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DADOS DE ODINRIGHT

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TÍTULO ORIGINAL TRADUÇÃO
What I Wish People Knew About Alessandra Bonrruquer
Dementia: From Someone Who Knows

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M668q
Mitchell, Wendy
O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre demência [recurso eletrônico] : de alguém
que convive com o diagnóstico / Wendy Mitchell ; tradução Alessandra
Bonrruquer. - 1. ed. - Rio de Janeiro : BestSeller, 2023.
recurso digital
Tradução de: What I wish people knew about dementia a : from someone who knows
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5712-277-8 (recurso eletrônico)
1. Mitchell, Wendy - Saúde mental. 2. Demência. 3. Demência - Aspectos sociais. 4. Livros
eletrônicos. I. Bonrruquer, Alessandra. II. Título.
23-83346
CDD: 616.831
CDU: 616.895.8

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Copyright © Wendy Mitchell and Anna Wharton, 2022

Published by arrangement with Rachel Mills Literary Ltd.

Copyright da tradução © 2023 by Editora Best Seller Ltda.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia por
escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela
Editora Best Seller Ltda.
Rua Argentina, 171, parte, São Cristóvão
Rio de Janeiro, RJ — 20921-380
que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Produzido no Brasil

ISBN 978-65-5712-277-8

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Dedicado a minha maravilhosa amiga Sylvia, que infelizmente já não está
mais aqui, mas que nunca será esquecida.
SUMÁRIO

Introdução

Sentidos
Sobre a maneira que eu como
Sobre o que eu como
Sobre a escolha de alimentos
Sobre comer em casas de repouso
Sobre cozinhar um ovo
Sobre os cheiros
Sobre as alucinações olfativas
Sobre a audição
Sobre a visão
Sobre os sonhos
Sobre o tato

Relacionamentos
Sobre os cuidados
Sobre como os cuidados modificam os relacionamentos
Sobre os cuidados prestados pelas filhas
Sobre morar sozinha
Sobre a necessidade de conexões
Sobre pessoas com demência como cuidadores

Comunicação
Sobre enfrentar as críticas
Sobre o fato de que as palavras importam
Sobre a linguagem empregada pelos profissionais
Sobre ser incapacitada pelos outros
Sobre as representações da demência
Sobre a comunicação sem linguagem
Sobre as redes sociais
Sobre tecnologia

Ambiente
Sobre as estações
Sobre caminhar
Sobre tornar os lugares amigáveis para as pessoas que vivem com demência
Sobre a vizinhança
Sobre me sentir perdida
Sobre viver em casa
Sobre meu quarto da memória
Sobre lares e casas de repouso
Sobre os vilarejos da demência

Emoções
Sobre nossa capacidade de sentir emoções
Sobre a tristeza
Sobre o medo
Sobre a ansiedade
Sobre a raiva
Sobre a culpa
Sobre a felicidade

Atitude
Sobre os dias ruins
Sobre o diagnóstico
Sobre o enfrentamento
Sobre as atitudes dos profissionais
Sobre as atitudes da família
Sobre o senso de si mesmo
Sobre a positividade
Sobre o apoio daqueles iguais a nós

Epílogo
Bibliografia
Agradecimentos
INTRODUÇÃO

E então nos encontramos novamente. É março de 2021, e estou escrevendo este


segundo livro após um ano difícil para todos nós. Minha biografia, Somebody I
Used to Know [Alguém que eu costumava conhecer, em tradução livre], foi um
sucesso de vendas e decidi escrever a sequência no verão de 2020. O plano era
que a publicação acontecesse em 2022, e a primeira coisa que disse a minha
parceira de escrita Anna Wharton quando me dei conta disso foi: “Não planejo
estar aqui quando acontecer.”
Anna gentilmente me lembrou de que eu dissera a mesma coisa antes da
publicação do primeiro livro em 2018 e, no entanto, cá estou.
No momento em que escrevo este livro, quase sete anos se passaram desde
meu diagnóstico de demência de início precoce e ainda vivo sozinha e de
maneira independente, sem cuidadores. O que aprendi desde aquele dia, em
julho de 2014, no qual o neurologista confirmou o que havia sido sussurrado
para mim ao longo de várias cartas e exames? Como muitas pessoas, eu nada
sabia sobre a demência no momento do diagnóstico. Tudo o que conhecia eram
os fragmentos que eu havia absorvido da mídia, dos jornais, da televisão, talvez
de alguma história contada por um amigo. Eu fiquei assustada, é óbvio, como a
maioria das pessoas ficaria. Estava aterrorizada com essa doença degenerativa e a
trajetória que lenta, mas inexoravelmente, passaria a conhecer. De um momento
para outro, senti que perdera o controle sobre minha vida — uma sensação
apavorante, mas também muito normal.
De volta a minha pergunta: o que aprendi? Bem, em primeiro lugar, que eu
tinha muito menos a temer do que acreditava. Que sim, a demência é um
diagnóstico triste, mas, como tudo na vida, tem início, meio e fim. Quem sabe
em que ponto estou da jornada com essa doença? O que vejo agora, de minha
posição, é somente um trecho de minha história completa com a demência. Será
que é tão diferente assim da maneira como qualquer um de nós vive? Afinal, a
única certeza que tenho é a mesma de todo mundo: somente sobre o dia de
hoje.
Contudo, o motivo pelo qual quis escrever este livro foi para partilhar parte
do que aprendi sobre a demência, pois acredito que isso pode surpreendê-lo,
inspirá-lo, definitivamente informá-lo e, com sorte, ajudá-lo a ter a melhor vida
possível ainda que esteja lidando com essa doença ou apoiar algum conhecido
com esse diagnóstico.
O que fez a maior diferença para mim foram as pessoas que encontrei ao
longo do caminho. Ser capaz de conversar e trocar experiências com amigos que
também vivem com a demência fez com que eu me sentisse normal nos dias em
que o mundo parecia confuso. Saber que havia outras pessoas lá fora, passando
por dias péssimos e dias ótimos, mas continuando a viver — não a sofrer (eu
odeio essa palavra) de demência, mas a viver com ela —, fez imensa diferença.
E, como elas fizeram tal diferença para mim, quis que você também as ouvisse,
porque minha experiência com a demência é somente minha experiência. Quando
você conhece uma pessoa com demência, você simplesmente conhece uma
pessoa com demência. Somos tão diferentes agora quanto éramos antes do
diagnóstico. Assim, é importante para mim que, desta vez, você ouça outras
vozes. Embora nem sempre o livro vá estampar o nome de cada um, as vozes
que compartilharão as próprias experiências pertencem a: Elaine, Eric, Eddy,
Pat, Monica, Sue, Roland, Bob, Sue, Barbara, Colin, Brian, Janet, Paul, Delyse,
Stewart, Gail, George, Dory e Agnes. Todos eles vivem com demência aos 50,
60, 70 e 80 anos ou cuidam de pessoas que têm a doença. Alguns foram
diagnosticados há mais tempo que eu, outros há somente um ou dois anos.
Quando recebi o diagnóstico, não fazia ideia de onde começar a buscar
informações sobre como a doença poderia ser para mim. Quando se é
diagnosticado, subitamente você deve descobrir tudo por conta própria:
ninguém entra em contato para indicar serviços de apoio ou grupos de pessoas
com a mesma doença. Você pode nem mesmo estar pronto para participar
desses grupos e levar alguns meses para isso. No entanto, por onde, então,
começar? Ouço muito frequentemente que há cartazes e folhetos informativos
por aí. Como saber, porém, onde procurar por eles ou mesmo pelo que
procurar?
Espero que este livro forneça ao menos um ponto de partida. Ao ler, imagine
que estou gentilmente segurando seus ombros e levando-o em direção a algumas
informações que acredito que possam ser úteis. Não proclamo que ele seja uma
lista completa de respostas a suas perguntas, mas sim um bom lugar para
começar.
Quando as pessoas pensam sobre demência, imediatamente a associam à
memória. São poucas as que percebem, por exemplo, como ela modifica o
relacionamento que temos com nossos sentidos, nossas emoções, nossa
comunicação. Poucas entendem a importância de um bom ambiente — tanto
interno quanto externo — após o diagnóstico, e as pequenas mudanças que
podem fazer uma grande diferença. A menos que você diga a elas ou fale a
respeito, as pessoas jamais saberão como a demência modifica os
relacionamentos que você tem — e como fazer com que funcionem melhor. E,
se você não sabe de nada disso, como pode se responsabilizar pelas próprias
atitudes?
Espero abordar todas essas áreas na sua companhia, seja você alguém vivendo
com demência, apoiando uma pessoa com a doença, um profissional cujo
trabalho está intrinsecamente ligado ao tema ou somente um indivíduo curioso
que acredita que a empatia e a inclusão são melhores para todos nós — a você,
ofereço boas-vindas especialmente calorosas. Nestas páginas, você encontrará
todas as coisas que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre demência.

Wendy Mitchell
novembro de 2021
SENTIDOS

Como minúsculas bolhas subindo à superfície de uma panela de água fervente, as


memórias ainda podem surpreender até mesmo aqueles que sofrem de uma
doença que as rouba. Pensei em uma delas outro dia, e era exatamente sobre
isto: minha primeira aula de economia doméstica, fervendo uma panela de água
para cozinhar um ovo.
Eu levara aquele ovo até a escola com muita delicadeza, aninhado em um
novelo de lã. Ao chegar à escola, a Srta. Marple, a professora de economia
doméstica, me repreendera:
— Ovos devem ficar na caixa.
Havíamos aprendido rapidamente que ela tinha uma língua ferina. A Srta.
Marple nos aterrorizava, mas aquele era o primeiro ano do ensino médio e,
todas as semanas, nós nos sentíamos muito importantes carregando nossos
ingredientes para a escola em potes da Tupperware.
— Hoje, vamos aprender a cozinhar um ovo — disse ela durante aquela
primeira aula.
Ouvimos as instruções, tomando o cuidado de anotar cada estágio em nosso
caderno pautado. Colocar o ovo em uma panela com água, assegurar-se de que
afunde, em vez de boiar até a superfície, programar o temporizador e retirar o
ovo da água fervente no momento correto.
Eu senti o hálito da Srta. Marple em minha nuca quando ela circulou pela
sala, observando cada uma de nós.
— Muito bem, Wendy — disse ela antes de passar para a próxima aluna,
fazendo com que eu e minha colega trocássemos um olhar de alívio.
Foi ali que me sintonizei com esse tipo de prazer sensorial pela primeira vez?
É difícil dizer. Minha mãe não era muito fã de cozinhar ou, ao menos, não sentia
o mesmo prazer que eu passei a sentir com isso ao crescer. Não consigo me
lembrar de alguma coisa que ela tenha me ensinado na cozinha. Era meu pai
quem eu encontrava por lá, com as mangas enroladas até os cotovelos e as mãos
cheias de farinha, preparando algum novo tipo de massa. Fiz o mesmo como mãe
solo, tentando ser o mais inventiva possível para persuadir minúsculas boquinhas
a provar alguma nova delícia. Minhas filhas sempre estavam mais dispostas a
experimentar algo que coubesse em seus dedinhos: tortas e salgados em
miniatura, contendo muito mais vegetais do que eu normalmente conseguiria
convencê-las a comer. Assistíamos a Masterchef juntas e as meninas tentavam
imitar Loyd Grossman. Uma vez por mês, recriávamos o programa, e essa era
minha chance de persuadi-las a tentar coisas novas, conforme avaliavam o
cardápio de degustação que eu havia preparado para elas: uma quiche minúscula
coberta de pimentões assados ou peixe, um pequeno risoto dividido entre nós
três. Elas nunca precisavam de muita persuasão para experimentar as
sobremesas, que normalmente eram os únicos pratos a receber nota 10.
Agora é mais difícil conjurar essas memórias — os aromas na cozinha, a
consistência de um bolo perfeitamente assado em minha língua. Os fantasmas
desses aromas talvez ainda vagueiem por minha cozinha, mas eu já não os
reconheço mais.

SOBRE A MANEIRA QUE EU COMO


A demência modifica a forma como nos relacionamos com a comida, erodindo
lentamente o prazer que sentíamos antes. Eu costumava adorar as oportunidades
sociais que a comida oferece: uma grande panela de curry fervendo no fogão, o
cheiro forte dos temperos no ar, os amigos chegando e se sentando em torno de
uma mesa que eu havia decorado com flores frescas do meu jardim. É difícil
especificar o momento no qual a parte social das refeições se tornou difícil,
quando as conversas que cruzavam a mesa se tornaram confusas demais para que
eu as acompanhasse, quando eu passei a colocar o guardanapo no colo e me
recostar na cadeira, ouvindo sem contribuir. Ou o momento no qual o ruído
metálico dos talheres contra o prato se tornou alto demais para mim, deixando-
me ansiosa e insegura.
Comer é uma experiência muito sensorial, não somente em termos de
paladar e olfato, mas também de tato, audição e visão. Certa vez, uma toalha
preta me fez ter a impressão de que a mesa que ela cobria era um grande
sumidouro no meio da sala de jantar e, quando meus olhos se ajustaram ou meu
cérebro conseguiu assimilar o que estava diante de mim e eu finalmente percebi
que se tratava de uma toalha, mesmo assim fui incapaz de determinar onde a
mesa começava ou terminava sob ela.
Similarmente, pratos brancos se tornaram um problema. Sirva a alguém com
demência um prato branco contendo um purê de batatas pálido ou um pedaço
fino de peixe e essa pessoa sequer irá perceber que há comida no prato. Nem
mesmo nossos olhos despertam a mesma fome de antes. Precisamos de contraste
para distinguir se há ou não comida no prato.
Quando entendi que isso era obra da demência, decidi ser mais esperta que
ela e comprar pratos amarelo-vivo, já que geralmente não comemos coisas dessa
cor, com exceção de ovos mexidos. No entanto, mesmo esses pratos se
tornaram problemáticos. Meus talheres perseguiam a comida em torno do prato
até que ela caía pelas bordas, e, quando não estava lá para ser vista, era como se
ela simplesmente nunca tivesse existido. Pensei nas vezes em que sentara minhas
filhas na cadeira alta e observara exatamente a mesma coisa acontecer com elas.
A solução nesse caso fora pratos de borda alta, que tornava difícil para bebês
empurrar a comida para fora. Assim, doei os pratos amarelos para uma loja de
caridade e comprei tigelas — grandes e fundas tigelas para comer macarrão.
Agora é menos provável que a comida fuja de mim.
Até termos uma doença complexa no cérebro, não percebemos quão
complicadas são algumas das tarefas cotidianas que realizamos sem pensar. O que
para outras pessoas parece o simples ato de usar garfo e faca, na verdade é um
processo muito complexo: um movimento de serra com uma das mãos enquanto
a outra mantém a comida estável. Algo que me lembra do que acontece quando
as crianças aprendem a tocar piano com as duas mãos: inicialmente, faz mais
sentido para o cérebro seguir a outra mão em uníssono. É somente com a prática
que cada mão aprende a tocar teclas individuais. Após meu diagnóstico, tentei
comer da maneira que sempre fizera, mas, subitamente, a comida começou a
escapar dos talheres, como se minhas mãos já não conversassem entre si. Uma
salsicha inteira precisava ser empurrada em torno do prato até que eu
conseguisse espetá-la com o garfo e levá-la à boca para morder um pedaço. O
ato de cortar carne era difícil e laborioso demais. Eu me sentia tola por não
conseguir comer sem passar vergonha, mas perguntei a mim mesma: qual é a
vergonha em ter uma doença em meu cérebro que está consumindo muitas de minhas
habilidades? O melhor a fazer era encontrar uma maneira de lidar com ela. E a
solução foi bastante simples: trocar a faca por uma colher. O garfo cortava a
comida e a colher a recolhia em seguida.
Mesmo após lidar com essa questão, porém, continuou difícil comer carne.
Afinal, não é preciso somente cortá-la, mas também mastigá-la. Enquanto como,
tornou-se impossível para mim lembrar há quanto tempo estou mastigando ou
por quanto tempo ainda preciso mastigar. O resultado foi que, por diversas
vezes, eu me engasguei com comida que não mastiguei o suficiente antes de
tentar engolir. Já é difícil me concentrar na comida sem o esforço extra de
cortar e mastigar. Assim, a carne foi deixada de lado e substituída pelo peixe.
As refeições quentes também são difíceis. Recentemente, meu dentista
comentou quantas marcas de queimadura tenho no interior da minha boca — eu
simplesmente esqueço que um pedaço muito quente de batata queimou minha
boca e, na colherada seguinte, faço a mesma coisa de novo.
É difícil saber se foi algo neurológico ou somente o recém-descoberto
esforço para comer que fez com que eu me sentisse neutra em relação à comida.
Talvez, sem qualquer outra coisa para substituir o prazer de saborear uma
refeição ou mesmo de prepará-la, meu cérebro tenha simplesmente passado a
ignorar todo o processo. Ou talvez, como com tantas outras coisas, uma
conexão tenha se perdido lá dentro, o que significa que já não sinto fome. Nem
fome nem saciedade, na verdade. Agora eu como porque preciso. Para ter
combustível. Quando mencionei quão pouco como em meu blog, fui inundada
por ofertas de doação de alimentos. Algumas pessoas menos prestativas
chegaram a sugerir que tenho dificuldades de memória porque privo meu
cérebro de nutrientes vitais. O que essas pessoas não entendem é que a
demência não modifica somente como comemos, mas o que comemos.

SOBRE O QUE EU COMO


Eu costumava adorar cogumelos em tudo. Ainda penso com ternura no simples
prazer que eu tinha em cortá-los, nas fatias em um formato perfeito de guarda-
chuva, neles ainda um pouco sujos de terra, como se tivessem sido recém-
colhidos do solo de uma floresta. Eu os cozinhava com manteiga e jamais resistia
a provar um antes de colocá-los no prato. Um jantar simples de torradas com
cogumelos me saciava, e eu era capaz de repetir esse prato várias vezes por
semana. Agora eu os como de vez em quando, sem sentir prazer com a textura
ou o gosto. Eles não têm gosto de nada. Eu poderia muito bem estar mastigando
papelão.
Pimenta é outra coisa que eu colocava em todos os pratos — de preferência
na omelete espanhola, mas para mim era um tempero que realmente combinava
com tudo. Fosse verde-esmeralda ou vermelho-rubi, minha língua era afiada e
conseguia distinguir os diversos sabores e cores. Durante minha primeira
gestação, eu sentia desejo por pão torrado com pimenta, e minha filha Sarah
nasceu com uma aversão a qualquer coisa picante que durou até a vida adulta.
Dei adeus a todos esses prazeres após o diagnóstico, mas havia um que não
era negociável: o chá. Para mim, é impossível invocar o sabor de cogumelos e
pimentas, e é difícil sentir falta de algo de que você não se lembra. Entretanto, o
chá era diferente; era mais que uma bebida e sempre me causara a mesma
sensação de um abraço quentinho. As xícaras, porém, se tornaram objetos
difíceis para mim, com as abas complicadas de manejar, e a atenção necessária
para lidar com o conjunto de xícara e pires era demais. Assim, adotei uma
caneca que conduzia o calor sem me queimar, mantendo o chá quente e minhas
mãos aquecidas. Eu gostava de me sentar com as mãos em torno da caneca,
apreciando tanto o ritual quanto o sabor.
Algumas noites foram solitárias desde o diagnóstico, especialmente durante o
inverno, quando o sol se põe muito cedo e a escuridão torna tudo mais difícil,
mas nunca me senti sozinha tendo uma xícara de chá comigo. Soa estranho, mas
talvez a conexão emocional com o chá tenha feito as memórias que tenho com
ele perdurarem: todas aquelas xícaras partilhadas com amigos e entes queridos,
em momentos de celebração ou perda. Contudo, algo começou a mudar. O chá
começou a ter um gosto estranho, diferente, e com isso quero dizer diferente a
cada dia — certa vez, teve gosto de nabo. Inicialmente, achei que o problema
era o leite. Experimentei adicionar só um pouquinho e então removê-lo de vez.
Tentei diferentes variedades de chá no lugar do meu amado chá preto, mas nada
adiantou. Para mim, pareceu uma piada de mau gosto: uma doença que já me
roubara tanto agora me roubava também esse prazer tão simples. Eu me sentava
sozinha, com uma xícara de água quente com limão, tentando recriar o
sentimento de amizade que o chá anteriormente me oferecia, mas não era a
mesma coisa.
Eu despistei a demência em muitas outras coisas. Aceitei que os armários da
minha cozinha são agora fantasmas do que já foram. Já não há latas e vidros
disputando espaço, ingredientes desesperados para serem escolhidos, panelas
empilhadas. Há muito me despedi dos diversos utensílios de cozinha que eu
tinha. Contudo, nada substitui o chá e, muito embora eu não sinta mais prazer
com isso, bebo uma versão muito fraca de chá preto, simplesmente para manter
a conexão.
É óbvio que faz sentido que uma doença cerebral complexa afete não
somente as funções cognitivas usadas para comer e beber, mas também a
experiência sensorial e as funções motoras como um todo. Perguntei a meus
amigos de que forma a alimentação mudou para eles desde o diagnóstico. Eis
algumas das respostas:

“Eu costumava cozinhar, porque meu marido não sabe, mas agora
compramos refeições prontas. Eu como muito menos que antes. E
nunca consigo achar garfos e facas. Meu marido diz que eles estão
guardados na mesma gaveta há quarenta anos, mas nunca sei onde
estão.”
“Eu costumava adorar ovos, mas não os como mais, porque não
suporto ovos fritos ou cozidos — não suporto mais ovos, e também
não como mais carne.”
“Eu costumava cozinhar. Agora deixo isso para meu marido, mas
me sinto culpada e sinto que sou eu quem deveria estar cozinhando.”
“Eu não cozinho. Minha mulher é quem cozinha, e eu como
qualquer coisa que ela prepare.”

SOBRE A ESCOLHA DE ALIMENTOS

Tomar decisões pode ser um processo muito complicado quando você tem
demência. No meu caso, isso significa que frequentemente opto por comer a
mesma coisa. Sempre que estou na rua, compro um sanduíche de atum. Isso me
poupa da confusão que impera em meu cérebro se eu tiver uma lista de opções
ou for confrontada por prateleiras de sanduíches de todos os tipos de recheio em
embalagens brilhantes.
A demência também deixou minha alimentação mais intuitiva. Da mesma
maneira que costumo confiar em meus instintos para analisar se sinto boas
energias de uma pessoa que acabei de conhecer, também presto mais atenção aos
alimentos que meu corpo demanda. Recentemente, tive vontade de comer
nozes e tomates e notei que, quando a necessidade de quaisquer nutrientes que
meu corpo estava exigindo era satisfeita, ele se aquietava novamente. Adquiri o
hábito de preparar sempre as mesmas refeições, porque é mais fácil. Muitas
vezes se trata de uma refeição pronta. No verão, pode ser uma salada, que é fácil
de fazer e não envolve o uso do fogão — assim, não há chance de eu me distrair
e esquecer uma panela no fogo. Eu comia a mesma salada com peixe havia
meses, mas, um dia, no outono, senti muito frio e não consegui me aquecer. O
frio estava dentro de mim, instalado em meus ossos, e, naquela noite, fui incapaz
de engolir a salada. A tigela de alface molenga, tomate e pepino ficou me
encarando até que desisti e larguei o garfo. Era como se meu corpo se recusasse
a comer aquilo. No dia seguinte, procurei no supermercado uma refeição pronta
que me apetecesse. Voltei para casa com uma lasanha e, naquela noite, meu
corpo ficou feliz novamente, e meus ossos quentes de novo. Na semana seguinte,
havia lasanha em todas as prateleiras da minha geladeira.
Não enjoo das refeições como as outras pessoas, simplesmente porque não
me lembro que é a mesma da noite anterior. Comida é um combustível para
mim, nada mais complicado que isso. Como não sinto fome, programo alarmes
no iPad para me lembrar de comer. A única maneira de saber se comi algo no dia
anterior é encontrar a louça no escorredor na manhã seguinte.
Viver sozinha torna mais fácil ter autonomia para escolher o que comer. Não
há ninguém para comentar o fato de que como muito pouco ou a mesma coisa
todos os dias. Para aqueles que recebem apoio na própria casa ou em casas de
repouso, pode não ser tão simples. Minha experiência é comum: estima-se que
cinquenta por cento das pessoas com demência experimentem dificuldade para
comer, beber ou engolir (disfagia). Isso se torna mais comum conforme a
doença progride, mas pode ocorrer a qualquer momento após o diagnóstico e,
mesmo assim, é um tópico pouco discutido.

SOBRE COMER EM CASAS DE REPOUSO


A pesquisadora Lindsey Collins reconhece que o ato de comer e beber muda
após o diagnóstico de demência. Ela focou seu ph.D. em entender como isso
afeta a rotina nas casas de repouso. Durante a pesquisa, publicada em 2020,
Collins analisou muitos aspectos da alimentação nesses locais: a qualidade e a
variedade dos alimentos ofertados, a perda de identidade em termos de não ter
controle sobre o que e quando comer e a maneira como as refeições ainda
podem ser uma parte importante da socialização. As conclusões foram uma
triste leitura para mim, particularmente no caso da variedade alimentar. Parece
que os residentes das casas de repouso são vistos como “alguém a alimentar”, em
vez de indivíduos com preferências e aversões alimentares pessoais. A verdade é
que essas preferências não desaparecem após o diagnóstico de demência.
“As experiências de comer e beber das pessoas vivendo em casas de repouso
eram muito diferentes das experiências prévias de quando viviam na própria
casa”, explicava o relatório.

