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TÍTULO ORIGINAL TRADUÇÃO
What I Wish People Knew About Alessandra Bonrruquer
Dementia: From Someone Who Knows
M668q
Mitchell, Wendy
O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre demência [recurso eletrônico] : de alguém
que convive com o diagnóstico / Wendy Mitchell ; tradução Alessandra
Bonrruquer. - 1. ed. - Rio de Janeiro : BestSeller, 2023.
recurso digital
Tradução de: What I wish people knew about dementia a : from someone who knows
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5712-277-8 (recurso eletrônico)
1. Mitchell, Wendy - Saúde mental. 2. Demência. 3. Demência - Aspectos sociais. 4. Livros
eletrônicos. I. Bonrruquer, Alessandra. II. Título.
23-83346
CDD: 616.831
CDU: 616.895.8
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia por
escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela
Editora Best Seller Ltda.
Rua Argentina, 171, parte, São Cristóvão
Rio de Janeiro, RJ — 20921-380
que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Produzido no Brasil
ISBN 978-65-5712-277-8
Introdução
Sentidos
Sobre a maneira que eu como
Sobre o que eu como
Sobre a escolha de alimentos
Sobre comer em casas de repouso
Sobre cozinhar um ovo
Sobre os cheiros
Sobre as alucinações olfativas
Sobre a audição
Sobre a visão
Sobre os sonhos
Sobre o tato
Relacionamentos
Sobre os cuidados
Sobre como os cuidados modificam os relacionamentos
Sobre os cuidados prestados pelas filhas
Sobre morar sozinha
Sobre a necessidade de conexões
Sobre pessoas com demência como cuidadores
Comunicação
Sobre enfrentar as críticas
Sobre o fato de que as palavras importam
Sobre a linguagem empregada pelos profissionais
Sobre ser incapacitada pelos outros
Sobre as representações da demência
Sobre a comunicação sem linguagem
Sobre as redes sociais
Sobre tecnologia
Ambiente
Sobre as estações
Sobre caminhar
Sobre tornar os lugares amigáveis para as pessoas que vivem com demência
Sobre a vizinhança
Sobre me sentir perdida
Sobre viver em casa
Sobre meu quarto da memória
Sobre lares e casas de repouso
Sobre os vilarejos da demência
Emoções
Sobre nossa capacidade de sentir emoções
Sobre a tristeza
Sobre o medo
Sobre a ansiedade
Sobre a raiva
Sobre a culpa
Sobre a felicidade
Atitude
Sobre os dias ruins
Sobre o diagnóstico
Sobre o enfrentamento
Sobre as atitudes dos profissionais
Sobre as atitudes da família
Sobre o senso de si mesmo
Sobre a positividade
Sobre o apoio daqueles iguais a nós
Epílogo
Bibliografia
Agradecimentos
INTRODUÇÃO
Wendy Mitchell
novembro de 2021
SENTIDOS
“Eu costumava cozinhar, porque meu marido não sabe, mas agora
compramos refeições prontas. Eu como muito menos que antes. E
nunca consigo achar garfos e facas. Meu marido diz que eles estão
guardados na mesma gaveta há quarenta anos, mas nunca sei onde
estão.”
“Eu costumava adorar ovos, mas não os como mais, porque não
suporto ovos fritos ou cozidos — não suporto mais ovos, e também
não como mais carne.”
“Eu costumava cozinhar. Agora deixo isso para meu marido, mas
me sinto culpada e sinto que sou eu quem deveria estar cozinhando.”
“Eu não cozinho. Minha mulher é quem cozinha, e eu como
qualquer coisa que ela prepare.”
Tomar decisões pode ser um processo muito complicado quando você tem
demência. No meu caso, isso significa que frequentemente opto por comer a
mesma coisa. Sempre que estou na rua, compro um sanduíche de atum. Isso me
poupa da confusão que impera em meu cérebro se eu tiver uma lista de opções
ou for confrontada por prateleiras de sanduíches de todos os tipos de recheio em
embalagens brilhantes.
A demência também deixou minha alimentação mais intuitiva. Da mesma
maneira que costumo confiar em meus instintos para analisar se sinto boas
energias de uma pessoa que acabei de conhecer, também presto mais atenção aos
alimentos que meu corpo demanda. Recentemente, tive vontade de comer
nozes e tomates e notei que, quando a necessidade de quaisquer nutrientes que
meu corpo estava exigindo era satisfeita, ele se aquietava novamente. Adquiri o
hábito de preparar sempre as mesmas refeições, porque é mais fácil. Muitas
vezes se trata de uma refeição pronta. No verão, pode ser uma salada, que é fácil
de fazer e não envolve o uso do fogão — assim, não há chance de eu me distrair
e esquecer uma panela no fogo. Eu comia a mesma salada com peixe havia
meses, mas, um dia, no outono, senti muito frio e não consegui me aquecer. O
frio estava dentro de mim, instalado em meus ossos, e, naquela noite, fui incapaz
de engolir a salada. A tigela de alface molenga, tomate e pepino ficou me
encarando até que desisti e larguei o garfo. Era como se meu corpo se recusasse
a comer aquilo. No dia seguinte, procurei no supermercado uma refeição pronta
que me apetecesse. Voltei para casa com uma lasanha e, naquela noite, meu
corpo ficou feliz novamente, e meus ossos quentes de novo. Na semana seguinte,
havia lasanha em todas as prateleiras da minha geladeira.
Não enjoo das refeições como as outras pessoas, simplesmente porque não
me lembro que é a mesma da noite anterior. Comida é um combustível para
mim, nada mais complicado que isso. Como não sinto fome, programo alarmes
no iPad para me lembrar de comer. A única maneira de saber se comi algo no dia
anterior é encontrar a louça no escorredor na manhã seguinte.
Viver sozinha torna mais fácil ter autonomia para escolher o que comer. Não
há ninguém para comentar o fato de que como muito pouco ou a mesma coisa
todos os dias. Para aqueles que recebem apoio na própria casa ou em casas de
repouso, pode não ser tão simples. Minha experiência é comum: estima-se que
cinquenta por cento das pessoas com demência experimentem dificuldade para
comer, beber ou engolir (disfagia). Isso se torna mais comum conforme a
doença progride, mas pode ocorrer a qualquer momento após o diagnóstico e,
mesmo assim, é um tópico pouco discutido.
É fácil compreender por que essas alucinações podem ser perturbadoras para
as pessoas que as experimentam sem o conhecimento de que podem ser uma
parte normal da doença. É importante, como em todas essas peças pregadas pelo
cérebro, que aqueles que apoiam pessoas com demência também entendam isso.
Se dizemos sentir determinado cheiro, naquele momento ele é totalmente real
para nós. Saber disso pode acarretar um melhor relacionamento com a doença
para todos.
Uma amiga minha, a Dra. Jennifer Bute, que atuava como generalista, foi
diagnosticada com demência em 2009. Depois que se aposentou, ela escreveu
um livro sobre a própria experiência com a doença: Dementia from the Inside: A
Doctor’s Personal Journey of Hope [Por dentro da demência: A jornada pessoal de
esperança de uma médica]. Falei com ela sobre suas experiências com
alucinações olfativas, e ela disse:
SOBRE A AUDIÇÃO
A demência distorce a realidade cotidianamente. Aquele baque que você ouviu
do lado de fora e fez um tremor percorrer sua espinha? Nunca existiu. Os
disparos, os sons de um atirador maluco à solta? Essas alucinações auditivas
podem deixá-lo preso à poltrona, com o coração disparado, aterrorizado demais
para olhar além das portas e janelas. Os sons que a demência conjura em meu
cérebro são tão reais para mim quanto as páginas do livro que você está lendo
agora. Todavia, um olhar corajoso pela janela prova que não há alguém
percorrendo as ruas com uma espingarda de cano serrado. Aquele leve toc-toc-
toc-toc na porta da frente? Nunca há alguém lá quando você a abre.
Essas são peças pregadas por um cérebro doente, mas ninguém nos avisa
sobre elas. Eu me lembro de como, nos primeiros dias de demência, a doença
modificou o cenário da amada cidade de York, onde eu vivia. Eu adorava meu
apartamento ao lado do rio e decidira que seria onde eu moraria para o resto da
vida. Entretanto, subitamente, foi como se a cidade tivesse aumentado o volume
dos ruídos urbanos. Cada passo fora de casa me deixava mais e mais
sobrecarregada. Perigos me aguardavam em todas as esquinas: o ressoar
penetrante das ambulâncias que me fazia parar de supetão, enquanto segurava a
cabeça para conter a dor; o rosnar do motor dos carros que esperavam o sinal
abrir; uma balbúrdia de vozes que tornava a avenida Shambles desorientadora e
apavorante. Era como se eu e minha cidade tivéssemos nos tornado completas
estranhas de um dia para o outro. Nenhum profissional, contudo, avisou que esse
era um sintoma da doença em minha cabeça. Para mim, essa mudança na audição
foi confusa, já que eu nunca tivera problemas do tipo. A demência era uma
doença que afetava a memória, então devia ter alguma outra coisa errada
comigo. Eu ainda não estava acostumada às muitas maneiras pelas quais a
demência pode transformar o mundo em um lugar pouco familiar, com algumas
coisas acontecendo lentamente e outras quase que da noite para o dia.
Se um profissional tivesse me avisado que eu poderia experimentar mudanças
sensoriais, talvez a ansiedade não me acompanhasse em cada passo que dei fora
de casa. Talvez eu não tivesse ficado preocupada que outra parte de mim pudesse
estar falhando. Em vez disso, meu momento Eureca ocorreu quando uma de
minhas amigas, Agnes Houston, mencionou que se tornara muito sensível aos
ruídos após ser diagnosticada. Agnes conversara com pessoas como eu, que
haviam notado mudanças na visão, audição, no paladar e olfato, e percebera que
nenhum médico havia nos avisado a respeito. Pior ainda, muitos supostos
especialistas sequer sabiam que essas mudanças sensoriais faziam parte da
doença. Então ela iniciou a própria pesquisa, escrevendo um livro com Julie
Christie, Talking Sense: Living with Sensory Changes and Dementia [Fazendo sentido:
Vivendo com mudanças sensoriais e demência], que explora o impacto da
demência nos sentidos. Eu o recomendo a qualquer um que viva com a doença.
Perguntei a meus amigos sobre as experiências que tiveram com alucinações
auditivas:
A demência pode ser cruel de muitas maneiras, mas, de vez em quando, ela
oferece presentes inesperados. Era um dia claro e o sol começava a se pôr,
fazendo com que a cerca lançasse longas sombras sobre o gramado. Eu estava
andando inquieta dentro de casa, passando de um cômodo a outro com uma
xícara de chá nas mãos, tentando decidir onde me sentar. Subitamente, através
do vidro das portas duplas, algo chamou minha atenção. Levou algum tempo
para a silhueta formar uma figura reconhecível, mas então distingui a forma
inconfundível: um homem, em pé no meio do gramado — meu pai.
Ele estava morto havia uns vinte anos. Será que eu deveria ficar assustada ao
vê-lo com todos os detalhes incríveis e banais? Ele estava com o familiar cardigã
verde e folgado e as roupas alegres e casuais que usava para cuidar do jardim, e
em seu rosto havia o mesmo sorriso relaxado. Um de meus truques para lidar
com alucinações visuais é fotografar, com o telefone ou o iPad, aquilo que penso
estar vendo. Se aparecer na fotografia, existe na vida real. Naquele momento,
porém, não quis quebrar o encanto. Ele ficou lá em pé, olhando para mim, com
as mãos ao lado do corpo, os dedos manchados de nicotina visíveis mesmo à
distância. O cabelo dele estava penteado com pomada, como sempre, preto e
brilhante, e os últimos raios de sol iluminavam o topete que nunca ficou
grisalho. Lembrei, enquanto nos olhávamos, das vezes em que, ainda pequena,
eu me sentava no colo dele e era paga com um centavo por cada fio de cabelo
branco que conseguisse arrancar. A memória daqueles momentos devolveu a
mim o calor do toque do meu pai, o perfume doce e açucarado da pomada para
o cabelo e o vermelho-brilhante da embalagem.
Não sei quanto tempo ficamos nos olhando. Podem ter sido minutos ou horas
— a demência tem uma relação engraçada com o tempo. A parte lógica de meu
cérebro sabia que o que eu estava vendo não era real. Sei que a doença tem o
hábito de pregar peças em meu cérebro e, normalmente, uso a regra dos trinta
minutos: afastar-me e retornar meia hora depois para saber com certeza se o que
vi ainda estaria lá. Contudo, daquela vez, simplesmente fiquei olhando,
determinada a aproveitar o presente que a demência me dera, porque eles são
poucos e esparsos. Não senti medo, mas o desejo emocional de ficar e passar
algum tempo na companhia de meu velho amado pai.
Brinco de gato e rato com a demência diariamente, e muitas das vezes ela me
vence. Entretanto, naquele dia, eu sabia que ela havia errado. Em vez de me
assustar, ela me abençoou com a visita de alguém que havia muito tinha partido e
de quem eu sentia muita saudade. Eu sabia que papai estava feliz por causa das
roupas que usava, então fiquei feliz também, naquela tarde ensolarada, com a
xícara de chá esfriando nas mãos. Olhei para ela e, quando levantei os olhos
novamente, ele havia desaparecido.
SOBRE OS SONHOS
Sonhos contam como alucinações? Se nosso cérebro pode se rebelar durante o
dia, por que não à noite? Meus sonhos definitivamente mudaram após o
diagnóstico de demência. O sono agora é um visitante infrequente. Passo a
maioria das noites deitada na cama, de olhos fechados, encarando o nada por trás
de minhas pálpebras. Inicialmente, achei essa rotina noturna exaustiva, mas
depois a aceitei. Eu simplesmente fico deitada, permitindo que meu corpo
relaxe e esperando pela manhã, grata por quaisquer minutos de cochilo,
entrando e saindo da escuridão da noite.
Diz-se que as pessoas regridem para uma era diferente nos últimos estágios
da doença, que a mente escolhe a prateleira de uma vida passada na grande
estante que compõe nossa história. Já não sonho com o presente, somente com o
passado. É como se meus sonhos tivessem regredido antes de meu cérebro e
estivessem abrindo uma janela para a realidade na qual eu talvez fique imersa nos
últimos estágios da demência. Talvez meus sonhos me levem de volta até lá
porque, por algum tempo, foi um período feliz da minha vida. Minhas filhas são
sempre pequenas, na maioria das vezes com 6 e 3 anos. Sarah frequentemente
tem um emprego de adulto, como na central de atendimento do Sistema
Nacional de Saúde — com todos os seus noventa centímetros de altura, ela
trabalha em uma escrivaninha gigantesca, sentada em uma cadeira enorme, e
seus pés balançam no ar, sem tocar o chão. Gemma ainda é bem novinha e eu
sou uma jovem mãe — nossos respectivos papéis invertidos somente nesse
momento, quando novamente sou eu quem segura a mão delas. Em meus
sonhos, raramente tenho demência, o que deveria ser reconfortante, até que
acordo e noto a presença dela me fazendo companhia no travesseiro ao lado.
Por que acho que esse é um sinal de algo que está por vir? Porque esse é o
lugar para o qual meu subconsciente me leva naturalmente. Afinal, eu estava
feliz naquela época, antes de me separar. Eu me sentia segura, sem preocupação
alguma além de cuidar das minhas filhas em crescimento, e a total dependência
que elas tinham me dava um propósito que talvez eu não tenha agora. Os
momentos que nossa mente escolhe parecem tão reais para nós quanto seu
cotidiano parece para você, mas podem ser frustrantes e incompreensíveis para
aqueles que nos cercam. Veja, por exemplo, a história que ouvi sobre uma
mulher que batia repetidamente na mesa. As batidas eram tão incessantes que a
equipe telefonou para a família dela na Austrália e pediu que a levassem para uma
nova instituição, pois seu comportamento incomodava cuidadores e residentes.
Foi somente quando a família revelou o que ela fazia antes da demência que o
hábito passou a fazer sentido: ela costumava decifrar códigos em Bletchley Park
durante a guerra, e as batidas constantes eram a maneira pela qual costumava
enviá-los. A demência a havia levado de volta àquela fase da vida.
Agora, cada vez mais, progressivamente, sonho e realidade se tornam difíceis
de separar e decifrar. Acordei certa manhã confusa e com o coração disparado, e
imediatamente peguei o iPad para anotar o que havia acontecido, enquanto ainda
lembrava de todos os detalhes. Eu tinha saído para caminhar, o que me levou a
uma via de pedestres paralela à rodovia. Só que me confundi em certo ponto e
desci até a rodovia. Eu sabia que algo não estava certo — me lembro de pensar
que a descida normalmente não era tão íngreme —, mas, depois de começar, a
aceleração me levou até embaixo. Olhei para um lado e para o outro e senti os
carros passando por mim em alta velocidade, tão próximos que perdi o fôlego.
O barulho era inacreditável. Olhando para trás, soube que jamais conseguiria
chegar à via de pedestres novamente, e não tive escolha senão caminhar. Eu tinha
certeza, tanta certeza, de que chegaria a uma saída, uma via de acesso ou uma
rotatória. No entanto, um carro que vinha em minha direção começou a
desacelerar e vi o brilho familiar das luzes azuis no teto. Era a polícia.
Eu contei que estava confusa e que havia saído de minha rota normal. Eles
queriam me levar de volta ao local onde eu tinha entrado na rodovia, a fim de
ver o buraco que me permitiu errar o caminho, mas eu me sentia tão culpada,
tão tola por fazê-los perder tempo, sabendo que precisariam fazer um grande
desvio para me levar até lá. Eles foram amáveis e persuasivos, explicando o
quanto eu precisaria andar até achar uma saída. Subitamente olhei para o
uniforme deles e me perguntei se realmente eram da polícia, mas que escolha eu
tinha senão ir com eles?
