nós dois não tem qualquer benefício para nenhuma das partes. A
autocompaixão, igualmente necessária, também tem seu análogo pouco
sadio: “um poço de autocomiseração” transmite a ideia da armadilha
confortável porém pantanosa de sentir uma eterna pena de si mesmo. A
autopiedade encontra certo alívio quando nos vemos como alguém
desafortunado, maltratado pelo destino. Ela atrapalha a cura ao reforçar as
histórias que nos mantêm presos a um mundo de dor, e ao desestimular a
responsabilidade por nosso próprio ponto de vista. A autocompaixão, por
sua vez, não resiste a como as coisas são nem envolve a dor em camadas de
gaze narrativa; ela simplesmente diz: “Está doendo.”

2. A compaixão da curiosidade e da compreensão

A segunda compaixão adota como seu primeiro princípio o fato de que tudo
existe por um motivo, e de que esse motivo faz diferença. Nós perguntamos,
sem julgar, por que uma pessoa ou um grupo – qualquer pessoa, qualquer
grupo – acabou cando do jeito que é e agindo do jeito que age, mesmo ou
em especial quando seu comportamento for irritante ou incompreensível.
Também poderíamos chamar isso de compaixão de contexto. Por mais
sincero que seja nosso desejo de nos ajudar ou de ajudar os outros, não
podemos fazê-lo sem considerar o sofrimento que está sendo vivenciado,
inclusive conhecendo o melhor possível sua origem. Não basta, por
exemplo, sentir-se mal pelas pessoas mergulhadas na dependência sem
tentar entender de que dor na vida delas elas foram levadas a tentar fugir, e
como essa ferida continuou aberta. Na falta de uma visão clara de contexto,
o que se fará, no melhor dos casos, é nutrir bons sentimentos inertes e
realizar intervenções bem-intencionadas, mas em última instância
ine cazes. Podemos ver essa limitação nas abordagens lamentavelmente
inadequadas dos tratamentos para dependência atualmente em voga.
A disposição para buscar o porquê antes de pular para o como é a
compaixão da curiosidade e da compreensão em ação. Embora seja
necessária em todos os casos de sofrimento crônico, seja no âmbito pessoal
ou social, ela na prática pode ser um desa o. Na sociedade atual, muitas
vezes nos contentamos com explicações fáceis, julgamentos rápidos e
soluções automáticas. Investigar com uma visão clara até encontrar as
razões sistêmicas de por que as coisas são como são exige paciência,
curiosidade e força de caráter.
O acadêmico métis Jesse istle, mencionado no capítulo 15, escreveu
um envolvente livro de memórias sobre sua infância, sua juventude, seu
mergulho no vício e no crime e, por m, sua recuperação, permeado
justamente por esse tipo de compaixão integral. “Escrevi From the Ashes
(Das cinzas) principalmente para as pessoas poderem ser testemunhas do
que aconteceu comigo e com meus irmãos na minha família”, disse Jesse.

De certa forma eu estava tentando vingar minha família e fazer as


pessoas entenderem. O mesmo vale para a história da minha nação:
estou ajudando a relembrar. Não só relembrar no sentido de recordar.
Relembrar no sentido de lembrar outra vez, de reconstruir essa história
que foi desmontada pelo Estado e esquecida.
Ao narrar os acontecimentos da própria vida, istle, e como ele os
outros escritores e artistas do Canadá originário, estão resgatando um
contexto de compaixão para os seus – tanto no sentido familiar quanto
nacional desse pronome – para poderem existir e ser vistos pelos olhos do
mundo, e também pelos próprios olhos.

3. A compaixão do reconhecimento

Lembra de Bruce, do capítulo 15? O cirurgião vascular do Oregon preso no


hospital em que trabalhava por forjar receitas para alimentar o vício em
opioides? Por mais humilhante que tenha sido essa experiência, ele a vê com
gratidão devido ao despertar que ela causou e que mudou sua vida. “Se isso
não tivesse acontecido comigo do jeito que aconteceu”, me disse ele, “eu teria
continuado a levar alegremente minha vida de indivíduo insensível,
tecnicamente competente, mas emocionalmente prejudicado, que
caracteriza tantos de nós cirurgiões.” No lugar de seus antigos modos
“autocentrados” de se relacionar, Bruce descreve “uma nova atitude”,
caracterizada por se ver nos outros. “[Posso dizer] ‘Eu sou um ser humano
que tem falhas, que passou por di culdades. Talvez você pertença a essa
mesma categoria. Vamos ver como podemos resolver juntos esse problema.’”
Bruce está personi cando o que chamo de compaixão do
reconhecimento, que nos permite perceber e aceitar que estamos todos no
mesmo barco, sacudido por atribulações e contradições parecidas. Enquanto
não reconhecermos o que temos em comum, estamos gerando mais
infortúnios para nós mesmos e para os outros: para nós mesmos porque
aumentamos a distância entre nós e nossa humanidade e nos enredamos
nos estados siológicos tensos do julgamento e da resistência; para os outros
porque disparamos a vergonha que sentem e aumentamos o isolamento
deles. Se não estiver entendendo muito bem a que estou me referindo, da
próxima vez que sentir um intenso julgamento em relação a alguém, preste
atenção no seu estado físico, nas sensações em seu peito, sua barriga e sua
garganta. Elas são agradáveis? É improvável; e elas tampouco fazem bem
para a sua saúde.
A lição não é que não deveríamos julgar, já que quem está julgando não
somos nós, mas nossa mente automática. Julgar-se por estar julgando é fazer
a roda da vergonha continuar girando. A oportunidade é investigar com
curiosidade e compaixão a própria mente e o próprio estado físico
julgadores. A cura vem quando somos capazes de ver esse mundo de
sofrimento como um espelho da nossa própria dor, e de permitir aos outros
se verem também re etidos em nós; esse reconhecimento prepara o
caminho para a reconexão.

4. A compaixão da verdade

Podemos acreditar num ato de bondade que proteja as pessoas de vivenciar


a dor. Embora isso valha para quando a dor é desnecessária e evitável, não
há compaixão alguma em proteger alguém das dores, das decepções e dos
reveses inevitáveis que a vida impõe a todos nós, da infância em diante. Essa
tentativa, além de inútil, é contraproducente, e pode até ser inautêntica,
quando o impulso aparentemente altruísta vem do nosso desconforto com
nossas próprias feridas.
Sejam quais forem as nossas intenções, não estaremos ajudando
ninguém temendo a sua dor ou nos aliando a ele para bani-la. À medida que
as pessoas trabalham para curar seus traumas, a dor inevitavelmente vai
surgir. Por isso todos nós negamos, suprimimos, reprimimos,
racionalizamos, justi camos, recordamos mal ou exercemos graus variados
de dissociação na presença da dor. Quando enfrentarmos todas as formas
como nos anestesiamos, a dor inevitavelmente vai emergir; na verdade, ela
passou um longo tempo esperando para vir à tona. É claro que o medo
dessas partes exiladas de nós mesmos também é natural. “Quando se passa
uma vida inteira fugindo de emoções”, escreve Helen Knott, “ ca parecendo
que quando elas a alcançarem vão lhe dar uma surra e deixá-la aleijada num
beco.”7 Isso não precisa acontecer. A compaixão da verdade reconhece que a
dor não é o inimigo. Na verdade, a dor tem uma compaixão inerente na
medida em que tenta nos alertar de qual é o problema. Em certo sentido,
curar-se é desaprender a ideia de que precisamos nos proteger da nossa dor.
Assim, a compaixão é um portal para outra qualidade fundamental:
coragem.
A compaixão da verdade também reconhece que, a curto prazo, a
verdade pode conduzir a mais dor. Darlene, a terapeuta de família de San
Jose, descobriu isso ao abandonar seu casamento disfuncional. “A
comunidade da minha infância não me compreende, não consegue me ver,
não entende”, disse ela. “Isso me parte o coração, porque quero ser amada e
quero ter vínculos, mas descon o de que essas pessoas nunca vão conseguir
me ver nem se conectar comigo.” O fato de alguns vínculos talvez não
sobreviverem à escolha de ser autêntico é uma das revelações mais dolorosas
que alguém pode ter; mesmo assim, existe liberdade nessa dor. Ela reverte e
redime as escolhas trágicas e obrigatórias que tivemos que fazer no começo
da vida na direção contrária. “É uma jornada em que jogamos fora a
vontade de agradar todo mundo e passamos a não ligar para o que os outros
pensam”, disse Darlene.

Tem horas em que penso: “Eu quero a aprovação dessa pessoa.” Não
posso dizer que cheguei lá, mas o processo é como uma cebola: já tirei
várias camadas, e sou cada vez mais livre na minha autenticidade. Tive
que encontrar meus próprios bolsões comunitários onde sou vista e
compreendida. Tem sido um processo doloroso, mas sei que é a coisa
certa.

5. A compaixão da possibilidade

Todos somos mais do que as personalidades condicionadas que


apresentamos ao mundo, do que as emoções suprimidas ou externadas que
colocamos para fora e do que os comportamentos que exibimos. Entender
isso permite o que chamo de compaixão da possibilidade. Não me re ro à
possibilidade no sentido hipotético de um futuro possível, como em “quem
sabe um dia”, mas a uma qualidade inerente no momento presente, viva e
sempre disponível. A possibilidade está relacionada a muitos dos maiores
dons da humanidade: o assombro, o deslumbramento, o mistério e a
imaginação: qualidades que nos permitem permanecer conectados àquilo
que não somos necessariamente capazes de provar. Cabe a nós cultivar essa
conexão, porque o dia a dia nem sempre vai nos mostrar evidências sólidas.
Esse aspecto mais profundo da compaixão reconhece que o aparentemente
impossível só parece impossível, e que aquilo de que mais necessitamos e por
que mais ansiamos, seja o que for, pode se materializar a qualquer instante.
Manter-se aberto às possibilidades não requer resultados instantâneos.
Mas saber que existe mais em cada um de nós do que se pode ver, no
sentido mais positivo possível. O mesmo se aplica ao que quer que pareça
mais real, sólido ou intratável seja em nós, seja nos outros. Numa história
famosa, Buda viu o potencial universal da humanidade surgir num
criminoso notório que o abordou com a intenção de assassiná-lo, e esse
homem se tornou seu mais humilde e gentil seguidor.
“Para ter o domínio de nós mesmos, precisamos ter alguma
autocon ança, alguma esperança de vitória”, escreveu o místico católico
omas Merton. “E para manter viva essa esperança em geral precisamos
sentir algum gosto de vitória.”8 A compaixão da possibilidade, diria eu, é
uma porta que mantemos aberta para poder ver a vitória chegando. Se não
confundíssemos a nós ou aos outros com quaisquer traços de personalidade
e comportamento visíveis na superfície, fossem eles “bons” ou “ruins”, se em
cada pessoa pudéssemos sentir o potencial de inteireza que nunca pode ser
perdido, isso seria para todos nós uma vitória que valeria a pena saborear.
27

Um presente terrível: a doença


como professora

Sobreviver ao câncer de mama rede niu quem eu sou… Antes


dele, eu tinha passado a vida inteira cuidando de todo mundo
à minha volta. Dali em diante, passei a me colocar em
primeiro lugar. Costumava ouvir vozes no fundo da minha
mente me dizendo que o que quer que eu fosse não era bom o
bastante. Agora eu nalmente z essas vozes se calarem.
– SHERYL CROW1

“Hoje tenho lindas conversas com minha artrite reumatoide… elas me dão
vontade de chorar”, ouvimos Julia, 42 anos, dizer no capítulo 5. Trata-se à
primeira vista de uma a rmação esquisita e improvável. Não seria mais
natural ver uma doença potencialmente debilitante como uma ameaça
perigosa a ser evitada, suprimida ou combatida, em vez de uma
companheira íntima e uma a rmação de vida? No entanto, nas histórias que
irei relatar neste capítulo, e em tantas outras com as quais me deparei no
meu trabalho, Julia descobriu valor e signi cado em seu encontro com a
doença. Algumas pessoas, e não poucas, vão mais além, e chamam sua
doença de presente valioso. Blessed With a Brain Tumor (Abençoado com
um tumor no cérebro) é o título do livro de Will Pye, um rapaz que
entrevistei. “Isso foi um presente do espírito, para minha alma poder ajudar
na transformação curativa e no despertar”, disse ele. O que Julia e Will
descobriram é profundamente diferente do pensamento convencional: ver a
doença em si como agente de cura, ou pelo menos uma oportunidade de
aprendizado e crescimento. Em vez de apenas se curar da doença, eles de
alguma forma aprenderam a se curar por ela.
Para que que claro: a doença não é um “presente” que eu desejaria para
ninguém. Ela não é um caminho de transformação para o qual eu orientaria
alguém se houvesse alguma forma de evitá-la. Para as mulheres e homens de
coragem cujas histórias são contadas a seguir, esse foi apenas o rumo que a
vida deles tomou. Tampouco parto do princípio de que, no lugar deles, eu
conseguisse encontrar força interior, coragem, con ança e sagacidade para
lidar com meus males como eles lidaram. Mesmo assim, se nos dispusermos
a aprender com o seu exemplo, suas provações têm muito a nos ensinar
sobre cura.
Tenhamos em mente a distinção que zemos no capítulo 25 entre sarar e
curar. Embora eu tenha testemunhado pessoas revertendo e sobrevivendo
aos mais duros prognósticos, e tenha visto isso documentado em outros
lugares também, não estamos explorando o fato de melhorar a saúde, mas
sim de alcançar a inteireza. A bênção que a doença concedeu a essas pessoas
foi a cura, não o restabelecimento. O restabelecimento nunca está garantido.
Já a cura está disponível até o momento em que damos nosso último
suspiro. Ela é o movimento em direção a uma experiência de si como algo
inteiro e vital, seja lá o que estiver acontecendo no seu corpo. A cura não é
um ponto de chegada: da mesma forma que a doença, ela é um processo.
Nas histórias a seguir, a doença por acaso foi a professora que fez as pessoas
darem início à sua jornada rumo à cura.
Nenhum de nós, esteja doente ou não, precisa esperar as coisas carem
tão duras para embarcar na própria jornada.

“O que acontece nessas conversas com sua artrite reumatoide?”, perguntei


para Julia, que desde que aliou terapia, meditação e outras formas de
trabalho com ela mesma à dose baixa de um único medicamento teve
poucas crises, sem avanço da doença por mais de uma década e com uma
melhora signi cativa em seus exames de sangue. “Quando ela fala comigo”,
respondeu Julia, “em vez de vê-la como algo que preciso superar ou o
motivo de um grande drama, eu literalmente apenas a sinto. Fico quieta com
ela, me mostro curiosa em relação ao que vem acontecendo na minha vida,
ao que eu talvez esteja suprimindo.”
Já ouvimos como, em sua abusiva família de origem, Julia tinha se
tornado uma pessoa “legal”, hiper-responsável, que reprimia os próprios
sentimentos para proteger os de todos os outros. “Eu faço minha própria
autoinvestigação”, continuou ela.

“O que você está tentando me dizer?”, penso. Isso me aconteceu tem


apenas duas semanas, quando tive uma crise no maxilar. Como sabia
que a doença só estava ali para me lembrar de permitir que alguns
sentimentos difíceis a orassem, eu a escutei. Passei uma hora deitada na
cama, respirando. Pratiquei um pouco de contemplação com atenção
plena. Não quei chateada, só curiosa. No dia seguinte, literalmente, a
crise passou. Não precisei ajustar minha medicação. Nunca preciso.

Contrariando todas as normas culturais, Julia demonstrou gratidão pela


doença. “A artrite reumatoide me salvou”, disse ela.

Foi o jeito de o meu corpo dizer: “Acorde, acorde. Você não está se
ajudando retendo tanta raiva e tanta fúria assim lá no fundo.” Raiva e
fúria não são sentimentos aos quais eu quero me agarrar, mas os vejo
sim como guias que me avisam de que algo em minha vida está em
desequilíbrio. Eu hoje tenho crises [de artrite reumatoide] uma vez por
ano, talvez. Quando uma delas vem, simplesmente aceito que ela chegou
e que eu posso fazer algo a respeito, que tenho algo a aprender com ela.

Isso é um testemunho potente do duplo poder da aceitação e da


capacidade de ação, dois dos princípios centrais e universais da cura que
examinamos no último capítulo.
Eu jamais sugeriria que a prática de investigação compassiva de Julia é a
única responsável pelo seu bem-estar, ou que a sua medicação não foi útil. O
que estamos testemunhando é a autotransformação para a qual a doença a
guiou, junto com o consequente aumento de consciência, equanimidade,
alegria, saúde e satisfação em sua vida. O que ela aprendeu com o distúrbio
de saúde também a levou a crescer pro ssionalmente. A doença lhe revelou
sua verdadeira vocação, e promoveu competências e capacidades com as
quais ela pode apoiar outras pessoas. “Ela me deu muita coisa”, disse Julia.
“Me levou a fazer mestrado e virar psicóloga. E hoje minha área, minha
especialidade é a dor crônica na doença.” Essa conversa aconteceu três anos
atrás. Julia recentemente me mandou um e-mail contando ter passado os
últimos 12 meses “sem tomar medicação nenhuma pela primeira vez em 16
anos, e com zero sintomas”.
Para meu amigo psicólogo Richard Schwartz, nada na jornada de Julia
surpreende. Dick é criador de uma forma de terapia amplamente praticada
chamada Sistemas Familiares Internos. Os IFS, na sigla em inglês, imaginam
a personalidade como um amálgama de “partes” independentes, cada qual
surgida em reação a acontecimentos da vida. A “família interna” é uma
constelação de todos esses diferentes aspectos, alguns em con ito entre si,
outros colaborativos. No caso de Julia, a raiva e a fúria provocadas pelo
abuso emocional e sexual na infância seriam vistas como partes “exiladas”:
facetas de si que ela não podia se dar ao trabalho de vivenciar quando
criança, e portanto reprimiu. A persona “legal”, hiperambiciosa e hiper-
responsável representa partes “protetoras”, adaptadas para manter o uxo de
amor e de aprovação dos outros. Em algum lugar dentro dela, ansiando por
a rmar sua liderança, está o que os IFS denominam “si”, ou aquilo que no
capítulo 7 descrevi como “noção de si advinda da própria essência singular e
genuína”.
É para isso que o corpo está nos chamando de volta por meio de
indicadores emocionais ou físicos. Sintomas e doenças são a forma que o
corpo tem de nos avisar quando nos afastamos desse centro.
“A minha experiência é que, quando determinadas partes de nós não
conseguem entrar em contato de outra forma, elas não têm muitas
alternativas, mas têm o corpo”, explicou Dick.

Existem muitos, muitos tipos diferentes de sintomas. Quando fazemos o


cliente focar no sintoma em si e se mostrar curioso a respeito, e lhe fazer
perguntas, ele em geral encontra a parte que está usando o sintoma para
transmitir alguma mensagem, para tentar se expressar de alguma forma,
porque o cliente se recusou a escutá-la de outra forma. Quando ele
começa de fato a ouvir essa parte, muitas vezes os sintomas somem, ou
então melhoram bastante.

Foi justamente esse o achado de um estudo no qual os IFS foram


aplicados a um grupo de pacientes com artrite reumatoide. À medida que as
pessoas iam escutando essas suas “partes” e seus corpos, de modo
semelhante ao que Julia aprendeu sozinha a fazer, os aspectos subjetivos da
sua experiência melhoravam, como a dor e a autocompaixão, da mesma
forma que parâmetros objetivos como marcadores sanguíneos de doença e
in amações nas articulações.2
A médica romena Bianca, também apresentada no capítulo 5, segue
tendo as próprias conversas íntimas com sua doença. Como você talvez se
lembre, ela tinha crises de esclerose múltipla ao passar por estresses no
trabalho ou na vida pessoal, ou seja, quando assumia tarefas demais ou
ignorava as próprias necessidades em qualquer uma dessas esferas. Hoje sua
condição é estável, apesar de ter aberto mão do regime de medicações que
tinham lhe dito que deveria manter pelo resto da vida. Embora seus exames
de ressonância magnética ainda revelem sinais de in amação no sistema
nervoso central, ela não progrediu em muitos anos e Bianca não tem
sintomas, exceto quando se negligencia de alguma forma. Nesses momentos
ela sente a pele anestesiada, algo que considera uma metáfora perfeita para
alguma emoção que talvez não esteja se permitindo sentir.
É aquela luz vermelha me dizendo: “Tá, pode parar. Volte a você
mesma.” E é exatamente isso que faço. Nessa hora eu paro, porque nos
últimos anos aprendi que quando sinto isso, mesmo que só um
pouquinho, eu tenho que parar. Eu relaxo. Medito. Observo como estou
me sentindo, o que aquilo está me dizendo. E na hora em que descubro o
que é – talvez alguma dor emocional, talvez uma tristeza em relação a
algo, talvez um gatilho que tenha me levado para algum lugar e de
repente eu não estou mais aqui – eu volto para mim mesma. Na hora em
que descubro o que é, nessa mesma hora o sintoma desaparece.

Bianca hoje trabalha principalmente com pacientes de esclerose


múltipla, a maioria dos quais sofre de estresse pós-traumático, e todos
apresentam a mesma tendência de compensação excessiva que antes a
movia, com foco, segundo ela, “na performance e no sucesso excessivos”.

Em 2003, Donna Zmenak, fonoaudióloga de Ontário, Canadá, recebeu o


diagnóstico de câncer no colo do útero. Isso aconteceu na esteira de um
grande estresse em sua vida, que incluiu uma disputa amarga de três anos
envolvendo os três lhos menores. O oncoginecologista sugeriu que Donna
passasse imediatamente por uma histerectomia radical, envolvendo a
retirada do útero e de alguns ligamentos, bem como a retirada de vários
nódulos na pelve e na parte superior da vagina, tudo seguido por sessões de
radiação. Ela recusou. “Eu disse para o cirurgião que não queria viver assim,
com as entranhas ocas. Ele argumentou que eu estava sendo burra e que ele
também podia tomar decisões. Ali mesmo ele me dispensou.”
O fato de o médico se afastar de uma paciente que não se dispunha a
acatar sua opinião pro ssional é compreensível. Mas diminuí-la por isso é
inaceitável. Eu me lembrei do rompante zangado do paciente recalcitrante
Kostoglotov no romance Pavilhão de cancerosos, de Aleksandr Soljenítsyn:
“Por que o senhor parte do princípio de que tem o direito de decidir por
outra pessoa? Não concorda que esse é um direito aterrorizante, e que
raramente conduz a algo bom? O senhor deveria tomar cuidado. Ninguém
tem esse direito, nem os médicos.”3
Por um ano, Donna fez as coisas do seu jeito: seguiu uma dieta
desintoxicante, tomou suplementos e fez acompanhamento com um médico
especializado em nutrição. Ao nal desse período, cou consternada ao
saber que o câncer tinha se espalhado e que, sem cirurgia, ela não teria mais
de seis meses de vida. Mais uma vez, ela recusou a cirurgia. Quando a
entrevistei, mesmo em retrospecto e mesmo conhecendo o nal feliz da
história, tive di culdade para entender a origem da sua autocon ança e
determinação. “Simplesmente havia alguma coisa dentro do meu coração
que dizia: ‘Você vai conseguir’”, respondeu ela à guisa de explicação.

Eu considerava que a minha voz interior tinha mais validade do que as


pessoas à minha volta me dando seus melhores conselhos. Eu sabia que
elas tinham as melhores intenções. Mas não sentia que aqueles eram os
melhores conselhos para mim. Como uma mulher jovem, por mais que
quisesse viver, eu não queria viver naquele corpo. Àquela altura da vida,
já sabia que, para mim, a qualidade de vida era mais importante do que
a longevidade.

Donna embarcou numa peregrinação interna e externa de mais seis


meses, que a levou a curadores espirituais com os quais aprendeu práticas
como ioga e meditação. Também consultou ex-pacientes de câncer que
tinham criado o próprio caminho. Nesse meio-tempo ela leu um livro,
Profound Healing (Cura profunda), de Cheryl Can eld, outra sobrevivente
de câncer que tinha recusado o tratamento convencional e ultrapassado em
muito um prognóstico de morte apavorante. Ela se encontrou com Can eld,
hoje hipnoterapeuta e consultora de bem-estar na Califórnia, e passou um
tempo hospedada com ela aprendendo, como resume, os valores “da
aceitação, da autonomia e da autenticidade. Ela me ensinou tudo isso, e me
ensinou a morrer bem. Fui para casa tão diferente que na verdade nunca
mais voltei ao meu antigo modo de ser”.
Mais do que tudo, Donna tomou uma decisão fundamental sobre como
viver durante o tempo de vida que lhe restava: sendo verdadeira com ela
mesma, ainda que as suas intuições desa assem a opinião dos médicos,
parentes e amigos. “Se eu tenho só seis meses para viver, meus lhos vão me
conhecer, conhecer meu eu verdadeiro, quem eu sou”, ela se lembra de ter
pensado. “Isso sempre me faz chorar. Eu me recordo desse momento. Falei:
‘Sabe o que mais? Chega. Eu vou aceitar. Vou ser eu mesma e seguir sendo
feliz.’ E eu estava falando sério. Simplesmente pus esse limite e nunca voltei
atrás.” Percebendo o próprio exagero, ela rapidamente se corrigiu: “Eu sou
humana e vivo caindo em armadilhas. Mas saio depressa.”
Seis meses depois do começo de sua odisseia psicoemocional-espiritual,
Donna ouviu o mesmo prognóstico de outro ginecologista, comunicado em
termos ainda mais alarmantes. Sem cirurgia, disse ele, sua morte era
inevitável, iminente, e seria “muito feia e desagradável”. “Dessa vez eu soube
que o câncer tinha ido embora”, recorda ela.

Falei para ele: “Eu acho que não tenho mais câncer; na verdade acho que
gostaria de ter outro lho…” E ele olhou para o meu companheiro e
disse: “Não só ela nunca vai ter um lho, como tampouco vai sobreviver
a ter um lho ou sequer viver tempo su ciente para ter um. Como
companheiro dela, você precisa convencê-la a fazer essa cirurgia agora
mesmo, porque a situação não está nada boa.” Ele então se virou de volta
para mim. “Você precisa pensar nas pessoas à sua volta. Pense nos seus
lhos. Você precisa pensar no seu companheiro.”

A ironia daquele médico instando-a a “pensar nas pessoas à sua volta”,


depois de anos de se autossuprimir para agradar aos outros, o que ajudara a
causar sua doença, não passou despercebida para Donna.
Pouco tempo depois, várias biópsias e exames de imagens não revelaram
nenhum sinal de câncer no útero, abdome ou linfonodos de Donna, exames
aos quais ela se submetera com total con ança de ter vencido o tumor, mas
também concordando em fazer a cirurgia caso contrário. Ela voltou a se
consultar com o cirurgião para conversar sobre os resultados.

Entrei no consultório, me sentei na cadeira com um sorriso e ele


perguntou: “Por que não está na maca?” Estava zangado. Eu falei: “Não
está sabendo? Não tem nada lá.” Ele disse: “Você não está curada. Você
tem câncer, sempre vai ter câncer. O câncer volta, e precisamos fazer a
cirurgia agora. Você não tem como se curar sozinha. Isso é impossível.
Não se iluda. Você não está curada.” Eu simplesmente me levantei e
disse: “Quem não vai voltar sou eu.” E pronto, fui embora. Nunca mais o
vi.

Desde então, Donna vem mandando para esse cirurgião ocasionais


cartões de Natal, inclusive após o parto do quinto lho, hoje com 12 anos –
outro feito que tinham lhe garantido ser impossível devido à instabilidade
da sua abertura uterina depois da biópsia em cone. “No primeiro cartão de
Natal eu dizia: ‘Por favor, não diga a ninguém que não é possível. Porque eu
continuo viva, e continuo aqui, e foi isso que eu z.’” Ela nunca teve resposta.
Entrei em contato com Nancy Abrams, médica de família de Donna, que
con rmou todos os detalhes do histórico médico. “Eu testemunhei tudo.
Tenho os registros”, disse Abrams.

Ela fez tudo isso, e de repente não tinha mais câncer. O que realmente
acho esquisito é: por que esses oncologistas não querem saber como
essas pessoas se curam? Ela conseguiu. E depois disso ainda teve outro
lho, o quinto, por parto vaginal, mesmo com uma contraindicação
enorme por causa da biópsia em cone. O colo do útero dela
provavelmente nem suportaria a gestação, mas suportou, e ninguém diz:
“Uau, como foi que isso aconteceu com ela?”

Essa falta de curiosidade é a norma. Quando falei com a psicóloga


oncológica Kelly Turner, cujo livro Radical Remission (Remissão radical)
descreve muitos pacientes de câncer que se recuperaram apesar dos mais
duros prognósticos, perguntei se as pessoas que ela havia estudado, aquelas
cuja evolução contrariava as previsões sombrias dos pro ssionais de saúde,
tinham encontrado nos seus cuidadores médicos pro ssionais abertos a
escutar suas histórias de cura. “Na maior parte das vezes a triste resposta é
não”, respondeu Turner.

A imensa maioria das pessoas que pesquisei me disse com gratidão:


“Você é a primeira médica… a primeira pessoa com algum tipo de
diploma da área de saúde a demonstrar qualquer interesse no motivo de
eu ter cado bom(boa)… Tentei contar para meu(minha) oncologista
tudo que estava fazendo, mas ele(ela) não quis saber.” Ouço isso o tempo
todo, e realmente me parte o coração.

A mesma indiferença foi observada por Jeffrey Rediger,4 que nas


pesquisas para seu livro A ciência revolucionária por trás da cura espontânea
documentou mais de 100 casos de “remissão espontânea”. “O melhor que os
médicos dizem é: ‘Continue, está dando certo’”, comentou ele. “Mas eles
nunca se mostram curiosos a respeito de como os pacientes zeram isso.”
Posso entender parte da reticência desses médicos. Mesmo para alguém
como eu, versado na ciência da unidade mente-corpo e que valoriza muito o
poder do espírito humano – único motivo pelo qual histórias como a de
Donna fazem sentido5 –, é um desa o imaginar uma saga tão fora das
expectativas e experiências médicas habituais. Seu exemplo é um que
poucos poderiam imitar; na verdade, ninguém deveria fazê-lo sem os
recursos internos e uma inclinação genuína para tal. O ensinamento que a
trajetória dela nos traz não é que todo mundo deveria seguir suas escolhas
radicais, mas que é possível adquirir a capacidade de aceitar a vida como ela
de fato é, a autenticidade de buscar a própria verdade em todas as situações
e a capacidade de ação para escolher nossa reação ao que quer que ocorra.
Para nalizar as quatro disposições, temos a raiva saudável, que se
manifestou na declaração de Donna: “Quem não vai voltar sou eu.” Sua
jornada para dentro de si mesma não terminou. “Eu me esforço todos os
dias para manter minha autenticidade”, disse ela.

Outra pessoa com uma determinação – ou autodeterminação – singular que


conheci, Erica Harris, passou por mais tratamentos médicos em uma década
do que a maioria de nós poderia imaginar para várias vidas, entre eles uma
quimioterapia agressiva, um duplo transplante de pulmão, uma internação
prolongada devido a uma infecção crônica e várias remoções de câncer de
pele, isso para listar só as mais relevantes. Sem intervenções médicas
inteligentes ela teria morrido há muito tempo, e também não poderia
continuar viva hoje sem elas. Os remédios potentes que garantem sua
sobrevivência cobram um preço alto. “Perdi a visão do olho direito”, me
escreveu ela recentemente,

vivo tendo cânceres de pele, perdi metade do lábio inferior, tenho


osteoporose, lesão renal crônica, sou imunossuprimida para a vida
inteira, parei de menstruar aos 35 anos [ela agora tem 44], tive três
AVCs, preciso de infusões constantes de imunoglobulina e de
transfusões de sangue. Cheguei até a perder o que antes era um
casamento feliz por causa do que o câncer causou, mas mesmo assim
sou mais feliz do que jamais fui e do que jamais poderia ter imaginado
ser! Sou mesmo muito abençoada!

Apesar de tudo de que teve de abrir mão em termos de saúde física, ela
não abriu mão de nada em matéria de exuberância e alegria de viver. Na
verdade, essas qualidades ganharam corpo e se tornaram mais fortes, além
de muito menos condicionais.
Quiropraxista esportiva talentosa e muito requisitada, antes um retrato
da saúde, Erica nunca se poupava quando o assunto era trabalho. “Eu era
apaixonada por meus clientes atletas”, me disse ela. “Adorava ajudar os
outros. Digamos que eles tivessem treinado um tempão, aí se lesionassem
poucos meses antes de uma prova. Minha recompensa interna era ver a
alegria deles ao cruzar a linha de chegada. Eu era meio viciada em trabalho,
por assim dizer…”
“Você provavelmente poderia tirar o ‘meio’”, interrompi.
“É”, concordou ela.

Minha clínica cresceu muito, muito depressa. Quando os horários


normais cavam lotados, eu tinha muita di culdade em deixar alguém
sentindo dor. Comecei a chegar muito cedo e car até muito, muito
tarde. As pessoas começaram a reparar que eu vivia doente. Tinha
amigdalite no mínimo uma vez por mês. Tinha uma hérnia de disco
horrível na lombar que impactava minha perna direita, e mesmo assim
ia trabalhar. Eu mancava enquanto tentava ajudar os outros a deixarem
de sentir dor, o tempo inteiro ignorando a minha dor. Adorava car
ocupada.

Sua personalidade podia amar o excesso de trabalho, mas seu corpo não.
Aos 35 anos, num passeio com os dois lhos, Erica recebeu o chocante
diagnóstico. “Ali estava eu”, recorda ela,

mãe de dois bebês, um dos quais ainda amamentava, visitando o


aquário. Tinha feito um exame de sangue bem de rotina naquele dia,
mas aí o laboratório ligou num tom de urgência. “É Erica Harris quem
está falando? A senhora precisa ir ao pronto-socorro mais próximo
agora mesmo.” Acabei recebendo o diagnóstico de uma forma muito
agressiva de LMA, leucemia mieloide aguda, um tipo raro de leucemia
que em geral só acomete homens em idade avançada.

Encorajada pela alta taxa de bons resultados, ela fez duas rodadas de
quimioterapia. Nenhuma das duas surtiu efeito.
Em 2012, Erica foi aconselhada a dar entrada numa unidade de cuidados
paliativos, onde soube que transfusões diárias poderiam mantê-la viva por
não mais de dois meses. Não querendo aceitar esse diagnóstico sombrio, ela
lutou para car em casa com os lhos pequenos, e ia ao hospital todos os
dias receber as transfusões. Continuou também a buscar cura emocional e a
seguir seu caminho espiritual até que, pouco antes do m daqueles dois
meses, uma remissão improvável surpreendeu tanto ela mesma quanto seus
médicos. “Foi bem difícil”, disse ela. “Não sei muito bem por que estou aqui
hoje, mas realmente acredito que foi por ter me transformado de dentro
para fora, me permitindo ser verdadeira em relação a tudo que estava
acontecendo no presente, mas também no passado. E me permitindo
expressar tudo isso.”
Assim como Donna Zmenak, Erica praticou ioga, meditação e seguiu
uma alimentação nutritiva. Mas a maior mudança foi que, pela primeira vez
na vida, ela se permitiu sentir toda a gama das próprias emoções,
libertando-se de um padrão de repressão de toda uma vida. Ela se entregou
por inteiro ao seu luto e derramou lágrimas de desespero. “Uma vez, na
minha primeira internação, vi meus lhos voltarem para casa com a babá”,
recordou ela. “Queria ser eu voltando para casa com aqueles bebês. Queria
ser eu preparando o jantar. Queria ser eu colocando-os para dormir. Dei as
costas para aquela janela e desabei no chão com as costas apoiadas na
parede. Abracei os joelhos e chorei. Chorei, chorei. Passei dias chorando.”
Num sinal revelador da cultura médica reinante, a psiquiatra do setor foi
enviada para avaliá-la. “Ela entrou”, disse Erica, sorrindo ao contar isso,

e literalmente estava usando um capote orido com estampa havaiana, e


disse: “Estou indo para o Havaí, mas posso lhe receitar alguma coisa
para tratar essa depressão, qualquer coisa de que você precisar. Soube
que você andou chorando.” Aquilo de que eu realmente precisava era só
espaço para vivenciar todas as minhas emoções, sem ngir… pela
primeira vez, sem ngir. Precisava sentir toda aquela dor.

Apesar de seus problemas de saúde recorrentes, quase 10 anos depois do


prognóstico terminal de apenas 60 dias de vida, Erica é uma mulher
vibrante que transborda energia, cria os dois lhos que acompanhou
triunfalmente até a adolescência e inspira e ajuda ativamente outras pessoas
em suas trajetórias de cura. Ela e eu temos planos de trabalhar juntos algum
dia. Vejo no caso dela os milagres da medicina unidos ao poder da
autotransformação para alcançar resultados que nenhuma das duas teria
conseguido sem a outra.
O psiquiatra de Harvard Jeffrey Rediger, que já explorou muitos casos de
recuperação “milagrosa” de tumores terminais ou outras doenças fatais, me
disse que uma transformação de identidade como a que Donna e Erica
tiveram lhe parecia ser a chave. “É um conceito nebuloso”, admitiu ele, “mas
em última instância é aí que podemos encontrar a cura. Essas pessoas que
melhoram realmente modi cam suas crenças em relação a si mesmas ou em
relação ao Universo.” Também pude observar isso, independentemente de
qual for a doença: câncer, doença autoimune ou transtornos neurológicos
como esclerose múltipla ou ELA.6 Algumas pessoas, como Donna Zmenak,
recusaram o tratamento médico; outras, como Will Pye e Erica Harris, não
teriam sobrevivido sem ele. Em todos os casos, elas realizaram,
voluntariamente e com uma coragem incansável, a dolorosa, mas em última
instância empolgante, remoção de uma segunda pele: a mistura de traços
adaptativos de abnegação que cataloguei no capítulo 7, sobre apego versus
autenticidade, e agrupados também sob a expressão “personalidade social”
de Erich Fromm. O papel da doença como professora consiste em como ela
leva as pessoas a questionarem tudo que pensavam e sentiam em relação a si
mesmas, e a manterem somente aquilo que favorece a sua inteireza.
Em sua própria documentação de uma cura “milagrosa”, Kelly Turner
encontrou temas parecidos. A importância da reorientação da identidade
em direção à autenticidade é um de seus achados fundamentais. “Todo
mundo que entrevistei disse que na verdade não trocaria essa experiência
por nada”, disse ela.

Porque a pessoa que eles são agora é muito mais completa. Eles se
sentem inteiros, mais felizes, mais gratos, tanto que não quereriam voltar
a ser quem eram antes dessa di culdade. Muitos – quase todos, eu
ousaria dizer – me dizem ser agora pessoas totalmente diferentes do que
eram no início da sua jornada.

Como relatei anteriormente, Turner disse também que muitos de seus


entrevistados gostariam de ter aprendido essas mesmas lições décadas antes
de adoecerem. O desa o que todos enfrentamos é: podemos adquirir esse
aprendizado antes de a vida nos forçar a fazê-lo? Precisamos esperar para
“sofrer rumo à verdade”?
“Cada instante foi precioso”, recordou Erica.

Precisei entrar bem fundo em mim mesma naquela época e re etir sobre
todas as camadas, de um jeito que nunca tinha feito na vida. Finalmente
entendi como meu corpo tinha passado meu tempo inteiro como
quiropraxista esportiva gritando não, e como eu o tinha ignorado. A
doença foi minha maior professora.

Intrigado por seu conselho a Donna Zmenak, entrei em contato com Cheryl
Can eld, para quem agora o câncer de útero que tinham lhe garantido ser
terminal cou muitas décadas para trás. Fiquei surpreso ao saber que ela
havia aceitado a possibilidade de sucumbir à doença. “Quando comecei a
escrever Profound Healing (Cura profunda)”, contou ela,

o título era para ser Dying Well (Como morrer bem), porque parti do
princípio de que o que os médicos estavam me dizendo podia não ser
necessariamente verdade, mas era provável que fosse. A probabilidade,
ainda que não a certeza, era de que eu fosse morrer daquele câncer.
Comecei o livro porque, aos 41 anos, não tinha a menor ideia de como
encarar essa jornada totalmente inesperada, que signi cava abandonar
antes da hora meu corpo, minha família e todos que eu amava. Queria
criar um último projeto, e escrever algo que me ajudasse a entender
como seguir aquele caminho e, quem sabe, ajudasse também outras
pessoas que viessem depois de mim. O título acabou tendo que ser
alterado. Aquilo de que precisamos para morrer bem é a mesma coisa de
que precisamos para viver bem. Foi isso que a doença me ensinou.

Também conversei com Will Pye sobre a experiência que o levara a


escrever Blessed With a Brain Tumor (Abençoado com um tumor no
cérebro). Esse homem alto e atlético tinha recebido, aos 31 anos, o
diagnóstico de um tumor maligno exatamente no ponto em que, aos 21 e
deprimido, costumava se imaginar apontando uma arma, numa fantasia
visual de suicídio. Seguindo sua orientação interna e com a anuência do seu
neurocirurgião, ele atrasou a cirurgia por dois anos. Praticou o que o jargão
médico denomina “observar com atenção” ao mesmo tempo que se dedicava
a práticas intensas de cura, até que o início das convulsões alertou para o
crescimento do tumor. O tumor foi então removido numa cirurgia seguida
por radioterapia. Pye hoje acabou de ultrapassar o limite do período de vida
previsto para o seu tipo de câncer cerebral.7 Está há sete anos sem tomar os
anticonvulsivantes, apesar de terem lhe dito que precisaria deles pelo resto
da vida. Pye não tem como saber o que vai lhe acontecer, mas mesmo assim,
como a rma o título de seu livro, insiste que a doença foi uma bênção. O
diagnóstico, a rmou ele, foi o que fez a cha cair.
“E que cha foi essa que caiu?”, perguntei.