“A qualidade e a quantidade dos alimentos mudaram, assim como o


ambiente físico e social no qual refeições e lanches ocorriam. Isso
resultou em experiências mais negativas que no passado e menos
focadas nas necessidades e preferências individuais. Para as pessoas
vivendo com demência e disfagia, a perda de identidade e a falta de
reconhecimento das preferências individuais foram ainda mais
aparente [...] Esses indivíduos se tornaram meramente alguém a
alimentar, alguém a quem não era oferecida escolha, que recebia
alimentos e bebidas muitas vezes considerados intragáveis e sem
variedade.”

Quando se trata de comida, nossas preferências e aversões estão tão


intimamente ligadas a nossa personalidade que consigo entender por que, ao
retirar essas preferências de alguém, você retira também um pouco da
individualidade.
Reconheço que seria impossível para a equipe de cuidados atender às
preferências individuais de cada um. Também sei que alguém como eu, que
come a mesma coisa todos os dias, às vezes por meses, seria visto com incerteza,
que se concluiria que não tenho uma dieta variada. No entanto, qual é a
alternativa? Se eu estivesse em uma casa de repouso e me servissem algo de que
não gosto ou que não tivesse um sabor agradável, me recusaria a comer. Então
talvez fosse rotulada de paciente difícil, em vez de se fazer uma tentativa de
chegar ao âmago do por que não consigo comer: seria o sabor do alimento? O
prato em que foi servido? Ou o fato de que as habilidades motoras necessárias
para cortar os alimentos se tornaram difíceis demais de serem controladas?
Além disso, diferentes variações da demência afetam as pessoas de maneiras
distintas. Para pessoas que desenvolvem problemas para engolir, comer pode ser
tão estressante que elas param totalmente. Elas também podem ser encaradas
como difíceis por recusarem comida quando, na verdade, um fonoaudiólogo
poderia ajudá-las ou um nutricionista poderia indicar quais alimentos são mais
fáceis de engolir.
Uma coisa que se destacou na pesquisa de Lindsey Collins foi o fato de que as
refeições ainda são momentos vitalmente importantes para que os residentes
façam conexões, e têm grande impacto sobre o bem-estar mental deles. O
relatório concluiu: “Essas experiências e conexões positivas foram conquistadas
nutrindo-se as pessoas com comidas e bebidas de que gostavam, engajando-as de
maneira significativa, encarando-as como os indivíduos que são e reconhecendo
os benefícios que podem ser obtidos através do simples ato diário de comer e
beber.”
Faz todo sentido para mim. Você não aproveitaria a experiência em um
restaurante se não gostasse da comida, então por que seria diferente para aqueles
vivendo com demência?
Há algumas coisas que as casas de repouso poderiam fazer para ajudar esses
pacientes: lembrar que cor e contraste são importantes para as pessoas com
demência; trocar xícaras e pires por canecas; substituir pratos por tigelas com
bordas que não deixem a comida escapar dos talheres; limitar escolhas a dois ou
três itens; cortar os alimentos para que esfriem mais rapidamente ou não os
servir muito quentes; e minimizar ruídos e barulhos perturbadores.
Certas coisas que implementei ajudaram a tornar a alimentação mais
prazerosa novamente. Às vezes, um prato inteiro de comida pode parecer uma
tarefa enorme. Quando minhas meninas eram pequenas, eu costumava cortar
frutas e vegetais em pedacinhos e colocá-los em tigelinhas ou ramequins. Utilizar
essa abordagem comigo mesma funciona muito bem para mim agora. Depois do
jantar, normalmente coloco algumas oleaginosas — como nozes e castanhas —
em um ramequim, que tem o tamanho perfeito para mim: não vou comer
demais sem perceber e posso pegá-las uma por uma, sem me apressar.
Se alguém gostava de cozinhar antes da demência, não há razão para parar
após o diagnóstico, basta um pouco de ajuda. Em meus últimos dias na cozinha,
eu achava difícil seguir receitas ou lembrar se já havia acrescentado algum
ingrediente, mas uma de minhas amigas consegue cozinhar e a cuidadora dela
mantém um registro dos ingredientes que já foram acrescentados e do tempo em
que estão cozinhando.
Ainda há tarefas que as pessoas que vivem com a demência podem realizar na
cozinha. Podemos mexer a comida que está sendo preparada em uma panela,
por exemplo, para que nos sintamos parte da experiência. As pessoas que
conheço que vivem com demência frequentemente falam sobre como se sentem
culpadas por não ajudar, mas ainda podemos ser úteis — só é preciso pensar um
pouquinho mais para descobrir como.
A HammondCare, da Austrália, produziu três livros de receitas que abordam
diferentes preferências alimentares após a demência, e fonoaudiólogos podem
ajudar aqueles que têm dificuldade para engolir. Também é importante lembrar
que alguns medicamentos podem aumentar ou diminuir o apetite. Em outros
casos, também podem deixar a boca seca, o que torna o ato de comer menos
prazeroso. Assim, fale com seu médico para obter mais informações sobre os
efeitos colaterais de certos medicamentos.
Para aqueles que cuidam de pessoas com demência, o mais importante: tente
não levar para o lado pessoal se recusarmos comer o que vocês prepararam, ou
nos julgar se preferirmos comer a mesma coisa todos os dias. Se alguém está
sentado à mesa sem tocar na comida, pode ser por muitas razões, então, por
favor, não presuma imediatamente que a pessoa está sendo birrenta. Em vez
disso, tente ajudar.

SOBRE COZINHAR UM OVO


Quase desisti definitivamente da ideia de voltar a cozinhar. Muitos desastres na
cozinha me levaram a este ponto: comida arruinada, panelas queimadas. No fim,
parecia mais fácil desligar o fogão de uma vez por todas. Um dia, porém, em um
de meus passeios diários pelo vilarejo, algo chamou minha atenção. Eu passava
pela mesma casa todos os dias, às vezes parando para fotografar as duas ovelhas
que ficavam ali pelo terreno. Enquanto fotografava, frequentemente ouvia os
cacarejos abafados de galinhas. Contudo, jamais notara a caixinha da honestidade
no limite da propriedade e os ovos frescos ao lado dela.
Será que eu ainda me lembrava de como cozinhar um ovo? Peguei um,
perfeitamente oval, e o virei de um lado para o outro na palma da mão.
Já em casa, em pé diante do fogão, uma memória me pegou de surpresa: uma
panela fervendo em cada boca do fogão, vapor preenchendo a cozinha,
diferentes aromas se misturando no ar. Em contraste, agora o cômodo parecia
silencioso e imóvel.
Meu iPad estava no andar de cima e não faria sentido tentar consultá-lo:
quando eu chegasse ao quarto, a pergunta já teria desaparecido da minha mente.
Então decidi começar com o fogão. Será que ainda funcionava? Girei os botões
de todas as bocas. Nenhuma tremulou ou ganhou vida com um brilho alaranjado,
até a última — uma faísca seguida de uma chama. Não sei por que fui capaz de
acender aquela boca em particular. Talvez certa memória muscular
permanecesse. Será que já fora a minha favorita? Não há como saber.
Para ferver água, eu precisava da chaleira. Decidi que seria mais fácil encher a
panela assim; caso contrário, poderia ficar esperando a água fria ferver, me
distrair e ir embora. Então fervi a água na chaleira, enchi a panela e gentilmente
coloquei meu pequeno e perfeito ovo dentro. Eu já sabia que precisaria de um
ou dois alarmes — sabia que, no momento em que saísse do cômodo, o ovo e a
panela de água fervente sumiriam da minha mente. No entanto, por quanto
tempo se cozinha um ovo? Pensei novamente no iPad sobre a cama no andar de
cima. Eu teria que dar um palpite sobre o tempo de cozimento, então escolhi
oito minutos. Liguei o temporizador ao lado da panela, a pequenez do objeto
disfarçando o fato de que produz um som tão alto que mal consigo suportar. Ao
menos o barulho me faria vir correndo até o fogão. Passei manteiga em duas
fatias de pão para esperar pelo ovo e então fui para o solário, com uma câmera
na mão e outro alarme programado no celular, a fim de fotografar os animais
que visitassem meu jardim enquanto eu esperava.
Quando o alarme soou em meu colo, dei um pulo, me perguntando que
diabos seria aquilo — até que ouvi, segundos depois, o toque estridente do
temporizador na cozinha. Lógico, o ovo cozinhando.
Tive que pensar rapidamente no que fazer em seguida: dei-me conta de que
água fria esfriaria a panela e então a enchi com água da torneira, esperando
apenas um segundo antes de retirar o ovo. Queimei a ponta dos dedos ao
remover a casca, mas em seguida cortei o ovo ao meio e me deparei com a joia
amarela no interior. Fatiado sobre o pão com manteiga, ele parecia uma obra de
arte. Eu comi com orgulho. Sei que essa atividade poderia dar errado em outro
dia — eu poderia me distrair ao tentar buscar o iPad, por exemplo —, mas, por
enquanto, fiquei saciada com o prazer de que a demência não havia roubado isso
de mim, minha primeira refeição “feita em casa” depois de... bem, não consigo
lembrar exatamente quanto tempo.
SOBRE OS CHEIROS
Como tantas coisas na vida, nosso olfato é algo em que não pensamos muito. E,
no entanto, ele está sempre presente, catalogando momentos especiais em nossa
mente. Anos depois, os mesmos perfumes virão até nós ao acaso, abrindo nossas
pastas mentais e despejando o conteúdo do interior. Ou, ao menos, era isso que
meu olfato significava para mim. Tratava-se de observar as rosas no jardim da
minha casa quando criança, fascinada pelo cheiro intenso que se desprendia delas
e pelo que a natureza conseguia fazer brotar do solo. O fato de que aquelas belas
rosas, quando totalmente crescidas, tinham a mesma altura que eu, a altura
perfeita para mergulhar o nariz em direção às pétalas e inalar profundamente o
perfume, ajudava. Minha mãe adorava rosas e nosso jardim era repleto de todas
as variedades da flor. Minhas favoritas eram as Ena Harkness vermelho-rubi e as
pétalas amarelas das rosas Peace, com bordas rosadas como se tivessem sido
tingidas pela luz do sol.
Essa memória, preservada por meu olfato, permaneceu tão forte que tentei
recriá-la quando me mudei para a casa em que vivo. Na época, eu já não
lembrava o nome das minhas rosas favoritas e sabia que meu andar oscilante
significava que não poderia me inclinar para cheirá-las. Mesmo assim, plantei
rosas de um vermelho profundo ao longo da calçada, sabendo que o perfume me
alcançaria toda vez que eu fizesse o caminho rumo à porta da frente. Todo verão,
quando sinto esse perfume, revivo aquela memória de infância e algo sobre ela
faz com que eu me sinta segura e feliz, lembrando-me de um tempo diferente.
Não são somente as flores que têm esse efeito. É também o cheiro de couro,
dos primeiros sapatinhos das minhas filhas, que mantenho guardados em uma
caixa. Esses tesouros são mantidos em um cômodo da minha casa que chamo de
“quarto da memória”; trata-se de um santuário no qual memórias felizes
capturadas em filme fotográfico preenchem todas as paredes. É para onde vou
quando preciso me acalmar, cercada por pessoas e lugares que me fizeram feliz.
Só preciso abrir a tampa daquela caixa e lá estou eu novamente, encorajando
pezinhos minúsculos a entrar em sapatinhos vermelhos e arranhados, sair pela
porta e tomar o caminho da escola. O orçamento era apertado como mãe solo,
mas minha mãe comprou sapatos de boa qualidade para as meninas, em uma
época na qual eu não podia pagar por eles. O cheiro de couro também abre
outra pasta em minha mente: uma jaqueta creme que minha mãe me deu
dinheiro para comprar quando eu tinha 15 anos. Ela custou £20, o que parecia
uma fortuna no fim da década de 1960, mas era muito elegante, curta, justa,
macia e ainda delineava as curvas do meu corpo. Como não tinha forro, o cheiro
dela permanecia em minhas roupas muito depois de eu tê-la tirado do corpo.
Até hoje, sempre que passo por alguém na rua e esse perfume rico, terroso e
ligeiramente doce chega até mim, me torno adolescente novamente.
Não são apenas os cheiros da minha infância que me induzem a pensamentos
felizes. Existe um lugar especial a algumas horas de casa, meu pedaço do paraíso:
Derwentwater, em Keswick. Siga a trilha em torno do lago no sentido horário e,
logo após a rocha centenária, você vai encontrar um bosque de pinheiros. Assim
que entrar no bosque, será envolvido por um perfume penetrante, doce e
ligeiramente cítrico. Para mim, basta ficar parada e sentir o aroma fresco, o
silêncio interrompido apenas pelas agulhas de pinheiro esmagadas sob meus pés.
Não preciso estar em meu amado Lake District para ter essa mesma sensação de
paz. Onde quer que eu esteja, uma lufada do aroma de pinheiros me transporta
para o mesmo lugar feliz.
Nosso sistema olfativo é um tesouro de memórias e emoções. O olfato é o
único dos sentidos que não atravessa o tálamo, a usual estação retransmissora dos
nossos sinais sensoriais. Em vez disso, passa diretamente pelo hipocampo, uma
área importante para a memória, e pela amígdala, que tem forte conexão com as
emoções. Por essa razão, alguns estudos foram realizados a respeito de quão
efetiva é a reminiscência em pessoas que vivem com demência branda ao se usar
o olfato como estímulo. Um estudo japonês realizado em 2018 descobriu que,
como incentivo à reminiscência entre a população idosa, o estímulo olfativo
pode ser mais efetivo que a conversação e pode melhorar a saúde mental de
modo geral. O relatório diz: “É mais fácil para as pessoas idosas se lembrarem de
emoções e acontecimentos passados durante intervenções nas quais se pratica a
reminiscência por meio de estímulos olfativos que naquelas nas quais se pratica a
reminiscência usando somente a conversação. Tais intervenções resultam em
estabilidade emocional e, consequentemente, podem diminuir o grau de
depressão durante as intervenções, no curto prazo.” Não admira que eu ame
tanto minha calçada ladeada de rosas.
Outro estudo, realizado na França em 2019, revelou que, quando foram
usados odores para incentivar as lembranças, pessoas com Alzheimer foram
capazes de recuperar um maior número de memórias recentes, bem como
recuperá-las de maneira mais específica, assim como aquelas relacionadas à
infância e à vida adulta.
“O declínio da memória autobiográfica na doença de Alzheimer tem sido
associado a efeitos negativos na identidade e no senso de si mesmo dos
pacientes”, concluíram os pesquisadores. “Nosso estudo demonstra como o
declínio da memória autobiográfica na doença de Alzheimer pode ser, em certa
extensão, diminuído pela exposição a odores […] Em nossa opinião, o estímulo
olfativo deveria ser implementado nos programas clínicos de reabilitação que
visam melhorar a recuperação autobiográfica.”
Quando estimulado, nosso olfato pode ser um recurso útil para reduzir o
declínio da memória autobiográfica. Um estudo francês realizado em 2020
tentou determinar que partes de “nós mesmos” ele se mostraria útil para
redescobrir. Os resultados revelaram que pessoas com demência solicitadas a se
lembrar de detalhes autobiográficos usando vários odores agradáveis tenderam a
focar mais em declarações psicológicas, como, por exemplo, que tipo de pessoa
eram (atenciosas, felizes, amigáveis, sortudas etc.), em vez de na maneira como
ganhavam a vida ou em descrições físicas.
“Ao passo que estudos anteriores demonstraram o efeito benéfico da
exposição a odores na recuperação de memórias autobiográficas na doença de
Alzheimer, este estudo é o primeiro a demonstrar que eles podem ser um
estímulo efetivo para facilitar o acesso ao autoconceito em pacientes com
Alzheimer”, concluíram os pesquisadores.
A perda desse senso de si mesmo foi ligada ao declínio da saúde das pessoas
vivendo com demência. Desse modo, compreender as maneiras pelas quais
podemos nos agarrar a nossas memórias e histórias pode se provar útil para
entender a doença e preservar a pessoa nessa condição. Também há pesquisas
sobre se a perda do olfato pode ser um indicador precoce de Alzheimer, embora
as conclusões não sejam definitivas. Um estudo descobriu que, entre pacientes
com risco genético de desenvolver Alzheimer, o risco de adoecer é cinco vezes
mais alto entre aqueles que perderam o olfato.

SOBRE AS ALUCINAÇÕES OLFATIVAS


Infelizmente, nosso olfato nem sempre nos concede memórias agradáveis.
Muitas pessoas com demência relatam alucinações olfativas, e quase sempre com
odores que elas prefeririam não sentir.
Isso aconteceu comigo muitas vezes. Em certa ocasião, assistindo à televisão,
senti cheiro de queimado. Corri pela casa procurando pelas chamas e até mesmo
fui para o lado de fora em busca de algum incêndio, mas não havia qualquer
sinal. O tempo me ensinou a entender que é improvável que esses cheiros
realmente existam. Quando isso acontece, porém, parece tão real quanto o
cheiro que eu sentia das rosas quando criança. De acordo com os estudos, as
alucinações olfativas tendem a durar o mesmo período que as auditivas ou
visuais, ou seja, entre alguns segundos e um minuto. Uma rápida pesquisa entre
meus amigos revelou que essas alucinações são muito comuns:

“Frequentemente sinto cheiro de madeira queimando. Não acho


ruim, pois é um cheiro agradável para mim. Mas conheço outras
pessoas que experimentam cheiros ruins.”
“Nunca tive um gato, mas passei meses convencida de que algum
entrava em minha casa para urinar. Instalei um piso novo perto da
porta da frente para me livrar do cheiro. Agora faço difusão de
óleos essenciais, como lavanda.”
“Meu marido, que tem demência, sente cheiro de gasolina. Eu
ficava conferindo todas as roupas dele, no caso de ele ter derramado
gasolina em si mesmo na garagem. Demorei muito para perceber
que eram alucinações.”
“Sinto cheiro de fogueiras. É horrível; acontece a qualquer
momento, em qualquer lugar. Eu odeio. Faz até o meu nariz arder.”
“Sinto cheiro de queimado, repolho podre, sujeira, panos e ralos
com água parada. Queria que fosse cheiro de flores.”

É fácil compreender por que essas alucinações podem ser perturbadoras para
as pessoas que as experimentam sem o conhecimento de que podem ser uma
parte normal da doença. É importante, como em todas essas peças pregadas pelo
cérebro, que aqueles que apoiam pessoas com demência também entendam isso.
Se dizemos sentir determinado cheiro, naquele momento ele é totalmente real
para nós. Saber disso pode acarretar um melhor relacionamento com a doença
para todos.
Uma amiga minha, a Dra. Jennifer Bute, que atuava como generalista, foi
diagnosticada com demência em 2009. Depois que se aposentou, ela escreveu
um livro sobre a própria experiência com a doença: Dementia from the Inside: A
Doctor’s Personal Journey of Hope [Por dentro da demência: A jornada pessoal de
esperança de uma médica]. Falei com ela sobre suas experiências com
alucinações olfativas, e ela disse:

“Algumas pessoas acreditam que a demência cria alucinações a partir


do nada, mas não é assim. A demência não ‘inventa’ alucinações,
somente ‘liberta’ memórias presas do passado — infelizmente,
quase sempre memórias desagradáveis.
“Eu tenho alucinações com cheiros horríveis, mas trabalhei nas
favelas de Calcutá e Nova Délhi, na Índia, e as ‘memórias’ desses
cheiros horríveis estão fixadas em minha mente por causa dos
sentimentos intensos criados por elas.
“Frequentemente tenho alucinações olfativas com o cheiro de
queimado. Já passei pela experiência de ter caminhões de bombeiro
na porta de minha casa. Certamente tenho memórias de incêndios
em meu passado, então talvez elas estejam ressurgindo. O colégio
interno que frequentei pegou fogo porque uma aluna usava uma
torradeira sob a cama e um dia se esqueceu de desligá-la.
“Então, o que libera essas alucinações? No meu caso, elas
ocorrem quando estou muito cansada, me esqueci de tomar o
remédio ou, ocasionalmente, se sofro muita pressão das pessoas ou
dos lugares aos quais tenho que ir.”

Entender essas alucinações e, como Jennifer, notar seus padrões particulares


de incidência pode diminuir a frequência, particularmente se forem
desagradáveis. O que me ajuda a lidar com as alucinações, sejam visuais,
auditivas ou olfativas, é a regra dos trinta minutos. Ao ver algo incomum,
perturbador ou que parece estranho, digo a mim mesma que devo esperar trinta
minutos, durante os quais me afasto e faço outra coisa. Se retornar e a coisa
ainda estiver lá, então não é uma alucinação. É óbvio que isso nunca aconteceu.
Sei que alguns de meus amigos mantêm coisas perfumadas por perto para, ao
terem uma alucinação, poderem sentir um odor mais agradável. O problema é
que pode ser difícil se lembrar de manter essas coisas sempre ao seu lado.

SOBRE A AUDIÇÃO
A demência distorce a realidade cotidianamente. Aquele baque que você ouviu
do lado de fora e fez um tremor percorrer sua espinha? Nunca existiu. Os
disparos, os sons de um atirador maluco à solta? Essas alucinações auditivas
podem deixá-lo preso à poltrona, com o coração disparado, aterrorizado demais
para olhar além das portas e janelas. Os sons que a demência conjura em meu
cérebro são tão reais para mim quanto as páginas do livro que você está lendo
agora. Todavia, um olhar corajoso pela janela prova que não há alguém
percorrendo as ruas com uma espingarda de cano serrado. Aquele leve toc-toc-
toc-toc na porta da frente? Nunca há alguém lá quando você a abre.
Essas são peças pregadas por um cérebro doente, mas ninguém nos avisa
sobre elas. Eu me lembro de como, nos primeiros dias de demência, a doença
modificou o cenário da amada cidade de York, onde eu vivia. Eu adorava meu
apartamento ao lado do rio e decidira que seria onde eu moraria para o resto da
vida. Entretanto, subitamente, foi como se a cidade tivesse aumentado o volume
dos ruídos urbanos. Cada passo fora de casa me deixava mais e mais
sobrecarregada. Perigos me aguardavam em todas as esquinas: o ressoar
penetrante das ambulâncias que me fazia parar de supetão, enquanto segurava a
cabeça para conter a dor; o rosnar do motor dos carros que esperavam o sinal
abrir; uma balbúrdia de vozes que tornava a avenida Shambles desorientadora e
apavorante. Era como se eu e minha cidade tivéssemos nos tornado completas
estranhas de um dia para o outro. Nenhum profissional, contudo, avisou que esse
era um sintoma da doença em minha cabeça. Para mim, essa mudança na audição
foi confusa, já que eu nunca tivera problemas do tipo. A demência era uma
doença que afetava a memória, então devia ter alguma outra coisa errada
comigo. Eu ainda não estava acostumada às muitas maneiras pelas quais a
demência pode transformar o mundo em um lugar pouco familiar, com algumas
coisas acontecendo lentamente e outras quase que da noite para o dia.
Se um profissional tivesse me avisado que eu poderia experimentar mudanças
sensoriais, talvez a ansiedade não me acompanhasse em cada passo que dei fora
de casa. Talvez eu não tivesse ficado preocupada que outra parte de mim pudesse
estar falhando. Em vez disso, meu momento Eureca ocorreu quando uma de
minhas amigas, Agnes Houston, mencionou que se tornara muito sensível aos
ruídos após ser diagnosticada. Agnes conversara com pessoas como eu, que
haviam notado mudanças na visão, audição, no paladar e olfato, e percebera que
nenhum médico havia nos avisado a respeito. Pior ainda, muitos supostos
especialistas sequer sabiam que essas mudanças sensoriais faziam parte da
doença. Então ela iniciou a própria pesquisa, escrevendo um livro com Julie
Christie, Talking Sense: Living with Sensory Changes and Dementia [Fazendo sentido:
Vivendo com mudanças sensoriais e demência], que explora o impacto da
demência nos sentidos. Eu o recomendo a qualquer um que viva com a doença.
Perguntei a meus amigos sobre as experiências que tiveram com alucinações
auditivas:

“Às vezes pergunto para minha mulher ‘Você gritou?’, e ela


responde ‘Não’. Então digo: ‘Mas alguém gritou, porque eu ouvi’.”
“Sempre ouço meu marido falar, mas ele afirma não ter dito
nada.”
“Às vezes, quando estou olhando vitrines, paro e digo: ‘Pode
passar na minha frente, porque eu ando muito devagar.’ Mas,
quando me viro, não há ninguém atrás de mim, embora eu possa
jurar ter ouvido alguém.”