Fizemos um longo desvio, eles tentando conversar comigo, eu relutante em
revelar minha demência, até que finalmente chegamos ao local onde eu havia
saído do trajeto. Eles puderam ver o dano à barreira que me permitiu passar, e
mostrei a eles a via de pedestres da qual me desviei, a alguns metros dali. De
repente, um homem me cumprimentou pelo nome. Aparentemente, era do
vilarejo e me conhecia bem. Ele chamou um dos policiais para uma conversa em
particular e, enquanto falavam, nitidamente o ouvi dizer: “Ela tem demência. Às
vezes fica confusa.” Fiquei lá parada, sem poder ir embora, sentindo-me culpada.
Ele se despediu após alguns momentos e os policiais disseram que era melhor
me levarem para casa. Eu ainda não tinha conseguido fazer minha caminhada e
protestei, mas eles disseram: “Seria melhor se a senhora ficasse em casa hoje.
Sempre poderá caminhar amanhã.”
Foi quando entrei em pânico. Eu não queria que eles soubessem que eu
morava sozinha. Eu me perguntei o que fariam — me reportar para as
autoridades? Chamar o serviço social? Fiquei sentada no banco de trás da viatura,
com a boca seca e a cabeça girando. Quando passamos o semáforo que dá acesso
ao vilarejo, eles perguntaram meu endereço e, de algum modo, tive a ideia de
dar o da minha filha Gemma, torcendo para que ela e o marido Stuart estivessem
em casa.
Ao pararmos em frente à casa, Stuart abriu a porta, ansioso, seguido por
Gemma.
— Eu me perdi durante a caminhada e a polícia me trouxe para casa —
expliquei antes que eles pudessem dizer qualquer coisa.
Felizmente, os policiais não fizeram perguntas e foram embora, com sorte se
ocupando com o combate ao crime e esquecendo tudo a meu respeito.
Foi quando abri os olhos e não consegui determinar se aquilo realmente havia
acontecido. Olhei ao redor: eu estava em minha cama. Entretanto as imagens e
sensações eram muito reais, meu coração ainda estava acelerado e minha cabeça
girava. Permaneci deitada, tentando compreender se aquilo tinha acontecido no
dia anterior. Pensei em enviar uma mensagem a Gemma, mas não quis
preocupá-la se fosse o caso de ser tudo fruto do meu subconsciente.
Realidade ou sonho? Ainda não tenho certeza...
SOBRE O TATO
Quando somos bebês, desejamos o toque reconfortante de nossos cuidadores.
Quando mães, o desejo é o de sentir a pele de nosso bebê em contato com a
nossa. Ainda me lembro das horas que passei alimentando minhas filhas, das
mãozinhas se esticando para agarrar a minha — dedinhos minúsculos se
apertando cuidadosamente em torno dos meus. Nos primeiros dias de vida, seja
para seres humanos, seja para animais, o toque é muito importante,
representando uma comunicação instantânea entre a mãe e a cria. Talvez, no
caso da demência, retornemos a nossos instintos mais primitivos, com o contato
intuitivo sendo muito mais importante para que possamos nos sentir seguros.
Quando minhas filhas cresceram, a confiança delas cresceu junto. As mãos
que antes agarravam a minha a caminho da escola agora queriam seguir sozinhas.
Ainda havia abraços na hora de dormir e carinhos quando o dia era estressante
ou surgia algo a ser celebrado. A verdade é que jamais envelhecemos o suficiente
para esquecer a importância do toque humano. No meu caso, com exceção das
minhas filhas, nunca fui uma pessoa tátil. A demência mudou isso: subitamente,
comecei a sentir necessidade de abraçar todo mundo que encontro ou, ao
menos, quem, instintivamente, sei que gosto. Classifico as pessoas como gentis
ou não e, quando elas demonstram gentileza, quero abraçá-las para demonstrar
gratidão. A gentileza delas significa muito mais do que possam imaginar. De
repente, comecei a abraçar minhas filhas com mais força e por mais tempo. Seria
culpa do fim das inibições? De uma carência que nunca fui corajosa o bastante
para admitir? Ou talvez o abraço represente uma reserva emocional interior:
talvez o toque seja necessário em momentos nos quais as palavras são
complicadas ou difíceis de encontrar, e comunique instantaneamente que eu me
importo.
Pode ser também que morar sozinha desempenhe um papel em minha nova
dependência de toque. Para mim, não há braços reconfortantes sempre que
preciso deles. Será que é tão surpreendente assim que, às vezes, eu queira
agarrar minhas filhas e nunca mais soltar? Eu me acostumei à inversão de muitos
papéis em minha jornada com a demência — agora são minhas filhas que querem
saber onde estou e a que horas volto —, e agora sou eu que preciso do toque
delas para me sentir segura e reconfortada, para saber que não estou sozinha.
O toque é mais vital para todos nós do que talvez estejamos dispostos a
admitir. É possível que encaremos o fato de reconhecer que precisamos sentir a
mão de alguém na nossa como um sinal de fraqueza. Talvez minha personalidade
reservada de antes da demência, que se decepcionou com os homens durante a
vida, não quisesse ser tocada novamente; eu acreditava que abraços eram
reservados para relacionamentos mais íntimos, o que eu queria evitar. O medo
de ser ferida novamente me manteve distante de todos. Quando a demência
chegou, porém, esse medo desapareceu. Subitamente, ele se tornou
insignificante em comparação ao novo desafio que eu precisava enfrentar.
Retire o toque de nós que vivemos com demência e sentiremos terrivelmente
essa ausência, mesmo que não queiramos admitir. Um estudo australiano de
2011 descobriu que uma massagem nos pés de dez minutos, uma vez ao dia,
transformava o comportamento de pessoas portadoras de doenças localizadas em
instituições de cuidados de longo prazo. Os residentes de uma casa de repouso
em Brisbane foram descritos como pessoas de “comportamento agitado”, o que,
de acordo com o estudo, incluía agressão, caminhadas a esmo e perguntas
repetitivas. (Odeio a expressão “comportamento agitado”; sempre me parece
que os “problemas” comportamentais estão relacionados menos às pessoas que
vivem com demência e mais com a necessidade de serem entendidas por seus
cuidadores. É uma implicância minha.)
O que os pesquisadores descobriram foi que uma massagem de dez minutos,
realizada por profissionais treinados, reduziu dramaticamente esse
“comportamento agitado” — mesmo duas semanas após as massagens terem sido
interrompidas. Isso foi atribuído ao fato de que “a massagem fornece uma
sensação de comunicação significativa mesmo quando as habilidades linguísticas
sofreram declínio”. Esses “comportamentos” são frequentemente tratados com
medicamentos que podem ter efeitos colaterais ou, pior ainda, com restrições
físicas. Com uma massagem, em contrapartida, há somente benefícios: o contato
visual com a pessoa que a faz, talvez um pouco de conversação, o foco sensorial.
Essa pesquisa é útil para cuidadores que apoiam pessoas com demência que
vivem sozinhas. Minha filha Sarah, que é enfermeira, usa a massagem manual
para relaxar os pacientes. É algo que qualquer um cuidando de uma pessoa com
demência pode fazer. Não é incomum que os cuidadores se sintam
desconectados das pessoas que apoiam, incertos sobre como demonstrar a
conexão entre eles, mas uma massagem manual é uma maneira de fazer isso. Ela
diz algo que talvez seja mais significativo que as palavras, pois demonstra que há
alguém tentando fazer com que você relaxe e que você merece ter aquele tempo
dedicado a você. Na verdade, ela vale mais que mil palavras.
Durante meus momentos nebulosos, é um grande alívio sentir a mão de
alguém tocando a minha, guiando-me se estou confusa, desorientada ou perdida
em um lugar novo ou entre pessoas que não conheço. Quando estamos
fisicamente instáveis, precisamos dessa mão para nos apoiar, nos guiar ou
somente nos confortar com a consciência de que alguém está ali para nós, de que
podemos levar o tempo que precisarmos e que tudo ficará bem. Quando a névoa
persiste e a vida é menos nítida, uma mão na nossa é uma maneira de chamar
nossa atenção ou nos guiar gentilmente de volta ao momento e acalmar a
tempestade. É um toque que diz “Eu estou aqui”. Não há necessidade de
palavras.
Minha filha Gemma começou a cortar meu cabelo em 2020. Inicialmente, ela
se mostrou hesitante, com medo de errar, apesar de eu dizer que não me
preocupava com minha aparência. O que importava não era o corte de cabelo,
mas o tempo que passávamos juntas. A proximidade, a conversa e o toque
carinhoso e cuidadoso faziam com que nós duas nos sentíssemos bem.
Três semanas após meu primeiro corte, voltei para um retoque. Gemma
estava muito mais confiante, nossas risadas se tornaram mais altas e só percebi
que ela perdera a concentração quando o ruído da máquina que ela usava me
pareceu estranho. Olhei para cima a tempo de ver a expressão de horror em seu
rosto.
— Aposto que esse é um pente número 2, não número 7 — disse eu.
— Possivelmente — respondeu ela.
Tivemos uma crise de riso. Ao menos cabelo cresce de novo.
RELACIONAMENTOS
Ainda consigo ver Gemma ou Sarah sentadas no chão, tentando aprender a como
amarrar os sapatos. Cada uma delas tinha 5 ou 6 anos quando tentou pela
primeira vez, com os dedinhos tentando completar o que devia parecer uma
tarefa impossível. Até então, eu comprara sapatos com fivelas, fáceis de calçar,
afivelar e sair para o parque, o parquinho ou as lojas — para nossas muitas
aventuras. No entanto chegou a hora dos cadarços e dos pedidos para terem
sapatos iguais aos das amiguinhas, que já haviam dominado a arte de dar laços.
Como essa devia parecer uma habilidade de gente grande, não admira que
quisessem tentar. E então praticamos, uma vez atrás da outra. Eu jamais as
apressei para sairmos, nem pressionei suas mentes infantis enquanto elas ficavam
lá sentadas, determinadas a conseguir, segurando os cadarços nos dedos e
formando laços.
Eu conseguia ver a mim mesma naquela exata situação, sentada sobre o
carpete Axminster com detalhes vermelhos em frente à lareira. O fato de os
sapatos terem se desamarrado na escola e eu ter sido obrigada a pedir a ajuda da
professora enquanto os meninos faziam piadas cruéis ainda fazia meu rosto arder
de vergonha. Agora eu testemunhava a mesma determinação de aprender no
rosto das minhas meninas.
Comprei para elas sapatos coloridos de sola macia, com ilhoses e cadarços, e
passamos muitas horas praticando a arte de dar laços neles antes que, finalmente,
uma delas se levantasse, sorrindo e com os olhos brilhando, e passeasse pela sala
a fim de me mostrar o que finalmente conseguira fazer.
Depois disso, tal tarefa cotidiana deve ter lhes parecido óbvia. Não era esse
meu papel como mãe? Ajudá-las a encontrar um caminho através de cada
aparente beco sem saída da vida; equipá-las com as habilidades necessárias para
realizar cada tarefa presente na trajetória até a independência? Trazemos filhos ao
mundo para que eles possam nos deixar. Nós nutrimos os talentos, realizações e
habilidades deles até que possam voar para fora do ninho. Nós os encorajamos a
tentar coisas novas e os consolamos quando falham pela primeira vez,
fornecendo um santuário, nem que seja somente para o ego ferido. E então os
empurramos de volta para o mundo. Ou, ao menos, foi isso o que fiz.
No mapa da vida de minhas meninas não havia qualquer coisa que indicasse
que nossos respectivos papéis se inverteriam, que um dia elas teriam que cuidar
de mim — e até mesmo me ajudar a amarrar os sapatos. No entanto, a vida tem
um jeito engraçado de completar círculos.
Eu usava o mesmo par de tênis havia vinte anos. Depois de amarrados, eles já
haviam me levado aos Três Picos e a quilômetros de caminhadas por Lakeland e
outros terrenos. Nunca imaginei que chegaria o dia em que olharia para eles e
não teria ideia de como amarrá-los, o dia em que os cadarços ficariam
pendurados a esmo, tão confusos para meu cérebro quanto um novelo de lã
emaranhado. Eu me senti impotente e desamparada, e coube a Sarah se ajoelhar
e amarrá-los, como eu já havia feito por ela tantas vezes. Não era assim que eu
achava que seria ou como eu queria que fosse. Naquele pequeno gesto, senti que
coisas demais haviam mudado e não estava disposta àquilo. Não estava pronta
para minhas filhas serem minhas cuidadoras. Nem naquele momento, nem
nunca. Eu tinha que encontrar outra maneira.
A resposta, quando me ocorreu, foi simples: cadarços elásticos. Sarah os
trocou e, com um puxão de ambas as mãos, meus bons e velhos tênis estavam
calçados e justos como antes. Outro problema evitado. O seguinte poderia não
ser tão simples, mas minha independência foi mantida por mais um dia.
SOBRE OS CUIDADOS
Não se engane, o diagnóstico de demência não se estende a apenas uma pessoa.
Sim, a doença está no interior de nosso cérebro, mas o diagnóstico altera não
somente nossa vida, mas a de todos ao redor.
O processo diagnóstico pode ser solitário. Eu fui sozinha a todas as consultas,
mesmo quando a palavra “demência” já aparecia em documentos demais para que
pudesse ser evitada. Entretanto algo chegou até mim em meio ao choque do
diagnóstico final e me intuiu a perguntar à médica se ela poderia conversar
diretamente com minhas filhas. Deixei as meninas sozinhas no consultório,
parecendo tão pequenas como quando eram crianças, sabendo que teriam
perguntas que eu não saberia responder ou que elas talvez fossem gentis demais
para fazer na minha frente. Naquele momento — como qualquer pessoa que
acabou de ser diagnosticada —, sequer sabíamos quais eram as perguntas certas
a fazer, mas ali estava alguém que potencialmente tinha as respostas para o
mistério que nos aguardava. Era ao mesmo tempo um ponto de partida e uma
chance de dar as minhas filhas o tempo e o espaço para perguntar o que
precisassem saber. Eu estava ciente de que o diagnóstico era tão delas quanto
meu, que a doença mudaria a vida delas também.
Atualmente, o processo diagnóstico é clínico demais. As pessoas que olham
nosso cérebro e encontram conexões frouxas ou ausentes nos dispensam assim
que descobrem que a causa básica é uma doença progressiva. Não há consultas
de retorno nem estratégias de enfrentamento para o paciente ou para seus entes
queridos. Se eu tivesse sido diagnosticada com câncer, derrame ou diabetes, será
que teria sido dispensada pela médica? Por que não há apoio continuado após o
diagnóstico de uma doença cerebral?
Não há apoio social disponível — ironicamente, ainda menos para aqueles
com demência de início precoce. Contudo, há muitos maridos, mulheres, filhos
e filhas jogados no novo papel de “cuidador”, a quem o peso e as expectativas da
sociedade são impostos imediatamente, sem preparação, planejamento ou aviso
juntamente com esse diagnóstico que transforma a vida deles. Não há qualquer
respeito pelo fato de que esses 670 mil cuidadores familiares poupam ao Sistema
Nacional de Saúde estimados £11 bilhões todos os anos. Dado o envelhecimento
da população, seria razoável concluir que valeria a pena investir neles.
Tenho sido muito insistente sobre a falta de cuidados continuados para
aqueles que têm demência e sobre a diferença que faria em nossa vida se
fôssemos preparados para todas as eventualidades que a doença pode trazer —
muitas delas delineadas nestas páginas. O mesmo se aplica a nossos familiares e
amigos. Se soubessem o que pode acontecer ou se simplesmente houvesse
alguém a quem perguntar “Isso é normal?”, estariam mais bem preparados para
lidar com a situação. A solução é simples, e levaria a experiências melhores tanto
para as pessoas com demência quanto para as que cuidam delas.
Assim, quando a Dra. Sahdia Parveen, pesquisadora da Universidade de
Bradford, perguntou se eu gostaria de participar de um painel de pesquisa, fiquei
deliciada. O título de seu projeto era Caregiving HOPE Study [Estudo HOPE
sobre cuidadores] e analisava o impacto do diagnóstico de demência na família do
paciente. Frequentemente sou convidada para participar de projetos de pesquisa
— é uma paixão minha, porque há muito a ser aprendido sobre essa doença se
quisermos ter uma chance de superá-la —, mas o trabalho da Dra. Parveen me
pareceu especialmente atraente. Ela estava interessada na justaposição entre
aqueles que se sentem culturalmente obrigados a cuidar de um familiar, mas
talvez não estejam dispostos, e aqueles que estão dispostos, mas não preparados
para a realidade envolvida no cuidado. Parecia para mim que esses dois cenários
estavam fadados ao fracasso, então o que poderíamos fazer para entendê-los
melhor?
Ao longo dos anos, me deparei com muitos desses cenários na vida real,
casais nos quais a mulher se ressentia porque a demência do marido arruinara os
planos para a aposentadoria e filhas que queriam muito cuidar da mãe, mas
estavam tão exaustas tentando lidar com o escasso sistema de apoio que
prejudicavam a própria saúde. É muito raro encontrar aqueles que atingiram o
ponto de equilíbrio. No entanto, é uma alegria descobrir esses espaços de
inspiração. Uma das mulheres que conheci cuidava do marido e de duas crianças
pequenas, mas conseguira ter acesso a serviços de apoio que a ajudavam a ter
uma vida mais equilibrada. Todavia, a disponibilidade desse tipo de ajuda é muito
incerta.