Sobre a natureza nita da vida, para começar. A doença trouxe a verdade


sobre a minha mortalidade para uma dimensão mais concreta, de mais
fácil compreensão. Embora todos nós a conheçamos de um ponto de
vista intelectual, funcionamos psicologicamente na negação e na
evitação da realidade da morte. Depois do diagnóstico, eu conversava
com as pessoas consciente de que aquela poderia ser a última conversa
que teria com elas. E isso cria um grau extraordinário de presença,
escuta e cuidado mútuo. Então, sim, foi uma transformação total.
Diariamente, ao sair da cama, faço uma prática de reconhecer
plenamente o presente que é este momento, este dia, este corpo, esta
respiração que está acontecendo agora.
Nossa cultura é inteiramente avessa à morte, e até mesmo ao
envelhecimento; pense em todos os produtos destinados a apagar ou
“reverter” os sinais de futuras enfermidades, os lembretes físicos da nitude
da vida. Eis, portanto, outra ideia de como na cura é preciso nadar contra a
corrente: ela envolve necessariamente a aceitação total da inevitabilidade da
morte, e a determinação de vivenciar todos os dias e todos os instantes que
nos conduzem à nossa partida terrena.
Alguns anos atrás, organizei um retiro para pessoas com todo tipo de
problema de saúde, desde questões mentais como depressão até
dependências e males físicos. Um dos participantes era um homem de 64
anos que chamarei de Sam, e estava num estágio avançado da ELA, a
misteriosa, paralisante e fatal degeneração do sistema nervoso. A forma da
doença dele era o chamado tipo bulbar, ou seja, não afetava primeiro pernas
e braços, mas os músculos da fala, da mastigação e da deglutição. “Eu vim…
para cá”, disse ele ao grupo com uma voz rouca, fraca e pausada, “porque
quero… viver.” Quando ele se descreveu, sua persona anterior à doença
correspondia ao que vi em todas as pessoas afetadas pela ELA: o que já
chamamos de autossu ciência superautônoma, repressão de sentimentos e
uma recusa quase fóbica de pedir ajuda ou apoio emocional a qualquer um.
Após uma semana de intensa exploração pessoal e de um
compartilhamento íntimo com os outros participantes de uma forma que ele
nunca foi capaz de fazer, além de algumas reveladoras sessões com
psicodélicos, Sam disse ter um anúncio a fazer. “Quando falei no começo
que queria viver”, disse ele, com uma voz perceptivelmente mais forte e com
mais alcance,

eu quis dizer viver mais tempo. Agora não penso mais assim. Continuo
querendo viver, mas agora sei que “viver” signi ca não a cronologia, mas
sim a qualidade. Quero de fato estar na minha vida a cada instante,
vivenciar plenamente o que tiver pela frente, de um jeito que nunca z
antes.
Ele morreu um ano e meio depois, desfecho alinhado com seu
prognóstico. Nos meses subsequentes ao retiro, Sam – e, após a morte dele,
sua família – me mandou mensagens de gratidão e celebração da vitalidade,
do amor e da alegria que conseguira manifestar em si mesmo e nas pessoas
mais próximas em sua última fase da vida.
A forma de morrer de Sam, medida não em números num calendário
mas nos aspectos de si que ele conseguiu resgatar, foi a mais próxima que já
vi do que se denomina “boa morte”. Ele não cou livre da doença, mas
conseguiu se curar. Conseguiu harmonizar partes da própria essência que,
sem o convite não solicitado que a doença lhe apresentou, talvez tivessem
continuado fragmentadas e discordantes. Encontrou também um jeito de
extrair um signi cado positivo daquilo que poderia com a mesma facilidade
ter considerado cruel, destruidor ou sem sentido, como muitos consideram
a morte em decorrência de uma doença “prematura”. Como a
correspondência posterior com sua família deixou claro, o signi cado que
ele havia criado perdurou até bem depois da sua existência física,
irradiando-se para a vida dos seus familiares.
“A jornada”, disse Will Pye, “consiste em encontrar a dádiva no desa o.
Isso me levou a praticar e cultivar a capacidade de escolher conscientemente
o signi cado de tudo que está acontecendo.”
Esse desa o, e as dádivas que podem advir de enfrentá-lo, estão
pacientemente à espera de cada um de nós no “que está acontecendo” de
nossa vida aqui e agora. A escolha que temos é aceitá-lo ou esperar uma
ocasião em que esse aprendizado se mostre mais urgente.
28

Antes de o corpo dizer não:


primeiros passos no retorno a
si

A cura não tem outra escolha senão se expandir quando somos


verdadeiros com nós mesmos e com os outros.
– HELEN KNOTT, In My Own Moccasins

Vou dizer outra vez: a doença não é o instrutor de autenticidade que eu


desejaria a nenhum de nós. Calamidades físicas e mentais extremas são
apenas os últimos e mais altos chamados de partes essenciais de nós
mesmos com as quais perdemos contato. Para tornar menos necessários
esses sinais drásticos, podemos melhorar nossa escuta e prestar atenção nos
alertas mais sutis que a vida infalivelmente nos dá antes de eles virarem uma
gritaria. Este capítulo propõe algumas práticas simples, mas poderosas,
compiladas a partir do meu trabalho com milhares de pessoas, que podem
retreinar a mente e o corpo de modo a torná-los mais sensíveis e reativos a
esses chamados internos.
Ao fazer esses exercícios, pode ser útil ter em mente alguns princípios
fundamentais e, a essa altura, já conhecidos e debatidos ao longo deste livro:
a. Sua personalidade não é você; você não é sua personalidade. O mistério
de quem realmente somos jaz em algum lugar por trás do véu da
personalidade. Isso não torna a personalidade “falsa”, não mais do que uma
roupa é verdadeira ou falsa. Ao contrário da roupa, porém, “tirar” a
personalidade, ou quem sabe apenas algumas partes dela, parece estar fora
de cogitação porque a personalidade se parece com quem somos. Não se trata
de devermos (ou podermos) de repente tirar tudo em nome da
autenticidade. Mas nos lembrarmos de que nossa personalidade não nos
de ne. Para citar uma música famosa: nós não nascemos assim.1

b. A personalidade é uma adaptação. Aquilo que denominamos


personalidade é muitas vezes uma mistura de traços genuínos com estilos de
imitação condicionados, incluindo alguns que não re etem de forma
alguma nosso verdadeiro eu, mas, pelo contrário, a sua perda. Cada
personalidade se molda de acordo com a forma como o temperamento
especí co de cada um interage com a família, a comunidade e a cultura. Ela
pode não expressar nossas verdadeiras necessidades, nossos anseios mais
profundos e nossa natureza mais genuína, mas sim nossa tentativa de
compensar o fato de estarmos alijados dessas coisas. “Nós sofremos de um
caso de identidade equivocada. Nossa cultura nos vendeu uma farsa sobre
quem de fato somos”, escreve o terapeuta de casal e de família Dick
Schwartz.2
O objetivo de um trabalho de cura não é eliminar totalmente a
personalidade, mas nos libertar da sua programação automática, permitindo
acessar o que há por baixo e nos reconectar ao que existe de essencial em
nós. “Essa liberação”, a rma A. H. Almaas, “na verdade nada mais é do que a
personalidade se libertando no momento presente; a personalidade solta a
tensão, e se permite simplesmente relaxar.”3 Nossos pontos fortes genuínos
permanecem, com mais espaço do que nunca para se expandir e aparecer.

c. Nosso corpo guarda de fato as marcas.4> Mesmo que possa estar


recoberto por muitas camadas de crenças limitantes em relação a si e
comportamentos condicionados, o eu autêntico nunca é eliminado. Ele
continua a se comunicar com a gente por meio do corpo. Podemos aprender
a prestar atenção nas mensagens que o corpo está mandando, aprendendo a
falar seu idioma.

d. A personalidade, e a perda da nossa natureza essencial, não é pessoal. A


desconexão do próprio eu é endêmica em nossa cultura materialista,
incentivada e depois explorada em muitas esferas, desde a econômica até a
cultural e a política. Historicamente falando, claro, a busca do verdadeiro eu
sob as camadas limitadoras da mente precede em muito a sociedade
moderna. Cada um de nós, portanto, embora responsável pela própria
jornada de cura e fadado a lidar com as particularidades da própria
personalidade, também pode tirar coragem de saber que essa é uma
dinâmica universal: uma história tão antiga quanto o tempo, para citar a
música-tema de A bela e a fera, amado musical da Disney sobre uma
transformação improvável e a recuperação da própria essência.

O importante na aplicação das práticas que se seguem não é nem tanto a


letra da lei, mas a energia do tentar. Essa energia pode ser resumida no
nome de uma metodologia desenvolvida por mim: Investigação Compassiva
(IC). A Investigação Compassiva é tanto uma formação pro ssional que
ministrei a milhares de terapeutas, em mais de 80 países, quanto uma
prática de autorre exão individual conforme delineada a seguir. Para sua
edi cação (e ocasional consternação), os pro ssionais que participam do
curso de IC passam os três primeiros meses trabalhando nas próprias
questões, não nas dos outros. Terapeuta, cura a ti mesmo.
Analisemos primeiro a parte inicial do nome: o que signi ca investigar?
Se for genuína, uma investigação é uma exploração aberta. Ela demanda, em
primeiríssimo lugar, humildade: admitir, como Sócrates, que já não sabemos
a resposta ou, melhor ainda, admitir a possibilidade muito real de ainda não
termos esbarrado com as perguntas certas. Sendo assim, nas recomendações
a seguir, meu conselho é que é melhor suspender, pelo menos por ora,
quaisquer que sejam suas crenças em relação a si. Nessa era de psicologia
pop super cial, o autoconhecimento consiste na maioria das vezes na
personalidade especializada no tema de si mesma, não no tipo de
conhecimento mais profundo e mais íntimo capaz de iluminar os recantos
mais escuros da nossa história e de nos ajudar a ver com mais clareza nossas
di culdades atuais. É isso que estamos investigando aqui. Estamos
embarcando numa jornada para nos conhecer, não apenas para saber coisas
a nosso respeito.
A outra parte do nome da metodologia é compaixão. Investigar
compassivamente requer estar aberto, ter paciência e generosidade. Pense
em como você trataria um amigo ou pessoa amada em di culdade quando
ela mais estivesse precisando, na margem que lhe daria para se sentir
incompreendida, perplexa ou frustrada. Ser compassivo com você mesmo
não é diferente, só que é muitas vezes mais difícil de praticar. Na compaixão
não existe exortação alguma para sermos diferentes do que somos, só um
convite para investigar o quê, o como e o porquê das crenças e dos
comportamentos que já não nos fazem bem. Eu nunca diria a ninguém que
é preciso ter compaixão com você mesmo. A compaixão não aceita nenhum
“dever”. De toda forma, nossas partes protegidas e isoladas não reagem
muito bem a esse tipo de demanda; e por que reagiriam? É muito mais gentil
e e ciente focar a atenção na falta de autocompaixão, reparar nela e
demonstrar curiosidade em relação a como ela se apresenta na nossa vida.
Uma vez vista, ela se suaviza, permitindo que suas origens distantes e seus
impactos atuais sejam investigados.
Não há nada de sentimentaloide aqui. Compaixão é diferente de nutrir
sentimentos de ternura por alguém, incluindo a própria pessoa. É uma
atitude, não um sentimento. Ao contrário dos sentimentos, que vêm e vão
quando querem, as atitudes podem ser convidadas, geradas e cultivadas na
presença de qualquer estado emocional. A compaixão é uma atitude de não
julgamento inexaurível em relação a tudo que se percebe. Quando o
autojulgamento surge, como inevitavelmente acontece, podemos nos manter
curiosos em relação à sua origem sem acreditar no seu conteúdo.
Tudo é passível de investigação, mesmo as experiências intensamente
negativas como o ódio por si mesmo.5 Em vez de nos repreender por odiar a
nós mesmos, podemos ser curiosos em relação a por que esse ódio surgiu lá
atrás. Uma pergunta nesse sentido é muitas vezes reveladora. Quando o lado
belo que existe em nós consegue aceitar compassivamente o lado fera – e
deixar que ele seja “nosso convidado”, por assim dizer –, esse lado fera pode
se transformar num companheiro atraente e amoroso; no pior dos casos,
pode se acalmar e parar de nos atormentar tanto.

ANTES DE O CORPO DIZER NÃO: UM EXERCÍCIO DE


AUTOINVESTIGAÇÃO

Eis aqui um exercício, a ser feito uma vez por dia ou uma vez por semana,
ou com qualquer frequência que lhe pareça correta. Ele exige um
compromisso temporal, algo que, se eu puder servir de exemplo, talvez seja
difícil de conseguir. Se o comprometimento em fazer uma autoinvestigação
desse tipo por uns poucos minutos diários parecer impossível, vale a pena
observar isso também, sem julgamento, e perguntar de onde vem essa
relutância.
Sem julgamento não signi ca sem vigilância. Nossa personalidade é
especialista em lançar mão da racionalização quando sente que está
tentando soltar ou mesmo questionar alguma crença. Um compromisso com
a cura signi ca estar atento a esses truques, por assim dizer. A desculpa
padrão é também a mais esfarrapada: “Não tenho tempo.” A maioria de nós,
até os atarefados, tem tempo de sobra; o que nos falta é um conceito forte de
intenção em relação ao seu uso. Atividades automáticas, sejam elas nobres
ou frívolas, preenchem rapidamente o espaço, e de repente o tempo “acaba”.
Não ajudamos ao protestar: “Ah, eu quero muito fazer esse trabalho pessoal,
mas é que…”, para depois insistir em todos os motivos que tornam isso
impossível. Se isso lhe soa familiar, pergunte-se, empoderado pela
curiosidade compassiva, que desconforto pode haver aqui e agora no ato de
se dedicar a um trabalho pessoal. Talvez seja porque estabelecer uma forte
intenção deixe você vulnerável à possibilidade de se decepcionar, ou ter que
confrontar ou ser empurrado para fora das zonas de conforto conhecidas.
Esses riscos são reais. Seja como for, não ajuda tentar se forçar pela coação,
pelo convencimento ou pela vergonha a realizar qualquer prática, nem
mesmo aquelas cujo objetivo é ajudá-lo.
O melhor é fazer esse exercício por escrito, num lugar tranquilo em que
você possa car sozinho com você mesmo e com a sua experiência, sem
distrações. O melhor é escrever por extenso as respostas, porque ao fazer
isso você estará mobilizando a mente de modo mais ativo e profundo do que
se apenas observasse mentalmente as próprias ideias ou percepções; além do
mais, você talvez queira registrar a própria evolução. Escrever à mão em vez
de digitar ajuda a criar uma sensação de conexão com você mesmo, ao
mesmo tempo que mantém afastadas as distrações digitais.
As pessoas já me disseram muitas vezes que esse exercício ajudou a
mudar a vida delas. O segredo é fazê-lo com regularidade na frequência que
você escolher, mas no mínimo uma vez por semana.

Pergunta no 1: Nas áreas importantes da minha vida, para o que não


estou dizendo não?

Em outras palavras: onde, no dia ou na semana, senti dentro de mim um


“não” que queria ser expressado, mas que sufoquei dizendo “sim” (ou não
dizendo nada) quando o que queria ser ouvido era “não”?
Seja atual e especí co. Examine de verdade, e lembre que estamos
falando não de lapsos ocasionais, mas de padrões crônicos. Todos tomamos
decisões conscientes e sinceras em prol dos outros e em detrimento da nossa
própria conveniência. Pais e mães, por necessidade, agem assim o tempo
todo: a maioria dos lhos nunca vai saber quantas noites em claro sua mãe
ou seu pai passaram cuidando deles quando estavam doentes. Ou, se um
amigo estiver passando por sérias di culdades, decidir ir encontrá-lo em vez
de seguir nosso desejo de car em casa descansando pode ser uma escolha
autêntica. De forma alguma a investigação compassiva busca estigmatizar o
altruísmo genuíno. O que estamos trazendo para o primeiro plano é o
apagamento habitual, involuntário de si, entranhado na personalidade de
muita gente e do tipo que cobra um preço alto.
As pessoas tendem a constatar que essa dinâmica está presente em duas
áreas principais: no trabalho e nos relacionamentos pessoais. No trabalho,
por exemplo, pode ser que você tenha aceitado uma tarefa extra que sentia
ser excessiva, ou levado trabalho para fazer em casa no m de semana
sacri cando tempo para si ou para sua família. Pode ser que não tenha dito
não para um colega que estava invadindo seu espaço pessoal, ou pode ser
que alguém tenha pedido a sua opinião e você tenha dito o que achava que a
pessoa queria escutar, não o que era verdadeiro para você.
Na vida pessoal, pode ser que você tenha aceitado o convite de um
amigo para beber alguma coisa quando na verdade precisava descansar.
Pode ser que tenha transado com um parceiro quando era a última coisa que
queria fazer, ou quando alguma questão precisava ser resolvida antes de
reatar o contato íntimo; ou pode ser que tenha sufocado um sentimento de
“não” surgido no meio do sexo. Pode ser que você tenha dito sim quando,
sem avisar com antecedência, vizinhos pediram ajuda com a mudança,
mesmo que você tivesse outros assuntos urgentes para resolver. Pode ser que
precisasse abrir espaço para si, mas tenha decidido não pedir ao(à) seu(sua)
companheiro(a) que cuidasse um pouco das crianças. Ou pode ser que
tenha assumido seu eterno papel de cuidador da família com seus pais
idosos, em vez de pedir para seus irmãos ou suas irmãs ajudarem e
aliviarem a sua carga.
De modo mais geral, pergunte-se: com quem e em que situações acho
mais difícil dizer não? Mesmo que eu diga, será que faço isso com
relutância, me desculpando ou sentindo culpa? Me recrimino por isso
depois?
Existe uma diferença abissal entre um “sim” pensado e consciente e a
supressão compulsiva de um “não”. É bem verdade que as realidades do
trabalho de hoje em dia podem borrar essa distinção: podemos decidir
racionalmente que manter um emprego exige dizer sim a demandas que nos
sobrecarregam, demandas essas que preferiríamos não aceitar. Pessoas
demais se veem em situações como essa em nome da simples sobrevivência
econômica. Nesses casos, podemos nos perguntar se o preço que pagamos
vale o estresse que isso causa. O fato de milhões de pessoas não terem
sequer a liberdade de fazer essa pergunta é um problema social de vastas
proporções. Para muitos de nós, porém, a ausência do “não” não promove
nosso bem-estar pessoal nem econômico. Só você pode saber que “não”
negado caracteriza sua própria situação. Mesmo assim, o simples fato de
deixar claro que estamos aceitando de modo consciente e proposital uma
situação que causa estresse crônico já é uma evolução em relação a fazer isso
de forma automática.

Pergunta no 2: Como minha incapacidade de dizer não impacta minha


vida?

Você verá que essa incapacidade atinge três esferas principais: a física, a
emocional e a interpessoal.
No nível físico, estamos falando de sinais de alerta do corpo como
insônia, dor nas costas, espasmos musculares, boca seca, resfriados
frequentes, dores abdominais, problemas digestivos, cansaço, dores de
cabeça, erupções na pele, perda de apetite ou compulsão alimentar.
No plano emocional, essa investigação traz consequências como tristeza,
alienação, ansiedade ou tédio. O impacto pode também se manifestar como
dé cits emocionais: por exemplo, perda de prazer com coisas que antes
causavam alegria, diminuição do senso de humor, etc.
Na esfera interpessoal, o impacto mais frequente é um ressentimento em
relação às pessoas ou situações em que a reação de autenticidade tenha sido
sufocada. Se examinado de perto, esse é um desfecho irônico. Digamos que
você tenha suprimido o “não” para poder se manter próximo de alguém
importante. Na prática, o ressentimento distancia você mais ainda, porque
vai contaminar o amor que sente pela pessoa. Ela também vai sentir o recuo
emocional alimentado pelo ressentimento: isso vai transparecer nas suas
expressões faciais, no seu tom de voz, na sua linguagem corporal. Você terá
conseguido o contrário do que almejava. E, se prestar atenção, saberá que o
ressentimento é mais do que uma qualidade emocional abstrata: ele
literalmente causa uma sensação corrosiva na barriga ou no peito, ou uma
contração nos músculos da mandíbula, do pescoço ou da testa. O
ressentimento pode ser visto como o resíduo de coisas não ditas, de
sentimentos não honrados. A palavra ressentir, a nal, vem do homônimo
francês ressentir, que signi ca “sentir de novo”. E de novo, e de novo, e mais
uma vez ainda, na nossa mente e no nosso corpo, até entendermos o recado.
Para uma investigação mais profunda, outro lugar para se procurar
impacto está localizado um pouco mais para fora, no mundo material e
cotidiano. A pergunta seria: “O que eu perco na vida como resultado da
minha incapacidade de me impor?” Respostas possíveis podem incluir
diversão, alegria, espontaneidade, respeito próprio, libido, oportunidades de
crescimento e aventura, e assim por diante.

Pergunta no 3: Que sinais físicos eu tenho deixado de ver? Que


sintomas tenho ignorado que poderiam ser sinais de alerta se
estivesse prestando atenção consciente?

A terceira pergunta reverte a direção da anterior: aqui nós começamos com


os impactos físicos, e con amos neles para nos revelar onde tem faltado
autenticidade. Isso exige que você faça um inventário do seu corpo, uma
varredura regular e voluntária, seja diária ou semanal. Para algumas pessoas
essa pergunta é uma medida de apoio essencial, porque sua abnegação se
tornou tão normal que elas talvez não consigam identi car um “não” que
deixou de ser dito: a palavra nem sequer se atreve a se formar na mente,
quanto mais na língua.
A ideia é relacionar de modo regular sintomas atuais – cansaço,
digamos, ou uma dor de cabeça insistente, ou dor de estômago, ou dor na
lombar –, depois perguntar de que “não” não dito eles podem ser um sinal.
É claro que isso demanda parar por tempo su ciente para detectar os sinais.
Na nossa cultura de separação entre mente e corpo, muitos nos
acostumamos a ignorar os recados do corpo. Os mecanismos de
recompensa do cérebro podem inclusive apreciar, de forma muito parecida
com a dependência, os níveis elevados de dopamina e de endor nas que
sentimos quando os outros apreciam ou se bene ciam da nossa abnegação.
Existe um motivo para a expressão “viciado em adrenalina” existir. O
impulso de fazer o bem para os outros, um impulso genuíno se não fosse
compulsivo, pode assim sufocar o imperativo igualmente autêntico de
fazermos bem para nós mesmos.
Da mesma forma, em pessoas totalmente identi cadas com seus papéis
no mundo, a palavra não tem di culdade para romper a armadura à prova
de som da identidade e se fazer ouvir. Nós nos confundimos com nossas
descrições pro ssionais mundanas – médico, terapeuta, professor, advogado,
CEO, homem da casa, supermãe. Daí esta terceira pergunta, que nos
convida a proativamente re etir sobre o que o corpo vem nos dizendo o
tempo todo, sobre como ele está tentando transferir nossa atenção de nossa
identidade condicionada para aquilo de que realmente precisamos. Isso
pode muito bem impedir o corpo de gritar mais alto com a gente ou causar
um acidente mais desastroso.

Pergunta no 4: Qual é a história oculta por trás da minha incapacidade


de dizer não?

Aquilo que alimenta nosso padrão habitual de negar nosso “não” é o que
chamo de a história. Com isso me re ro à narrativa, explicação, justi cativa,
racionalização que faz esses hábitos parecerem normais ou até necessários.
Na verdade, eles vêm de crenças centrais limitantes sobre nós mesmos. O
mais comum é nem sequer termos consciência de que essas coisas sejam
histórias. Pensamos e agimos como se elas fossem verdades.
Quando faço essa pergunta nos workshops, as pessoas podem levar
algum tempo para identi car a narrativa subjacente, a história por baixo da
história. Quando vamos além das minúcias da situação especí ca (exemplo:
“Bom, você sabe como a minha mãe é… é mais fácil dizer sim e pronto do
que ter trabalho”), encontramos a história mais profunda, cuja lógica interna
determina nossas interpretações e reações. A camada de subtexto tem
sempre a ver com nosso eu, não com as circunstâncias atuais.
Se você tiver di culdade para identi car a história subjacente ao seu
comportamento, tente perguntar: “Em que ideia sobre mim mesmo preciso
acreditar para negar dessa forma minhas próprias necessidades?” A
resposta, ainda que especulativa, chegará bem perto do alvo. Embora não
sejam nem objetivas nem exatas, nossas histórias são sempre internamente
consistentes com nosso comportamento e nossa experiência.
Alguns exemplos de histórias comuns:

Dizer não signi ca que eu não dou conta de alguma coisa. É um sinal
de fraqueza. E preciso ser forte.
Preciso ser “bom” para merecer amor. Se disser não, não sou digno de
ser amado.
Sou responsável pela forma como os outros se sentem e pelo que
vivenciam. Não devo decepcionar ninguém.
Só sou merecedor se estiver fazendo alguma coisa útil.
Se as pessoas soubessem como eu realmente me sinto, não iriam gostar
de mim.
Se eu decepcionar meus amigos/cônjuge/colegas/pais/vizinhos, iria me
sentir merecidamente culpado.6
Dizer não é egoísta da minha parte.
Não é amoroso sentir raiva.

É possível notar nessas respostas o duplo padrão por elas sugerido. Em


geral, um duplo padrão é quando temos conjuntos de regras distintos, dos
quais nos isentamos ao mesmo tempo que cobramos sem dó a adesão dos
outros, como parodiado na expressão: “Faça como eu digo, não como eu
faço.” Na prática, essa duplicidade inconsciente é empregada com a mesma
frequência contra o próprio eu; podemos chamar isso de hipocrisia reversa.
Eu muitas vezes pergunto às pessoas: “Se o seu amigo ou a sua amiga
dissesse não para algum pedido porque é isso que lhe parecia verdadeiro,
você o(a) condenaria como ‘fraco(a)’?” A resposta previsível é: “Claro que
não.” Pense com você mesmo: você sobrecarregaria qualquer outra pessoa
com a responsabilidade de jamais contrariar as expectativas dos outros? Se
um vizinho precisasse recusar um favor por ter outra coisa para fazer, você o
acusaria de egoísmo? Diria ao seu lho ou à sua lha que ele é inútil a não
ser que esteja fazendo algo “útil”? Tenho certeza de que você, assim como
todo mundo a quem faço essas mesmas perguntas, responderá que não.
Existem pessoas que recuam diante de um não devido a uma noção
inculcada de ser “forte”, alguém que os outros respeitam por sua
con abilidade e por nunca reclamar. Esse tipo de “força” tem como custo o
verdadeiro poder, qualidade que envolve ser capaz de decidir que fardos
assumir ou não. A maioria de nós, se pudesse escolher, preferiria levar uma
vida de poder consciente e potência construída do que de força indesejada.

Pergunta no 5: Onde aprendi essas histórias?

Ninguém é imbuído ao nascer de uma noção de falta de valor. É por meio de


interações com cuidadores amorosos que desenvolvemos nossa visão de nós
mesmos. Se, devido aos próprios traumas, essas pessoas nos tratam mal,
levamos isso para o lado pessoal. Se, por qualquer motivo, elas estiverem
estressadas ou infelizes, também levamos isso para o lado pessoal. A
consciência do mal-estar do pai e da mãe, que como criancinhas nós éramos
incapazes de aliviar, pode nos fazer questionar nosso próprio valor, mesmo
que verbalmente eles nos garantissem que éramos amados. Isso com certeza
aconteceu comigo, como me dei conta muito enfaticamente no divã de um
analista, incidente que descrevo no capítulo 30.
A intenção de olhar para o passado não é se prender a ele, mas sim se
soltar. “Na hora em que você descobre como seu sofrimento surgiu, já está
no caminho para se libertar dele”, disse Buda.7 Essa quinta pergunta exige,
portanto, um olhar franco sobre nossas experiências infantis, não como
teríamos gostado que fossem, mas como foram de fato.
Pergunta no 6: Onde ignorei ou neguei o “sim” que queria ser dito?

Se sufocar um “não” pode nos deixar doentes, o mesmo pode acontecer se


segurarmos um “sim” autêntico. O que você já quis fazer, manifestar, criar
ou dizer e de que abriu mão em nome daquilo que percebia como um dever
ou em nome do medo? Que desejo de brincar ou explorar você ignorou?
Que alegrias se negou devido à crença de que não as merecia, ou a um medo
condicionado de que elas lhe seriam arrancadas?
Como no caso do “não” não dito, pergunte a si mesmo: que crença me
impede de a rmar meus impulsos criativos? Para mim era o imperativo de
continuar trabalhando à custa de ignorar minha intuição. Como escrevi em
When the Body Says No (Quando o corpo diz não):

Por muitos anos depois de virar médico, quei envolvido demais com
meu próprio vício em trabalho para prestar atenção em mim mesmo ou
nos meus anseios mais profundos. Nos raros momentos em que me
permitia car parado, podia notar um pequeno tremor na barriga, uma
perturbação praticamente imperceptível. O débil sussurro de uma
palavra ecoava na minha cabeça: escrever. No início eu não soube dizer
se aquilo era azia ou inspiração. Quanto mais escutava, mais alto cava o
recado: eu precisava escrever, me expressar por meio da linguagem
escrita; nem tanto para os outros talvez me escutarem, mas para poder
escutar a mim mesmo.

“A música me salvou a vida”, disse a compositora e ex-alcoólatra de


Nashville Mary Gauthier.8 “A autoexpressão que consigo articular por meio
da canção, e sua in uência quando ela se conecta a outras pessoas, para
mim foi literalmente uma salvação. Além de me fazer car sem beber. Esse é
um motivo que me faz levantar de manhã e até hoje me mobiliza.” A força
criativa interior, para onde quer que nos leve, é um coadjuvante poderoso da
cura.
“O que existe dentro de nós precisa sair, caso contrário podemos
explodir nos lugares errados, ou então nos tornar irremediavelmente
limitados pelas frustrações”, escreveu o sábio cientista médico János Selye
em e Stress of Life (O estresse da vida).9 Aprendi bem essa lição. Toda vez
que algo em mim exigia ser dito e eu não o expressava, esse silêncio me
sufocava. Os livros que escrevi, inclusive este que você agora está segurando,
vieram de ouvir o chamado daquilo em mim que precisava sair.
29

Ver para desacreditar: como


desfazer crenças
autolimitantes

A cura não tem como ocorrer se não aceitarmos nosso valor: se


não aceitarmos que somos dignos de ser curados, mesmo que
fazer isso acabe abalando nossa visão de mundo e nossa forma
de interagir com os outros.
– MARIO MARTINEZ, médico psiquiatra, The MindBody Code

Numa sociedade que capitaliza em cima da sensação de inadequação das


pessoas, a história autolimitadora que mais nos contamos é “eu não mereço
isso”. Ela está por trás de todas as outras listadas no capítulo anterior. Se não
for identi cada, ela sabota todos os nossos esforços de autoinvestigação
interna compassiva. Posso sentir seus efeitos enquanto escrevo este livro. Ela
foi reconhecida de forma comovente por Peter Levine, um de meus amigos e
professores na área terapêutica. “Eu respondi com um sim à pergunta: ‘Será
que z o su ciente?’”, me disse Peter numa conversa recente. “Eu z o
su ciente, sim. Mas será que ‘eu sou o su ciente?’. Com essa ainda estou
lutando.” Sorri, pois me identi quei com o que ele dizia.
Existem muitas formas de trabalhar com a história da falta de valor.
Alguns professores sugerem a rmações positivas. Eu, pessoalmente,
constatei que essas a rmações parecem se evaporar justamente quando mais
preciso delas.
Não deveríamos subestimar quão entrincheirada e insidiosa é essa
convicção de falta de valor, ou quão difícil é desalojá-la com palavras. Somos
quase literalmente hipnotizados para acreditar nela. Do ponto de vista
neural, como explica o biólogo Bruce Lipton, é uma questão de ondas
cerebrais. As ondas delta, a mais baixa frequência cerebral, são as que
predominam em nossos dois primeiros anos de vida, e então as ondas teta
vão aumentando até por volta dos 6 anos. “Uma criança com menos de 7
anos tem predominantemente ondas teta”, disse ele. “O teta é um estado de
hipnose, e é assim que você consegue absorver essas coisas todas durante
sete anos. Como se estivesse sob o transe de um hipnotista, você acredita em
qualquer mensagem que recebe.” Somente depois é que vêm o estado de
consciência e o pensamento lógico associados à atividade das ondas alfa e
beta. “Absorvemos nossas percepções e crenças em relação à vida anos antes
de adquirirmos a capacidade de pensar criticamente”, escreve Lipton. “Essas
percepções ou falsas percepções se tornam as nossas verdades.”1 A partir
dessas verdades, nós daí em diante geramos nossos conceitos em relação a
nós mesmos no mundo. Ou a partir dessas inverdades, melhor dizendo.
Acertamos um belo golpe a favor da autonomia autêntica quando
reparamos onde residem os autoengodos e os submetemos a novas
percepções alimentadas pela investigação compassiva.

Você identi cou o “não” ou “sim” não dito, começou a identi car seus vários
impactos, examinou as histórias que sustentam essas autonegações
padronizadas e investigou suas origens. E agora? Embora haja um valor
intrínseco em reconhecer nossas histórias como histórias, nosso objetivo
nal é diminuir o poder que elas têm sobre nós.
O exercício a seguir vai sugerir alguns primeiros passos para nos
libertar, nos despertar do enleio hipnótico da desvalorização.
Para a seção sobre cura do meu livro a respeito da dependência, adaptei
– mediante autorização – uma série de passos formulados por Jeffrey M.
Schwartz, professor de psiquiatria na Universidade da Califórnia em Los
Angeles, em seu livro e Mind and the Brain (A mente e o cérebro).2 Aqui
levo a adaptação um passo além, e aplico o método a crenças autolimitantes
de todos os tipos.
Embora Schwartz tenha desenvolvido esses passos originalmente para
curar o transtorno obsessivo-compulsivo, eles também se prestam com
facilidade à reprogramação de outros circuitos de pensamento. A nal de
contas, o pensamento negativo tem uma característica mais do que
obsessiva: somos compelidos a tê-lo, vezes sem conta, apesar de ele não nos
proporcionar prazer algum. A ideia é retreinar o cérebro, fortalecer por
meio de um esforço consciente a capacidade do córtex pré-frontal de sair de
um transe baseado no passado e reabitar o presente. Qualquer padrão de
pensamento que seja repetitivamente autodepreciativo pode ser trabalhado
dessa forma.
Trata-se de um método experimental, que exige compromisso e atenção
plena. Precisa ser não apenas feito, mas vivenciado plenamente. Somente
quando a atenção estiver presente é que a mente consegue reprogramar o
cérebro. “É preciso prestar uma atenção consciente”, insiste Jeffrey Schwartz.
“É aí que está o segredo. Para serem criadas, mudanças físicas no cérebro
dependem de um estado mental, o estado chamado atenção. Prestar atenção
importa.”
Aos quatro passos originais de Schwartz, eu acrescento mais um. Esses
cinco passos são mais e cazes quando praticados regularmente, mas
também toda vez que alguma crença autolimitante exerça uma força tal que
você que com medo de ser tragado por ela. Ache um lugar para se sentar e
escrever, de preferência tranquilo. Também é melhor escrever tudo à mão.

PASSO 1: RECATEGORIZAR
O primeiro passo é chamar o pensamento autolimitante do que ele é: um
pensamento, uma crença, não a verdade. Por exemplo: “Eu pareço acreditar
ser responsável pelos sentimentos de todo mundo.” Ou: “Estou tendo o
pensamento de que preciso ser forte.” Ou: “Estou agindo como se pensasse
que só tenho valor quando me mostro prestativo.” Trazer consciência para
esse passo é particularmente vital: estamos despertando a parte de nós
mesmos capaz de observar pensamentos sem se identi car com eles, agindo
como nosso próprio observador, interessado, porém imparcial.
O objetivo da recategorização não é fazer o pensamento de autonegação
desaparecer: ele ocupa seu cérebro há tanto tempo que vai resistir com todas
as forças a ser expulso. Na verdade, ele se fortalece tanto com os esforços
para suprimi-lo ou expulsá-lo quanto com os momentos em que cedemos a
ele. Lembre-se: você não está tentando desalojar a história ou torná-la
errada. Discutir com ela seria como dizer a uma criança de 2 anos que está
gritando “Eu te odeio!” diante de um prato de legumes: “Não, não odeia não.
Isso é só um pensamento que você está tendo.” Tampouco se trata de tentar
substituir o pensamento por algum tipo de oposto alegre, por exemplo: “Eu
sou uma pessoa boa”, ou “Eu irradio luz”. Trata-se, isso sim, de se desfazer da
certeza de que essa crença implícita é verdadeira. Ao fazer isso, você põe a
história no seu devido lugar, tirando-a delicadamente da prateleira de não
cção. Ela não é mais uma lei escrita em pedra a ser resistida nem uma
acusação a ser refutada: é apenas um pensamento, por mais doloroso ou
disfuncional que seja. Possivelmente o pensamento vai voltar, mas nessa
hora você vai tornar a recategorizá-lo, com uma determinação tranquila e
uma consciência atenta e vigilante.

PASSO 2: REATRIBUIR

Nesse passo você aprende a relacionar a crença recategorizada à sua origem


correta: “Isso é o meu cérebro me mandando um recado antigo e
conhecido.” Em vez de se culpar ou culpar qualquer outra pessoa, você está
colocando a causa no seu lugar correto: em circuitos neurais programados
no seu cérebro quando você era criança. A crença representa uma época, no
início da vida, em que você não tinha as condições necessárias para
desenvolver de forma saudável os seus circuitos emocionais. Você não está
expulsando o pensamento, mas deixando claro que não o solicitou, nem
jamais o mereceu.
A reatribuição está diretamente relacionada à curiosidade compassiva de
si. A presença de uma crença negativa não diz nada sobre você como pessoa;
ela não é um fracasso moral ou uma fraqueza de caráter, apenas o efeito de
circunstâncias sobre as quais você não tinha controle algum. O que você tem
agora é uma palavra a dizer a respeito de como vai reagir a essa crença
negativa. A qualidade da sua experiência no momento presente está muito
mais ligada a essa escolha de reações do que a qualquer coisa xada ou
preordenada pelo passado.

PASSO 3: REAJUSTAR O FOCO

Esse passo tem tudo a ver com ganhar um pouco de tempo para si mesmo.
Por serem fantasmas da mente, suas autocrenças negativas vão passar… se
você lhes der tempo. O princípio-chave, assinala Jeffrey Schwartz, é o
seguinte: “O que importa não é como você se sente; o que conta é o que você
faz.” Isso não quer dizer suprimir seus sentimentos ou crenças, apenas não
deixar que eles o sufoquem ou atrapalhem a sua investigação. Você segue se
relacionando com eles ao mesmo tempo que faz conscientemente um
desvio.
O plano é o seguinte: se você notar uma autocrença negativa tentando
assumir o controle, arrume outra coisa para fazer. Isso requer consciência, e
é melhor não se recriminar se no início não conseguir perceber isso
acontecendo. Às vezes esses padrões de crenças simplesmente assumem o
comando antes mesmo de conseguirmos agir.
Seu objetivo inicial é modesto: tente ganhar 15 minutos. Escolha algo
que goste de fazer e que o mantenha ativo, de preferência algo saudável e
criativo, mas na verdade qualquer coisa que lhe agrade sem causar maiores
estragos. Em vez de afundar impotente no desespero conhecido da
autocrença negativa, vá dar uma caminhada, ponha uma música para tocar,
faça palavras-cruzadas, qualquer coisa que o ajude a atravessar os próximos
15 minutinhos. “A atividade física parece ser especialmente útil”, sugere
Schwartz. “Mas o importante, seja qual for a atividade escolhida, é que ela
deve ser algo que você goste de fazer.” Ou então, se estiver sem energia
imediata para fazer qualquer coisa, você pode reajustar o foco para aquilo
que existe de amoroso e vivo em sua vida: possibilidades que você
concretizou ou vislumbrou, suas contribuições para si mesmo e para os
outros, pessoas que você amou ou que lhe deram amor.
O objetivo de reajustar o foco é ensinar ao seu cérebro que ele não
precisa sucumbir à mesma história de sempre. Ele pode aprender a escolher
outra coisa, mesmo que só por um tempinho no começo.

PASSO 4: REAVALIAR

É aqui que você faz o balanço e encara a realidade. Até agora, a crença de
autorrejeição dominou o pedaço, obscurecendo qualquer outra coisa em que
você pudesse conscientemente acreditar em relação a si mesmo. Digamos
que tenha a rmado: “Eu mereço amor na minha vida”, mas o tempo todo
sua mente continuou a atribuir um valor maior à moeda do “Eu não tenho
valor”. É esse segundo pensamento que desequilibra a balança em 90% dos
casos. Pode considerar esse passo, portanto, uma espécie de auditoria, uma
investigação dos custos objetivos das crenças nas quais sua mente investiu
tanto tempo e tanta energia.
Pergunte-se: o que essa crença de fato fez por mim? Respostas possíveis:
me causou vergonha e isolamento. Gerou amargura. Me impediu de correr
atrás dos meus sonhos, de me arriscar, de vivenciar o amor íntimo. Causou
doenças ou sintomas físicos. Para reconhecer esses impactos, permita que
suas respostas ultrapassem o âmbito conceitual. Sinta o estado do seu corpo
enquanto re ete sobre o espaço que a crença ocupava em sua mente. É aí
que os impactos residem, na sua siologia, da mesma forma que nas suas
ações e nos seus relacionamentos.
Seja especí co: qual foi o saldo da história de desvalorização – ou
qualquer história que você tenha identi cado e em que esteja trabalhando –
para sua relação com seu parceiro ou parceira, sua esposa ou seu marido?
Com seu melhor amigo ou amiga, seus lhos, seu chefe, seus funcionários,
seus colegas de trabalho? O que aconteceu ontem quando você se deixou
conduzir por essa crença? O que aconteceu na semana passada? O que vai
acontecer hoje? Preste muita atenção em como se sente ao recordar esses
acontecimentos e imaginar o que vai acontecer.
Uma reavaliação completa leva em conta também quaisquer lucros ou
juros que essa crença tenha lhe rendido. Ela o protegeu de algum perigo,
mesmo que a curto prazo? Protegeu-o de críticas ou rejeição? Inclua isso
também: quanto mais completa a auditoria, melhor.
Acima de tudo, faça esse exercício sem se julgar. Você não chegou ao
mundo pedindo para ser programado dessa forma, e não será punido pelo
que vai se revelar; muito pelo contrário: você está tentando comutar a pena
que vem cumprindo. Lembre-se também de que você não é o único. Milhões
de outras pessoas com experiências parecidas desenvolveram os mesmos
mecanismos. Como decide reagir a isso no presente, nisso, sim, você é único.

PASSO 5: RECRIAR

O que determinou sua identidade até aqui? Você vem agindo segundo
mecanismos programados no seu cérebro muito antes de poder decidir
qualquer coisa em relação a isso, e a partir desses mecanismos automáticos e
dessas crenças programadas muito tempo atrás você criou uma vida. Está na
hora de recriá-la: de imaginar outra vida, uma que realmente valha a pena
escolher.
Você tem valores. Tem paixões. Tem intenção, talento, capacidade, um
desejo de contribuir, talvez uma noção latente de propósito ou vocação. No
seu coração existe amor, e você quer conectar esse amor ao Universo. Ao
recategorizar, reatribuir, reajustar o foco e reavaliar, está rompendo padrões
que o prendiam e aos quais você se agarrava. No lugar de uma vida
dominada pela sua compulsão obsessiva com aquisições, comportamentos
anestesiantes, autojusti cação, admiração, inconsciência e atividades sem
qualquer signi cado, qual é a vida que você realmente quer? O que você
decide criar? Anote seus valores e intenções e, aqui também, faça isso com
uma atenção consciente. Imagine-se vivendo com integridade, sendo capaz
de encarar as pessoas nos olhos com compaixão por elas… e por si.
O caminho para o inferno não está coalhado de boas intenções: está
coalhado de falta de intenção. Quanto mais você recategorizar, reatribuir,
reajustar o foco e reavaliar, mais livre estará para recriar. Está com medo de
tropeçar? Olhe só: tropeços vão acontecer. Isso se chama ser humano.

Para concluir, um conselho aos sábios, ou aos que desejam ter sabedoria. Se
trocarmos uma vogal do verbo “recriar”, temos “recrear”, sinônimo de
“brincar”. Esse é um excelente lembrete de que não estamos nos ajudando
em nada se nos levarmos – e também ao processo de investigação – tão a
sério a ponto de perder uma sensação de espontaneidade e vitalidade. Esses
passos podem não ser muito divertidos, mas funcionam melhor quando lhes
incutimos alguma leveza. Já vi várias pessoas surpreenderem a si mesmas
com um sorriso no meio do processo.
30

Inimigos que viram amigos:


como lidar com os obstáculos
à cura

Minha vida não teve a ver com consertar o que estava


quebrado. Teve a ver com fazer uma escavação arqueológica
cheia de amor e carinho de volta ao meu verdadeiro eu.
– JEWEL, Never Broken: Songs Are Only Half the Story

Gostaria de poder lhe dizer que a cura é algo tão direto quanto realizar um
determinado exercício mental um certo número de vezes por semana.
Infelizmente, a busca da inteireza não tem como ser reduzida a uma ou duas
(ou três, vinte, cinquenta) práticas, modalidades ou abordagens. Longe de
ser uma questão que se resolve uma vez e pronto, o retorno a nós mesmos é
uma estrada que escolhemos seguir, com todos os meandros, curvas e becos
sem saída que surgem quando se percorre – ou melhor, se desbrava – um
caminho incerto. Na minha experiência, nunca chegamos tão perto quanto
gostaríamos de chegar, e nunca estamos tão longe quanto tememos estar.
Este capítulo propõe uma forma de lidar com alguns dos obstáculos
mais universais à cura: a culpa incapacitante; o ódio por si mesmo e seus
primos próximos: autorrejeição, autossabotagem, impulsos autodestrutivos;
e bloqueios em nossa memória emocional, ou o que podemos chamar de
negação da dor. Aqui também não estou me referindo a conceitos abstratos.
“Não tenho valor” e “Sou uma pessoa defeituosa” são muito mais do que
pensamentos: eles vivem em nossa neuro siologia e em nossa mente como
“conglomerados distintos de processos mentais correlatos”, para usar as
palavras de Dick Schwartz. “Para ser mais e caz, o cérebro é projetado para
criar esses conglomerados – conexões entre determinadas lembranças,
emoções, percepções do mundo e comportamentos –, que permanecem
coesos como unidades internas que podem ser ativadas quando necessário.”1
Procurar compreender a gênese, e sobretudo a função original de
conglomerados neuromentais vexatórios nos leva ao primeiro princípio da
autoinvestigação compassiva. Tudo dentro de nós, por mais desagradável
que seja, existe com um objetivo; por mais que cause problemas ou até
mesmo nos debilite, não há nada que não devesse estar ali. A pergunta,
portanto, deixa de ser “Como me livro disso?” e passa a ser: “Para que isso
serve? Por que isso está aqui?” Em outras palavras, primeiro precisamos
conhecer esses aspectos desagradáveis de nós mesmos para então, da melhor
forma que conseguirmos, transformá-los de inimigos em amigos.
A verdade é que esses perturbadores da nossa paz, por mais estranho
que isso possa soar, sempre foram nossos amigos. Na sua origem, eles nos
protegeram e bene ciaram, e esse continua sendo seu objetivo atual, mesmo
quando parecem tentar alcançá-lo de modo equivocado.
Não precisamos temer, evitar, rejeitar nem suprimir esses “indesejáveis”;
na verdade, ao fazer isso nós apenas retardamos nossa emancipação deles.
Não são eles, mas sim nossas tentativas desesperadas de mantê-los afastados
que cobram o mais alto preço do nosso bem-estar mental ou físico. Quando
passamos a ver esses aparentes antagonistas internos como o que de fato são
e os deixamos em paz, eles tendem a nos pagar na mesma moeda e a nos
deixar em paz também. A capacidade de ação é conquistada não por meio
da resistência a nós mesmos, mas pela aceitação e pela compreensão.
Meio de brincadeira, chamo esses aparentes inimigos de “amigos
burros”. Se o adjetivo lhe parecer feio, que à vontade para substituí-lo por
algo com carga menos pejorativa, como “obtuso” ou “teimoso”. O guia de
vida selvagem e especialista em psicologia profunda Bill Plotkin chega a se
referir a eles como “leais soldados”, em homenagem aos militares japoneses
que, até os anos 1970, foram encontrados escondidos na oresta das
Filipinas, sem saber que a guerra já tinha acabado havia décadas. A única
coisa que eu quero dizer com “burros” é que essas partes não conseguem
aprender novos truques: elas se recusam a ver que as circunstâncias nas
quais surgiram inicialmente não existem mais, e que não somos mais
crianças indefesas em perigo.
O motivo de elas existirem, aliás, está longe de ser burro. Embora elas
possam nos causar dor agora, no início surgiram para nos salvar. Sua
presença, na verdade, é um sinal inconfundível da profunda inteligência do
“corpomente” humano. E felizmente a cura não exige a extinção dessas
partes, apenas seu realinhamento, ou talvez uma reatribuição de função. O
importante é nós estarmos no comando, não elas.