Há um nome para a sensibilidade ao som que experimentei: hiperacusia. Essa


condição afeta a maneira como percebemos os sons. Você pode ter maior
sensibilidade a tons particulares que não afetam outras pessoas, o que significa
que barulhos altos que provocam sobressalto, como fogos de artifício, ou mesmo
barulhos altos do cotidiano, como um telefone tocando, podem ser
desconfortáveis ou dolorosos. Contudo, levei cinco longos anos após meu
diagnóstico para ouvir essa palavra pela primeira vez. O médico que me atendeu
após um ano na lista de espera estava muito disposto a me ouvir, admitindo que
nada sabia sobre demência e audição. Ao menos ele admitiu isso. Ele testou
minha audição e descobrimos que eu não ouvia tons altos (o que pode ser parte
normal da velhice), mas chegava muito rapidamente ao ponto em que eles se
tornam desconfortáveis. Com tons baixos, eu tinha uma faixa mais ampla de
audição, mas, mesmo assim, ela era muito mais estreita que em outros
indivíduos antes de se tornar desconfortável.
A despeito do diagnóstico, não havia o que eles pudessem fazer para me
ajudar, pois eu havia sido encaminhada ao departamento errado do hospital.
Depois de ser reencaminhada, como acontece frequentemente no Serviço
Nacional de Saúde, entrei em uma nova lista de espera. Dessa vez, porém, a
consulta mudaria minha vida. Rebecca Dunn é médica fisiologista especializada
em audição no Hull and East Yorkshire Hospitals NHS Trust. Gostei dela
imediatamente: Rebecca teve a sensibilidade de explicar exatamente o que estava
acontecendo no interior da minha cabeça e mostrou gráficos da minha faixa de
audição. O gráfico ideal é uma linha reta, e o meu vagueava loucamente pela
página. Ela me disse que há um portão entre os ouvidos e o cérebro. Ele abre e
fecha, particularmente quando ouvimos um ruído alto que pode levar a uma
sobrecarga sensorial. O problema com meu portão, e com o portão de qualquer
um que tenha hiperacusia, é que ele está permanentemente aberto, então um
ruído alto parece um touro enraivecido solto no interior da minha cabeça.
— Tampões de ouvido não funcionam — disse ela — porque não fecham o
portão.
Subitamente, entendi por que minha “solução doméstica”, os tampões de
ouvido que comprara para abafar o mundo, não funcionava. Eles simplesmente
silenciavam sons que eu precisava ouvir, como um carro se aproximando, então
na verdade poderiam até mesmo ser perigosos. O que Rebecca sugeriu foi um
aparelho auditivo que bloqueia a faixa de ruídos que acho particularmente
desconfortável. O aparelho mudou minha vida. Finalmente eu podia ficar na
plataforma e não me encolher e segurar a cabeça quando o trem chegava. E
também andar pelas ruas e fazer compras sem dar encontrões nas pessoas
quando uma motocicleta passava, ou tentar agachar quando ouvia a sirene de
uma ambulância.
Rebecca me disse que a chave para entender como a audição afeta aqueles que
vivem com demência está em enxergar o paciente de forma mais holística. Voltei
a conversar com ela sobre o que pode ser feito para ajudar as pessoas nessa
condição:
“Eu diria que os pacientes com demência que vejo que têm problemas de
audição estão piores do que deveriam estar”, explicou ela. “É sempre o básico
que preocupa os cuidadores, e precisamos lidar com as mudanças sensoriais
naqueles que vivem com a doença com mais antecedência. Idealmente, isso
significaria que todos os pacientes de demência fariam testes de audição no
momento do diagnóstico, porque, se pudermos ajudar os pacientes antes que a
audição e o ambiente se tornem ameaçadores ou agentes causadores de
ansiedade, as chances de reduzir algo como a hiperacusia são maiores. Mas,
atualmente, não temos o orçamento necessário para testar todos os pacientes.
Sei que a equipe de demência está ávida para se unir a nós, mas precisa haver um
entendimento melhor sobre como as duas áreas são afetadas.
“Eu abordo uma pessoa a partir de meus conhecimentos neurofisiológicos,
então trabalho com a premissa de que o paciente precisa entender o problema
que experimenta em relação às próprias circunstâncias pessoais. Quando
entende isso, ele se torna mais capaz de tomar decisões assertivas sobre o que
fazer para melhorar a situação. A hiperacusia é uma reação natural a um
ambiente desafiador no qual um animal está incerto quanto à própria segurança
— quanto mais gatilhos para deixá-lo inseguro, sejam eles históricos, sejam
atuais, mais provável que ele tenha problemas. Assim, se a hiperacusia em
pacientes com demência é causada predominantemente porque eles não se
sentem seguros no próprio ambiente, há a possibilidade de tornar o ambiente
mais seguro e instalar redes de segurança, de modo a se sentirem menos
estressados e, consequentemente, não receberem uma sobrecarga de
informações sensoriais, já que o perigo percebido será reduzido.”
Não fico estressada quando estou na rua; na verdade, sinto-me segura e me
esqueço das sirenes até que elas soem a meu lado. Contudo, entendo o que ela
quer dizer: precisamos encontrar maneiras de tornar os ambientes mais
amigáveis para os pacientes com demência, e, para mim, isso significou
programar um aparelho de audição para melhorar o meu ambiente.
Rebecca reservou um tempo para tentar entender a demência e todos os
desafios provenientes dela. Fiquei surpresa quando ela disse que eu
provavelmente não ouvia o som das letras “S” e “T” nas palavras, o que explicava
por que nem sempre conseguia acompanhar as conversas. Com o aparelho de
audição programado corretamente, esses sons retornaram. Como ela indicou,
essas diferenças sutis são como ir ao oftalmologista e experimentar diferentes
lentes para tornar as letras mais definidas.
Como com tudo relacionado à demência, quando se trata de mudanças
sensoriais devemos falar do indivíduo, e não da doença. Entretanto, quando se
trata de tornar os ambientes mais amigáveis, ainda há o que hospitais e outros
locais de cuidados podem fazer para ajudar as pessoas que os frequentam.
Para os que lidam com a hiperacusia, seria útil que o departamento de
audiologia ficasse em um local mais afastado das atividades principais do hospital,
onde sons como o de metais tinindo e portas batendo podem ser
desorientadores. Sim, precisamos ouvir os médicos — eles podem fornecer
informações úteis que nos ajudarão a lidar melhor com nosso novo mundo —,
mas eles também precisam nos ouvir.
SOBRE A VISÃO
Não é sempre que se ouve pessoas falando sobre como a visão é afetada pela
demência. O problema não são nossos olhos, mas a maneira como o cérebro
interpreta as mensagens que recebe deles. Se estou no topo de uma escada, por
exemplo, é difícil dizer se é o caso de ser uma escada rolante que se moverá
quando eu pisar nela ou de um escorregador pelo qual descerei como uma
criança no parquinho. Se os degraus estão recobertos pelo mesmo carpete ou
revestimento que o piso, não consigo ver cada degrau individualmente, então
não sei onde pisar. As melhores escadas são aquelas nas quais as bordas estão
nitidamente definidas, particularmente em amarelo, como frequentemente é o
caso das escadas externas. Decidi que é por isso que caio com tanta frequência
na escada de casa, já que ela é recoberta de carpete, sem bordas claras. Agora
tenho dois corrimãos, um de cada lado, para me segurar e diminuir as chances
de cair.
Carpetes estampados são desorientadores porque todas as formas parecem
ganhar vida, movendo-se diante de meus olhos. Pode ser muito desconcertante
ter que andar sobre um carpete que parece estar coberto de criaturas se
contorcendo e, como muitos de nós andamos de modo oscilante, tendemos a
passar muito tempo olhando para o chão, a fim de não cair.
Um piso brilhante de mármore fica parecendo uma piscina. Imagine tentar
caminhar sobre a água. Capachos pretos na frente das portas são como grandes
sumidouros no chão. A cor preta geralmente é muito ruim para nós. Hoje em
dia, se vejo alguém vestido de preto, parece que a cabeça da pessoa está
flutuando no ar. Uma TV de tela plana parece um grande buraco na parede.
Quando visito minha adorada pousada em Keswick, a proprietária, Catherine,
coloca uma fronha vermelha sobre a TV do meu quarto antes mesmo que eu
chegue.
Nosso cérebro tem dificuldade para distinguir tons e contrastes, o que
significa que, se o carpete for da mesma cor que as paredes, é praticamente
impossível nos locomover. A maneira mais fácil de descobrir se um cômodo ou
área é amigável para uma pessoa que vive com demência é tirar uma fotografia
em preto e branco. Se o contraste entre os tons de preto, branco e cinza for
óbvio, tudo ficará bem. Cor, óbvio, é uma escolha pessoal, mas é sempre o
contraste que importa. Por exemplo, letras pretas sobre fundo amarelo
funcionam bem, e o azul do Sistema Nacional de Saúde sobre um fundo branco
nos parece muito nítido. Eu costumava usar muito preto, mas agora gosto de
cores vivas, porque são mais fáceis de encontrar — hoje em dia, prefiro meu
casaco amarelo ao azul-marinho.
Eis o que alguns de meus amigos têm a dizer sobre as mudanças que tiveram
na visão:

“Eu tenho problemas para encontrar coisas. Nem sempre consigo


visualizar a aparência delas a fim de encontrá-las. Se estou
procurando o telefone, não consigo visualizar como ele é. A mesma
coisa com os óculos, especialmente se estiverem no estojo. Em
minha mente, a forma pela qual procurar desapareceu.”
“Procurar algo na bolsa é difícil porque o interior dela é preto,
então gosto de coisas coloridas. Passei fita amarela ao redor do
estojo dos óculos, para que ele seja diferente, e tenho um telefone
vermelho. É difícil encontrar coisas pretas.”

A demência pode ser cruel de muitas maneiras, mas, de vez em quando, ela
oferece presentes inesperados. Era um dia claro e o sol começava a se pôr,
fazendo com que a cerca lançasse longas sombras sobre o gramado. Eu estava
andando inquieta dentro de casa, passando de um cômodo a outro com uma
xícara de chá nas mãos, tentando decidir onde me sentar. Subitamente, através
do vidro das portas duplas, algo chamou minha atenção. Levou algum tempo
para a silhueta formar uma figura reconhecível, mas então distingui a forma
inconfundível: um homem, em pé no meio do gramado — meu pai.
Ele estava morto havia uns vinte anos. Será que eu deveria ficar assustada ao
vê-lo com todos os detalhes incríveis e banais? Ele estava com o familiar cardigã
verde e folgado e as roupas alegres e casuais que usava para cuidar do jardim, e
em seu rosto havia o mesmo sorriso relaxado. Um de meus truques para lidar
com alucinações visuais é fotografar, com o telefone ou o iPad, aquilo que penso
estar vendo. Se aparecer na fotografia, existe na vida real. Naquele momento,
porém, não quis quebrar o encanto. Ele ficou lá em pé, olhando para mim, com
as mãos ao lado do corpo, os dedos manchados de nicotina visíveis mesmo à
distância. O cabelo dele estava penteado com pomada, como sempre, preto e
brilhante, e os últimos raios de sol iluminavam o topete que nunca ficou
grisalho. Lembrei, enquanto nos olhávamos, das vezes em que, ainda pequena,
eu me sentava no colo dele e era paga com um centavo por cada fio de cabelo
branco que conseguisse arrancar. A memória daqueles momentos devolveu a
mim o calor do toque do meu pai, o perfume doce e açucarado da pomada para
o cabelo e o vermelho-brilhante da embalagem.
Não sei quanto tempo ficamos nos olhando. Podem ter sido minutos ou horas
— a demência tem uma relação engraçada com o tempo. A parte lógica de meu
cérebro sabia que o que eu estava vendo não era real. Sei que a doença tem o
hábito de pregar peças em meu cérebro e, normalmente, uso a regra dos trinta
minutos: afastar-me e retornar meia hora depois para saber com certeza se o que
vi ainda estaria lá. Contudo, daquela vez, simplesmente fiquei olhando,
determinada a aproveitar o presente que a demência me dera, porque eles são
poucos e esparsos. Não senti medo, mas o desejo emocional de ficar e passar
algum tempo na companhia de meu velho amado pai.
Brinco de gato e rato com a demência diariamente, e muitas das vezes ela me
vence. Entretanto, naquele dia, eu sabia que ela havia errado. Em vez de me
assustar, ela me abençoou com a visita de alguém que havia muito tinha partido e
de quem eu sentia muita saudade. Eu sabia que papai estava feliz por causa das
roupas que usava, então fiquei feliz também, naquela tarde ensolarada, com a
xícara de chá esfriando nas mãos. Olhei para ela e, quando levantei os olhos
novamente, ele havia desaparecido.

SOBRE OS SONHOS
Sonhos contam como alucinações? Se nosso cérebro pode se rebelar durante o
dia, por que não à noite? Meus sonhos definitivamente mudaram após o
diagnóstico de demência. O sono agora é um visitante infrequente. Passo a
maioria das noites deitada na cama, de olhos fechados, encarando o nada por trás
de minhas pálpebras. Inicialmente, achei essa rotina noturna exaustiva, mas
depois a aceitei. Eu simplesmente fico deitada, permitindo que meu corpo
relaxe e esperando pela manhã, grata por quaisquer minutos de cochilo,
entrando e saindo da escuridão da noite.
Diz-se que as pessoas regridem para uma era diferente nos últimos estágios
da doença, que a mente escolhe a prateleira de uma vida passada na grande
estante que compõe nossa história. Já não sonho com o presente, somente com o
passado. É como se meus sonhos tivessem regredido antes de meu cérebro e
estivessem abrindo uma janela para a realidade na qual eu talvez fique imersa nos
últimos estágios da demência. Talvez meus sonhos me levem de volta até lá
porque, por algum tempo, foi um período feliz da minha vida. Minhas filhas são
sempre pequenas, na maioria das vezes com 6 e 3 anos. Sarah frequentemente
tem um emprego de adulto, como na central de atendimento do Sistema
Nacional de Saúde — com todos os seus noventa centímetros de altura, ela
trabalha em uma escrivaninha gigantesca, sentada em uma cadeira enorme, e
seus pés balançam no ar, sem tocar o chão. Gemma ainda é bem novinha e eu
sou uma jovem mãe — nossos respectivos papéis invertidos somente nesse
momento, quando novamente sou eu quem segura a mão delas. Em meus
sonhos, raramente tenho demência, o que deveria ser reconfortante, até que
acordo e noto a presença dela me fazendo companhia no travesseiro ao lado.
Por que acho que esse é um sinal de algo que está por vir? Porque esse é o
lugar para o qual meu subconsciente me leva naturalmente. Afinal, eu estava
feliz naquela época, antes de me separar. Eu me sentia segura, sem preocupação
alguma além de cuidar das minhas filhas em crescimento, e a total dependência
que elas tinham me dava um propósito que talvez eu não tenha agora. Os
momentos que nossa mente escolhe parecem tão reais para nós quanto seu
cotidiano parece para você, mas podem ser frustrantes e incompreensíveis para
aqueles que nos cercam. Veja, por exemplo, a história que ouvi sobre uma
mulher que batia repetidamente na mesa. As batidas eram tão incessantes que a
equipe telefonou para a família dela na Austrália e pediu que a levassem para uma
nova instituição, pois seu comportamento incomodava cuidadores e residentes.
Foi somente quando a família revelou o que ela fazia antes da demência que o
hábito passou a fazer sentido: ela costumava decifrar códigos em Bletchley Park
durante a guerra, e as batidas constantes eram a maneira pela qual costumava
enviá-los. A demência a havia levado de volta àquela fase da vida.
Agora, cada vez mais, progressivamente, sonho e realidade se tornam difíceis
de separar e decifrar. Acordei certa manhã confusa e com o coração disparado, e
imediatamente peguei o iPad para anotar o que havia acontecido, enquanto ainda
lembrava de todos os detalhes. Eu tinha saído para caminhar, o que me levou a
uma via de pedestres paralela à rodovia. Só que me confundi em certo ponto e
desci até a rodovia. Eu sabia que algo não estava certo — me lembro de pensar
que a descida normalmente não era tão íngreme —, mas, depois de começar, a
aceleração me levou até embaixo. Olhei para um lado e para o outro e senti os
carros passando por mim em alta velocidade, tão próximos que perdi o fôlego.
O barulho era inacreditável. Olhando para trás, soube que jamais conseguiria
chegar à via de pedestres novamente, e não tive escolha senão caminhar. Eu tinha
certeza, tanta certeza, de que chegaria a uma saída, uma via de acesso ou uma
rotatória. No entanto, um carro que vinha em minha direção começou a
desacelerar e vi o brilho familiar das luzes azuis no teto. Era a polícia.
Eu contei que estava confusa e que havia saído de minha rota normal. Eles
queriam me levar de volta ao local onde eu tinha entrado na rodovia, a fim de
ver o buraco que me permitiu errar o caminho, mas eu me sentia tão culpada,
tão tola por fazê-los perder tempo, sabendo que precisariam fazer um grande
desvio para me levar até lá. Eles foram amáveis e persuasivos, explicando o
quanto eu precisaria andar até achar uma saída. Subitamente olhei para o
uniforme deles e me perguntei se realmente eram da polícia, mas que escolha eu
tinha senão ir com eles?
Fizemos um longo desvio, eles tentando conversar comigo, eu relutante em
revelar minha demência, até que finalmente chegamos ao local onde eu havia
saído do trajeto. Eles puderam ver o dano à barreira que me permitiu passar, e
mostrei a eles a via de pedestres da qual me desviei, a alguns metros dali. De
repente, um homem me cumprimentou pelo nome. Aparentemente, era do
vilarejo e me conhecia bem. Ele chamou um dos policiais para uma conversa em
particular e, enquanto falavam, nitidamente o ouvi dizer: “Ela tem demência. Às
vezes fica confusa.” Fiquei lá parada, sem poder ir embora, sentindo-me culpada.
Ele se despediu após alguns momentos e os policiais disseram que era melhor
me levarem para casa. Eu ainda não tinha conseguido fazer minha caminhada e
protestei, mas eles disseram: “Seria melhor se a senhora ficasse em casa hoje.
Sempre poderá caminhar amanhã.”
Foi quando entrei em pânico. Eu não queria que eles soubessem que eu
morava sozinha. Eu me perguntei o que fariam — me reportar para as
autoridades? Chamar o serviço social? Fiquei sentada no banco de trás da viatura,
com a boca seca e a cabeça girando. Quando passamos o semáforo que dá acesso
ao vilarejo, eles perguntaram meu endereço e, de algum modo, tive a ideia de
dar o da minha filha Gemma, torcendo para que ela e o marido Stuart estivessem
em casa.
Ao pararmos em frente à casa, Stuart abriu a porta, ansioso, seguido por
Gemma.
— Eu me perdi durante a caminhada e a polícia me trouxe para casa —
expliquei antes que eles pudessem dizer qualquer coisa.
Felizmente, os policiais não fizeram perguntas e foram embora, com sorte se
ocupando com o combate ao crime e esquecendo tudo a meu respeito.
Foi quando abri os olhos e não consegui determinar se aquilo realmente havia
acontecido. Olhei ao redor: eu estava em minha cama. Entretanto as imagens e
sensações eram muito reais, meu coração ainda estava acelerado e minha cabeça
girava. Permaneci deitada, tentando compreender se aquilo tinha acontecido no
dia anterior. Pensei em enviar uma mensagem a Gemma, mas não quis
preocupá-la se fosse o caso de ser tudo fruto do meu subconsciente.
Realidade ou sonho? Ainda não tenho certeza...

SOBRE O TATO
Quando somos bebês, desejamos o toque reconfortante de nossos cuidadores.
Quando mães, o desejo é o de sentir a pele de nosso bebê em contato com a
nossa. Ainda me lembro das horas que passei alimentando minhas filhas, das
mãozinhas se esticando para agarrar a minha — dedinhos minúsculos se
apertando cuidadosamente em torno dos meus. Nos primeiros dias de vida, seja
para seres humanos, seja para animais, o toque é muito importante,
representando uma comunicação instantânea entre a mãe e a cria. Talvez, no
caso da demência, retornemos a nossos instintos mais primitivos, com o contato
intuitivo sendo muito mais importante para que possamos nos sentir seguros.
Quando minhas filhas cresceram, a confiança delas cresceu junto. As mãos
que antes agarravam a minha a caminho da escola agora queriam seguir sozinhas.
Ainda havia abraços na hora de dormir e carinhos quando o dia era estressante
ou surgia algo a ser celebrado. A verdade é que jamais envelhecemos o suficiente
para esquecer a importância do toque humano. No meu caso, com exceção das
minhas filhas, nunca fui uma pessoa tátil. A demência mudou isso: subitamente,
comecei a sentir necessidade de abraçar todo mundo que encontro ou, ao
menos, quem, instintivamente, sei que gosto. Classifico as pessoas como gentis
ou não e, quando elas demonstram gentileza, quero abraçá-las para demonstrar
gratidão. A gentileza delas significa muito mais do que possam imaginar. De
repente, comecei a abraçar minhas filhas com mais força e por mais tempo. Seria
culpa do fim das inibições? De uma carência que nunca fui corajosa o bastante
para admitir? Ou talvez o abraço represente uma reserva emocional interior:
talvez o toque seja necessário em momentos nos quais as palavras são
complicadas ou difíceis de encontrar, e comunique instantaneamente que eu me
importo.
Pode ser também que morar sozinha desempenhe um papel em minha nova
dependência de toque. Para mim, não há braços reconfortantes sempre que
preciso deles. Será que é tão surpreendente assim que, às vezes, eu queira
agarrar minhas filhas e nunca mais soltar? Eu me acostumei à inversão de muitos
papéis em minha jornada com a demência — agora são minhas filhas que querem
saber onde estou e a que horas volto —, e agora sou eu que preciso do toque
delas para me sentir segura e reconfortada, para saber que não estou sozinha.
O toque é mais vital para todos nós do que talvez estejamos dispostos a
admitir. É possível que encaremos o fato de reconhecer que precisamos sentir a
mão de alguém na nossa como um sinal de fraqueza. Talvez minha personalidade
reservada de antes da demência, que se decepcionou com os homens durante a
vida, não quisesse ser tocada novamente; eu acreditava que abraços eram
reservados para relacionamentos mais íntimos, o que eu queria evitar. O medo
de ser ferida novamente me manteve distante de todos. Quando a demência
chegou, porém, esse medo desapareceu. Subitamente, ele se tornou
insignificante em comparação ao novo desafio que eu precisava enfrentar.
Retire o toque de nós que vivemos com demência e sentiremos terrivelmente
essa ausência, mesmo que não queiramos admitir. Um estudo australiano de
2011 descobriu que uma massagem nos pés de dez minutos, uma vez ao dia,
transformava o comportamento de pessoas portadoras de doenças localizadas em
instituições de cuidados de longo prazo. Os residentes de uma casa de repouso
em Brisbane foram descritos como pessoas de “comportamento agitado”, o que,
de acordo com o estudo, incluía agressão, caminhadas a esmo e perguntas
repetitivas. (Odeio a expressão “comportamento agitado”; sempre me parece
que os “problemas” comportamentais estão relacionados menos às pessoas que
vivem com demência e mais com a necessidade de serem entendidas por seus
cuidadores. É uma implicância minha.)
O que os pesquisadores descobriram foi que uma massagem de dez minutos,
realizada por profissionais treinados, reduziu dramaticamente esse
“comportamento agitado” — mesmo duas semanas após as massagens terem sido
interrompidas. Isso foi atribuído ao fato de que “a massagem fornece uma
sensação de comunicação significativa mesmo quando as habilidades linguísticas
sofreram declínio”. Esses “comportamentos” são frequentemente tratados com
medicamentos que podem ter efeitos colaterais ou, pior ainda, com restrições
físicas. Com uma massagem, em contrapartida, há somente benefícios: o contato
visual com a pessoa que a faz, talvez um pouco de conversação, o foco sensorial.
Essa pesquisa é útil para cuidadores que apoiam pessoas com demência que
vivem sozinhas. Minha filha Sarah, que é enfermeira, usa a massagem manual
para relaxar os pacientes. É algo que qualquer um cuidando de uma pessoa com
demência pode fazer. Não é incomum que os cuidadores se sintam
desconectados das pessoas que apoiam, incertos sobre como demonstrar a
conexão entre eles, mas uma massagem manual é uma maneira de fazer isso. Ela
diz algo que talvez seja mais significativo que as palavras, pois demonstra que há
alguém tentando fazer com que você relaxe e que você merece ter aquele tempo
dedicado a você. Na verdade, ela vale mais que mil palavras.
Durante meus momentos nebulosos, é um grande alívio sentir a mão de
alguém tocando a minha, guiando-me se estou confusa, desorientada ou perdida
em um lugar novo ou entre pessoas que não conheço. Quando estamos
fisicamente instáveis, precisamos dessa mão para nos apoiar, nos guiar ou
somente nos confortar com a consciência de que alguém está ali para nós, de que
podemos levar o tempo que precisarmos e que tudo ficará bem. Quando a névoa
persiste e a vida é menos nítida, uma mão na nossa é uma maneira de chamar
nossa atenção ou nos guiar gentilmente de volta ao momento e acalmar a
tempestade. É um toque que diz “Eu estou aqui”. Não há necessidade de
palavras.
Minha filha Gemma começou a cortar meu cabelo em 2020. Inicialmente, ela
se mostrou hesitante, com medo de errar, apesar de eu dizer que não me
preocupava com minha aparência. O que importava não era o corte de cabelo,
mas o tempo que passávamos juntas. A proximidade, a conversa e o toque
carinhoso e cuidadoso faziam com que nós duas nos sentíssemos bem.
Três semanas após meu primeiro corte, voltei para um retoque. Gemma
estava muito mais confiante, nossas risadas se tornaram mais altas e só percebi
que ela perdera a concentração quando o ruído da máquina que ela usava me
pareceu estranho. Olhei para cima a tempo de ver a expressão de horror em seu
rosto.
— Aposto que esse é um pente número 2, não número 7 — disse eu.
— Possivelmente — respondeu ela.
Tivemos uma crise de riso. Ao menos cabelo cresce de novo.
RELACIONAMENTOS

Ainda consigo ver Gemma ou Sarah sentadas no chão, tentando aprender a como
amarrar os sapatos. Cada uma delas tinha 5 ou 6 anos quando tentou pela
primeira vez, com os dedinhos tentando completar o que devia parecer uma
tarefa impossível. Até então, eu comprara sapatos com fivelas, fáceis de calçar,
afivelar e sair para o parque, o parquinho ou as lojas — para nossas muitas
aventuras. No entanto chegou a hora dos cadarços e dos pedidos para terem
sapatos iguais aos das amiguinhas, que já haviam dominado a arte de dar laços.
Como essa devia parecer uma habilidade de gente grande, não admira que
quisessem tentar. E então praticamos, uma vez atrás da outra. Eu jamais as
apressei para sairmos, nem pressionei suas mentes infantis enquanto elas ficavam
lá sentadas, determinadas a conseguir, segurando os cadarços nos dedos e
formando laços.
Eu conseguia ver a mim mesma naquela exata situação, sentada sobre o
carpete Axminster com detalhes vermelhos em frente à lareira. O fato de os
sapatos terem se desamarrado na escola e eu ter sido obrigada a pedir a ajuda da
professora enquanto os meninos faziam piadas cruéis ainda fazia meu rosto arder
de vergonha. Agora eu testemunhava a mesma determinação de aprender no
rosto das minhas meninas.
Comprei para elas sapatos coloridos de sola macia, com ilhoses e cadarços, e
passamos muitas horas praticando a arte de dar laços neles antes que, finalmente,
uma delas se levantasse, sorrindo e com os olhos brilhando, e passeasse pela sala
a fim de me mostrar o que finalmente conseguira fazer.
Depois disso, tal tarefa cotidiana deve ter lhes parecido óbvia. Não era esse
meu papel como mãe? Ajudá-las a encontrar um caminho através de cada
aparente beco sem saída da vida; equipá-las com as habilidades necessárias para
realizar cada tarefa presente na trajetória até a independência? Trazemos filhos ao
mundo para que eles possam nos deixar. Nós nutrimos os talentos, realizações e
habilidades deles até que possam voar para fora do ninho. Nós os encorajamos a
tentar coisas novas e os consolamos quando falham pela primeira vez,
fornecendo um santuário, nem que seja somente para o ego ferido. E então os
empurramos de volta para o mundo. Ou, ao menos, foi isso o que fiz.
No mapa da vida de minhas meninas não havia qualquer coisa que indicasse
que nossos respectivos papéis se inverteriam, que um dia elas teriam que cuidar
de mim — e até mesmo me ajudar a amarrar os sapatos. No entanto, a vida tem
um jeito engraçado de completar círculos.
Eu usava o mesmo par de tênis havia vinte anos. Depois de amarrados, eles já
haviam me levado aos Três Picos e a quilômetros de caminhadas por Lakeland e
outros terrenos. Nunca imaginei que chegaria o dia em que olharia para eles e
não teria ideia de como amarrá-los, o dia em que os cadarços ficariam
pendurados a esmo, tão confusos para meu cérebro quanto um novelo de lã
emaranhado. Eu me senti impotente e desamparada, e coube a Sarah se ajoelhar
e amarrá-los, como eu já havia feito por ela tantas vezes. Não era assim que eu
achava que seria ou como eu queria que fosse. Naquele pequeno gesto, senti que
coisas demais haviam mudado e não estava disposta àquilo. Não estava pronta
para minhas filhas serem minhas cuidadoras. Nem naquele momento, nem
nunca. Eu tinha que encontrar outra maneira.
A resposta, quando me ocorreu, foi simples: cadarços elásticos. Sarah os
trocou e, com um puxão de ambas as mãos, meus bons e velhos tênis estavam
calçados e justos como antes. Outro problema evitado. O seguinte poderia não
ser tão simples, mas minha independência foi mantida por mais um dia.