De acordo com as estatísticas citadas no relatório da Dra. Parveen, no futuro
haverá sete vezes mais pessoas de comunidades da Ásia Meridional (vindas do
Paquistão, Bangladesh e Índia) vivendo com demência, ao passo que entre a
população britânica o número de pessoas com demência deverá dobrar. Um total
de 723 cuidadores completou o primeiro questionário; desses, 187 eram da Ásia
Meridional e 522 eram britânicos brancos. Embora ambas as demografias
estivessem igualmente dispostas a fornecer apoio prático, o relatório descobriu
que os cuidadores britânicos brancos estavam mais dispostos a fornecer apoio
emocional e cuidados de enfermagem. Significativamente, foram eles que se
mostraram mais confiantes e preparados para o papel. O relatório descobriu que
“o sentimento de obrigação cultural de fornecer cuidados não esteve associado a
quão dispostos os cuidadores estavam ou quão preparados se sentiam […] O
melhor preparo esteve associado a se sentir mais disposto a fornecer cuidados”.
O preparo também “esteve associado a mais recompensas e menos exaustão,
ansiedade e depressão para o cuidador”. Assim, embora os britânicos lidassem
com menos expectativas, eles se sentiam mais preparados para serem
cuidadores, talvez porque tivessem sido capazes de escolher essa função. Em
contrapartida, o alto nível de expectativa cultural não fez com que as pessoas se
sentissem mais preparadas para o papel requerido.
Muitos de nós só discutimos com os entes queridos nossas expectativas em
relação aos cuidados a serem recebidos ou ofertados quando chega a hora.
Contudo, talvez isso seja perfeitamente compreensível: estamos todos ocupados
com as próprias rotinas. Eu estava. No entanto, como podemos observar no
relatório da Dra. Parveen, quando as pessoas estão mais preparadas, se mostram
mais dispostas e, crucialmente, mais capazes de fornecer cuidados.
“É óbvio que me importo com minha mãe. Mas será que sou sua
cuidadora? Não tenho certeza. Ela disse não querer que eu preste
qualquer tipo de cuidado pessoal. Eu obviamente poderia fazer isso,
é parte do meu trabalho. Mas esse é um dos principais desejos dela,
e consigo entender o motivo. Em vez disso, temos um acordo: eu
preparo as refeições, dirijo quando ela precisa fazer compras, faço
parte da limpeza, ajudo com as finanças e agendo e compareço à
maioria das consultas médicas. Vamos até a costa e a outros lugares
bonitos para tirar fotos, algo que ela adora fazer, e eu a visito ou
faço videochamada com ela todos os dias, se não estiver
trabalhando. Não considero nenhuma dessas coisas como de fato
cuidar. Em alguns casos, é totalmente o oposto: muitos cuidadores
gostariam de fazer as coisas divertidas que fazemos juntas. De
qualquer modo, são coisas que faço frequentemente com outros
familiares e amigos. Para mim, isso é apenas sermos mãe e filha.
“Acho que a diferença é que provavelmente não me preocupo
com amigos e familiares como me preocupo com ela. O que mudou
é o que pode potencialmente acontecer, é a ansiedade básica com a
qual vivo todos os dias. Mas tive que aprender a não deixar que a
preocupação e o medo me paralisassem. Quando cuido de pacientes
no trabalho, sou muito favorável a correr riscos positivos para
melhorar a qualidade de vida. No entanto, no trabalho há uma
constante avaliação desses riscos, limites de tempo e políticas e
procedimentos que precisam estar no lugar a fim de mantermos os
pacientes seguros. Como filha de uma mulher fervorosamente
independente que não aceita que lhe digam o que fazer, essa
abordagem não é adequada, então tenho que deixar minha
personalidade profissional para trás, porque, se minha mãe sequer
desconfiar que essa personalidade está presente, ela me mandará
embora.
“Assim, tive que parar de me preocupar com ela. Fomos à Itália
por quatro dias para uma conferência sobre demência e tivemos
algum tempo para passear. Certa manhã, fomos acompanhadas de
um guia para uma breve caminhada por um terreno rochoso até um
mirante com uma vista espetacular. O modo de andar da minha mãe
foi afetado pela demência e ela apresenta maior risco de queda. Em
certo momento, ela tropeçou, mas se endireitou sozinha e
continuou caminhando. Nosso guia comentou sobre quão relaxada
eu parecia e como não tentava agarrar minha mãe ao menor
movimento súbito. Mas sei que meu trabalho como filha é permitir
que ela permaneça independente e, para isso, tenho que abrir mão
do medo de que algo aconteça. Eu costumava me preocupar
frequentemente com o que aconteceria se ela sofresse uma fratura,
batesse a cabeça ou algo pior. Mas, se eu tivesse ficado ao lado dela o
tempo todo e a enrolado em uma camada de algodão, ela não teria
se divertido naquela caminhada. Então, agora, simplesmente acho
que o que tiver que acontecer vai acontecer. Desde que haja alegria,
vale a pena. Mas devo admitir que, às vezes, caminho na frente dela
para não ver seus pequenos tropeços.
“Ouvi alguns filhos e filhas falarem sobre as experiências deles e é
como se os papéis tivessem sido completamente invertidos, como
se, como filhos, eles tivessem assumido os papéis de pai e mãe. Não
me sinto assim. Certamente tive que me tornar mais responsável e
mais disponível para minha mãe, mas faço isso para ajudá-la a viver
de maneira independente, não para que ela dependa de mim. Para
qualquer um que esteja iniciando essa jornada, sugiro que se
contenha e não se apresse em ajudar. Tive que refletir muito para
chegar a esse ponto, não foi algo que me ocorreu naturalmente.
Quando você ama alguém e sabe que pode ajudar, quer sair
correndo e fazer algo. Mas a coisa mais amorosa que pode fazer é
deixar que a pessoa mantenha seu senso de si mesma e permitir que
aja por conta própria.”
“Wendy, quero começar dizendo que espero ansiosa por seus posts
todos os dias. Acho que minha mãe está no início da demência, mas,
ao contrário de você, ela não quer fazer um teste de memória.
Quero compreender como é ter demência, e já fui capaz de usar as
coisas que você diz com minha mãe. Por favor, continue escrevendo,
seus posts são reconfortantes e inspiradores.”
“Obrigada, Wendy. Eu me sinto mais forte e informada. Meu
marido acabou de ser diagnosticado com dano cognitivo e sei um
pouco mais sobre a doença agora. Ela é muito difícil, tanto para o
paciente quanto para quem cuida dele.”
“Wendy, meu pai e meus dois irmãos têm demência. No entanto,
eu e meu marido conversamos sobre as coisas que você escreve e
agora sinto menos medo do futuro se um de nós for diagnosticado.
Você não minimiza a demência, mas compartilha princípios sensatos
de sobrevivência e até mesmo momentos de alegria.”
“Meu marido tem Alzheimer em estado avançado e ler sobre sua
jornada tem sido útil para entender o progresso da doença dele.”
Quando minha linguagem falada começou a falhar, descobri que o blog era
uma fuga dos obstáculos em minha mente. Por alguma razão, a frustração com as
palavras não existe entre minha mente e a página. No teclado, não hesito em
busca de uma frase; de algum modo, meus dedos dançando pelas teclas fazem
com que as palavras me ocorram com mais fluência. Houve um período, logo no
início, em que fiquei alguns dias sem digitar. Pensei que a pausa seria bem-vinda
para minhas mãos, mas, quando retornei ao teclado, meus dedos já não sabiam o
que fazer. Olhei para a página em branco e tentei digitar: nada do que escrevi
fazia sentido. Letras surgiram, mas não em qualquer ordem reconhecível. Fiquei
aterrorizada por ter perdido uma habilidade que é capaz de atravessar a névoa, e,
desde então, nunca mais fiquei um único dia sem digitar. Isso se tornou minha
fuga da demência: uma parte do meu dia na qual olho para a tela e vejo
normalidade me encarando de volta. É uma liberdade diária que é capaz de
superar meu cérebro debilitado, como se minha matéria cinzenta estivesse
usando estradas rurais para evitar o engarrafamento nas rodovias principais. A
hesitação verbal pode ser frustrante, mas digitar faz com que eu me sinta calma,
fluente e mais próxima de meus pensamentos e sentimentos. Se não tivesse a
habilidade de digitar, eu estaria perdida, presa na hesitação e na inabilidade de
me expressar.
Eu entendo que deve ser surpreendente, para os leitores de meu blog,
conhecer-me pessoalmente se eu não estiver lendo um roteiro. Eles
provavelmente esperam alguém muito mais eloquente do que sou em carne e
osso. Também há aqueles que acham que pessoas como eu — ativistas da
demência, por assim dizer — criam uma falsa impressão sobre o que a doença
realmente representa. Alguns nomes eminentes chegaram ao ponto de usar as
redes sociais para expressar dúvidas sobre nosso diagnóstico, e essa agressão
pode nos magoar e ser devastadora para nossa autoconfiança. Qualquer um sabe
que, quando se expõe para falar sobre um tópico, você também está se expondo
para certa quantidade de criticismo. Eu me lembro de um dos primeiros eventos
aos quais compareci, no qual um pequeno grupo de pessoas discutia a demência
e o que ela significava. Isso ocorreu logo após meu diagnóstico, e na época eu
falava mais eloquentemente que agora. Contudo, quando terminei de falar, um
homem disse que a mãe dele tinha “demência de verdade” e olhou para mim
como se eu estivesse fingindo — esquecendo, como as pessoas tendem a fazer,
que essa doença tem um início e um meio, além de um fim.
Enfrentei muitas críticas desse tipo desde meu diagnóstico. Elas ainda me
magoam nos dias ruins, e tenho vontade de esconder essa parte de mim que
digita, de deixar de usá-la e dar aos críticos o que eles querem. Rapidamente, no
entanto, esses comentários se tornam insignificantes, vencidos pelo meu amor
por digitar e por minha necessidade de continuar digitando.
As pessoas não levam em consideração quanto custa para mim o simples ato
de me forçar a tentar. Durante as palestras, elas frequentemente dizem “Você
está ótima” quando veem como consigo me comunicar sentada lá no palco, mas
desconhecem a terrível dor de cabeça que sinto por vários dias após o evento,
simplesmente pelo esforço de estar presente, ou todo o planejamento necessário
para chegar até lá, só para começar. Elas parecem pensar que simplesmente
compareço, mas, na realidade, o planejamento começa semanas antes: traçar
minha rota e imprimir imagens de pontos de referência que possa encontrar pelo
caminho, a fim de que sejam mais familiares quando eu estiver passando por eles.
As pessoas não levam em consideração a energia despendida por mim para
chegar até elas. Não me veem encolhida na cama no dia seguinte, com a mente
incapaz de saber sequer em que dia da semana estamos, simplesmente porque
estou exaurida. No entanto, que escolha tenho? Ficar em casa e não falar? Isso
faria as pessoas se sentirem melhor? Elas prefeririam que “especialistas” falassem
sobre a doença que devasta meu cérebro, em vez de ouvir a mim?
São esses mesmos “especialistas” que questionam se nosso diagnóstico inicial
foi correto quando não seguimos a trajetória tradicional da doença. Eu me
lembro de uma amiga sendo tão afetada pela dúvida e pelos comentários nocivos
que jamais voltou ao Twitter. Outra voltou ao médico e pediu por uma segunda
opinião. Ela foi tão perseguida nas redes sociais que se perguntou se seu cérebro
não estaria lhe pregando peças. Tanto os recursos do Sistema Nacional de Saúde
quanto a própria energia emocional dela foram desperdiçados nesse exercício,
que, obviamente, só poderia produzir o mesmo resultado. Não permiti que a
perseguição me fizesse passar por isso. O processo foi suficientemente trágico da
primeira vez — por que eu deveria passar por ele novamente a fim de satisfazer
a curiosidade e a descrença de alguém? Contudo, sei que ser capaz de digitar e
escrever trabalha contra mim nesse sentido, pois fornece às pessoas uma visão
distorcida da minha vida. Talvez, à própria maneira, esse seja um presente da
demência, e, considerando que ela oferece tão poucos, não o perderei.
Frequentemente, fico tão surpresa quanto qualquer um com a dança de meus
dedos no teclado e com as frases que eles produzem. Há pouca — se alguma —
pesquisa nessa área para explicar por que uma parte do meu cérebro ainda
funciona quando tantas outras estão falhando. Ninguém é capaz de me oferecer
uma explicação.
Talvez, se os profissionais se concentrassem desde o início no que podemos
fazer, nossa vida fosse mais esperançosa depois do diagnóstico. Eles
constantemente veem os pacientes nos últimos estágios e acham difícil
compreender os que estão na fase inicial. Muitos nos julgam incorretamente por
causa dessa falta de conhecimento, o que pode fazer com que duvidem do
diagnóstico. Constantemente dizemos: “Viva minha vida durante 24 horas e
mudará de ideia.” Entretanto, as pessoas não podem fazer isso. Elas nunca verão
como nossa vida realmente é, nosso cotidiano com a demência, mas, enquanto
eu for capaz, continuarei a escrever sobre isso.
Minha palavra menos favorita é “sofrer”, mas, infelizmente, ela é a mais usada
para descrever alguém que vive com a demência. Sempre combato isso,
particularmente quando estou falando para enfermeiras em treinamento
destinadas a trabalhar com pessoas que vivem com a doença. “Parece que estou
sofrendo?”, pergunto, e elas precisam admitir que não. Se você fosse descrito
dessa maneira dia após dia, poderia começar a acreditar nisso.
Eis o que meus amigos têm a dizer sobre o uso da linguagem e como ela os
afeta:
Na verdade, eu uso, sim, o Twitter para falar dos dias ruins, pois, se não
fizermos isso, ficaremos expostos a mais críticas dizendo que não mostramos
todos os lados da demência. Também não seria justo com aqueles que têm mais
dias ruins que bons, porque, se não formos honestos, eles podem começar a se
perguntar por que têm tantos dias ruins. Também já usei o Twitter para obter
orientação durante minhas viagens. Certa vez, minhas filhas não estavam
disponíveis quando um trem foi cancelado e, em meu pânico, recorri ao Twitter.
Meus adoráveis seguidores ofereceram sugestões que me ajudaram a encontrar o
caminho para casa.
O relatório da Universidade de Exeter concluiu que o acesso a comunidades
on-line como o Twitter não somente fornece apoio aos que vivem com a
doença, como também pode “ajudar a restabelecer um senso de identidade entre
as pessoas com demência, fornecer conexões sociais e, potencialmente, reduzir
o sentimento de isolamento e solidão que frequentemente se segue ao
diagnóstico”.
Contudo, para isso, as empresas de tecnologia precisam ser mais inclusivas ao
construir plataformas, por exemplo, assegurando-se de que a navegação seja fácil
para aqueles com deficiências, sem complicados sistemas de segurança. As
empresas de tecnologia fazem consultas ao público, mas, usualmente, não às
pessoas com demência. Algo tão simples quanto um vídeo com instruções,
imagens ou um arquivo de áudio ajudaria as pessoas a encontrar muito mais
facilmente o caminho nessas complicadas páginas da web. Ao criar sites para
crianças, desenvolvedores os fazem simples e intuitivos — por que não fazer o
mesmo para adultos?
O Zoom tem sido outra plataforma que permite que eu me mantenha em
contato com meus colegas. Toda semana, temos uma reunião só de mulheres do
aconchego de nossa sala de estar, que nos fornece conforto e apoio. Nem sempre
estamos com vontade de conversar, mas mesmo aquelas que estão tendo um dia
enevoado podem entrar e ser quem são em uma comunidade que sabe
exatamente como são esses dias ruins. Uma amiga me disse outro dia que,
mesmo quando se sente exausta demais para participar e decide só ouvir, ela
logo está rindo conosco, e o riso realmente é o melhor remédio — para
qualquer doença.
SOBRE TECNOLOGIA
Como destacado, a tecnologia para pessoas com demência precisa ser adequada
ao propósito e fácil de usar e instalar, do contrário uma boa ideia rapidamente se
torna uma frustração. Eu me lembro de minha amiga Agnes contando como uma
empresa foi até a casa do marido com demência instalar uma “linha de
emergência”, falando sem parar sobre todas as coisas que ele precisava saber.
Quando os instaladores foram embora cinco minutos depois, ele já havia se
esquecido de tudo e não sabia como usar a nova tecnologia que recebera.
Meu iPad e meu iPhone são minha porta para o mundo, companheiros
constantes que estão sempre a meu lado. Crio lembretes facilmente em meu
telefone quando preciso me lembrar de algo, e os alarmes soam de modo
constante, alguns diariamente (como me lembrar de comer), outros uma única
vez (como me lembrar de contatar um amigo que não estava se sentindo bem).
Se me lembro de algo que preciso fazer e estou no meio de uma caminhada,
simplesmente crio um lembrete em meu telefone para quando chegar em casa.
De outro modo, a ideia se perderia entre meus passos.
A tecnologia se provou um presente dos céus também para minhas filhas, que
puderam parar de se preocupar com minha localização quando instalaram um
rastreador em meu telefone — ele funciona para todas nós, pois também me
informa onde estou.
Tenho vários aplicativos que tornam minha vida mais calma e fácil de lidar.
Por exemplo, graças ao aplicativo de trens que uso, meu amor pelas viagens
permaneceu possível, pois o aplicativo envia alertas se a conexão se atrasar e
informa em que plataforma preciso esperar. Meu aplicativo do metrô de Londres
me diz que linha e estação devo procurar, sem que eu precise analisar, de olhos
arregalados, todas aquelas cores se retorcendo no mapa.
A Alexa é outra grande amiga. Ela me lembra de tomar meus remédios e
muito mais. Quando comecei a cair da escada, descobri que, com um grito,
posso pedir a Alexa para acender as luzes do andar de cima. Posso até mesmo
pedir que ela ligue a chaleira para mim do conforto de minha cama. Desço as
escadas pela manhã e já ouço o chiar da água fervendo. Como muitas de minhas
outras amigas, também temos problemas de comunicação: às vezes, ela não
entende meus comandos gaguejados quando peço para ligar a chaleira e, em vez
disso, fornece a previsão do tempo.
— Eu mesma vou ligar a chaleira, está bem? — retruco, revirando os olhos.
Em resposta, ela resmunga algo sobre não entender e continuamos andando
em círculos até alguém desistir — normalmente eu.