Ao longo dos anos, já cometi muitos atos ou me omiti em muitas ocasiões


em que um remorso saudável era ou teria sido uma reação adequada. Já
menti, já negligenciei obrigações e já fui ríspido com os outros. Na esteira
desses comportamentos, espero ter sentido um grau proporcional de
arrependimento que tenha me levado a me responsabilizar pelos meus atos,
remediar quanto possível a situação, restaurar a con ança e pensar duas
vezes antes de me comportar de novo dessa forma. Esse tipo de remorso
saudável caminha de mãos dadas com o autoconhecimento, com uma
bússola interna e com valores pró-sociais; podemos até dizer que ele é a
forma que a natureza tem de nos chamar de volta à nossa natureza
interconectada. Duvido que qualquer um de nós queira viver num mundo
em que as pessoas fossem incapazes de senti-lo.
Mas existe também um tipo nada saudável de culpa: uma convicção
crônica de que carregamos uma culpa nata, e de que já deveríamos esperar,
ou até merecemos, ser punidos ou repreendidos. Sob essa luz mortiça,
nossos defeitos e falhas, em vez de serem convites para crescer e melhorar, se
tornam provas da nossa irrecuperável torpeza. Esse tipo de culpa, ou o
medo de senti-la, muitas vezes nos impede de dizer um “não” robusto,
sufocando a autoa rmação: a perspectiva da reprovação ou da decepção dos
outros serve de gatilho para a intolerável convicção de que somos ruins,
errados, imperdoáveis. Como vimos nas histórias ao longo deste livro, isso
pode acarretar di culdades físicas ou mentais se não for combatido. Muita
gente sente uma culpa e uma vergonha corrosivas, automáticas, caso sequer
cogitem decepcionar os outros, tratar as próprias necessidades como algo
valioso ou agir em benefício próprio.
No pior dos casos, a culpa vai tão fundo que faz a pessoa se sentir
culpada pelo simples fato de existir. Essa culpa existencial é anterior à
linguagem e à consciência. Entrei em contato com esse sentimento em mim
mesmo durante uma sessão terapêutica com psilocibina.2 Deitado no divã,
vivenciei o que um paciente meu certa vez descreveu como “mente dupla”.
Por um lado, sabia exatamente quem era e em que lugar e momento estava;
por outro, a experiência dominante que tive ao vislumbrar o rosto bondoso
da terapeuta foi que ela era minha mãe e eu, um bebê de 1 ano. Eu me ouvi
dizer, aos soluços: “Sinto muito mesmo por ter tornado sua vida tão difícil.”
O que me estava sendo mostrado era eu mesmo no início da vida: um bebê
que já carregava a responsabilidade pelo sofrimento à sua volta, inundado
de vergonha e culpa por ter causado tudo aquilo.
A culpa crônica, assim como o resto dos “amigos burros” da mente, não
passa de uma guardiã já não mais no auge das suas competências. Como
assim? Que papel essa postura debilitante e causadora de vergonha poderia
ter desempenhado na manutenção da nossa segurança? Pense numa
redução de danos. Quando o mundo adulto assim o exige, mesmo que de
modo involuntário, que um bebê ou uma criança suprima parte do seu
verdadeiro eu – os próprios desejos, sentimentos e preferências –, a criança
não pode correr o risco de não acatar essa exigência, pois a relação de apego
indispensável pode car comprometida ou ameaçada. Ela precisa
desenvolver dentro de si mesma mecanismos potentes a serem acionados
para evitar a angústia de decepcionar ou ser isolada do adulto cuidador.
Desses vigilantes internos, a culpa é uma das mais con áveis. A
autoexpressão da criança é reduzida, mas a relação com o pai ou a mãe é
preservada. Para ns de sobrevivência, o apego importa mais do que a
autenticidade, como é preciso que seja nessa idade.
A maior parte da culpa crônica é obsessivamente monotemática:
responde a apenas um estímulo e tem exatamente uma única resposta. O
estímulo é o fato de você, criança ou adulto, querer fazer para si algo que
possa decepcionar outra pessoa. Pode ser uma verdadeira má ação, como
roubar ou se comportar de uma forma que viole algum princípio moral;
com muito mais frequência, porém, não é nada além do desejo de agir
conforme um impulso nato, desde a rmar os próprios limites até expressar
ou mesmo ter um sentimento negativo. Sem fazer qualquer distinção,
independentemente do que seja, a culpa joga na sua cara o mesmo adjetivo:
egoísta. Presa no passado, essa amiga que já não é bem-vinda não consegue
distinguir entre o que foi e o que é: ela interpreta qualquer interação atual –
seja com cônjuge, lho, pai, mãe, amigo, médico, vizinho, desconhecido –
através do ltro dos seus primeiros relacionamentos.
A culpa fala com a voz de circuitos de memória implícitos e muito
densos, tornando-a incapaz de – e impermeável à – racionalidade. Ela não
tem como evitar estar ali, e não podemos nos livrar dela à força. Mesmo
obedecendo às suas ordens, só conseguimos afastá-la por um tempo; mas ela
em breve volta. Nossa aquiescência, e nisso reside a armadilha, vem do fato
de temermos a culpa, de a detestarmos, de ansiarmos por nos livrar dela.
Está bem, vou obedecer, nós imploramos. Qualquer coisa para fazer você ir
embora.
Ao reconhecer a culpa como a amiga bem-intencionada que é – e tão
obstinadamente el que chega a ser excessiva –, podemos abrir espaço para
ela. Ao iniciar com ela uma conversa cordial sem acreditar na sua mensagem
depreciativa, percebemos que estamos conversando com uma criatura muito
jovem e inocente. Entender isso abre espaço para a compaixão com essa
culpa interna. Com o tempo, podemos até nos sentir gratos pela sua
dedicação: agora podemos escutar a canção de alerta de uma nota só, não
seja egoísta, mas conscientemente decidir por nós mesmos se queremos ou
não dançar ao som dela. Sim, obrigado. Estou ouvindo o que você diz, e
obrigado por se manifestar. Pode car, se quiser, mas vou deixar minha
inteligência adulta julgar se estou de fato ferindo outro alguém ou
simplesmente respeitando meu autêntico eu. Quem manda aqui sou eu, não
você. Quando deixamos a culpa se sentar à mesa, ela não precisa mais
saquear a casa toda.

A ranzinza vizinha de baixo da culpa é a autoacusação. A fotógrafa de fama


internacional Nan Goldin passou muito tempo se culpando por seus anos de
vício, ela que foi dependente de muitas substâncias, em especial de opioides.
“Todo dia de manhã eu acordo no inferno”, disse ela. “Acordo me
condenando. Aí levo duas horas para sair da cama, porque isso é horrível.”
Nossa conversa ocorreu durante uma sessão de investigação compassiva que
ela solicitou.
“Se isso aqui fosse um julgamento e você, a ré”, perguntei, “o que a
acusação teria a dizer a seu respeito?”
Nan nem pestanejou para responder. “Que perdi anos da minha vida;
agora não me restam muitos mais. Que passei a maior parte da minha vida
adulta viciada em drogas, então não sei nada. Meu conhecimento é muito
limitado. Não olhei no espelho nem lidei comigo mesma. Muita coisa se
perdeu.” E isso dito por uma locomotiva criativa, que nunca parou de
produzir uma arte destemida e única, de exibi-la mundo afora e de colher
fartos aplausos.
“Qual é o veredito, então?”, perguntei. “Por ter feito todas essas coisas,
você é o quê?”
“Sem valor, defeituosa.” Nan tinha passado sem di culdade alguma pelos
papéis de reclamante, advogada de acusação e juíza.
Ela disse também que, quando se acusa de não ter valor e de ser uma
pessoa defeituosa, sente uma pressão na garganta e no tronco. Nesse ponto
do processo, eu em geral pergunto se essas sensações físicas são fenômenos
novos. “Não, são bem conhecidos”, respondeu Nan. “A voz engasgada e essa
pressão, aqui, são sensações conhecidas.” Essa é uma resposta prototípica:
não há nada de novo sob o sol, nem nas sombras, aliás.
“E essa sensação que você tem de si mesma como alguém sem valor,
defeituoso. Quão conhecida ela é?”
“Muito, muito. Demais.”
“E a quando remonta isso?”
“Pelo menos aos meus 9 anos. Ou, quem sabe, antes até… Me disseram
que minha mãe tinha ataques de pânico quando eu era pequena.” Em outras
palavras, as crenças centrais que Nan usava para se categorizar e sua
manifestação siológica eram muito anteriores às suas “décadas perdidas” de
dependente química. Foram concebidas muito antes do período em que sua
voz de autocensura a castigava todo dia de manhã.
A menos que suas di culdades emocionais possam ser compartilhadas
com adultos atentos e validadas, o narcisismo infantil normal ao
desenvolvimento dispõe as crianças a levarem tudo para o lado pessoal. É
natural elas acreditarem que, quando coisas ruins acontecem – quando a
vida as machuca, quando há estresse no entorno, quando o pai e a mãe estão
infelizes ou doentes – é porque a culpa é delas, criaturas sem valor e
defeituosas.
Menos óbvio é o fato de essa crença também ter uma função protetora.
Quando o universo de uma criança está perturbado – quando as coisas
desmoronam e o centro não se sustenta, parafraseando Yeats3 – existem
duas teorias com que a criança pode trabalhar. Uma é que seu mundinho
está terrivelmente torto e deformado, e seus pais não conseguem ou não
querem lhe dar amor e carinho. Em outras palavras, ela não está segura. A
outra teoria, que vence praticamente todas as vezes, é que ela, a própria
criança, é quem está com defeito. Helen Knott descreve esse processo em
seu eloquente relato sobre trauma, violência sexual e dependência
intergeracional:4 “Eu estava absolutamente convencida de que a culpa era
minha, por isso me calava.” Ela não poderia ter se convencido de outra
coisa: reconhecer que aqueles de quem depende são incapazes de suprir suas
necessidades seria um golpe devastador para uma jovem pessoa. Assim, da
mesma forma que a culpa, a autorrecriminação é uma ótima protetora.
Acreditar que a de ciência é nossa nos dá pelo menos um pouco de
capacidade de ação e de esperança: quem sabe, se nos esforçarmos o
su ciente, conseguiremos conquistar o amor e o cuidado que merecemos.
A autoacusação é o incansável chicote que leva tantos perfeccionistas e
pessoas ambiciosas a apertarem o cinto e fazerem mais, serem melhores.
Como no caso da culpa, não há negociação, argumentação ou discussão
possível com essa voz estrepitosa, porém imatura. Ela precisa ser
reconhecida, vista como o que é, e delicadamente posta no seu devido lugar.
Certa vez, num workshop em Budapeste, trabalhei com uma jovem
alemã que carregava dentro de si uma entidade por ela denominada seu
“Adolf Hitler interior”, cheia de uma raiva que queria destruir o mundo. Ela
odiava e temia essa parte sua como se fosse literalmente o fantasma do
Führer vindo assombrá-la. Essa moça tinha a sensação de estar
pessoalmente, devastadoramente conectada com ele e até mesmo de ser
culpada pelo genocídio que, décadas antes de ela nascer, matou milhões de
pessoas. Quando se permitiu mergulhar por completo na lembrança, de
corpo inteiro, descobriu que seu “Adolf ” era uma menina de 2 anos, a ita e
assustada, furiosa por ser deixada sozinha no berço por períodos
prolongados. Essa raiva a protegia de sentir o pânico e a dor do abandono
que ela havia enterrado muito tempo antes, e que a faziam evitar situações
nas quais ela pudesse mais uma vez car vulnerável e ser machucada. E a
mantinham também, é claro, num isolamento terrível, para o qual ela
buscava alívio na dependência.
“Não somos todos descendentes de nazistas”, escreve Edith Eger,
sobrevivente de Auschwitz e terapeuta, “mas todos temos um nazista dentro
de nós.”5 Esse fascista interior, que pode parecer tão temível, é na verdade
uma parte assustada de nós mesmos que há muito tempo banimos da
consciência.
Entender que um ódio cruel por si, como a culpa, surgiu para no
começo nos defender de um mal maior, e entender também exatamente
quão jovem esse ditador interno é, nos dá a chance de então recebê-lo com
curiosidade, compaixão ou até gratidão. Permitir que ele exista, sem
corroborar nem condenar suas ofensas raivosas, atenua seu poder
totalitário.
Quando o assunto é culpa, ódio por si mesmo e assim por diante, é fácil
ouvir as vozes: a nal, elas nunca se calam. Mas nossos exilados e protetores
internos podem se manifestar de outras formas mais insidiosas. Essas
formas são mais visíveis do que audíveis: surgem em nosso comportamento,
nossos humores e nossos processos mentais. Estou falando dos distúrbios
compensatórios de que tratamos anteriormente, como a dependência e as
chamadas doenças mentais. Essas dinâmicas – e lembre-se: são processos
dinâmicos, mais do que “coisas” sólidas – podem ser trabalhadas de uma
forma que as transforme de adversárias em aliadas, instrutoras ou, no pior
dos casos, conhecidas chatas.
Por mais que lamente as décadas “perdidas”, Nan Goldin reconhece na
hora que a fuga representada pelo uso de substâncias a resgatou quando ela
recorreu a isso pela primeira vez, aos 18 anos, numa época
extraordinariamente dolorosa cujos detalhes me pediu para não divulgar. “O
vício literalmente salvou minha vida”, disse ela. Sem esse alívio, reconheceu,
ela teria sido levada ao suicídio. Seu único desejo, como o de todos os
dependentes, é que as consequências pudessem ter sido menos duras. Mas e
se nos concentrássemos não nos danos, mas na redução deles?
“E se eu chegasse para você aos 18 anos”, sugeri, “e dissesse: ‘Tá, vamos
fazer um acordo. Eu vou salvar sua vida. Não precisa se matar. Vou te
mostrar um jeito de fugir da dor que vai lhe permitir viver, criar e continuar
viva aos 60 anos com novas possibilidades pela frente, mas você vai ter que
pagar um preço.’ Eu pelo menos conseguiria chamar sua atenção?” Nan
assentiu. “Se você aceitar esse acordo”, continuei, “vai poder fazer muito
trabalho criativo no mundo. Vai poder expressar verdade, beleza e
sofrimento: uma verdadeira vida de artista. Mas isso vai cobrar um preço,
um preço alto, na forma de isolamento, perda de relacionamentos, de
autoestima e de saúde física, mesmo que você viva até os 60. Você vai abrir
mão de algumas possibilidades, perder experiências. Seria esse um ‘acordo’
que você, que suportou abuso e outros traumas, poderia ter aceitado?” Ela
novamente assentiu sem hesitar. São esses “acordos” inconscientes que todos
nós fazemos com esses nossos amigos obtusos, e que bom que isso acontece:
na época, talvez eles fossem os melhores acordos que pudemos fazer.
Jesse istle vivia amargurado por causa de seus anos como usuário de
drogas e criminoso, até uma mulher métis mais velha esclarecer as coisas.
“Eu estava na cozinha dela, reclamando do fato de estar na rua e de todas as
coisas horríveis que tinham acontecido”, recordou ele.

Horríveis mesmo. Sabia que ela também tinha tido um passado parecido
de usuária de heroína quando morava em Vancouver nos anos 1960.
Achei que ela fosse me entender, e que fôssemos os dois trocar
reclamações, sabe… mas ela me deu a maior bronca. Disse: “Que falta de
respeito. Que desrespeito falar assim dos mais velhos.”

Antes de Jesse poder se desculpar, a mulher continuou:

Ela disse: “A mais velha aqui não sou eu, Jesse; os seus mais velhos foram
esses vícios. Eles estavam te ensinando a importância da família. A
importância da saúde. Da conexão humana. De perseverar. Tudo isso o
vício ensina. Tudo.” Então para mim o vício foi o grande teste, a grande
atribulação da minha vida. Quase um rito de passagem para um saber.
Ele me deu um saber que me permite ver coisas que outras pessoas não
entendem. Eu tenho outra perspectiva. Não estou corroborando o vício.
Preferiria ter começado 20 anos atrás uma família e ter potencialmente
uma casa como todos os meus amigos agora têm. Mas tenho uma visão e
um jeito de ver o mundo que eles nunca terão.

Nos distúrbios que reunimos sob o guarda-chuva dos transtornos mentais e


da personalidade também podemos encontrar dimensões úteis. Aludimos a
isso no capítulo 18 com relação a encontrar signi cado nessas perturbações;
agora podemos levar isso um passo além e vislumbrar a possibilidade de
uma coexistência amigável, ou até mesmo de uma aliança produtiva. Meu
lho e coautor Daniel descreve um exemplo disso tirado da própria vida:
Receber em 2019 o diagnóstico de ciclotimia, que é basicamente uma
forma branda de transtorno bipolar, foi uma coisa imensa para mim.
Algo na minha vida ganhou coerência quando me dei conta de que as
fases loucamente produtivas e as baixas depressivas na verdade não são
opostas – estão mais para gêmeas siamesas – e ambas vêm tentando me
ajudar a atravessar o mundo desde a infância. O modo “não consigo
parar” é o cérebro hiperestimulado de um menininho tentando
acompanhar e diminuir o ruído à sua volta, enquanto o colapso
emocional é como um nobreak destinado a impedir minha caixa de
fusíveis de estourar.
Graças em parte aos estabilizadores de humor que tomo, hoje existe
alguém entre uma coisa e outra, observando esses altos e baixos e
sabendo que eles não são eu. Agora, sempre que me pego numa fase
maníaca turbinada, cheio de inspiração e insônia, ou quando acordo me
sentindo pesado e relutante, não luto contra essas coisas nem me
preocupo demais. Ambos os estados trazem presentes: por um lado a
empolgação e o uxo criativo; por outro, o descanso, o abraçar meus
próprios limites. Nenhum dos dois nunca assume o comando por muito
tempo.
Estou achando bem importante saber que nossa mente não é nossa
inimiga.

“Não me lembro da minha infância”, já ouvi pessoas dizerem. “Toda essa


gente com histórias de terror de quando eram crianças… nada de que eu
consiga me lembrar explica por que me comporto assim.” Você também
talvez tenha se pegado sem entender todas as histórias de criações adversas
apresentadas ao longo deste livro.
Muitas pessoas, impedidas pelo que acreditam ser uma incapacidade de
recordar, se perguntam com frequência se essa falha de memória está
inibindo sua cura. Existem alguns bons motivos para a resposta ser um
encorajador não. Como já dissemos, o trauma não é aquilo que nos
aconteceu, mas o que aconteceu dentro de nós como consequência. Peter
Levine nos lembra que “trauma tem a ver com ruptura de conexão. Ruptura
de conexão com o corpo, com nossa vitalidade, com a realidade e com os
outros”. Assim, nunca é demais insistir: contanto que estejamos livres e de
plena posse de nossas capacidades mentais, a reconexão ainda é possível.
Não precisamos do passado para isso, apenas do presente. Esse é o primeiro
motivo pelo qual não precisamos nos desesperar achando que não vamos
nos curar se não conseguirmos ligar os pontos da história. Podemos sempre
trabalhar com o aqui e agora, mesmo que o antigamente esteja trancado a
sete chaves.
Mas existe um segundo motivo mais prático: não é verdade que nós não
lembramos. Nossas lembranças surgem diariamente em nossa relação com
nós mesmos e com os outros, basta sabermos reconhecê-las. Toda vez que
nossos gatilhos são disparados – ou seja, toda vez que nos vemos tendo uma
reação emocional indesejada e incompreensivelmente exagerada –, isso é o
passado aparecendo: um eco de nossa infância como de fato a vivenciamos,
mesmo que não seja como a recordamos conscientemente. Existem jeitos de
recuperar essas lembranças codi cadas e descobrir suas origens usando
emoções do aqui e agora e experiências do corpo.6
A própria palavra gatilho é uma pista importante. Ela se tornou uma
espécie de bala de canhão retórica, disparada de um lado para o outro por
lados opostos em vários debates e confrontos, raramente aprofundando a
discussão, com frequência encerrando-a. No entanto, se a examinarmos
mais de perto, essa palavra tem muito a nos ensinar sobre nós mesmos.
Pense o seguinte: qual o tamanho do gatilho em relação à arma como um
todo? Na verdade ele é minúsculo; talvez seja o menor dos seus
componentes visíveis. A arma tem também munição, material explosivo,
muitas vezes um sistema de mira e um mecanismo para disparar a carga
contra o alvo com a força desejada. Se quando nossos gatilhos são acionados
nós concentramos nossa ira apenas nos estímulos externos que nos afetam,
perdemos uma oportunidade de ouro para examinar que munição e cargas
explosivas nós mesmos carregamos desde a infância.
Revisitemos rapidamente a questão da “infância feliz”, tantas vezes
alegada apesar de di culdades posteriores com doenças, dependências ou
distúrbios emocionais. O objetivo de acessar uma história mais completa
não é gerar autocomiseração, tampouco eliminar do registro os momentos
genuinamente bons. O objetivo é o seguinte: para fazer as pazes com nossos
algozes internos, precisamos primeiro compreendê-los no contexto de suas
histórias de origem. É a compaixão do contexto.
Certa vez me pediram que desse um depoimento de especialista num
caso de assassinato em que o réu, alcoólatra contumaz, fora avaliado por três
psiquiatras e criado num ambiente supostamente feliz. Dez minutos após
começarmos nossa conversa na cela da cadeia, ele me contou que o pai bebia
muito e a mãe era deprimida. Quando tinha 4 anos, o irmão quebrou seu
braço e tocou fogo no seu cabelo; mais tarde, ele sofreu bullying na escola.
Nunca tinha lhe ocorrido – nem aos especialistas forenses que aceitaram sua
“história” feliz sem fazer mais perguntas – que a história real pudesse
contradizer, ou mesmo desalojar, suas lembranças pasteurizadas. Ele
tampouco estava sendo insincero: aquilo era tudo que ele sabia. Decerto
estava se agarrando com força a momentos genuinamente bons, uma
apresentação de slides cuidadosamente selecionados das lembranças que ele
havia intitulado “Minha infância feliz”.
O mito da infância feliz não requer extremos tão óbvios para que suas
rachaduras quem aparentes. Lembre-se de Erica Harris, confessadamente
viciada em trabalho e sobrevivente de leucemia, de um duplo transplante de
pulmão e de uma infecção do sangue potencialmente fatal e resistente aos
remédios. Em determinado momento de nossa conversa, ela comentou: “Fui
agraciada com o que muita gente chama de infância muito feliz, abençoada.
Nós tínhamos dinheiro, eu tinha um montão de amigos, então não sofria
bullying… não tive nenhuma dessas circunstâncias de vida radicais. Mas aos
12 anos tive muitas di culdades.” Um con ito familiar a deixou triste,
confusa e atarantada. Ela acredita que foi então que sofreu sua ferida
traumática.
Na verdade, como revelou minha pergunta seguinte, seu desconforto
com ela mesma vinha de muito antes, da sua “infância muito feliz e
abençoada”. É uma pergunta que sempre faço aos meus clientes e a quem me
escuta, e que agora farei a você, leitor ou leitora. Qualquer um cuja memória
consciente seja de uma infância feliz – categoria que pode variar entre
inócua e idílica – mas mesmo assim tem alguma doença crônica, alguma
di culdade emocional, alguma dependência ou di culdade de ser autêntico
está convidado a pensar o seguinte:
Quando eu me sentia triste, infeliz, com raiva, confuso, atarantado,
solitário, importunado, com quem ia falar? Para quem eu contava? Em quem
podia con ar?
Repare nas suas respostas, e também no que você sente em relação a
elas. Se, como no caso de Erica, a resposta for “ninguém”, ou então indicar
qualquer outra coisa que não a presença de um “alguém” adulto disponível
de forma consistente, certamente estava havendo alguma desconexão inicial.
(Um irmão ou uma irmã mais velha e amorosa podem sob certos aspectos
substituir pai ou mãe, mas é improvável conseguirem ocupar totalmente o
seu lugar. E, mesmo nesse caso, isso indica uma desconexão do cuidador
adulto.) Nenhum bebê se impede de manifestar para os pais exatamente o
que está sentindo ou de demonstrar quando precisa de ajuda. Se a criança
quando mais velha não faz isso, trata-se de uma adaptação anormal do
desenvolvimento, verdadeiramente devastadora para algumas pessoas e que
serve de base para as feridas subsequentes.
Assim, a supressão da tristeza infantil não está circunscrita ao trauma ou
ao abuso. Nunca tratei nem entrevistei ninguém com uma doença física ou
um distúrbio mental crônicos que fosse capaz de recordar que
compartilhava aberta, livre e irrestritamente sentimentos infelizes com seus
cuidadores ou outro adulto de con ança. Esse é um aspecto da vida que a
maioria das lembranças de infâncias felizes deixa de fora, pelo simples
motivo de que é mais fácil recordar o que aconteceu do que o que não
aconteceu mas deveria ter acontecido. As lembranças agradáveis que temos,
embora genuínas, são bidimensionais, e lhes falta a profundidade e o corpo
da experiência real da criança. Até conseguirmos criar um vínculo com essa
terceira dimensão interna, nos faltará a percepção de profundidade para nos
vermos de modo completo, e a cura e a inteireza cam bloqueadas.
Para quem ainda não se comoveu com o fato de “não ter ninguém com
quem falar” ser algo traumático, ilustrarei a questão com a conversa que tive
com Erica, que não foi submetida a nenhum abuso nem nunca chegou
sequer perto disso. Propus a ela meu experimento mental de sempre,
incentivando-a a sair de dentro de si mesma e imaginar outra criança, a
saber a própria lha, numa situação parecida. Nossa conversa, que considero
um estereótipo, foi assim:
“Se você, como mãe, descobrisse que sua lha teve aos 12 anos um
choque emocional parecido com o que você vivenciou, mas não falou com
você, como explicaria isso?”
“Ela não con ou em mim.”
“E como é para uma criança não con ar nos pais?”
“Isso seria uma coisa horrível. Eu não me sentiria segura e protegida. Eu
me sentiria por conta própria, muito sozinha.”
Ali estava, portanto, a “infância muito feliz e abençoada” de Erica como
fora de fato vivida. E nada disso signi ca que seus pais não a amassem ou
que não teriam feito tudo que podiam pelo seu bem-estar. Signi ca apenas
que alguma desconexão essencial aconteceu no início desse relacionamento.
Não começou de repente quanto ela estava com 12 anos, mesmo tendo sido
nessa idade que a coisa cou clara.
Por m, as pessoas com frequência fazem comparações que rebaixam de
modo injusto a própria experiência. Embora você possa sentir uma gratidão
justi cada pela infância que teve, o fato de outros terem sofrido “mais” do
que você não diminui em nada a sua própria dor, nem apaga as marcas que
ela deixou na sua psique. Os níveis de trauma não devem ser avaliados,
muito menos classi cados numa escala. Você pode, por exemplo, ter se
tranquilizado de um jeito muito parecido com o de Erica: “Nós tínhamos
dinheiro, eu tinha um montão de amigos, então não sofria bullying… não
tive nenhuma dessas circunstâncias de vida radicais.” “Que sorte”, eu em
geral retruco. “Mas imagine só por um instante sua sobrinha ou seu
sobrinho pequenos vindo procurar você aos prantos: ‘Estou me sentindo
muito triste, sozinho e confuso, e estou com medo de contar para a mamãe
ou para o papai.’ Se você quisesse mostrar seu apoio a ela, mandaria a
criança embora dizendo: ‘Ah, deixe disso, qual é o problema? Pense em
todas as crianças que estão passando di culdades na vida, entre elas fome,
abuso ou bullying. Já você não tem nada do que reclamar.’ É isso que você
diria para essa criança se quisesse que ela soubesse que é seguro sentir o que
está sentindo, que independentemente de qualquer coisa ela é digna de
amor?” Ainda estou para ouvir alguém responder que sim; quando lhes faço
a pergunta dessa forma, as pessoas conseguem en m escutar nela o duplo
padrão absurdo que aplicam a si mesmas.

Já perto de concluir, uma história:


Muito tempo atrás, perdemos nossa inteireza quando o time de estrelas
formado por nossos amigos internos – Culpa, Ódio de Si, Supressão,
Negação e Companhia – chegou para garantir nossa segurança. Não tivemos
como recusar, claro, e praticamente não reparamos neles enquanto eles
cumpriam suas tarefas. Como uma equipe de cenogra stas de reality show,
eles remodelaram nossa personalidade para que pudéssemos sair inteiros da
infância: decoraram determinados cômodos e interditaram outros,
instalaram alarmes, trancaram a porta da adega. Mas como conseguiram
nos manter intactos, isso fez com que chegássemos à idade adulta sem
acesso a partes fundamentais de nós mesmos. Eles zeram bem o seu
trabalho.
Depois de morar por muitos anos nessa casa abafada e dividida,
começamos a ansiar por uma existência mais espaçosa, mais arejada. Então
nós agradecemos aos especialistas pelo seu trabalho e os mandamos embora
para fazerem um merecido lanche. E com toda a delicadeza, mas
diligentemente, nos dedicamos a uma nova tarefa, literalmente o antídoto
para o desmembramento psíquico que foi exigido de nós muito, muito
tempo atrás: a tarefa de juntar outra vez nossos pedaços.
31

Jesus na tenda:
psicodélicos e cura

A única cura que eu conheço é uma boa memória.


– LESLIE MARMON SILKO, Ceremony

Um dia de manhã, não faz tanto tempo assim, fui expulso do meu próprio
retiro por um grupo de xamãs shipibo. Na noite anterior, no calor úmido da
selva, esses homens e mulheres nada sabiam a meu respeito; quando o dia
raiou, já entendiam tudo que precisavam entender, então me dispensaram.
Fizeram isso pelo bem-estar dos pro ssionais de saúde que tinham vindo de
muitas partes do mundo trabalhar comigo, e para meu eterno benefício.
Para chegar ao Templo do Caminho da Luz, é preciso trocar de avião em
Lima e voar uma hora e meia até Iquitos, no norte do Peru. De lá, pelo meio
da luxuriante oresta tropical, desce-se o caudaloso rio Nanay, a uente do
Amazonas, passando de vez em quando por vilarejos ribeirinhos.
Ocasionalmente, o rio se estreita a ponto de podermos tocar a mata tropical
verdejante.
Chegamos num dia em meio a um período de chuva forte. Calçamos
galochas para percorrer a trilha na mata, onde a lama avermelhada tem
alguns trechos fundos. Mais de uma vez as galochas que me deram, vários
números maior do que o meu, cam presas na lama, e dependo de nossos
ajudantes shipibo para me levantarem, recuperarem as galochas presas e
tornarem a me calçar. Depois de 45 minutos caminhando pela selva densa e
alagada, a trilha se estreita à medida que começamos a subir um morro para
chegar ao nosso destino.
Fui convidado a esse lugar para conduzir um retiro de cura para
pro ssionais da saúde de quatro continentes, vindos de países como
Romênia, Grã-Bretanha, Austrália, Brasil, Canadá e Estados Unidos. Os
participantes são psicoterapeutas, psicólogos, psiquiatras, orientadores
psicológicos, médicos de família e especialistas em medicina interna. Somos
24 no total, já que essa é a capacidade máxima da maloca, a habitação
coletiva de palha onde vão ocorrer as cerimônias da ayahuasca. Muitos
lugares no Peru e outros países da Amazônia oferecem esse tipo de ritual,
alguns íntegros e de boa-fé, outros mais interessados nos dólares que o
turismo traz.1 O Templo do Caminho da Luz é conhecido como um dos
melhores. Quem o administra é um inglês chamado Matthew, cuja salvação
pessoal muito deve à planta e às práticas tradicionais relacionadas a ela. Os
xamãs pertencem ao povo de origem peruana shipibo, assim como os
funcionários que atendem as construções cerimoniais e os salões de jantar e
de reunião. Os funcionários do templo trabalham muito próximos aos
curadores espirituais nativos, tomando cuidado para honrar seus costumes
tradicionais ao mesmo tempo que tentam proporcionar uma experiência
signi cativa e palatável para a clientela ocidental majoritariamente neó ta.
Em geral há também alguns voluntários internacionais.
Venho organizando há uma década retiros que usam a bebida amarga
preparada a partir da planta mística ayahuasca. Esses eventos misturam a
tradição amazônica do vegetalismo, sistema muito antigo e altamente
so sticado de cura pelas plantas, com minha abordagem terapêutica da
investigação compassiva. As sessões da planta são conduzidas pelos xamãs à
noite; eu em geral participo, e tomo la medicina junto com os participantes.
Meu trabalho começa durante o dia, quando ajudo as pessoas a formularem
suas intenções para a cerimônia. Uma intenção pode assumir a forma de
uma questão pessoal espinhosa que elas queiram esclarecer, de uma emoção
difícil que esperam conseguir explorar ou de uma qualidade interna que
desejam cultivar com o auxílio dessa substância. No dia seguinte, eu as
ajudo a processar e integrar quaisquer revelações, pensamentos, emoções,
visões, aparições aterrorizantes ou assombros oníricos, sensações,
desconfortos físicos ou tédio absoluto que elas tenham experimentado
enquanto os xamãs entoavam seus cânticos na roda e executavam sua cura
energética.
Ao longo dos anos passei a apreciar esse trabalho de facilitador, e ajudei
pessoas a superarem depressões e vícios e a se curarem de doenças físicas.
Por algum motivo, quando as pessoas atravessam o portal da ayahuasca, eu
me vejo altamente sintonizado com a natureza de seus obstáculos e com as
nuances das suas descobertas, e consigo guiá-las intuitivamente enquanto
elas trazem suas novas e ainda frágeis percepções de volta para o plano
consciente normal. Fico inspirado e comovido com as transformações que
regularmente testemunho, transformações essas que, de modo grati cante,
se alastram para fora e adentram a vida dessas pessoas para muito além da
semana de retiro.
No que diz respeito à minha própria transformação, porém, a história é
outra. Durante toda a minha vida, independentemente de qualquer
revelação que tenha tido ou ajudado a potencializar, uma certeza pessimista
dominou minha opinião em relação às minhas próprias chances de cura. Já
participei de dezenas de cerimônias da ayahuasca sem acreditar que muita
coisa pudesse acontecer comigo, e em geral esse meu pessimismo acaba
recompensado: nada de visitas nem de aparições, nenhum antepassado ou
espírito animal, nem sequer um pensamentinho profundo, só um leve enjoo
e o desejo de que mais coisa acontecesse. Certamente um punhado de
experiências comoventes aprofundaram minha gratidão ou apreciação das
muitas bênçãos em minha vida, mas, apesar disso nada, nem mesmo esses
encontros positivos com a planta conseguiram modi car a visão negativa da
minha mente, assombrosamente teimosa e digna do personagem Bisonho, o
burro deprimido da turma do Ursinho Pooh.
Entramos na primeira cerimônia, todos os 24, e junto com a gente seis
xamãs indígenas, três maestras e três maestros, todos com no máximo um
metro e meio de altura, vestidos de branco e usando cintos e faixas de cores
vivas. Cada um de nós será visitado por cada um deles sucessivamente: seis
cânticos personalizados para cada participante. Entremeados a períodos de
silêncio na maloca escura – sem contar os trinados, coaxares e pios das
criaturas noturnas à nossa volta – são entoados cânticos hipnóticos nas
cadências ancestrais da língua shipibo, ao mesmo tempo suaves e potentes.
Sob a in uência da amarga bebida, esses cânticos podem assumir qualidades
sinestésicas: algumas pessoas veem imagens, outras vivenciam cada sílaba
como sensações físicas ou então viajam em sua mente até lembranças há
muito enterradas. Poucos, como eu, vivenciam a ausência desconcertante
dessas coisas.
Toda vez que um xamã se senta diante da minha esteira, eu me reteso,
desa ando-o em silêncio a fazer o pior de que for capaz. Vai, penso eu, tente
atravessar as barricadas dessa psique. Saber muito bem que essa atitude não
ajuda não impede a voz interior de falar primeiro e mais alto do que todas as
outras. De modo previsível, nada acontece, a não ser as costumeiras
frustração e decepção. (O que está longe de ser “nada”, eu assinalaria se
estivesse orientando outra pessoa. Qualquer experiência numa cerimônia
dessas pode ser rica em ensinamentos se abordada com compaixão e
curiosidade; obviamente isso é mais fácil de recomendar do que de praticar.)
Passo a maior parte do tempo dissociado, e mal reparo nos cânticos ou na
boa vontade direcionados a mim. No dia seguinte, depois de dormir e de
comer adequadamente, o grupo se reúne e, como de costume, presto minha
orientação certeira. À medida que cada um descreve suas experiências de
dor ou incompreensão, eu os ajudo a dar sentido às próprias visões e a
relacionar os ensinamentos da planta à própria história de vida. No meu
papel de curador espiritual e professor, consigo facilmente deixar qualquer
cinismo de lado; o retiro não tem a ver comigo. Tudo está correndo bem.
Durante o almoço, Matthew me puxa num canto. Os xamãs querem
falar comigo, diz ele; o grupo elegeu dois porta-vozes para comunicar uma
decisão coletiva. Recebo a notícia por meio de um intérprete. “O senhor tem
uma energia densa e escura que os nossos 2 não conseguem penetrar”, dizem
eles. “Essa energia se espalha pelo recinto e atrapalha nosso trabalho com os
outros. Não podemos ter o senhor aqui.” Antes de eu poder reagir, eles
acrescentam que eu não posso trabalhar com o grupo nem mesmo durante
o dia.
Dizer que co surpreso é um eufemismo. Meu ego não gosta nadinha
daquilo; por acaso aquelas pessoas não reorganizaram suas vidas e vieram
de todas as partes do mundo até uma oresta tropical especi camente para
trabalhar comigo? Com certeza deve haver algum jeito, algum meio-termo
possível. Os xamãs se mostram irredutíveis. “Mesmo durante o dia”,
explicam eles,

sua energia teria um efeito perturbador nos outros, e mais importante


ainda: você estaria absorvendo seus lutos e traumas. Como médico, o
senhor obviamente já faz isso por muito tempo, trabalhar com pessoas
em di culdade, e não fez nada para eliminar isso de dentro de si. E bem
antes disso todos nós sentimos que o senhor deve ter passado por um
medo muito, muito grande no início da vida; e ainda não o superou. Por
isso sua energia é tão densa.

Até a noite anterior, esses xamãs nunca tinham ouvido falar de mim.
Com exceção de saber que sou médico, não conhecem nem minha história
de origem nem o trabalho que faço. Ainda assim, eles souberam me ler com
absoluta precisão. Mesmo consternado, sinto e entendo na mesma hora que
eles têm razão. “Nós podemos ajudá-lo”, prometem eles. Apesar das suas
garantias, tenho sérias dúvidas de que consigam. Mas o que me leva a seguir
sua orientação não é só a deferência, tampouco a fé cega. Parece que algo
dentro de mim sente alívio por poder transferir a responsabilidade.
Passo os 10 dias seguintes socialmente distanciado do restante do retiro,
por assim dizer. Permaneço isolado em meu chalé, exceto durante as
refeições no salão, quando não interajo com os participantes; felizmente,
eles estão nas mãos capazes de um colega americano meu. Durante essa
quarentena psíquica, eu medito, leio livros sobre espiritualidade, faço ioga,
caminho pelas trilhas na oresta e contemplo a natureza. Reações mentais e
emocionais variadas a essa estranha situação vêm e vão. Noite sim, noite
não, numa tenda cerimonial exclusiva, um dos xamãs me serve o remédio,
em seguida passa mais de três horas entoando cânticos em shipibo só para
mim. Sopra fumaça, agita os braços acima de mim, pousa as mãos no meu
peito ou nas minhas costas. Quase sempre canta em sua língua materna,
mas às vezes entoa acima da minha cabeça hebraica hinos católicos em
espanhol que falam sobre Espírito Santo, Santa Maria e Jesus. Sua voz, ora
um grave profundo de barítono, ora um tenor anasalado insistente ou um
falsete agudo, é indescritivelmente maleável e bela. Na escuridão opaca da
maloca, esse homenzinho se avulta como um gigante. A cada dia que passa
eu me sinto mais leve, com a mente menos preocupada. Mesmo assim, nas
primeiras quatro dessas noites de cerimônia nenhuma visão surge, nenhuma
experiência profunda, apenas uma sensação crescente de relaxamento e
gratidão.
Ao cabo da quinta e última cerimônia – eu acho – com os não resultados
previstos, me sinto mesmo assim puri cado e agradecido. Com a ajuda do
intérprete Publio, co conversando animadamente com o maestro. De
repente, no meio de uma frase, eu me jogo na esteira, ou melhor, sou atirado
de bruços no chão com uma força repentina e involuntária. A ayahuasca
en m assumiu a direção, e eu sou um passageiro impotente. Estou
nalmente, indiscutivelmente, abençoadamente fora do controle.
Mais tarde me dizem que passei quase duas horas de bruços no chão.
Para mim poderiam ter sido dois dias: no turbilhão das visões, a noção do
tempo se perdia. Durante todo esse período, sentados de pernas cruzadas,
imóveis e calados, Publio e o xamã caram de vigília ao meu lado. Não
preciso, na verdade não consigo descrever o que vivenciei, mas lembro da
alegria transcendental que senti.
O que consigo articular é o que vi bem no nal. Num céu azul-escuro
que parecia uma tela, traçada em letras gigantes feitas de nuvens, estava
escrita a palavra BOLDOG: “feliz” em húngaro. A visão e a paz interior por
ela evocada vieram de um lugar além do pensamento – além até, eu ousaria
dizer, do meu inconsciente.3 Aquilo ao mesmo tempo estava além de mim e
fazia profundamente parte de mim, conectando o que quer que eu antes
pensasse ser “eu” a algo misterioso, transcendental e assombroso. Esse
mesmo estado – amplo e consciente, desfragmentado, livre de preocupação
com ele mesmo – permeia minha consciência agora ao revisitar a
experiência e re etir sobre as suas lições (das quais voltarei a falar no
próximo capítulo).
Pode ser que o leitor ou a leitora esteja se perguntando o que aconteceu
com os pro ssionais da saúde que tinham viajado tão longe para fazer o
trabalho com a planta sob minha orientação. Informo que a maioria se saiu
extremamente bem. Meu colíder fez o seu trabalho de forma admirável. E
apesar de toda a sua compreensível decepção, e contrariando meus temores
de um motim, as pessoas entenderam que eu estava lhes servindo como um
exemplo de disposição para cuidar de si mesmas. Talvez fosse esse o
ensinamento de que aqueles curadores espirituais sobrecarregados de
trabalho, fatigados de compaixão e eles próprios feridos mais precisavam;
certamente assim pensavam os xamãs. O templo já tinha hospedado muita
gente da Europa e da América do Norte, mas nunca um grupo de
pro ssionais da medicina, e os curadores espirituais shipibo comentaram
depois, para a própria surpresa, que nunca tinham trabalhado com um
“pessoal tão pesado”. “Como somos nós mesmos curadores”, disseram eles,

precisamos encarar todas as dores e traumas que as pessoas nos trazem,


mas nós nos cuidamos: regularmente limpamos essas energias de nosso
corpo e de nossa alma, para que não se acumulem e nos
sobrecarreguem. Imaginamos que vocês médicos zessem a mesma
coisa. Mas não: vimos que chegaram aqui vergados sob o peso dos lutos
e das energias pesadas que vêm absorvendo há tantos anos.

Falei recentemente com um médico que estava no retiro, um especialista


de quase 60 anos que ocupa um cargo médico alto nas Forças Armadas do
Canadá. Seus pacientes muitas vezes padecem de uma mistura de lesões
físicas e TEPT. “Estou encontrando muita alegria no meu trabalho agora”,
disse ele. “Eu estava cansado, cínico. Depois de 32 anos, mal podia esperar
para me aposentar. Agora não vejo a hora de me conectar com as pessoas
num nível real, e não de forma rasa, arti cial e medicalizada.” Ouvi relatos
parecidos de muitos dos outros sobre quanto eles tinham se bene ciado do
fato de os xamãs terem demitido o “doutor Gabor”.
Na manhã seguinte ao dia em que li no límpido céu azul a palavra “feliz”
em húngaro, Publio perguntou ao xamã o que ele tinha achado da minha
viagem. O maestro sorriu. “Ah”, disse ele, “o doutor Gabor estava
comungando com Deus.”

Em algum momento após a publicação em 2009 do meu livro sobre


dependência, In the Realm of Hungry Ghosts, comecei a receber perguntas
sobre o que sabia em relação ao uso terapêutico da ayahuasca. Na época a
resposta era “nada”, assim como eu nada sabia sobre o potencial curativo
dos psicodélicos de modo geral. Embora sempre tivesse me interessado por
investigar formas de cura diferentes do modelo médico ocidental, no
começo eu achava essas perguntas incômodas. Não queria aprender sobre
nada tão estranho e novo, nada tão “radical” assim. Tampouco podia
imaginar como uma substância psicodélica poderia ajudar alguém a superar
uma dependência, ou ajudar a curar o TEPT, ou a descondicionar os
padrões arraigados de autossupressão que tantas vezes contribuem para a
doença.
De lá para cá, desenvolvi um profundo respeito pelo poder sinergético
dos psicodélicos aliado às percepções e práticas da psicologia moderna.
Respeito talvez seja uma palavra demasiado branda; reverência está mais
próxima da verdade. Ao longo dos anos, trabalhei com pessoas que lutavam
contra o uso de drogas e o vício em sexo, pessoas que enfrentavam câncer,
doenças neurológicas degenerativas, depressão, TEPT, ansiedade e fadiga
crônica, além daquelas que buscavam inteireza, signi cado e uma
experiência de seu verdadeiro eu. Em todos esses casos, as pessoas
procuraram se liberar de padrões arraigados, habituais e restritivos. Já vi
pessoas procurando sua criança interior vulnerável e inteiramente viva, seu
pai e sua mãe, o amor, Deus, a verdade, uma comunidade, a natureza. Não
posso dizer que todas tenham encontrado tudo que estavam buscando. O
que posso a rmar é que a maioria deu passos importantes em seu caminho
rumo à autenticidade, e encontrou uma liberação signi cativa de seus
padrões mentais e comportamentos limitadores ou mesmo debilitantes.
Um homem na casa dos 30 anos, socorrista na Colúmbia Britânica, me
escreveu o seguinte:

Desde minha primeira experiência com ayahuasca, vários meses atrás,


tenho vivenciado diariamente essa mudança na minha consciência.
Minha presença dentro de mim mesmo e com os outros, inclusive os
animais, é outra. Vejo tudo que z de uma perspectiva inteiramente
nova e vivencio isso. Sou capaz de ver a diferença que faço para aliviar a
dor alheia, e para ajudar os outros a se verem sob outra luz.