SOBRE OS CUIDADOS
Não se engane, o diagnóstico de demência não se estende a apenas uma pessoa.
Sim, a doença está no interior de nosso cérebro, mas o diagnóstico altera não
somente nossa vida, mas a de todos ao redor.
O processo diagnóstico pode ser solitário. Eu fui sozinha a todas as consultas,
mesmo quando a palavra “demência” já aparecia em documentos demais para que
pudesse ser evitada. Entretanto algo chegou até mim em meio ao choque do
diagnóstico final e me intuiu a perguntar à médica se ela poderia conversar
diretamente com minhas filhas. Deixei as meninas sozinhas no consultório,
parecendo tão pequenas como quando eram crianças, sabendo que teriam
perguntas que eu não saberia responder ou que elas talvez fossem gentis demais
para fazer na minha frente. Naquele momento — como qualquer pessoa que
acabou de ser diagnosticada —, sequer sabíamos quais eram as perguntas certas
a fazer, mas ali estava alguém que potencialmente tinha as respostas para o
mistério que nos aguardava. Era ao mesmo tempo um ponto de partida e uma
chance de dar as minhas filhas o tempo e o espaço para perguntar o que
precisassem saber. Eu estava ciente de que o diagnóstico era tão delas quanto
meu, que a doença mudaria a vida delas também.
Atualmente, o processo diagnóstico é clínico demais. As pessoas que olham
nosso cérebro e encontram conexões frouxas ou ausentes nos dispensam assim
que descobrem que a causa básica é uma doença progressiva. Não há consultas
de retorno nem estratégias de enfrentamento para o paciente ou para seus entes
queridos. Se eu tivesse sido diagnosticada com câncer, derrame ou diabetes, será
que teria sido dispensada pela médica? Por que não há apoio continuado após o
diagnóstico de uma doença cerebral?
Não há apoio social disponível — ironicamente, ainda menos para aqueles
com demência de início precoce. Contudo, há muitos maridos, mulheres, filhos
e filhas jogados no novo papel de “cuidador”, a quem o peso e as expectativas da
sociedade são impostos imediatamente, sem preparação, planejamento ou aviso
juntamente com esse diagnóstico que transforma a vida deles. Não há qualquer
respeito pelo fato de que esses 670 mil cuidadores familiares poupam ao Sistema
Nacional de Saúde estimados £11 bilhões todos os anos. Dado o envelhecimento
da população, seria razoável concluir que valeria a pena investir neles.
Tenho sido muito insistente sobre a falta de cuidados continuados para
aqueles que têm demência e sobre a diferença que faria em nossa vida se
fôssemos preparados para todas as eventualidades que a doença pode trazer —
muitas delas delineadas nestas páginas. O mesmo se aplica a nossos familiares e
amigos. Se soubessem o que pode acontecer ou se simplesmente houvesse
alguém a quem perguntar “Isso é normal?”, estariam mais bem preparados para
lidar com a situação. A solução é simples, e levaria a experiências melhores tanto
para as pessoas com demência quanto para as que cuidam delas.
Assim, quando a Dra. Sahdia Parveen, pesquisadora da Universidade de
Bradford, perguntou se eu gostaria de participar de um painel de pesquisa, fiquei
deliciada. O título de seu projeto era Caregiving HOPE Study [Estudo HOPE
sobre cuidadores] e analisava o impacto do diagnóstico de demência na família do
paciente. Frequentemente sou convidada para participar de projetos de pesquisa
— é uma paixão minha, porque há muito a ser aprendido sobre essa doença se
quisermos ter uma chance de superá-la —, mas o trabalho da Dra. Parveen me
pareceu especialmente atraente. Ela estava interessada na justaposição entre
aqueles que se sentem culturalmente obrigados a cuidar de um familiar, mas
talvez não estejam dispostos, e aqueles que estão dispostos, mas não preparados
para a realidade envolvida no cuidado. Parecia para mim que esses dois cenários
estavam fadados ao fracasso, então o que poderíamos fazer para entendê-los
melhor?
Ao longo dos anos, me deparei com muitos desses cenários na vida real,
casais nos quais a mulher se ressentia porque a demência do marido arruinara os
planos para a aposentadoria e filhas que queriam muito cuidar da mãe, mas
estavam tão exaustas tentando lidar com o escasso sistema de apoio que
prejudicavam a própria saúde. É muito raro encontrar aqueles que atingiram o
ponto de equilíbrio. No entanto, é uma alegria descobrir esses espaços de
inspiração. Uma das mulheres que conheci cuidava do marido e de duas crianças
pequenas, mas conseguira ter acesso a serviços de apoio que a ajudavam a ter
uma vida mais equilibrada. Todavia, a disponibilidade desse tipo de ajuda é muito
incerta.
De acordo com as estatísticas citadas no relatório da Dra. Parveen, no futuro
haverá sete vezes mais pessoas de comunidades da Ásia Meridional (vindas do
Paquistão, Bangladesh e Índia) vivendo com demência, ao passo que entre a
população britânica o número de pessoas com demência deverá dobrar. Um total
de 723 cuidadores completou o primeiro questionário; desses, 187 eram da Ásia
Meridional e 522 eram britânicos brancos. Embora ambas as demografias
estivessem igualmente dispostas a fornecer apoio prático, o relatório descobriu
que os cuidadores britânicos brancos estavam mais dispostos a fornecer apoio
emocional e cuidados de enfermagem. Significativamente, foram eles que se
mostraram mais confiantes e preparados para o papel. O relatório descobriu que
“o sentimento de obrigação cultural de fornecer cuidados não esteve associado a
quão dispostos os cuidadores estavam ou quão preparados se sentiam […] O
melhor preparo esteve associado a se sentir mais disposto a fornecer cuidados”.
O preparo também “esteve associado a mais recompensas e menos exaustão,
ansiedade e depressão para o cuidador”. Assim, embora os britânicos lidassem
com menos expectativas, eles se sentiam mais preparados para serem
cuidadores, talvez porque tivessem sido capazes de escolher essa função. Em
contrapartida, o alto nível de expectativa cultural não fez com que as pessoas se
sentissem mais preparadas para o papel requerido.
Muitos de nós só discutimos com os entes queridos nossas expectativas em
relação aos cuidados a serem recebidos ou ofertados quando chega a hora.
Contudo, talvez isso seja perfeitamente compreensível: estamos todos ocupados
com as próprias rotinas. Eu estava. No entanto, como podemos observar no
relatório da Dra. Parveen, quando as pessoas estão mais preparadas, se mostram
mais dispostas e, crucialmente, mais capazes de fornecer cuidados.

SOBRE COMO OS CUIDADOS MODIFICAM OS RELACIONAMENTOS


Grande parte dos cuidados depende do tipo de demência e, ainda mais
importante, do tipo de pessoa sendo cuidada. Na vida cotidiana, mudamos
conforme envelhecemos — alguns se tornam mais brandos, outros mais
rabugentos —, e certamente é verdade que a demência acrescenta mais uma
dimensão ao caldeirão da personalidade. A doença, porém, ainda é somente uma
faceta da pessoa. Você deve ver primeiro a pessoa, não a condição, assim como
faria com qualquer outra.
A diferença entre estar preparado ou não pode ser decisiva, tanto para a
pessoa com demência quanto para aqueles que cuidam dela. Veja alguns
depoimentos de cuidadores entrevistados para o relatório da Dra. Parveen:

“É muito difícil saber como será a jornada, e é bom que não


saibamos […] Você não sabe o quanto sentirá raiva. Acho que a
raiva... a raiva e a culpa foram as duas coisas para as quais eu estava
menos preparada e, mesmo assim, eu sabia, em termos abstratos,
que estariam muito presentes. Mas experimentá-las na realidade, às
vezes sentir raiva dela, porque repetia a mesma pergunta sem parar
e eu tinha vontade de dizer ‘Cale a boca, eu já respondi isso cem
vezes’, e ela não entendia, não podia evitar a repetição. Mas eu
acabava dizendo ‘Cale a boca’. Isso pega você de surpresa. Ainda me
sinto culpada; eu poderia ter feito as coisas de outra maneira,
poderia ter administrado as coisas de outra forma. Se soubesse de
tudo isso, teria tido mais paciência com a agressividade dela; se
soubesse o que estava por vir, jamais a teria internado, jamais teria
concordado. Eu poderia tê-la protegido de muitas maneiras; há
tanto que eu deveria ter feito; eu deveria ter feito algo, mas, no fim
das contas, sou apenas humana.”
“As pessoas precisam estar preparadas, precisam ter uma reserva
interior de paciência e, às vezes, recarregar as baterias. Sei que é
difícil fazer isso quando você não quer se afastar por um período
mais longo, mas é necessário. […] As amigas da minha esposa
costumavam vir aqui e ficar com ela por algumas horas, e talvez eu
não tenha recarregado minhas baterias da maneira correta nessas
ocasiões, talvez tenha me apressado e feito rapidamente coisas que
levariam dias se minha esposa estivesse comigo.”

Há muita sabedoria na velha recomendação de que primeiro coloquemos


nossa máscara de oxigênio para só então ajudar o passageiro ao lado. Você é
inútil como cuidador se suas reservas de energia estiverem baixas. Muitos
cuidadores contaram à Dra. Parveen que as estratégias de autocuidado deles,
como tomar café com amigos ou sair para cortar o cabelo, os ajudavam a lidar
melhor com o papel de cuidadores. Isso, por sua vez, beneficiou as pessoas de
quem cuidavam.
A demência muda o relacionamento entre os casais para sempre. Às vezes,
para melhor: durante minhas viagens conheci uma mulher cujo marido às vezes
costumava ser violento. A demência o abrandou e deu a ela o marido que
sempre havia desejado. Para alguns, infelizmente, ocorre o oposto, e a demência
pode tornar o comportamento imprevisível e agressivo, particularmente no caso
de um tipo de demência como a doença de Pick.
Conversei com alguns amigos sobre como o relacionamento deles mudou
desde o diagnóstico:

Esposa: “Meu relacionamento com meu marido está melhor que


nunca, somos mais felizes hoje. Se quero que ele tire algo do forno,
porque é mais seguro que ele faça isso, ele vem imediatamente, ao
passo que antes costumava dizer: ‘Estou ocupado.’ Agora ele me
ajuda. Eu costumava pensar que era um fardo para ele, mas agora
peço coisas porque sei que ele não se importa.”
Marido: “O que me irrita é ela tentar fazer coisas que não pode
fazer. Em vez de me pedir imediatamente, ela tenta, fica confusa e
eu tenho que resolver. Eu gostaria que a primeira coisa que ela
fizesse fosse pedir minha ajuda.”
Marido: “Meu relacionamento com minha esposa mudou
drasticamente. Eu tendo a seguir os passos dela agora. Me preocupo
sobre dizer e fazer a coisa errada, mas tenho muita sorte, porque ela
é muito boa comigo e garante que eu faça o que é preciso.
Fisicamente, ainda posso fazer o que gosto, como jogar tênis,
caminhar, essas coisas. Mas há vezes em que me pergunto ‘Onde
estou? O que estou fazendo aqui?’, e então ela me traz de volta.”
Esposa: “Eu me pergunto se é bom viver com alguém e fazer
por ele as coisas que ele acha que não pode fazer. Eu tento ‘ajudar’
em vez de ‘fazer’. Ainda somos felizes, rimos, nos divertimos.”
Marido: “Passamos muito mais tempo juntos, o que, de modo
geral, é uma coisa boa. Mas uma das dificuldades que minha esposa
tem é que, embora tenhamos vivido aqui por quarenta anos, ela não
consegue sair de casa sozinha, pois fica desorientada. Então, se ela
quer ir a algum lugar, sempre precisamos ir juntos, e isso é um
pouco incômodo.”

Quando me perguntam qual a melhor maneira de lidar com os


relacionamentos após o diagnóstico de demência, tenho apenas uma resposta:
mantenha o diálogo. Admito que soa simples em teoria e pode não ser tão
simples na prática, mas é basicamente do que se trata o indivíduo.
Ainda consigo sentir em minha cozinha o cheiro de pão assado e dos bolinhos
que decorei, de diferentes tipos e tamanhos, pronta para me sentar com minhas
filhas e discutir sobre a minha situação. Os bolos foram minha maneira de tornar
a conversa um pouquinho mais palatável, e você saberá o que funciona melhor
em sua família.
Ingenuamente, achei que essa conversa desconfortável só fosse acontecer uma
vez. Presumi que nos sentaríamos com papel e caneta e uma xícara de chá e
discutiríamos tudo, de como eu queria ser cuidada quando chegasse ao meu
limite até se queria ou não ser submetida à ressuscitação cardiopulmonar. Ficou
evidente, mesmo naquela época, quão diversamente minhas duas filhas abordam
o mesmo assunto. Chamei isso de “exercício de conversação”, mas, na verdade,
foi um exercício de escuta. O que eu não levara em consideração era que a
conversa precisaria ser repetida várias vezes, conforme enfrentávamos novos
desafios.
Sabemos, de conversas cotidianas, quão confusa pode ser a linguagem.
Mesmo quando falamos diretamente com alguém, quantas de nossas conversas
resultam em mal-entendidos? Mesmo quando duas pessoas acreditam ter
compreendido o que foi dito da mesma maneira, a confusão ainda pode reinar.
Acrescente a isso um novo futuro com uma doença progressiva e imprevisível,
com uma taxa própria de declínio, e logo muitos perigos a enfrentar entram em
cena.
Somos todos culpados de fazer suposições, até mesmo — ou talvez
especialmente — com os entes queridos, com os quais tendemos a falar em uma
espécie de código abreviado. É por isso que, se a conversa for importante, você
precisa ter certeza de que deixou evidente sobre o que está falando. Às vezes
algo tão simples quanto a expressão “cuidar de um ente querido com demência”
significa algo totalmente diferente para duas pessoas. O cuidado está aberto a
muitas interpretações, e a própria palavra precisa ser renegociada várias vezes
conforme o tempo e a doença avançam. Para mim, necessidade de “cuidado”
significa uma época de minha vida na qual já não serei capaz de cuidar de mim
mesma; uma época na qual, física e mentalmente, não será mais seguro que eu
continue morando sozinha. Minhas filhas sabem que não quero que elas sejam
minhas cuidadoras. Eu disse isso desde que fui diagnosticada e não mudei de
ideia. Quero que elas venham me visitar, que tomem um chá comigo e me
levem para passear, para que possamos fazer coisas juntas. Não quero, porém,
que venham até aqui após um dia de trabalho pesado e tenham que lavar a roupa,
limpar a casa ou, ainda pior, me dar banho. Quero que elas tenham a própria
vida, e não quero que sejam perturbadas por nada do que está implicado no
rótulo de “cuidadora”. Quero ser sempre a mãe delas, da maneira que for
possível. É importante para mim sentir que ainda sou útil para minhas filhas, que
posso cuidar delas, mesmo que de modo limitado.
A demência acelera o processo de inversão de papéis. Faço meu melhor para
evitar isso. Antes da demência, as meninas ainda me procuravam em busca de
conselhos sobre receitas ou decoração. Acontece cada vez menos agora, mas não
significa que eu não me agarre aos menores detalhes da minha função de mãe.
Esse é meu papel primário, antes de qualquer outro, até mesmo da demência, e
eu o protegerei com tudo que tenho. Odeio ter que interromper a vida ocupada
das minhas filhas para pedir algo. Já não dirijo, mas não peço carona a menos que
realmente não consiga ir de ônibus ou trem. Entretanto, para ser totalmente
honesta, sinto que ultimamente nossas transações são mais unilaterais do que eu
gostaria. Eu me lembro de um dia, não muito tempo atrás, no qual estava
pendurando os lençóis no varal e, subitamente, pensei em minha filha Sarah no
apartamento dela. Sarah estava fazendo muitas horas extras como enfermeira e
percebi que não devia ser fácil secar lençóis dentro de casa, então concluí que
ainda havia algo que eu podia fazer para ajudá-la. Foi tão bom perguntar a ela se
queria que eu lavasse a roupa de cama semanalmente. Ela fazia as compras mais
pesadas de supermercado para mim e, de algum modo, isso equilibrou as coisas.
Um acordo mutualmente benéfico, fazendo algo que parece comum para uma
mãe fazer.
Em algumas culturas, como foi reportado no relatório da Dra. Parveen, é
natural que pais idosos sejam cuidados pelos filhos adultos. Muitas gerações da
mesma família vivem sob o mesmo teto. Contudo, muitas vezes esse não é o caso
no Ocidente: muitos de nós vivemos separados, e as comunidades já não são
como antigamente, então pode ser difícil aceitar ajuda dos próprios filhos se
você sabe que eles têm uma vida muito corrida. Mesmo quando eles querem
ajudar, é difícil para nós aceitar. Uma de minhas amigas com demência chegou
ao ponto de persuadir a filha a se mudar para longe, a fim de que não sentisse
necessidade de se tornar cuidadora da mãe. A filha já tinha um marido com
deficiência e duas crianças pequenas, e minha amiga não queria sobrecarregá-la.
Para outras pessoas, “cuidar” pode significar ajudar de modo mais amplo. Se
você juntar cem pessoas em uma sala, cada uma delas terá o próprio conceito do
que significa cuidar. Esse conceito se estende desde cuidados íntimos, como dar
banho em alguém ou ajudá-lo a entrar e sair da banheira, até convidá-lo para
jantar todos os dias, ou seja, incluí-lo na rotina diária. Receber cuidados de um
familiar pode não ser apropriado em função do histórico: os dois podem não ser
próximos ou pode haver ressentimento entre eles. Do mesmo modo, aqueles
que cuidam de familiares podem tentar impor a própria vontade sem perguntar
se a pessoa com demência quer receber tais cuidados. Eu me lembro de uma
história registrada durante a pesquisa da Dra. Parveen na qual uma senhora de
descendência sul-asiática recebia da família vasilhames com curry todas as noites,
mas tudo que ela queria comer era peixe com batata frita.
Cuidar é tão individual quanto cada família, e o termo pode ser redefinido
muitas vezes, conforme expectativas ou necessidades se desenvolvem. Eis o que
as pessoas entrevistadas para o relatório da Dra. Parveen tiveram a dizer:
“Não quero ser rotulada como cuidadora da minha mãe; quero ser
filha ou, como diz minha irmã, quero visitar minha mãe e ir
embora. Quero ser a filha que era antes, quando visitava minha mãe,
passava o dia com ela e almoçava em sua casa, sem ter que ir até lá
para lavar roupa, cozinhar, limpar e garantir que ela tenha atividades
sociais. Não quero ser rotulada como cuidadora oficial, mas sinto
que não tenho escolha.”
“Sinto que me foi imposto. Metade de mim quer ser a filha boa e
calma que diz ‘Ela é minha mãe e farei isso por ela’. Eu sinto imenso
respeito pelas pessoas que levam os pais para morar com elas.”

SOBRE OS CUIDADOS PRESTADOS PELAS FILHAS


Não há reação certa ou errada quando se acaba nessa posição. A reação é tão
individual quanto a doença. Eu e minhas filhas tivemos que tatear o caminho
desde o diagnóstico. Minha filha Sarah é enfermeira oncológica, mas, mesmo
para ela, com toda a experiência médica, nem sempre foi fácil. Pedi que ela
escrevesse um pouco sobre a própria jornada.
“A palavra ‘cuidado’ tem tantas conotações”, escreveu ela.

“É óbvio que me importo com minha mãe. Mas será que sou sua
cuidadora? Não tenho certeza. Ela disse não querer que eu preste
qualquer tipo de cuidado pessoal. Eu obviamente poderia fazer isso,
é parte do meu trabalho. Mas esse é um dos principais desejos dela,
e consigo entender o motivo. Em vez disso, temos um acordo: eu
preparo as refeições, dirijo quando ela precisa fazer compras, faço
parte da limpeza, ajudo com as finanças e agendo e compareço à
maioria das consultas médicas. Vamos até a costa e a outros lugares
bonitos para tirar fotos, algo que ela adora fazer, e eu a visito ou
faço videochamada com ela todos os dias, se não estiver
trabalhando. Não considero nenhuma dessas coisas como de fato
cuidar. Em alguns casos, é totalmente o oposto: muitos cuidadores
gostariam de fazer as coisas divertidas que fazemos juntas. De
qualquer modo, são coisas que faço frequentemente com outros
familiares e amigos. Para mim, isso é apenas sermos mãe e filha.
“Acho que a diferença é que provavelmente não me preocupo
com amigos e familiares como me preocupo com ela. O que mudou
é o que pode potencialmente acontecer, é a ansiedade básica com a
qual vivo todos os dias. Mas tive que aprender a não deixar que a
preocupação e o medo me paralisassem. Quando cuido de pacientes
no trabalho, sou muito favorável a correr riscos positivos para
melhorar a qualidade de vida. No entanto, no trabalho há uma
constante avaliação desses riscos, limites de tempo e políticas e
procedimentos que precisam estar no lugar a fim de mantermos os
pacientes seguros. Como filha de uma mulher fervorosamente
independente que não aceita que lhe digam o que fazer, essa
abordagem não é adequada, então tenho que deixar minha
personalidade profissional para trás, porque, se minha mãe sequer
desconfiar que essa personalidade está presente, ela me mandará
embora.
“Assim, tive que parar de me preocupar com ela. Fomos à Itália
por quatro dias para uma conferência sobre demência e tivemos
algum tempo para passear. Certa manhã, fomos acompanhadas de
um guia para uma breve caminhada por um terreno rochoso até um
mirante com uma vista espetacular. O modo de andar da minha mãe
foi afetado pela demência e ela apresenta maior risco de queda. Em
certo momento, ela tropeçou, mas se endireitou sozinha e
continuou caminhando. Nosso guia comentou sobre quão relaxada
eu parecia e como não tentava agarrar minha mãe ao menor
movimento súbito. Mas sei que meu trabalho como filha é permitir
que ela permaneça independente e, para isso, tenho que abrir mão
do medo de que algo aconteça. Eu costumava me preocupar
frequentemente com o que aconteceria se ela sofresse uma fratura,
batesse a cabeça ou algo pior. Mas, se eu tivesse ficado ao lado dela o
tempo todo e a enrolado em uma camada de algodão, ela não teria
se divertido naquela caminhada. Então, agora, simplesmente acho
que o que tiver que acontecer vai acontecer. Desde que haja alegria,
vale a pena. Mas devo admitir que, às vezes, caminho na frente dela
para não ver seus pequenos tropeços.
“Ouvi alguns filhos e filhas falarem sobre as experiências deles e é
como se os papéis tivessem sido completamente invertidos, como
se, como filhos, eles tivessem assumido os papéis de pai e mãe. Não
me sinto assim. Certamente tive que me tornar mais responsável e
mais disponível para minha mãe, mas faço isso para ajudá-la a viver
de maneira independente, não para que ela dependa de mim. Para
qualquer um que esteja iniciando essa jornada, sugiro que se
contenha e não se apresse em ajudar. Tive que refletir muito para
chegar a esse ponto, não foi algo que me ocorreu naturalmente.
Quando você ama alguém e sabe que pode ajudar, quer sair
correndo e fazer algo. Mas a coisa mais amorosa que pode fazer é
deixar que a pessoa mantenha seu senso de si mesma e permitir que
aja por conta própria.”