Muitos de meus amigos também têm a Alexa e a consideram útil para lidar
com a vida com demência. Descobrimos, porém, que não é muito bom ficarmos
elogiando-a no meio de uma chamada do Zoom. Certo dia, enquanto falávamos
das vantagens que ela oferecia, Alexa ouviu o nome dela e, subitamente, houve
caos quando todas as estações começaram a falar ao mesmo tempo — a minha
começou a tocar a “Sinfonia nº 5”, de Beethoven.
Foi tão engraçado quando começamos a gritar “Alexa, parar!” para nossas
respectivas estações e então caímos na risada. É bem verdade que a tecnologia
pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição.
AMBIENTE
Se o sol está brilhando e não tenho nada melhor para fazer, posso andar durante
horas. Segundo meu pedômetro, já cheguei a dar 28 mil passos no entorno de
meu vilarejo. Muitas rotas levam da minha porta aos campos ao redor, mas
nenhuma leva para muito longe de casa — ou pelo menos era isso o que eu
pensava.
Sou convidada com frequência a testar produtos que aqueles que desejam
adentrar no “mercado da demência” acreditam que podem ser úteis. Concordo
em testá-los com uma condição: sempre escrevo uma resenha sincera, e foi
assim que me vi testando um novo relógio de rastreamento.
O relógio chegou, muito elegante e, infelizmente para mim, muito confuso.
Pedi que Sarah me ajudasse, mas até mesmo ela se perdeu navegando pelo
website indicado. Mesmo assim, perseveramos, especialmente porque Sarah
também se beneficiaria, já que seria ela a rastrear minha posição, fornecida pelo
relógio. Ela nunca havia tido problemas para me acompanhar com o aplicativo
que usamos em meu celular, mas imaginamos que esse novo teria ainda mais
funcionalidades. Tudo pronto, saí para caminhar com ele.
A mensagem de texto chegou imediatamente: O que você está fazendo em
Southampton, mãe?
Hum? Estou em Birmingham, respondi.
Achamos que se tratava de um bug — um desvio de 240 quilômetros.
No entanto, os contratempos continuaram. De acordo com o relógio, fui
vista em todos os lugares da região, enquanto Sarah, em casa, jogava “Onde está
Wendy?”.
Decidi contatar a empresa. Eles me enviaram um novo relógio e até se deram
ao trabalho de configurá-lo — o que não é muito útil se você é o consumidor
final, mas eu e Sarah ficamos felizes por não ter que refazer o longo
procedimento.
Saí para caminhar novamente, enquanto Sarah acompanhava todos os meus
movimentos. Imagine a surpresa dela quando me localizou em Yangzhou, na
China. Sempre quis visitar a China, mas nunca achei que meu passe de ônibus
me levaria até lá. Além disso, estava em um local muito menos glamouroso:
Milton Keynes.
Sarah continuou a observar de casa enquanto eu fazia minha turnê asiática.
O que você está fazendo no Japão?, perguntou ela em uma mensagem de texto
algumas semanas depois.
Foi quando decidimos que era hora de desistir. Permanecerei nas terras em
torno de meu vilarejo. Elas são muito menos exóticas, mas, ao menos, sei como
voltar para casa.
SOBRE AS ESTAÇÕES
O que a natureza pode nos ensinar sobre como lidar com a mudança? Em
tempos difíceis, sempre há lições a ser aprendidas no mundo a nossa volta,
mesmo que seja somente em nosso jardim. Não há o que a natureza não saiba
sobre a vida e a morte, o caos e a ordem, a luz e a escuridão. Vejo isso todas as
manhãs e tardes durante minhas caminhadas pelo vilarejo. Vejo que o suceder
das estações é necessário, um lembrete de que não há qualquer outra coisa mais
natural que a mudança, e ela não é algo que se deva temer ou evitar, nem
perguntar Por que comigo?, já que a Mãe Natureza não faz qualquer discriminação
entre animais, plantas e árvores. Em vez disso, é algo que precisamos encarar,
respeitar, aceitar. Às vezes, com essa doença, só tenho por companhia as
estações, lembrando-me de que as pequenas e incrementais batalhas que venço
contra a demência são tão importantes quanto a minúscula bolota que cai da
árvore e cresce até se transformar em carvalho.
Era verão quando fui diagnosticada, mas poderíamos muito bem estar no
meio do inverno. Eu só conseguia ver as metafóricas folhas de minha árvore
caindo, acreditando que tudo o que me aguardava eram noites escuras e dias
frios, imóveis e monocromáticos. Sei que algumas pessoas permanecem na
escuridão desse inverno, resignadas a não ver sinais de primavera após o
diagnóstico de uma doença degenerativa. Para os animais, o inverno é uma época
de descanso e recuperação, de hibernação, de conservar e recarregar energias —
talvez seja isso que essas pessoas devastadas fazem ao recuar para o interior de si
mesmas. Fiz isso por algum tempo. Contudo, mesmo agora, em um mundo tão
frenético e agitado, há momentos, em qualquer dia, que me lembram de
descansar, desacelerar e tornar a vida menos complicada, a fim de dar a meu
cérebro uma chance de se recuperar.
Quando a neve cobre o solo, há beleza a ser encontrada na simplicidade do
mundo; para aqueles que vivem com a demência, um cenário descomplicado em
preto e branco é mais fácil de seguir, quase como é com os bebês. As árvores
sem folhas não precisam ser vistas como feias se paramos para admirar a beleza
dos galhos. O inverno é uma chance de, ao anoitecer, ver a coruja-das-neves
pousar na pastagem em frente à janela da sala sem as folhas usuais para camuflá-
la. Assim como no caso da coruja, o limite temporal imposto àqueles que vivem
com uma doença degenerativa implica a necessidade de encontrar beleza na mais
rigorosa das estações, no mais vazio dos lugares, no agora. O inverno é tempo
de fechar a porta, de aconchegar-se no calor, de repousar e rejuvenescer, algo
que todos nós precisamos nos lembrar de fazer. O inverno é uma chance de
baixar o volume do mundo, assim como a neve parece fazer ao cair, de retornar
ao básico.
Na primavera, fico esperando os carneirinhos encherem os campos em torno
do vilarejo ou os patinhos darem seus primeiros e hesitantes mergulhos no lago.
Há, obviamente, o risco que vem com a mudança — para os patinhos, pode ser
a garça observando das pedras; para mim, pode ser uma calçada escorregadia na
qual meus sapatos não conseguem se firmar ou um galho empurrado que retorna
com força e me deixa com um olho roxo. Eu poderia evitar totalmente esses
perigos, poderia ficar dentro de casa tendo somente a doença por companhia e
esperar por dias mais ensolarados, mas então perderia muitas coisas, como os
jacintos, os açafrões e os narcisos que cobrem a margem do rio em frente a
minha casa. A primavera é uma lembrança de que sempre há um novo amanhã,
uma nova semana, um novo ano. Que um dia enevoado pode ser seguido por um
dia mais claro, que a esperança ainda floresce depois que a vida muda, mesmo
que pareça diferente de antes.
Na primavera, planto sementes em vasos e os coloco no peitoril das janelas,
para os dias em que sair for impossível, quando a névoa descer e desfocar o
mundo e o único alívio da demência for me enrolar no edredom e observar o
topo das árvores balançar através da janela do quarto. Contudo, mesmo nesses
dias, há esperança em minhas sementeiras, minúsculos brotinhos verdes, uma
lembrança de que a natureza continua o curso, de que estará esperando quando
eu estiver pronta para reemergir. Penso nessas mesmas sementes quando dou
palestras ou escrevo livros, esperando que as ideias que planto na mente das
pessoas germinem e sejam polinizadas ao serem compartilhadas com outros.
A natureza faz parte de nossa linguagem cotidiana. As pessoas
frequentemente usam o clima para descrever humores: estar com nuvens
cinzentas sobre a cabeça, chorar uma chuva de lágrimas, sentir-se radiante. Dias
passados sob o sol são preferíveis a dias passados sob uma nuvem. O verão,
porém, é a lembrança de que, mesmo sob o sol, tendemos a criar sombra. A
natureza sabe que não podemos ter dias bons sem dias ruins, que a vida — e o
ato de vivê-la — é uma mistura perfeita de ambos. As plantas precisam de luz, e
também de sombra e água. Assim como os seres humanos. No verão, quando
caminho pelos campos tostados pelo sol, sei que precisamos de dias chuvosos
para reabastecer, recarregar, rejuvenescer. O controle sobre quando eles
ocorrem e quão frequentes são — algo de que a natureza nos lembra todos os
dias — é simplesmente uma ilusão.
Para mim, o verão é um estado de ser, não de fazer, especialmente nos dias
em que a doença vence. É preciso respeitar a natureza. Eu me lembro de
antigamente estar sentada na praia de Blackpool, sem sapatos, e, a distância, ver
a equipe do barco salva-vidas respondendo a um pedido de ajuda. Os salva-vidas
sabem que as ondas são fortes demais para a maioria das pessoas; eles
aprenderam a respeitá-las através de amargas experiências; trabalham em
conjunto com a maré, não contra ela. O mesmo acontece conosco ao lidar com a
demência. Eu escolho seguir com a maré porque, se lutar contra ela, sei que vou
me afogar.
As pessoas temem o outono pelo que pode vir em seguida, mas ainda assim
ele é abundante em cores e frutas. O outono é uma época de fins, sim. De dizer
adeus ao alegre verão, às noites passadas no gramado, ao sol que se demora em
desaparecer por trás de nossa cabeça. O outono é, por natureza, um lento
apagar das luzes. Poderia haver melhor representação sazonal de uma doença
como a demência? Contudo, fixar-se apenas no que está por vir, como eu disse
muitas vezes, é um desperdício de tudo o que a natureza oferece agora — por
que focar o inverno quando ainda há um veranico tardio para aproveitar?
O alaranjado e o amarelo das últimas folhas nas árvores; o milagre da vida
vegetal se aprontando para sobreviver ao inverno; os animais e o instinto tão
intrínseco de planejar para os tempos mais difíceis que estão por vir. Há tanto
que os seres humanos podem aprender com o outono, sobre a mudança e como
se preparar para ela. Quando as folhas começam a cair das árvores e tenho
novamente aquele primeiro vislumbre da coruja-das-neves, me lembro de tudo
que o inverno tem a oferecer.
SOBRE CAMINHAR
Será que eu notava as mudanças sazonais antes que a vida me impusesse a
demência, lembrando-me de que só tenho garantido o momento atual? Minhas
caminhadas diárias são meus momentos de atenção plena; com a câmera
pendurada no pescoço, observo o ambiente que me cerca em busca de algo para
fotografar — algo que poderia se perder em segundos, se eu não o capturasse
com a câmera digital.
Tenho a sorte de viver em um vilarejo e estar cercada pela natureza e toda a
beleza característica. Vim morar no campo um ou dois anos após o diagnóstico,
quando os sons e os perigos da cidade grande se tornaram demais para mim. O
que me atraiu para a casa na qual vivo agora foi a imensa janela da sala que
enquadra a pastagem do outro lado da estrada. Fiquei fascinada por ser
instintivamente atraída para perto da natureza, como se entendesse que, nos dias
ruins que me aguardavam, ela seria minha única companhia. E não estou sozinha
nisso. Em um relatório de 2018, “Overjoyed That I Can Go Outside” [Muito
feliz por poder ir lá fora], os participantes falaram sobre como serem capazes de
caminhar pela vizinhança não somente lhes dava uma sensação de liberdade e
empoderamento, como também fazia com que sentissem estar mantendo a
doença sob controle. Caminhar definitivamente me fornece propósito, e ter um
propósito mantém meu cérebro funcionando. Eu não caminho a esmo, pois
estou sempre atenta ao cenário. O contato social proporcionado pelas
caminhadas e os próprios mecanismos que preciso ativar para realizá-las mantêm
meu cérebro ativo. Não consigo caminhar com alguém e fotografar ao mesmo
tempo — posso caminhar com alguém ou caminhar sozinha e fotografar. Mesmo
que eu esteja caminhando com alguém, tendo a parar se estivermos
conversando, pois só consigo fazer uma coisa de cada vez.
No relatório de 2018, os participantes falaram sobre o que a natureza
significa para eles, muitos admitindo que, como no meu caso, a mudança de
estações fornece propósito: “Manter uma conexão com a natureza foi sentido
como restaurador, e os participantes compartilharam da mesma empolgação ao
ver animais ou o prazer de observar flores durante as atividades cotidianas pela
vizinhança.” Antes da demência, eu adorava caminhar e admirar a beleza do
cenário, mas na época era tudo uma questão de distância: quanto eu conseguia
caminhar, em vez dos detalhes que me cercavam. Agora caminho pelas mesmas
terras e trilhas todas as vezes e nunca me canso. Vejo algo diferente todos os
dias: os primeiros flocos de neve no vilarejo; os padrões criados pelas nuvens; as
diferentes cores do céu. Assim como eu, parece que os participantes do estudo
obtêm muito prazer no contato com a natureza: “A mudança das estações
simbolizou esperança e a chance de rejuvenescer para alguns participantes
quando começaram a notar os primeiros sinais de primavera após um longo
inverno”, disse o relatório. “O tempo passado do lado de fora, em contato com a
natureza, foi combinado a práticas restauradoras como caminhar, ajudando os
participantes a administrar a vida com demência.”
Há muito foco no hábito que aqueles que vivem com demência têm de
“vaguear”. Sempre me surpreende que somente as pessoas com demência
“vagueiem”. Antes do diagnóstico, elas somente “caminhavam”. As pessoas com
demência têm um propósito, mesmo que ele não seja óbvio para os outros.
Caminhar talvez seja a única coisa que podem fazer para preservar a pouca
autonomia que têm, como explicaram os participantes do estudo:
Quando o novo shopping center de Leeds foi inaugurado, fiquei animada para
conhecê-lo. A loja-âncora era a John Lewis, e fui imediatamente transportada
para a que costumava frequentar com minha mãe quando pequena. Havia um
restaurante no interior da loja e toda a equipe usava os uniformes das garçonetes
de antigamente, com chapéus brancos de babado combinando com aventais
engomados, servindo chá em xícaras e pires de cerâmica com um brilhante bule
de prata. Para mim, naquela época, era como tomar chá no Ritz.
Gemma me levou de carro até lá e fomos para o edifício grande e brilhante
com portas automáticas. Foi então que parei subitamente. Gemma entrou, mas
eu permaneci na porta. O piso de mármore era um oceano preto e polido com
espirais cinzentas que pareciam ondas. Minha cabeça começou a rodar e senti
náusea antes mesmo de pisar nele. Gemma olhou para trás e me viu lá parada.
— O piso parece água — disse eu, e ela segurou meu braço enquanto eu
dava um hesitante passo adiante. Conforme caminhávamos, tive que olhar para o
teto para não sentir enjoo, deixando Gemma nos guiar até nosso destino, com
sorte longe daquele piso horrível. Tenho certeza de que ele é esteticamente
agradável para muitos, mas, para mim — e para outros com demência —, é um
pesadelo total para lidar. Essa parece uma coisa tão simples de arquitetos e
especialistas em decoração terem em mente a fim de tornarem a experiência
mais inclusiva. O piso não me impediu naquela ocasião, mas me encheu de
terror quanto à perspectiva de visitas futuras.
Muitas vezes, perguntaram minha opinião sobre edifícios projetados para
pessoas vivendo com demência, e sempre fico surpresa com quão pequenas são
as mudanças que fazem uma grande diferença. Como diz o Relatório Mundial
sobre Alzheimer de 2020: “O bom design não é mais caro que o mau design, e
há substancial qualidade operacional e qualidade de vida a ser ganhas com ele.”
Em 2016, me pediram para dar uma olhada no novo edifício do East Riding
Community Hospital, em Beverley, Yorkshire, o qual os administradores
esperavam tornar mais inclusivo para as pessoas com demência. Afinal, muitos
de nós usaríamos o hospital. A equipe com a qual o avaliei se dividiu em pares a
fim de não sermos influenciados uns pelos outros, mas todos encontramos
problemas similares. O vidro nas portas principais era muito elegante, mas,
como era escuro, não permitia ver o interior e fazia com que o hospital
parecesse fechado. A sinalização era o maior problema: muitos sinais eram
prateados contra um fundo pálido, indistinguíveis para alguém com demência.
Placas que fossem de um azul vívido com letras brancas em negrito funcionariam
muito melhor. A maior parte dos problemas se devia à falta de cores: tudo era
bege, todas as portas estavam fechadas, muitas da mesma cor que as paredes,
sem sinalizações brilhantes para informar o que ou quem estava do outro lado.
Algo tão simples quanto desenhos de uma escola local alegrariam o lugar, ou
então sinalização de várias cores no piso, dependendo de qual parte do hospital
fosse preciso acessar. Essas coisas não custariam muito, mas fariam toda a
diferença para alguém com demência que estivesse frequentando o hospital. O
problema é que frequentemente somos chamados a opinar quando o local já foi
inaugurado e sai muito caro modificar as coisas. As pessoas com demência
precisam estar envolvidas desde o projeto.
O relatório “Overjoyed That I Can Go Outside”, já mencionado, destacou a
importância da disponibilidade de lugares para se sentar para pessoas com
demência. “Bancos têm um importante papel a desempenhar para além do
repouso durante uma caminhada; eles facilitam formas mais oportunas de
interação social e, como resultado, encorajam as pessoas a sair de casa.” Não
consigo andar tanto quanto antes, mas temos muitos bancos espalhados pelo
vilarejo, então sei que sempre haverá um lugar para eu me sentar. Quando estou
sentada, as pessoas parecem mais dispostas a se aproximar e conversar,
exatamente como disse o relatório, ou perguntar se estou bem. Uma vizinha saiu
de casa para perguntar se eu estava bem ao me ver sentada no banco em frente à
janela dela.