Um corretor de imóveis de Nova York que participou de um de nossos


retiros disse algo na mesma linha: “Nas minhas preocupações capitalistas do
dia a dia, eu agora com frequência medito sobre maneiras possíveis de
ajudar as pessoas de uma forma mais profunda.” E uma mulher cuja vida foi
arruinada pela dor crônica e pela dependência, com um histórico de abuso
sexual na infância, escreveu: “Hoje me assombro com as bênçãos da vida e
com a natureza sagrada e preciosa da vida. Nunca tinha entendido isso
antes.”
Com certeza, antes da transcendência espiritual, a experiência
psicodélica precisa primeiro penetrar os recônditos mais ocultos de
tormento na psique. “Hoje à noite senti a dor de quando era um feto, e então
a liberei para o céu”, relatou um rapaz depois de uma cerimônia com a
planta.

Eu vinha pedindo ao remédio que me levasse até lá, até meu sofrimento
mais profundo e fundamental, mas isso não tinha acontecido. E hoje à
noite de repente eu estava lá, no útero, e senti a dor mais forte que acho
que jamais senti. Foi horrível. Isso me consumiu totalmente. Fiquei ali
com a dor pelo máximo de tempo que aguentei, porque sabia que era
aquilo que eu precisava vivenciar. Então saí, e sem hesitação liberei essa
dor para o céu. A partir do pior sentimento que sou capaz de recordar,
eu estava tendo um dos mais felizes.

O livro de Michael Pollan, Como mudar sua mente: O que a nova ciência
das substâncias psicodélicas pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios,
depressão e transcendência, abriu muitos olhos para as possibilidades
curativas dos psicodélicos. “As pessoas estão ávidas por alguma coisa”, me
disse o autor de sucesso.

É muito difícil dizer o quê, mas me parece que elas com certeza estão
procurando uma dimensão espiritual em sua vida. Além disso, temos
níveis muito altos de doença mental: as pessoas estão sofrendo de todas
as formas, e os tratamentos de saúde mental disponíveis são
completamente inadequados e não estão à altura.

Pollan reconheceu que tinha levado um susto com a recepção do seu


livro no mundo médico, eleito um dos 10 melhores do ano pelo e New
York Times. “Pensei que fosse haver muita resistência da psiquiatria, de
pessoas que trabalham com atendimento de saúde mental”, disse ele. “Mas
elas sabem como o armário de remédios está vazio de substâncias e
modalidades de cura e cazes. Esse renascimento da medicina psicodélica
está surgindo num momento em que é mais urgente do que jamais imaginei
quando escrevi o livro.” Seu tema abarca plantas cerimoniais tradicionais
como ayahuasca, peiote, tabaco e cogumelos, e inclui também substâncias
modernas arti ciais como os psicodélicos LSD (ou ácido) e MDMA (droga
psicoativa conhecida popularmente como ecstasy ou bala), ambos cada vez
mais estudados em ambientes terapêuticos, com resultados animadores.
Muitas vezes identi camos a palavra psicodélico com expressões como
“alteração de consciência”, mas um exame de sua etimologia nos leva para
mais perto da verdade. O psiquiatra britânico Humphry Osmond, que
cunhou a palavra a partir dos gregos psyche, “alma”, e deloun, “revelar, tornar
visível”, utilizava-a para designar uma “manifestação mental”. Em outras
palavras, não para alterar nem sequer “expandir” a mente, mas para revelar
a consciência a ela mesma.4 O uso terapêutico dos psicodélicos exige um
ambiente adequado e a intenção e a orientação corretas. Isso é
absolutamente fundamental; na ausência dessas condições, o uso de
psicodélicos pode com bastante frequência levar a um pesadelo digno de
Aprendiz de feiticeiro. Em sessões conduzidas da forma adequada e em
circunstâncias seguras, por sua vez, eles podem revelar e ajudar a aceitar
dores e tristezas das quais as pessoas passaram a vida inteira tentando fugir,
e também deixar ver a paz, a alegria e o amor que existem no cerne de estar
vivo, coisas muitas vezes soterradas sob o edifício da personalidade
condicionada.
Leitores interessados nas pesquisas e dados cientí cos por trás do
ressurgimento das terapias psicodélicas em nossa época podem consultar o
livro muito completo de Pollan, ou então os muitos estudos cientí cos que
não param de ser publicados no mundo inteiro.5 Direi aqui apenas que, após
mais de uma década de experiência como participante, médico e curador
espiritual, quei mais do que impressionado com as possibilidades dos
psicodélicos, cuja raiz está na unidade mente-corpo que exploramos. Já vi
pessoas se recuperarem de todo tipo de vício, inclusive em pornogra a,
cigarro, álcool e drogas; de problemas de saúde mental como depressão e
ansiedade; e de males físicos como esclerose múltipla e doenças reumáticas.

Lembre de Mee Ok, do capítulo 5: a coreana traumatizada e sexualmente


molestada adotada em Boston com um diagnóstico de esclerodermia
avançada, que não conseguia mover o próprio corpo “mumi cado”, como
ela dizia, sem ajuda. À beira da morte, desenganada pela medicina
ocidental, ela em determinado momento viu na morte a única escapatória
possível daquele sofrimento. Numa noite, sozinha, Mee Ok tomou um
pouco de ayahuasca que conseguira não se sabe como. Naquela noite, pela
primeira vez em meses, conseguiu se levantar da cama, car em pé e
caminhar sozinha. A experiência foi transformadora. “Em vez de me ver
como Mandy6 e me identi car com meu corpo físico”, disse ela, “ou seja,
com a minha origem demográ ca, minha raça, meu gênero e tudo isso, a
ayahuasca me ajudou a ver em mim um núcleo mais profundo, que
continuaria a existir mesmo que tirasse todos esses elementos.”7
De lá para cá, Mee Ok participou de um de meus retiros e recebeu
outras formas de terapia e tratamento físico. Como mencionei no capítulo 5,
ela agora consegue se locomover de modo independente, é ativa sicamente
e no momento está escrevendo sua autobiogra a. “Antes, quando eu estava
muito doente”, lembrou ela,

via a coisa toda como se tudo na vida tivesse me acontecido. “Esse é o


meu destino; eu vou morrer. Não tenho voz nenhuma nisso.” E nunca
tive mesmo… Quando vi que havia um motivo por trás disso tudo, aí
pude procurar signi cado. Foi uma baita mudança conceitual para mim.
Me dei conta de que todos os traumas que tive na vida podiam ter um
signi cado, e que eu podia escolher a vida que devo viver. Esses traumas
caram então administráveis, ao passo que antes eu nem sequer
conseguia acessá-los. Não conseguia me lembrar de grande coisa da
minha infância. A ayahuasca de fato foi revelando aos poucos muitas
dessas lembranças, e tudo aquilo que eu tinha esquecido: quem eu era
quando criança e quem realmente sou.

Conversei com a médica de família de Mee Ok em Boston, que


con rmou o histórico médico e a recuperação que ela própria, médica, era
incapaz de explicar. Mas do ponto de vista da ciência do corpo-mente não
há nada de milagroso ou sequer surpreendente nessa recuperação. Quando
Mee Ok se reconectou com seu autêntico eu – no caso dela com o auxílio de
uma planta, mas o princípio pode ser generalizado –, ela conseguiu se
desvencilhar da personalidade con nada pelo trauma. Começou a se
libertar do conjunto condicionado de crenças, comportamentos e emoções,
e consequentemente das reações siológicas que eles impunham. Seu corpo
então a seguiu – seu sistema nervoso, seu sistema imunológico e seus tecidos
– pelos caminhos que já descrevemos.
Para além do universo da cura, muitos constataram que os psicodélicos são
professores com um poder transformador. Certamente, em seus contextos
originais, as plantas medicinais eram e são consultadas por muitos outros
motivos além da cura e do alívio da dor: xamãs consultavam o espírito
dessas plantas para obter orientações para a comunidade, prever padrões
climáticos e de caça, comungar com os antepassados e ajudar a criar paz
entre grupos rivais e, o mais importante de tudo, simplesmente para
conhecer e aprender como elas funcionam. Estima-se que cada planta –
inclusive muitas ores, arbustos e árvores que pelos nossos padrões não
seriam considerados psicodélicos – tem a própria sabedoria para transmitir,
e as próprias propriedades cujo aprendizado pode requerer anos de prática e
dedicação. O antropólogo Wade Davis é efusivo em sua avaliação:

Sempre digo aos jovens que nossos pais tinham um medo danado dessas
substâncias, sabe, que viviam gritando: “Não tome isso. Você nunca mais
voltar igual!” Mas era justamente essa a ideia. Nesse sentido sou muito
aberto em relação ao papel catártico que essas substâncias tiveram na
minha vida, e a quão valiosas elas são. Se tem uma coisa que eu sei, é que
esses remédios me permitiram compreender nossa conexão com o
mundo natural de uma forma que nem em 1 milhão de anos poderia ter
acontecido só lendo livros.

Como podem os psicodélicos ter efeitos transformadores tão potentes?


Por meio da unidade corpo-mente que exploramos, e do seu poder de
acessar o inconsciente onde, ocultas da consciência, residem muitas das
emoções e motivações que orientam nossa vida. Sigmund Freud certa vez
a rmou que os sonhos são a estrada real para o inconsciente. Pode-se dizer
que os psicodélicos são uma estrada mais direta ainda. Rick Doblin,
fundador e diretor-executivo da Associação Multidisciplinar de Estudos
sobre Psicodélicos, foi um pioneiro do impulso de investigação das
modalidades de tratamento com essas substâncias. “Existe uma membrana
entre a mente consciente e a mente inconsciente, entre aquilo em que
estamos prestando atenção e pensando e os sentimentos em níveis mais
profundos”, me disse Doblin quando conversamos pouco tempo atrás.

Os psicodélicos abrem essa membrana de modo que mais coisa possa vir
à tona. Cada substância faz isso de um jeito. Ela ao mesmo tempo
conecta você a partes de si mesmo que tinham sido suprimidas ou
ignoradas, mas você também consegue ver o mundo maior além de si,
além do próprio ego.

Ele traçou uma analogia com a revolução de Copérnico no século XVII.


“Temos tendência a acreditar, com nosso ego, que somos o centro do
Universo”, explicou ele.

Os psicodélicos dissipam essa ideia, e vemos que fazemos parte de algo


imenso, muito maior do que qualquer indivíduo, e que essa unidade
avança no tempo e também recua. Eles conseguem nos tirar de nossos
padrões habituais. Quando se deixa de olhar as coisas da perspectiva do
“eu”, tem-se a sensação de um potencial e de uma conexão que se
liberam.

As substâncias vegetais e os psicodélicos sintéticos não são “drogas” no


sentido médico da palavra. Um comprimido como o antidepressivo Prozac,
ou as facilmente acessíveis aspirina e codeína, tem por objetivo modi car,
enquanto você os estiver tomando, seu estado biológico – sua siologia.
Dependendo da sua situação, isso pode ser ou não uma coisa boa, mas esses
tratamentos farmacêuticos não foram criados para acessar causas originais e
dinâmicas inconscientes. Os remédios psicodélicos não são para serem
tomados diariamente de modo a manter você num estado siológico
alterado. Idealmente, eles podem ajudar a facilitar sua entrada numa nova
relação com você mesmo e com o mundo, muito tempo depois da sua
ingestão, seja numa cerimônia, como no caso da ayahuasca, ou numa
consulta terapêutica, como no caso do MDMA. De maneira real, essas
experiências recalibram o aparato emocional do cérebro. Não quei
surpreso, por exemplo, com um estudo recente mostrando que o uso de
psicodélicos reduzia as chances de homens praticarem violência contra suas
parcerias íntimas.8
Não sou nenhum evangelista da psicodelia. Ao contrário das fantasias
vãs de alguns entusiastas, nem os remédios psicodélicos extraídos de plantas
nem os sintéticos poderão, por si sós, transformar o atendimento de saúde
ou a consciência humana de modo geral. Para isso, teremos que aguardar
uma mudança social em escala gigantesca, a começar pela expansão da
ideologia médica convencional. Apesar de tudo que têm a oferecer,
atualmente os tratamentos psicodélicos são esotéricos, caros e demandam
tempo. Por motivos tanto práticos quanto culturais, estão fadados a
permanecer fora do alcance de muita gente. Mas seria negligência nossa
excluí-los e ignorar seu potencial de cura para muitas doenças endêmicas
diante das quais a medicina ocidental se vê em grande medida impotente.9
Por mais maravilhosos que possam ser seus efeitos, para nossos ns os
remédios baseados em plantas e outras substâncias que provocam
manifestação mental não são apenas interessantes em si, mas também
poderosos embaixadores dos princípios do “corpomente” que a ciência
moderna só agora está alcançando. As lições que eles transmitem são uma
prova do caráter indomável do espírito humano e da possibilidade de liberar
sua potência com ou sem substâncias e independentemente do que a vida
nos reserva. Sabemos hoje que em todos os continentes, e ao que parece em
todas as épocas registradas, as pessoas utilizaram a farmácia chamada Terra
para promover cura, conhecimento e plenitude espiritual, e de fato para
transmitir cultura de geração em geração.
A medicina psicodélica passou a exercer uma in uência importante na
vida de um dos últimos grandes líderes guerreiros originários da América
do Norte a ter desa ado a expansão incansável e genocida do colonialismo
de assentamento no Sudoeste do continente. Após sua inevitável derrota e o
con namento humilhante de seu povo em reservas cada vez menores, o
brilhante cacique comanche Quanah Parker passou a buscar consolo em
rotas espirituais. Ele trabalhou com o cacto do deserto chamado peiote e foi
o precursor do que viria a se tornar o peiotismo. Como de costume nas
práticas originárias, seu interesse não era a religião, mas a espiritualidade.
“O homem branco entra na sua igreja e fala sobre Jesus”, disse ele certa vez,
“mas o índio entra na sua tenda e fala com Jesus.”10
Depois da minha “comunhão com Deus” na selva peruana, pude sentir
na pele o que Quanah Parker quis dizer.
32

Minha vida como uma coisa


genuína: tocar o espírito

Em última instância, seu maior presente para o mundo é ser


quem você é; seu presente, e também sua plenitude.
– A. H. ALMAAS, Being and the Meaning of Life

Até o meu momento de límpido céu azul na selva peruana em 2019, a


espiritualidade existia para mim em grande medida como boatos, teorias ou
conceitos, ou então como um vago anseio, imbuído de melancolia e desejo.
Embora tivesse consumido prateleiras e mais prateleiras de livros e fosse
capaz de discorrer articuladamente sobre o tema, eu próprio jamais tivera
um contato direto com estados tão celebrados quanto o assombro, o
mistério ou “a paz que transcende qualquer entendimento”. Minha fé no
potencial da humanidade para uma transformação genuína, reveladora,
ainda que sincera, tinha chegado a mim em grande parte de segunda mão:
eu não conseguia relacionar essa fé a qualquer experiência própria. Ela
certamente não vinha de nenhuma crença divina ou de práticas devocionais
como as das religiões organizadas. Assim, o que aprendi no Peru
proporcionou a essas vagas possibilidades o estofo da experiência. Aquilo ia
além da crença, e tinha a ver com a essência da cura.
Deixando de lado as crenças literais, tudo que posso dizer sobre a
observação sem um pingo de surpresa do xamã de que “o doutor Gabor
estava comungando com Deus” é: amém. Algo transcendental de fato
aconteceu naquele dia de manhã: um encontro tardio com aquilo em mim
que ia além do “eu” com quem me identi quei por tanto tempo. Tive acesso
a um espaço onde estava consciente de mim mesmo como uma consciência
vasta, sem estar atrelado ao lastro biográ co autocon nante da minha
identidade. O uso do remédio guiado pelo xamã e, igualmente importantes,
meus dias de preparação interior, tinham me aberto para informações tão
fora das minhas estruturas de referência habituais que imaginava que nunca
seria capaz de acessar. Hamlet de Shakespeare tinha esse tipo de
conhecimento: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio/ Do que sonha
nossa vã loso a.”1
Em retrospecto, vejo que essa experiência, menos do que me instilar
novas crenças, relaxou e destravou a descrença militante da minha
personalidade, que pode ser tão fundamentalista quanto as certezas divinas
das seitas ultrarreligiosas. A atriz e ativista Ashley Judd tem uma expressão
incrível para designar esse salto de fé não literal: “Render-se a um Deus no
qual não se acredita.”

A primeira coisa que aprendi no Peru – e me re ro aqui a um aprendizado


direto, não a mais fatos acrescentados à pilha do conhecimento – foi que a
cura é externa à seara da mente pensante. Para começar, a mente é por
natureza uma casa dividida: nossa personalidade se contradiz o tempo
inteiro. No meu caso, parte de mim sempre manteve a esperança, ainda que
teórica, de que eu algum dia, sabe-se lá como, tivesse um instante de
“iluminação”, o verdadeiro eureca, enquanto outra parte permanecia
guardada, alimentando o cinismo e o pessimismo. O espírito, pelo contrário,
é uno. Nossa mente, o saber aprendido, pode armazenar princípios de cura
que valem a pena ser lembrados e podem até ajudar a nos conduzir a
experiências que curam. Mas vai chegar um momento, se desejarmos “ir até
o m”, em que essas protetoras de con ança precisarão parar na porta e
permitir a entrada de um elemento menos so sticado, mais vulnerável,
despido da armadura das certezas.
Em segundo lugar, aprendi que eu não poderia ter planejado aquilo.
Muito pelo contrário: toda a sequência de acontecimentos que me conduziu
até aquele instante destruiu qualquer plano que eu tivesse feito. Meu
ingresso no reino do espírito só poderia acontecer quando eu abrisse mão
da ilusão de controle e me entregasse por inteiro ao modo como as coisas
eram. Minha disposição de ter meu planejamento subvertido foi a minha
contribuição, o custo para que eu pudesse me sentar à mesa do mistério.
Em terceiro lugar, e estreitamente relacionado ao que acabamos de ver,
tive que fazer várias coisas difíceis: abrir mão da minha identidade de líder
ou curador espiritual, deixar de lado meu hábito de ajudar os outros sem
reservar tempo ou energia para minha própria transformação e aceitar
qualquer diminuição pessoal que eu temia fosse resultar de me afastar do
meu papel esperado. O maior desa o de todos foi superar os protestos
ressentidos do meu ego ameaçado: “Não posso decepcionar essas pessoas;
elas vieram até aqui para trabalhar comigo.” Minha identidade, a persona à
qual eu havia me agarrado por toda a vida, tinha sido inteiramente
subvertida. Tudo que lhe restava era negociar os termos da sua rendição.
A vida havia me colocado sabiamente numa situação em que eu não
tinha controle. Minha única opção era largar tudo e con ar – nos outros, em
mim mesmo e acima de tudo na direção que minha vida tinha subitamente
tomado – ou não. Ao escolher o sim, escolha pela qual eu talvez não tivesse
optado antes na vida, me foi aberta a possibilidade de uma experiência de
cura poderosa, de um contato com o divino. Não direi que o fato de eu ter
aberto mão do controle causou a cura – até onde sei, não é assim que a graça
funciona –, mas foi uma condição. Eu simplesmente por acaso estava
pronto, aos 75 anos, para fazer isso.
Nem todo mundo vai ou deveria se consultar com xamãs ou
experimentar plantas psicotrópicas; um número relativamente pequeno de
pessoas nem sequer tem probabilidade de um dia ter essa oportunidade.
Não importa. Minha experiência pessoal, embora em circunstâncias um
tanto incomuns, foi alimentada pelos princípios de cura universais que são o
o condutor deste livro, e que estão disponíveis para todo mundo: aceitar,
despir-se da identidade, escolher con ar no guia interior contrariando os
protestos da mente condicionada e ter a capacidade de ação genuína que
vem, paradoxalmente, de se dispor a abrir mão de um controle rígido. Se eu
consigo fazer isso, estou convencido de que qualquer um consegue –
contanto que esteja comprometido com a própria cura e permita que ela lhe
instrua, em vez do contrário.
Minha experiência com os xamãs no Peru também me ensinou algo
sobre o que a cura não é. Durante anos, eu havia me agarrado a uma ideia
xa de que, para me curar, precisaria passar por alguma liberação catártica
monumental, como já vi acontecer com outras pessoas, ou quem sabe voltar
de alguma forma no tempo para reviver ou redimir um passado difícil. Sim,
a cura pode assumir essa forma, mas não necessariamente. Mais uma vez,
não é o passado que precisa (ou pode) mudar, apenas nosso relacionamento
presente com nós mesmos. De bruços naquela esteira – dizem que gargalhei
e chorei em vários momentos – tive a profunda consciência de que minha
infância havia acontecido exatamente como aconteceu, de que nada jamais
vai alterar isso, de que meus avós nunca deixarão de ter sido enviados para a
morte. Entendi também que nada disso podia interferir ou dissipar a paz
que era meu direito nato e minha essência, sempre presente e sempre
possível. E não só meu: de todo mundo. Foi mais do que uma aceitação.
Naquele instante, ao entrar em contato com como é e como deve ser,
entendi que não havia nada a aceitar, a não ser no sentido de receber de bom
grado.

Mesmo antes do Peru, eu já tinha vislumbrado, ainda que só por meio da


observação e da intuição, que existem mais coisas no ser humano do que se
pode ver, ou, como brincou o mestre espiritual Eckhart Tolle, “mais do que o
eu pode supor”. Nós fazemos parte, e somos dotados, de algo maior do que
pode compreender, quanto mais provar, a mente egoica com sua noção
intrínseca de separação. “Ninguém nunca tocou ou viu uma alma dentro de
um tubo de ensaio”, escreveu em 1928 o criador da psicologia do
comportamento John Watson; no que diz respeito aos cinco sentidos, ele
tinha razão. Só que nós, no Ocidente, estamos jogando com um baralho
sensorial desfalcado: nossos sentidos foram privados, para citar Bob Dylan,2
de outros mais sutis que adeptos da espiritualidade e culturas originárias
sempre cultivaram. “Como vivemos num mundo cindido”, me disse o
professor de meditação budista Jack Corn eld,

nossa psique também é cindida. Ganhamos dinheiro trabalhando,


cuidamos de nosso corpo na academia, talvez cuidemos um pouquinho
de nossa mente na terapia, apreciamos arte quando assistimos a um
show e entramos em contato com o sagrado indo à igreja, à sinagoga, à
mesquita ou algo assim. É tudo compartimentado, como se o sagrado
fosse de algum modo separado do trabalho que devemos fazer ou da
música que criamos.

Um dos primeiros, e para muitos mais desa adores, passos de


programas como o Alcoólicos Anônimos é con ar a vida aos cuidados de
um poder superior, seja qual for o signi cado que se atribua a isso. Quer
saibamos ou não, todos nós buscamos nosso poder superior. Esse anseio se
manifesta de muitas formas: nosso desejo de pertencimento; nosso impulso
de conhecer nosso propósito na vida; a ânsia de escapar dos limites de nossa
personalidade condicionada e autocentrada; nosso gosto por experiências
transcendentais. Infelizmente, na nossa cultura, somos ensinados a buscar a
plenitude nos enchendo de fatores externos evanescentes. Isso é impossível,
pois nos falta o que não pode ser trazido de fora. O vazio que nos atormenta
vem de lugares em que perdemos o contato com nosso eu mais profundo. A.
H. Almaas, que tenho a sorte de chamar de mentor, chama essas conexões
rompidas de “buracos”.

Permitir-nos tolerar os buracos e passar por eles para chegar ao outro


lado agora é mais difícil, porque tudo na sociedade vai contra isso. A
sociedade é contra a essência. Todo mundo à sua volta, aonde quer que
você vá, está tentando preencher buracos, e as pessoas se sentem muito
ameaçadas se você não tenta preencher os seus da mesma forma.3

“Não vejo a sociedade como uma inimiga”, esclareceu ele quando


conversamos.

É mais que a sociedade está adormecida. Ela simplesmente não sabe.


Um certo conhecimento disso pode advir da religião, em que existe pelo
menos uma consciência de que somos mais do que a coisa física
habitual. O impulso espiritual desperta em algum momento num ser
humano. É um mistério quando isso acontece: às vezes ele desperta
sozinho; às vezes é precipitado por algo que acontece externamente, ao
escutarmos alguém ou lermos um livro. Quando o impulso ou a
curiosidade espiritual despertam, é aí que ansiamos por saber mais sobre
o que um ser humano é para além dos limites que a sociedade em geral
entende, reconhece e tenta aplicar.

A espiritualidade não pode ser nem descrita nem prescrita. Existem


incontáveis caminhos disponíveis; pessoas diferentes se identi carão com
alguns mais do que com outros. Já tentei tanta meditação prolongada quanto
minha mente inquieta é capaz de tolerar. Certa vez, passei 10 dias sentado
numa contemplação muda; para nunca mais. Esse por acaso não é o meu
caminho, embora eu na época tenha sentido alguns benefícios. Ioga, sessões
curtas de meditação, silêncio contemplativo, leitura dos clássicos da
espiritualidade de fés e disciplinas diversas, e a escuta dos mestres
contemporâneos: tudo isso me ajudou na minha caminhada atribulada
rumo a verdades mais profundas. Alguns, em sua busca, não escolherão
nada disso e se aproximarão do espírito por atalhos acidentais ou
inteiramente mapeados por eles mesmos. O importante não é nenhum
grande eureca, e sim o despertar, seja súbito ou gradual, da consciência que
contém a mente mas não se confunde com seu conteúdo. Meu colega
médico Will Cooke, que em seu trabalho com dependentes na região
vizinha aos Apalaches do Sul do estado de Indiana já testemunhou seu
quinhão de despertares espirituais, me descreveu

aquela centelha que existe dentro de todo mundo, aquele eu cintilante à


espera de ser revelado, que está simplesmente entulhado e debaixo da
pilha de tudo que a vida acumulou por cima das pessoas, e elas não
conseguem brilhar. Mas se formos tirando um pouquinho de cada vez e
revelando o que elas são, é sempre algo belo.

O anseio pelo espírito foi resumido pelo jornalista e comunicador


americano Michael Brooks pouco antes de sua morte prematura aos 36
anos, no verão de 2020. Pranteado por muitos por seu coração gigante, seu
senso de humor e seu compromisso com a verdade e com a justiça em seu
país e no resto do mundo, Brooks vinha explorando mais profundamente o
trabalho espiritual. Sua irmã Lisha citou o comentário que ele fez na véspera
de sua morte sobre uma consciência cada vez maior do espírito: “Posso
sentir um espaço dentro de mim, como se fosse o espaço sideral ou o
oceano.” Em palavras que resumem o trabalho de encarar a realidade e
voltar a nós mesmos, ele então a rmou seu compromisso com cultivar e
expandir essa sensação. “Nas próximas semanas”, escreveu, “quero trabalhar
na mecânica do que signi ca seguir me distanciando das coisas que me
separam de mim. Quero me lembrar do que existe dentro.”
Ashley Judd criou seu próprio caminho singular rumo à cura. Uma das
primeiras mulheres a denunciar o magnata do cinema Harvey Weinstein
por suas agressões sexuais recorrentes, Judd carrega há muito tempo as
marcas de viver numa família na qual grassavam o alcoolismo e os lutos não
processados. Para ela, a graça que lhe permitiu se render a um Deus “no
qual não acreditava” veio em parte de um encontro íntimo com o mundo
natural. “Eu estava sentada num córrego no Parque Nacional de Great
Smoking Mountains”, recordou ela quando conversamos, “e todas as
borboletas vinham descendo pelo córrego, o sol reluzia na água, e eu
simplesmente soube que estava tudo bem. Foi um daqueles momentos
mágicos em que o tempo ca suspenso e eu estava bem, e sozinha, e talvez
esteja sempre sozinha, mas estava tudo bem.” Mesmo quando
acontecimentos antigos ressurgem, Judd diz que a lembrança desses
momentos permanece viva para ela de um modo que fortalece sua
dedicação ao caminho da cura, e que pode até tornar o processo mais leve.
“Possibilita que exista um pouco de humor”, disse ela com uma risadinha.
“Eu já chutei o traseiro dessas coisas antes. Eu vou car bem.”
“Eu vou car bem” também é a mensagem que a ciclista e skatista
olímpica canadense Clara Hughes descobriu em seu encontro com a
natureza. Única atleta na história das Olimpíadas a ter conquistado várias
medalhas tanto na edição de verão quanto na de inverno – seis no total –,
Clara tinha criado uma nova e agitada carreira de palestrante e professora, e
uma nova identidade que leva para os outros mensagens de cura e
inspiração. Após uma luta dolorosa com a depressão profunda, ela teve um
despertar. “Me dei conta de que estava cando emperrada”, disse essa
mulher vibrante de 47 anos. “Estava repetindo tudo. ‘Isso não é saudável’,
pensei comigo mesma. Isso não sou eu. Eu precisava ter uma vida… Em 22
de março de 2017, larguei tudo. Parei de dar palestras, saí do conselho em
que estava, simplesmente parei e comecei a andar.” Seguindo a própria voz
interior, ela abraçou uma nova paixão: a caminhada de longa distância,
atividade que atribui um signi cado inteiramente novo ao título desta
última parte, “os caminhos da inteireza”. Nos últimos três anos, ela passou
cerca de seis meses por ano caminhando.
Entre seus muitos efeitos salutares, essas extensas peregrinações trazem
Clara para o momento presente de um jeito que está em perfeita sintonia
com a vontade de se curar. “Quando estou andando não existe amanhã”,
disse ela, empolgada. “O ontem já passou… só existe o aqui e agora. Fico
escutando a oresta, as montanhas, a água. Fico ouvindo as vozes de tudo
isso. As árvores viram minha família. As pedras viram seres vivos que você
conhece e ca feliz em encontrar.” Caminhar também lhe trouxe uma nova
compreensão do que signi ca resiliência.
Eu sei, sem sombra de dúvida, que respirando posso atravessar tudo,
toda e qualquer di culdade que surgir. Em qualquer estado mental que
eu esteja no dia… posso me sentar e escrever, desenhar, fazer
jardinagem, lavar a louça. Posso voltar à minha respiração, e co bem. E
vou car bem, e isso sou eu.

Fiquei contente por ela ter mencionado o desenho e a jardinagem, já que


poucos de nós algum dia entrarão na natureza de um modo tão épico
quanto o dela. Mas qualquer atividade que nos traga de volta à nossa própria
natureza – que naturalmente não passa de uma expressão da natureza com
N maiúsculo – sem a distração de aparelhos ou obsessões digitais pode
servir para nos revigorar.
A natureza teve um papel fundamental na recuperação de V de um
câncer metastático no útero, depois de várias cirurgias e quimioterapia. “Eu
antes tinha horror da natureza”, disse a escritora e ativista. “Até car muito,
muito doente e então escutar… escutar a Mãe me chamando para o campo.
Era tipo: você precisa vir.” Começou com uma única árvore num vaso do
lado de fora da janela do seu quarto de hospital. “Eu me apaixonei por
aquela árvore”, disse ela, sorrindo ao recordar.

Estava muito doente nessa ocasião. Tinha perdido 15 quilos, não sabia se
ia sobreviver, e olhava para aquela árvore e pensava: “Ai, meu Deus, será
que vou ter de car olhando para essa árvore todo dia enquanto espero a
morte?” E nesse primeiro dia a árvore simplesmente começou a falar
comigo… E eu pensei: Caramba! Acho que nunca vi o que são folhas… E
no dia seguinte foi tipo: Casca! E no seguinte: Tronco! Eu literalmente
não queria mais que ninguém falasse comigo, não queria que as pessoas
chegassem perto de mim: só me deixem car com essa árvore; eu e essa
árvore estamos vivendo uma coisa incrível. No meu último dia naquele
quarto a árvore oriu, os botões todos brancos. Aquilo foi o começo da
minha transformação.
Nada disso é novidade para os povos originários do mundo: essas culturas
têm na comunhão com a natureza desde sempre um pilar. Mesmo quando
as nações originárias da América do Norte foram brutalmente expulsas dos
territórios que eram seu sustento e parte integrante de sua identidade, a
consciência de pertencer a este planeta nunca se perdeu. Na verdade,
segundo a ativista, artista e líder cerimonial navajo Pat McCabe, conhecida
como Mulher em Pé Brilhando, essa consciência é uma boia salva-vidas,
uma fonte de resiliência e força. “A primeira coisa que me vem ao coração”,
contou ela,

é que nós temos um compromisso com a Terra. Só que não é apenas um


compromisso: é um caso de amor louco com Ela. E temos a capacidade e
a obrigação de ajudar a Ela e ao resto da vida a prosperar. Isso não faz
parte do paradigma do mundo moderno. Tudo é muito individualista,
focado no sucesso individual e até antropocêntrico, não é? Inteiramente
autocentrado. Quando se faz parte dessa comunidade maior, a Terra, e se
assume responsabilidade por esse louco romance com os pássaros,
peixes, árvores, montanhas e o céu, passa-se a ter mais coisas para servir
de atrativo, para servir de guia.

Em minhas entrevistas para este livro, quei impressionado com a


frequência com que as pessoas mencionavam as experiências e a reverência
que tinham pelas tradições originárias, sentimento que passei a
compartilhar por meio de minhas interações com curadores espirituais e
sábios originários tanto na América do Sul quanto na América do Norte,
seja sentado numa cerimônia dentro de uma maloca peruana, de uma
cabana na Colômbia ou de uma “tenda do suor” em Alberta. Sou grato às
comunidades que me acolheram, eu, um forasteiro do lado dos “colonos” da
linha divisória neocolonialista, e que me zeram sentir um gostinho de seus
costumes, ou pelo menos o gosto que alguém que veio da cultura dominante
é capaz de sentir.
Se virmos o saber originário não como algo a ser consumido, mas como
um tesouro rico em tradições de jeitos de viver e morrer que merecem e
exigem nosso respeito e nossa humilde curiosidade, sua perspectiva ampla e
unitária poderia compensar o foco dualista e biológico da mentalidade
médica ocidental. Apesar de estarem elas próprias lutando para sobreviver,
as tradições originárias ainda são capazes de proporcionar um complemento
salutar e igualitário às proezas cientí cas da medicina ocidental. Elas podem
também ser um corretivo necessário ao fracasso desta última em honrar
nossas necessidades emocionais, sociais, comunitárias e espirituais.
Helen Knott compara estar numa tenda do suor a voltar para o útero.
“Nossa cura”, observou ela,

precisa incluir esse tiquinho de humildade em que você pede ajuda e


reconhece que não pode fazer tudo sozinho, que sozinho você poderia
ser uma criatura digna de pena como ser humano. A tenda do suor nos
leva, sofrendo com essa condição humana e tentando encontrar nosso
caminho, de volta às nossas origens: o ventre da Mãe Terra. Conseguir se
desapegar das coisas, deitar-se na terra e simplesmente estar ali. A tenda
é sempre um lugar potente.

Quando as grandes pedras aquecidas são jogadas no buraco cavado no


meio da tenda do suor, os participantes lhes dão as boas-vindas como “avós
e avôs”. Não se trata de uma metáfora, mas de um entendimento profundo e
de uma visão clara, muito mais clara e sábia do que a maioria de nós
aprendeu. Não viemos todos da terra que gerou essas pedras, assim como da
água que se despeja sobre elas antes de começarem as rezas e cânticos? Se
conseguíssemos ver as coisas assim, será que não pensaríamos duas vezes
antes de pilhar e destruir aquilo que nos cria e nos sustenta? No mundo
ocidental, com um grande custo para nós mesmos, perdemos há muito
tempo contato com essa unidade que as culturas originárias reconhecem e
honram.
O psiquiatra e médico Lewis Mehl-Madrona,4 que é parte lakota, tem
experiência tanto em medicina de emergência de alta tecnologia quanto nos
métodos de cura tradicionais do seu povo. Na sua opinião ambos têm seu
lugar, e não deveríamos abrir mão nem de um nem de outro. Assim como
eu, ele já viu os milagres de que ambos são capazes. “Para um indígena
americano, a cura é uma jornada espiritual”, escreve ele.

Como a maioria das pessoas compreende intuitivamente (com exceção


talvez dos médicos, que são ensinados a desacreditar dessa ideia), o que
acontece com o corpo re ete o que está acontecendo na mente e no
espírito. As pessoas podem se curar de doenças. Mas antes de isso ser
possível elas frequentemente precisam passar por uma transformação –
de estilo de vida, emoções e espírito – além de realizar as mudanças
necessárias no corpo físico.5

“Segundo a concepção lakota”, me disse Mehl-Madrona quando nos


encontramos para conversar sobre este livro e a possibilidade de colaborar
em alguns eventos de cura,

devemos celebrar e dar apoio às pessoas doentes porque elas são os bois
de piranha. São elas que estão nos mostrando que nossa sociedade está
desequilibrada, e precisamos lhes agradecer por assumir esse fardo e
fazer isso pelo restante de nós. Todos precisamos participar da cura
delas, porque, se não fossem elas, onde estaríamos? Somos todos
responsáveis pelo que quer que as esteja a igindo. Temos a
responsabilidade de contribuir para sua cura, pelo bem de todos.

Que pensamento velho/novo vigoroso: uma sociedade na qual somos


todos responsáveis pela saúde de todos, onde a doença é vista como a
manifestação de uma experiência comum. Uma cultura como a nossa tem
muito que aprender com pessoas que consideram nossa natureza
biopsicossocial algo elementar.
Tive de rir quando Mehl-Madrona então apontou outra diferença entre
as posturas médicas ocidentais e a tradição originária de seus avós. Um de
seus professores, um célebre médico americano, estava dando uma aula para
sua turma mista de alunos de medicina:

“Rapazes”, dizia esse professor… Ele era incapaz de aceitar a ideia de


haver mulheres na turma… “Rapazes, a vida é uma progressão
incansável rumo à morte, à doença e à deterioração. A tarefa de um
médico é diminuir a velocidade do declínio.” E eu quei bem chocado,
porque minha avó sempre tinha nos ensinado que era preciso morrer
com saúde “para poder aproveitar o outro lado”. Ela realmente não
acreditava que fosse preciso estar doente para morrer. Não relacionava
doença e morte. Para ela, a morte era tipo “seu tempo acabou”, e a
doença apenas algo que você tinha que atravessar.

“Quantos anos sua avó tinha quando morreu?”, perguntei.

Uns 90 e tantos, e estava em boa saúde. É uma história engraçada: num


início de noite, ela disse a todo mundo que iria morrer naquela
madrugada. E falou: “Minha hora chegou. Meu tempo acabou.” Aí
minha mãe, que estava tentando muito ser moderna, disse: “Que
bobagem, você está muito bem de saúde.” “Saúde não tem nada a ver
com morrer”, respondeu minha avó. E de manhã estava morta.

Não se trata de romantizar os costumes originários, nem de imitar as


práticas indígenas. Mas nós podemos e devemos superar o que Wade Davis
furiosamente chama de “miopia cultural”, o conceito de que “outros povos
são versões fracassadas de nós mesmos. Ou que são criaturas antiquadas,
em vias de extinção, fadadas a se apagar, seres humanos esquisitos e
coloridos que se enfeitam com penas de pássaro. Esses povos são vivos,
dinâmicos, têm algo a dizer”.
Embora minha própria experiência de cura tenha acontecido na selva, e a de
Clara Hughes na natureza selvagem, já vi pessoas reencontrando a si
mesmas até mesmo no ambiente claustrofóbico, con nado e com demasiada
frequência nada humano dos presídios. Algumas das pessoas mais gentis
que já conheci foram condenadas à prisão perpétua nos Estados Unidos ou
no Canadá; elas tinham corajosamente confrontado o próprio passado.
Muitos outros que trabalham com pessoas assim já compartilharam comigo
essa impressão sincera.
Graças a meu trabalho com a dependência, fui convidado a dar palestras
para populações carcerárias – em outras palavras, as pessoas mais
traumatizadas e mais marginalizadas de nossa cultura. Nunca vou me
esquecer do que me disse Rick, um condenado à prisão perpétua no famoso
Presídio Estadual de San Quentin, na Califórnia. Ele havia feito um
programa de transformação conduzido por voluntários que o levara a dar
um mergulho profundo em si mesmo, a começar por uma infância que
envolvia todas as categorias de experiências adversas na infância, depois
uma adolescência alienada e violenta e uma juventude permeada por drogas
que havia culminado num assassinato. Agora 30 anos mais velho, ele era um
homem preto mais para baixo, magro, com uma barba por fazer grisalha e
os cabelos rareando. Tinha esperança de poder pedir a condicional.
Estávamos sentados numa sala de reunião com cerca de uma dúzia de
outros detentos de idades variadas. “Esse grupo me fez pensar no que z e
me ajudou a parar de correr dos meus demônios”, disse ele, “a levantar a
cabeça e encará-los. Aprendi a me amar e a saber que tem gente por aí que
se importa comigo.”
Eu me perguntei o que ele iria querer que a comissão de condicional
soubesse a seu respeito. “Bom”, re etiu Rick,

naquela fase da minha vida eu estava separado de mim. Nem sabia quem
eu era. Como eu não me respeitava, não conseguia respeitar ninguém.
Como eu não me amava, não tinha amor nenhum por ninguém. Mas
depois de cumprir essa pena, de realmente parar e olhar para minha
vida como uma coisa genuína, e com amor por mim mesmo e a
compreensão de que para mim o amor é tudo… o amor está me abrindo
para tudo fora de mim. O que estou fazendo por mim, aprendendo sobre
mim, estou aprendendo também sobre todos os outros. Não sou
diferente de ninguém. Se eu tocar o espírito não sou separado. Se vocês
me deixarem sair daqui, é esse o tipo de trabalho que eu quero fazer
quando sair. Estou pronto. Quero ir para casa, mas mesmo se não me
deixarem ir eu já sei quem sou e o que quero fazer.

Cada uma das cinco compaixões que examinamos estava presente ali,
reluzindo nas palavras de Rick.