Ao ler as palavras de Sarah, me lembrei da época em que eu cuidava dela


quando criança, das imensas montanhas que vemos nossos filhos escalarem, com
o coração na garganta, torcendo para que não sofram um acidente ou caiam.
Sim, alguns papéis foram invertidos, mas é esse o papel que deveria ter sido
invertido, esse distanciamento compassivo que auxilia a vida das pessoas, em vez
de restringi-la.
Quantas vezes dizemos a nossos filhos “Vá devagar”, “Tenha cuidado”, “Preste
atenção”, “Não faça isso”? Como pais, continuamente prestamos atenção a
acidentes e erros, cuidando daqueles pequenos e valiosos seres humanos e
querendo protegê-los de todo mal. Chega uma hora, porém, na qual
percebemos que precisamos deixá-los cometer os próprios erros, para que
aprendam — ou não — com eles e adaptem as próprias ações para diminuir a
probabilidade de se machucar. Precisamos dar a eles espaço para terem novas
experiências e aventuras e a liberdade de tentarem coisas novas, com nosso
apoio. Essa é uma rede de segurança que a maioria dos pais fornece, dando aos
filhos a liberdade de aprender com os próprios erros, sob a segurança da
presença parental caso algo dê muito errado. Como Sarah indicou, não é muito
diferente de cuidar de alguém com demência.
Quando era pequena, Sarah não tinha a autoconfiança das outras crianças,
mas sempre queria tentar as coisas que as amigas tentavam. Eu me lembro de
observá-la aos 3 anos em um encontro para brincar, com todas as mães sentadas
em círculo com xícaras de chá na mão e as crianças brincando no centro. Um
escorrega de plástico colorido atraiu sua atenção naquele dia e ela observava
enquanto as outras crianças subiam nele e escorregavam pelo outro lado.
Algumas mães seguravam a mão dos filhos enquanto eles tropeçavam e tentavam
o que devia parecer um feito imenso, mas outras continuavam a conversar, só
indo em socorro quando algo dava errado. Pensando bem, acho que aquela foi a
primeira vez que, como mãe, percebi que tinha que abrir mão do medo do que
poderia acontecer. Quão similar foi aquela experiência com a que Sarah acabou
de descrever.
Eu fiquei lá sentada, dividindo minha atenção entre Sarah e a conversa.
Queria desviar o olhar e deixá-la descobrir uma solução por si mesma, mas era
difícil, assim como é difícil para Sarah, hoje adulta, abandonar os medos em
relação a mim. Eu não queria que ela me flagrasse observando e se sentisse
inibida, então olhava para ela de soslaio, fingindo estar observando as outras
crianças enquanto ela tentava desvendar a rota mais segura. Ainda consigo ver a
concentração no rostinho de Sarah conforme, um degrau de cada vez, segurando
nas laterais, escalou e finalmente chegou ao topo do escorrega. Ela ficou lá em
pé, tão orgulhosa, pulando como as outras crianças e fazendo muito barulho, e
foi somente então que permiti que Sarah me visse observando, com um sorriso
tão grande quanto o dela.
Eu poderia ter ido até lá, como outras mães fizeram, e a erguido até a
plataforma do escorrega, mas onde estaria a diversão? Será que Sarah teria
obtido o mesmo senso de realização? Às vezes, como pais, temos que deixar
nossos filhos assumirem o controle das próprias experiências e fazerem as
próprias análises de risco. Nem sempre é fácil, mas agora sei que nem sempre é
fácil para os filhos adultos deixarem os pais com demência fazerem o mesmo. No
caso de Sarah, ao recuar e não se apressar para me ajudar, ela permite que eu
tenha uma vida mais independente, e sou grata por isso. Como ela mesma disse,
onde estaria a alegria da vida se você fosse constantemente observado e
advertido a não fazer algo ou se outros assumissem o controle e fizessem tudo
por você? É tão difícil as pessoas entenderem isso, especialmente aquelas que nos
amam, como minhas filhas. No entanto, ao fazerem isso, elas estão nos
devolvendo nossa vida. Para mim, não existe presente maior.

SOBRE MORAR SOZINHA


Estima-se que cinquenta milhões de pessoas vivam com demência em todo o
mundo, e é provável que esse número suba para 152 milhões em 2050. No
Canadá, na França, na Alemanha, no Reino Unido e na Suécia, mais de um terço
dos que vivem com demência moram sozinhos, sendo, de modo geral e
progressivo, as mulheres mais velhas a maior parte dessa porcentagem em todo o
mundo. Ou seja, pessoas como eu. Faz sentido que mulheres da minha geração,
já não restritas pelo estigma do divórcio, estejam escolhendo viver sozinhas.
Contudo, o que isso significa quando combinado ao crescente número de
mulheres com demência?
Antes da demência, houve épocas em minha vida nas quais desejei não me
sentir tão sozinha. Eu me separei em 1988, quando minhas filhas tinham 4 e 7
anos. Depois disso, as criei sozinha. Houve momentos no decorrer dos anos,
antes do diagnóstico, nos quais desejei ter alguém. Houve dias nos quais o
trabalho era particularmente difícil e eu queria alguém com quem conversar
sobre um problema; alguém que colocasse um braço reconfortante em torno de
meus ombros e dissesse que tudo ficaria bem. Ou achava que seria ótimo,
quando havia um problema com uma das meninas, virar-me para alguém e
perguntar: “O que você acha?” Ou ter alguém nos fins de semana, quando eu saía
sozinha e olhava para as mesas em volta, com os muitos casais conversando. Ou à
noite, quando queria sentir outro corpo próximo do meu e ouvir a respiração de
outra pessoa na escuridão.
Desde o diagnóstico, também tive esses momentos: seria bom ter alguém que
se lembrasse de datas ou compromissos importantes que eu pudesse esquecer.
Há momentos em que tudo de que precisamos é de outro ser humano sentado a
nosso lado para que não nos sintamos sozinhos; para fornecer aquele atalho na
linguagem, aquele sorriso, aquele olhar conhecedor que torna as palavras
desnecessárias — essas nuances do companheirismo que têm tanto significado.
Precisamos da sensação de segurança de termos alguém a nosso lado nos dias em
que a vida está confusa e perde o foco quando precisamos ir do ponto A ao
ponto B. Alguém com quem dividir algo especial, como da vez em minha
caminhada na qual desejei perguntar “Você viu aquilo?” quando um gavião
mergulhou e pousou a alguns metros de mim. Alguém com quem rir, realmente
rir. Às vezes, quando vejo casais partilhando uma piada interna, me sinto como
uma adolescente deixada de fora do grupo. Não tenho alguém que desligue a
panela quando eu a esqueço no fogão ou que poderia ter aberto a tampa do
Tupperware que me derrotou no outro dia, fazendo com que, em vez de sopa,
eu tivesse que jantar um sanduíche com chá.
Apesar de tudo isso, as pessoas podem ficar surpresas ao saber que, no meu
caso, acho melhor viver com demência sozinha.
Não tenho ninguém que me apresse ou questione. A principal coisa da qual
sempre preciso é de tempo. Meu cérebro não consegue trabalhar rapidamente,
então a pior coisa que alguém pode falar para mim é “Anda logo”. Essas duas
minúsculas palavras geram pânico, confusão e sensação de fracasso. Entretanto,
vivendo sozinha, meu tempo pertence a mim; posso seguir meu ritmo.
Não tenho alguém que questione por que não consigo me lembrar das coisas
e pessoas. Para mim, esse constante lembrete de que não consigo lembrar
sempre sinaliza fracasso. “Você lembra? Você tem que lembrar.” Essa constante
torção da faca na ferida. Hoje em dia, já não respondo quando alguém diz isso,
simplesmente deixo a pessoa falar. É mais fácil. Do contrário, ela pode tentar
despertar minha memória com mais um detalhe igualmente insignificante para
mim. Frequentemente encontro casais nos quais um dos parceiros adota um tom
de voz que diz “Eu te expliquei isso ainda ontem” enquanto o outro parece
perdido e cabisbaixo por precisar perguntar novamente e ser repreendido como
uma criança.
Não preciso me desculpar por minhas ações. Posso cometer erros sem
qualquer grande drama. Posso descer as escadas e encontrar a tigela de comida
que esquentei na noite anterior ainda no micro-ondas. Simplesmente jogo a
comida fora e lavo a tigela. Se outra pessoa estivesse aqui, poderia ficar
preocupada por eu ter pulado uma refeição ou se incomodar com o desperdício
ou a bagunça. Para mim, é só mais um incidente, e eu desejo a mim mesma mais
sorte na próxima vez que precisar me lembrar de que a tigela ainda está no
micro-ondas.
Não tenho alguém fazendo as coisas em meu lugar porque é mais fácil ou
rápido. Não importa quanto tempo eu leve para fazer alguma coisa, sempre é
melhor que eu faça por conta própria. A demência rouba tantos desses
minúsculos momentos de independência que nos fazem sentir humanos que a
última coisa que queremos é perder todos eles. Vejo isso o tempo todo entre
casais: os parceiros que estão prontos para sair e ficam frustrados com o tempo
que o outro nessa condição leva para fechar o casaco. “Deixe que eu faça, é mais
rápido”, dizem. Essas palavras são muito incapacitantes. Nós, ao menos, tivemos
nosso cérebro roubado pela doença; os parceiros estão somente cedendo à
influência da impaciência. Se tenho dificuldade para fechar meu casaco, não faz
mal, saio com ele aberto — logo vou me dar conta de fechá-lo com as mãos em
torno do corpo quando sentir frio.
Não tenho alguém ficando preocupado quando tenho um dia ruim. Nesses
dias enevoados, já é ruim o bastante viver com demência sem ter que suportar
alguém perguntando o que está errado ou como ajudar — mesmo que isso seja
feito com a melhor das intenções. Se planos precisam ser mudados, não preciso
me sentir culpada por decepcionar alguém. Eu me lembro de um casal em
particular. A mulher me disse que eles deveriam ter ido tomar café com amigos
que não viam havia anos e dos quais ela estava com saudades, mas, quando a
mente de seu marido ficou enevoada, ele quis ficar em casa, em um lugar sem
ruídos no qual não precisasse conversar e pudesse apenas ficar sentado, sozinho e
em paz. O desapontamento da mulher era óbvio ao me contar a história, assim
como a culpa sentida pelo marido. “Ela deveria ter ido sozinha”, disse ele. No
entanto, ela queria ir como casal.
Gosto do fato de não precisar conversar se não estiver com vontade. O
silêncio é meu amigo, e minhas filhas sabem que eu o amo. Fico feliz em estar
com elas, sem falar qualquer coisa. Em casa, fico sem falar por horas e não
preciso puxar conversa apenas para romper o silêncio. Tenho pena dos parceiros
daqueles que não querem conversar. Com dois seres humanos em uma casa, o
diálogo acontece naturalmente, mas deve ser muito solitário ter a seu lado
alguém que se sente incapaz de conversar porque é muito difícil encontrar as
palavras certas. Eu me sentiria incrivelmente culpada por negar uma conversa a
alguém.
Não preciso temer ter magoado alguém. Frequentemente, pensar é
exaustivo, e tentar determinar se magoei alguém não é diferente. Se estou com
minhas filhas, sei pelas expressões ou pelo tom de voz delas se fiz isso.
Imediatamente fico triste e tento corrigir as coisas. Para os casais, a lembrança,
de um dia para o outro, de uma discussão ou palavra indelicada há muito
esquecida pelo parceiro com demência pode permanecer no coração da outra
pessoa. Deve ser difícil lidar com isso. Ou com o ressentimento que
frequentemente está presente se um dos parceiros sente que não é
compreendido ou que as próprias necessidades não são atendidas. Isso incide em
todas as áreas do relacionamento e, no entanto, o parceiro que vive com o
diagnóstico sequer tem noção disso. Como pedir desculpas quando você já
esqueceu a razão pela qual magoou alguém? Como o parceiro sem demência
pode perdoar, se o outro já fez isso milhares de vezes?
Não preciso me preocupar porque faço as coisas de maneira distinta. Que
diferença faz se tenho um aspirador sem fio a fim de não tropeçar? Ele pode não
ser tão potente, pode não fazer um trabalho tão bom, mas significa que ainda
consigo limpar minha casa. Se eu tivesse um parceiro, ele poderia insistir em um
aspirador adequado que eu já não poderia usar, e então me sentiria totalmente
redundante — embora, se não gostasse de passar o aspirador, isso pudesse ser
uma vantagem!
Não tenho alguém me corrigindo quando digo uma palavra, data ou nome
errados. Sempre ouço pessoas corrigindo seus respectivos parceiros quando algo
é dito equivocadamente. No panorama geral, será que isso de fato importa? Se
ouvir uma conversa de um grupo de pessoas com demência, você raramente
ouvirá correções. Em vez disso, testemunhará aceitação. As pessoas seguem o
fluxo. Corrigir alguém leva à hesitação enquanto a pessoa confere o que vai dizer
e então, é óbvio, o fio de pensamento se perde.
Eu não sinto que estou decepcionando alguém. E por isso sou grata por estar
solteira. Todos fazemos planos quando nos casamos: envelhecer
desgraciosamente juntos, sonhar com a aposentadoria, fazer longas caminhadas
pelo campo, ter férias maravilhosas e outras aventuras. É somente quando algo
acontece a um dos parceiros que esses sonhos se despedaçam. Eu não
conseguiria lidar com isso, não conseguiria ver o rosto da pessoa cuidando de
mim, sabendo que o futuro dela foi roubado juntamente com o meu.
Frequentemente se diz que os cuidadores sofrem e as pessoas com demência
vivem — suponho que estamos no aqui e agora, ao passo que nossos parceiros
pensam no que poderia ter sido. Quando a doença progredir a ponto de sermos
irreconhecíveis para a pessoa que somos agora, nem perceberemos quanto
trauma e sofrimento foi causado.
Vivendo sozinha, tenho que encontrar uma maneira de enfrentar os desafios
da minha vida cotidiana. Será que é isso que mantém a demência afastada, o
simples fato de que sou solteira? Eu não poderia viver sozinha se não tivesse
enfrentado meus desafios e encontrado maneiras de contorná-los. É essa
determinação de continuar morando sozinha, de continuar encontrando
soluções que me ajuda a passar a perna na demência todos os dias.
Eu tenho um problema sério com pessoas vindo até minha casa. Acho difícil,
porque não estou acostumada. Então não sou a candidata ideal para receber
atendimento domiciliar: ter alguém vindo aqui todos os dias me deixaria
desorientada. Muitas pessoas que moram sozinhas desenvolvem a própria rotina
e acham desconcertante ter que se adaptar aos hábitos de um cuidador que as
atenda em casa. Perguntei a dois amigos como eles se sentiriam com um
cuidador que dormisse no emprego, ou seja, na casa deles. “Ansioso” foi a
palavra que usaram: eles não conseguem imaginar alguém compreensivo o
bastante para aceitá-los como são e que esteja disposto a entender a demência,
em vez de esperar que eles aceitem a metodologia de como faz o atendimento.

SOBRE A NECESSIDADE DE CONEXÕES


Há benefícios de se morar sozinha. Isso não significa, porém, que, às vezes, você
não sinta certa solidão com a ausência de relacionamentos próximos.
Um estudo de 2019 da Universidade de Cambridge analisou como as pessoas
que viviam sozinhas buscavam relacionamentos — mesmo que fossem somente
encontros breves — nas comunidades delas. Esses encontros, fossem planejados,
fossem espontâneos, forneciam contato significativo que fazia com que os
participantes do estudo se sentissem mais seguros e menos sozinhos no bairro
onde residem. Sei como essas pessoas se sentem: quando me sinto
particularmente isolada, muitas vezes planejo minhas caminhadas para aumentar
as chances de encontrar outros moradores do vilarejo. É incrível o que um
sorriso ou um simples olá podem proporcionar se você não vê alguém durante o
dia, e isso não se aplica somente às pessoas com demência: tenho muitos
vizinhos que fazem o mesmo. Adoro morar sozinha, mas me sinto cada vez mais
solitária e necessitada de contato humano para provar a mim mesma que ainda
consigo conversar, que as pessoas ainda vão interagir comigo, que eu existo. Não
consigo obter essa sensação de companhia proveniente da TV, como alguns. Para
mim, um sorriso humano é muito mais gratificante que um dispositivo
eletrônico no canto da sala. Assim, saio para caminhar em busca dessa conexão
humana.
As pessoas entrevistadas para o estudo mencionaram como até mesmo uma
breve conversa na escadaria do prédio faz com que se sintam mais conectadas, e
que “os vizinhos fornecem um nível baixo mas consistente de apoio diário”. Esse
apoio é importante porque evita o sentimento de isolamento que pode levar à
depressão. Eles também relataram como se sentiam mais seguros ao notar que as
pessoas com quem tinham contato regular prestavam atenção a eles. Por mais
tênues que fossem os elos que os ligavam — a pessoa em questão podia ser
apenas o proprietário do café que frequentavam —, eles sentiam que, se não
aparecessem por alguns dias, tal pessoa notaria e soaria o alarme.
A verdade é inescapável: as pessoas com demência que moram sozinhas são
mais propensas a internações não planejadas e a má nutrição; são admitidas em
casas de repouso mais cedo; estão menos conectadas aos serviços formais; e não
contam com a proteção de um cuidador em casa. Assim, precisamos de apoio
para morar sozinhos e, se esse apoio não vem da nossa família, tem que vir de
amigos, vizinhos ou da comunidade mais ampla. Contudo, como muitos dos
meus amigos indicaram, as amizades mudam após a demência. No relatório de
2019, uma mulher sueca de 79 anos falou sobre como ocorre a diminuição do
círculo social, o que fez com que ela se sentisse solitária. O problema era a falta
de conhecimento sobre a demência no grupo de amigos dela, que fazia com que
não entendessem que ela já não se lembrava dos locais habituais de reunião. Isso
fez com que ela sentisse vergonha da doença e se afastasse.
Definitivamente foi assim para mim no início, e ainda é quando conheço
pessoas que sabem que tenho demência. Preciso enfrentar o medo que vejo no
rosto delas e desconstruí-lo com minha personalidade e meu modo de conversar.
Às vezes, leva mais tempo — com a descrença delas sendo uma barreira para a
aceitação de como sou —, mas, geralmente, consigo persuadi-las a me verem
primeiro como pessoa, e só então como pessoa vivendo com demência. É
quando veem primeiramente a demência que as coisas levam mais tempo.
Uma amiga teve uma experiência similar após ser diagnosticada. Ela conta
que os amigos se afastaram e como isso a deixou triste, porque eles haviam sido
próximos por muitos anos, mas não entendiam que a mulher que viam já não
era, interiormente, a mesma de antes. Ela se sentiu perdida e deixada de lado. O
marido dela explicou:

“Os amigos da minha esposa se afastaram desde o diagnóstico. Seis


deles ficaram viúvos no último ano e formaram um grupo, mas ela
não consegue processar as conversas rapidamente e foi excluída. Ela
acha tudo isso muito triste, pois eles foram amigos por anos.”

Outra amiga com demência disse o seguinte:

“Eu era sempre a organizadora, a presidente do Instituto das


Mulheres, dava aulas de arte etc. Agora já não tenho a sensação de
pertencimento, já não faço parte das coisas. Isso dói. Eu era muito
mais autoconfiante e não sou capaz de ser assim tão organizada
desde a demência.”

O marido dela concordou:

“O problema não são os parceiros e filhos, mas os amigos e também


fazer novas amizades. A autoconfiança para formá-las e participar de
novos grupos desapareceu, e Sue acha muito difícil resgatá-la. A
falta de amigos é o maior problema.”

O relatório de 2019 reconheceu que, infelizmente, as perdas sociais parecem


fazer parte da vida de muitas pessoas após o diagnóstico. Os autores atribuíram
isso a três coisas: falta de consciência social do que a demência significa, falta de
aceitação da condição e falta de compaixão. O relatório concluiu que os serviços
de apoio são essenciais para a conscientização e para tornar as comunidades mais
amigáveis para as pessoas que vivem com demência, bem como para fornecer o
muito necessário contato social, que evita que aqueles que vivem com a doença
se sintam isolados e, consequentemente, suscetíveis à depressão. Entretanto, na
Inglaterra e na Escócia, com os serviços do setor público em declínio,
frequentemente cabe às organizações voluntárias desempenhar esse papel. Há
dez anos, aparentemente costumava haver um serviço de atendimento à
demência precoce em East Riding, onde eu morava, mas ele foi fechado um ou
dois anos antes de eu ser diagnosticada por não haver demanda local. É
importante que não contemos somente com organizações voluntárias para fazer
o trabalho que o setor público deveria estar fazendo. Alguns serviços precisam
de pessoas com treinamento específico, e as instituições de caridade nem sempre
podem pagar os salários desses profissionais. O apoio imediatamente após o
diagnóstico é a maneira mais importante de ajudar as pessoas a criar resiliência e
lembrá-las de que ainda há vida após o diagnóstico. Na Escócia, todo recém-
diagnosticado é designado a um assistente de apoio que pode direcioná-lo aos
serviços necessários, mas, após um ano, esse apoio é removido.
O relatório da Universidade de Cambridge recomenda que haja “mais
oportunidades para encontros sociais na comunidade, ajudando a superar as
divergências geracionais e aumentando o conhecimento sobre a demência”.
Prossegue o relatório: “O teste decisivo para as iniciativas emergentes de
comunidades amigáveis para pacientes com demência será o quanto os pacientes
que moram sozinhos conseguem prosperar e participar das comunidades locais,
juntamente com seus colegas e vizinhos.”
Eu concordo. Se somos incluídos em uma comunidade como seres humanos,
como todos os outros, prosperamos e nos sentimos parte de algo maior — e
acredito que com isso a comunidade se torna melhor. Todo mundo enfrenta
desafios. A única diferença é que o meu é a demência.