Eu me lembro de uma vez ir visitar um hospital para ajudar a torná-lo mais
amigável para as pessoas com demência. Os administradores haviam exposto
vívidas obras de arte nos corredores, o que era maravilhoso, mas não havia lugar
para se sentar e admirá-las. Sugeri que instalassem bancos de frente para elas.
Minha cidadezinha é bem pequena, mas, certo ano, o conselho municipal
decidiu construir um centro comercial a curta distância da rua principal e teve a
genial ideia de colocar grandes círculos nas calçadas, a fim de indicar o caminho
tanto para as novas lojas quanto para a estação de trem. Aqueles de nós com
demência frequentemente caminham olhando para baixo, porque não confiamos
em nossos pés, então os círculos funcionaram realmente bem.
Uma clínica ganhou muitos pontos comigo por causa do uso da cor para
definir diferentes áreas, mas perdeu pontos pela grande escadaria, que
frequentemente as pessoas vivendo com demência enxergam se movimentando,
e pelo carpete decorativo da recepção, que parecia estar vivo. Como eu disse a
eles, porém, uma equipe amigável e grandes sorrisos compensam muita coisa.
Martin Quirke e os colegas escreveram sobre isso em um relatório sobre
comunidades capacitadoras de pessoas com demência. Ele disse que “um
ambiente socialmente solidário pode compensar um ambiente fisicamente
menos solidário”. Seria ótimo trabalharmos para que as duas coisas estivessem
presentes, a física e a social, mas os seres humanos realmente são o fator mais
significativo.
SOBRE A VIZINHANÇA
Onde se vive é de imensa importância quando se tem demência. Não acho que
as pessoas prestem atenção o suficiente ao trauma que uma mudança pode causar
quando se vive com uma doença como a demência. Elas, assim como eu o fiz,
pensam que se mudar será como sempre foi. Tive sorte no ambiente que
escolhi, porque meu vilarejo tem acesso a muitos espaços verdes e abertos para
minhas valiosas caminhadas. A casa de três quartos talvez não tenha sido a
melhor decisão: ela é grande demais para mim. Uns amigos meus se mudaram
para um apartamento acreditando que seria melhor, mas o barulho dos vizinhos
que ultrapassava as paredes e o piso foi tão desorientador que tiveram que pedir
ao conselho para que se mudassem para um bangalô. Ao escolher um novo
ambiente após o diagnóstico de demência, vale a pena considerar o acesso a
espaços abertos e meios de transporte e prestar atenção no que está além das
janelas. Nunca fecho as cortinas — sinto-me isolada e sozinha se fizer isso, presa
do lado de dentro —, então elas estão sempre abertas e os vizinhos acenam
quando passam.
O relatório de 2019 da Universidade de Cambridge enfatizou a importância
de janelas com vista para a rua que fazem o morador se sentir parte da
comunidade, mesmo que de dentro de casa, e falou sobre como passamos a
conhecer os sinais e sons diários de nossa vizinhança.
Ajustar o ambiente residencial para que você possa olhar para a rua pela janela
é uma maneira inestimável de adaptar sua casa. Já falei sobre minha alegria de
olhar pela janela, ver a vida passando, acenar para as pessoas e vê-las acenando
de volta. O relatório de Ash Osborne indica “o importante efeito da sensação de
conexão com a vizinhança”, algo que uma simples janela para observar o lado de
fora pode proporcionar.
O ruído é outro fator que deve ser levado em consideração. O barulho
representa o mesmo desafio para as pessoas com demência que as escadas para os
cadeirantes. Assim, quanto menos estímulo auditivo — ou melhor, interferência
auditiva —, mais amigável é o ambiente. Foi por isso que coloquei a máquina de
lavar no solário, para que eu possa fechar a porta e não ouvir o barulho que ela
faz ao centrifugar. Contudo, ela toca uma musiquinha agradável quando finaliza o
serviço, a fim de sinalizar que a roupa está pronta para ser pendurada — essa
musiquinha não é tão dolorosa para mim. Há uma casa em meu vilarejo com um
aparelho de ar-condicionado que me incomoda tanto que evito ir àquela área
desde que ele foi instalado. É incrível como algo pode ser tão comum para uma
pessoa e tão intrusivo para outra. Carpetes e cortinas podem ser uma excelente
maneira de absorver o som, ao contrário de pisos laminados e persianas de
madeira.
Não somos agraciados com amizades verdadeiras em nossa vida com a frequência
que gostamos de pensar que ocorre. É algo que ultrapassa qualquer descrição.
Como posso descrever precisamente minha melhor amiga nestas páginas? Se
tentasse por uma vida inteira, ainda assim não seria capaz de lhe fazer justiça
com palavras.
Conheci Sylvia quando tinha 39 anos. Sendo mãe solo de duas menininhas, eu
sobrevivia havia anos fazendo faxina. Como muitas pessoas, eu tentava ignorar a
sensação de que poderia fazer mais da vida se fosse corajosa o bastante para
tentar fazer alguma coisa, mesmo sob o risco de fracassar. O anúncio de
emprego para recepcionista do departamento de fisioterapia de um hospital foi o
empurrão de que eu precisava. Circulei-o, mas então o deixei de lado a princípio
— há mais segurança naquilo que conhecemos. O anúncio, porém, significaria
não apenas uma brusca guinada em minha vida e o início de uma carreira de
quase vinte anos no Sistema Nacional de Saúde, como também me levaria a
conhecer a melhor amiga do mundo.
Como gerente administrativa, Sylvia participou de minha entrevista.
Aparentemente, a chefe do departamento estava incerta sobre empregar esta
mãe solo que vos escreve, mas Sylvia a persuadiu de que meu status me tornava
mais confiável: afinal, eu precisava do emprego. Os instintos dela estavam
corretos. Eu era a primeira a chegar no trabalho e a última a sair. Aquele foi o
trampolim de que eu precisava, e Sylvia me guiou pela mão.
Eu estava acostumada a estar sozinha, zelosa de minha independência. Havia
algo em Sylvia, porém, que me dizia que eu podia confiar nela. Nós éramos
diferentes de muitas maneiras — ela era extrovertida; eu era profundamente
reservada —, e similares em outras. Éramos ferozmente leais, não tolerávamos
tolices e ambas tínhamos duas filhas que adorávamos. Tínhamos quase a mesma
idade, embora ela me lembrasse o tempo todo do “quase”. Um ano mais jovem,
Sylvia me provocava dizendo que eu passara por todas as principais experiências
antes. Ela não estava muito animada para fazer 40 anos, embora eu garantisse
que eles haviam me proporcionado um recomeço. Então, no grande dia, cobri as
janelas do departamento com letras garrafais que as meninas me ajudaram a
colorir, dizendo: OLHE SÓ QUEM FAZ 40 HOJE. Eu a vi se aproximar, vindo do
estacionamento, com a testa franzida em confusão enquanto lia cada uma das
letras, e então revirar os olhos e dar o sorriso que era a marca registrada dela
quando viu uma fotografia de si mesma colada na porta e soube imediatamente
quem estava por trás de tudo. Daquele dia em diante, nos tornamos grandes
amigas.
Éramos uma para a outra a irmã que nunca tivemos. Ambas gostávamos de
nos manter em forma e eu a ensinei a jogar tênis, sem perceber que estava
criando um monstro determinado a me derrotar todas as vezes que entrávamos
na quadra. O cenho franzido em concentração enquanto ela esperava
pacientemente, com a raquete na mão, balançando o corpo de um lado para o
outro — do jeitinho que eu ensinara — e alternando o peso entre os pés
enquanto antecipava meu saque, se tornou outra de nossas piadas. Sylvia odiava a
ideia de ter rugas, então eu a provocava sempre que franzia o cenho e,
instantaneamente, ela sorria. Nossas viagens a Wimbledon se tornaram meus
momentos favoritos, com lanches na bolsa e ingressos na mão. Guardei todos
eles em minhas caixas da memória.
Quando o primeiro marido a deixou, não houve necessidade de palavras,
somente o pedido para que eu fosse até lá. Ficamos na saleta do sobrado
conjugado em uma rua sem saída, ela com os dois cãezinhos westies terriers no
colo e eu trazendo chá da cozinha. Frequentemente em nossa amizade, não
precisávamos falar para saber o que a outra estava pensando. Algumas semanas
após a separação, persuadi Sylvia de que ela precisava de uma mudança, então
usei minhas famosas habilidades de decoradora no quarto dela enquanto ela
“supervisionava”. Bebemos muitas garrafas de vinho naquela época. Houve
pontos altos também, como as férias nas quais ela me apresentou Lake District.
Subimos até o topo do Walla Crag e ficamos lá sentadas, somente a brisa nos
fazendo companhia, até que nos guiei de volta para baixo — o senso de direção
nunca foi um dos pontos fortes de Sylvia.
Também celebramos os momentos felizes de nossa vida. Quando Sylvia
conheceu David, ela parecia uma adolescente novamente e me arrastou para um
fim de semana em Keswick para testar se sentiria falta dele. Decidimos
preencher nossos dias com longas caminhadas e Sylvia comprou um par de
bastões de trilha iguais aos meus. Só que ela era muito mais baixa, e rimos muito
dela caminhando com aqueles bastões gigantes. Fizemos uma pausa ao lado da
ferrovia de Keswick para tentar ajustá-los, mas, por mais que puxássemos e
torcêssemos, nada aconteceu, e em breve perdemos o fôlego de tanto rir. Foi
quando uma senhora idosa e de ar severo veio até nós, arrancou os bastões de
nossas mãos, ajustou-os na altura correta e partiu sem dizer uma palavra sequer.
Nós a vimos ir embora, sem ousar olhar uma para a outra até que ela já estivesse
longe e não pudesse mais nos ouvir. Então caímos na gargalhada.
Quando fui diagnosticada com demência, Sylvia se mostrou determinada a
aprender tudo o que pudesse, mas, como minha melhor amiga, foi a mudança
em minhas emoções o que notou primeiro. Ela entendeu melhor que ninguém
como minha gama de emoções havia diminuído e passara a registrar somente
felicidade, tristeza e contentamento. Já não havia escalas sutis para mim, como
se meu cérebro precisasse diminuir o escopo para se concentrar em coisas mais
vitais. Ao contrário da maioria das pessoas, Sylvia entendia o que estava
acontecendo e, quando não, perguntava até entender. Compartilhei minha
pesquisa com ela, e Sylvia sempre se mostrou interessada, curiosa e cheia de
ideias. Quando foi diagnosticada com câncer nos ovários alguns anos depois, ela
enfrentou o próprio desafio da mesma maneira. Foi a pesquisa que a manteve
viva por anos; ela tentou novas drogas e aprendeu tudo sobre os novos
tratamentos.
Durante todos esses altos e baixos, ainda nos encontrávamos algumas vezes
por ano. Certo dia, senti necessidade de vê-la, intuindo que algo estava errado.
Fui de trem até a casa dela e, de fato, descobri que Sylvia havia recebido más
notícias do médico.
— Eu não queria contar porque sabia que você ficaria triste — disse ela.
Naquele momento, se pudesse tirar o câncer do corpo dela e colocar no
meu, teria feito isso. Sylvia ainda tinha muito a viver, enquanto a demência já
havia se apossado de meu futuro. Eu teria alegremente pego o câncer para mim
se ela pudesse passar mais tempo com David. No entanto, esse era um sonho
impossível.
Quando o câncer se espalhou e todas as opções de tratamento se esgotaram,
Sylvia foi internada e, mais uma vez, não me contou quão ruins as coisas
estavam. Contudo, não precisou: eu senti. O Natal se aproximava, minha época
favorita do ano, e Sylvia estava determinada a não permitir que o ânimo abatido
dela contaminasse o meu. Até o fim, ela continuava pensando nos outros.
Sylvia foi para casa nas últimas semanas, a fim de passar os últimos dias, horas
e minutos de vida com o marido e as filhas. Uma cama hospitalar foi instalada na
sala e, com medo de me contar a verdade, ela preferiu consultar Sarah se deveria
me informar de que estava prestes a morrer. Graças a Deus Sarah a persuadiu a
me contar, porque eu não teria perdido por nada no mundo as belas e últimas
conversas que tivemos. É estranho saber que sua melhor amiga está morrendo
quando se tem demência. Eu não estava preocupada comigo, mas com os outros
— o que aconteceria se em algum momento eu esquecesse que Sylvia havia
morrido e lhe enviasse uma mensagem? Eu odiava a ideia de entristecer David.
Já é muito ruim viver com a doença, eu não queria que ela causasse dor às outras
pessoas.
Quando Sylvia foi ficando mais fraca, nossas trocas de mensagens pararam.
Pelo menos havíamos dito tudo o que queríamos dizer. Em certa manhã de
inverno, recebi uma simples porém bela mensagem de David: Uma luz muito
brilhante se apagou às 3h05.
Ela sempre brilhará em nossos corações, David, foi o que respondi.
David me contou que o desejo final de Sylvia havia sido alugar um trailer para
vir me visitar. Eles tinham até mesmo descoberto uma maneira de conseguir
eletricidade para manter a máquina a que ela estava ligada funcionando, mas não
deu tempo.
Falei algumas vezes sobre as duas estantes nas quais as pessoas que vivem com
demência guardam as memórias. Há a estante factual, que é frágil e oscila de um
lado para outro com a doença, fazendo com que os livros tombem para as
prateleiras erradas — misturando memórias, anos e pessoas. E há a mais sólida
ao lado, a estante emocional. Talvez eu tenha me esquecido de que nada é capaz
de abalá-la. Ela é o lugar em que ficam as memórias mais significativas e abriga as
prateleiras daqueles que mais amamos, que nos fizeram mais felizes e cuja perda
sentimos mais profundamente. Sei que é onde Sylvia está e, nessa prateleira, a
luz brilhante dela jamais se apagará. Não preciso temer esquecer a morte de
minha melhor amiga quando ali, naquela estante, ela está viva dentro de mim.
Há dias em que a tristeza me esmaga, quando nem mesmo uma caminhada
pelo vilarejo consegue remover o pesar. Sei como era me sentir triste antes da
demência, como um momento assim podia me lançar em um turbilhão,
acessando memórias de momentos difíceis como algum tipo de boneca russa
É
sádica. Agora não é assim. É como se a doença, que pode ser tão cruel de tantas
maneiras, não permita que eu me demore demais nos momentos tristes. Alguma
outra cena logo surge em minha mente quando penso na morte de Sylvia: subir a
Walla Crag, um jogo de tênis em um dia ensolarado, uma taça de vinho na sala
de estar aconchegante dela.
Sylvia sabia de meu amor pelos tordos-americanos e de como acredito que
eles são os espíritos daqueles que já partiram. Na noite em que ela morreu, tive
um sonho maravilhoso. Nele, pedi que Sylvia voltasse como um tordo e me
desse um sinal de que ainda estava comigo. E então, no sonho, um tordo
apareceu em meu jardim e eu fui para fora, com a mão estendida, oferecendo
sementes e pedacinhos de sebo. O tordo se aproximou e pousou gentilmente em
minha mão. Ele pegou uma semente minúscula, olhou para mim e
imediatamente fez cocô na palma de minha mão. Eu ri muito, mas ele não se
moveu. Foi então que eu soube: minha melhor amiga viera dizer olá.
Acredito que somos emocionalmente funcionais até o fim, mas, como minha
amiga acabou de dizer, as pessoas não conseguem ver. No entanto, as emoções
são visíveis se você observar com cuidado. Penso que os profissionais ficam
constrangidos de falar conosco sobre nosso lado emocional porque não têm
respostas e, se minha pesquisa estiver certa, isso se dá porque ninguém está
fazendo as perguntas certas. Sei que minhas emoções ainda estão presentes após
o diagnóstico de demência, mas elas se manifestam de maneira diferente.
SOBRE A TRISTEZA
Alguns dias após a morte de Sylvia, eu estava com Sarah e sabia que estávamos
falando sobre algo triste, mas, um instante depois, me senti subitamente feliz. O
mesmo aconteceu enquanto caminhava com uma amiga: eu estava contando a ela
sobre a perda de Sylvia, o que a deixou triste, porém, bem quando ela ia fazer
mais perguntas, passei para um assunto feliz e me senti bem novamente. Deve
ser muito estranho para os outros, mas, para mim, com essa nova maneira de
pensar, de alguma maneira parece natural.
Muitas pessoas que conheço morreram desde meu diagnóstico e, sim, fiquei
triste. Sylvia, porém, foi a primeira pessoa realmente próxima que perdi, e foi
difícil lidar com a tristeza da perda, mas não chorei tanto quanto achei que iria.
Chorei ao escrever posts sobre ela em meu blog e certamente chorei quando
recebi a notícia da morte e quando as filhas dela entraram em contato comigo.
Contudo, as lágrimas não duraram muito tempo. A demência me deu a
habilidade de ter breves momentos de pesar, seguidos rapidamente por
memórias extremamente felizes.
Curiosa para saber mais, perguntei a meus amigos se a experiência de sentir
tristeza havia mudado para eles. Embora as respostas tenham sido diferentes,
confirmei que, como eu, o relacionamento deles com as emoções em geral
mudou após o diagnóstico. Eis o que eles tiveram a dizer:
SOBRE O MEDO
A empatia parece se intensificar em todos nós que vivemos com demência. E,
todavia, existe a concepção errônea de que aqueles que vivem com demência
não sentem empatia como antes. Em 2016, pesquisadores da Neuroscience
Research Australia estudaram pessoas com Alzheimer e demência
frontotemporal, mais comumente conhecida como doença de Pick. Essa
demência em particular se tornou mais conhecida graças ao trabalho do
comediante e escritor David Baddiel, cujo pai vive com a doença. O estudo
concluiu que pessoas com Alzheimer e demência frontotemporal têm reduzida
empatia cognitiva, a capacidade de entender e valorizar as emoções alheias,
embora isso possa ser consequência do declínio cognitivo geral. No entanto, no
grupo de pessoas com demência frontotemporal, houve significativa diferença na
capacidade de compartilhar as emoções e experiências emocionais alheias, algo
conhecido como empatia afetiva. As neuroimagens revelaram que a perda da
empatia nesses participantes se devia a “corpos de Pick” na parte do cérebro que
é essencial para o funcionamento social.