“Só existe uma regra comum válida para encontrar sua verdade especial. É
aprender a se escutar com toda a paciência, a se dar uma chance de
encontrar o próprio caminho, que é seu e de mais ninguém”, escreveu o
psicólogo e visionário Wilhelm Reich.6
Escutar sua “verdade especial” é um dos mais árduos desa os em meio à
cacofonia de nosso mundo cada vez mais barulhento, um mundo que isola
ao mesmo tempo que desencoraja a solidão saudável. Essa busca vem de
outros tempos. A peça Santa Joana, de Bernard Shaw, narra a vida e a morte
heroicas da jovem camponesa Joana d’Arc, cujas visões e “vozes” a
inspiraram a liderar a revolta armada contra a ocupação inglesa da França
no século XV. “Ah, as suas vozes, suas vozes”, diz em determinado momento
para Joana o rei francês Carlos VII, com inveja e frustração. “Por que as
vozes não vêm para mim? O rei sou eu, não você.” “Elas vêm sim,
majestade”, responde Joana, “só que o senhor não escuta. Não se sentou no
campo à noite para ouvi-las. Quando toca o ângelus, o senhor se benze e
assunto encerrado, mas se rezasse com o coração e escutasse o retinir dos
sinos no ar quando eles param de tocar, ouviria as vozes tão bem quanto eu.”
Um dos desa os de nos curar, e de trazer cura para nosso mundo tão
castigado, é car parado por tempo su ciente para permitir a nosso
verdadeiro eu ser ouvido, aquela “brisa suave” sobre a qual se pode ler na
Bíblia7 ou, na descrição do Tanakh hebraico, aquele “suave murmúrio”. As
práticas antigas e modernas de mindfulness encorajam e abrem espaço para
essa voz surgir, ao nos afastar da cacofonia de pensamentos em nossa mente
e nos permitir observá-la sem nos deixar seduzir, submergir ou intimidar.
Nas práticas de mindfulness também foram documentadas vantagens de
reduzir in amação, reprogramar o funcionamento epigenético, promover a
reparação dos telômeros, reduzir os níveis de hormônios do estresse e
incentivar o desenvolvimento de circuitos cerebrais mais saudáveis.8 O
mindfulness chegou a frear a progressão da ELA em pacientes afetados pela
doença:9 é a unidade mente-corpo em ação outra vez.
Ao nos observarmos com curiosidade compassiva em vez de
julgamento, talvez possamos também aprender a abrir mão de nossos pré-
julgamentos em relação aos outros, também conhecidos como preconceitos.
Um estudo muito animador vem de Israel/Palestina, palco de ódio e con ito
incessantes. Lá, 300 estudantes judeus do terceiro ao quinto ano foram
expostos a um programa socioemocional baseado em mindfulness e
compaixão. Seis meses depois, e apesar de um aumento das hostilidades
violentas, esses alunos apresentavam uma “redução signi cativa” do
preconceito e dos estereótipos negativos em relação aos palestinos.10
Entrevistei vários praticantes renomados de mindfulness: todos
a rmaram que sua prática os havia conduzido, e outras pessoas também, a
uma maior compaixão e aceitação dos seus semelhantes seres humanos. “Eu
nunca teria apostado contra o coração humano”, disse o psicólogo e
professor de meditação budista Rick Hanson.11

O título deste livro usa a palavra mito no seu sentido contemporâneo do dia
a dia. “Isso não passa de um mito”, poderíamos dizer a algum amigo agitado
tentando nos vender a teoria da conspiração do momento. “Não existe
prova.” Mas esse uso pejorativo da palavra na verdade nos põe em con ito
com a maior parte da história cultural. Até muito recentemente, o mito era
visto como uma fonte de conhecimento, um portal para a espiritualidade e
um dos fundamentos de qualquer cultura saudável. Esse conceito original de
mito pode muito bem servir de portal para o mundo da cura, nos
reconectando a eras de saber humano e promovendo um estado mental no
qual nada é uma ocorrência isolada, e onde se pode obter signi cado a
partir de qualquer uma das matérias-primas da vida. Esse é um potente
antídoto para o pensamento dualista que imagina mente e corpo como duas
coisas separadas. No mundo do mito tudo está conectado, e essa é uma das
muitas verdades em relação ao mundo real que o pensamento mítico pode
nos ajudar a encarar.
O mito é uma expressão coletiva de uma das qualidade humanas mais
singulares: a imaginação. Longe do pensamento mágico ou do
negacionismo, o pensamento imaginativo nos permite ver além das
aparências e acessar percepções fundamentais sobre o signi cado da
inteireza e do bem-estar. “Quando perdemos o mito”, me disse o contador de
histórias, escritor e apresentador do podcast Living Myth (Mito vivo)
Michael Meade, “passamos a saber menos. Sabemos menos em relação a nós
mesmos, em relação às doenças e, portanto, em relação à cura”. “Então o que
um resgate da imaginação mítica poderia nos ensinar sobre inteireza e
cura?”, perguntei. “Uma doença interrompe nosso caminho, então, se
permitirmos ao corpo nos ensinar o que está acontecendo, ela pode ser um
chamado à realidade”, respondeu ele. Já testemunhamos isso várias vezes ao
longo deste livro.
O mítico e o profético estão intimamente relacionados. Numa escala
social, poderíamos avançar na direção da inteireza se nos dispuséssemos a
ouvir os alertas que os males coletivos, do câncer à covid-19, estão fazendo
sobre nosso modo de viver. O pensamento mítico pode nos ajudar a
valorizar e a aplicar o princípio cientí co de que a saúde vem da conexão:
com nossa essência, uns com os outros e com uma cultura que honre essas
inter-relações.
Entendimentos mais antigos do mito vêm também de uma profunda
conexão (ou união) com a natureza, motivo talvez pelo qual a criação de
mitos, no sentido positivo, nos é tão natural. Como disse Wade Davis
quando conversamos: “Na maior parte da história humana, nossas relações
com o mundo natural foram baseadas em metáforas.” Montanhas são
símbolos de força e constância; rios personi cam mudança, uxo ou mesmo
a própria vida. Esses signi cados têm consequências profundas na forma
como vivemos, como vemos o mundo e nosso lugar nele. Eles são as marcas
de uma cultura que sabe ler e obedecer aos sinais da natureza.
Michael Meade tem uma linda expressão para o tipo de saber coletivo
que remonta ao início de nossa presença no mundo: “um pensamento no
coração”. Meu próprio coração se identi ca com a ideia de que, apesar de
todos os indícios aparentes do contrário, existe em todos nós um aspecto
essencial que não pode ser extinto. Nossa sociedade, com seu estado
espiritualmente adormecido de imaturidade e negação, bloqueia nossa
consciência desse “pensamento no coração”, substituindo-o por atividades,
bens e crenças incapazes de nos satisfazer. Como indivíduos, não
conseguimos ver nossa própria beleza ou perfeição; como integrantes de um
coletivo, deixamos de perceber que somos todos feitos da mesma matéria
divina, entrelaçados, por assim dizer, nessa trama. Se preferir, pode
substituir a palavra divina por outras como eterna, ancestral, alma ou pela
expressão “mais do que humana”.
Alcançar o espírito, para usar a expressão de Rick de San Quentin, só
enriquece a jornada de cura.
33

Um mito desfeito: visão de


uma sociedade mais sã

De tempos em tempos se pode vislumbrar a verdade, essa luz


da alma humana.
–VICTOR HUGO, Os miseráveis

O que será preciso para desfazer o mito do normal? Como podemos ter
alguma esperança de desmontar um acúmulo tão imenso de percepções
equivocadas, preconceitos, pontos cegos e cções que arruínam a saúde,
todos culturalmente fabricados, em especial quando atendem aos interesses
de uma ordem mundial ciosa da própria perpetuação, mesmo isso sendo
sinônimo de autodestruição?
A verdade é que eu não sei. De certa forma, me sinto mais à vontade
descrevendo o problema do que mapeando uma rota para sair dele. Tenho
minhas próprias convicções e palpites, em especial no que diz respeito aos
obstáculos para um mundo melhor, mas isso não equivale ao desenho
detalhado de algo novo. Mesmo tendo crenças fortes em relação a como as
coisas deveriam ser, não me parece adequado tornar o último capítulo deste
livro sobre trauma e cura uma preleção. Mesmo assim, na reta nal dessa
nossa investigação, sinto de fato a responsabilidade de propor uma visão
alternativa à cultura tóxica que venho descrevendo.
O que posso dizer com convicção, como médico e curador espiritual, é
que para nossa sociedade se endireitar e traçar um caminho em direção à
saúde plena, determinadas condições terão que ser cumpridas. E para criá-
las será preciso algumas transformações ou mudanças importantes. Todas
elas derivam dos princípios centrais deste livro: medicina biopsicológica,
doença como professora, a primazia tanto do apego quanto da autenticidade
e acima de tudo uma autoinvestigação destemida, dessa vez numa escala
social. Nenhuma dessas mudanças por si só basta, mas na minha opinião
todas são necessárias. Elas podem vir a não se realizar totalmente sem uma
transformação política signi cativa, mas são fáceis de entender, e seguir na
sua direção é algo totalmente possível para nós.
Uns poucos anos atrás, durante as pesquisas para este livro, conversei
com Noam Chomsky, pai da linguística moderna, lósofo, ativista e crítico
cultural. Perguntei a esse gigante intelectual, que já se autoquali cou de
“pessimista tático e otimista estratégico”, se ele ainda tinha uma visão
positiva sobre o que está por vir. Chomsky sorriu.

É preciso ser otimista, caso contrário não haveria por que não se matar.
Então sim, é claro que sou otimista. Tentamos fazer o possível para
corrigir as coisas; se isso pode ou não ser feito, não sabemos. É o lema
que Gramsci tornou famoso: “Pessimismo do intelecto, otimismo da
vontade.”1 Não existe outra escolha.

Eu chamaria isso também de otimismo do coração e da alma, que é onde


nasce a vontade. Essas partes não racionais de nós sabem coisas sobre o
potencial humano e a natureza da vida que nem mesmo o mais arguto dos
intelectos consegue acessar.
Antes de nos lançarmos em qualquer reforma importante para termos
uma sociedade mais consciente em relação ao trauma e mais favorável à
saúde, o que queremos é examinar nosso próprio coração e nossa própria
mente para garantir que estamos abordando essas tarefas desa adoras de
um lugar possível. Os problemas que o mundo enfrenta já são desa adores o
su ciente sem que somemos a eles nossos próprios estresses, advindos de
nossos padrões habituais de adaptação. Estamos olhando para as coisas
criativa ou reativamente? As reações automáticas, a nal, são a especialidade
da personalidade traumatizada, que é como um martelo que só vê pregos. A
criatividade, por sua vez, tem a ver com algo mais fundamental: ela começa
vendo que podemos criar, depois avalia o que quer ser criado. Ela é um
aspecto da autenticidade, uma prima próxima da autoria.
Só se pode criar de um ponto de vista que diz: “Independentemente de
como as coisas possam parecer, algo é possível aqui.” Existem muitos
motivos para esse tipo de otimismo com base no que sabemos sobre a
natureza e as necessidades humanas, e sobre a resiliência e os poderes de
cura misteriosos do corpo e da mente. Podemos também nos apoiar no fato
de cada um de nós ser um integrante de uma comunidade cada vez maior de
pessoas que está desmascarando o status quo e imaginando alternativas para
ele.
Essa atitude requer necessariamente paciência e distanciamento, e uma
tolerância saudável tanto em relação ao real quanto ao ideal.
Se quisermos ver as coisas como elas são, precisamos estar preparados –
ansiosos, até – para nos despir de nossas ilusões. Precisamos acolher a
desilusão, ou talvez até, como canta Alanis Morrissette no refrão de um de
seus sucessos, lhe agradecer.2 Em geral nos referimos à desilusão com pesar,
como uma experiência a ser evitada, semelhante à decepção ou à sensação
de ter sido traído. E a desilusão de fato tem um custo: talvez precisemos
abrir mão de algo que passamos a valorizar, ou de um ponto de vista ou de
uma atitude na qual nos refugiamos. Mais difícil de ver, porém, é o custo de
se recusar a fazer isso. Como pergunto com frequência às pessoas: “Você
prefere ser iludido ou desiludido?” Preferimos nos relacionar com o mundo
como ele de fato é, ou como gostaríamos que fosse? Qual das duas
abordagens provoca mais sofrimento no m?
Eu cresci no período da opressão stalinista em meu país natal, a
Hungria, embora o pequeno comunista idealista que era não se desse conta
da natureza do regime. Lembro de sentir o coração se encher de orgulho por
viver num sistema dedicado à liberdade, à igualdade e ao que a humanidade
tem em comum. Nas reuniões escolares, eu levantava com um pulo nos
momentos certos para bater palmas ritmadamente e entoar cantos com
meus colegas toda vez que o diretor dizia “partido” e “líder”. Meus pais e
professores sabiam que era melhor não estourar minha bolha ideológica:
uma palavra contrária ao regime que por descuido escapasse da boca de
uma criança podia signi car assédio, perda de emprego ou até prisão da
pessoa responsável por ela. Então, numa manhã do nal de outubro de 1956,
nosso prédio se sacudiu com o ribombar da artilharia. Alguns dias de
liberdade concedidos pelo triunfo efêmero do levante húngaro contra a
ditadura, seguidos por uma repressão rápida e sangrenta, abriram meus
olhos de menino de 12 anos. O Exército soviético que eu por tanto tempo
idolatrara, a força de combate que salvara minha vida quando bebê, de
repente se transformou no inimigo. Pouco tempo depois disso, numa noite
chuvosa de novembro, meu irmão, meus pais e eu atravessamos a pé a
lamacenta fronteira com a Áustria, abandonando para sempre nossa vida na
Hungria. Essa foi minha primeira desilusão; outras vieram depois. Na esteira
dos horrores da Guerra do Vietnã e das mentiras inescrupulosas contadas
para justi cá-la, aprendi que o império americano, que na minha mente
adolescente havia substituído o soviético como o novo ideal, era tão cruel e
gananciosamente autocentrado quanto seu rival. Tive também que chegar à
compreensão devastadora de que o sonho que servira de bálsamo para
minha alma, o de um renascimento nacional triunfante dos judeus na terra
bíblica ancestral do meu povo, fora conquistado impondo um pesadelo aos
palestinos que habitavam aquelas terras, pesadelo que perdura até os dias de
hoje.3 Quando a cha da verdade caiu, quei mais uma vez atônito com o
fato de o meu universo imaginado ter sido uma versão tão distorcida da
realidade. Ao visitar a Cisjordância e Gaza, passei duas semanas chorando
sem parar.
Digo tudo isso não para convencer você, leitor, leitora, das minhas
opiniões políticas pessoais, mas só para indicar que para todos nós pode
haver coisas em nosso “normal”, entre elas a noção de quem somos e da
natureza de nossa sociedade, das quais relutamos em abrir mão. Minha série
de desilusões com certeza foi dolorosa na época; elas signi caram que algo
teve que ser deixado para trás, algo que eu antes valorizava e em torno de
que tinha construído parte do meu mundo. Mesmo assim, eu não trocaria a
liberdade que acompanhou cada ilusão perdida pelos confortos dos quais
tive que abrir mão. Quando uma falsa crença se desfaz, quando a dor da
perda e a sensação de estar à deriva diminuem, reparei que algo em mim ca
mais relaxado, liberado da tarefa de encaixar círculos em buracos quadrados
e de equilibrar contradições impossíveis. A ignorância pode trazer uma feliz
tranquilidade, mas ela não é uma felicidade verdadeira: no nível coletivo,
pode resultar num sofrimento imenso e generalizado. Fazemos um favor
imenso para nós mesmos e para o mundo quando nos esforçamos em
desfazer nossas ilusões e nos abrir para as verdades que elas escondem.
“Nem tudo que se encara se pode mudar”, escreveu James Baldwin, “mas
nada muda sem antes ser encarado.”4
Uma disposição para se desiludir signi ca confrontar a negação, um dos
pilares centrais do status quo e uma barreira importante para imaginar ou
buscar um mundo transformado. A nal, se alterássemos o su ciente nossa
visão de mundo para ver o estado das coisas como o que é e quanto está nos
custando, não poderíamos mais aceitá-lo com tanta facilidade. “Vivemos
num país em que as palavras são usadas principalmente para cobrir quem
está dormindo, não para acordá-lo”, outro comentário perspicaz de Baldwin
que poderia descrever com exatidão quase qualquer lugar do mundo.5
“O mundo esquece fácil, fácil demais, aquilo que não gosta de recordar”,
escreveu Jacob Riis quase 100 anos antes em How the Other Half Lives
(Como vive a outra metade), seu relato sobre a vida miserável nos cortiços
da Nova York do m do século XIX. Nossa cultura é mestre em esquecer o
próprio passado e esconder a sordidez do presente.
Qualquer um que espere que o sistema capitalista corporativo global
possa um dia encarar a verdade sobre sua própria natureza e se transformar
de modo fundamental vai ter uma espera longa e frustrante. As instituições
acadêmicas e a mídia tampouco abrirão mão de seu papel de capacitadoras
ideológicas desse sistema. Como observou Joan Didion para os jornalistas,
“o que ‘justiça’ passou a signi car muitas vezes é uma passividade
escrupulosa, uma concordância em ocultar o fato não da forma como está
ocorrendo, mas da forma como é apresentado, ou seja, da forma como é
fabricado”.6 Isso deixa a cargo de cada um de nós, como indivíduos e como
grupos, nos expor à incerteza, entrar no ponto de vista dos outros quer
concordemos com eles ou não, ouvir as pessoas que fazem o duro trabalho
de campo do ativismo, estar alertas aos muitos tentáculos que o mito do
normal estende para se manter normalizado. Isso representaria um novo
tipo de cidadania, advindo das necessidades e exigências do momento
presente.

UMA SOCIEDADE CONSCIENTE DO TRAUMA

Difícil pensar em qualquer área coletiva na qual uma consciência maior do


trauma e uma percepção maior da natureza da cura não pudesse fazer uma
diferença positiva. Nestas últimas páginas, quero me concentrar em algumas
que são fundamentais.
As consequências de uma sociedade que compreendesse o trauma
seriam imensas. Como o trauma é a dinâmica subjacente central de tantas
doenças, precisamos primeiro desenvolver olhos e ouvidos atentos para
identi cá-lo. Há quem veja sinais animadores: meu colega Bessel van der
Kolk chega a a rmar que “estamos à beira de nos tornar uma sociedade
consciente do trauma”.7 Não compartilho desse otimismo a curto prazo,
porque a consciência ainda está longe de penetrar as instituições decisivas
de nossa cultura. Mas concordo que, por parte do público, houve uma
mudança recente e completa no reconhecimento da prevalência e do
signi cado do trauma em nossa vida. Muitas pessoas, tanto leigas quanto
especialistas, estão ávidas para entender melhor o trauma. Vemos isso no
livro de referência de Bessel, um best-seller perene, e no sucesso
impressionante e grati cante de livros como O que aconteceu com você?,
escrito por Bruce Perry em parceria com Oprah Winfrey. E também, se é
que posso usar isso como exemplo, na viralização de um documentário
sobre o meu trabalho, A sabedoria do trauma, que foi revelador nesse
aspecto até mesmo para mim: o lme foi visto por 4 milhões de pessoas em
mais de 220 países nas duas primeiras semanas após o lançamento, em
junho de 2021.8

Conscientização sobre o trauma: medicina

Um sistema médico a par do trauma, para começar, poderia ajudar a curar e


evitar sofrimento em grande escala e de maneiras inspiradoras de imaginar.
Um sistema assim reformularia o modo como o tratamento médico é
prestado, alinhando-se aos últimos achados cientí cos. Publicados quase
semanalmente nos mais importantes periódicos cientí cos, esses achados
ainda não tiveram muita repercussão no pensamento médico convencional.
Neste livro já citamos muitos, e outros são publicados regularmente.9
Atualmente, ainda existe na pro ssão médica uma forte resistência à
conscientização sobre o trauma, ainda que ela seja mais subliminar do que
proposital, mais passiva do que ativa. Nas dezenas de entrevistas que z para
este livro com colegas médicos, entre eles recém-formados, praticamente
ninguém se lembrou de ter aprendido sobre a unidade mente-corpo ou a
amplamente documentada relação entre, por exemplo, trauma e doença
mental ou dependência, quanto mais sobre os vínculos entre adversidade e
doenças físicas. Nós, médicos, nos orgulhamos do que chamamos de uma
prática baseada em evidências, ao mesmo tempo que ignoramos uma vasta
gama de evidências que questionam princípios centrais do nosso dogma.
Há também o impacto altamente estressante, muitas vezes fonte de
feridas emocionais ou anestesia, da própria formação em medicina,
experiência relatada por muitos de meus entrevistados. “Fiquei totalmente
traumatizado com meu primeiro ano na faculdade de medicina”, disse-me
um colega conhecido. “Era um ensino pelo terror, que nos intimidava a
aprender quando já estávamos altamente motivados para aprender.” “É um
sistema abusivo, traumático”, disse meu amigo psiquiatra do Colorado, Will
van Derveer. “Os residentes [de medicina] estão se matando.” Suas palavras
me zeram lembrar do estudo que mencionei no capítulo 4, mostrando que
os telômeros dos estudantes de medicina se desgastavam mais depressa do
que os de outros jovens da mesma idade. Tirando os riscos de saúde para os
pro ssionais dessa área, a falta de consciência em relação ao trauma os
impede de reconhecer nos outros as marcas de experiências de vida
dolorosas. Assim, sem querer, eles perpetuam um sistema que ignora ou até
agrava o problema real. Uma existência estressada e as restrições de tempo
que lhes são impostas, em especial nos modelos em que a remuneração está
atrelada à quantidade de serviços prestados, inibem os pro ssionais de
explorar a história de vida de seus pacientes, mesmo quando eles têm
inclinação para isso. Residentes me contaram que, quando escutavam a
história pessoal de seus pacientes, o que quase imediatamente aliviava os
sintomas deles, eram em seguida repreendidos pelos superiores de suas
respectivas especialidades. Os alunos de medicina são criticados com
frequência por não trabalharem rápido o bastante. Entrevistei Pamela Wible,
médica do Oregon, cuja própria trajetória dolorosa a levou a trabalhar com
a prevenção do suicídio entre os médicos. Ela confessa:

Nunca, nem em meus sonhos mais absurdos, pensei que depois de ter
atravessado todos os obstáculos da formação em medicina eu fosse
acabar imprensada em consultas de sete minutos, sendo tratada como
uma operária de fábrica e tendo que tratar meus pacientes como objetos
sem importância.

Um sistema médico a par do trauma cuidaria da saúde emocional de


seus alunos e pro ssionais.
Apesar de tudo, há avanços positivos. Algumas faculdades de medicina
estão introduzindo elementos de formação em empatia, e no Canadá houve
iniciativas para ensinar aos alunos de medicina a história e as tradições dos
povos originários. A pediatra Nadine Burke Harris, conhecida defensora da
conscientização sobre o trauma e hoje secretária de saúde da Califórnia, está
introduzindo uma avaliação de experiências adversas na infância nos
programas de saúde pública californianos. Numa entrevista feita antes de
sua nomeação para o cargo, ela expressou um otimismo semelhante ao de
Bessel van der Kolk. “Acredite ou não, está correndo melhor do que eu
esperava”, me disse ela. “Acho que está havendo marcos incrementais que
precisam ocorrer ao longo de 30, 40 anos, mas muitas bases estão sendo
estabelecidas.” Por sua vez, Will van Derveer criou uma formação focada em
trauma muito apreciada por seus colegas psiquiatras, da qual participam
colegas do mundo inteiro. E Pam Wible foi pioneira de uma abordagem
comunitária que respeita a unidade corpo-mente e ajuda a empoderar as
pessoas de forma a serem agentes ativos no próprio atendimento de saúde.
“A medicina é uma vocação, um propósito da alma”, a rmou ela. E agora
criou um caminho para seguir essa vocação.

Conscientização sobre o trauma: direito

Será que podemos imaginar a seguir um aparato legal a par do trauma, e


que pudesse fazer jus ao seu nome de “sistema de correção”? Um sistema
assim teria que se dedicar a de fato corrigir as coisas de modo humano, algo
muito distante do que temos agora. Na América do Norte, assim como em
muitas partes do mundo, o atual modelo deveria ser chamado “sistema de
punição e indução do trauma”, seria bem mais preciso. Apesar do fato
documentado de um grande número de presidiários terem cometido seus
crimes devido a dinâmicas originadas num atroz sofrimento infantil, a
formação em direito deixa o advogado ou juiz mediano ainda mais
lamentavelmente ignorante em relação ao trauma do que seu equivalente em
medicina. Moralmente falando, nosso sistema judiciário é um sistema não
de justiça criminal, mas de justiça criminosa.
Um sistema jurídico a par do trauma não justi caria nem desculparia o
comportamento prejudicial. Ele iria, isso sim, substituir medidas
obviamente punitivas por programas criados para reabilitar as pessoas, não
para traumatizá-las ainda mais. “Todos nós criminosos começamos como
pessoas normais, iguais a qualquer outra, mas aí acontecem coisas em nossa
vida que nos rasgam, nos transformam em algo capaz de machucar os
outros”, escreve o acadêmico e ex-detento Jesse istle. “Toda escuridão na
verdade é só isso. O amor que deu errado. Não passamos de pessoas de
coração partido que a vida machucou.”10 “Ao contrário de alguns outros
países, aqui a prisão não foi criada para reabilitar a pessoa”, ponderou ele.
“Ela foi criada para estragar a pessoa de modo que ela continue a apresentar
altas taxas de reincidência, é isso que eu penso.”
A psicóloga e ex-agente penitenciária Nneka Jones Tapia é atualmente
diretora-executiva da Chicago Beyond e da Justice Initiatives. Como mulher
preta, ela conhece bem o trauma racial institucionalizado. Ela me falou
sobre resiliência e a criação de um judiciário a par do trauma.

Nós tendemos a reduzir as pessoas a seus comportamentos: “Você é um


assassino, você é uma assaltante, você é ladrão.” Só que nós não somos
nosso pior comportamento. Eu tive a bênção de ver que todo mundo
preso tem seus pontos fortes, e que essas pessoas são capazes de amar,
contanto que lhe seja dada essa oportunidade. Não são só as pessoas que
precisam de cura. É o sistema que precisa ser condenado e
transformado.

Conscientização sobre o trauma: educação

Como o trauma afeta a capacidade de aprendizado das crianças, um sistema


educacional a par do trauma formaria professores versados na ciência do
desenvolvimento. Num sistema assim, a educação promoveria um ambiente
em que a inteligência emocional seria tão valorizada quanto as conquistas
intelectuais. Não avaliaríamos mais as crianças com base em desempenho,
que na sua maioria ainda re etem e atribuem vantagens sociais e raciais,
mas proporcionaríamos ambientes em que todos seriam incentivados a
desabrochar. “Os currículos escolares seriam elaborados para promover o
desenvolvimento social e emocional saudável”, escreve a professora e
psicóloga escolar Maggie Kline. “Quando os alunos se sentem seguros, isso
estimula as regiões do cérebro que cuidam da linguagem, do pensamento e
do raciocínio.”11 A formação dos professores reconheceria os sinais e
indícios dos “problemas comportamentais” das crianças como pedidos de
ajuda ou sinais de dor emocional, em vez de considerá-los maus
comportamentos a serem suprimidos ou motivo de castigo ou exclusão.
Para além da escola, as implicações potenciais da visão de meu amigo
Raffi Cavoukian de uma sociedade inteira que honre as necessidades
irredutíveis das crianças são ao mesmo tempo imensas e muito simples (ver
capítulo 9). Deixo para você, leitor, leitora, a tarefa de imaginar como seria
nossa ferida mundial se puséssemos o bem-estar dos jovens no alto de nossa
lista de prioridades. O que isso signi caria para a criação dos lhos e para o
apoio à criação dos lhos, para os cuidados com as crianças e sua educação,
para a economia, para que produtos vendemos e compramos, para que
alimentos vendemos e preparamos, para o clima, a cultura? E se nossa
intenção, como pais e mães, educadores e sociedade, fosse criar lhos em
contato com os próprios sentimentos, autenticamente empoderados para
expressá-los, para pensar de forma independente e preparados a agir em
prol de seus princípios?
Uma sociedade saudável também se esforçaria para eliminar o abismo
em grande parte arti cial entre gerações que torna difícil para mães e pais se
identi carem com os lhos e vice-versa. Conforme discutido no capítulo 13,
o arranjo humano natural tem uma dimensão comunitária forte, e a
comunidade dos adultos deve trabalhar junta de modo a deixar espaço para
o desenvolvimento dos mais jovens. Isso não signi ca mandar em nossas
crianças nem ditar todos os aspectos da vida delas, apenas assumir
responsabilidade por criar e manter as condições para o seu crescimento. E
precisamos também lembrar que pai e mãe precisam um do outro, e que
todos nós precisamos da presença de pessoas mais velhas e experientes; num
mundo comprometido com a saúde, a criação de lhos e a transmissão
intergeracional de valores e de cultura não seriam tarefas isoladoras.

Nas últimas décadas, em muitos países do mundo, as pessoas – milhões de


adultos e crianças – se mobilizaram para forçar o debate político a incluir
questões cruciais como justiça ambiental, direitos dos povos originários,
direitos das mulheres, justiça de gênero, igualdade racial e reforma da
polícia. Uma dessas pessoas é Greta unberg, a adolescente ativista
ambiental que, ao descrever o próprio autismo como seu “superpoder”,
contribuiu muito para a conscientização da sua geração sobre a mudança
climática. “Muita gente ignorante ainda vê o autismo como uma ‘doença’ ou
algo negativo”, escreveu ela no Twitter. “Quando os haters focam na sua
aparência e nas suas diferenças, isso signi ca que eles não têm mais para
onde ir. E aí você sabe que está ganhando.” Seu próprio exemplo ilustra o
poder de cura de agir com signi cado. Antes da sua campanha pelo clima,
disse unberg, ela “não tinha energia nem amigos, e não falava com
ninguém. Eu simplesmente vivia sozinha em casa com um distúrbio
alimentar”.12
Inspirados por guras como unberg e incontáveis outras cujos nomes
talvez nunca venhamos a conhecer, podemos revisitar a lista dos quatro
elementos promotores da cura citados no capítulo 26: autenticidade, ação,
raiva e aceitação – e a eles acrescentar outros dois, necessários para a busca
de uma mudança transformadora mais ampla: ativismo e mobilização. Trata-
se de duas formas socialmente signi cativas que podem sintetizar as quatro
primeiras, com alguns ingredientes a mais – solidariedade, pensamento
coletivo e conexão – para ajudar a combater os efeitos “atomizantes” do
capitalismo.
Parte da mobilização consiste em usar qualquer privilégio que tenhamos
para ampli car a voz daqueles a quem a sociedade a nega; parte do ativismo
consiste em organizar grupos de pessoas para exigir mudanças necessárias.
Ambos expressam um “não” saudável e necessário, muitas vezes
acompanhado por um retumbante “sim”, como por exemplo num objetivo
político concreto como o Medicare For All nos Estados Unidos, ou na
justiça há tanto tempo devida aos povos das Primeiras Nações no Canadá.
Esses dois elementos suplementares não são nem podem ser empreitadas
individuais. Em setembro de 2011, visitei o Zuccotti Park, em Nova York,
onde aconteceram os protestos contra a desigualdade Occupy Wall Street.
Por mais defeituoso e evanescente que esse movimento tenha se revelado,
me impressionaram o entusiasmo, a solidariedade e a vitalidade da multidão
ao encontrar um canal coletivo para promover sua visão de uma sociedade
justa. Muitas vezes impedida de ser expressada, essa energia latente existe
dentro de todos nós.
A fotógrafa Nan Goldin, cujo vício em opioides abordamos no capítulo
15, travou mais do que um combate pessoal pela recuperação: ela praticou
um ativismo tanto individual quanto coletivo contra a Purdue Pharma,
corporação que ajudou a criar a crise de overdoses por opioides que ceifou
milhares de vidas. A Purdue obteve lucros enormes com seu remédio
OxyContin, que comercializou como um analgésico opioide menos viciante,
suprimindo indícios do contrário. Os amigos de Goldin no AA a
desaconselharam a divulgar seu envolvimento, dizendo que isso destruiria
sua abstinência. “Essa se revelou a melhor escolha que eu já z”, me disse ela.
Sua cruzada pessoal foi dirigida contra a família Sackler, que controla a
Purdue. A fama artística de Goldin lhe proporcionou uma plataforma para
levantar sua bandeira, já que os Sackler vêm cultivando uma reputação de
mecenas das artes. “Eu conhecia o nome deles de ir a museus, e sempre os
havia considerado lantropos bondosos do mundo das artes, donos de um
extremo bom gosto”, disse ela. Mais uma desilusão salutar, pensei. “Aí
descobri”, continuou Goldin, “seu envolvimento na crise dos opioides,
quanto eles lucravam com o sofrimento de centenas de milhares de pessoas
e a total insensibilidade e desumanidade deles.” Movida por uma indignação
com essas descobertas, Goldin fez alguns dos museus mais prestigiosos do
mundo, entre eles o Metropolitan Museum of Art de Nova York, pararem de
aceitar dinheiro dos Sackler e eliminar seu logo de lavagem de dinheiro
pessoal de todos os seus prédios. O Instituto Sackler de Pós-Graduação em
Ciências Biomédicas da Escola de Medicina da New York University
também removeu o sobrenome da família.
Perguntei a Goldin por que ela considerava sua decisão de praticar o
ativismo público a melhor escolha que já tinha feito. Sua resposta remete às
recompensas de saúde dos dois elementos suplementares, ativismo e
mobilização. “Precisamos de algo maior do que nós mesmos”, respondeu ela
sem hesitar.
Para mim, maior do que eu mesma é o sofrimento dos outros. E essa é
uma situação que eu posso ajudar a remediar. A política de hoje, o jeito
como o mundo está agora é maior do que qualquer indivíduo. Tentar
encontrar um jeito de causar impacto, é esse o meu poder, é por isso que
eu luto. Isso ajuda a me manter limpa.

Como Goldin descobriu, resistir a um sistema tóxico pode nos ajudar a


encontrar um chão rme dentro de nós mesmos.

Nunca é demais lembrar que a expressão chinesa que signi ca “crise” é uma
combinação dos ideogramas de “perigo” e “oportunidade”.
Já vimos como pessoas com patologias debilitantes ou até mesmo
mortais podem aprender com a própria doença e transformar sua vida. Se o
mesmo princípio fosse aplicado numa escala social, a crise do clima seria
uma oportunidade para examinar as percepções e práticas dominantes de
uma cultura que está no caminho da autodestruição. A experiência da
covid-19, que com grande ironia contribuiu bastante para desmascarar
diversos fatos nada agradáveis sobre nosso modo de viver, é um poderoso
lembrete das interconexões entre todas as formas de vida; de nossa
verdadeira natureza, baseada em nossos relacionamentos uns com os outros;
das desigualdades de um sistema em que os mais socialmente vulneráveis
são deixados mais expostos ao ataque de um vírus letal; de como o lema
“estamos todos juntos nessa” é uma triste cção em se tratando dos estragos
e das consequências econômicas da catástrofe de saúde pública que marcou
para todo o sempre esta década.
Falando em crises, aliás, não poderia haver condenação mais evidente de
um sistema do que o fato de os seus jovens, acossados como estão pela
ansiedade em relação à mudança climática gerada pelo ser humano, não
con arem nem nos adultos nem nos governos de modo geral.13 A inimitável
Greta unberg expressou isso com uma simplicidade devastadora numa
cúpula de jovens organizada em Milão em setembro de 2021:
Planeta B. Blá-blá-blá. Economia verde. Blá-blá-blá. Emissões zero em
2050. Blá-blá-blá. Só escutamos isso de nossos supostos líderes. Palavras
que soam muito bem mas até agora não levaram a nenhuma ação.
Nossas esperanças e ambições se afogam nas suas promessas vazias.14

A ganância sem limites, a falta de autenticidade e a desconexão nos


levaram a um lugar tão sombrio que cabe aos jovens nos fazer acordar para
aquilo que esta cultura tóxica perpetrou, e durante tanto tempo ignorou.

Antes de ser julgado por crimes de guerra, o cérebro por trás do genocídio
nazista, o tenente-coronel Adolf Eichmann, da SS, foi julgado “normal” por
vários psiquiatras; “pelo menos mais normal do que eu”, teria exclamado um
deles segundo o relato clássico de Hannah Arendt.15 “Outro desses
psiquiatras”, relatou Arendt, “havia constatado que todo o histórico
psicológico de Eichmann, incluindo sua relação com a mulher e os lhos,
com a mãe e o pai, os irmãos, irmãs e amigos, era ‘não só normal, mas
altamente desejável’.”
É isso que o psiquiatra americano Robert J. Lion chamou de
“normalidade maligna”. Muitos dos maiores crimes foram e continuam
sendo cometidos por pessoas em posições de liderança consideradas um
modelo de normalidade em suas respectivas sociedades, seja produzindo
substâncias químicas tóxicas que alteram o clima ou, por exemplo, impondo
políticas que acarretam fome em massa em países distantes. Centenas de
milhares de crianças no Iraque morreram de desnutrição na década de 1990
por causa dos embargos americanos.16 Numa entrevista assistida por
milhões de pessoas, a então embaixadora americana na ONU, Madeleine
Albright, declarou que “o preço vale a pena”.17 Como sabemos hoje, e como
qualquer um poderia ter sabido então, não havia nenhuma justi cativa
plausível para uma coisa tão desumana. Albright viria a ser a primeira
mulher a ocupar a Secretaria de Estado dos Estados Unidos e até hoje segue
muito respeitada, em especial nos círculos liberais.18 Vem à mente a
expressão de desprezo de Victor Hugo por esse tipo de personagem: “os
bárbaros da civilização.”
Na verdade, com frequência os indivíduos que desa am a normalidade
convencional são os mais saudáveis. O psicólogo Abraham Maslow fez da
investigação da autoatualização – o atingimento da satisfação autêntica não
baseada em valores externos – o trabalho de sua vida. “Um estudo das
pessoas saudáveis o su ciente para se autoatualizarem”, escreveu ele num
artigo lido por muita gente, “revelou que elas não eram ‘bem-ajustadas’ (no
sentido ingênuo ter a aprovação da cultura e se identi car com ela).” Essas
pessoas saudáveis, sugeriu Maslow, tinham um relacionamento complexo
com sua “cultura muito menos saudável”. Nem conformistas nem rebeldes
por re exo automático, esses homens e mulheres expressavam sua
anticonvencionalidade de formas que os mantinham éis aos próprios
valores internos, sem hostilidade, mas não sem luta quando necessário. “O
sentimento de distanciamento da cultura não era necessariamente
consciente, mas era exibido por quase todos… Eles muito frequentemente
pareciam capazes de se distanciar como se não pertencessem de fato a ela.”19
Como já vimos, o antídoto para a in uência hipnotizante da
normalidade é a autenticidade: encontrar signi cado na própria experiência
interna, sem que esta seja ofuscada por cções socialmente promulgadas,
em especial o que Daniel Siegel chama de “a mentira do eu individual
avulso”. Essa falsidade é a maior das anomalias. Na minha opinião, uma vida
dedicada a desmascarar uma não verdade tão traumatizante, a viver e criar
fora dos seus limites, é uma vida bem vivida.
Tudo começa com um despertar: despertar para o que é real e autêntico
dentro de nós e à nossa volta, e o que não é; despertar para quem somos e
quem não somos; despertar para o que nosso corpo está expressando e
nossa mente, suprimindo; despertar para nossas feridas e nossos presentes;
despertar para aquilo em que acreditamos e aquilo que de fato valorizamos;
despertar para o que não vamos mais tolerar e para o que agora podemos
aceitar; despertar para os mitos que nos unem e para as interconexões que
nos de nem; despertar para o passado como foi, para o presente como é e
para o futuro como ainda pode vir a ser; despertar, mais do que tudo, para o
abismo entre o que nossa essência pede e o que o “normal” exige de nós.
Somos abençoados com uma oportunidade única. Ao remover mitos
tóxicos de desconexão de nós mesmos, uns dos outros e do planeta,
podemos aos poucos aproximar o que é normal do que é natural. É essa a
tarefa do nosso tempo, uma tarefa capaz de redimir o passado, inspirar o
presente e apontar para um futuro mais luminoso e saudável.
Ela é nosso mais árduo desa o e nossa maior possibilidade.
AGRADECIMENTOS

Nenhum livro irrompe totalmente formado da cabeça do escritor, como


Palas Atena da cabeça de Zeus. Este certamente não surgiu assim. Ele
carrega a marca de centenas de cientistas, pesquisadores, médicos,
pensadores e escritores, sem falar nos muitos colegas da área da medicina e
pro ssionais de várias disciplinas que, com grande generosidade,
compartilharam comigo seu tempo e seu saber, além de centenas de ex-
pacientes e outros leigos que com franqueza e con ança me falaram sobre
suas di culdades, suas lutas e suas vitórias. Embora as interpretações, as
formulações e a apresentação sejam de minha total responsabilidade, assim
como quaisquer erros, não tenho como reivindicar como minhas as
verdades que tentei transmitir.
Minha superagente literária em Nova York, Laurie Liss, surgiu no exato
instante em que o projeto deste livro nasceu após um longo período de
hibernação quase congelada, e ajudou na sua convalescência para que ele
voltasse à vida, da etapa da proposta até a publicação, atravessando períodos
de pessimismo até a criatividade autocon ante. Ela também montou o time
ideal de editores de língua inglesa nos Estados Unidos, Reino Unido e
Canadá. Muito obrigado a Megan Newman, da Avery, Louise Dennys e
Martha Kanya Forstner, da Knopf de Toronto, e Joel Rickett, da Ebury de
Londres, pelo entusiasmo de ter visto as possibilidades desta obra desde o
início, e por continuarem a vê-las apesar de os autores às vezes tentarem dar
passos maiores do que as pernas ou acabarem entrando em becos sem saída.
Sou grato, também, por seus comentários editoriais incisivos ao longo do
processo, e por sua resiliência quando os autores passavam uma vez após a
outra da truculência à apreciação conforme a verdade de suas críticas
revigorantes se tornava evidente. O leitor e a leitora têm muito a lhes
agradecer. Também devo mencionar Rick Meier, Nina Shield e Hannah
Steigmeyer por suas contribuições editoriais. Nessa equipe valorosa, meu
obrigado especial à cara amiga Louise Dennys, que assumiu o fardo de
conduzir a revisão do manuscrito durante sua etapa mais crucial, e com
quem em muitos dias mantive uma comunicação quase ininterrupta.
Em seus primeiros e cruciais estágios, a pesquisa contou com a diligente
Estella Kuchta, e nesse quesito devo mencionar também a equipe sempre
prestativa da Biblioteca da Escola de Medicina e Cirurgia da Colúmbia
Britânica, muito em especial Karen Shaw-Karvelson. Também sou grato ao
professor Peter Prontzos, que passou anos me encaminhando dados de
pesquisa essenciais. Katherine Abegg e Jordan Stanger-Ross zeram a
gentileza de dar uma primeira olhada na proposta do livro, que a aram com
suas astutas re exões.
Laura Kassama, da Virtual Squirrel, e Elsa DeLuca transcreveram
centenas de horas de entrevistas. Obrigado às duas.
Stephanie Lee, minha agente sempre ciosa e e ciente, deu o melhor de si
para manter meus pés no chão dizendo não no meu lugar, organizando
minhas muitas atividades e separando tempo para eu trabalhar neste livro.
Para meus agradecimentos pela colaboração indispensável de Daniel,
meu coautor, ver por favor “Nota do autor” no início deste volume. O que
não está descrito nela é o puro prazer de trabalhar com meu lho neste que
é o primeiro de dois livros que combinamos de escrever juntos. O próximo,
Hello Again: A Fresh Start For Parents and eir Adult Children (Oi de novo:
um recomeço para pais e seus lhos adultos), será mais ainda uma parceria,
e não vejo a hora de iniciá-la.
Por m, volto à pessoa a quem este livro está dedicado: Rae, minha
mulher, que muito mais do que apoio moral e emocional em qualquer
situação – e com frequência o estresse foi muito e a autocon ança, pouca –
proporcionou ao longo de muitas horas e muitas versões de cada capítulo
críticas muito pertinentes e a opinião mais honesta possível, nem sempre
recebidas com graça, mas no m quase sempre acatadas. Para grande
benefício de quem leu.
Obrigado a todos vocês.
GABOR MATÉ

DANIEL AGRADECE A: mamãe, Aaron e Hannah, por terem achado que eu


conseguiria e insistirem para eu tentar: sou o lho e irmão mais sortudo da
face da Terra; a Laurie Liss, pela solidariedade e sagacidade do início ao m;
a Eric Adams, Stan Byrne, Jeremy Gruman, Anna Guest, Katie Halper,
Michael R. Jackson, Dashaun Justice Simmons e Jordan e Ilana Stanger-Ross
e família, pela amizade amorosa e pelo incentivo sob todas as circunstâncias
imagináveis, e outras inimagináveis também; a meus brilhantes
colaboradores nos musicais – sobretudo, mas não só: Will Aronson, Victoria
Clark, Max Friedman, Hannah Kohl, Fred Lassen, Kent Nicholson e
Marshall Pailet – por me ensinarem tudo que sei sobre ser simpático com os
outros (agora vamos montar essas porcarias de espetáculos, caramba!); à
minha agente teatral, Sarah Douglas, por acreditar na minha voz durante
todos esses anos; a Scott Kouri, por ter me escutado melhor do que eu
jamais poderia escutar. Agradeço muito também a dois comentaristas
culturais extraordinariamente incisivos, Stephen Jenkinson e Matt
Christman, cuja eloquente irreverência ao abordar com precisão as muitas
loucuras da atualidade foram ao mesmo tempo um bálsamo nos momentos
difíceis e um revigorante convite a um pensamento mais claro e a uma
transmissão mais corajosa.
Um obrigado especial a todos que conheci na Estación Migratoria Las
Agujas, na Cidade do México. A gentileza e a coragem desses homens
vindos de Cuba, Equador, Haiti, Uganda, Venezuela e todo o “sul global” me
ajudaram a atravessar, no verão de 2021, uma temporada inesperada e
estendida pela covid-19 que recon gurou para todo o sempre meu conceito
de normal. Também tenho uma imensa dívida de gratidão para com meus
heróis e anjos “externos”, entre eles Roberto Banchik, da Penguin Random
House México; Louise Dennys, da Knopf Canadá; John Ralston Saul; e
muito particularmente Jorge Kanahuati e Katherine Abegg.
Kat: para além daquelas primeiras e angustiantes semanas, não tenho
como expressar o que signi caram para mim, ao longo do tempo de vida
deste livro, sua percepção, seu companheirismo e sua sinceridade
impiedosa, que alimentaram o que acabou nestas páginas. Obrigado.
Por m, obrigado a papai: por ter me convidado para brincar junto, por
ter cado ao meu lado durante os tropeços mais do que ocasionais e por ter
me con ado sua obra magna enquanto me abria espaço para também
contribuir com sua contribuição para o mundo. Foi a maior oportunidade
que tive na vida de colocar en m palavras na sua boca. E foi um prazer. Que
orgulho de você, pai.
NOTAS

INTRODUÇÃO: POR QUE O NORMAL É UM MITO (E QUE IMPORTÂNCIA ISSO TEM)

1 Respectivamente, Scattered Minds: e Origins and Healing of Attention De cit Disorder (Mentes
dispersas: origens e cura do transtorno do dé cit de atenção); When the Body Says No: e Cost of
Hidden Stress (Quando o corpo diz não: o custo do estresse oculto); In the Realm of Hungry
Ghosts: Close Encounters with Addiction (No reino dos fantasmas famintos: contatos imediatos
com a dependência); e, com o dr. Gordon Neufeld, Hold On to Your Kids: Why Parents Need to
Matter More an Peers (Não larguem seus lhos: por que pais e mães precisam ser mais
importantes do que os pares). Esses são os títulos no Canadá e no Reino Unido. Nos Estados
Unidos, o livro sobre TDAH se chama Scattered Minds: How Attention De cit Disorder Originates
and What You Can Do About It (Mentes dispersas: as origens do dé cit de atenção e o que você
pode fazer), e When the Body Says No tem como subtítulo Exploring the Stress-Disease Connection
(Uma exploração da conexão entre estresse e doença).
2 BERMAN, Morris. e Twilight of American Culture. Nova York: W. W. Norton, 2001, pp. 64-5.
3 HARTMANN, om. e Last Hours of Ancient Sunlight: e Fate of the World and What We Can
Do About It Before It’s Too Late. Nova York: ree Rivers Press, 2000, p. 164.
4 BUTTORF, Christine et al. Multiple Chronic Conditions in the United States. Santa Monica, CA:
RAND Corporation, 2017.
5 NEARLY 7 in 10 Americans Take Prescription Drugs, Mayo Clinic, Olmsted Medical Center Find.
Mayo Clinic, release para a imprensa, 19 jun. 2013. Disponível em:
<https://newsnetwork.mayoclinic.org/discussion/nearly-7-in-10-americans-take-prescription-
drugs-mayo-clinic-olmsted-medical-center- nd/>.
6 WEEKS, Carly. “Up to Half of Baby Boomers Will Have High Blood Pressure Soon, Report Warns”.
e Globe and Mail, 3 abr. 2013.
7 ALONSO, Alvaro & HERNÁN, Miguel. “Temporal Trends in the Incidence of Multiple Sclerosis:
A Systematic Review”. Neurology, vol. 71, n. 2, 8 jul. 2008. DOI:
10.1212/01.wnl.0000316802.35974.34.
8 MACLEOD, Calum. “Obesity of China’s Kids Stuns Officials”. USA Today, 9 jan. 2007. Disponível
em: <https://usatoday30.usatoday.com/news/world/2007-01-08-chinese-obesity_x.htm>.
9 MENTAL Health by the Numbers. National Alliance on Mental Illness. Disponível em:
<https://www.nami.org/mhstats>.
10 THE SIZE and Burden of Mental Disorders in Europe. ScienceDaily, 6 set. 2011. Disponível em:
<https://www.sciencedaily.com/releases/2011/09/110905074609.htm>. Fonte: European College of
Neuropsycho-Pharmacology.
11 BURSTEIN, Brett et al. “Suicidal Attempts and Ideation Among Children and Adolescents in US
Emergency Departments, 2007-2015”. JAMA Pediatrics, vol. 173, n. 6, abr. 2019, pp. 598-600.
Disponível em: <https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2019.0464>. Citado em CASSELLA,
Carly. “Child Suicide Attempts Are Skyrocketing in the US, and Nobody Knows Why”.
ScienceAlert, 11 abr. 2019. Disponível em: <https://www.sciencealert.com/us-children-are-facing-
a-mental-health-crisis-as-suicidal-ideations-climb>.
12 SHACKLE, Samira. “‘e Way the Universities Are Run Is Making Us Ill’: Inside the Student
Mental Health Crisis”. e Guardian, 27 set. 2019.
13 HUI Cao et al. “Prevalence of Attention-De cit/Hyperactivity Disorder Symptoms and eir
Associations with Sleep Schedules and Sleep-Related Problems Among Preschoolers in Mainland
China”. BMC Pediatrics, vol. 18, n. 1, 19 fev. 2018, p. 70.
14 HICKMAN, Caroline et al. “Young People’s Voices on Climate Anxiety, Government Betrayal and
Moral Injury: A Global Phenomenon”. Pré-artigo apresentado a e Lancet, set. 2021. Disponível
em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3918955>.
15 CDC Continues to Support the Global Polio Eradication Effort. Centers for Disease Control and
Prevention, 18 mar. 2016. Disponível em: <https://www.cdc.gov/polio/updates/?s_cid=cs_404>.
16 Embora eu quase sempre vá usar “mito” na sua acepção contemporânea de “ ctício” ou
“equivocado”, terei oportunidade, bem mais adiante no livro, de reconhecer o poder de cura do
verdadeiro pensamento mítico, no sentido antigo da palavra.