SOBRE PESSOAS COM DEMÊNCIA COMO CUIDADORES


O número de mulheres com demência que moram sozinhas pode estar
aumentando, mas há outro dado demográfico que também está se tornando
comum: pessoas que vivem com demência e cuidam de alguém com a doença.
Com cada vez mais diagnósticos, essa é uma realidade inevitável. Uma grande
amiga minha, Agnes Houston, é uma dessas pessoas.
Eu a conheci em uma conferência em 2015, quase um ano depois de meu
diagnóstico. Fiquei impressionada com a atitude positiva dela e com o quanto
estava determinada a demonstrar que ainda havia muito a se viver após o
diagnóstico. Desde então, nos tornamos amigas, ambas palestrantes regulares,
ativistas e conselheiras de muitos comitês. Antes de ser diagnosticada, Agnes era
enfermeira intensivista, e seria de esperar que isso a tivesse preparado para a
situação. No entanto, cuidar das pessoas profissionalmente e cuidar de alguém da
própria família são coisas muito diferentes.
Agnes foi diagnosticada em 2006. Seu marido, Alan, foi diagnosticado alguns
anos depois, mas, hoje em dia, Agnes se pergunta se a doença dele não esteve
presente, não diagnosticada, por muitos anos antes disso. Ele certamente não
conseguiu lidar com a situação quando ela foi diagnosticada, tornando-se cada
vez mais irresponsável com o dinheiro — o que, pensando bem, já era uma
manifestação de sintomas —, e por fim o casal decidiu viver separadamente.
Agnes é ajudada em casa pela própria cuidadora, mas ainda está tentando
conseguir o serviço para Alan e, até lá, é a principal cuidadora dele.
“Se eu não fosse enfermeira, estaria morta e Alan internado”, explicou ela.
“Há certa satisfação em cuidar de alguém que é fisicamente dependente, mas, ao
cuidar de alguém com demência, é muito mais difícil encontrá-la.
“Alan não se dá conta de que está em perigo. Ele reconhece verbalmente a
demência e parece muito orgulhoso de ter duas formas dela: vascular e de
Alzheimer, mas não entende a doença em nível mais profundo. Se tentasse
entender, veria as próprias dificuldades, e ele não quer ser lembrado do que não
pode fazer.
“Não gosto da palavra ‘cuidadora’, mas sei que precisamos usá-la. Eu
desempenho diferentes papéis: cuidadora, enfermeira, esposa. Como cuidadora,
meu papel se divide em cuidado físico, psicológico e estímulo cognitivo. Por
exemplo, não preciso colocar Alan no chuveiro, mas ele não toma banho se eu
não lhe disser para fazer isso, e coloca as mesmas roupas a menos que eu as
substitua. Tenho que monitorar sua hidratação e ingestão de alimentos,
principalmente porque ele mora sozinho. Mesmo tendo em casa refeições
congeladas para micro-ondas, ele acha mais fácil fazer sanduíches, mas pode
comer o pacote inteiro de pão, e isso não é bom. Ele me conta o que sabe que
quero ouvir, é capaz de me dizer que fez uma ótima refeição. Então eu pergunto:
‘Onde você conseguiu o frango? Eu não trouxe frango para você.’ Mas ele tenta
me convencer de que eu comprei frango e não lembro por causa da minha
própria demência, até que sou obrigada a conferir o lixo. É muito cansativo.
“Em qualquer casamento, um dos parceiros pode acabar compensando as
falhas do outro, mas, na demência, se exagera nessa compensação, você acaba
incapacitando o parceiro. Por exemplo, Alan já não entende o valor do dinheiro,
então tenho que dar a ele a quantia exata de que ele precisa para comprar o
jornal. As coisas ficam tão complicadas que eu poderia pensar: não vale a pena,
vou providenciar para que o jornal seja entregue. Mas, ao fazer isso, eu estaria tirando
sua autonomia. Meus próprios cuidadores tentam fazer a mesma coisa comigo, e
é preciso uma personalidade muito forte para não deixar que os outros façam
coisas por você. Mas, se permitir que elas calcem suas luvas ou seu chapéu, antes
de se dar conta você não estará mais se vestindo sozinha. Mas eu mesma já fiz
isso: se precisa chegar à consulta médica a tempo, você pode acabar abotoando o
casaco da pessoa de que está cuidando e, com isso, a incapacitando.
“Eu escolho minhas batalhas com Alan. Me lembro de um dia no qual ele
estava tomando chá e se levantou. Eu perguntei: ‘O que você está fazendo,
amor?’, porque tive medo de que ele caísse. Ele disse: ‘Vou pegar a escada. Se a
escada estiver para fora, lembrarei que tenho algo a fazer com ela.’ E então a
escada ficou lá, e me incomodava. Eu não conseguia lembrar por que ela estava
lá, até que um dia não aguentei mais e disse: ‘Amor, já terminamos com a
escada, você pode guardá-la?’ Nós deveríamos estar em uma comédia, porque
ninguém acreditaria que algo assim aconteceu de verdade.
“Eu acreditava estar fazendo por Alan o que uma esposa deve fazer, mas,
como cuidadora e como pessoa vivendo com demência, percebi que eu também
tinha necessidades e elas estavam sendo negligenciadas. Quero conseguir o
serviço de atendimento domiciliar para ele, o que tirará esse peso das minhas
costas, a fim de que eu não tenha que fazer toda essa administração médica e
possa ser somente esposa. As agências parecem não entender que eu também
tenho demência. Eu estou fazendo o trabalho delas.”
Perguntei a Agnes se, além da desesperada necessidade de cuidados para
Alan, havia algo que pudesse ajudar casais nos quais ambos têm demência.
“Precisamos de terapia de casal”, respondeu ela. “Alan tem seus problemas
com a demência e eu tenho os meus. Eu só consigo enxergar as coisas através do
meu próprio prisma e Alan só consegue enxergar as coisas através do dele. Seria
bom ter um insight, não para iniciar um jogo de culpa, mas para nos
entendermos melhor. Por exemplo, ele poderia dizer ‘Seria útil para mim que a
escada continuasse ali’, em vez de discutirmos por causa dela. Eu não consigo
ver os problemas que temos e Alan não tem a capacidade de me dizer quais são.
Mas, com tempo e diferentes maneiras de obter a informação, poderíamos ter
um momento de epifania e encontrar soluções. Eu não teria que privá-lo de sua
autonomia, o que pouparia bastante estresse.”
Não consigo imaginar quão difícil deve ser para Agnes ter que lembrar a si
mesma de priorizar as próprias necessidades quando o instinto é cuidar dos
outros. Conheço um casal que vive em residência assistida, ambos com
demência. Quando o marido foi para o hospital recentemente, os médicos
estavam tão ávidos para lhe dar alta que não conseguiam entender por que a
esposa era incapaz de fazer os arranjos necessários para que ele fosse para casa.
Outra amiga minha, na Nova Zelândia, também tem demência e cuida do
marido com deficiência física há 25 anos. Mesmo assim, ela me disse que agora,
pela primeira vez em mais de duas décadas, o relacionamento se tornou mais
equilibrado, com cada um cuidando do outro de maneiras diferentes.
Como em qualquer relacionamento, constantes negociações e trocas são
necessárias. A demência simplesmente acrescenta outro elemento à equação.
COMUNICAÇÃO

Quão vitais são as palavras para nossa necessidade de comunicação? Ainda


consigo ver minhas filhas quando bebês, sentadas na cadeira alta, muito
orgulhosas por estarem comendo as primeiras fatias de banana. Elas balbuciavam
enquanto comiam, produzindo sons e gorgolejos incompreensíveis, mas eu —
como todas as mães — respondia como se o que diziam fizesse perfeito sentido.
Quando elas ficaram um pouco mais velhas e aprenderam a dizer “sim”,
podíamos conversar durante horas, desde que eu fizesse as perguntas certas. No
entanto, uma resposta verbal nem sempre era o que elas precisavam. Mães e
filhos se comunicam de muitas outras maneiras, com sorrisos, acenos, abraços
apertados ou risadas. Quando minhas meninas ficaram mais velhas, também se
tornaram mais hábeis nessa comunicação não verbal. Havia bons momentos nos
quais bastava um reconfortante aceno meu do outro lado da quadra esportiva
para elas darem tudo de si na próxima corrida, ou de um sorriso meu quando
estavam em um local alto do qual não tinham coragem de saltar. Também havia
momentos nos quais arquear as sobrancelhas era suficiente para avisar que o que
quer que estivessem prestes a fazer não contava com minha aprovação ou nos
quais minha presença na porta do quarto e um único olhar anunciavam que
estava na hora de encerrar qualquer discussão que estivessem tendo.
Diz-se que somente 7% de nossa comunicação é verbal, 55% é feita por
linguagem corporal e 38% se dá pelo tom de voz. Eu sei que, quando estava
sentada ao lado da minha mãe em seus últimos momentos de vida, não houve
necessidade de palavras. Minha mão segurando a dela disse tudo que ainda
restava a dizer. Minha mãe só precisava saber que eu estava por perto e que ela
não estaria sozinha quando a morte finalmente chegasse.
No mundo animal, palavras não são necessárias: há ronronares e lambidas, e o
toque do nariz da mãe é suficiente para manter seus filhotes comportados. Por
que, então, os seres humanos valorizam tanto as palavras, quando, na maior
parte do tempo, elas não são suficientes para dizer o que sentimos?
Antes da demência, eu gostava de longos jantares em restaurantes, com muita
conversa. Entretanto, como já expliquei, o retinir dos talheres, os ruídos de
fundo e minha dificuldade para acompanhar a conversa fizeram com que me
distanciasse. Eu me reclinava na cadeira, contente em ouvir. Meu silêncio
significava que não estava contribuindo? Talvez. Estar lá sentada, porém, fazia
com que eu me sentisse incluída? Definitivamente.
A comunicação existe em muitos formatos. Quando a demência afeta
cruelmente a fala ou a rouba por completo, as pessoas frequentemente cometem
o erro de parar de conversar conosco ou de nos visitar — param de nos dar um
lugar à mesa. Elas não pensam em todas as expressões não verbais, aquela moeda
essencial que usamos para nos comunicar com os outros durante nossa vida —
um olhar entre marido e esposa que vale por mil palavras, a preocupação no tom
de voz do outro quando você teve um dia difícil. Por que alguém com demência,
que já não consegue falar como fazia antes, não precisaria mais disso?
Eu me lembro de participar de uma pesquisa da Universidade de York,
juntamente com outros pacientes com demência. Uma delas era Maria Helena,
que infelizmente já faleceu. Ela era colombiana e participou do estudo com o
marido. Estava mais avançada na jornada da demência que muitos ali, mas
gostava das conversas tanto quanto nós. Como sei? É verdade que as habilidades
verbais de Maria não eram as mesmas de antes e que ela constantemente
retornava ao espanhol nativo, mas se conectou com a pesquisadora, abraçando-a
e rindo com o restante de nós mesmo quando não conseguia encontrar as
palavras. Essa foi a contribuição dela para a pesquisa, e o dia não teria sido o
mesmo sem Maria.
Entendo que pode ser perturbador para as pessoas visitarem entes queridos
em casas de repouso e descobrirem que já não são reconhecidas. Sei a dor que
isso causa, e este é meu maior medo: o momento em que minhas meninas terão
que enfrentar a mesma mágoa e a mesma dor. Não estou minimizando o
problema. No entanto, precisamos lembrar que, durante a vida, nós nos
comunicamos de várias maneiras que não envolvem a fala; todos nos lembramos
de algum momento no qual a comunicação não verbal foi suficiente para
reconfortar alguém. Acho muito triste pensar que alguém desistiria de falar
comigo porque já não consigo responder. Experimente dizer a uma enfermeira
intensivista que passa horas ao lado de pacientes inconscientes que eles foram
subitamente privados de personalidade, de preferências e aversões, de desejos e
necessidades.
Uma de minhas amigas estadunidenses perdeu a habilidade de falar. Ela era
jornalista, e parece tão cruel que, entre todas as pessoas, a demência tenha
roubado essa habilidade logo dela. A parte de seu cérebro que usa o teclado,
porém, ainda está viva. Ela ainda escreve, eloquentemente e com muita emoção,
mas não consegue dizer as palavras que deseja que as pessoas ouçam. Isso
significa que deveria ser excluída? O silêncio dela deveria deixar as pessoas
desconfortáveis quando está nítido que, do lado de dentro, ainda há muito a
dizer? A doença dela está mais avançada que a minha, mas acho reconfortante
saber que ainda há nela a habilidade de se comunicar. Por fora, ela pode parecer
confusa, ausente, muda, mas ela não apenas digita como frequentemente pinta o
que sente. As pinturas são tão evocativas quanto os pensamentos que devem
povoar a mente dela. É assim tão importante o fato de ela não conseguir falar,
considerando-se que essa não é a única maneira de lidarmos com o mundo?
Meu amigo Christopher Devas infelizmente está nos últimos estágios da
doença e também perdeu a habilidade de falar, mas continua frequentando os
ensaios do amado coral. Quando começa uma das músicas favoritas de
Christopher, ele canta como se a voz cotidiana jamais o tivesse abandonado. Ele
fica em pé, orgulhoso, cantando com o coração, a melodia correndo pelas veias,
indelével. Algumas histórias viralizaram, como o emocionante clipe da bailarina
Marta Cinta González — que infelizmente faleceu em 2019 — ouvindo uma
gravação de O lago dos cisnes, de Tchaikovsky, que ela dançara na juventude. Na
frente da câmera, a música despertou a memória muscular e ela começou a se
mover tão elegantemente quanto antes da demência. Ou a história de Paul
Harvey, um homem de 80 anos que, antes da demência, era pianista clássico e
compositor. O filho dele o gravou compondo uma belíssima peça com apenas
quatro notas, e ela foi parar entre as quatro músicas mais ouvidas do iTunes.
“Minha memória funciona quando toco piano”, disse ele ao Guardian.
“Consigo me lembrar de todas as coisas que fiz. Quando assisto à televisão ou
faço outras coisas no lugar onde moro, começo a esquecer. E, se algo não estiver
no lugar certo, começo a entrar em pânico. Mas, se estou estressado, toco piano
e tudo volta a ficar bem.”
Eu já disse inúmeras vezes que todos tínhamos talentos antes do diagnóstico e
não os perdemos da noite para o dia. Minha amiga Monica, do grupo Minds and
Voices, em York, sempre toca piano ao fim de nossas reuniões de uma hora no
Zoom, uma bela peça clássica que nos traz paz. Monica costumava ser professora
de música muito antes de a demência invadir o mundo dela, mas, mesmo que a
doença seja sua companheira agora, ela não é esperta o bastante para roubar de
Monica essas maravilhosas notas musicais.
Eu não falo mais como antes. Às vezes, fico constrangida ao ouvir minhas
gravações: não gosto da hesitação ou do som de minha voz, nem da pausa que
faço enquanto tento me lembrar de palavras simples. Quando dou palestras,
tenho que ler. Sempre começo explicando que, se não usar as anotações,
perderei o fio da meada e minha mente se desviará para assuntos irrelevantes
para o tópico em discussão. Alguns me criticaram por isso, dizendo que isso em
si não reflete minha demência, mas o tempo é tão limitado nessas ocasiões que
sempre quero ter certeza de que expus todos os meus argumentos.
Consigo entender que, para alguns, a frustração de não ser capaz de falar
como antes é grande demais, que palavras e pensamentos que nos escapam como
borboletas, às vezes impossíveis de capturar, são simplesmente exaustivos e é
mais fácil desistir e ficar em silêncio. Tivemos uma amiga no grupo Minds and
Voices que participava de todas as reuniões semanais, mas sempre em silêncio.
Um dia o grupo se dispersou e eu sentei ao lado dela no canto da sala,
compartilhando uma xícara de chá e não muito mais que isso. Naquele tempo
que passamos juntas, não houve pressão para falar. Eu esperava que ter ao lado
alguém que simplesmente apreciava a companhia dela, em vez de tentar extrair
algumas tímidas palavras, a fizesse relaxar. Pela linguagem corporal, notei como
a confiança dela aumentou pouco a pouco. Ela começou a entender que minha
amizade não tinha expectativas e, quando finalmente tentou formular um fluxo
de palavras, esperei sem apressá-la. Não houve constrangimento nem qualquer
momento desconfortável quando não a entendi. E daí que não consegui
compreender todas as palavras? O importante era a conexão que estávamos
compartilhando. A risada foi nossa substituta naquele momento. Quantas vezes
você compartilhou um momento de humor com alguém e esse momento os
aproximou mais que quaisquer palavras? Foi o que aconteceu conosco. Ambas
tínhamos demência e entendíamos a situação, e isso deu a ela a liberdade de não
se preocupar. De simplesmente ser.
Se passar tempo suficiente com alguém, você conseguirá lê-lo como um livro
que você conhece do início ao fim. Uma amiga, cujo marido tinha demência e
infelizmente já faleceu, disse que sabia como ele se sentia ou que tipo de dia
estava tendo — bom ou ruim — simplesmente pela expressão facial dele. As
pessoas conhecem cada linha e ruga do rosto de quem amam tão bem que as
equipes de hospitais e casas de repouso deveriam prestar mais atenção ao que
elas são capazes de intuir. Minha mente avança às vezes, quase sempre em
pesadelos, mas às vezes simplesmente por curiosidade, até um futuro no qual
não serei capaz de dizer o que quero. Espero que os laços de amor que me unem
tão estreitamente a minhas filhas desde os dias em que ficavam sentadinhas na
cadeirinha de alimentação e me contavam histórias que eu me esforçava tanto
para entender me ajudem nesses últimos estágios. Que, quando a hora chegar, e
eu já não puder falar, minhas filhas possam ler em meus olhos aquilo que quero e
de que necessito.
Ninguém sabe com certeza o que as pessoas com demência realmente
pensam nos últimos estágios e como se sentem quando já não conseguem falar.
Será que ainda são capazes de pensar, da mesma forma que alguém preso em um
corpo disfuncional ou em coma profundo às vezes consegue ouvir o que é dito
em volta? Se é isso que me aguarda, gosto de pensar que minhas meninas — as
pessoas que mais amo no mundo — estarão lá para me fazer companhia, para
me oferecer o toque das mãos ou o som da voz, que conheço tão bem, e que
saibam intuitivamente quão feliz isso irá me deixar, mesmo que eu já não tenha
palavras para dizer isso.

SOBRE ENFRENTAR AS CRÍTICAS


Meu blog, Which Me Am I Today? [Qual versão de mim sou hoje?], atrai visitantes
de todo o mundo. Tenho mais de quatro mil visitantes assíduos de lugares tão
distantes quanto Austrália, Coreia do Sul, Rússia, México e Myanmar.
Ele começou simplesmente como uma espécie de memória, uma maneira de
me lembrar do que eu fazia a cada dia, e ainda serve a essa função. Tive a sorte
de prever a importância de manter um registro de minhas memórias enquanto
vivo com uma doença que as rouba de mim enquanto durmo. No entanto,
conforme aprendia mais sobre a doença, percebi que havia outro significado para
o blog: ele era um lugar para compartilhar ideias e informações. Conforme
pessoas começaram a me seguir e comentar, vi a busca desesperada por
informações e a gratidão por recebê-las:

“Wendy, quero começar dizendo que espero ansiosa por seus posts
todos os dias. Acho que minha mãe está no início da demência, mas,
ao contrário de você, ela não quer fazer um teste de memória.
Quero compreender como é ter demência, e já fui capaz de usar as
coisas que você diz com minha mãe. Por favor, continue escrevendo,
seus posts são reconfortantes e inspiradores.”
“Obrigada, Wendy. Eu me sinto mais forte e informada. Meu
marido acabou de ser diagnosticado com dano cognitivo e sei um
pouco mais sobre a doença agora. Ela é muito difícil, tanto para o
paciente quanto para quem cuida dele.”
“Wendy, meu pai e meus dois irmãos têm demência. No entanto,
eu e meu marido conversamos sobre as coisas que você escreve e
agora sinto menos medo do futuro se um de nós for diagnosticado.
Você não minimiza a demência, mas compartilha princípios sensatos
de sobrevivência e até mesmo momentos de alegria.”
“Meu marido tem Alzheimer em estado avançado e ler sobre sua
jornada tem sido útil para entender o progresso da doença dele.”

Quando minha linguagem falada começou a falhar, descobri que o blog era
uma fuga dos obstáculos em minha mente. Por alguma razão, a frustração com as
palavras não existe entre minha mente e a página. No teclado, não hesito em
busca de uma frase; de algum modo, meus dedos dançando pelas teclas fazem
com que as palavras me ocorram com mais fluência. Houve um período, logo no
início, em que fiquei alguns dias sem digitar. Pensei que a pausa seria bem-vinda
para minhas mãos, mas, quando retornei ao teclado, meus dedos já não sabiam o
que fazer. Olhei para a página em branco e tentei digitar: nada do que escrevi
fazia sentido. Letras surgiram, mas não em qualquer ordem reconhecível. Fiquei
aterrorizada por ter perdido uma habilidade que é capaz de atravessar a névoa, e,
desde então, nunca mais fiquei um único dia sem digitar. Isso se tornou minha
fuga da demência: uma parte do meu dia na qual olho para a tela e vejo
normalidade me encarando de volta. É uma liberdade diária que é capaz de
superar meu cérebro debilitado, como se minha matéria cinzenta estivesse
usando estradas rurais para evitar o engarrafamento nas rodovias principais. A
hesitação verbal pode ser frustrante, mas digitar faz com que eu me sinta calma,
fluente e mais próxima de meus pensamentos e sentimentos. Se não tivesse a
habilidade de digitar, eu estaria perdida, presa na hesitação e na inabilidade de
me expressar.
Eu entendo que deve ser surpreendente, para os leitores de meu blog,
conhecer-me pessoalmente se eu não estiver lendo um roteiro. Eles
provavelmente esperam alguém muito mais eloquente do que sou em carne e
osso. Também há aqueles que acham que pessoas como eu — ativistas da
demência, por assim dizer — criam uma falsa impressão sobre o que a doença
realmente representa. Alguns nomes eminentes chegaram ao ponto de usar as
redes sociais para expressar dúvidas sobre nosso diagnóstico, e essa agressão
pode nos magoar e ser devastadora para nossa autoconfiança. Qualquer um sabe
que, quando se expõe para falar sobre um tópico, você também está se expondo
para certa quantidade de criticismo. Eu me lembro de um dos primeiros eventos
aos quais compareci, no qual um pequeno grupo de pessoas discutia a demência
e o que ela significava. Isso ocorreu logo após meu diagnóstico, e na época eu
falava mais eloquentemente que agora. Contudo, quando terminei de falar, um
homem disse que a mãe dele tinha “demência de verdade” e olhou para mim
como se eu estivesse fingindo — esquecendo, como as pessoas tendem a fazer,
que essa doença tem um início e um meio, além de um fim.
Enfrentei muitas críticas desse tipo desde meu diagnóstico. Elas ainda me
magoam nos dias ruins, e tenho vontade de esconder essa parte de mim que
digita, de deixar de usá-la e dar aos críticos o que eles querem. Rapidamente, no
entanto, esses comentários se tornam insignificantes, vencidos pelo meu amor
por digitar e por minha necessidade de continuar digitando.
As pessoas não levam em consideração quanto custa para mim o simples ato
de me forçar a tentar. Durante as palestras, elas frequentemente dizem “Você
está ótima” quando veem como consigo me comunicar sentada lá no palco, mas
desconhecem a terrível dor de cabeça que sinto por vários dias após o evento,
simplesmente pelo esforço de estar presente, ou todo o planejamento necessário
para chegar até lá, só para começar. Elas parecem pensar que simplesmente
compareço, mas, na realidade, o planejamento começa semanas antes: traçar
minha rota e imprimir imagens de pontos de referência que possa encontrar pelo
caminho, a fim de que sejam mais familiares quando eu estiver passando por eles.
As pessoas não levam em consideração a energia despendida por mim para
chegar até elas. Não me veem encolhida na cama no dia seguinte, com a mente
incapaz de saber sequer em que dia da semana estamos, simplesmente porque
estou exaurida. No entanto, que escolha tenho? Ficar em casa e não falar? Isso
faria as pessoas se sentirem melhor? Elas prefeririam que “especialistas” falassem
sobre a doença que devasta meu cérebro, em vez de ouvir a mim?
São esses mesmos “especialistas” que questionam se nosso diagnóstico inicial
foi correto quando não seguimos a trajetória tradicional da doença. Eu me
lembro de uma amiga sendo tão afetada pela dúvida e pelos comentários nocivos
que jamais voltou ao Twitter. Outra voltou ao médico e pediu por uma segunda
opinião. Ela foi tão perseguida nas redes sociais que se perguntou se seu cérebro
não estaria lhe pregando peças. Tanto os recursos do Sistema Nacional de Saúde
quanto a própria energia emocional dela foram desperdiçados nesse exercício,
que, obviamente, só poderia produzir o mesmo resultado. Não permiti que a
perseguição me fizesse passar por isso. O processo foi suficientemente trágico da
primeira vez — por que eu deveria passar por ele novamente a fim de satisfazer
a curiosidade e a descrença de alguém? Contudo, sei que ser capaz de digitar e
escrever trabalha contra mim nesse sentido, pois fornece às pessoas uma visão
distorcida da minha vida. Talvez, à própria maneira, esse seja um presente da
demência, e, considerando que ela oferece tão poucos, não o perderei.
Frequentemente, fico tão surpresa quanto qualquer um com a dança de meus
dedos no teclado e com as frases que eles produzem. Há pouca — se alguma —
pesquisa nessa área para explicar por que uma parte do meu cérebro ainda
funciona quando tantas outras estão falhando. Ninguém é capaz de me oferecer
uma explicação.
Talvez, se os profissionais se concentrassem desde o início no que podemos
fazer, nossa vida fosse mais esperançosa depois do diagnóstico. Eles
constantemente veem os pacientes nos últimos estágios e acham difícil
compreender os que estão na fase inicial. Muitos nos julgam incorretamente por
causa dessa falta de conhecimento, o que pode fazer com que duvidem do
diagnóstico. Constantemente dizemos: “Viva minha vida durante 24 horas e
mudará de ideia.” Entretanto, as pessoas não podem fazer isso. Elas nunca verão
como nossa vida realmente é, nosso cotidiano com a demência, mas, enquanto
eu for capaz, continuarei a escrever sobre isso.

SOBRE O FATO DE QUE AS PALAVRAS IMPORTAM


Quando se trata de comunicação, não se pode esperar que sejamos responsáveis
pela maneira como outros nos descrevem, por mais imprecisa que seja. Tudo
começa, lógico, com a linguagem usada durante o diagnóstico. Como eu disse
no início do capítulo, palavras importam, mas imagens, metáforas e todas as
outras formas pelas quais nos comunicamos também. Quando ouvi pela primeira
vez que tinha demência, a imagem que surgiu em minha mente foi a de uma
senhora muito idosa, de cabelos brancos, deitada em uma cama hospitalar. Eu
me olhei no espelho: eu não era como aquela mulher. Não conseguia me
identificar com ela. De onde havia vindo essa imagem? Quem a tinha colocado
em minha mente? Não notamos o lento e insidioso efeito da linguagem e das
imagens que nos chegam todos os dias através da sociedade ou da mídia. Elas
afetam a percepção não somente do público em geral, mas também dos
profissionais — e talvez seja por isso que eles apresentem o diagnóstico de
demência como algo terminal e que não pode ser tratado, em vez de
simplesmente focar na demência como uma nova maneira de viver.
A demência pode ser descrita como uma jornada, embora haja um ponto de
interrogação sobre quão precisa é essa descrição para uma doença degenerativa
da qual não se pode retornar. Jornada é uma palavra estranha. Não gosto de usá-
la, mas, às vezes, não consigo pensar em outra opção. Jornadas, afinal, são algo
que faço por prazer. “Minha jornada ao paraíso” é como descrevo minhas visitas
regulares a Lake District. Jornadas são algo que escolho fazer, com destinos aos
quais desejo chegar, o que obviamente não é o caso da demência.
O mesmo ocorre com descrever a demência — ou qualquer doença séria —
com a linguagem da guerra: dizer que ela é uma “batalha a ser travada” implica
que, se não a vencer, você será um perdedor. Como pode, porém, ser esse o
caso quando seu “inimigo” é uma doença degenerativa? Você estaria lutando uma
batalha perdida. O público continuamente nos descreve lutando e enfrentando
batalhas, quando tudo o que queremos é simplesmente viver da melhor maneira
possível. Isso pode fazer com que as pessoas se sintam fracassadas caso não
estejam dispostas a “travar a guerra”. Por exemplo, a maneira como vivo e o
esforço que faço para “passar a perna” na demência é um desafio diário e
exaustivo que outras pessoas podem não querer enfrentar. Isso as torna
fracassadas e me transforma em guerreira? Não. Apenas escolhemos lidar com a
doença de maneiras diferentes. Tampouco ajuda pensar na demência como uma
“sentença de morte”, que eu sei que é como muitas pessoas a descrevem —
talvez eu mesma tenha feito isso naqueles primeiros dias. Referir-se à demência
nesses termos implica somente conotações negativas.
O fato é que cada indivíduo tem o direito de descrever a própria condição
como desejar, mas o que ouve dos outros é importante. Um artigo de 2016,
“Ethical Implications of the Perception and Portrayal of Dementia” [Implicações
éticas da percepção e descrição da demência], visava investigar quanto a
linguagem afeta a percepção da demência, do ponto de vista não somente do
público em geral, mas também daqueles que vivem com a doença. O artigo
reconheceu que, para alguns, uma linguagem particular é útil — por exemplo, a
palavra “jornada” renova as esperanças ou ajuda a lidar com a situação —, mas,
para outros, ela frequentemente invoca uma sensação de temor ou perda do
senso de si mesmo. Progressos são feitos o tempo todo, como destaca o artigo:

“Com o tempo, o uso das palavras muda para evitar as conotações


negativas que se desenvolvem a partir da associação com uma
condição que ainda é negativamente avaliada; por exemplo,
‘senilidade’ ter sido substituída por ‘demência’. Assim como cada
termo carrega uma dimensão ética, cada mudança pode produzir e
desenvolver novas perspectivas. Ser rotulado, por exemplo, como
‘demente’ ata a pessoa ao termo e remove a pessoalidade; ‘ser
demente’ implica que uma pessoa com demência é somente isso;
‘viver com a demência’ implica que ela ainda pode ter uma vida.”