Infelizmente, quando a pesquisa foi publicada, as manchetes diziam
“Demência causa perda de empatia”, e isso levou a muitas concepções errôneas.
As pessoas esquecem que há mais de cem tipos diferentes de demência. Você
jamais generalizaria as pessoas que têm câncer a um grande e único grupo, e o
mesmo deveria ser feito com as que têm uma doença cerebral complexa. Entre
mim e meus amigos, embora nenhum de nós tenha doença de Pick, há altos
níveis de empatia pelos outros. Aliás, é comum que a tristeza relacionada a nós
mesmos tenha diminuído ou desaparecido, talvez como resultado de aceitarmos
que não temos controle sobre o futuro.
Essa perda de controle sobre o futuro muitas vezes é encarada como algo
negativo por aqueles que vivem com demência, e definitivamente contribui para
o medo que sentimos quando somos diagnosticados. Como já contei, em meu
caso o medo foi perpetuado por imagens, expressões e percepções negativas
sobre a vida de quem tem a doença. Minha primeira experiência real com a
demência foi com o meu diagnóstico, então eu não tinha uma referência de
imagens mentais para combater aquelas que a sociedade me fornecera. O temor
da demência é tão real que houve estudos sobre ele, sobre a “resposta emocional
à ameaça percebida de desenvolver demência”, de acordo com um relatório
realizado em 2012. Ele cita uma pesquisa de 2008 desenvolvida pelo Alzheimer’s
Research Trust da Grã-Bretanha, a qual descobriu que a demência estava atrás
apenas do câncer entre as doenças mais temidas:
“De modo geral, 26% dos inquiridos relataram ter mais medo da
demência que de qualquer outra condição. Entre aqueles com mais
de 55 anos, a demência foi a condição mais temida, com 39% dos
entrevistados relatando que tinham mais medo da demência e 30%
relatando que tinham mais medo do câncer.”
SOBRE A ANSIEDADE
O medo e a ansiedade parecem, de alguma forma, ser entremeados: talvez
fiquemos ansiosos sobre as coisas que mais tememos. Sem esses medos, parece
haver menos sobre o que sentir ansiedade. Agora eu e meus amigos nos
preocupamos com a perda de controle. Tememos ser retirados de nossa casa e
colocados em casas de repouso. Tememos ultrapassar o limite final. No entanto,
é muito humano se preocupar com a possível perda de si mesmo. O mesmo
artigo sobre o temor da demência que já mencionei abordou esse assunto:
“Já não fico ansiosa com as coisas. Estou mais agitada e menos
paciente comigo mesma do que costumava ser. Tenho muita
paciência com todo mundo, mas não comigo. Se estou fazendo algo
e não dá certo, fico muito irritada, ao passo que antes me mantinha
calma.”
“Estou mais equilibrada agora. Não sei se foi por causa do
diagnóstico ou porque parei de trabalhar, então não tenho mais as
ansiedades relacionadas ao trabalho. Sempre tive pouca
autoconfiança; eu costumava me preocupar o tempo todo com o
que as pessoas estavam pensando. Quando estava dirigindo ou
andando pela calçada, ficava sempre olhando ao redor, me
perguntando: será que estão olhando para mim? Será que estão falando de
mim? Eu não vivia muito bem, mas sei que minha ansiedade e falta
de autoconfiança tinham a ver com minha infância. Mas agora estou
mais calma. Me sinto bastante feliz com minha vida. Me sinto à
vontade, nem que seja porque coloquei todos os medos e
aspirações, toda aquela coisa de ‘Posso mudar o mundo’ em uma
caixa em algum lugar. Isso é passado; não vai acontecer. É difícil
aceitar, mas acho que é parte importante da razão pela qual nossos
sentimentos se acalmam um pouco quando temos demência. Já não
sentimos a pressão do futuro. Eu me importo menos com as coisas;
se não estiver em meu coração ou minha cabeça, não está
acontecendo. Então não finjo que está.”
“Eu costumava me preocupar e tentar consertar as coisas para
todo mundo, mas tendo a não me preocupar com nada agora. Fico
ansiosa, e então penso: não há nada que eu possa fazer, e aí não tento
consertar as coisas. Sofri um acidente grave antes da demência —
fui atropelada por um carro — e, daquele momento em diante,
aprendi que as coisas estavam fora de meu controle. Eu me
preocupo com minha família, mas não com a vida ou comigo
mesma. Não me preocupo com meu futuro, ao passo que antes
costumava me preocupar com isso.”
O que meus amigos dizem ressoa em mim. A demência nos ensinou que
algumas coisas estão fora de nosso controle e que a ansiedade nada fará para
mudar isso.
SOBRE A RAIVA
Há algumas mudanças na forma como experimento emoções, e agora acredito
que se devem à doença e às modificações que ela produziu em meu organismo.
Desde o diagnóstico, sempre imaginei o interior de meu cérebro como uma
rede de sistemas rodoviários: há viadutos e estradas, rotatórias, intersecções e, é
óbvio, becos sem saída. O que a demência fez a esse sistema altamente
complexo foi adicionar vários pontos interditados. Isso significa que meus
pensamentos precisam pegar desvios, alguns são rápidos, outros — a maioria —
muito lentos, e, às vezes, desvios que simplesmente não levam ao destino
desejado. Dos bilhões de células que compõem minha rede de transporte, talvez
somente alguns poucos milhares tenham sido afetados pela demência — a razão
pela qual consigo fazer tantas coisas sozinha —, mas pode ser frustrante se um
dos lugares para o qual quero viajar em meu cérebro foi prejudicado por essas
interdições. Cada vez mais, conforme a doença progride, estou percebendo o
surgimento de mais pontos interditados e becos sem saída, e minhas emoções
foram um dos pontos afetados. Sei que os destinos ainda estão lá em meu
cérebro — ainda sinto tristeza e alegria sem qualquer tipo de obstáculo —, mas
alguns parecem ser inalcançáveis agora, independentemente do desvio
inteligente que eu pegue para tentar chegar a eles.
Há alguns meses, passei por uma situação na qual sabia que devia sentir raiva.
Já faz tempo que aqueles com demência reclamam da falta de serviços para nos
ajudar no momento do diagnóstico, da falta de pessoas habilitadas para nos
mostrar que ainda é possível viver com a doença. Nossa frustração com os
médicos chegou a tal ponto que eu e meus amigos do grupo Minds and Voices
decidimos criar um curso para as pessoas recém-diagnosticadas, a fim de ajudá-
las a entender como é viver com demência. Queríamos dar a elas alguma
esperança, em vez daquela dispensa após um diagnóstico a respeito do qual “nada
se pode fazer”. Chamamos nosso curso de “Uma boa vida com demência”. Ele
contaria com seis semanas de apoio emocional e prático e não chegaria
realmente ao fim, já que a pessoa poderia se unir a nosso grupo regular, se assim
desejasse.
Conseguimos financiamento do Clinical Commissioning Groups e apoio do
conselho do condado. Contudo, rapidamente percebemos que não seríamos
apoiados pelos médicos. Aqueles que atendiam os recém-diagnosticados não os
encaminhavam a nós, mesmo sabendo que estávamos de prontidão para ajudar.
Eu sabia que devia ficar furiosa. Meus pensamentos tomaram o rumo, outrora
regular, em direção ao departamento da raiva em meu cérebro. Entretanto, eles
simplesmente não conseguiram chegar até lá. Foi como se a emoção estivesse
dentro de uma caixa de aço impenetrável. Em vez disso, minha mente logo
assumiu uma rota mais familiar, com mais chances de chegar ao destino. E assim
desembarquei no departamento da tristeza. Eu sabia que havia algo faltando em
mim, parte de minha completude, a variedade de emoções que me tornava
humana. Eu queria ficar com raiva, eu sentia que devia ficar com raiva. No
entanto, simplesmente não conseguia senti-la.
O mesmo sistema de interdição também pode trabalhar em meu favor. Vejo
outras pessoas ficarem com raiva e percebo que esse é um uso infrutífero de
energia, que o resultado é imutável, que elas só causarão mais danos a si mesmas
enquanto alimentarem a raiva que sentem. Fico frustrada, porém, quando sei
que algo poderia mudar se eu canalizasse minha raiva para algo produtivo. A
verdade é que, para mim, a raiva simplesmente já não está lá.
Eu me perguntei se alguns de meus amigos que vivem com demência
passaram pela mesma experiência e então, questionando-os, estas foram as
respostas:
“Já não fico com raiva, sinto mais frustração. A raiva parece ter
desaparecido completamente. Sou bastante calma agora. Meu
marido fica com raiva das coisas e eu digo: ‘Não adianta ficar com
raiva. Esqueça isso.’ É assim que as coisas são agora. Não vejo
sentido em ficar com raiva ainda que antes eu também costumasse
ficar.”
“Fico zangada com as menores coisas, até as mais idiotas. Sempre
tive pavio curto, mas agora as menores coisas conseguem me
enfurecer. Por exemplo, o zíper de um de meus casacos enguiçou.
Tentei puxá-lo e não funcionou. Tentei mais uma vez e então
novamente, e, dessa última vez, quase rasguei o casaco. Não consigo
controlar a raiva tão bem quanto antes.”
Talvez, como com tantas coisas, muito dependa de nossa personalidade antes
da demência, embora eu saiba que costumava reclamar, gritar e sentir a
adrenalina correndo por minhas veias. Contudo, devo sentir falta dessa sensação
ou a demência me fez um favor? Na maioria das vezes, fico aliviada por já não ter
acesso à raiva. Isso deixa minha vida muito mais simples. Quando se tem
demência, precisa-se que tudo seja objetivo e simples: nós adotamos o preto e
branco que a vida tem a oferecer, pois os tons de cinza tornam tudo muito
confuso. Saber que me sentirei feliz, triste ou contente basta para mim — em
grande parte do tempo.
SOBRE A CULPA
A culpa frequentemente parece andar de mãos dadas com o diagnóstico de
demência. Isso é muito estranho, já que estamos acostumados a sentir culpa
apenas se deliberadamente fazemos algo errado. Só conheço um tipo de
demência, a síndrome de Wernicke-Korsakoff, na qual se pode dizer que o
paciente contribuiu para o declínio da própria saúde — a síndrome está
relacionada ao álcool. No entanto, ainda assim, ela é consequência de um
comportamento, não algo que as pessoas busquem ativamente. Então por que a
culpa preenche um espaço tão grande em nossa vida?
Minha primeira experiência foi no momento do diagnóstico: senti uma onda
de culpa em relação a minhas filhas, por ter roubado delas nosso futuro juntas —
mesmo sabendo que eu simplesmente dera azar. Até aquele ponto, havíamos
vivido alegremente independentes umas das outras, cada uma com as próprias
aventuras. Eu era a mãe, e me fazia ouvinte e oferecia refúgio quando as coisas
davam errado, mas, fora isso, estava feliz por minhas meninas estarem vivendo a
própria vida enquanto eu vivia a minha. A culpa chegou quando minha mente
deu um salto para o futuro, para imagens em que sou incapaz de ajudá-las no
futuro e também delas cuidando de mim, em vez de o contrário.
Diferentemente de muitas pessoas, não senti culpa por meu futuro imediato.
Eu não tinha um parceiro em casa que precisaria viver comigo ou fazer
adaptações para me ajudar a lidar com a doença que havia invadido minha vida.
O fato de que eu não partilhava sonhos com alguém também ajudou, já que não
existia algum que eu pudesse estragar. Desde então, ouvi muitos amigos falarem
sobre o súbito “fardo” que se tornaram para o parceiro ou parceira, esquecendo-
se de que não haviam se tornado pessoas diferentes do que eram no dia anterior.
A parceria ainda está lá, os desafios a ser enfrentados apenas serão diferentes.
Contudo, isso não acontece em qualquer casamento? A demência pode fazer
com que esses desafios pareçam surgir antes do esperado. Vi pessoas que, como
eu, haviam se projetado em um futuro que já não existia; em vez de lembrarem a
si mesmas o mantra de que “há vida a ser vivida com demência”, a mente delas
foi bombardeada por imagens da “viagem da vida delas” que agora não fariam ou
dos excitantes planos de aposentadoria que agora seriam substituídos por algo
totalmente mais tranquilo. Eu sei que é nesses momentos, quando essas imagens
invadem a mente, que a culpa surge: ela nos lembra do que tiramos dos outros.
Porque este é o ponto: não é tanto sobre o que perdemos, mas sobre o impacto
que a doença terá naqueles que amamos.
Testemunhei isto muitas vezes: o marido que ainda deseja levar uma xícara de
chá para a mulher na cama pela manhã, mas, ao chegar à cozinha, não tem ideia
de qual é o processo e precisa que ela o ajude. Há perdas cotidianas com que
lidar, assim como perdas maiores. Tenho a sorte de não passar por isso. Meus
amigos solteiros concordam: “Se esqueço algo, esqueci, não importa para mais
ninguém.”
Conheci pessoas que fazem os parceiros se sentirem mal por todas as coisas
que já não são capazes de fazer, mas, para cada uma delas, sei que há outras que
jamais pensariam em descrever a pessoa que amam e com quem dividem a vida
como “fardo”. Um casal que conheci recentemente conversou comigo sobre esse
tema. O homem, que vivia com a doença, falou sobre a tragédia de não poder
modificar a própria situação: “Não posso evitar ter demência, e isso é muito
cruel.” Ele disse que não queria colocar a adorável esposa na situação de ser “o
homem e a mulher da casa”. Ela, no entanto, insistiu: “Nossos votos de
casamento diziam ‘na saúde e na doença’; só precisamos viver um dia de cada
vez.”
Um casal de amigos meus me explicou como a culpa afeta o relacionamento
deles. Bob, que vive com demência, falou de seu contentamento em saber que a
mulher, Sue, estará lá para apoiá-lo, mas isso também o faz se sentir culpado pela
pressão que é posta sobre ela. “Não é assim que deveria ser”, disse ele. Sue, em
contrapartida, disse que precisar cuidar das coisas “me deixou mais confiante em
saber como as coisas funcionam e como consertá-las quando a autoconfiança de
Bob desaparece”. Ela passou a ver como positivas as mesmas coisas sobre as quais
ele sente culpa. Outra amiga falou sobre a culpa de sempre ter cuidado das
tarefas domésticas e agora o marido estar encarregado disso.
Eu me lembro de sentir culpa de forma mais intensa no início. Uma amiga,
diagnosticada mais recentemente, disse que os sentimentos dela estavam
centrados no papel que cumpria como mulher, mãe e avó:
Como você pode ver, a felicidade, para mim e muitos de meus amigos,
envolve a atenção plena e a apreciação do momento presente, porque o passado
frequentemente é um borrão e o futuro é incerto. Entretanto, será que algo
realmente mudou? Não deveríamos todos viver no presente? O problema é que
perdemos a prática. Pense em quanto prazer uma criança sente ao examinar uma
concha minúscula na praia: nada a distrai dessa tarefa. Ao crescermos, porém,
perdemos o hábito de focar uma coisa de cada vez e deixamos que o desejo por
outras estrague o que estamos vivendo no momento. Nós nos concentramos no
que falta, não no que temos. Mais que tudo, a demência me ensinou que
precisamos retornar ao agora.
O relatório de 2017 de Charlotte Berry sobre a demência de início precoce
analisou essa mesma ideia de contentamento no momento presente:
Quando minhas filhas nasceram, tudo o que desejei para o futuro delas foi
saúde e felicidade. Nada parecia tão vital quanto isso; todo o restante se seguiria.
Recentemente, elas me deram um cupcake em meu aniversário, com uma vela
em cima:
— Faça um pedido — disseram.
Eu apaguei a vela e, dessa vez, silenciosamente pedi saúde e felicidade para
mim mesma.
No entanto, depois que elas foram para casa, olhei para minha sala e, através
da janela, vi a pastagem do outro lado da rua. O crepúsculo tomava forma e as
árvores estavam banhadas em uma luz alaranjada. Eu me senti feliz, como
frequentemente me sinto observando essa cena. Uma de duas coisas não é nada
mal, pensei comigo mesma, me lembrando do pedido que havia feito. A questão
é que nunca me considerei doente, apesar da demência que torna meu cérebro
instável e pouco confiável. Não me sinto doente e não sinto dor.
Talvez a realização de meu pedido se resuma à percepção do que essas
palavras significam para cada um de nós. Eu enfrento desafios todos os dias, mas
eles talvez não sejam maiores que os enfrentados por meus vizinhos. Jamais
conhecemos realmente a batalha pessoal que alguém pode estar enfrentando.
Assim, tive que me perguntar se as coisas que pedi eram realmente necessárias
ou se já haviam sido concedidas.
ATITUDE
Estou olhando pela janela do meu quarto, onde passo a maior parte do dia, e
tudo está igual: o topo alto das árvores oscila ligeiramente contra o céu branco
de meio de inverno e, do lado de dentro, é possível ouvir o zumbido baixo do
sistema de aquecimento central. Estou quentinha e confortável. Entretanto,
minha cabeça é uma tela em branco. Olho para meus dedos se movendo no
teclado e para as palavras que surgem na tela. Leio-as, mas não sinto qualquer
resposta se mover dentro de mim. Em algum lugar, presa dentro de mim, sei
que há uma versão minha que faz essas palavras surgirem na tela — sei que não
pode ser outra pessoa —, mas, de qualquer forma, as palavras parecem
separadas de mim, como se eu estivesse olhando sobre o ombro de outra pessoa
enquanto ela digita. Talvez, de certa maneira, eu esteja.