1. O ÚLTIMO LUGAR EM QUE VOCÊ QUER ESTAR: ASPECTOS DO TRAUMA

1 Mark Epstein é psiquiatra, professor de meditação budista e escritor.


2 Conforme resumido pelo dr. Bessel van der Kolk em seu prefácio a LEVINE, Peter. Trauma and
Memory: Brain and Body in a Search for the Living Past. Berkeley, CA: North Atlantic Books, 2015,
p. xi.
3 Ibidem, p. xx.
4 Movimento político e paramilitar húngaro fascista cruelmente antissemita, aliado dos ocupantes
nazistas.
5 BOWLBY, John. Separação: Angústia e raiva, trad. Leônidas Hegenberg. São Paulo: Martins Fontes,
2014, p. 12.
6 KOLK, Bessel van der. O corpo guarda as marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Rio de
Janeiro: Sextante, 2020, p. 56.
7 LEVINE, Peter, op. cit., 2015, p. xxii.
8 Idem. Healing Trauma Study Guide. Boulder, CO: Sounds True, 1999, p. 5.
9 HERTZMAN, Clyde & BOYCE, Tom. “How Experience Gets Under the Skin to Create Gradients
in Developmental Health”. Annual Review of Public Health, vol. 31, 21 abr. 2010, pp. 329-47.
10 EPSTEIN, Mark. e Trauma of Everyday Life. Nova York: Penguin, 2013, p. 17.
11 LEVINE, Peter, op. cit., 1999, p. 7.
12 Ibidem, p. 7.
13 Ver capítulo 6, primeiro parágrafo e nota de rodapé.
14 WESTOVER, Tara. Educated: A Memoir. Nova York: HarperCollins, 2018, p. 111, grifos do
original.
15 MAY, Rollo. e Courage to Create. Nova York: W. W. Norton, 1975, p. 100.
16 KAUFMAN, Gershen. Shame: e Power of Caring. Rochester, VT: Schenkman Books, 1980, p. 20.
17 WURTZEL, Elizabeth. “Elizabeth Wurtzel Confronts Her One-Night Stand of a Life”. New York
Magazine, 6 jan. 2013.
18 Dhammapada: os ensinamentos de Buda. São Paulo: Mantra, 2021.
19 E minha companheira de emigração para Vancouver na década de 1950, hoje moradora de longa
data de Londres.
20 HOFFMAN, Eva Hoffman. Time. Londres: Pro le Books, 2009, pp. 7-8.
21 Capítulo 4.
22 Obi-Wan Kenobi para Luke Skywalker em O retorno de Jedi, de 1983.

2. VIVER NUM MUNDO IMATERIAL: EMOÇÕES, SAÚDE E A UNIDADE CORPO-MENTE

1 Fiquei entristecido ao saber da sua morte, cerca de um ano após nossa entrevista.
2 Expressão cunhada em 1982 por pesquisadores da Universidade de Heidelberg, na Alemanha.
3 PERT, Candace. Molecules of Emotion: Why You Feel the Way You Feel. Nova York: Touchstone,
1997, p. 30.
4 WIRSCHING, M. et al. “Psychological Identi cation of Breast Cancer Patients Before Biopsy”.
Journal of Psychosomatic Research, vol. 26, n. 1, 1982, pp. 1-10.
5 GREER, S. & MORRIS, T. “Psychological Attributes of Women Who Develop Breast Cancer: A
Controlled Study”. Journal of Psychosomatic Research, vol. 19, n. 2, abr. 1975, pp. 147-53.
6 THOMAS, Sandra P. et al. “Anger and Cancer: An Analysis of the Linkages”. Cancer Nursing, vol.
23, n. 5, nov. 2000, pp. 344-8.
7 Doença degenerativa do sistema nervoso, quase sempre fatal, conhecida na Grã-Bretanha como
doença dos neurônios motores e nos Estados Unidos também como doença de Lou Gehrig.
8 WILBOURN, A. J. & MITSUMOTO, H. “Why Are Patients with ALS So Nice”, apresentado no IX
International ALS Symposium on ALS/MND, Munique, 1998.
9 MEHL, eresa; JORDAN, Berit & ZIERZ, Stephan. “‘Patients with Amyotrophic Lateral Sclerosis
(ALS) Are Usually Nice Persons’ – How Physicians Experienced in ALS See the Personality
Characteristics of eir Patients”. Brain Behavior, vol. 7, n. 1, jan. 2017.
10 PENEDO, Frank J. et al. “Anger Suppression Mediates the Relationship Between Optimism and
Natural Killer Cell Cytotoxicity in Men Treated for Localized Prostate Cancer”. Journal of
Psychosomatic Research, vol. 60, n. 4, abr. 2006, pp. 423-7.
11 REICHE, Edna Maria Vissoci; NUNES, Sandra Odebrecht Vargas & MORIMOTO, Helena
Kaminami. “Stress, Depression, the Immune System, and Cancer”. e Lancet Oncology, vol. 5, n.
10, out. 2004, pp. 617-25. As autoras escrevem: “Esses conceitos poderiam explicar a maior
ocorrência de doenças linfáticas e hematológicas malignas e de melanomas vistos num grupo de
6.284 judeus israelenses que perderam um lho adulto. A incidência de câncer aumentava nos
pais das vítimas de acidente e de guerra, em comparação com os membros não enlutados da
população. Pais enlutados devido a acidentes também tinham um risco maior de câncer de
pulmão.”
12 LI, J. et al. “e Risk of Multiple Sclerosis in Bereaved Parents: A Nationwide Cohort Study in
Denmark”. Neurology, vol. 62, n. 5, 9 mar. 2004, pp. 726-9.
13 ROBERTS, A. et al. “PTSD Is Associated with Increased Risk of Ovarian Cancer: A Prospective
and Retrospective Longitudinal Cohort Study”. Cancer Research, vol. 79, n. 19, 1o out. 2019, pp.
5113-120. Disponível em: <https://doi.org/10.1158/0008-5472.CAN-19-1222>.
14 THEKAR, Premal H. et al. “Chronic Stress Promotes Tumor Growth and Angiogenesis in a Mouse
Model of Ovarian Carcinoma”. Nature Medicine, vol. 12, n. 8, 12 ago. 2006, pp. 939-44. Disponível
em: <https://doi.org/10.1038/nm1447>.
15 MOL, Saskia L. et al. “Symptoms of Post-Traumatic Stress Disorder Aer Non-Traumatic Events:
Evidence from an Open Population Study”. British Journal of Psychiatry, vol. 286, jun. 2005, pp.
494-9.
16 WEISS, S. “e Medical Student Before and Aer Graduation”. Journal of the American Medical
Association, vol. 114, 1940, pp. 1709-18.
17 Jeff Rediger, diretor de medicina no McLean Hospital, em Harvard, comunicação pessoal.
18 TAWAKOL, Ahmed et al. “Relation Between Resting Amygdalar Activity and Cardiovascular
Events: A Longitudinal and Cohort Study”. e Lancet, vol. 389, n. 10.071, 25 fev. 2017, pp. 834-45.
19 SLOPEN, N. et al. “Job Strain, Job Insecurity, and Incident Cardiovascular Disease in the Women’s
Health Study: Results from a 10-Year Prospective Study”. PLOS ONE, vol. 7, n. 7, 2012, e40512.
Disponível em: <https://doi.org/10.1371/journal.pone.0040512>.
20 FULLER-THOMSON, Esme et al. “e Link Between Childhood Sexual Abuse and Myocardial
Infarction in a Population-Based Study”. Child Abuse and Neglect, vol. 36, n. 9, set. 2012, pp. 656-
65. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2012.06.001>.
21 Por muito tempo diretor do laboratório de neuroendocrinologia Harold e Margaret Milliken, na
Universidade Rockefeller, e morto em 2020.
22 BAUMEISTER, D. et al. “Childhood Trauma and Adulthood In ammation: A Meta-Analysis of
Peripheral C-Reactive Protein, Interleukin-6 and Tumor Necrosis Factor-α”. Molecular Psychiatry,
vol. 21, n. 5, maio 2016, pp. 642-9.

3. VOCÊ ME VIRA A CABEÇA: NOSSA BIOLOGIA ALTAMENTE INTERPESSOAL

1 ENGEL, George L. “e Clinical Application of the Biopsychosocial Model”. American Journal of
Psychology, vol. 137, n. 5, maio 1980, pp. 535-44.
2 Idem. “e Need for a New Medical Model: A Challenge for Biomedicine”. Science, vol. 196, n.
4286, 8 abr. 1977, pp. 129-36.
3 KOLK, Bessel van der. O corpo guarda as marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Rio de
Janeiro: Sextante, 2020, p. 96.
4 GRANT, Richard. “Do Trees Talk to Each Other?”. Smithsonian, mar. 2018. Disponível em:
<https://www.smithsonianmag.com/science-nature/the-whispering-trees-180968084>.
5 Professor de prática médica na Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles
(UCLA) e diretor-executivo do Mindsight Institute.
6 SIEGEL, Daniel. Pocket Guide to Interpersonal Neurobiology: An Integrative Handbook of the Mind.
Nova York: W. W. Norton, 2012, p. xviii.
7 “I’m on Fire” (1984), terceira estrofe.
8 Como na letra do seu clássico do rock ‘n’ roll, “Great Balls of Fire”.
9 JOHNSON, N. J. et al. “Marital Status and Mortality: e National Longitudinal Mortality Study”.
Annals of Epidemiology, vol. 10, n. 4, maio 2000, pp. 224-38.
10 COYNE, J. C. & DELONGIS, A. “Going Beyond Social Support: e Role of Social Relationships
in Adaptation”. Journal of Consulting and Clinical Psychology, vol. 54, n. 4, ago. 1986, pp. 454-60,
citado em ROBLES, T. E. & KIECOLT-GLASER, J. K. “e Physiology of Marriage: Pathways to
Health”. Physiology and Behavior, vol. 79, n. 3, ago. 2003, pp. 409-16.
11 “Existe uma quantidade bastante signi cativa de pesquisas que relacionam o con ito em
relacionamentos a diferentes tipos de reações siológicas, tais como uma maior liberação de
hormônios do estresse, in amação, mudanças na regulação do apetite e função imunológica”,
disse Veronica Lamarche, professora de psicologia social na Universidade de Essex. “A Bad
Marriage Can Seriously Damage Your Health, Say Scientists”. e Guardian, 16 jul. 2018.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2018/jul/16/a-bad-marriage-is-as-
unhealthy-as-smoking-or-drinking-say-scientists>.
12 GOTTMAN, J. M. & KATZ, L. F. “Effects of Marital Discord on Young Children’s Peer Interaction
and Health”. Developmental Psychology, vol. 25, n. 3, 1989, pp. 373-81.
13 WEIL, Constance M. & WADE, Shari L. “e Relationship Between Psychosocial Factors and
Asthma Morbidity in Inner City Children with Asthma”. Pediatrics, vol. 104, n. 6, dez. 1999, pp.
1274-80.
14 YAMAMOTO, N. & NAGANO, J. “Parental Stress and the Onset and Course of Childhood
Asthma”. BioPsychoSocial Medicine, vol. 9, n. 7, mar. 2015. Disponível em:
<https://doi.org/10.1186/s13030-015-0034-4>.
15 COOGAN, P. F. et al. “Experiences of Racism and the Incidence of Adult-Onset Asthma in the
Black Women’s Health Study”. CHEST Journal, vol. 145, n. 3, mar. 2014, pp. 480-5.
16 SEEMAN, T. E. & MCEWEN, B. S. “Impact of Social Environment Characteristics on
Neuroendocrine Regulation”. Psychosomatic Medicine, vol. 58, n. 5, set.-out. 1996, pp. 459-71.
17 HUGHES, A. et al. “Elevated In ammatory Biomarkers During Unemployment: Modi cation by
Age and Country in the UK”. Epidemiology and Community Health, vol. 69, n. 7, jul. 2015, pp. 67-
79. Disponível em: <https://doi.org/10.1136/jech-2014-204404>.
18 BUTTERWORTH, P. et al. “e Psychosocial Quality of Work Determines Whether Employment
Has Bene ts for Mental Health: Results from a Longitudinal National Household Panel Survey”.
Occupational and Environmental Medicine, vol. 68, n. 11, nov. 2011, pp. 806-12. Disponível em:
<https://doi.org/10.1136/oem.2010.059030>.
19 HOLT-LUNSTAD, J. et al. “Social Relationships and Mortality Risk: A Meta-Analytic Review”.
PLOS Medicine, vol. 7, n. 7, 27 jul. 2010. Disponível em:
<https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1000316>.
20 HANH, ich Nhat. Buddha Mind, Buddha Body. Berkeley, CA: Parallax Press, 2007, p. 25.

4. TUDO AQUILO QUE ME CERCA: DESPACHOS DA NOVA CIÊNCIA

1 Professora emérita do Departamento de Bioquímica e Biofísica da Universidade da Califórnia em


São Francisco.
2 Algumas doenças são determinadas exclusivamente pelos genes, como a de Huntington e uma da
qual sofremos na minha família, a distro a muscular. Se uma pessoa tiver esse gene, tem quase
100% de chances de apresentar a doença. Essas condições são excepcionalmente raras. Por
exemplo, existe um gene do câncer de mama, mas apenas cerca de 7% das mulheres que
apresentam a doença têm o gene. E nem de longe todas as que têm o gene desenvolverão
necessariamente a doença, embora com certeza o risco seja signi cativamente maior.
3 Como admitiu em 2010 um editorial da revista Nature: “Apesar de todo o alvoroço intelectual da
última década, a saúde humana de fato se bene ciou do sequenciamento do genoma humano?
Uma resposta surpreendentemente sincera pode ser encontrada [nos artigos da presente edição],
onde os líderes das iniciativas públicas e privadas, Francis Collins e Craig Venter
[respectivamente, geneticista e médico americano que capitaneou o Projeto Genoma Humano, e
diretor dos National Institutes of Health dos Estados Unidos e destacado bioquímico e
empreendedor], dizem ambos ‘não muito’.” “Has the Revolution Arrived?”, Nature, vol. 464, 31
mar. 2010, pp. 674-5.
4 Moléculas receptoras acopladas à membrana das células recebem e se fundem a mensageiros
químicos como opioides e hormônios. Sua interação com as substâncias mensageiras induzem o
DNA no núcleo da célula a fabricar proteínas que desencadeiam processos vitais. Por meio de
mecanismos como esse, o entorno instrui a célula quanto ao que fazer e quando fazê-lo.
5 HENRIQUES, Martha. “Can the Legacy of Trauma Be Passed Down the Generations?”, BBC
Future, 26 mar. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/future/article/20190326-what-is-
epigenetics>.
6 O modo como um gene age – ou seja, que proteínas mensageiras ele vai produzir, se é que vai
produzir alguma – se chama expressão do gene. A expressão do gene é determinada por fatores
vindos do entorno que chegam ao DNA por meio de receptores na membrana celular, e também
por mecanismos intracelulares complexos programados pela experiência.
7 O eixo hipotálamo-hipó se-suprarrenais é discutido no capítulo 12.
8 SZYF, Moshe et al. “Maternal Programming of Steroid Receptor Expression and Phenotype
rough DNA Methylation in the Rat”. Frontiers in Neuroendocrinology, vol. 26, n. 3-4, out.-dez.
2005, pp. 139-62.
9 CHAMPAGNE, Frances A. et al. “Maternal Care Associated with Methylation of the Estrogen
Receptor-1b Promoter and Estrogen Receptor-Alpha Expression in the Medial Preoptic Area of
Female Offspring”. Endocrinology, vol. 147, n. 6, jun. 2006, pp. 2909-15.
10 CAO-LEI, Lei et al. “DNA Methylation Signatures Triggered by Prenatal Maternal Stress Exposure
to a Natural Disaster: Project Ice Storm”. PLOS ONE, vol. 9, n. 9, 19 set. 2014. Disponível em:
<https://doi.org/10.1371/journal.pone.0107653>.
11 O impacto do estresse “subjetivo” – medo, perda, dor emocional, etc. – não é menos
siologicamente impactante.
12 LEUNG, Wendy. “Pregnancy Stress During 1998 Ice Storm Linked to Genetic Changes in
Children Aer Birth, Study Suggests”. e Globe and Mail, 30 set. 2014.
13 RODGERS, Ali B. et al. “Paternal Stress Exposure Alters Sperm MicroRNA Content and
Reprograms Offspring HPA Stress Axis Regulation”. Journal of Neuroscience, vol. 33, n. 21, maio
2013, pp. 9003-12.
14 ESSEX, Marilyn J. et al. “Epigenetic Vestiges of Developmental Adversity: Childhood Stress
Exposure and DNA Methylation in Adolescence”. Childhood Development, vol. 84, n. 1, jan. 2013,
pp. 58-7.
15 BORGHOL, Nada et al. “Associations with Early-Life Socio-Economic Position in Adult DNA
Methylation”. International Journal of Epidemiology, vol. 41, n. 1, fev. 2012, pp. 62-74.
16 THAMES, April D. et al. “Experienced Discrimination and Racial Differences in Leukocyte Gene
Expression”. Psychoneuroendocrinology, vol. 106, ago. 2019, pp. 277-83.
17 Idem. “Racism Shortens Lives and Hurts Health of Blacks by Promoting Genes at Lead to
In ammation and Illness”. e Conversation, 17 out. 2019. Disponível em:
<https://theconversation.com/study-racism-shortens-lives-and-hurts-health-of-blacks-by-
promoting-genes-that-lead-to-in ammation-and-illness-122027>.
18 RIDOUT, Kathryn K. et al. “Physician-Training Stress and Accelerated Cellular Aging”. Biological
Psychiatry, vol. 86, n. 9, 1o nov. 2019, pp. 725-30.
19 EPEL, Elissa S. et al. “Accelerated Telomere Shortening in Response to Life Stress”. Proceedings of
the National Academy of Sciences, vol. 101, n. 49, 7 dez. 2004, pp. 17.312-5. Disponível em:
<https://www.pnas.org/content/101/49/17312>.
20 DAMJANOVIC, Amanda K. et al. “Accelerated Telomere Erosion Is Associated with a Declining
Immune Function of Caregivers of Alzheimer’s Disease Patients”. Journal of Immunology, vol. 179,
n. 6, 15 set. 2007, pp. 4249-54.
21 CHAE, David H. et al. “Discrimination, Racial Bias, and Telomere Length in African-American
Men”. American Journal of Preventative Medicine, vol. 46, n. 2, fev. 2014, pp. 103-11.
22 GERONIMUS, Arline T. et al. “Do US Black Women Experience Stress-Related Accelerated
Biological Aging?”. Human Nature, vol. 21, n. 1, 10 mar. 2010, pp. 19-38.
23 JACOBS, Tonya L. et al. “Intensive Meditation Training, Immune Cell Telomerase Activity, and
Psychological Mediators”. Psychoneuroendocrinology, vol. 36, n. 5, jun. 2011, pp. 664-81; BRODY,
Gene H. et al. “Prevention Effects Ameliorate the Prospective Association Between Nonsupportive
Parenting and Diminished Telomere Length”. Prevention Science, vol. 16, n. 2, fev. 2015, pp. 171-
80. Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s11121-014-0474-2>; e ORNISH, Dean et al. “Effect
of Comprehensive Lifestyle Changes on Telomerase Activity and Telomere Length in Men with
Biopsy-Proven Low-Risk Prostate Cancer: 5-Year Follow-Up of a Descriptive Pilot Study”. Lancet
Oncology, vol. 14, n. 11, out. 2013, pp. 1112-20. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/S1470-
2045(13)70366-8>.

5. MOTIM NO CORPO: O MISTÉRIO DO SISTEMA IMUNOLÓGICO REBELDE

1 Seu nome de batismo em coreano, cuja pronúncia é “mi ôk”. Por ter sido criada nos Estados
Unidos, ela passou boa parte da vida sendo chamada de “Mandy”. Seu nome completo hoje é Mee
Oak Icaro, por motivos que vou explicar no capítulo 31, quando voltarmos a falar de sua
impressionante história (ver nota 6).
2 CROUSE, Karen. “Venus Williams Says She Struggled with Fatigue for Years”. e New York Times,
1o set. 2011.
3 AUTOIMMUNE Disease Rates Increasing. Medical News Today. Disponível em:
<https://www.medicalnewstoday.com/articles/246960.php>; BACH, Jean-François. “Why Is the
Incidence of Autoimmune Diseases Increasing in the Modern World?”. Endocrine Abstracts, vol.
16, S3.1, 2008.
4 VELASQUEZ-MANOFF, Moises. “Educate Your Immune System”. e New York Times, 3 jun.
2016.
5 KNAPTON, Sarah. “Crohn’s Disease in Teens Jumps 300 Percent in 10 Years Fuelled by Junk Food”.
e Telegraph, 18 jun. 2014.
6 BENCHIMOL, Eric I. et al. “Trends in Epidemiology of Pediatric In ammatory Bowel Disease in
Canada: Distributed Network Analysis of Multiple Population-Based Provincial Health
Administrative Databases”. American Journal of Gastroenterology, vol. 112, n. 7, jul. 2017, pp.
1120-34. Disponível em: <https://doi.org/10.1038/AJG.2017.97>.
7 RATTUE, Grace. “Autoimmune Disease Rates Increasing”. Medical News Today, 22 jun. 2012.
Disponível em: <https://www.medicalnewstoday.com/articles/246960.php>.
8 Robin McKie, “Global Spread of Autoimmune Disease Blamed on Western Diet”. e Guardian, 9
jan. 2022.
9 MANZEL, Arndt et al. “Role of ‘Western Diet’ in In ammatory Autoimmune Disease”. Current
Allergy and Asthma Reports, vol. 14, n. 1, jan. 2014, pp. 404. DOI: 10.1007/s11882-013-0404-6. (“A
associação entre dieta e o risco de desenvolver doenças in amatórias autoimunes já foi proposta
cinquenta anos atrás […] nenhuma associação de nitiva entre fatores alimentares e doenças
autoimunes foi rmemente estabelecida até hoje.”)
10 Nesse caso, nem todos os fatores desfavorecem as mulheres: em homens, a mesma doença tende a
ser mais grave, e tem maior probabilidade de ser fatal. PEOPLES, Christine. “Gender Differences
in Systemic Sclerosis: Relationship to Clinical Features, Serologic Status and Outcomes”. Journal of
Scleroderma and Related Disorders, vol. 1, n. 2, maio-ago. 2016, pp. 177-240.
11 ORTON, Sarah-Michelle et al. “Effect of Immigration on Multiple Sclerosis Sex Ratio in Canada:
e Canadian Collaborative Study”. Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry, vol. 81, n.
1, jan. 2010, pp. 31-6.
12 MAGYARI, Melinda. “Gender Differences in Multiple Sclerosis Epidemiology and Treatment
Response”. Danish Medical Journal, vol. 63, n. 3, mar. 2016.
13 BLACK, Paul H. “Stress and the In ammatory Response: A Review of Neurogenic In ammation”
Brain, Behavior, and Immunity, vol. 16, n. 6, dez. 2002, pp. 622-53.
14 FELDMAN, C. H. et al. “Association of Childhood Abuse with Incident Systemic Lupus
Erythematosus in Adulthood in a Longitudinal Cohort of Women”. Journal of Rheumatology, vol.
46, n. 12, dez. 2019, pp. 1589-96.
15 COELHO, R. et al. “Childhood Maltreatment and In amatory Markers: A Systematic Review”.
Acta Psychiatrica Scandinavica, vol. 129, n. 3, mar. 2014, pp. 180-92; HUANG Song et al.
“Association of Stress-Related Disorders with Subsequent Autoimmune Disease”. Journal of the
American Medical Association, vol. 319, n. 23, 19 jun. 2018, pp. 2388-400.
16 Por exemplo, a proteína C-reativa (PCR).
17 DANESE, Andrea et al. “Childhood Maltreatment Predicts Adult In ammation in a Life-Course
Study”. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, vol. 104, n.
4, 23 jan. 2007, pp. 1319-24.
18 SOLOMON George F. & MOOS, Rudolf H. “e Relationship of Personality to the Presence of
Rheumatoid Factor in Asymptomatic Relatives of Patients with Rheumatoid Arthritis”.
Psychosomatic Medicine, vol. 27, n. 4, jul. 1965, pp. 350-60.
19 ROBINSON, C. E. G. “Emotional Factors and Rheumatoid Arthritis”. Canadian Medical
Association Journal, vol. 77, n. 4, 15 ago. 1957, pp. 344-5.
20 ZAUTRA, Alex J. et al. “Examination of Changes in Interpersonal Stress as a Factor in Disease
Exacerbations Among Women with Rheumatoid Arthritis”. Annals of Behavioral Medicine, vol. 19,
n. 3, 1997, pp. 279-86.
21 Ver capítulo 27.
22 PHILIPPOPOULOS, G. S. et al. “e Etiologic Signi cance of Emotional Factors in Onset and
Exacerbations of Multiple Sclerosis”. Psychosomatic Medicine, vol. 20, n. 6, nov. 1958, pp. 458-73.
23 MEI-TAL, Varda et al. “e Role of Psychological Process in a Somatic Disorder: Multiple
Sclerosis”. Psychosomatic Medicine, vol. 32, n. 1, jan.-fev. 1970, pp. 67-85.
24 RANKLIN, Gary M. et al. “Stress and Its Relationship to Acute Exacerbations in Multiple
Sclerosis”. Journal of Neurologic Rehabilitation, vol. 2, n. 1, 1o mar. 1988, pp. 7-11.
25BRIONES, L. et al. “e In uence of Stress and Psychosocial Factors in Multiple Sclerosis: A
Review”, apresentação em congresso. Em: Psychotherapy and Psychosomatics, vol. 82, supl. 1, set.
2013, pp. 1-134.
26 “No último meio século, a prevalência de doenças autoimunes […] aumentou de forma acentuada
no mundo desenvolvido”, relatou Moises Velasquez-Manoff. “Muitas, como o diabetes tipo 1 e a
doença celíaca, estão vinculadas a variantes especí cas de genes do sistema imunológico, o que
sugere um forte componente genético. Mas sua prevalência aumentou bem mais depressa em duas
ou três gerações do que é provável a carga genética humana ter se modi cado. Muitas teorias
foram propostas para o aumento acentuado de casos autoimunes, entre elas a chamada hipótese
da higiene. Segundo essa ideia, a industrialização e a prosperidade levaram a estilos de vida que
impedem os seres humanos de serem expostos a micro-organismos que teriam treinado nosso
sistema imunológico a ser mais resistente e resiliente. A implicação é que, ao retardar a exposição
a infecções outrora comuns, as melhorias na higiene da sociedade podem aumentar a prevalência
de doenças autoimunes.” VELASQUEZ-MANOFF, Moises, “Educate Your Immune System”. e
New York Times, 5 jun. 2016. Até onde sabemos, talvez haja alguma verdade nessa visão, mas ela
certamente não é capaz de explicar o aumento radical ocorrido em poucas décadas. Terá a
situação de higiene das mulheres dinamarquesas de fato se modi cado tanto assim nos últimos 25
anos?
27 HUANG Song et al. “Association of Stress-Related Disorders with Subsequent Autoimmune
Disease”. Journal of the American Medical Association, vol. 319, n. 23, 19 jun. 2018, pp. 2388-400.
28 ISRS signi ca “inibidores seletivos da recaptação da serotonina”, ou seja, esses remédios
bloqueiam a recaptação do mensageiro químico cerebral chamado serotonina pelos neurônios.
29 HARPAZ, Idam et al. “Chronic Exposure to Stress Predisposes to Higher Autoimmune
Susceptibility in C57BL/6 Mice: Glucocorticoids as a Double-Edged Sword”. European Journal of
Immunology, vol. 43, n. 3, mar. 2013, pp. 258-769.
30 As notáveis diferenças de gênero, bem como as disparidades raciais da doença autoimune são
tratadas nos capítulos 22 e 23.
31 TALBOT, Deborah. “What’s It Like Living with Lupus”. Elemental, 13 jul. 2018. Disponível em:
<https://elemental.medium.com/what-its-like-living-with-lupus-8d0c2efcbe5e>.
32 Evidentemente, no caso de um agente externo como o novo coronavírus, estamos diante de um
desa o totalmente distinto. Mesmo nesse caso, porém, fatores internos e condições sociais têm um
papel fundamental na vulnerabilidade das pessoas à infecção.

6. NÃO É UMA COISA: A DOENÇA COMO PROCESSO

1 Desde nossa primeira entrevista, a autora e ativista mudou seu nome para V, abrindo mão do
nome e sobrenome que lhe tinham sido dados pelo pai estuprador, por cujo legado ela não deseja
ser de nida. Daqui em diante neste livro, vamos honrar isso.
2 Exceto os casos de algumas malignidades especí cas, nenhuma descoberta importante foi feita
para a cura e a prevenção do câncer. Pouco mudou desde que Gina Kolata noticiou, em 2009, que
em mais de meio século as taxas de mortalidade por câncer “mal haviam se movido”, caindo
apenas 5% entre 1950 e 2005. Os maiores progressos foram resultado da cessação do tabagismo,
não de avanços médicos propriamente ditos. KOLATA, Gina. “Advances Elusive in the Drive to
Cure Cancer”. e New York Times, 21 abr. 2009.
3 MATÉ, Gabor. When the Body Says No: e Cost of Hidden Stress. Toronto: Knopf Canada, 2003,
cap. 18; publicado nos EUA com o subtítulo Exploring the Stress-Disease Connection.
4 KELLY-IRVING, Michelle et al. “Childhood Adversity as a Risk for Cancer: Findings from the
1958 British Birth Cohort Study”. BMC Public Health, vol. 13, n. 1, 19 ago. 2013, p. 767. Disponível
em: <https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2458-13-767>.
5 HARRIS, Holly R. et al. “Early Life Abuse and Risk of Endometriosis”. Human Reproduction, vol. 3,
n. 9, set. 2018, pp. 1657-68.
6 Lembre também a conexão entre sintomas de TEPT e câncer de ovário (capítulo 2).
7 WATSON, M. et al. “In uence of Psychological Response on Breast Cancer Survival: 10-Year
Follow-Up of a Population-Based Cohort”. European Journal of Cancer, vol. 41, n. 12, ago. 2005,
pp. 1710-4.
8 GIESE-DAVIS, Janine et al. “Decrease in Depression Symptoms Is Associated with Longer Survival
in Patients with Metastatic Breast Cancer”. Journal of Clinical Oncology, vol. 29, n. 4, 1o fev. 2011,
pp. 413-20.
9 Esse estudo sobre o câncer de colo do útero é citado em GOLDBERG, Jane G. (org.).
Psychotherapeutic Treatment of Cancer Patients. Nova York: Routledge, 1990, p. 45.
10 PENEDO, Frank J. et al. “Anger Suppression Mediates the Relationship Between Optimism and
Natural Killer Cell Cytotoxicity in Men Treated for Localized Prostate Cancer”. Journal of
Psychosomatic Research, vol. 60, n. 4, abr. 2006, pp. 423-7.
11 COKER, Ann L. et al. “Stress, Coping, Social Support, and Prostate Cancer Risk Among Older
African American and Caucasian Men”. Ethnicity and Disease, vol. 16, n. 4, out. 2006, pp. 978-87.
12 Professor de medicina e psiquiatria e de ciências comportamentais na Escola de Medicina da
UCLA.
13 O’ROURKE, Meghan. “What’s Wrong with Me?”. e New Yorker, 19 ago. 2013.
14 MCDONALD, Paige Green et al. “A Biobehavioral Perspective of Tumor Biology”. Discovery
Medicine, vol. 5, n. 30, dez. 2005, pp. 520-6.
15 SMITHERS, David. “Cancer: An Attack on Cytologism”. e Lancet, vol. 279, n. 7228, 10 mar.
1962, pp. 493-9.

7. UMA TENSÃO TRAUMÁTICA: APEGO VERSUS AUTENTICIDADE

1 SONTAG, Susan. Illness as Metaphor and AIDS and Its Metaphors. Nova York: Picador, 2001, p. 55.
O ensaio foi publicado originalmente no periódico e New York Review of Books em 1978.
2 COTT, Jonathon. Susan Sontag: e Complete Rolling Stone Interview. New Haven: Yale University
Press, 2013. A entrevista original foi publicada em outubro de 1979.
3 ANGELL, Marcia. “Disease as a Re ection of the Psyche”. New England Journal of Medicine, vol.
312, 13 jun. 1985, pp. 1570-2.
4 FROM IRRITATED to Enraged: Anger’s Toxic Effect on the Heart. Harvard Heart Health, 6 dez.
2014. Disponível em: <https://www.health.harvard.edu/heart-health/from-irritated-to-enraged-
angers-toxic-effect-on-the-heart>.
5 TOFLER, Geoffrey H. et al. “Triggering of Acute Coronary Occlusion by Episodes of Anger”.
European Heart Journal: Acute Cardiovascular Care, fev. 2015. Disponível em:
<https://doi.org/10.1177/2048872615568969>.
6 KEEP Calm, Anger Can Trigger a Heart Attack!. ScienceDaily, 24 fev. 2015. Disponível em:
<https://www.sciencedaily.com/releases/2015/02/150224083819.htm>.
7 À época diretora do Programa de Medicina Comportamental da Faculdade de Medicina da
Universidade de Maryland.
8 Na verdade Temoshok estava descrevendo traços de personalidade, não uma “personalidade”
completa; mais é dito adiante sobre essa percepção equivocada de suas ideias.
9 Cito isso ipsis litteris a partir de um relato em primeira pessoa do diagnóstico de câncer de mama
recebido por uma mulher de Montreal e publicado no e Globe and Mail. Não tenho mais a data
do artigo, publicado em algum momento entre 2004 e 2007. Essa é exatamente a dinâmica
observada por Lydia Temoshok.
10 KNEIER, Andrew W. & TEMOSHOK, Lydia. “Repressive Coping Reactions in Patients with
Malignant Melanoma as Compared to Cardiovascular Disease Patients”. Journal of Psychosomatic
Research, vol. 28, n. 2, 1984, pp. 145-55. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/0022-
3999(84)90008-4>.
11 GROSS, James J. & LEVENSON, Robert W. “Emotional Suppression: Physiology, Self-Report, and
Expressive Behavior”. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 64, n. 6, jun. 1993, pp. 970-
86.
12 Eu assinava uma coluna sobre medicina no e Globe and Mail, e era colaborador frequente nas
páginas de editorial.
13 Os nomes verdadeiros foram citados na coluna; mudei-os aqui para uma proteção adicional da
privacidade. Tirando isso, o obituário é citado ipsis litteris.
14 TEMOSHOK, Lydia. Cartas ao editorial, e New York Times, 6 set. 1992.
15 Fevereiro de 2021.
16 SONTAG, Susan. Em: RIEFF, David (org.). As Consciousness Is Harnessed to Flesh: Journals and
Notebooks, 1964-1980. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2012, p. 313.

8. QUEM REALMENTE SOMOS? NATUREZA HUMANA, NECESSIDADES HUMANAS

1 KOHN, Al e. No Contest: e Case Against Competition, ed. rev. Boston: Houghton Mifflin, 1992,
p. 13.
2 SAHLINS, Marshall. e Western Illusion of Human Nature. Chicago: Prickly Paradigm Press,
2008; citado por NARVAEZ, Darcia. “Are We Losing It? Darwin’s Moral Sense and the Importance
of Early Experience”. Em: JOYCE, Richard (org.). e Routledge Handbook of Evolution and
Philosophy. Nova York: Routledge, 2017, p. 328.
3 FORBES, Jack D. Columbus and Other Cannibals: e Wétiko Disease of Exploitation, Imperialism,
and Terrorism. Nova York: Seven Stories Press, 1992, p. 49.
4 E, mais recentemente, autor de Comporte-se: A biologia humana em nosso melhor e pior.São Paulo:
Companhia das Letras, 2021.
5 ANSERMET, François & MAGISTRETTI, Pierre. Biology of Freedom: Neural Plasticity, Experience,
and the Unconscious. Nova York: Other Press, 2007, p. 8.
6 Hominídeos: todos os grandes primatas, que incluem os humanos e também os gorilas, bonobos e
chimpanzés; hominínios: espécies consideradas humanas ou antepassadas diretas dos humanos.
7 LIEDLOFF, Jean. e Continuum Concept: In Search of Happiness Lost, ed. rev. Boston: Da Capo
Press, 1975, p. 24, grifo do original.
8 “Todos os seres humanos provavelmente viviam em bandos como esses no mínimo até poucas
dezenas de milhares de anos atrás, e provavelmente muitos ainda o faziam até tão recentemente
quanto 11 mil anos atrás.” DIAMOND, Jared. O mundo até ontem: O que podemos aprender com as
sociedades tradicionais. Rio de Janeiro: Record, 2014.
9 WAAL, Frans. A era da empatia: Lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

9. UMA BASE ROBUSTA OU FRÁGIL: AS NECESSIDADES IRREDUTÍVEIS DAS CRIANÇAS

1 Comunicação pessoal. Khazanov é neuropsicóloga em São Francisco.


2 Cavoukian trabalhou com alguns dos maiores especialistas em desenvolvimento do mundo para
criar a Fundação Raffi para Honrar a Criança. O cialmente, a fundação talvez tenha sido a
primeira incursão de Raffi na área de mobilização social, mas não foi nem de longe a primeira vez
que ele olhou para o que as crianças necessitam e merecem, como ilustra sua famosa música de
1980 sobre a necessidade de amor numa família.
3 DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: Emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, grifo do original.
4 Homeostase refere-se aos processos por meio dos quais o corpo mantém a estabilidade e a
constância necessárias para todos os seus subsistemas funcionarem adequadamente, entre eles a
regulação da temperatura, os níveis de pH e muito mais.
5 LIEDLOFF, Jean. e Continuum Concept: In Search of Happiness Lost, ed. rev. Boston: Da Capo
Press, 1975, p. 37.
6 SHONKOFF, Jack P. et al. “An Integrated Scienti c Framework for Child Survival and Early
Childhood Development”. Pediatrics, vol. 129, n. 2, fev. 2012, pp. 1-13.
7 O inventivo psicólogo e pesquisador Allan Schore escreve: “A mãe está implicitamente moldando a
mente inconsciente do lho que, como observou Freud, se desenvolve antes da mente consciente”;
e “as funções adaptativas essenciais do lado direito do cérebro – interdependência, conexão social
e regulação da emoção – surgem a partir das primeiras experiências de apego”. SCHORE, Allan.
e Development of the Unconscious Mind. Nova York: W. W. Norton, 2019, p. 33, 57.
8 GREENSPAN, Stanley I. et al. “e Emotional Architecture of the Mind”. Em: CAVOUKIAN, Raffi
et al. Child Honouring: How to Turn is World Around. Homeland Press, 2006, p. 5.
9 Meus motivos para usar o adjetivo “supostas” serão abordados nos capítulos 17 e 18.
10 NEUFELD, Gordon. “e Keys to Well-Being in Children and Youth: e Signi cant Role of
Families”, discurso proferido no Parlamento Europeu, Bruxelas, 13 nov. 2012. Disponível em:
<https://neufeldinstitute.org/wp-content/uploads/2017/12/Neufeld_Brussels_address.pdf>.
11 SZALAVITZ, Maia & PERRY, Bruce D. Born for Love: Why Empathy Is Essential – and Endangered.
Nova York: William Morrow, 2011, p. 5.
12 MASELKO, J. et al. “Mother’s Affection at 8 Months Predicts Emotional Distress in Adulthood”.
Journal of Epidemiology and Community Health, vol. 65, n. 7, 2011, pp. 621-5.
13 O mundialmente renomado Panksepp distingue sete desses principais sistemas cerebrais
responsáveis por nossos padrões emocionais de base. Ele grafava o nome de cada um em letras
maiúsculas. Além do CUIDAR e do PÂNICO/LUTO, os outros são MEDO, RAIVA, BUSCAR,
DESEJAR e BRINCAR.
14 A formulação de Neufeld, por acaso, espelha exatamente as exigências básicas proporcionadas
pelas práticas de criação de lhos dos pequenos grupos de caçadores-coletores, segundo pesquisas
reunidas por Darcia Narvaez. Ver capítulo 12.
15 Capítulo 7.
16 PETERSON, Jordan. 12 Regras para a vida: Um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books,
2018.
17 ANKSEPP, Jaak & BIVEN, Lucy. e Archaeology of Mind: Neuroevolutionary Origins of Human
Emotions. Nova York: W. W. Norton, 2012, p. 386.