Minha palavra menos favorita é “sofrer”, mas, infelizmente, ela é a mais usada
para descrever alguém que vive com a demência. Sempre combato isso,
particularmente quando estou falando para enfermeiras em treinamento
destinadas a trabalhar com pessoas que vivem com a doença. “Parece que estou
sofrendo?”, pergunto, e elas precisam admitir que não. Se você fosse descrito
dessa maneira dia após dia, poderia começar a acreditar nisso.
Eis o que meus amigos têm a dizer sobre o uso da linguagem e como ela os
afeta:

“Ouve-se muito sobre o sofrimento, sobre o que não somos capazes


de fazer, mas não somos estúpidos, simplesmente não conseguimos
responder tão facilmente quanto antes; levamos algum tempo e
podemos não saber como dizer certas coisas ou o que responder, e
isso é frustrante e pode ser assustador. Minha família percebeu que
conversas individuais são muito melhores que as em grupo.”
“Não consigo acompanhar pessoas que falam muito rápido,
especialmente aquelas a que assisto na televisão. Se houver muita
gente na igreja, todas falando ao mesmo tempo, não consigo
entender o que estão dizendo; todas as vozes se misturam. Não
somos estúpidos e podemos fazer coisas. Profissionais da área da
saúde precisam entender que não se deve tentar mudar as pessoas
com demência. Elas são as mesmas que eram antes de serem
diagnosticadas.”
“A linguagem negativa faz com que eu me afaste. Por mais que eu
me esforce quando encontro meus amigos, ter Alzheimer é como
ter um macaco montado nas costas. Não sei se é porque eles acham
a situação difícil, mas deixei de sair com eles porque não me sentia
parte do grupo, e isso me entristecia. Gosto de pensar que, se um
deles tivesse a doença, eu conversaria e perguntaria se poderia
ajudar de alguma forma, mas ninguém fez isso comigo. É muito
estranho.”

SOBRE A LINGUAGEM EMPREGADA PELOS PROFISSIONAIS


Em 2019, a psicóloga clínica e professora Dawn Brooker foi convidada a fazer
uma palestra na Faculdade de Psicologia de Pessoas Mais Velhas da Sociedade
Britânica de Psicologia. Durante a palestra, ela falou sobre como a forma pela
qual a demência é vista pela profissão médica mudou durante sua carreira. Na
década de 1980,

“[…] a linguagem empregada pelos profissionais frequentemente era


horrível e reforçava conotações e estereótipos negativos […]
Comparativamente, a equipe de enfermagem chamava a ala de
pacientes mais velhos de ‘ala dos bebês’. Uma de minhas maiores
realizações foi fazer com que o nome do departamento em que eu
trabalhava passasse de Idosos com Doenças Mentais Severas para
Serviços de Saúde Mental para Adultos Mais Velhos.”

Ela falou sobre como os psicólogos da época estavam conscientes de que os


cuidadores de pessoas com demência tinham necessidades emocionais, mas “a
atitude prevalente era de que pessoas com demência não tinham. Os
profissionais médicos achavam que elas não sentiam dor e, em todo o serviço,
estava disseminada a ideia de que a pessoa vivendo com demência era ‘uma
concha vazia que deixou o corpo para trás’”.
Essa mudança cultural, disse ela, ocorreu a partir da obra de Tom Kitwood,
que permitiu que se visse a pessoa por trás do rótulo do diagnóstico. O modelo
dele de cuidados para pacientes com demência é usado até hoje. Esse modelo
coloca o amor no centro do trabalho do cuidador, mas também destaca a
importância da ocupação (ter um propósito na vida), do conforto (não sentir dor
ou estresse), da identidade (senso de si mesmo), da inclusão (sensação de
pertencimento) e da conexão (sensação de segurança).
A professora Brooker concordou que o modelo de Kitwood modificou a
maneira como ela trabalhava e concluiu a palestra dizendo: “As pessoas com
demência encontraram a própria voz na sociedade, mas a obra de Kitwood
deixou profissionais e pesquisadores dessa área mais dispostos a ouvirem, o que
amplificou essa voz.” Ela admitiu que ainda há um longo caminho a percorrer,
mas disse: “Nossas aspirações e expectativas sobre o que é aceitável e possível
mudaram para melhor, mas, se mantivermos o amor no centro de nosso
trabalho, inevitavelmente continuaremos a melhorar.”
Eu tenho a esperança de que o próximo passo seja a aceitação de que a
demência não é uma doença mental, mas uma condição neurológica, embora
muitas ocorrências tenham feito essa esperança vacilar. A demência pode afetar a
saúde mental, mas é uma doença do cérebro, não um problema na química
cerebral. Somos colocados sob a jurisdição dos serviços de saúde mental para
adultos mais velhos independentemente de nossa idade. Assim, você pode ser
diagnosticado com demência de início precoce aos 50 anos e se ver sentado ao
lado de alguém com 80. Ouvi falar de pessoas que não quiseram ir ao médico
obter um diagnóstico porque a doença é associada à saúde mental e,
infelizmente, ainda há um grande estigma sobre ela em nossa sociedade.
Entretanto, como se pode ver pela palestra da professora Brooker, está havendo
progresso, ainda que a passo de tartaruga.
O efeito psicológico das palavras e da linguagem corporal jamais deve ser
subestimado, particularmente por profissionais. Quão diferente minha
mentalidade teria sido se eu tivesse saído do consultório do neurologista, no
momento de meu diagnóstico inicial, com palavras mais cuidadosas soando em
meus ouvidos — com esperança de ter uma vida, em vez de ter ficado
desesperada. O mesmo pode ser dito sobre o processo PIP (Personal
Independence Payment, ou Pensão para a Independência Pessoal, um sistema de
auxílio financeiro do governo britânico), que parece penalizar nossas tentativas
de permanecermos tão ativos quanto possível e, em vez disso, foca o que não
podemos fazer para estabelecer se somos elegíveis para receber assistência
financeira do governo. É por isso que tantas pessoas têm dificuldade para
preencher os formulários: estamos tão ocupados nos concentrando no que
podemos fazer que tendemos a esquecer o que já não podemos. Contudo, o
processo do PIP enfatiza a parte negativa, sem levar em conta as estratégias que
criamos para realizar tarefas.
É difícil chegar a um termo correto para todos, e isso é algo que o artigo de
2016 reconhece: “Onde há medo de se usar a palavra ‘demência’ em razão das
conotações negativas, podem ser criados eufemismos, que também possuem
dimensões éticas. Por exemplo, a descrição dos serviços de atendimento como
‘clínicas de memória’ permite que alguns os frequentem sem estigma, mas
também impede que aqueles com sintomas iniciais diferentes procurem ajuda.”
O nome “clínicas de memória” tem sido criticado há bastante tempo porque a
demência não envolve somente a memória, e transmite às pessoas uma ideia
errada. Algumas pessoas com demência dizem “sofrer de demência”, e está tudo
bem, se é isso que querem. É uma questão de escolha. Essa é a mesma razão pela
qual não gosto da expressão “viver bem com a demência”. Há alguns anos,
parecia uma boa ideia porque apenas havia o “sofrer”, mas desde então percebi,
após conhecer muitas pessoas nessa condição, que a expressão cria um alto
patamar que nem todos conseguem atingir e, consequentemente, tem efeitos
negativos. Ela faz algumas pessoas sentirem inadequação, dado que muitos dias
são simplesmente péssimos. Como alguém pode viver bem durante dias assim?
Eu me lembro de que, em uma de minhas palestras, havia um homem de
aparência muito triste, que mantinha a cabeça baixa e exalava derrota. Ele veio
conversar comigo após a palestra, a fim de me desejar sucesso. Jogamos conversa
fora por alguns minutos e ele contou que também havia sido diagnosticado com
demência.
— Como você está lidando com isso? — perguntei.
— É péssimo — disse ele. — Eu jamais poderia fazer o que você faz, é tarde
demais para mim.
Nesse momento, a tristeza alcançou seus olhos.
— Por quê? Por que é tarde demais? Você parece estar no mesmo estágio que
eu, a menos que eu esteja enganada.
— É que odeio a expressão “viver bem”. Ouço o tempo todo que é possível
viver bem e então me pergunto: por que eu não consigo?
— Então temos que pensar em uma nova expressão, porque não quero ser
responsável por você se sentir triste. A demência é horrível, não é? Eu também
tenho dias ruins assim como os bons. Vou pensar nisso.
Agora, prefiro “viver tão bem quanto as circunstâncias permitam”, a fim de
que as pessoas não se sintam inadequadas quando estiverem enfrentando
dificuldades, e isso é algo a que todos podem almejar, qualquer que seja a
situação pessoal ou financeira. Também é uma expressão aberta à interpretação,
porque a ideia de “viver bem” difere de pessoa para pessoa — inclusive para
aqueles de nós que vivem com uma doença como a demência. Sei que a
expressão não flui naturalmente nem fica tão bem nos slides de PowerPoint que
os profissionais tanto apreciam, mas é a verdade. Ela impõe menos pressão,
menos medo do fracasso, menos sonhos impossíveis. Ela é melhor para as
pessoas com demência, e não é isso que importa?

SOBRE SER INCAPACITADA PELOS OUTROS


Estamos na clínica local, já que minha médica não tinha qualquer horário livre.
Estamos esperando há um tempo e, dentro do sapato, meu dedão lateja de dor.
Sarah está no balcão da recepção. Do outro lado dele um homem está sentado,
digitando sem erguer os olhos para ela.
— Telefonei há alguns minutos sobre minha mãe — explica ela, até que ele
faz contato visual. — Ela tem demência e não gosta de usar o telefone.
Ele desvia o olhar para mim, parada ali.
— Qual é o nome dela, por favor? — pergunta ele, dirigindo-se a Sarah.
Ela responde automaticamente, sem pensar, mas então se dá conta do que fez
e olha para mim, o pedido de desculpas por não me deixar falar subentendido no
olhar. Ela se afasta um pouquinho para o lado para que eu fique mais à vista do
recepcionista, em uma troca não verbal entre nós três.
— Data de nascimento? — pergunta o homem.
Limpo a garganta para responder, mas, antes que consiga abrir a boca, seu
olhar retorna a Sarah. Ela volta os olhos para mim. Eu respondo. É um olhar de
surpresa o que vejo no rosto dele? Ou talvez eu esteja sensível demais...
Ele olha novamente para Sarah:
— E qual é o problema?
Bem, eu não estava errada sobre ele. Ouço um suspiro escapar de meu peito,
mas estou cansada demais, meu pé está doendo e, só dessa vez, eu me pergunto
se tenho a energia e a paciência necessárias para fazer com que ele reconheça
minha presença novamente. Não tenho. Faço um sinal de aprovação para Sarah,
grata por ela estar lá e ser capaz de explicar a situação mais rapidamente do que
eu poderia. Sei que posso assumir quando falarmos com a enfermeira.
Esperamos então nos bancos de plástico duros, nos quais estão todas as outras
pessoas também esperando, e, quando somos chamadas, tudo começa bem. Eu
me sento em frente à enfermeira de uniforme branco engomado. Ela dirige as
perguntas a mim, embora eu note os brevíssimos olhares de soslaio para Sarah,
como se para verificar, entre as respostas, se estou dizendo a verdade.
— Vamos dar uma olhada nesse pé — diz ela de um jeito entusiasmado.
Quando me abaixo para retirar o sapato, quase bato minha cabeça na dela.
— Ah, estava indo te ajudar — diz ela.
— Eu consigo tirar minha própria meia, obrigada — respondo, tentando
manter meu tom de voz livre de qualquer nota agressiva.
Ela me examina, em meio a murmúrios de “vai piorar antes de melhorar” e
que eu “deveria ter vindo antes”. Sarah, agora enfermeira-assistente, se junta a
ela no jargão médico e eu as deixo conversar por alguns instantes antes de
perceber que a consulta terminou. A enfermeira se vira para mim.
— Vamos calçar a meia novamente? — pergunta ela como se eu fosse uma
criança, como se precisasse daquela gentil e jovial persuasão, como se eu fosse
incapaz.
Não respondo. Pego a meia e imploro a minhas mãos que, só dessa vez, não
se atrapalhem, como se eu precisasse provar à enfermeira que sou perfeitamente
capaz de calçar meias e sapatos. Fico irritada quando meus dedos hesitam, mas
consigo terminar de colocá-los e nos levantamos para sair da sala. Por dentro,
porém, sinto-me incapacitada pela situação, pela linguagem usada pela
enfermeira, o tom de voz e as ações dela. Eu cheguei ao centro de emergência
como um indivíduo capaz de lidar com a situação, mas as suposições que eles
fizeram acerca de se uma pessoa com demência consegue falar ou tirar os
próprios sapatos e calçá-los novamente fizeram com que eu me sentisse menos
capaz. Por que nos generalizam? Por que nos tratam como crianças? Por que
focam o que não somos capazes de fazer? Por que não encaram cada paciente
como um indivíduo e não como um diagnóstico? Por que a profissão médica se
baseia em clichês e estereótipos e, como resultado, frequentemente age da
maneira errada?

SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DA DEMÊNCIA


Atualmente, a demência é representada com mais frequência nas artes e na
ficção, embora retratos precisos nem sempre sejam encontrados nos livros e na
televisão e escritores e roteiristas muitas vezes se baseiem em clichês para passar
a mensagem à plateia de maneira mais rápida. Em grande parte dos casos, as
descrições focam os estágios finais ou versões aceleradas da doença, esquecendo
que há muita vida a ser vivida, a despeito do diagnóstico. Seria bom ver pessoas
em todos os diferentes estágios, para obter uma representação mais fiel. No
entanto, como o relatório de 2016 diz: “Os produtores de filmes e outras mídias
não desejam meramente fornecer uma descrição precisa da demência. Eles
querem obter certo impacto, oferecer entretenimento, suspense e efeito
dramático. Eles se permitem certa licença artística.”
Essa certamente foi minha experiência quando pediram minha consultoria
para a série médica dramática Casualty. Os autores do programa queriam um
roteiro no qual a enfermeira Duffy — uma das personagens principais — vivia
com demência. Após a publicação do meu livro de memórias, os produtores do
programa entraram em contato comigo, com o Dementia UK e com minha
amiga Suzy Webster, cuja mãe recebera diagnóstico de demência, para citar só
alguns. Conheci os supervisores de roteiro em Londres e, tomando uma xícara
de chá preto, discutimos roteiros prováveis e planos de inclusão. Eles tomaram
notas e fizeram muitas perguntas. Pareciam ávidos por pesquisar o tópico
profundamente, ouvir e aprender. Quando comecei a receber os roteiros,
porém, os planos aparentemente eram outros. As coisas haviam mudado —
como ocorre frequentemente no mundo da televisão, conforme descobri —, e
agora havia uma nova equipe de escritores levando o roteiro para uma direção
completamente diferente da que fora discutida. Senti que eles não levavam
minhas sugestões em consideração e, em vez disso, baseavam-se nos estereótipos
que eu estava determinada a evitar. Decidi que não podia mais trabalhar com eles
porque, para mim, a representação da demência da enfermeira Duffy precisava,
acima de tudo, ser precisa, especialmente se meu nome estivesse associado ao
roteiro. Eu não podia desfazer todo o meu trabalho duro em relação à demência
ao permitir que eles colocassem meu nome nos créditos de um programa que
não havia aceitado meus conselhos. Afastei-me, decepcionada, mas, alguns
meses depois, a produtora voltou a entrar em contato. Houvera outra mudança
e, dessa vez, ela tinha certeza de que eu poderia influenciar os autores. Quando
nos encontramos novamente, a sensação foi diferente, melhor: senti neles o
desejo de fazer um bom trabalho. Quando os roteiros começaram a chegar, vi
que minhas ideias haviam se infiltrado na escrita. Eu sempre soube que não era
possível fazer uma representação fiel para todos, porque a experiência de cada
pessoa com a doença é diferente, mas eles tinham que começar de algum lugar.
Quando o programa foi ao ar, não consegui assisti-lo inteiramente. Algo não
parecia certo, em particular a interpretação de alguém com demência, as
pequenas nuances de gestos e expressões faciais. Desejei ter conhecido a atriz e
tê-la ajudado a entender melhor o quadro geral. Sarah é uma fã fiel e
frequentemente me enviava mensagens de texto sobre partes nas quais
conseguira ver nitidamente minha influência e nas quais eles haviam acertado,
mas eram poucas e esparsas. O fim foi dramático, mas me pareceu projetado
para satisfazer o apetite da plateia e reafirmar o que ela já sabia, em vez de
inovar. A última cena, se me lembro bem, foi de Duffy — tendo retornado aos
primeiros dias como enfermeira, usando o uniforme original — sentada do lado
de fora, morrendo no frio. Tenho certeza de que, para o espectador, isso criou
ressonância emocional, confirmando todos os estereótipos que já se circulavam
na mente de cada um. É difícil desafiar clichês e estereótipos; eles estão
presentes porque funcionam, particularmente em dramas curtos para a TV, onde
servem como um atalho para comunicar informações ao espectador. Contudo,
temos a responsabilidade de fazer com que as representações dos outros sejam
precisas, equilibradas e respeitosas — ou ao menos é isso que pedem aqueles
que vivem com a demência.
As organizações de notícias e de mídia ainda têm um longo caminho a
percorrer. Quantas vezes você leu uma manchete sobre alguém que “sofria” de
demência? Para lidar com isso, trabalhei com vinte de meus amigos no Projeto
de Engajamento e Empoderamento da Demência a fim de criarmos o Dementia
Words Matter: Guidelines on Language About Dementia [Palavras sobre a demência
importam: Diretrizes para a linguagem sobre a doença]. Como pessoas vivendo
com demência, sabemos melhor que qualquer um como a linguagem que as
pessoas usam para nos descrever afeta não somente a visão que a sociedade tem
de nós, mas também a visão que temos de nós mesmos. Produzimos essas
diretrizes para jornalistas, organizações e departamentos de comunicação que
escrevem sobre a demência ou aqueles que vivem com ela. Concluímos que as
palavras e expressões que nunca devem ser usadas são aquelas que nos fazem
estremecer: “sofrer de demência”, “demente”, “senil”, “fardo”, “vítima”, “praga”,
“epidemia”, “inimiga da humanidade”, “mortos-vivos”. Reconhecemos que certas
palavras são usadas nas manchetes para atrair a atenção do leitor, mas pedimos
que não sejam usadas de maneira sensacionalista, pois sabemos que isso só serve
para reforçar estereótipos, clichês e imagens negativas. Isso é importante não
somente para criar maior entendimento entre a população, mas também para
que aqueles que suspeitam ter a doença não se sintam estigmatizados por ela e
não a temam. Quanto mais positividade pudermos enfatizar e mais pudermos
trazer os holofotes para pessoas vivendo com a doença, melhor será para todos
— algum dia, talvez até mesmo para os próprios editores dos jornais.

SOBRE A COMUNICAÇÃO SEM LINGUAGEM


Por causa do estigma social em torno da demência, algumas pessoas não querem
tornar seu diagnóstico público. Para elas, a linguagem pode não ser apropriada
ou estar disponível. Algumas não querem ter que explicar os desafios que
enfrentam todos os dias, mas, com uma doença invisível como a demência, nem
sempre é fácil sermos entendidos quando optamos por ficar em silêncio. Para
esses momentos, sinto-me grata pela existência de sinais visuais que informam às
pessoas que podemos precisar de mais tempo ou mesmo de ajuda para nos guiar.
Todavia, até mesmo o cordão de girassol, que se tornou um símbolo de todas as
doenças invisíveis, causou debate. Ele foi concebido de boa-fé em um aeroporto,
a fim de que a equipe pudesse oferecer ajuda aos que necessitassem dela. Depois,
se difundiu dos portões de embarque para lojas, edifícios governamentais,
estações de trem e ruas. E é usado não somente por aqueles que têm demência,
mas por qualquer um que queira indicar que possui uma condição de saúde
oculta aos olhos e que pode precisar de mais tempo.
Eu adoraria viver em uma sociedade na qual não tivesse que usar um cordão
para enfatizar que posso precisar de ajuda, na qual todo mundo fosse entendido e
não houvesse murmúrios na fila quando eu demorasse um pouco mais com
minhas compras. Estamos, porém, muito longe desse nirvana e, até chegarmos
lá, algo tão simples quanto o cordão de girassol terá que bastar. Nem todo
mundo é forte e autoconfiante ou possui a proficiência linguística necessária para
declarar nitidamente as próprias necessidades e os próprios direitos. Alguns
precisam da segurança que o cordão lhes dá para andar no mundo, sabendo que
serão compreendidas com muito mais facilidade.
Eu viajo extensivamente pelo Reino Unido, tentando permanecer
independente, e sei em primeira mão que nem todos os funcionários das
estações de trem captam as dicas sutis de confusão ou de que alguém está tendo
dificuldades. Às vezes, quando estou usando meu cordão, um guarda sorridente
se aproxima e pergunta se preciso de ajuda, mesmo quando as coisas vão bem.
Contudo, o cordão se destaca nos dias ruins, com ênfase nas viagens ruins —
que, no caso de alguém que anda de trem tão regularmente quanto eu, são
bastante frequentes. São viagens nas quais trens são cancelados e rotas são
alteradas no último minuto, fazendo com que pareça que meu cérebro vai
explodir.
Em uma dessas viagens, eu retornava de meu paraíso em Keswick. Como
sempre, a estadia havia sido maravilhosa, mas, na jornada de volta, as coisas
foram de mal a pior. Primeiro, os trens foram cancelados. Fiquei parada na
plataforma me sentindo vazia e perdida, incapaz de pensar em um plano B, mas
então a placa do balcão de passagens chamou minha atenção. Fui até lá e
simplesmente perguntei o que fazer. O atendente foi muito amável. Novamente,
meu cordão de girassol veio a calhar: o atendente olhou para ele, deu um grande
sorriso e imprimiu duas opções com todos os detalhes. Ele garantiu que eu não
precisava me preocupar e que alguém me ajudaria, e o sorriso e as palavras de
conforto que recebi dele me forneceram tudo o que eu necessitava naquele
momento. O desafio seguinte foi a mudança de rota, o que significava que eu
precisaria fazer uma conexão extra e não teria um assento reservado, como de
costume. Quando cheguei à parada não planejada, comprei uma xícara de chá e
fiquei sentada no banco, sem saber o que fazer. Devo ter parecido totalmente
perdida quando cheguei à plataforma, pois uma guarda se aproximou e
perguntou se eu estava bem. Vi os olhos dela passarem pelo cordão de girassol e
o padrão em amarelo e verde completou a conversa em meu lugar. Eu disse que
não tinha assento no trem e ela me disse exatamente onde esperar pelo vagão
que teria assentos livres. A viagem poderia ter sido um desastre, mas aquele
cordão sutil fez com que completos estranhos se oferecessem para ajudar.
Entretanto, algumas pessoas acham que ninguém deveria ter que usá-los; que
eles nos incapacitam ou enfatizam nossa incapacidade e alguém pode tentar tirar
vantagem disso. Não estamos, porém, enfatizando o fato de termos demência,
estamos comunicando que temos uma dificuldade oculta aos olhos. Para mim, as
vantagens ainda superam os riscos. Em geral, aqueles que vivem com demência
se expõem diariamente a pessoas que podem tirar vantagem deles —
especialmente pessoas como eu, que falam abertamente sobre o assunto. Alguns
também temem que, ao enfatizar nossa deficiência, possamos criar um sistema
de duas camadas na sociedade, chamando atenção para as pessoas com demência
e impedindo que se misturem às outras, causando ainda mais julgamento.
É óbvio que todo mundo tem escolha quando se trata de usar o cordão, mas
as pessoas que escolhem usá-lo não deveriam se sentir mal a respeito, se ele faz
com que se sintam mais seguras, mais capazes de viajar e mais bem-equipadas
para participar da própria comunidade. Como disse uma amiga no Twitter no
auge do debate: “Trata-se de uma ferramenta educativa que pode iniciar
conversas.” E, como já estabelecemos, conversas são a melhor maneira de
modificar atitudes.