Momentos assim já foram episódios dramáticos que se quebravam como
ondas em meu cérebro a cada poucas semanas, rearranjando alguns pensamentos
e afogando outros. Agora, contudo, eles ocorrem tão regularmente — duas ou
três vezes por semana — que me acostumei com essa perturbação em minha
vida. Já conheço os sinais, mas a onda ainda me derruba, até parecer que estou
olhando para o mundo sob a superfície espelhada da água. Ele está próximo e
tudo parece igual, mas é inalcançável para mim.
Observo meus dedos enquanto eles se movem pelo teclado, a última parte de
mim ainda livre da demência, ainda vivendo livre do que é ditado pela doença.
Qual é o segredo? Como eles são capazes de se comunicar com meu cérebro?
Gostaria de saber a resposta, mas sei que não devo questionar o fato de a
demência tê-los poupado — até agora. Enquanto o restante de mim está vazio,
eles conseguem expressar como me sinto. E então, de repente, os dedos se
cansam e desaceleram antes de parar completamente. As palavras já não surgem
na tela. Estou sozinha.
Percorro o quarto com os olhos, dizendo a mim mesma que talvez — assim
como eu — eles só precisem de tempo. Olho para o topo das árvores
novamente, encorajada por ainda me lembrar da palavra “árvore”. Entretanto,
algo está ausente. Não sei bem o quê. Minha mente tenta identificar o elo
perdido, mas nenhum pensamento me ocorre, não inicialmente, nada a não ser
esse branco. Até que, sim, entendo — ou alguma parte de mim entende, porque
meus dedos subitamente começam a digitar novamente —, e vejo a palavra
ausente surgir na tela: “sorriso”. Estou consciente de que meu rosto está
impassível, meus lábios são uma linha reta e não há indicação, para o mundo
externo, de que estou presente nesse momento. Fui reduzida à casca de uma
pessoa. Se estivesse sentada na poltrona em frente à minha, sei que qualquer
pessoa veria somente essa casca.
O que está faltando é alguma emoção verdadeira.
Olho ao redor do quarto, prestando atenção no zumbido, com o curto-
circuito no interior de meu cérebro seguindo mesmo o menor dos movimentos.
Meus olhos pousam sobre as fotografias no parapeito da janela. A centelha do
reconhecimento surge do lodo da demência. Eu as conheço bem: lá estão minha
filha Sarah e minha outra filha, Gemma, no dia em que se casou com Stuart.
Normalmente, meus olhos só precisam vê-las para que a emoção se avolume
dentro de mim, manifestando-se sob a forma de um grande sorriso em meu
rosto — eu o sinto lá. Agora, no entanto, não há coisa alguma. Estou ciente de
que a pele e os músculos de minha face estão flácidos. Essas poderiam ser
fotografias de qualquer um. É assim que será? Meu cérebro está me preparando
para o futuro, um no qual não reconhecerei o rosto das duas pessoas que mais
amo? Gosto de pensar que Gemma e Sarah estarão lá para segurar minha mão,
que o toque ou o som da voz delas me tirará desse vazio. Que a emoção —
aquela parte de mim que me torna humana — ainda poderá ser convocada,
trazida à superfície pelo poder do amor.
Contudo, por enquanto, cedo ao vazio. Deixo meu iPad de lado e aceito a
neblina e a vastidão branca nas quais ele me submerge. Tenho a vaga sensação,
em algum lugar de meus ossos, de que, da última vez que isso aconteceu —
talvez há apenas alguns dias —, a neblina se dissipou quando fiz apenas isto:
quando cedi à demência. Somente por hoje, eu me enrolo em meu edredom e,
antes de fechar os olhos, olho novamente para as fotografias no parapeito. Elas
ainda estarão lá quando eu acordar e, com sorte, eu também estarei...
SOBRE OS DIAS RUINS
Já não os chamo de névoa, esses momentos nos quais meu cérebro entra em
curto-circuito, minha vida se torna um borrão e o caos impera. Eles ocorrem
tão frequentemente agora que parece melhor chamá-los de neblina. Há algo na
palavra “neblina” que sugere algo mais temporário que névoa, algo que com
certeza passará. A palavra sugere que estou presente o tempo todo, apenas
esperando que o tempo melhore. E ele melhora.
Esta é outra característica das neblinas: assim como a própria demência, elas
têm um início, um meio e um fim. Quando acabam, há sol e céu azul
novamente. Aquela nuvem estranha ainda está presente, mas tudo bem, porque
eu ainda estou aqui.
Faz sentido que elas sejam mais frequentes agora. Talvez sejam um sinal de
declínio? Afinal, a demência é uma doença degenerativa; não há como escapar
disso. Houve uma época na qual eu achava essa perspectiva assustadora; a ideia
de que minha mente, nos momentos de maior nitidez, iria sentir com mais força
a aproximação do fim. Percebi, entretanto, que pensar assim só me arrasta em
direção a isso. É melhor manter as coisas em perspectiva: o futuro ainda não está
aqui, e pode estar muito longe ainda. Quem de nós tem qualquer certeza sobre
o dia de amanhã?
Na verdade, a frequência das neblinas trouxe consigo uma surpresa. Esses
momentos de completa desorientação são estranhamente menos assustadores por
causa da frequência com que ocorrem — e passam. Porque esta é a importância
da coisa toda: não a chegada, mas a partida. Meu cérebro mantém uma
impressão objetiva disso, a memória de que essas neblinas não vão durar, de que
não duram. A frequência permite que eu permaneça calma, que diga a mim
mesma que são apenas alguns fios defeituosos em meu cérebro, uma faísca que
derrubou todo o sistema, que talvez essa seja a maneira dele de lidar com o
problema. É uma ação — ou reação — física no interior do meu corpo, mas não
sou eu. E sempre retorno a mim mesma. Indubitavelmente uma pessoa diferente
do que era antes do diagnóstico. Quantos de nós, porém, podem dizer que
permaneceram os mesmos durante toda a vida? A única diferença com a
demência é que essas cicatrizes são mais físicas, frequentes e impossíveis de
reparar — mas, ainda assim, não de superar.
Tudo depende, no entanto, da maneira como você encara as coisas.
A atitude é metade da batalha quando se trata de uma doença como a
demência. A maneira como lidamos com essas névoas, esses curtos-circuitos —
chame como quiser —, pode minimizar ou maximizar o que acontece conosco.
Perguntei a meus amigos como eles descrevem os dias não tão bons que têm:
SOBRE O DIAGNÓSTICO
A coisa mais difícil de superar, para qualquer ser humano, é a falta de controle.
Gostamos de executar nossas tarefas cotidianas acreditando ao menos na ilusão
de que estamos no controle. Para aqueles que vivem com demência, essa é a
primeira coisa que nos pedem para aceitar: que o invasor em nosso cérebro se
apossou da função de coordenar, que já não somos mais quem dita as regras.
Contudo, isso não é necessariamente verdade. Eu disse muitas vezes que a
demência tem um início, um meio e um fim, e há muita vida a ser vivida se você
— e aqueles a sua volta — puder adotar uma abordagem positiva.
Meus “dias enevoados” já pareceram dramáticos, quando eram recentes e
perturbadores, mas, de certo modo, a demência marcou um gol contra, porque
a frequência desses dias me devolveu certo controle, certa consciência de que
devo suspender minha rotina nesses dias e voltar para baixo das cobertas.
Essa é minha atitude hoje em dia, seis anos após o diagnóstico, e sei que não é
dessa forma que todas as pessoas as quais recebem o diagnóstico devastador de
demência agem. Ele é indubitavelmente devastador. Com certeza não me senti
positiva ou no controle quando me sentei em frente ao neurologista aos 58 anos
e ouvi que tinha demência. Ele me disse que não havia mais o que eles pudessem
fazer, e deixei o hospital com a sensação de que o fim da minha vida tinha
chegado mais cedo. Quem poderia saber que, seis anos depois, eu estaria
escrevendo meu segundo livro sobre o assunto, que viajaria pelo país para
participar de conferências e feiras literárias, que daria palestras para estudantes
de enfermagem e especialistas na área, que conversaria todos os dias com
pessoas que, como eu, foram surpreendidas pelo diagnóstico, a fim de lhes
devolver a esperança, lhes dizer que, longe de ser o fim, esse diagnóstico pode
ser um novo início? No entanto, como eu disse, para a maioria dos
diagnosticados, a coisa mais assustadora é a perspectiva de falta de controle.
A experiência de meus amigos foi similar a minha. O diagnóstico, que
inicialmente lhes pareceu o fim do mundo, se transformou em uma nova
maneira de viver — mas que ainda assim era viver:
“Fui diagnosticado há oito anos, e quando recebi a notícia a encarei
de maneira bastante negativa, senti muito medo. Fui levado a
acreditar que, a partir daquele momento, minha vida e meu futuro
estavam decididos, e aceitei isso. Disseram-me para fazer tudo o que
mandassem, então senti que havia perdido a mim mesmo. Mas, oito
anos depois, sabendo o que sei e tendo feito as amizades que fiz,
minha atitude é mais positiva, porque entendo melhor. Já não faço o
que mandam. Aceito conselhos e então decido por conta própria.
Vendo outros vivendo positivamente, e pelas minhas experiências,
decidi viver minha vida de forma positiva. Não penso no futuro;
vivo um dia após outro.”
“Fui diagnosticada há dois anos e achei o processo muito
negativo. Sempre fui uma pessoa muito pessimista — sempre
pensando no que poderia dar errado. Lá no fundo, eu sabia qual era
o problema, mas não queria admitir. Meu pai dizia: ‘Não há
ninguém na nossa família com demência, então não pode ser isso.’
Mas minha avó tinha demência e meu avô tem doença de Parkinson.
Busquei informações no Google e li alguns livros, e parte dessa
leitura foi muito negativa. Muitos desses livros abordavam o assunto
do ponto de vista do cuidador, e todos eram negativos. Os
cuidadores falavam sobre como enfrentavam dificuldades para lidar
com as pessoas de quem cuidavam, e o tempo todo eu pensava: é
assim que vai ser. Quando recebi o diagnóstico, fiquei destroçada. Mas
então li seu livro Somebody I Used to Know e mudei de atitude. Pensei:
se essa senhora pode fazer isso, também posso. Ninguém vai me impedir de
fazer o que quero.”
SOBRE O ENFRENTAMENTO
Pesquisadores de três universidades britânicas quiseram entender quão firmes
eram as atitudes das pessoas após o diagnóstico e decidiram visitá-las depois que
já estivessem vivendo um ano com a doença, a fim de analisar quanto haviam
mudado. O relatório de 2005 enfatizou o fato de que diferentes mecanismos de
enfrentamento eram responsáveis pela maneira como aqueles de fora percebiam
a forma como as pessoas diagnosticadas lidavam com a doença. Algumas delas,
argumentou o relatório, negavam o diagnóstico, mas a própria negação era
frequentemente interpretada pelos outros como sintoma. Estilos de
enfrentamento se dividem em dois grupos: preservação do senso de si mesmo e
adaptação do senso de si mesmo. Aqueles que se enquadram na categoria da
preservação podem não reconhecer a demência — por exemplo, podem
esconder ou ignorar os esquecimentos, em vez de implementar métodos para
lidar com eles, como poderia fazer alguém com a mentalidade de adaptação.
Nenhuma mentalidade está certa ou errada, lógico; lidamos com a doença da
maneira que podemos. Essa falta de entendimento sobre os estilos individuais de
enfrentamento, porém, pode levar familiares e amigos a acreditar que a pessoa
que vive com demência não está consciente desse invasor no próprio cérebro.
“Em termos de contexto social”, escreveram os autores do relatório.
Conheço pessoas que se recusam a admitir que têm demência, mas estão
conscientes dos efeitos da doença sobre elas. É uma mistura estranha. Às vezes
comparo isso a pessoas homossexuais que têm medo de fazerem parte da
comunidade: elas estão totalmente cientes dessa característica de si mesmas, mas
temem o ato de se assumir. Discriminações similares podem existir contra
aqueles com demência, especialmente porque algumas pessoas ainda a associam
a uma doença mental e, infelizmente, conhecemos o grande estigma
imerecidamente ligado às doenças mentais. Não admira que as pessoas tentem
minimizar ou ignorar o próprio diagnóstico quando não se sentem seguras para
ser elas mesmas. Contudo, também conheço as que, por essa mesma razão,
recusam-se a participar de grupos de apoio com colegas que poderiam ajudá-las
a modificar essa atitude sobre a vida com demência. Quando lhes perguntam por
que fazem isso, respondem: “Quero continuar vivendo minha vida
normalmente, sem pensar na demência.” Isso é totalmente compreensível, mas o
medo de reconhecer a doença pode impedir que consigam apoio de pessoas que
realmente são capazes de ajudar. A única coisa que mudaria essa disposição em
aceitar o próprio diagnóstico seria a mudança de atitude da sociedade como um
todo.
Para a maioria das pessoas entrevistadas pelos autores do relatório, houve
mudança durante o primeiro ano. Eu sei que passei do pesar à aceitação, o que
me ajudou a viver tão bem quanto possível hoje. Mudamos e nos adaptamos a
todo momento, como fazem os seres humanos em qualquer situação desafiadora.
Não necessariamente usamos o mesmo mecanismo de enfrentamento o tempo
todo.
“Em termos de respostas psicológicas individuais, o início da demência pode
ser visto como uma ameaça ao senso de si mesmo que pode gerar tentativas
compensatórias de adaptação”, continua o relatório:
“Não vou mais às avaliações, porque elas fazem com que eu me sinta
negativa. Da última vez, eles me testaram para ver se minha doença
havia progredido e cometeram um erro: eles compararam o meu
quadro atual com um momento muito antigo presente em meu
histórico. Por esse motivo, me informaram de que minha doença
havia progredido muito e por isso precisariam mudar minha
medicação. Fiquei um pouco chateada, me perguntando que efeitos
colaterais essa nova medicação poderia provocar. Então recebi uma
carta de lá em que eles diziam sentir muito, mas que houvera um
erro e na verdade eu estava no mesmo nível: a funcionária tinha
comparado meu quadro atual com uma de minhas avaliações antigas.
Passei um mês me sentindo realmente mal e aborrecida por causa
do que fui informada em minha visita de revisão, e no fim eles
estavam errados. Então pensei: não vou mais, não quero esse tipo de
negatividade em minha vida.”
“É a sensação de que os profissionais médicos estão nos
dispensando. Eles dizem: ‘Não há nada que possamos fazer e você
tem que fazer o que estamos dizendo e se preparar para o fim’.”
“São os profissionais que podem fazer com que você se sinta
positivo ou negativo sobre o diagnóstico. Uma assistente social me
telefonou há alguns meses e perguntou se podíamos marcar uma
hora para ela me visitar e conversar comigo. Eu vivo em um
apartamento de um quarto; não é em uma residência assistida,
somente um apartamento comum no térreo, mas tenho dois amigos
que vivem do outro lado da rua. Sei que eles estão lá e minha família
vive na mesma cidade, mas a assistente social disse: ‘Acho que está
na hora de você passar para uma residência assistida.’ Eu respondi:
‘Não, eu recebo mais cuidados aqui do que receberia lá.’ Mas, como
moro sozinha, ela naturalmente presumiu que estava na hora de eu
me mudar para um lugar onde pudessem cuidar de mim.”
“Conheço uma clínica-geral muito experiente que mais de uma
vez me perguntou: ‘Você acha que eles podem ter errado em seu
diagnóstico? Não é possível que você tenha demência.’ O que ela
quer dizer é: ‘Você cozinha, você fala; logo, você não tem
demência.’ Ela diz as coisas comuns, como ‘Eu sempre perco
minhas chaves ou esqueço o que fui fazer em um cômodo’. Mas ela
tem 65 anos; você faz isso nessa idade, mas não se trata de
demência. Outra coisa que os profissionais não fazem é concessões
ou ajustes; eles sabem que você tem demência, mas mesmo assim
esperam que você preencha formulários e conte sua história
inúmeras vezes. E, se for para o hospital, eles perguntam, na manhã
da cirurgia: ‘Você comeu ou bebeu algo desde ontem?’ O que é
uma pergunta estúpida; eles não deveriam fazê-la, porque não
podem confiar na resposta.”
“Depois que fui diagnosticado, achei a falta de apoio muito
decepcionante. Todas as pessoas da clínica de memória diziam coisas
como: ‘Não se esqueça de fazer seu testamento’ ou ‘Coloque sua
vida em ordem, você não sabe quanto tempo ainda tem.’ O único
profissional positivo foi meu médico. Voltei a vê-lo porque não sabia
se devia ou não tomar os medicamentos e ele conversou muito
comigo, e essas conversas me ajudaram a optar por não os tomar.
Ele disse: ‘Viva sua vida, faça o que quer fazer.’ Ele foi o único a me
dizer algo assim.”
Í
SOBRE AS ATITUDES DA FAMÍLIA
A boa notícia é que todo novo dia nos oferece uma chance de recomeçar e
modificar a linguagem que usamos, o tom, a maneira como abordamos uma
doença degenerativa — seja você o diagnosticado ou seja, talvez, ainda mais
importante, alguém que apoia uma pessoa diagnosticada, independentemente se
for um membro da família, da comunidade ou um profissional da área. Nunca é
tarde demais para mudar. Você pode começar no momento em que terminar
este livro.
A forma como lidamos com acontecimentos traumáticos pode mudar. Pense
nas coisas que aconteceram em sua vida: mortes, divórcio, demissão. As pessoas
indubitavelmente passam por um período de luto, de reajuste, mas, no fim,
chegam à aceitação e buscam o melhor que a vida tem a oferecer. Por que seria
diferente com a demência?
Minha atitude é simplesmente a forma particular a qual escolhi de enfrentar
as adversidades. Ela não é melhor ou pior que a de outra pessoa. Sou capaz de
transformar as neblinas cada vez mais intensas em algo positivo porque tenho a
sorte de sentir a chegada delas. Alguns de meus amigos não recebem pistas de
que elas estão chegando, ou talvez não saibam decifrar essas pistas ou escolham
não fazer isso. Sou afortunada por possuir uma natureza instintiva que questiona
diariamente como minha mente está, mas outros não têm a mesma sorte. Não
significa que falharam. Enfrento minha demência com ações. Entretanto, não é o
mesmo para todo mundo.