10. PROBLEMAS NO LIMIAR: ANTES DE VIRMOS AO MUNDO

1 VERNY, omas. Pre-Parenting. Nova York: Simon and Schuster, 2003, pp. 159-60.
2 No documentário Zeitgeist III: Moving Forward, de 2011, com direção de Peter Joseph.
3 No documentário In Utero, de 2016, dirigido por Kathleen Man Gyllenhaal.
4 TARKIAN, Laurie. “Tracking Stress and Depression Back to the Womb”. e New York Times, 4
dez. 2004.
5 LEBEL, Catherine et al. “Prepartum and Postpartum Maternal Depressive Symptoms Are Related
to Children’s Brain Structure in Preschool”. Biological Psychiatry, vol. 80, n. 11, 1o dez. 2016, pp.
859-68.
6 BUSS, Claudia et al. “High Pregnancy Anxiety During Mid-Gestation Is Associated With
Decreased Gray Matter Density in 6-9-Year-Old Children”. Psychoneuroimmunology, vol. 35, n. 1,
jan. 2010, pp. 141-53.
7 KINNEY, D. et al. “Prenatal Stress and Risk for Autism”. Neuroscience and Biobehavioral Reviews,
vol. 32, n. 8, out. 2008, pp. 1519-32.
8 ENTRINGER, Sonja et al. “Fetal Programming of Body Composition, Obesity, and Metabolic
Function: e Role of Intrauterine Stress and Stress Biology”. Journal of Nutrition and Metabolism,
vol. 2012, publicado na internet em 10 maio 2012. Disponível em:
<https://doi.org/10.1155/2012/632548>.
9 ENTRINGER, Sonja et al. “Prenatal Stress, Development, Health and Disease Risk: A
Psychobiological Perspective”. Psychoneuroendocrinology, vol. 62, dez. 2015, pp. 366-75.
10 ENTRINGER, Sonja et al. “Stress Exposure in Intrauterine Life Is Associated With Shorter
Telomere Length in Young Adulthood”. Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 108,
n. 33, 16 ago. 2011.
11 GOLDSTEIN, Jill M. “Impact of Prenatal Maternal Cytokine Exposure on Sex Differences in Brain
Circuitry Regulating Stress in Offspring 45 Years Later”. Proceedings of the National Academy of
Sciences, vol. 118, n. 15, 13 abr. 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1073/pnas.2014464118>.
12 ZIJLMAN, Maartie et al. “Maternal Prenatal Stress Is Associated With the Infant Intestinal
Microbiota”. Psychoneuroendocrinology, vol. 53, mar. 2015, pp. 233-45.
13 LIU, C. et al. “Prenatal Parental Depression and Preterm Birth: A National Cohort Study”. BJOG:
An International Journal of Obstetrics and Gynecology, vol. 123, n. 12, nov. 2016, pp. 1973-82.
Disponível em: <https://doi.org/10.1111/1471-0528.13891>.
14 FETAL Scans Con rm Maternal Stress Affects Babies’ Brains. MediBulletin Bureau, 27 mar. 2018.
Disponível em: <https://medibulletin.com/fetal-scans-con rm-maternal-stress-affects-babies-
brains/>.
15 PERERA, Frederica P. et al. “Prenatal Polycyclic Aromatic Hydrocarbon (PAH) Exposure and
Child Behavior at Age 6-7 Years”. Environmental Health Perspectives, vol. 120, n. 6, 1o jun. 2012,
pp. 921-6.
16 ALLEN, Jane E. “Prenatal Pollutants Linked to Later Behavioral Ills”. ABC News, 12 mar. 2012.
Disponível em: <https://abcnews.go.com/Health/w_ParentingResource/prenatal-pollutants-
linked-childhood-anxiety-adhd/story?id=15974554>
17 É claro que a poluição afeta praticamente todo mundo, por meio de substâncias químicas em
nossos alimentos e no entorno cotidiano cujos efeitos ainda não foram adequadamente
investigados, quando foram. As notícias das quais dispomos estão longe de ser tranquilizadoras,
uma vez que um grande número de substâncias químicas potencialmente prejudiciais foi
identi cado em amostras de sangue de cordões umbilicais tanto no Canadá quanto nos EUA,
assim como na Europa e na Ásia. Além disso, numa sociedade sã, não caberia a pesquisadores
sub nanciados provar que determinadas substâncias químicas são prejudiciais para fetos, crianças
e adolescentes: caberia a quem introduz essas substâncias em nosso ar, solo, cadeia alimentar e na
própria corrente sanguínea das gestantes mostrar que não.
18 Ver, por exemplo, SOMÉ, Malidoma Patrice. Ritual, Magic and Initiation in the Life of an African
Shaman. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1994, p. 20. Ver também o documentário What Babies
Want. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-3mtFRjEVWc>.

11. QUAL É A MINHA ESCOLHA? O PARTO NUMA CULTURA MEDICALIZADA

1 Comunicação pessoal do célebre obstetra francês autor de Childbirth and the Evolution of Homo
Sapiens (O parto e a evolução do Homo sapiens), entre outros títulos.
2 MCDONALD, Susan J. et al. “Effect of Timing of Umbilical Cord Clamping of Term Infants on
Maternal and Neonatal Outcomes”. Cochrane Database of Systemic Reviews, vol. 7, 11 jul. 2013.
Disponível em: <https://doi.org/10.1002/14651858.CD004074.pub3>.
3 FADIMAN, Anne. e Spirit Catches You and You Fall Down: A Hmong Child, Her American
Doctors, and the Collision of Two Cultures. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2012, p. 74.
4 Ver, por exemplo, KLEIN, Michael et al. “Relationship of Episiotomy to Perineal Trauma and
Morbidity, Sexual Dysfunction, and Pelvic Floor Relaxation”. American Journal of Obstetrics and
Gynecology, vol. 171, n. 3, out. 1994, pp. 591-8.
5 BOERMA, Ties et al. “Global Epidemiology of Use of and Disparities in Caesarean Sections”.
Lancet, vol. 392, n. 10.155, out. 2018, pp. 1341-8.
6 Ibidem.
7 OBSTETRIC CARE CONSENSUS. “Safe Prevention of the Primary Cesarean Delivery”. Obstetrics
and Gynecology, vol. 123, n. 3, mar. 2014, pp. 693-711.
8 Citado por SUAREZ, Suzanne Hope. “Midwifery Is Not the Practice of Medicine”. Yale Journal of
Law and Feminism, vol. 5, n. 2, 1992.
9 BUCKLEY, Sarah J. “Hormonal Physiology of Childbearing: Evidence and Implications for
Women, Babies, and Maternity Care”, Childbirth Connection Programs, National Partnership for
Women and Families, Washington, jan. 2015.
10 Além de um pânico em relação a processos e altas indenizações de seguro no litigioso sistema
americano.
11 STANGER-ROSS, Ilana. A Is for Advice: e Reassuring Kind. Nova York: William Morrow, 2019,
pp. 23-4.
12 BUCKLEY, Sarah J. “Hormonal Physiology of Childbearing”: Evidence and Implications for
Women, Babies, and Maternity Care”, Childbirth Connection Programs, National Partnership for
Women and Families, Washington, D.C., janeiro de 2015.
13 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. “Evidence Shows Signi cant Mistreatment of Women
During Childbirth”, release de imprensa, 9 out. 2019. Disponível em:
<https://www.who.int/news/item/09-10-2019-new-evidence-shows-signi cant-mistreatment-of-
women-during-childbirth>.
14 FEITH, Jesse. “Indigenous Woman Records Slurs by Hospital Staff Before Her Death”. Montreal
Gazette, 30 set. 2020. Disponível em: <https://montrealgazette.com/news/local-news/indigenous-
woman-who-died-at-joliette-hospital-had-recorded-staffs-racist-comments>.
15 LIEDLOFF, Jean. e Continuum Concept: In Search of Happiness Lost, ed. rev. Boston: Da Capo
Press, 1985 [1975], p. 58.
16 Essa enfermeira ansiosa e eu nos tornamos anos depois colegas muito chegados na sala de
trabalho de parto do Hospital da Mulher da Colúmbia Britânica.

12. UMA HORTA NA LUA: A CRIAÇÃO DOS FILHOS SABOTADA

1 OSTER, Emily. “e Data All Guilt-Ridden Parents Need”. e New York Times, 19 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.nytimes.com/2019/04/19/opinion/sunday/baby-breastfeeding-sleep-
training.html>. (Publicado como “Baby’s First Data” na edição impressa de 20 de abril.)
2 DEMAUSE, Lloyd (org.). e History of Childhood: e Untold Story of Child Abuse. Nova York:
Peter Bedrick Books, 1988, p. 53.
3 PETERSON, Jordan B. 12 regras para a vida: Um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books,
2018.
4 MONTAGU, Ashley. Touching: e Human Signi cance of Skin. Nova York: Harper and Row, 1986,
p. 296.
5 WINNICOTT, D. W. Da pediatria à psicanálise: Escritos reunidos. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
6 MONTAGU, Ashley. Touching, p. 42.
7 RICH, Adrienne. Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution. Nova York: W. W.
Norton, 1995, p. 31.
8 STRATHEARN, Lane et al. “What’s in a Smile? Maternal Brain Responses to Infant Facial Clues”.
Pediatrics, vol. 122, n. 1, jul. 2008, pp. 40-51.
9 KENNELL, John H. et al. “Maternal Behavior One Year Aer Early and Extended Post-Partum
Contact”. Developmental Medicine and Child Neurology, vol. 16, n. 2, abr. 1974, pp. 172-9.
10 NARVAEZ, Darcia. Neurobiology and the Development of Human Morality: Evolution, Culture, and
Wisdom. Nova York: W. W. Norton, 2014, pp. 29-30.
11 Eu me retraí quando ela mencionou a circuncisão, procedimento que eu próprio costumava
realizar e que, no contexto da América do Norte, não apresenta qualquer benefício para a saúde e
demonstrou-se causar sofrimento para a criança, sobretudo na forma medicalizada que fui
treinado para praticar.
12 LIEDLOFF, Jean. e Continuum Concept: In Search of Happiness Lost, ed. rev. Boston: Da Capo
Press, 1985 [1975], p. 97.
13 Como documentado, por exemplo, por Charles C. Mann em seu livro campeão de vendas 1491:
Novas revelações das Américas antes de Colombo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
14 SCHIFF, Stacy. As bruxas: Intriga, traição e histeria em Salem. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.
15PETERSON, Jordan R. 12 regras para a vida.
16SAGE, Robert D. & SIEGEL, Benjamin S. “Effective Discipline to Raise Healthy Children”.
Pediatrics, vol. 142, n. 6, dez. 2018.
17 AGGARWAL-SCHIFELLITE, Manisha. “How Spanking May Affect Brain Development in
Children”. Harvard Gazette, 12 abr. 2021. Disponível em:
<https://news.harvard.edu/gazette/story/2021/04/spanking-children-may-impair-their-brain-
development/>.
18 BREASTFEEDING: Achieving the New Normal. e Lancet, vol. 387, 30 jan. 2016, p. 404.
19 Só para esclarecer, o comentário de Feldman-Winter relativo aos antivacina foi antes da pandemia
de covid-19.
20 MCEWEN, Craig A. & MCEWEN, Bruce S. “Social Structure, Adversity, Toxic Stress, and
Intergenerational Poverty: An Early Childhood Model”. Annual Review of Sociology, vol. 43, n. 1,
ago. 2017, pp. 445-72.
21 SCHORE, Allan. Affect Regulation and the Origin of the Self: e Neurobiology of Emotional
Development. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1994, p. 378.
22 MILLER, Claire Cain. “e Relentlessness of Modern Parenting”. e New York Times, 25 dez.
2018, caderno A1.
23 OSTER, Emily. “Don’t Worry, Baby”. e New Yorker, 3 jun. 2019.
24 BRYANT, Miranda. “‘I Was Risking My Life’: Why One in Four US Women Return to Work Two
Weeks Aer Childbirth”. e Guardian, 27 jan. 2020.
25 Por exemplo, ratos desmamados apenas uma semana antes do período de nido pela natureza têm
mais probabilidade de se habituarem ao consumo de álcool quando adultos.
26 TURNBULL, Colin M. e Forest People. Londres: Chatto and Windus, 1961, p. 113.
27 NARVAEZ, Darcia. “Allomothers: Our Evolved Support Systems for Mothers”. Psychology Today,
12 maio 2019. Disponível em: <hhttps://www.psychologytoday.com/ca/blog/moral-
landscapes/201905/allomothers-our-evolved-support-system-mothers>.
28 NBC News, 15 maio 2020.
29 PUTNAM, Robert D. Bowling Alone: e Collapse and Revival of the American Community. Nova
York: Simon and Schuster, 2000, p. 27.
30 RICH, Adrienne. Of Woman Born, pp. 53-4.
31 Por volta do nal do seu mandato, “Ike” fez um famoso alerta sobre o “complexo militar-
industrial”.

13. FORÇAR O CÉREBRO NA DIREÇÃO ERRADA: A SABOTAGEM DA INFÂNCIA

1 Discurso do presidente sul-africano no lançamento do Fundo Nelson Mandela para Crianças,


Pretória, 8 de maio de 1995.
2 GARBARINO, James. Raising Children in a Socially Toxic Environment. São Francisco: Jossey-Bass,
1995, p. 2.
3 Ibidem, p. 5.
4 O fenômeno de orientação dos pares está documentado extensamente no livro de Gordon Neufeld,
do qual fui coautor, intitulado Hold on to Your Kids: Why Parents Need to Matter More an Peers
(Não larguem seus lhos: por que pais e mães devem ser mais importantes que os pares).
5 Pressupondo, naturalmente, que os próprios adultos sejam emocionalmente estáveis e estejam
disponíveis para prover segurança. Para crianças que sofrem abuso, por mais inadequado que seja,
o grupo de pares às vezes pode representar uma boia salva-vidas.
6 ANGIER, Natalie. “Ideas and Trends: e Sandbox; Bully for You – Why Push Comes to Shove”.
e New York Times, 20 maio 2001.
7 CLARK, D. “Frequency of Bullying in European Countries, 2018”. Statista, 7 out. 2021. Disponível
em: <https://www.statista.com/statistics/1092217/bullying-in-europe/>.
8 Citado em SINGHAM, Timothy. “Concurrent and Longitudinal Contribution of Exposure to
Bullying in Childhood Mental Health: e Role of Vulnerability and Resistance”. JAMA Psychiatry,
publicado na internet em 4 out. 2017. Disponível em:
<https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2017.2678>.
9 Gíria para designar a droga psicoativa MDMA.
10 WATSON, Bridgette. “ey Killed Him for Entertainment: Carson Crimeni’s Father Speaks Out
Against Bullying”. CBC News, 26 fev. 2020. Disponível em:
<https://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/darrel-crimeni-bullying-awareness-
1.5477247>.
11 NEUFELD, Gordon. “e Keys to Well-Being in Children and Youth: e Signi cant Role of
Families”, discurso principal proferido diante do Parlamento Europeu, Bruxelas, 13 nov. 2012.
12 BAKAN, Joel. Childhood Under Siege: How Big Business Targets Children. Nova York: Free Press,
2011, p. 6.
13 Embora esses sejam números dos Estados Unidos, devido à in uência pandêmica da cultura
americana o impacto é global.
14 BAKAN, Joel. “Kids and the Corporation”. Em: CAVOUKIAN, Raffi & OLFMAN, Sharna (org.).
Child Honouring: How to Turn is World Around. Salt Spring Island, BC: Homeland Press, 2006,
p. 190.
15 WELLS, Georgia et al. “Facebook Knows Instagram Is Toxic for Teen Girls, Company Documents
Show”. e Wall Street Journal, 14 set. 2021. Disponível em:
<https://www.wsj.com/articles/facebook-knows-instagram-is-toxic-for-teen-girls-company-
documents-show-11631620739>.
16 KANG, Shimi. Tecnologia na infância: Criando hábitos saudáveis para crianças em um mundo
digital. São Paulo: Melhoramentos, 2021, cap. 1.
17 HUTTON, John S. et al. “Associations Between Screen-Based Media Use and Brain White Matter
Integrity in Preschool-Aged Children”. JAMA Pediatrics, vol. 174, n. 1, 2020.
18 SWINGLE, Mari. i-Minds: How and Why Constant Connectivity Is Rewiring Our Brains and What
to Do About It. S.l.: New Society, 2019, p. 11, 185.
19 Sentimentos parecidos são evocados por executivos do Vale do Silício no documentário de sucesso
da Net ix, O dilema social, de 2020.
20 AKHTAR, Allana. “e World Health Organization Just Released Screentime Guidelines for Kids.
Here’s How Some of the World’s Most Successful CEOs Limit It at Home”. Business Insider, 25 abr.
2019. Disponível em: <https://www.businessinsider.com/how-silicon-valley-ceos-limit-screen-
time-at-home-2019-4>.
21 GARBARINO, James. Children and Families in the Social Environment. Nova York: Routledge,
1992, p. 11.
22 JACKSON, Jasper. “Children Spending More Time Online an Watching TV for the First Time”.
e Guardian, 26 jan. 2012. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/media/2016/jan/26/children-time-online-watching-tv>.
23 DOYLE, William. “Why Finland Has the Best Schools”. e Los Angeles Times, 18 mar. 2016.
Disponível em: <https://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-oe-0318-doyle- nnish-schools-
20160318-story.html>.
24 KOHN, Al e. No Contest: e Case Against Competition: Why We Lose in Our Race to Win.
Boston: Houghton Mifflin, 1992, p. 25.

14. UM TEMPLATE PARA A ANGÚSTIA: COMO A CULTURA FORMA NOSSO CARÁTER

1 MUKHERJEE, Siddhartha. “How Epigenetics Can Blur the Line Between Nature and Nurture”. e
New Yorker, 2 maio 2016.
2 KERR, Michael E. & BOWEN, Murray. Family Evaluation: An Approach Based on Bowen eory.
Nova York: W. W. Norton, 1988, p. 30.
3 Aclamada série da HBO da qual Dunham foi tanto criadora quanto protagonista.
4 MERTON, omas. A montanha dos sete patamares. Rio de Janeiro: Petra, 2014.
5 FROMM, Erich. e Sane Society. Nova York: Henry Holt, 1955, p. 79.
6 HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2014.
7 Citada em MCAFEE, Noelle. Julia Kristeva. Nova York: Routledge, 2004, p. 108.
8 MERTON, omas. A montanha dos sete patamares.
9 POSTMAN, Neil. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. Nova
York: Penguin Books, 2008, p. 128.
10 KLEIN, Ezra. “Noam Chomsky’s eory of the Good Life”. e Ezra Klein Show, 23 abr. 2021.
Disponível em: <https://www.nytimes.com/2021/04/23/opinion/ezra-klein-podcast-noam-
chomsky.html>.

15. NÃO SENDO VOCÊ: A DESMISTIFICAÇÃO DA DEPENDÊNCIA

1 OVERDOSE Death Rates. National Institute on Drug Abuse. Disponível em:


<https://www.drugabuse.gov/drug-topics/trends-statistics/overdose-death-rates>.
2 RABIN, Roni Caryn. “Overdose Deaths Reached Record High as the Pandemic Spread”. e New
York Times, 17 nov. 2021. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2021/11/17/health/drug-
overdoses-fentanyl-deaths.html>.
3 VOLKOW, Nora D. & LI, T. K. “Drug Addiction: e Neurobiology of Behavior Gone Awry”.
Neuroscience, vol. 5, dez. 2004, pp. 963-70.
4 ZHOU, F. et al. “Orbitofrontal Gray Matter De cits as Marker of Internet Gaming Disorder:
Converging Evidence From a Cross-Sectional and Prospective Longitudinal Design”. Addiction
Biology, vol. 24, n. 1, jan. 2019, pp. 100-9. Disponível em: <https://doi.org/10:1111/adb.12750>.
5 BURGER, Kyle S. & STICE, Eric. “Frequent Ice Cream Consumption Is Associated With Reduced
Striatal Response to Receipt of an Ice Cream-Based Milkshake”. American Journal of Clinical
Nutrition, vol. 94, n. 4, abr. 2012, pp. 810-7. Disponível em:
<https://doi.org/10.3945/ajcn.111.027003>.
6 A Sociedade Americana de Medicina da Dependência de ne “dependência” como “doença médica
crônica e tratável que envolve interações complexas entre circuitos cerebrais, genética, o entorno e
as experiências de vida do indivíduo. Pessoas dependentes usam substâncias ou praticam
comportamentos que se tornam compulsivos, e com frequência persistem apesar de
consequências prejudiciais” (2019).
7 DEFINITION of Addiction. Sociedade Americana de Medicina da Dependência. Disponível em:
<https://www.asam.org/quality-care/de nition-of-addiction>.
8 Segundo a Sociedade Americana de Medicina da Dependência e o relatório de 2016 do Ministério
da Saúde dos EUA sobre uso de substâncias químicas, até 50% da “doença” se deve a fatores
genéticos. Terei mais a dizer sobre as falhas dessa visão mais adiante neste capítulo.
9 A de nição baseada em doença da Sociedade Americana de Medicina da Dependência, citada
anteriormente, chega a apontar para as experiências de vida, mas sem explorá-las em detalhe;
precisamos ir mais além e ser mais especí cos.
10 s métis são pessoas de etnia mista indígena e europeia, principalmente no contexto do Oeste do
Canadá.
11 Das bandas Jane’s Addiction e Red Hot Chili Peppers.
12 Rivotril é um dos nomes comerciais do clonazepam, um tranquilizante da classe das
benzodiazepinas, à qual pertencem também substâncias químicas relacionadas como o Valium
(diazepam) e o Lorax (lorazepam).
13 RICHARDS, Keith por FOX, James. Vida. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2010.
14 HARRISON, P. A. et al. “Multiple Substance Use Among Adolescent Physical and Sexual Abuse
Victims”. Child Abuse and Neglect, vol. 21, n. 6, jun. 1997, pp. 529-39.
15 CARLINER, Hannah et al. “Childhood Trauma and Illicit Drug Use in Adolescence: A
Population-Based National Comorbidity Survey Replication”. Journal of the American Academy of
Child and Adolescent Psychiatry, vol. 55, n. 8, ago. 2016, pp. 701-8.

16. QUEM SE IDENTIFICAR LEVANTE A MÃO: UMA NOVA VISÃO DA DEPENDÊNCIA

1 Trecho de um artigo publicado no e New York Times por essa prolí ca jornalista e editora, ela
mesma ex-dependente. SZALAVITZ, Maia. “Can You Get Over an Addiction?”. e New York
Times, 25 jun. 2016.
2 É claro que essa investigação não precisa se dedicar exclusivamente a identi car as origens da
dependência: qualquer pessoa que manifeste alguns dos sinais de ferida do desenvolvimento
abordados neste livro, dos brandos aos severos, sejam eles mentais ou físicos, pode se bene ciar
de uma autoinvestigação compassiva das próprias histórias perturbadoras.
3 s marcas de uísque do Tennessee George Dickel, Jack Daniel’s e Jim Beam.
4 FELITTI, Vincent J. et al. “e Relationship of Adult Health Status to Childhood Abuse and
Household Dysfunction”. American Journal of Preventive Medicine, vol. 14, 1998, pp. 245-58.>
5 FELITTI, Vincent J. & ANDA, Robert. “e Lifelong Effects of Adverse Childhood Experiences”,
cap. 10. Em: Chadwick’s Child Maltreatment: Sexual Abuse and Psychological Maltreatment, vol. 2.
St. Louis, MO: STM Learning, 2014, p. 207.
6 BRODY, Gene H. et al., “Parenting Moderates a Genetic Vulnerability Factor in Longitudinal
Increases in Youths’ Substance Use”. Journal of Consulting and Clinical Psychology Association, vol.
77, n. 1, fev. 2009, pp. 1-11; entre outros estudos, como SOLINAS, Marcello et al. “Prevention and
Treatment of Drug Addiction by Environmental Enrichment”. Progress in Neurobiology, vol. 92, n.
4, dez. 2010, pp. 572-92.
7 Ou o que Jaak Panksepp identi cou como o aparato cerebral do BUSCAR.
8 Citei essa a rmação de Perry pela primeira vez no meu livro sobre dependência, In the Realm of
Hungry Ghosts.
9 DINES, Gail. Pornland: How Porn Has Hijacked Our Sexuality. Boston: Beacon Press, 2010, p. 57.
10 PANKSEPP, Jaak et al. “e Role of Brain Emotional Systems in Addictions: A Neuro-
Evolutionary Perspective and New ‘Self-Report’ Animal Model”. Addiction, vol. 97, n. 4, maio
2002, pp. 459-69.
11 COZOLINO, Louis. e Neuroscience of Human Relationships: Attachment and the Developing
Social Brain. Nova York: W. W. Norton, 2006, p. 115.

17. UM MAPA IMPRECISO DA NOSSA DOR: ONDE ERRAMOS EM RELAÇÃO À DOENÇA MENTAL

1 Historiadora da ciência na Universidade Harvard e autora de Mind Fixers: Psychiatry’s Troubled


Search for the Biology of Mental Illness (Reparadores da mente: a difícil busca da psiquiatria pela
biologia da doença mental). Entrevista à CBC Radio, out. 2019.
2 O documentário de sucesso do Net ix, Cracked Up, dirigido por Michelle Esrick, mostra o show de
horror da vida real que Hammond suportou quando menino. Korbi é um dos entrevistados do
lme.
3 JAMISON, Kay Red eld. Touched With Fire: Manic-Depressive Illness and the Artistic
Temperament. Nova York: Free Press, 1994, p. 193.
4 Os traços podem ser transmitidos de geração em geração sem a participação das sequências de
DNA; e nos gêmeos idênticos é impossível separar os efeitos genéticos dos efeitos do entorno, já
que gêmeos idênticos foram gestados no mesmo útero e a maioria criada na mesma família. Se
adotados por duas famílias distintas, eles ainda assim terão compartilhado o mesmo ambiente
intrauterino e o mesmo trauma de separação da mãe biológica. Não vou cansar o leitor com uma
extensa avaliação dos estudos sobre adoção, tema que abordei extensamente em dois de meus
livros anteriores, respectivamente sobre TDAH e dependência. Ver, em especial, In the Realm of
Hungry Ghosts: Close Encounters With Addiction, apêndice 1: “Adoption and Twin Study Fallacies”.
Para resumir, apesar de toda a atenção que lhes foi dedicada, os estudos sobre gêmeos e adoção
provam muito pouca coisa, se é que alguma. Para uma refutação exaustiva dos “achados” dos
estudos sobre gêmeos, ver e Trouble With Twin Studies, do psicólogo Jay Joseph.
5 Tratei integralmente essa questão dos estudos sobre gêmeos e adoção num apêndice ao meu livro
sobre dependência. Para resumir, argumento que esses casos ostensivamente imaculados de
“ambientes distintos, mesmos problemas de saúde” são tão cegos em relação aos fatores
ambientais contidos no seu modelo experimental – estresse materno durante a gestação e o
trauma da separação da mãe biológica, para citar dois exemplos óbvios – a ponto de serem
inválidos, seja qual for o transtorno mental ou físico em pauta. Um link para esse apêndice está no
site deste livro, https://drgabormate.com/book/the-myth-of-normal, para os curiosos ou quem
não estiver convencido. O leitor pro ssional pode consultar ainda o extenso trabalho do psicólogo
Jay Joseph. e Trouble With Twin Studies: A Reassessment of Twin Research in the Social and
Behavioral Sciences. Abingdon: Routledge, 2016.
6 “Como a mente perturbada foi percebida de acordo com as crenças religiosas, cientí cas e sociais
de culturas distintas, as formas de loucura de um local e momento da história com frequência
parecem notavelmente distintas das formas de loucura em outros”, observa Ethan Watters em seu
livro Crazy Like Us: e Globalization of the American Psyche. Nova York: Free Press, 2020, p. 5
7 Citado em WHITAKER, Robert. Anatomy of an Epidemic: Magic Bullets, Psychiatric Drugs, and the
Astonishing Rise of Mental Illness in America. Nova York: Broadway Books, 2010, p. 274.
8 ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. “Chair of DSM-5 Task Force Discusses Future
of Mental Health Research”, release, 3 maio 2013.
9 Como, por exemplo, pelo psicólogo Irvin Kirsch, recentemente diretor-associado do programa de
estudos com placebo e palestrante na Escola de Medicina de Harvard. “Hoje parece inquestionável
que a explicação tradicional da depressão como desequilíbrio químico no cérebro está
simplesmente equivocada”, escreveu Kirsch em seu próprio e extenso exame da literatura
cientí ca, e Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myrh, citado em ANGELL,
Marcia. “e Epidemic of Mental Illness: Why?”. e New York Review of Books, 23 jun. 2011.
(Angell é ex-editora do e New England Journal of Medicine.)
10 MORROW, Richard L. et al. “In uence of Relative Age on Diagnosis and Treatment of Attention-
De cit/ Hyperactivity Disorder in Children”. Canadian Medical Association Journal, vol. 184, n. 7,
17 abr. 2012, pp. 755-62.
11 OPPOSITIONAL De ant Disorder, Mayo Clinic. Disponível em:
<https://www.mayoclini.org/diseases-conditions/oppositional-de ant-disorder/symptoms-
causes/syc-20375831>.
12 Atualmente membro sênior da Academia de Trauma Infantil de Houston, Texas, professor-adjunto
de psiquiatria e ciências comportamentais na Feinberg School of Medicine de Chicago, e mais
recentemente coautor, com Oprah Winfrey, do sucesso de vendas O que aconteceu com você?.
13 KHOURY, J. E. Khoury et al. “Relations Among Maternal Withdrawal in Infancy, Borderline
Features, Suicidality/Self-Injury, and Adult Hippocampal Volume: A 30-Year Longitudinal Study”.
Behavioral Brain Research, vol. 374, 18 nov. 2019. Disponível em:
<https://doi.org/10.1016/j.bbr.2019.112139>.
14 READ, John et al. “Child Maltreatment and Psychosis: A Return to a Genuinely Integrated Bio-
Psycho-Social Model”. Clinical Schizophrenia and Related Psychoses, vol. 2, n. 3, out. 2008, pp. 235-
54.
15 BAILEY, omas et al. “Childhood Trauma Is Associated With Severity of Hallucinations and
Delusions in Psychotic Disorders: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Schizophrenia
Bulletin, vol. 44, n. 5, 2018, pp. 1.111-22.
16 BENTALL, Richard. “Mental Illness Is a Result of Misery, Yet Still We Stigmatize It”. e Guardian,
26 fev. 2016.
17 TEICHER, Martin H. & SAMSON, Jacqueline A. “Annual Research Review: Enduring
Neurobiological Effects of Childhood Abuse and Neglect”. Journal of Child Psychology and
Psychiatry, vol. 57, n. 3, mar. 2016, pp. 241-66.
18 LEWONTIN, R. C. Biology as Destiny: e Doctrine of DNA. Nova York: Harper Perennial, 1991,
p. 30.
19 BOYCE, W. omas. A criança orquídea: Por que algumas crianças têm di culdade e o que fazer
para que todas oresçam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020.
20 FOX, E. & BEEVERS, C. B. “Differential Sensitivity to the Environment: Contribution of Cognitive
Biases and Genes to Psychological Wellbeing”. Molecular Psychiatry, vol. 21, n. 12, 2016, pp. 1.657-
62.
21 Referências completas: doutora, membro da Academia Canadense de Ciências da Saúde e da
Canadian Global Care Society; professora e titular da cátedra de pesquisa nos departamentos de
psiquiatria e genética médica da Universidade da Colúmbia Britânica; diretora-executiva do
Instituto de Pesquisa dos Serviços de Saúde Mental e Uso de Substâncias da UCB.
22 MENAND, Louis. “Acid Re ux: e Life and High Times of Timothy Leary”. e New Yorker, 26
jun. 2006.

18. A MENTE É CAPAZ DE COISAS INCRÍVEIS: DA LOUCURA AO SIGNIFICADO

1 ALMAAS, A. H. e Freedom to Be. Berkeley, CA: Diamond Books, 1989, p. 85.


2 Por outro lado, lembre que nascemos com circuitos de RAIVA e LUTO evolutivamente
programados no cérebro.
3 WATT, Douglas F. & PANKSEPP, Jaak. “Depression: An Evolutionarily Conserved Mechanism to
Terminate Separation Distress? A Review of Aminergic, Peptidergic, and Neural Network
Perspectives”. Neuropsychoanalysis, vol. 11, n. 1, 1o jan. 2009, pp. 7-51.
4 HUNTER, Noël. Trauma and Madness in Mental Health Services. Nova York: Palgrave Macmillan,
2018, p. 5.
5 O psicólogo e cientista de pesquisa Stephen Porges sugere o conceito de neurocepção, a avaliação
inconsciente de segurança feita pelo cérebro. “Esse processo automático”, escreve ele, “envolve
áreas do cérebro que avaliam sinais de segurança, perigo e ameaça à vida.” “A percepção de
segurança”, sugere ele, “é o ponto de virada no desenvolvimento dos relacionamentos para a
maioria dos mamíferos.” Isso se aplica particularmente a nós, seres humanos, com nosso longo
período formativo de dependência impotente. PORGES, Stephen W. e Pocket Guide to the
Polyvagal eory: e Transformative Power of Feeling Safe. Nova York: W. W. Norton, 2017, p. 19;
e id. e Polyvagal eory: Neurophysiological Foundations of Emotions, Attachment,
Communication, Self-Regulation. Nova York: W. W. Norton, 2011, ver em especial o capítulo 1.
6 KNOTT, Helen. In My Own Moccasins: A Memoir of Resilience. Saskatchewan, Canada: University
of Regina Press, 2019, p. 96.
7 Essa citação de Robin Williams foi mencionada como tendo sido extraída de uma entrevista em
vídeo à qual não tive acesso. Mas ele revela muito sobre a solidão na infância e seus tormentos
internos com palavras quase semelhantes em uma entrevista para James Lipton no YouTube.
Disponível em: <https://www.dailymotion.com/video/x64ojf8>.
8 Um adendo cientí co à história de Williams é que as pessoas hoje vincularam a ocorrência da
doença de Parkinson – um parente próximo da demência por corpos de Lewy – à depressão e ao
estresse crônicos. Ver nota 9 deste capítulo.
9 Num estudo sueco com milhares de pessoas, o risco de desenvolver doença de Parkinson era quase
três vezes maior em pessoas que tinham tido depressão, e maior ainda naquelas com depressão
grave. GUSTAFSSON, Helena et al. “Depression and Subsequent Risk of Parkinson Disease”.
Neurology, vol. 84, n. 24, 16 jun. 2015, pp. 2.422-9. Outro estudo concluiu que o estresse
emocional crônico também aumenta o risco da doença, possivelmente por dani car as células de
dopamina em determinadas partes do cérebro: DJAMSHIDIAN, Atbin & LEES, Andrew. “Can
Stress Trigger Parkinson’s Disease?”. Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry, vol. 85, n.
8, ago. 2014, pp. 879-82.
10 SCHIZOPHRENIA WORKING GROUP. “Biological Insights From 108 Schizophrenia-Associated
Genetic Loci”. Nature, vol. 511, 2014, pp. 421-7.
11 “A dissociação”, escreve o psiquiatra Mark Epstein, “oferece uma proteção imediata contra os
traumas da vida.” EPSTEIN, Mark. e Trauma of Everyday Life. Nova York: Penguin, 2014, p. 84.
12 KNOTT, Helen. In My Own Moccasins, p. 24.
13 FLEURY, eo. Playing With Fire. Nova York: HarperCollins, 2010, p. 25.
14 Conhecido também como DDA, para assinalar que a hiperatividade pode nem sempre estar
presente. Na prática, e de modo um tanto confuso, as duas siglas são com frequência usadas de
forma intercambiável.
15 Um estudo recente mostrou que o uso prolongado de medicamentos antipsicóticos em adultos
tem como resultado um espessamento do córtex cerebral, o aparato executivo do cérebro. “O
córtex pré-frontal não recebe os estímulos de que precisa, e está sendo desativado pelos remédios”,
disse um importante pesquisador ao e New York Times. “Isso reduz os sintomas psicóticos. E faz
também o córtex pré-frontal ir se atro ando aos poucos.” VOINESKOS, Aristotle N. et al. “Effects
of Antipsychotic Medication on Brain Structure in Patients With Major Depressive Disorder and
Psychotic Features: Neuroimaging Findings in the Context of a Randomized Placebo-Controlled
Clinical Trial”. JAMA Psychiatry, vol. 77, n. 7, 1o jul. 2020, pp. 674-83.
16 BARKLEY, Russell A. TDAH: guia completo para pais, professores e pro ssionais da saúde. Porto
Alegre: Penso, 2002.
17 PANKSEPP, Jaak. “Can PLAY Diminish ADHD and Facilitate the Construction of the Social
Brain?”. Journal of the Canadian Academy of Child and Adolescent Psychiatry, vol. 16, n. 2, maio
2007, pp. 57-66.
18 Por exemplo, LENGUA, Liliana J. et al. “Pathways From Early Adversity to Later Adjustment: Tests
of the Additive and Bidirectional Effects of Executive Control and Diurnal Cortisol in Early
Childhood”. Development and Psychopathology, 2019. Disponível em:
<https://doi.org/10.1017/S0954579419000373>; também PRUESSNER, Jens C. et al. “Dopamine
Release in Response to a Psychological Stress in Humans and Its Relationship to Early Maternal
Care: A Positron Emission Tomography Study Using [11C] Raclopride”. Journal of Neuroscience,
vol. 24, n. 11, 17 mar. 2004, pp. 2.825-31.
19 PERRY, Bruce D. & SZALAVITZ, Maia. O menino criado como cão: o que as crianças
traumatizadas podem nos ensinar sobre perda, amor e cura. São Paulo: nVersos, 2020.
20 PO estudo, conduzido por Nicole M. Brown e colegas, analisou dados da Pesquisa Nacional sobre
Saúde Infantil de 2011, e foi apresentado em 6 de maio de 2014 na reunião anual das Sociedades
Acadêmicas de Pediatria em Vancouver, na Colúmbia Britânica. Ele foi objeto de matéria no
ScienceDaily em 6 de maio de 2014: “Study Finds ADHD and Trauma Oen Go Hand in Hand.”
21 Embora eu não seja categoricamente contrário ao uso de medicações em casos de TDAH, reprovo
o recurso automático, generalizado, prolongado e quase exclusivo a eles. Para saber mais, ver meu
livro Scattered Minds: e Origins and Healing of Attention Defficit Disorder (Mentes dispersas:
origens e cura do transtorno do dé cit de atenção).
22 COREN, Stanley. “Can Dogs Suffer From ADHD?”. Psychology Today, 9 jan. 2018. Disponível em:
<https://www.psychologytoday.com/us/blog/canine-corner/201801/can-dogs-suffer-adhd>.
23 OWLBY, John. Apego: A natureza do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
24 ETAIN, Bruno et al. “Childhood Trauma Is Associated With Severe Clinical Characteristics of
Bipolar Disorders”. Journal of Clinical Psychiatry, vol. 74, n. 10, out. 2013, pp. 991-8. O estudo não
infere, e eu tampouco, que adversidade na infância “causa” transtorno bipolar. Mas ela é um fator
que contribui, em especial para a severidade do transtorno.

19. DA SOCIEDADE PARA A CÉLULA: INCERTEZA, CONFLITO E PERDA DE CONTROLE

1 SELYE, János. e Stress of Life, ed. rev. Nova York: McGraw-Hill, 1978, p. 370.
2 Capítulos 2 e 3.
3 HARVANEK, Zachary M. et al. “Psychological and Biological Resilience Modulates the Effects of
Stress on Epigenetic Aging”. Translational Psychiatry, vol. 11, 2021. Disponível em:
<https://doi.org/10.1038/s41398-021-01735-7>.
4 DE KLOET, E. R. “Corticosteroids, Stress, and Aging”. Annals of the New York Academy of Sciences,
vol. 663, 1992, pp. 357-71.
5 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 2020.
6 Entrevista para a BBC, “Blair Calls for Lifestyle Change”, 2006, citada em SCHRECKER, Ted &
BAMBRA, Clare. How PoliticsMakes Us Sick: Neoliberal Epidemics. Nova York: Palgrave
Macmillan, 2015, p. 29.
7 INMAN, Phillip. “IMF Boss Says Global Economy Risks Return of Great Depression”. e
Guardian, 17 jan. 2020.
8 LAO, David. “Almost 9 out of 10 Canadians Feel Food Prices Are Rising Faster an Income:
Survey”. Global News, 16 dez. 2019.
9 VANCITY, “Report: B.C. Women Are Financially Stressed, Stretched and Under-Resourced”,
release, 17 mar. 2018, baseado no estudo feito na província “Money Troubled: Inside B.C.’s
Financial Health Gender Gap”.
10 Embora o termo “neoliberalismo” seja hoje empregado sobretudo pelos críticos da erosão dos
programas sociais, do poder crescente das corporações, de sua ideologia do laissez-faire e de sua
in uência sobre os governos no capitalismo avançado, ele foi cunhado nos anos 1930 por
destacados defensores dessas políticas. Meu uso desse termo não é por si só nem crítico, nem
elogioso: ele remete a uma realidade objetiva cujos impactos sobre a saúde estamos investigando.
11 SCHRECKER, Ted & BAMBRA, Clare. How Politics Makes Us Sick, p. 42.
12 SAUL, John Ralston. “e Collapse of Globalism”. Harper’s, mar. 2004.
13 FARESJÖ, Ashild et al. “Higher Perceived Stress But Lower Cortisol Levels Found Among Young
Greek Adults Living in a Stressful Social Environment in Comparison With Swedish Young
Adults”. PLoS ONE, vol. 8, n. 9, 16 dez. 2013. Disponível em:
<https://doi.org/10.1371/journal.pone.0073828>.
14 Para deixar bem claro: tanto níveis de cortisol cronicamente aumentados quanto reduzidos
assinalam um esforço excessivo do aparato de estresse do corpo; o primeiro revela sua ativação
excessiva, o segundo seu enfraquecimento.
15 LUPIEN, Sonia J. et al. “Child’s Stress Hormone Levels Correlate With Mother’s Socioeconomic
Status and Depressive State”. Biological Psychiatry, vol. 48, n. 10, 15 nov. 2000, pp. 976-80.
16 BERNARD, Tara Siegel & RUSSELL, Karl. “e Middle-Class Crunch: A Look at 4 Family
Budgets”. e New York Times, 3 out. 2019.
17 DAVIS, Wade. “e Unravelling of America”. Rolling Stone, 6 ago. 2020. Disponível em:
<https://www.rollingstone.com/politics/political-commentary/covid-19-end-of-american-era-
wade-davis-1038206/>.
18 BERMAN, Morris. e Twilight of American Culture. Nova York: W. W. Norton, 2001, pp. 64-5.
19 BERNARD, Tara Siegel & RUSSELL, Karl. “e Middle-Class Crunch”.
20 GALLO, William T. et al. “Involuntary Job Loss as a Risk Factor for Subsequent Myocardial
Infarction and Stroke: Findings From the Health and Retirement Survey”. American Journal of
Industrial Medicine, vol. 45, n. 5, maio 2004, pp. 408-16; e GALLO, William T. et al. “e Impact
of Late Career Job Loss on Myocardial Infarction and Stroke: A 10 Year Follow Up Using the
Health and Retirement Survey”. Journal of Occupational and Environmental Medicine, vol. 63, n.
10, out. 2006, pp. 683-7.
21 DUPRE, Matthew E. et al. “e Cumulative Effect of Unemployment on Risks for Acute
Myocardial Infarction”. Archives of Internal Medicine, vol. 172, n. 22, dez. 2012, pp. 1.731-7.
22 UCHITELLE, Louis. “Job Insecurity of Workers Is a Big Factor in Fed Policy”. e New York Times,
27 fev. 1997.
23 SCHRECKER, Ted & BAMBRA, Clare. How Politics Makes Us Sick, p. 53.
24 STEIN, Ben. “In Class Warfare, Guess Which Class Is Winning”. e New York Times, 26 nov.
2006. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2006/11/26/business/yourmoney/26every.html>.
25 MARCHESE, David. “Ben and Jerry’s Radical Ice Cream Dreams”. e New York Times, 29 jul.
2020.
26 STIGLITZ, Joseph E. e Price of Inequality: How Today’s Divided Society Endangers Our Future.
Nova York: W. W. Norton, 2013, pp. xlviii–xlix.
27 NEATE, Rupert. “Billionaires’ Wealth Rises to $10.2 Trillion Amid Covid Crisis”. e Guardian, 7
out. 2020.
28 Conselho editorial do Star, “Billionaires Get Richer While Millions Struggle. ere’s a Lot Wrong
With is Picture”, e Toronto Star, 21 set. 2020.
29 xtensamente divulgada, por exemplo, no e New York Times, na e New Yorker e em muitas
outras publicações, sem falar na literatura acadêmica.
30 GILENS, Martin & PAGE, Benjamin I. “Testing eories of American Politics: Elites, Interest
Groups, and Average Citizens”, Perspectives on Politics, vol. 12, n. 3, set. 2014, pp. 564-81.
31 KRUGMAN, Paul. “Why Do the Rich Have So Much Power?”, e New York Times, 8 jul. 2020.
32 Um amigo escocês opinou que, ao publicar isso, o e New York Times estava fazendo um elogio
ao presidente americano.
33 REID, James. Alienation. University of Glasgow Publications, 1972, p. 5.

20. O ESPÍRITO HUMANO ROUBADO: A DESCONEXÃO E SEUS DESCONTENTES

1 BROOKS, David. “Our Pathetic Herd Immunity Failure”. e New York Times, 6 maio 2021.
2 MARX, Karl. Economic and Philosophical Manuscripts. Em: FROMM, Erich. Marx’s Concept of
Man. Londres: Continuum, 2004, p. 83.
3 ALEXANDER, Bruce. e Globalization of Addiction: A Study in Poverty of the Spirit. Nova York:
Oxford University Press, 2008, p. 58.
4 Alexander reconhece o economista húngaro-americano Karl Polanyi como o primeiro a ter usado
o conceito de deslocamento social, em sua obra A grande transformação, de 1944.
5 Como no muito elogiado livro de 2020 da dupla, Deaths of Despair and the Future of Capitalism
(Mortes por desespero e o futuro do capitalismo).
6 SCHWARTZ, Tony & PORATH, Christine. “Why You Hate Work”. e New York Times, 1o jun.
2014.
7 DUHIGG, Charles. “Wealthy, Successful, and Miserable”. e New York Times, 21 fev. 2019.
Disponível em: <https://www.nytimes.com/interactive/2019/02/21/magazine/elite-professionals-
jobs-happiness.html>.
8 AFTAB, Awais. “Meaning in Life and Its Relationship With Physical, Mental, and Cognitive
Functioning: A Study of 1,042 Community-Dwelling Adults Across the Lifespan”. Journal of
Clinical Psychiatry, vol. 81, n. 1, 2020.
9 CACIOPPO, John T. & CACIOPPO, Stephanie. “e Growing Problem of Loneliness”, e Lancet,
vol. 391, n. 100.119, 3 fev. 2018, pp. 426-7.
10 ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSICOLOGIA. “Social Isolation, Loneliness, Could Be Greater
reat to Public Health an Obesity”. ScienceDaily, 5 ago. 2015. Disponível em:
<https://doi.org/10.1371/journal.pone.0093839www.sciencedaily.com/releases/2017/08/17080516
5319.htm>.
11 AYDINONAT, Denise et al. “Social Isolation Shortens Telomeres in African Gray Parrots”. PLoS
ONE, vol. 9, n. 4, 2014. Disponível em: <https://doi.org/10.1371/journal.pone.0093839>.
12 VALTORTA, Nicole K. et al. “Loneliness and Social Isolation as Risk Factors for Coronary Heart
Disease and Stroke: Systematic Review and Meta-Analysis of Longitudinal Observational Studies”.
Heart, vol. 102, n. 13, 2016. Disponível em: <https://heart.bmj.com/content/102/13/1009>.
13 Por ironia, essa matéria anterior à covid-19 tinha na versão on-line o seguinte título: “Como o
isolamento social está nos matando.”
14 KULLUR, Dhruv. “Loneliness Is a Health Hazard, But ere Are Remedies”. e New York Times,
22 dez. 2016.
15 MURTHY, Vivek H. O poder curativo das relações humanas. Rio de Janeiro: Sextante, 2022.
16 KASSER, Tim et al. “Some Costs of American Corporate Capitalism: A Psychological Exploration
of Value and Goal Con icts”. Psychological Inquiry, vol. 18, n. 1, mar. 2007, pp. 1-22.

21. ELES NÃO ESTÃO NEM AÍ SE VOCÊ MORRER: A SOCIOPATIA COMO ESTRATÉGIA

1 Professor emérito da Universidade da Colúmbia Britânica e especialista mundialmente


reconhecido em psicopatia.
2 Como documenta Lustig em seu livro e Hacking of the American Mind: e Science Behind the
Corporate Takeover of Our Bodies and Brains (A invasão da mente americana: a ciência por trás da
tomada corporativa de nossos corpos e cérebros).
3 Série de TV a cabo aclamada pela crítica sobre a indústria publicitária em meados do século XX.
4 Ou, conforme o caso, outras substâncias viciantes como cafeína: por exemplo na bebida
dopamino-estimulante Red Bull, cuja propaganda, se fosse honesta, poria uma advertência no
rótulo identi cando-a como “bebida energética não renovável”.
5 BRAND, Russell. “Edward Snowden: e Worst Conspiracies Are in Plain Sight”, vídeo no
YouTube, 16 abr. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=e0zAJP3gg&t=23s>.
6 A personalidade social foi tema do capítulo 14.
7 LENNERZ, Belinda S. et al. “Effects of Dietary Glycemic Index on Brain Regions Related to
Reward and Craving in Men”. American Journal of Clinical Nutrition, vol. 98, n. 3, set. 2013, pp.
641-7.
8 AFSHIN, Ashkan et al. “Health Effects of Dietary Risks in 195 Countries, 1990-2017: A Systemic
Analysis for the Global Burden of Disease Study 2017”, e Lancet, vol. 393, n. 10.184, 11 maio
2019, pp. 1.958-2.017.
9 ASSOCIAÇÃO AMERICANA DO CORAÇÃO. “180,000 Deaths Worldwide May Be Associated
With Sugary So Drinks, Research Suggests”. ScienceDaily, 19 mar. 2013. Disponível em:
<https://www.sciencedaily.com/releases/2013/03/130319202144.htm>.
10 MEXICO Obesity: Oaxaca Bans Sales of Junk Food to Children. BBC News, 6 ago. 2020.
Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-latin-america-53678747>.
11 MEXICO Takes Title of “Most Obese” From America. Global Post, 28 jul. 2013. Disponível em:
<https://www.cbsnews.com/news/mexico-takes-title-of-most-obese-from-america>.
12 Numa tentativa desesperada e decerto ine caz de reduzir as altas taxas de obesidade e diabetes, o
estado mexicano de Oaxaca proibiu a venda de junk food e refrigerantes para crianças.
13 GREENHALGH, Susan. “Making China Safe for Coke: How Coca-Cola Shaped Obesity Science
and Policy in China”. British Medical Journal, vol. 364, 9 jan. 2019. Disponível em:
<https://doi.org/10.1136/bmj.k5050>.
14 STATISTICS on Obesity, Physical Activity, Diet, England, 2020. National Health Service, 5 maio
2020. Disponível em: <https://digital.nhs.uk/data-and-
information/publications/statistical/statistics-on-obesity-physical-activity-and-diet/england-
2020>.
15 SCHRECKER, Ted & BAMBRA, Clare. How Politics Makes Us Sick: Neoliberal Epidemics. Nova
York: Palgrave Macmillan, 2015, p. 32.
16 KRISTOF, Nicholas. “Drug Dealers in Lab Coats”. e New York Times, 18 out. 2017.
17 Esse acordo foi desde então derrubado em recurso, e no momento em que este livro está indo para
o prelo a saga continua. Mais sobre os Sackler no capítulo 33.
18 Em 2014, no 50o aniversário do seminal relatório do Ministério da Saúde dos EUA que expôs os
efeitos nocivos do tabaco manufaturado, o mesmo órgão emitiu uma atualização. “A epidemia de
tabaco foi iniciada e sustentada pelas estratégias agressivas da indústria do tabaco, que
deliberadamente enganou o público em relação aos riscos de fumar.”
19 SMOKING and Tobacco Use: Fast Facts. Centers for Disease Control and Prevention. Disponível
em: <https://www.cdc.gov/tobacco/data_statistics/fact_sheets/fast_facts/index.htm>.
20 KAPLAN, Sheila. “Biden Plans to Ban Cigarettes With Menthol”. e New York Times, 29 abr.
2021.
21 Ver capítulo 13.
22 Reisner é apresentador de Madness: e Podcast, um olhar fascinante sobre “onde a psicologia e o
capitalismo se esbarram”.
23 FRIEDMAN, Milton. “Your Greed or eir Greed?”. Phil Donahue Show, YouTube, publicado em
14 jul. 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RWsx1X8PV_A>.
24 Id. “e Social Responsibility of Business Is to Increase Its Pro ts”. e New York Times, 13 set.
1970.
25 WULF, Andrea. A invenção da natureza: A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. São
Paulo: Crítica, 2019.
26 RIPPLE, William J. et al. “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency”. BioScience, vol. 70,
n. 1, jan. 2020, pp. 8-12.
27 WATTS, Nick et al. “e 2018 Report of e Lancet Countdown on Health and Climate Change:
Shaping the Health of Nations for Centuries to Come”. e Lancet, vol. 392, n. 10.163, 8 dez. 2018,
pp. 2.479-514.
28 MORE an 200 Health Journals Call for Urgent Action on Climate Crisis. e Guardian, 6 set.
2021; e HOLTZ, Robert Lee. “Action on Climate Change Is Urged by Medical Journals in
Unprecedented Plea”. e Wall Street Journal, 6 set. 2021.

22. A NOÇÃO DE SI SOB ATAQUE: COMO RAÇA E CLASSE SE ENTRANHAM NA PELE

1 X, Malcolm, contado a Alex Haley, e Autobiography of Malcolm X. Nova York: Ballantine Books,
2015 [1964], p. 56.
2 Até sua morte prematura, aos 59 anos, Hertzman era professor do Departamento de Saúde e
Epidemiologia da Universidade da Colúmbia Britânica e ocupava a cátedra de pesquisa na área de
saúde populacional e desenvolvimento humano. Era internacionalmente reconhecido por suas
explorações sobre os fatores sociais determinantes na saúde.
3 Vimalasara se identi ca com o pronome neutro. Os termos raciais pejorativos são citados com a
sua expressa autorização.
4 SARTRE, Jean-Paul. Anti-Semite and Jew: An Exploration of the Etiology of Hate. Nova York:
Schocken Books, 1995 [1948], pp. 53-4.
5 Kenneth V. Hardy é presidente da Academia Eikenberg para a Justiça Social e professor de terapia
de casal e de família na Universidade Drexel na Filadél a.
6 KEN Hardy on the Assaulted Sense of Self. Psychotherapy Networker, vídeo no YouTube, 2016.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=i26A5oecUWM>.
7 KNOTT, Helen. In My Own Moccasins: A Memoir of Resilience. Saskatchewan, Canadá: University
of Regina Press, 2019, pp. 200-1.
8 CHAE, David H. et al. “Racial Discrimination and Telomere Shortening Among African-
Americans: e Coronary Artery Risk Development in Young Adults (CARDIA) Study”. Health
Psychology, vol. 39, n. 3, mar. 2020, pp. 209-19.
9 COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
10 HERTZMAN, Clyde & BOYCE, Tom. “How Experience Gets Under the Skin to Create Gradients
in Developmental Health”. Annual Review of Public Health, vol. 31, n. 1, abr. 2010, pp. 329-47.
11 LACKLAND, David T. “Racial Differences in Hypertension: Implications for High Blood Pressure
Management”. American Journal of the Medical Sciences, vol. 348, n. 2, ago. 2014, pp. 135-8.
12 AMERICAN ACADEMY OF ALLERGY, ASTHMA, AND IMMUNOLOGY. “Black Children Six
Times More Likely to Die of Asthma”, release, 4 mar. 2017. Disponível em:
<https://www.aaaai.org/about-aaaai/newsroom/news-releases/black-children-asthma>.
13 A citação de Baldwin é de uma mesa-redonda moderada por Nat Hentoff e transmitida em 1961
na estação de rádio WBAI-FM, subsequentemente publicada com o título “e Negro in
American Culture”, em CrossCurrents, vol. 11, n. 3, verão de 1961, pp. 205-24.
14 ROEDER, Amy. “America Is Failing Its Black Mothers”. Escola de Saúde Pública T. H. Chan, de
Harvard, inverno de 2019. Disponível em:
<https://www.hsph.harvard.edu/magazine/magazine_article/america-is-failing-its-black-
mothers>.
15 GREENWOOD, Brad N. et al. “Physician-Patient Racial Concordance and Disparities in Birthing
Mortality for Newborns”. Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 117, n. 35, 1o set.
2020, pp. 21.194-200. Disponível em: <https://doi.org/10.1073/pnas.1913405117>.
16 NOVA, Cristina & TAYLOR, Jamila. “Exploring African Americans’ High Maternal and Infant
Death Rates”. Center for American Progress, 1o fev. 2018. Disponível em:
<https://www.americanprogress.org/issues/early-
childhood/reports/2018/02/01/445576/exploring-african-americans-high-maternal-infant-death-
rates>.
17 GERONIMUS, Arline et al. “‘Weathering’ and Age Patterns of Allostatic Load Scores Among
Blacks and Whites in the United States”. American Journal of Public Health, vol. 96, n. 5, maio
2006, pp. 826-33.
18 Entre as detentas mulheres, a proporção é de 50%.
19 Na realidade, o fenômeno perdurou no mínimo até a década de 1980.
20 LIFESPAN of Indigenous People 15 Years Shorter an at of Other Canadians, Federal
Documents Say”. Canadian Press, 23 jan. 2018. Disponível em:
<https://www.cbc.ca/news/health/indigenous-people-live-15-years-less-philpott-brie ng-
1.4500307>.
21 DYCK, Roland et al. “Epidemiology of Diabetes Mellitus Among First Nations and Non-First
Nations Adults”. Canadian Medical Association Journal, vol. 182, n. 3, 23 fev. 2010, pp. 249-56.
22 KIRMAYER, L. “Suicide Among Canadian Aboriginal People”. Transcultural Psychiatric Research
Review, vol. 31, 1994, pp. 3-57.
23 A província da Colúmbia Britânica, por sua vez, com uma população de 5 milhões de pessoas, teve
170 mortes por overdose em julho de 2020, a mais alta taxa já registrada. Proporcionalmente à
tragédia na reserva de Blood Tribe, a Colúmbia Britânica teria perdido mais de 4 mil pessoas em
um mês.
24 RCMP: sigla em inglês para Polícia Montada Real Canadense, a venerada organização policial
cujas tarefas, desde a sua criação até hoje, incluíram reprimir a resistência dos povos originários
ao con sco de suas terras e recursos e, durante a era dos colégios internos, até de seus lhos.
25 Sir Michael Marmot é professor de epidemiologia e saúde pública no University College, em
Londres, e foi presidente da Associação Mundial de Medicina em 2015.
26 MARMOT, Michael. e Health Gap: e Challenge of an Unequal World. Nova York: Bloomsbury,
2015, p. 12.
27 LUPIEN, Sonia J. et al. “Child’s Stress Hormone Levels Correlate With Mother’s Socioeconomic
Status and Depressive State”. Biological Psychiatry, vol. 48, n. 10, 15 nov. 2000, pp. 976-80.
28 Em: RAPHAEL, Dennis (org.). Social Determinants of Health: Canadian Perspectives. S. l.:
Canadian Scholars Press, 2016, p. xiii.
29 SOTH, Alex. “e Great Divide”. e New York Times, 5 set. 2020. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/interactive/2020/09/05/opinion/inequality-life-expectancy.html>.
30 LEMSTRA, M. et al. “Health Disparity by Neighborhood Income”. Canadian Journal of Public
Health, vol. 97, n. 6, nov. 2006, pp. 435-9.
31 Por exemplo, LUBY, Joan et al. “e Effects of Poverty on Childhood Brain Development: e
Mediating Effect of Caregiving and Stressful Life Events”. JAMA Pediatrics, vol. 167, n. 12, dez.
2013, pp. 1.135-42.
32 SWARTZ, J. R. et al. “An Epigenetic Mechanism Links Socioeconomic Status to Changes in
Depression-Related Brain Function in High-Risk Adolescents”. Molecular Psychiatry, vol. 22, n. 2,
fev. 2017, pp. 209-24.
33 RAPHAEL, Dennis et al. Social Determinants of Health, p. 13. (Raphael está reciclando conselhos
humorísticos que vêm circulando há alguns anos.) Disponível em:
<https://thecanadianfacts.org/e_Canadian_Facts-2nd_ed.pdf>.
34 MARMOT, Michael & BRUNNER, Eric. “Cohort Pro le: e Whitehall II Study”. International
Journal of Epidemiology, vol. 34, n. 2, abr. 2005, pp. 251-6; e DUGRAVOT, Aline et al. “Social
Inequalities in Multimorbidity, Frailty, Disability, and Transitions to Mortality: A 24-Year Follow-
Up of the Whitehall II Cohort Study”. e Lancet Public Health, vol. 5, n. 1, 1o jan. 2020, pp. e42-
50.
35 WILKINSON, Richard. e Impact of Inequality: How to Make Sick Societies Healthier. Nova York:
New Press, 2005, p. 58.
36 SAPOLSKY, Robert. “e Health-Wealth Gap”. Scienti c American, nov. 2018. Disponível em:
<https://www.scienti camerican.com/index.cfm/_api/render/ le/?
method=inline& leID=123ECD96-EF81-46F6-983D2AE9A45FA354>.

23. OS AMORTECEDORES DA SOCIEDADE: POR QUE AS MULHERES SOFREM MAIS

1 WARRAICH, Haider J. “Why Men and Women Feel Pain Differently”. e Washington Post, 15
maio 2021.
2 FEMALE Smokers Are Twice as Likely as Male Smokers to Develop Lung Cancer. ScienceDaily, 2
dez. 2003. Disponível em: <https://www.sciencedaily.com/releases/2003/12/031202070515.htm>.
3 ALTEMUS, Margaret et al. “Sex Differences in Anxiety and Depression Clinical Perspectives”.
Frontiers in Neuroendocrinology, vol. 35, n. 3, ago. 2014, pp. 320-30.
4 AUVOIS-JARVIS, Franck et al. “Sex and Gender: Modi ers of Health, Disease, and Medicine”. e
Lancet, vol. 396, n. 10.250, 22 ago. 2020, pp. 565-82.
5 Nos Estados Unidos, por exemplo, ser do sexo feminino e pertencer ao grupo dos pretos ou
hispânicos gera mais riscos de doença autoimune do que qualquer um dos dois fatores isolado.
Um estudo de 1964 sobre lúpus eritematoso sistêmico em Nova York, publicado no American
Journal of Public Health, constatou que “as taxas de morbidade e mortalidade eram mais elevadas
entre os negros, seguidos em ordem decrescente pela taxa dos porto-riquenhos e outros brancos”.
SIEGEL, Morris. “Epidemiology of Systemic Lupus Erythematosus: Time Trend and Racial
Differences”. American Journal of Public Health, vol. 54, n. 1, jan. 1964, pp. 33-43. Cinquenta anos
depois, esse fator racial persiste. “O lúpus eritematoso sistêmico é mais frequente e mais severo,
com maior atividade da doença e maior aumento de danos em populações não caucasianas
(hispânicos, afrodescendentes e asiáticos) do que em caucasianos.” GONZALEZ, L. A. et al.
“Ethnicity in Systemic Lupus Erythematosus (SLE): Its In uence on Susceptibility and Outcomes”.
Lupus, vol. 22, n. 12, out. 2013, pp. 1.214-24. Ser mulher e indígena de um lado ou de outro do
Paralelo 49 também aumenta o risco no Canadá: por exemplo, a artrite reumatoide afeta pessoas
indígenas numa taxa três vezes superior à média nacional. HUNT, Stephen. “Arthritis Affects
Indigenous People at a Rate ree Times Higher an Average”. CBC News, 5 nov. 2018.
Disponível em: <https://www.cbc.ca/news/canada/calgary/indigenous-rates-arthritis-higher-than-
average-1.4892319>. As mulheres, é claro, são predominantes nessas estatísticas: nas mulheres
aborígines, a taxa de artrite reumatoide é não três, mas seis vezes mais alta que a dos homens.
RHEUMATOID Arthritis and the Aboriginal Population – What the Research Shows”. JointHealth
Insight, set. 2006. Disponível em: <https://jointhealth.org/programs-jhmonthly-view.cfm?
id=19&locale=en-CA>.
6 Um estudo de 2021 da Organização Mundial da Saúde revelou que uma em cada quatro mulheres
e meninas do mundo já foi agredida por um parceiro homem. Se contabilizarmos também a
violência de não parceiros, a OMS estima que “cerca de um terço das mulheres de 15 anos ou
mais, entre 736 e 852 milhões, serão submetidas a alguma forma de violência sexual ou física no
decorrer da vida”. Segundo o artigo da OMS, essas taxas seriam signi cativamente mais altas caso
incluíssem também outras formas de abuso, como a violência na internet ou o assédio sexual.
FORD, Liz. “Quarter of Women and Girls Have Been Abused by a Partner, Says WHO”. e
Guardian, 9 mar. 2021.
7 HOM, Melanie A. et al. “Women Fire ghters and Workplace Harassment: Associated Suicidality
and Mental Health Sequelae”. Journal of Nervous and Mental Disease, vol. 205, n. 12, dez. 2017, pp.
910-7.
8 HARNOIS, Catherine E. & BASTOS, João L. “Discrimination, Harassment, and Gendered Health
Inequalities: Do Perceptions of Workplace Mistreatment Contribute to the Gender Gap in Self-
Reported Health?”. Journal of Health and Social Behavior, vol. 59, n. 2, 2018, pp. 283-99.
9 A identi cação dos sistemas emocionais cerebrais do CUIDAR, PÂNICO/TRISTEZA, MEDO,
BRINCAR, DESEJAR, BUSCAR e RAIVA pelo neurocientista Jaak Panksepp foi apresentada no
capítulo 9.
10 HOLLAND, Julie. Moody Bitches. Nova York: Penguin Press, 2015, p. 30.
11 EAKER, Elaine D. et al. “Marital Status, Marital Strain, and Risk of Coronary Heart Disease or
Total Mortality: e Framingham Offspring Study”. Psychosomatic Medicine, vol. 69, n. 6, jul.-ago.
2007, pp. 509-13.
12 HAYNES, Suzanne G. et al. “Women, Work and Coronary Heart Disease: Prospective Findings
From the Framingham Heart Study”. American Journal of Public Health, vol. 70, n. 2, fev. 1980, pp.
133-41.
13 Como de hábito, nenhum dos médicos que trataram a doença de Crohn de Liz jamais lhe
perguntaram sobre seus traumas de infância, seus estresses atuais ou sobre a relação dela com ela
mesma.
14 “Levei anos de terapia para sequer admitir que tivesse havido qualquer tipo de vitimização minha”,
diz Morrissette no documentário Jagged. “Eu sempre dizia que tinha consentido, e depois me
lembrava, ‘Ué, você tinha 15 anos… não se pode consentir aos 15 anos’. Hoje eu digo: ‘Ah, sim,
eram todos pedó los. Foi tudo estupro de vulnerável.’”
15 FRIEDMAN, Gillian. “Jobless, Selling Nudes Online, and Still Struggling”. e New York Times, 12
jan. 2021. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2021/01/13/business/onlyfans-pandemic-
users.html>.
16 DINES, Gail. Pornland: How Porn Has Hijacked Our Sexuality. Boston: Beacon Press, 2010, p. xi.
17 O’HANLON, Emer. “Porn Lies Behind Cuts and Bruises of Rough Sex Fad”. Irish Independent, 2
ago. 2020. Disponível em: <https://www.independent.ie/opinion/comment/porn-lies-behind-cuts-
and-bruises-of-rough-sex-fad-39416367.html>.
18 Wollstonecra, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Edipro, 2015.
19 DWORKIN, Andrea. Intercourse. Nova York: Basic Books, 2007 [1987], p. 112.
20 KIECOLT-GLASER, Janice K. et al. “Spousal Caregivers of Dementia Victims: Longitudinal
Changes in Immunity and Health”. Psychosomatic Medicine, vol. 53, 1991, pp. 345-62.
21 RADIN, Rachel M. et al. “Maternal Caregivers Have Con uence of Altered Cortisol, High
Reward-Driven Eating, and Worse Metabolic Health”. PLoS ONE, vol. 14, n. 5, 10 maio 2019.
Disponível em: <https://doi.org/10.1371/journal.pone.0216541>.>
22 GROSE, Jessica. “Mothers Are the ‘Shock Absorbers’ of Our Society”. e New York Times, 14 out.
2020. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/10/14/parenting/working-moms-job-loss-
coronavirus.html>.
23 PEREZ, Caroline Criado. Mulheres invisíveis: O viés dos dados em um mundo projetado para
homens. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.
24 MANNE, Kate. Down Girl: e Logic of Misogyny. Nova York: Oxford University Press, 2018, p.
130.
25 Pesquisas recentes mostram que mais de 30 mil veteranos americanos das guerras pós-Onze de
Setembro no Iraque e no Afeganistão se suicidaram, mais de quatro vezes o número de mortos em
combate. Disponível em: <https://coloradonewsline.com/2021/07/08/report-veteran-suicides-far-
outstrip-combat-deaths-in-post-9-11-wars/>.

24. NÓS SENTIMOS A DOR DELES: NOSSA POLÍTICA IMPREGNADA DE TRAUMA

1 BROOKS, Anthony & TATTER, Grace. “Surviving Family Politics at anksgiving”. WBUR, 27
nov. 2019. Disponível em: <https://www.wbur.org/onpoint/2019/11/27/family-politics-
thanksgiving>.
2 SMITH, Kevin B. et al. “Friends, Relatives, Sanity, and Health: e Costs of Politics”. PLoS One, vol.
14, n. 9, set. 2019. Disponível em: <https://journals.plos.org/plosone/article?
id=10.1371/journal.pone.0221870>.
3 EPEL, Elissa. “Stressed Out by Politics? It Could Be Making Your Body Age Faster, Too”. Quartz, 16
mar. 2017. Disponível em: <https://qz.com/931355/telomeres-and-cell-aging-nobel-prize-for-
medicine-winner-elizabeth-blackburn-and-elissa-epel-explain-how-trump-is-aging-our-cells/>.
4 STOSNY, Steven. “He Once Called It ‘Election Stress Disorder.’ Now the erapist Says We’re
Suffering From is”. e Washington Post, 6 fev. 2017. Disponível em:
<https://www.washingtonpost.com/news/inspired-life/wp/2017/02/06/suffering-from-headline-
stress-disorder-since-trumps-win-youre-de nitely-not-alone/?noredirect=on>.
5 MILLER, Alice. For Your Own Good: Hidden Cruelty in Child-Rearing and the Roots of Violence.
Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1990 [1983], p. 65.
6 GERHARDT, Sue. e Sel sh Society. Londres: Simon and Schuster, 2011, p. 46.
7 COYLE, Jim. “For Stephen Harper, a Stable Upbringing and an Unpredictable Path to Power”. e
Toronto Star, 8 out. 2015. Disponível em: <https://www.thestar.com/news/insight/2015/10/04/for-
stephen-harper-a-stable-upbringing-and-an-unpredictable-path-to-power.html>.
8 AN EMOTIONAL Justin Trudeau Cries Discussing the Death of Gord Downie. Global News,
YouTube, 18 out. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YMCaDvah6N0>.
9 Foi em 30 de setembro de 2021, a primeira comemoração do Dia Nacional da Verdade e
Reconciliação no Canadá.
10 KAY, Jonathan. “e Justin Trudeau I Can’t Forget”. Walrus, 29 set. 2015.
11 WALLIS, Claudia. “Of Psychopaths and Presidential Candidates”. Scienti c American Mind,
colunista convidada, 12 ago. 2016. Disponível em: <https://blogs.scienti camerican.com/mind-
guest-blog/of-psychopaths-and-presidential-candidates/>.
12 MAYER, Jane. “Trump’s Boswell Speaks”. e New Yorker, 26 jul. 2016.
13 CHOZIK, Amy. “Clinton Father’s Brusque Style, Mostly Unspoken But Powerful”. e New York
Times, 20 jul. 2015.
14 TWOHEY, Megan. “Her Husband Accused of Affairs, a De ant Clinton Fought Back”. e New
York Times, 3 out. 2016.
15 BROOKS, David. “e Avalanche of Distrust”. e New York Times, 13 set. 2016.
16 LAKOFF, George. e Political Mind. Nova York: Penguin Books, 2008, p. 76.
17 RAINBOW, Randy (@randyrainbow). “G’night, mom and dad. See you in the morning”. Twitter,
11 ago. 2020, 22h17. Disponível em:
<https://twitter.com/randyrainbow/status/1293386210388381696>.
18 Ver, por exemplo, “Stephen Kicks Off a Late Show’s Obama-Rama Extravagama With a Special
Obamalogue”. e Late Show with Stephen Colbert, CBS. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=RmtCV-U8wwo>.

25. A MENTE NO COMANDO: A POSSIBILIDADE DE CURA

1 O Animas Valley Institute de Plotkin, com sede no Colorado, oferece poderosos retiros, workshops
e “buscas” que usam a própria natureza como uma espécie de modelo e professora da inteireza
humana.
2 A história de doença e cura da própria Rankin foi abordada no capítulo 5.
3 ÉSQUILO. Agamêmnon. Em: Oréstia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
4 O estudo da rede neural do pericárdio, a membrana brosa que recobre o coração, e de suas
conexões com o sistema nervoso e o cérebro é abarcado pela disciplina da neurocardiologia.
5 PEARCE, Joseph Chilton. e Heart-Mind Matrix: How the Heart Can Teach the Mind New Ways
to ink. Rochester: Park Street Press, 2012.
6 EGER, Edith Eva. A bailarina de Auschwitz. Rio de Janeiro: Sextante, 2017.

26. QUATRO DISPOSIÇÕES E CINCO COMPAIXÕES: ALGUNS PRINCÍPIOS DE CURA

1 Ver capítulo 7.
2 TURNER, Kelly. Radical Remission: Surviving Cancer Against All Odds. Nova York: HarperOne,
2014, p. 45.
3 KRAMPE, Henning et al. “e In uence of Personality Factors on Disease Progression and
Health-Related Quality of Life in People with ALS”. Amyotrophic Lateral Sclerosis, vol. 9, n. 2, maio
2008, pp. 99-107.
4 VAN MIDDENDORP, Henriët et al. “Effects of Anger and Anger Regulation Styles on Pain in
Daily Life of Women With Fibromyalgia: A Diary Study”. European Journal of Pain, vol. 14, n. 2,
fev. 2010, pp. 176-82.
5 Autor do sucesso de vendas Into the Magic Shop: A Neurosurgeon’s Quest to Discover the Mysteries
of the Brain and the Secrets of the Heart (A loja de mágicas: a busca de um neurocirurgião para
descobrir os mistérios do cérebro e os segredos do coração).
6 Um curto trecho dessa conversa pode ser visto no vídeo “A Neurosurgeon Talks of Vulnerability
Gabor Maté and James Doty”, 12 jul. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=WiAXbZmA2dU>.
7 KNOTT, Helen. In My Own Moccasins: A Memoir of Resilience. Saskatchewan: University of Regina
Press, 2019, p. 240.
8 MERTON, omas. A montanha dos sete patamares. Rio de Janeiro: Petra, 2018.

27. UM PRESENTE TERRÍVEL: A DOENÇA COMO PROFESSORA

1 De uma entrevista da cantora e compositora ao jornal e Guardian, 10 jul. 2021.


2 SHADICK, Nancy A. et al. “A Randomized Controlled Trial of an Internal Family Systems-Based
Psychotherapeutic Intervention on Outcomes in Rheumatoid Arthritis: A Proof-of-Concept
Study”. Journal of Rheumatology, vol. 40, n. 11, nov. 2013, pp. 1.831-41.
3 SOLJENÍTSYN, Aleksandr. Pavilhão de cancerosos. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1975.
4 Instrutor de psiquiatria na Escola de Medicina de Harvard e diretor de medicina dos Programas de
Psiquiatria Adulta no hospital psiquiátrico McLean SouthEast.
5 Único motivo secular, digo.
6 Mesmo com o diagnóstico geralmente fatal da ELA, existem na literatura neurológica dezenas de
casos publicados com documentação médica e revisão de pares sobre reversões parciais ou
completas, ou sobre décadas de sobrevida após prognósticos terminais, mesmo depois de longos
anos de dependência de cadeiras de rodas ou respiradores arti ciais. O físico Stephen Hawking
cou conhecido por superar em mais de 50 anos seu prognóstico de dois.
7 Quando este livro estava entrando no último estágio de editoração, em dezembro de 2021, Pye
relatou estar se reabilitando/recuperando de outra cirurgia, feita em outubro de 2021 devido à
reincidência do tumor diagnosticado pela primeira vez em 2011. O tempo médio de sobrevida ao
seu diagnóstico original é de cinco a 10 anos.

28. ANTES DE O CORPO DIZER NÃO: PRIMEIROS PASSOS NO RETORNO A SI

1 “Born is Way”, de Lady Gaga, 2011.


2 SCHWARTZ, Richard C. Introduction to the Internal Family Systems Model. S. l.: Trailheads
Publications, 2001, p. 54.
3 ALMAAS, A. H. e Freedom to Be. S. l.: Diamond Books, 1989, p. 12.
4 Referência ao título do clássico contemporâneo sobre trauma de Bessel van der Kolk, O corpo
guarda as marcas.
5 Mais sobre as origens adaptativas do ódio por si mesmo no capítulo 30.
6 Travar amizade com nossos sentimentos de culpa compulsivos é um assunto tratado no capítulo
30.
7 Citado em: HAHN, ich Nhat. A essência dos ensinamentos de Buda. Petrópolis: Vozes, 2019.
8 Na verdade, Gauthier expressou isso no título de seu livro recente, Saved by a Song: e Art and
Healing Power of Songwriting (Curada por uma canção: a arte e o poder de cura da composição
musical).
9 SELYE, János. e Stress of Life. Nova York: McGraw-Hill, 1978, p. 419.

29. VER PARA DESACREDITAR: COMO DESFAZER CRENÇAS AUTOLIMITANTES

1 LIPTON, Bruce H. & BHAERMAN, Steve. Evolução espontânea. São Paulo: Butter y Editions,
2013.
2 SCHWARTZ, Jeffrey M. & BEGLEY, Sharon. e Mind and the Brain: Neuroplasticity and the
Power of Mental Force. Nova York: ReganBooks, 2002.

30. INIMIGOS QUE VIRAM AMIGOS: COMO LIDAR COM OS OBSTÁCULOS À CURA

1 SCHWARTZ, Richard. Introduction to the Internal Family Systems Model. Trailheads Publications,
2001, pp. 67-8.
2 A psilocibina é a substância encontrada nos chamados “cogumelos mágicos”. Terei mais a dizer
sobre as modalidades psicodélicas no capítulo 31.
3 Do poema de 1919 de W. B. Yeats “e Second Coming” (A segunda vinda).
4 Já citei o livro de Knott ao longo deste volume: In My Own Moccassins: A Memoir of Resilience.
5 EGER, Edith. A liberdade é uma escolha. Rio de Janeiro: Sextante, 2021.
6 Ilustradas aqui na prática com a participação sem rodeios do apresentador de podcast Tim Ferriss:
“Dr. Gabor Maté on How to Reframe a Challenging Moment and Feel Empowered”, e Tim
Ferriss Show, 4 nov. 2019, YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=__JLFw2FtEQ>.

31. JESUS NA TENDA: PSICODÉLICOS E CURA

1 Em geral, os do segundo tipo são lugares de que se ouve falar em notícias por vezes
sensacionalistas, mas infelizmente verídicas sobre os perigos dos psicodélicos. Na verdade, porém,
essas manchetes tratam do que acontece quando tradições potentes da medicina são cooptadas
pela sede de lucro, coisa que, nem é preciso dizer, não tem uma origem particularmente
amazônica.
2 Palavra em quéchua que designa os cânticos de cura entoados nas cerimônias da ayahuasca.
3 Eu em geral penso e inclusive sonho em inglês.
4 Outra palavra – cunhada mais recentemente e aplicável apenas a remédios à base de plantas – é
“enteogênico”, que signi ca literalmente “tornar-se divino com”.
5 Por exemplo, sobre a ayahuasca: BOUSO, José Carlo et al. “Ayahuasca, Technical Report 2021”.
International Center for Ethnobotanical Education, Research and Service, dez. 2021. Disponível
em: <https://www.iceers.org/ayahuasca-technical-report/>.
6 Mandy era a versão anglicizada do nome de Mee Ok. Parte da sua recuperação de si mesma teve a
ver com resgatar seu nome coreano original. Ela agora adotou o sobrenome Icaro em homenagem
à sua conexão com o remédio.
7 Por mais desesperada que Mee Ok estivesse, e por mais útil que tenha se revelado a sua
experiência, eu nunca recomendo a ninguém ingerir a planta sozinho. A experiência da ayahuasca,
mais até do que a da maioria das plantas psicodélicas, é melhor se realizada num contexto
cerimonial, com praticantes de con ança. É uma questão tanto de segurança quanto de
integridade da própria tradição, em que a planta é vista como parte de um rico conjunto de
práticas, não algo a ser consumido ad hoc, sobretudo não por iniciantes.
8 THIESSEN, Michelle S. et al. “Psychedelic Use and Intimate Partner Violence: e Role of Emotion
Regulation”. Journal of Psychopharmacology, 2018. Disponível em:
<https://doi.org/10.1177/02698811187>.
9 Como muitos outros, estou con ante de que os estudos atualmente em andamento provem que,
mesmo por motivos estritamente econômicos, esses tratamentos podem ter um bom custo-
benefício: pense, por exemplo, no custo ao longo da vida de uma pessoa que precise tomar
remédios para algo como TEPT.
10 WYNNE, S. C. Empire of the Summer Moon: Quanah Parker and the Rise and Fall of the
Comanches. Nova York: Scribner, 2010, p. 314.

32. MINHA VIDA COMO UMA COISA GENUÍNA: TOCAR O ESPÍRITO

1 Ato I, cena 5. Na época de Shakespeare, “ loso a” podia se referir ao pensamento racional,


cientí co.
2 Em sua canção de 1965 “Mr. Tambourine Man”.
3 ALMAAS, A. H. Elements of the Real in Man. S. l.: Diamond Books, 1987, p. 26.
4 Ex-diretor de medicina no Centro de Medicina Complementar do Centro Médico da Universidade
de Pittsburgh, e atualmente docente do programa de residência em medicina de família do Centro
Médico do Maine Oriental, ligado à Universidade da Nova Inglaterra.
5 MEHL-MADRONA, Lewis. Coyote Medicine: Lessons From Native American Healing. Nova York:
Simon and Schuster, 1997, pp. 16-7.
6 REICH, Wilhelm. O assassinato de Cristo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
7 Primeiro Reis 19,12.
8 Por exemplo, CONKLIN, Quinn A. et al. “Meditation, Stress Processes, and Telomere Biology”.
Current Opinion in Psychology, vol. 28, 2019, pp. 92-101; BERGEN-CICO, D. et al. “Reductions in
Cortisol Associated With Primary Care Brief Mindfulness Programs With Veterans With PTSD”.
Med Care, n. 12, supl. 5, dez. 2014, pp. S25-31; e GALLEGOS, A. M. et al. “Mindfulness-Based
Stress Reduction to Enhance Psychological Functioning and Improve In ammatory Biomarkers
in Trauma-Exposed Women: A Pilot Study”. Psychological Trauma, vol. 7, n. 6, nov. 2015, pp. 525-
32.
9 PAGNINI, Francesco et al. “Mindfulness, Physical Impairment and Psychological Well-Being in
People With Amyotrophic Lateral Sclerosis”. Psychology and Health, vol. 30, n. 5, out. 2014, pp.
503-17. Disponível em: <https://doi.org/10.1080/08870446.2014.982652>.
10 BERGER, Rony et al. “Reducing Israeli-Jewish Pupils’ Outgroup Prejudice With a Mindfulness and
Compassion-Based Social Emotional Program”. Mindfulness, vol. 9, n. 2, dez. 2018. Disponível em:
<https://doi.org/10.1007/s12671-018-0919-y>.
11 Cuja obra mais famosa é O cérebro de Buda: Neurociência prática para a felicidade. São Paulo:
Alaúde Editorial, 2012.

33. UM MITO DESFEITO: VISÃO DE UMA SOCIEDADE MAIS SÃ

1 Antonio Gramsci, lósofo, linguista e ativista antifascista italiano.


2 A música é “ank U”, de 1998.
3 Para quem porventura se surpreender com essa a rmação, recomendo os trabalhos de
historiadores israelenses como Ilan Pappé, Simha Flapan, Benny Morris, Tom Segev e Avi Shlaim,
ou de estudiosos judeus americanos como Norman Finkelstein. Por exemplo, a obra seminal de
Pappé, e Ethnic Cleansing of Palestine. Oxford: Oneworld, 2006. Ou então as matérias do
indomável Gideon Levy no jornal israelense Haaretz. Ou ainda, para uma visão palestina, o
esclarecedor livro de memórias pessoais e história de Rashid Khalidi, One Hundred Years’ War on
Palestine: A History of Settler Colonialism and Resistance, 1917-2017. Nova York: Picador, 2020.
4 BALDWIN, James. “As Much Truth as One Can Bear”. e New York Times Book Review, 14 jan.
1962.
5 Ibid.
6 As citações de Joan Didion são de um obituário da falecida escritora: CAIN, Sian & HELMORE,
Edward. “Joan Didion, American Journalist and Author, Dies at 87”. e Guardian, 23 dez. 2021.
7 KOLK, Bessel van der. O corpo guarda as marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Rio de
Janeiro: Sextante, 2020.
8 O lme pode ser visto em: <https://wisdomorauma.com/pt>.
9 Como por exemplo um estudo que caiu na minha mesa exatamente quando eu estava escrevendo
este capítulo: ROGERS, Nina T. et al. “Child Maltreatment, Early Life Socioeconomic
Disadvantage and All-Cause Mortality: Findings From a Prospective British Cohort”. BMJ Open,
vol. 11, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1136/bmjopen-2021-050914>.
10 THISTLE, Jesse. From the Ashes. Toronto: Simon & Schuster Canada, 2019, p. 260.
11 KLINE, Maggie. Brain-Changing Strategies to Trauma-Proof Our Schools. Berkeley, CA: North
Atlantic Books, 2020, p. 2.
12 ROURKE, Alison. “Greta unberg Responds to Asperger’s Critics: ‘It’s a Superpower’”. e
Guardian, 2 set. 2019.
13 HICKMAN, Caroline et al. “Young People’s Voices on Climate Anxiety, Government Betrayal and
Moral Injury: A Global Phenomenon”, pré-artigo apresentado à e Lancet, set. 2021. Disponível
em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3918955>.
14 CARRINGTON, Damian. “‘Blah, Blah, Blah’: Greta unberg Lambasts Leaders Over Climate
Crisis”. e Guardian, 28 set. 2021.
15 ARENDT, Hannah. “Eichmann in Jerusalem – I”. e New Yorker, 16 fev. 1963.
16 Segundo um editorial do e New York Times de 11 de abril de 2021, 500 mil crianças iraquianas
foram mortas em consequência dos embargos dos EUA nos anos 1990.
17 A entrevista na qual Albright fez essa declaração foi transmitida no programa 60 Minutes, da CBS,
em 12 de maio de 1996. Mais tarde, Albright escreveu: “Eu caí numa armadilha e disse algo que
não queria dizer”, se arrependendo de ter parecido “fria e cruel”. Tirando o arrependimento pela
forma como foi interpretada, nem ela nem qualquer representante governamental dos Estados
Unidos responsável pelos embargos jamais se desculpou pela morte das crianças.
18 Morta em março de 2022, Albright mais tarde se arrependeria publicamente de ter feito essa
a rmação. Mas nunca abriu mão das políticas por ela justi cadas.
19 MASLOW, Abraham. “Resistance to Acculturation”. Journal of Social Issues, vol. 1, outono 1951,
pp. 26-9.
SOBRE OS AUTORES

Dr. Gabor Maté é um médico e escritor húngaro-canadense, especialista


em temas como vício, estresse e desenvolvimento infantil. Autor de diversos
livros, entre eles o premiado In the Realm of Hungry Ghosts: Close
Encounters with Addiction, Maté defende uma abordagem compassiva em
relação à adição e acredita que a fonte dos vícios não está nos genes, mas no
ambiente da primeira infância. Seus trabalhos já foram publicados em quase
trinta idiomas.

Daniel Maté é coautor de dois livros com o pai, o Dr. Gabor Maté,
incluindo Hello Again: A Fresh Start for Parents and eir Adult Children.
Ele dirige o programa de “quiropraxia mental” chamado Walk with Daniel,
além de ser um premiado compositor e letrista. Pai e lho dão palestras e
ministram workshops.
CONHEÇA OUTRO TÍTULO DA EDITORA SEXTANTE

O corpo guarda as marcas

Bessel van der Kolk, M.D.

O trauma é um dos grandes problemas de saúde pública atual, afetando não


apenas sobreviventes de guerras e desastres naturais como vítimas de
violência doméstica, crimes urbanos, agressões, maus-tratos, abuso sexual,
abandono e negligência.
Um dos principais especialistas no assunto, o Dr. Van der Kolk mostra
como o trauma reformula o funcionamento do corpo e do cérebro,
comprometendo a capacidade das vítimas de ter prazer, criar laços
saudáveis, con ar nos outros e se sentirem seguras.
Com base em descobertas cientí cas recentes e em mais de 30 anos de
trabalho clínico, ele apresenta tratamentos inovadores que oferecem novos
caminhos para a recuperação de adultos e crianças ativando a
neuroplasticidade natural do cérebro.
Pontuado por impressionantes casos de coragem e superação, este livro
expõe o tremendo poder de nossos relacionamentos tanto para ferir quanto
para curar e oferece uma nova esperança para recuperar vidas.
CONHEÇA ALGUNS DESTAQUES DE NOSSO CATÁLOGO

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Nunca desista de seus sonhos (2,7 milhões de livros vendidos) e O
médico da emoção
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Brené Brown: A coragem de ser imperfeito – Como aceitar a própria
vulnerabilidade e vencer a vergonha (600 mil livros vendidos)
T. Harv Eker: Os segredos da mente milionária (2 milhões de livros
vendidos)
Gustavo Cerbasi: Casais inteligentes enriquecem juntos (1,2 milhão de
livros vendidos) e Como organizar sua vida nanceira
Greg McKeown: Essencialismo – A disciplinada busca por menos (400
mil livros vendidos) e Sem esforço – Torne mais fácil o que é mais
importante
Haemin Sunim: As coisas que você só vê quando desacelera (450 mil
livros vendidos) e Amor pelas coisas imperfeitas
Ana Claudia Quintana Arantes: A morte é um dia que vale a pena viver
(400 mil livros vendidos) e Pra vida toda valer a pena viver
Ichiro Kishimi e Fumitake Koga: A coragem de não agradar – Como se
libertar da opinião dos outros (200 mil livros vendidos)
Simon Sinek: Comece pelo porquê (200 mil livros vendidos) e O
jogo in nito
Robert B. Cialdini: As armas da persuasão (350 mil livros vendidos)
Eckhart Tolle: O poder do agora (1,2 milhão de livros vendidos)
Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz (600 mil livros vendidos)
Cristina Núñez Pereira e Rafael R. Valcárcel: Emocionário – Um guia
lúdico para lidar com as emoções (800 mil livros vendidos)
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cuidar da saúde mental e física para ter qualidade de vida
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relógio biológico para perder peso, reduzir o estresse e ter mais saúde
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sextante.com.br

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