Todos temos táticas individuais para enfrentar a vida e essa doença, mas
quando aqueles a nossa volta nos incapacitam, isso muda a maneira como
vivemos. Perguntei a meus amigos como a família deles reagiu ao diagnóstico:
É verdade que minha amiga não deveria ter se desculpado pela ignorância do
irmão. Também é verdade que ele teria lidado melhor com a situação se tivesse
tentado entender como é ter demência. Em vez disso, a reação dele fez com que
minha amiga se sentisse triste e constrangida.
É como disse outra amiga:
É por isso que a educação é tão importante. Não se pode esperar que as
pessoas saibam o que não sabem, e isso inclui aquelas que nos são mais próximas
e queridas. Contudo, elas chegaram às próprias conclusões sobre a demência por
causa do que viram e ouviram enquanto sociedade, e talvez também por causa
do que se recusaram a ver e ouvir, com medo de uma doença como a demência.
A atitude dos outros influencia a maneira como a pessoa que vive com
demência se sente a respeito de si mesma e, portanto, a maneira como lida com
o diagnóstico. Um estudo de 2004 analisou quão complexo pode ser o
comportamento de alguém vivendo com a doença: “Uma pessoa que, na clínica,
insiste que tudo está bem pode fazer isso por medo de ser ‘internada’, por sentir
que o esquecimento é algo menor se comparado a outros problemas de saúde,
ou pela necessidade de manter a autoestima.” O relatório continua:
“Essas eram o tipo de memória que […] ‘vive por muito tempo na
memória da mente’, pois tende a estar ligada de forma muito
significativa à sobrevivência física e psicológica do senso de si
mesmo do indivíduo. A intensidade do esforço para sobreviver
durante o tempo como prisioneiro de guerra pode ter criado essas
memórias duráveis, que pareceram sobreviver quase até o fim ao
massacre da demência […] Essas histórias lhe permitiram ser
prontamente visto como pessoa “em sua totalidade”. Elas lhe deram
um senso de identidade narrativa e enfatizaram a importância da
manutenção dessa narrativa durante a doença.”
Todos nós queremos ser vistos além da demência, e não reduzidos a ela. Isso
gera, tanto em nós mesmos quanto nos outros, uma atitude melhor em relação à
doença. Falei nestas páginas sobre quanto gostei de ser conhecida em meu
vilarejo como Wendy, “a senhora da câmera”, em vez de “Wendy com
demência”. Foi restaurador para mim, porque as pessoas viam minhas
habilidades antes de verem a demência — elas viam a pessoa, não a doença.
Chegará um momento em que não seremos capazes de partilhar histórias
sobre quem éramos antes da demência, e é por isso que sempre dizemos que a
pessoa que nos é mais próxima nos conhece melhor e deve ser sempre ouvida.
Ela é a guardiã de nossa história quando a comunicação se torna difícil, mas essa
história também pode ser dividida com outros cuidadores, como uma maneira
de criar conexões e relacionamentos. Se as histórias são partilhadas, elas podem
retornar até nós e talvez explicar nossas ações de forma mais evidente. Isso me
lembra da história que ouvi sobre uma ex-enfermeira que costumava se sentar na
mesa da enfermagem na casa de repouso. Os cuidadores não sabiam por que ela
ficava tão zangada quando tentavam fazer com que ela voltasse para o quarto.
Quando descobriram que ela costumava ser enfermeira, permitiram que ficasse
sentada lá, mexendo nos papéis e fingindo fazer anotações. Ou a história do
homem que era leiteiro e foi rotulado de “criador de problemas” porque
acordava às 4 da manhã e ia à cozinha procurar garrafas de leite para colocar em
frente à porta dos quartos. Ele ficava zangado e violento quando tentavam
impedi-lo — você não ficaria, se alguém interferisse no seu trabalho? —, mas,
quando descobriram que era leiteiro, permitiram que entregasse o leite durante
a madrugada. Assim que ele terminava e ia para “casa” dormir, a equipe removia
as garrafas antes que os outros residentes acordassem.
Compartilhar detalhes autobiográficos da pessoa é vital para qualquer plano
de cuidados, como o relatório de Mills confirmou:
SOBRE A POSITIVIDADE
Um estudo realizado em 2020 por Hannah Scott analisou as atitudes das
mulheres em relação à demência. Concluiu-se que as pessoas que convivem com
mulheres com demência possuem grande impacto na maneira como elas
próprias se veem após o diagnóstico e que a manutenção da vida social faz com
que atributos positivos sejam refletidos de volta para elas, aumentando a
autoestima e melhorando a ideia que têm de si mesmas.
O relatório discutiu como a determinação das mulheres de enriquecer a
própria vida com uma ampla variedade de atividades lhes trouxe “felicidade e
senso de propósito”. “Manter a independência também foi importante para
muitas mulheres, que expressaram o desejo de ter controle sobre as decisões e
aspectos da própria vida. Isso foi conseguido por meio de estratégias de
enfrentamento: o uso de diários e calendários, por exemplo, foi particularmente
importante para as mulheres que moravam sozinhas.”
O estudo afirmou que “manter um conceito positivo de si mesma foi crucial
para a atitude geral de resistência. Isso permitiu que as pessoas se percebessem
sob uma luz positiva, reforçando capacidades e, consequentemente, protegendo
a autoestima”.
Consigo entender por que essas estratégias de enfrentamento trouxeram mais
positividade para as mulheres, mas não há razão para que não se apliquem
também aos homens. Sempre falei sobre a importância de não desistirmos de
nós mesmos — tantos outros já tentam fazer isso por nós. Para mantermos uma
atitude positiva, é essencial que nos concentremos no que ainda pode ser feito,
nas atividades nas quais ainda podemos nos envolver, e encontremos soluções —
como os diários e calendários mencionados — que as tornem possíveis. Tudo
isso gera uma atitude mais positiva.
O relatório também discorreu sobre a negatividade que as mulheres
enfrentavam advindas de familiares, e o quanto isso diferia da própria atitude:
“As mulheres tinham a esperança de que a deterioração não fosse uma
inevitabilidade e elas pudessem continuar como estavam. Os familiares, em
contrapartida, acreditavam que a incerteza era uma razão para temer o futuro,
além da inabilidade de saber ‘quão ruim’ a demência poderia se tornar.”
Perguntei a meus amigos se os amigos e familiares deles foram capazes de
inspirar uma atitude positiva:
Obviamente, cada grupo vai ser diferente, então talvez você tenha que
encontrar o grupo certo para você. O relatório descobriu, entretanto, que
“facilitar e encorajar a participação em tais grupos pode reforçar a
individualidade e, por consequência, promover o bem-estar. Isso se conecta à
questão mais ampla de diminuir o estigma da demência, até que as pessoas que
vivem com ela deixem de tentar iniciar o cansativo processo de modificar ou
esconder sintomas por medo da rejeição social”.
Em um mundo ideal, não haveria necessidade desses grupos. Só temos
grupos de apoio porque a sociedade não faz os ajustes que permitiriam que nos
integrássemos. Por que criar um grupo de arte separado para pessoas com
demência se os grupos de arte comuns são igualmente satisfatórios? Eu me
lembro do coral no qual adorava cantar, mas que tive que largar porque o
organizador se recusou a permitir que eu segurasse uma folha de papel no palco,
a fim de poder ler a letra das músicas.
Talvez, no futuro, sejamos capazes de falar abertamente com todo mundo
sobre nossos diagnósticos, mas, até chegarmos a essa utopia, os grupos de apoio
oferecem um ambiente mais seguro, relaxado e sem julgamento para qualquer
um de nós. E, geralmente, também boas risadas.
Nós entendemos, confiamos, não julgamos, compartilhamos, nos
importamos e estamos lá para apoiar uns aos outros independentemente do que
a demência jogar em nosso caminho. Talvez pudéssemos ensinar ao mundo a
simples lição de que aceitar e compreender o outro é possível, e se nós, que
temos uma complexa doença cerebral, sabemos disso, então a lição não pode ser
assim tão difícil para todos os outros.
EPÍLOGO
Alguns meses depois, acordo e um sorriso logo surge em meu rosto. Prendo
a respiração e tento ouvir o vento sacudindo as janelas, um sinal de que o voo de
hoje será cancelado, como tantas vezes antes. Tudo que ouço, porém, são
pássaros. É um bom sinal, especialmente porque hoje me unirei a eles nos céus.
Faz meses desde que vi o anúncio feito pela Young Dementia UK, uma
organização filantrópica com a qual sempre estive envolvida de alguma maneira.
Dessa vez, eles queriam levantar fundos organizando saltos de paraquedas.
Talvez esperassem que familiares ou cuidadores participassem. No entanto, eu
estava bem e em forma, e quem disse que pessoas com demência não podem
saltar de aviões?
Dirigimos sob o céu azul. Eu me perguntara se a médica aceitaria assinar a
autorização. Eu sabia que, a menos que ela autorizasse, os organizadores não me
deixariam participar. Contudo, por sorte, desde que leu meu primeiro livro, ela
mudou a forma como enxerga a demência. E então, quando fiz a solicitação, ela
revirou os olhos, balançou a cabeça e, sorrindo, assinou o papel.
Quando Gemma e eu vemos as primeiras placas indicando o aeródromo, me
lembro da última vez que vim até aqui para um voo de planador. Antes do voo, o
piloto havia chamado minhas filhas de lado e perguntado se eu podia fazer aquilo.
Eu tentei não me ofender, sabendo que aquela atitude de descrença era mais uma
razão para escrever um livro sobre o assunto. E então escrevi. Quando voltei à
terra, lógico.
Ao nos aproximar da saída para o aeródromo, encontramos tráfego. Olho
para o navegador do GPS: ele sinaliza que chegaremos em dez minutos, mas me
pergunto se está levando o trânsito lento em consideração. Gemma deve sentir
minha ansiedade, meu medo de me atrasar.
— Você está estressada por causa do trânsito, mas não porque vai saltar de
um avião? — pergunta ela, rindo.
De todas as vezes que contei às pessoas sobre meu último plano maluco,
sempre houve uma pausa, a descrença estampada nos olhos delas. Então eu
sentia a necessidade de dar um tom mais leve à situação e tranquilizá-las,
lembrando que saltaria de um avião a pouco mais de três mil metros amarrada ao
instrutor: não havia risco de que eu me esquecesse de abrir o paraquedas.
— Então posso relaxar e aproveitar — completava, dando de ombros.
Não sei se as pessoas ficaram convencidas.
Eu me pergunto de onde vem essa aversão ao risco. Com demência ou não,
minha qualidade de vida é tão importante quanto a de qualquer um, e quero
viver uma abundância de experiências e aventuras. Por que não?
Sentada ao lado de Gemma, que ri porque tenho medo de me atrasar, mas
não de estar em queda livre, sei que ela jamais pensaria em saltar de um avião.
Contudo, a atitude positiva e o apoio que ela me transmite significam que posso
fazer isso sem me preocupar. Minhas filhas me capacitam, constantemente me
encorajando com o choque e horror iniciais que sempre demonstram diante de
seja lá o que for que eu decida fazer em seguida. Elas abriram mão da
preocupação, assim como eu. Permitem que eu aproveite a vida e, por isso, serei
eternamente grata.
Finalmente saímos da estrada principal e pegamos o acesso ao aeródromo. Lá
sou apresentada às outras pessoas que também vão saltar e à toda a papelada que
preciso preencher. Ninguém menciona demência, nem mesmo quando nos
sentamos para tomar um chá, observando os outros paraquedas descendo das
nuvens.
Finalmente, meu nome é chamado. Dou um abraço final em Gemma e sigo
para o treinamento. O treinamento, lógico, é incrivelmente hilário para mim. O
instrutor fornece inúmeras orientações, frequentemente acompanhadas de uma
longa lista de coisas que devemos fazer e outra, ainda mais longa, do que não
devemos. Consigo reter uma delas: devo erguer os pés ao pousar. Vai ter que
servir.
Faço piadas para relaxar os outros, particularmente a mulher que foi
“surpreendida” pela família, naquela manhã, com um salto de paraquedas como
presente por seu aniversário de 50 anos.
Fico ao lado de uma jovem que também está saltando para arrecadar fundos.
Os dois homens que filmarão o salto iniciam uma conversa educada. Menciono
que estou saltando pela Young Dementia UK.
— Porque tenho demência — acrescento.
Eles ouvem, mas não reagem — afinal, são pessoas com uma mentalidade
igual a minha; pessoas que saltam de aviões por puro prazer; que buscam
aventura. Sei que eles não me considerarão um risco.
Meu traje é colocado a minha frente, mas só olho para ele, sem saber onde
colocar cada braço e perna. Subitamente, um homem gigante, todo vestido de
rosa pink, caminha decidido em minha direção.
— Vamos lá, deixa eu te ajudar a vestir isso — diz ele calmamente, com uma
voz que de algum modo não combina com sua estatura. — Vamos tornar este
dia inesquecível.
Não o contradigo.
Desse momento em diante, eu o chamo de Sr. Pink, e não sinto medo,
somente a total confiança de que ele me levará ao céu e me trará seguramente de
volta à terra. Todos os olhos estão em mim enquanto me preparo para ir até o
avião. Os observadores se reuniram em torno de Gemma, e os olhos deles
passam de mim para ela, como se perguntassem: “Ela deveria estar fazendo isso?”
Eu a abraço uma última vez e, para reconfortá-la, digo:
— Estou tão empolgada!
O traje vermelho e azul que estou usando é tão incômodo que ando gingando
até o avião. São necessários dois homens para me puxar para dentro dele. Fico
surpresa ao ver que o interior é uma casca vazia, sem assentos. Outras pessoas se
unem a nós e, em breve, iniciamos a corrida pela pista. Quando decolamos, os
motores do avião rugem em meus ouvidos. Eu me distraio com a vista
deslumbrante da costa enquanto o Sr. Pink comenta o que podemos ver lá de
cima: ao norte até Filey, Flamborough Head, Scarborough e Robin Hood’s Bay.
Quando o avião dá uma guinada para o sul para ganhar altitude, minha amada
ponte Humber surge no horizonte.
Demoramos cerca de vinte minutos para subir até os poucos mais de três mil
metros e um bipe sinaliza que é hora de saltar. O Sr. Pink me prende a ele com
firmeza e arrastamos os pés até a porta aberta do avião.
— Cabeça para trás, cabeça para trás — repete ele em meu ouvido quando
uma rajada de ar frio me atinge, roubando meu fôlego.
E então saltamos.
Estou flutuando, com a terra abaixo de mim e o Sr. Pink preso a minhas
costas como o casco de uma tartaruga. Estamos acima dos pássaros.
Caímos... muito depressa... então mais devagar... a 210 quilômetros por
hora, para ser precisa. Estamos em queda livre em direção à terra e estou
sorrindo, mais do que jamais sorri antes. Se isso não é liberdade, não sei o que é.
Lá em cima, não há demência. Lá em cima, a doença não habita meu cérebro.
Estou voando, livre de tudo que me prende à terra.
O tranco do paraquedas rosa pink me pega de surpresa e, quando ele se abre
acima de nós, sou invadida pela paz, pelo silêncio, por uma sensação de
imobilidade enquanto flutuamos gentilmente em direção à terra. As nuvens são
nossa companhia e o solo é um quebra-cabeça montado.
Uma voz em meu ouvido pergunta:
— Topa fazer algumas acrobacias?
E eu me ouço responder:
— Sim!
Zunimos pelo ar, girando para um lado e depois para outro. Fecho meus
olhos no início, porque tenho a sensação de que eles podem saltar das órbitas,
mas, depois que me acostumo, abro-os novamente e grito de satisfação,
enquanto o mundo passa girando por nós.
Voltamos à posição vertical. Lá em cima, parecia que estávamos descendo em
direção à terra muito lentamente, mas, quando nos aproximamos — Gemma
está acenando, e ela é um pontinho minúsculo —, vejo que, na verdade, estamos
caindo a uma velocidade alarmante.
— Erga as pernas — grita o Sr. Pink quando nos aproximamos, segundo a
segundo, da área de observação. Estou confusa, porque achei que o local de
pouso seria atrás do bosque.
— Erga as pernas — repete ele.
Entretanto, estou exausta, mais em função da animação que por qualquer
outra coisa. Sinto o sorriso ainda pregado em meu rosto, como se o vento o
tivesse deixado lá, mas não tenho mais energia.
Então ouço as pessoas gritando do solo:
— Erga as pernas, Wendy!
O Sr. Pink deve ter percebido, porque faz um pouso na água, como se
fôssemos um par de patos, e eu fico caída a seus pés.
— Perdemos o local de pouso por minha causa? — pergunto.
— Não — diz ele. — Tínhamos que mostrar a todo mundo que você
conseguiu.
Ele me abraça e solta os ganchos e zíperes. Dois outros homens se
aproximam e me ajudam a caminhar até o hangar, onde sou recebida com
aplausos e vivas e tiro meu traje.
Abraço Gemma e então um homem nos interrompe. Ele tira uma nota de
£20 da carteira, porque sabe que estou fazendo isso por filantropia.
— Isso foi incrível, parabéns — diz ele ao me entregar a nota.
Será que ele foi um dos que duvidaram quando subi no avião? Quem sabe?
Naquele momento, não me importo.
Se eu ouvisse o que todo mundo diz, jamais teria saltado de um avião. Jamais
teria feito metade das coisas que as pessoas dizem não serem possíveis para quem
vive com demência.
Por agora, de volta à terra firme, ainda estou vibrando — e planejando minha
próxima aventura. Por que elas deveriam chegar ao fim?
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Twitter da autora:
https://twitter.com/WendyPMitchell