SOBRE AS redes SOCIAIS


É comum haver debates desse tipo no Twitter e, como eu já disse, se expor pode
ser difícil. As conversas já não são fáceis para mim, particularmente as que
envolvem grandes grupos, mas as redes sociais as tornaram possíveis de novo. Eu
me lembro da primeira vez que entrei no Twitter após o diagnóstico.
Simplesmente fiquei sentada na cadeira, observando aquele mundo silencioso,
cheio de comunicação e conversa entre pessoas de diferentes países. Aqueles em
fusos horários diferentes podiam entrar e participar do debate; pessoas vivendo
com demência podiam compartilhar as próprias experiências em diferentes
países; podíamos descobrir o que estava funcionando onde e o que podíamos
fazer para trazer isso para o lugar em que vivíamos.
O Twitter era — e ainda é — um lugar para trocar ideias, levantar o moral
uns dos outros, fornecer apoio ou até somente para rir. Levei um mês para ousar
escrever meu primeiro tuíte, mas agora estou viciada. Posso me sentar em
perfeito silêncio e conversar com pessoas que jamais conheceria na vida
cotidiana. Fiz amigos, compartilhei muito e aprendi ainda mais. Para alguém
como eu, com uma doença oculta aos olhos, o Twitter fornece uma plataforma.
Em resumo, dá às pessoas vivendo com demência — ou qualquer outra minoria
— um lugar à mesa.
Participei de uma pesquisa da Universidade de Exeter que queria entender
como as pessoas que vivem com demência usavam o Twitter e que identidades
criavam e promoviam nesse mundo on-line. Minha conta foi uma de várias
analisadas. As descobertas indicaram que o Twitter era usado por nós para
difundir mensagens positivas sobre a doença e fazer lobby político por mudanças
e reconhecimento da necessidade de inclusão. “Através de sua ação coletiva, eles
são capazes de modificar suposições tradicionais sobre a demência, ter impacto
nas práticas e políticas que afetam suas vidas e contribuir para maior
entendimento social e político da demência”, disse o relatório de pesquisa.
Parece ótimo, mas, na realidade, nos bastidores, eu e muitos amigos nos
perguntamos o que realmente está mudando. O progresso pode parecer
extremamente lento, e nós não temos muito tempo para toda a burocracia. O
que eu sei é que nós que vivemos com demência chamamos nossos seguidores de
segunda família. Encorajamos outros a participarem porque sabemos que há
segurança nos números. Cuidamos uns dos outros e sabemos que somos
cuidados — especialmente quando estamos sendo criticados.
“Embora esse trabalho no Twitter não pareça estar substituindo o trabalho
off-line, ele proporciona aos ativistas da demência uma plataforma adicional
através da qual podem compartilhar mensagens com um público mais amplo e
desafiar as percepções públicas de demência”, disse o relatório. Sabemos que
podemos fazer a diferença, mas a razão pela qual a plataforma nos atrai é a
brevidade dos tuítes, a quantidade limitada de caracteres. Para mim, ler um
texto longo é impossível, mas consigo entender e interagir com um tuíte.
O relatório reconheceu que nosso trabalho coletivo como ativistas da
demência significa que chamamos a atenção das pessoas de grande importância
para a causa, como políticos e grupos de lobby.

“Esse nível de engajamento político não é evidente entre pessoas


com demência em outras redes sociais, o que destaca a exclusiva
natureza política do Twitter e é consistente com pesquisas
anteriores que mostram que pessoas com doenças crônicas e
membros do público em geral usam o Twitter para influenciar a
formulação de políticas e chamar a atenção para questões sociais.”
Costumo usar o Twitter como forma de envolver meus amigos em pesquisas
e, da mesma forma, os pesquisadores agora me procuram para divulgar o
trabalho deles e ganhar participantes, pois meu alcance geralmente é maior.
O relatório discutiu como as pessoas que vivem com demência usam a
plataforma para a “promoção do movimento social”, mas o próprio fato de
podermos fazer isso às vezes é usado contra nós. Conforme já descrito, há um
lado sombrio — pessoas que questionam nosso diagnóstico ou nos perseguem
nas redes sociais, acusando-nos de “autopromoção” —, mas, felizmente, ele
representa a menor parte da coisa e, se realmente acreditamos na liberdade de
expressão, talvez isso seja algo que precisamos aceitar. O Twitter permite que
pessoas vivendo com demência se conectem, e a conexão é sempre a melhor
maneira de se comunicar e educar as pessoas — se elas quiserem aprender.
Costumo me concentrar nos aspectos positivos de viver com demência, o que
foi consistente com os achados dos pesquisadores:

“A narrativa dominante nos tuítes analisados no estudo é de ativismo


e de viver bem. Outras narrativas, como as de pessoas enfrentando
dificuldades por causa de seus sintomas, estiveram notadamente
ausentes dos dados […] É possível que a falta de experiências
negativas nos tuítes seja um achado resultante do fato de que as
pessoas que vivem bem com a demência são as que escolhem, ou são
capazes, de interagir no Twitter. Essa descoberta também pode se
dever ao fato de os titulares das contas usarem o Twitter para
promover mudanças sociais e acharem que tuitar sobre os aspectos
negativos da vida deles poderia perpetuar os estereótipos que
tentam contestar.”

Na verdade, eu uso, sim, o Twitter para falar dos dias ruins, pois, se não
fizermos isso, ficaremos expostos a mais críticas dizendo que não mostramos
todos os lados da demência. Também não seria justo com aqueles que têm mais
dias ruins que bons, porque, se não formos honestos, eles podem começar a se
perguntar por que têm tantos dias ruins. Também já usei o Twitter para obter
orientação durante minhas viagens. Certa vez, minhas filhas não estavam
disponíveis quando um trem foi cancelado e, em meu pânico, recorri ao Twitter.
Meus adoráveis seguidores ofereceram sugestões que me ajudaram a encontrar o
caminho para casa.
O relatório da Universidade de Exeter concluiu que o acesso a comunidades
on-line como o Twitter não somente fornece apoio aos que vivem com a
doença, como também pode “ajudar a restabelecer um senso de identidade entre
as pessoas com demência, fornecer conexões sociais e, potencialmente, reduzir
o sentimento de isolamento e solidão que frequentemente se segue ao
diagnóstico”.
Contudo, para isso, as empresas de tecnologia precisam ser mais inclusivas ao
construir plataformas, por exemplo, assegurando-se de que a navegação seja fácil
para aqueles com deficiências, sem complicados sistemas de segurança. As
empresas de tecnologia fazem consultas ao público, mas, usualmente, não às
pessoas com demência. Algo tão simples quanto um vídeo com instruções,
imagens ou um arquivo de áudio ajudaria as pessoas a encontrar muito mais
facilmente o caminho nessas complicadas páginas da web. Ao criar sites para
crianças, desenvolvedores os fazem simples e intuitivos — por que não fazer o
mesmo para adultos?
O Zoom tem sido outra plataforma que permite que eu me mantenha em
contato com meus colegas. Toda semana, temos uma reunião só de mulheres do
aconchego de nossa sala de estar, que nos fornece conforto e apoio. Nem sempre
estamos com vontade de conversar, mas mesmo aquelas que estão tendo um dia
enevoado podem entrar e ser quem são em uma comunidade que sabe
exatamente como são esses dias ruins. Uma amiga me disse outro dia que,
mesmo quando se sente exausta demais para participar e decide só ouvir, ela
logo está rindo conosco, e o riso realmente é o melhor remédio — para
qualquer doença.

SOBRE TECNOLOGIA
Como destacado, a tecnologia para pessoas com demência precisa ser adequada
ao propósito e fácil de usar e instalar, do contrário uma boa ideia rapidamente se
torna uma frustração. Eu me lembro de minha amiga Agnes contando como uma
empresa foi até a casa do marido com demência instalar uma “linha de
emergência”, falando sem parar sobre todas as coisas que ele precisava saber.
Quando os instaladores foram embora cinco minutos depois, ele já havia se
esquecido de tudo e não sabia como usar a nova tecnologia que recebera.
Meu iPad e meu iPhone são minha porta para o mundo, companheiros
constantes que estão sempre a meu lado. Crio lembretes facilmente em meu
telefone quando preciso me lembrar de algo, e os alarmes soam de modo
constante, alguns diariamente (como me lembrar de comer), outros uma única
vez (como me lembrar de contatar um amigo que não estava se sentindo bem).
Se me lembro de algo que preciso fazer e estou no meio de uma caminhada,
simplesmente crio um lembrete em meu telefone para quando chegar em casa.
De outro modo, a ideia se perderia entre meus passos.
A tecnologia se provou um presente dos céus também para minhas filhas, que
puderam parar de se preocupar com minha localização quando instalaram um
rastreador em meu telefone — ele funciona para todas nós, pois também me
informa onde estou.
Tenho vários aplicativos que tornam minha vida mais calma e fácil de lidar.
Por exemplo, graças ao aplicativo de trens que uso, meu amor pelas viagens
permaneceu possível, pois o aplicativo envia alertas se a conexão se atrasar e
informa em que plataforma preciso esperar. Meu aplicativo do metrô de Londres
me diz que linha e estação devo procurar, sem que eu precise analisar, de olhos
arregalados, todas aquelas cores se retorcendo no mapa.
A Alexa é outra grande amiga. Ela me lembra de tomar meus remédios e
muito mais. Quando comecei a cair da escada, descobri que, com um grito,
posso pedir a Alexa para acender as luzes do andar de cima. Posso até mesmo
pedir que ela ligue a chaleira para mim do conforto de minha cama. Desço as
escadas pela manhã e já ouço o chiar da água fervendo. Como muitas de minhas
outras amigas, também temos problemas de comunicação: às vezes, ela não
entende meus comandos gaguejados quando peço para ligar a chaleira e, em vez
disso, fornece a previsão do tempo.
— Eu mesma vou ligar a chaleira, está bem? — retruco, revirando os olhos.
Em resposta, ela resmunga algo sobre não entender e continuamos andando
em círculos até alguém desistir — normalmente eu.
Muitos de meus amigos também têm a Alexa e a consideram útil para lidar
com a vida com demência. Descobrimos, porém, que não é muito bom ficarmos
elogiando-a no meio de uma chamada do Zoom. Certo dia, enquanto falávamos
das vantagens que ela oferecia, Alexa ouviu o nome dela e, subitamente, houve
caos quando todas as estações começaram a falar ao mesmo tempo — a minha
começou a tocar a “Sinfonia nº 5”, de Beethoven.
Foi tão engraçado quando começamos a gritar “Alexa, parar!” para nossas
respectivas estações e então caímos na risada. É bem verdade que a tecnologia
pode ser tanto uma bênção quanto uma maldição.
AMBIENTE

Se o sol está brilhando e não tenho nada melhor para fazer, posso andar durante
horas. Segundo meu pedômetro, já cheguei a dar 28 mil passos no entorno de
meu vilarejo. Muitas rotas levam da minha porta aos campos ao redor, mas
nenhuma leva para muito longe de casa — ou pelo menos era isso o que eu
pensava.
Sou convidada com frequência a testar produtos que aqueles que desejam
adentrar no “mercado da demência” acreditam que podem ser úteis. Concordo
em testá-los com uma condição: sempre escrevo uma resenha sincera, e foi
assim que me vi testando um novo relógio de rastreamento.
O relógio chegou, muito elegante e, infelizmente para mim, muito confuso.
Pedi que Sarah me ajudasse, mas até mesmo ela se perdeu navegando pelo
website indicado. Mesmo assim, perseveramos, especialmente porque Sarah
também se beneficiaria, já que seria ela a rastrear minha posição, fornecida pelo
relógio. Ela nunca havia tido problemas para me acompanhar com o aplicativo
que usamos em meu celular, mas imaginamos que esse novo teria ainda mais
funcionalidades. Tudo pronto, saí para caminhar com ele.
A mensagem de texto chegou imediatamente: O que você está fazendo em
Southampton, mãe?
Hum? Estou em Birmingham, respondi.
Achamos que se tratava de um bug — um desvio de 240 quilômetros.
No entanto, os contratempos continuaram. De acordo com o relógio, fui
vista em todos os lugares da região, enquanto Sarah, em casa, jogava “Onde está
Wendy?”.
Decidi contatar a empresa. Eles me enviaram um novo relógio e até se deram
ao trabalho de configurá-lo — o que não é muito útil se você é o consumidor
final, mas eu e Sarah ficamos felizes por não ter que refazer o longo
procedimento.
Saí para caminhar novamente, enquanto Sarah acompanhava todos os meus
movimentos. Imagine a surpresa dela quando me localizou em Yangzhou, na
China. Sempre quis visitar a China, mas nunca achei que meu passe de ônibus
me levaria até lá. Além disso, estava em um local muito menos glamouroso:
Milton Keynes.
Sarah continuou a observar de casa enquanto eu fazia minha turnê asiática.
O que você está fazendo no Japão?, perguntou ela em uma mensagem de texto
algumas semanas depois.
Foi quando decidimos que era hora de desistir. Permanecerei nas terras em
torno de meu vilarejo. Elas são muito menos exóticas, mas, ao menos, sei como
voltar para casa.

SOBRE AS ESTAÇÕES
O que a natureza pode nos ensinar sobre como lidar com a mudança? Em
tempos difíceis, sempre há lições a ser aprendidas no mundo a nossa volta,
mesmo que seja somente em nosso jardim. Não há o que a natureza não saiba
sobre a vida e a morte, o caos e a ordem, a luz e a escuridão. Vejo isso todas as
manhãs e tardes durante minhas caminhadas pelo vilarejo. Vejo que o suceder
das estações é necessário, um lembrete de que não há qualquer outra coisa mais
natural que a mudança, e ela não é algo que se deva temer ou evitar, nem
perguntar Por que comigo?, já que a Mãe Natureza não faz qualquer discriminação
entre animais, plantas e árvores. Em vez disso, é algo que precisamos encarar,
respeitar, aceitar. Às vezes, com essa doença, só tenho por companhia as
estações, lembrando-me de que as pequenas e incrementais batalhas que venço
contra a demência são tão importantes quanto a minúscula bolota que cai da
árvore e cresce até se transformar em carvalho.
Era verão quando fui diagnosticada, mas poderíamos muito bem estar no
meio do inverno. Eu só conseguia ver as metafóricas folhas de minha árvore
caindo, acreditando que tudo o que me aguardava eram noites escuras e dias
frios, imóveis e monocromáticos. Sei que algumas pessoas permanecem na
escuridão desse inverno, resignadas a não ver sinais de primavera após o
diagnóstico de uma doença degenerativa. Para os animais, o inverno é uma época
de descanso e recuperação, de hibernação, de conservar e recarregar energias —
talvez seja isso que essas pessoas devastadas fazem ao recuar para o interior de si
mesmas. Fiz isso por algum tempo. Contudo, mesmo agora, em um mundo tão
frenético e agitado, há momentos, em qualquer dia, que me lembram de
descansar, desacelerar e tornar a vida menos complicada, a fim de dar a meu
cérebro uma chance de se recuperar.
Quando a neve cobre o solo, há beleza a ser encontrada na simplicidade do
mundo; para aqueles que vivem com a demência, um cenário descomplicado em
preto e branco é mais fácil de seguir, quase como é com os bebês. As árvores
sem folhas não precisam ser vistas como feias se paramos para admirar a beleza
dos galhos. O inverno é uma chance de, ao anoitecer, ver a coruja-das-neves
pousar na pastagem em frente à janela da sala sem as folhas usuais para camuflá-
la. Assim como no caso da coruja, o limite temporal imposto àqueles que vivem
com uma doença degenerativa implica a necessidade de encontrar beleza na mais
rigorosa das estações, no mais vazio dos lugares, no agora. O inverno é tempo
de fechar a porta, de aconchegar-se no calor, de repousar e rejuvenescer, algo
que todos nós precisamos nos lembrar de fazer. O inverno é uma chance de
baixar o volume do mundo, assim como a neve parece fazer ao cair, de retornar
ao básico.
Na primavera, fico esperando os carneirinhos encherem os campos em torno
do vilarejo ou os patinhos darem seus primeiros e hesitantes mergulhos no lago.
Há, obviamente, o risco que vem com a mudança — para os patinhos, pode ser
a garça observando das pedras; para mim, pode ser uma calçada escorregadia na
qual meus sapatos não conseguem se firmar ou um galho empurrado que retorna
com força e me deixa com um olho roxo. Eu poderia evitar totalmente esses
perigos, poderia ficar dentro de casa tendo somente a doença por companhia e
esperar por dias mais ensolarados, mas então perderia muitas coisas, como os
jacintos, os açafrões e os narcisos que cobrem a margem do rio em frente a
minha casa. A primavera é uma lembrança de que sempre há um novo amanhã,
uma nova semana, um novo ano. Que um dia enevoado pode ser seguido por um
dia mais claro, que a esperança ainda floresce depois que a vida muda, mesmo
que pareça diferente de antes.
Na primavera, planto sementes em vasos e os coloco no peitoril das janelas,
para os dias em que sair for impossível, quando a névoa descer e desfocar o
mundo e o único alívio da demência for me enrolar no edredom e observar o
topo das árvores balançar através da janela do quarto. Contudo, mesmo nesses
dias, há esperança em minhas sementeiras, minúsculos brotinhos verdes, uma
lembrança de que a natureza continua o curso, de que estará esperando quando
eu estiver pronta para reemergir. Penso nessas mesmas sementes quando dou
palestras ou escrevo livros, esperando que as ideias que planto na mente das
pessoas germinem e sejam polinizadas ao serem compartilhadas com outros.
A natureza faz parte de nossa linguagem cotidiana. As pessoas
frequentemente usam o clima para descrever humores: estar com nuvens
cinzentas sobre a cabeça, chorar uma chuva de lágrimas, sentir-se radiante. Dias
passados sob o sol são preferíveis a dias passados sob uma nuvem. O verão,
porém, é a lembrança de que, mesmo sob o sol, tendemos a criar sombra. A
natureza sabe que não podemos ter dias bons sem dias ruins, que a vida — e o
ato de vivê-la — é uma mistura perfeita de ambos. As plantas precisam de luz, e
também de sombra e água. Assim como os seres humanos. No verão, quando
caminho pelos campos tostados pelo sol, sei que precisamos de dias chuvosos
para reabastecer, recarregar, rejuvenescer. O controle sobre quando eles
ocorrem e quão frequentes são — algo de que a natureza nos lembra todos os
dias — é simplesmente uma ilusão.
Para mim, o verão é um estado de ser, não de fazer, especialmente nos dias
em que a doença vence. É preciso respeitar a natureza. Eu me lembro de
antigamente estar sentada na praia de Blackpool, sem sapatos, e, a distância, ver
a equipe do barco salva-vidas respondendo a um pedido de ajuda. Os salva-vidas
sabem que as ondas são fortes demais para a maioria das pessoas; eles
aprenderam a respeitá-las através de amargas experiências; trabalham em
conjunto com a maré, não contra ela. O mesmo acontece conosco ao lidar com a
demência. Eu escolho seguir com a maré porque, se lutar contra ela, sei que vou
me afogar.
As pessoas temem o outono pelo que pode vir em seguida, mas ainda assim
ele é abundante em cores e frutas. O outono é uma época de fins, sim. De dizer
adeus ao alegre verão, às noites passadas no gramado, ao sol que se demora em
desaparecer por trás de nossa cabeça. O outono é, por natureza, um lento
apagar das luzes. Poderia haver melhor representação sazonal de uma doença
como a demência? Contudo, fixar-se apenas no que está por vir, como eu disse
muitas vezes, é um desperdício de tudo o que a natureza oferece agora — por
que focar o inverno quando ainda há um veranico tardio para aproveitar?
O alaranjado e o amarelo das últimas folhas nas árvores; o milagre da vida
vegetal se aprontando para sobreviver ao inverno; os animais e o instinto tão
intrínseco de planejar para os tempos mais difíceis que estão por vir. Há tanto
que os seres humanos podem aprender com o outono, sobre a mudança e como
se preparar para ela. Quando as folhas começam a cair das árvores e tenho
novamente aquele primeiro vislumbre da coruja-das-neves, me lembro de tudo
que o inverno tem a oferecer.

SOBRE CAMINHAR
Será que eu notava as mudanças sazonais antes que a vida me impusesse a
demência, lembrando-me de que só tenho garantido o momento atual? Minhas
caminhadas diárias são meus momentos de atenção plena; com a câmera
pendurada no pescoço, observo o ambiente que me cerca em busca de algo para
fotografar — algo que poderia se perder em segundos, se eu não o capturasse
com a câmera digital.
Tenho a sorte de viver em um vilarejo e estar cercada pela natureza e toda a
beleza característica. Vim morar no campo um ou dois anos após o diagnóstico,
quando os sons e os perigos da cidade grande se tornaram demais para mim. O
que me atraiu para a casa na qual vivo agora foi a imensa janela da sala que
enquadra a pastagem do outro lado da estrada. Fiquei fascinada por ser
instintivamente atraída para perto da natureza, como se entendesse que, nos dias
ruins que me aguardavam, ela seria minha única companhia. E não estou sozinha
nisso. Em um relatório de 2018, “Overjoyed That I Can Go Outside” [Muito
feliz por poder ir lá fora], os participantes falaram sobre como serem capazes de
caminhar pela vizinhança não somente lhes dava uma sensação de liberdade e
empoderamento, como também fazia com que sentissem estar mantendo a
doença sob controle. Caminhar definitivamente me fornece propósito, e ter um
propósito mantém meu cérebro funcionando. Eu não caminho a esmo, pois
estou sempre atenta ao cenário. O contato social proporcionado pelas
caminhadas e os próprios mecanismos que preciso ativar para realizá-las mantêm
meu cérebro ativo. Não consigo caminhar com alguém e fotografar ao mesmo
tempo — posso caminhar com alguém ou caminhar sozinha e fotografar. Mesmo
que eu esteja caminhando com alguém, tendo a parar se estivermos
conversando, pois só consigo fazer uma coisa de cada vez.
No relatório de 2018, os participantes falaram sobre o que a natureza
significa para eles, muitos admitindo que, como no meu caso, a mudança de
estações fornece propósito: “Manter uma conexão com a natureza foi sentido
como restaurador, e os participantes compartilharam da mesma empolgação ao
ver animais ou o prazer de observar flores durante as atividades cotidianas pela
vizinhança.” Antes da demência, eu adorava caminhar e admirar a beleza do
cenário, mas na época era tudo uma questão de distância: quanto eu conseguia
caminhar, em vez dos detalhes que me cercavam. Agora caminho pelas mesmas
terras e trilhas todas as vezes e nunca me canso. Vejo algo diferente todos os
dias: os primeiros flocos de neve no vilarejo; os padrões criados pelas nuvens; as
diferentes cores do céu. Assim como eu, parece que os participantes do estudo
obtêm muito prazer no contato com a natureza: “A mudança das estações
simbolizou esperança e a chance de rejuvenescer para alguns participantes
quando começaram a notar os primeiros sinais de primavera após um longo
inverno”, disse o relatório. “O tempo passado do lado de fora, em contato com a
natureza, foi combinado a práticas restauradoras como caminhar, ajudando os
participantes a administrar a vida com demência.”
Há muito foco no hábito que aqueles que vivem com demência têm de
“vaguear”. Sempre me surpreende que somente as pessoas com demência
“vagueiem”. Antes do diagnóstico, elas somente “caminhavam”. As pessoas com
demência têm um propósito, mesmo que ele não seja óbvio para os outros.
Caminhar talvez seja a única coisa que podem fazer para preservar a pouca
autonomia que têm, como explicaram os participantes do estudo:

“Estudos iniciais sugeriam que as pessoas com demência


experimentam um encolhimento do mundo após o diagnóstico,
algumas vezes como resultado do progresso da doença, mas nossas
descobertas diferem dessa conclusão […] Argumentamos que as
pessoas com demência desafiam ativamente a perspectiva de um
mundo em encolhimento ao exercitarem sua liberdade de
movimentos […] Tal descoberta é valiosa, pois fornece uma
contranarrativa aos estudos iniciais que tenderam a patologizar o
movimento das pessoas com demência, especialmente nos últimos
estágios da condição, ao rotulá-lo de ‘vaguear’.”

O ambiente em que vivemos é tão importante quanto a disponibilidade das


caminhadas diárias. O relatório prossegue:
“As pessoas buscaram espaços verdes e abertos, livres de trânsito e
multidões, que lhes permitiam se mover com facilidade, sem
enfrentar o estresse ou o desafio de estradas movimentadas ou
calçadas cheias […] Caminhar pela vizinhança lhes permitiu
liberdade de movimentos, algo que reforçou seu senso de
autonomia, permitindo que se sentissem no controle de suas
respectivas vidas e, às vezes, que fugissem da pressão do isolamento
associado à vida doméstica.”

SOBRE TORNAR OS LUGARES AMIGÁVEIS PARA AS PESSOAS QUE


VIVEM COM DEMÊNCIA
Um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS), focado não somente na
demência, mas no envelhecimento em geral, ressaltou o desejo das pessoas de se
sentirem parte da comunidade. “A participação e o apoio social estão fortemente
conectados à boa saúde e ao bem-estar ao longo da vida”, disse o guia Global Age-
Friendly Cities [Cidades globais amigáveis para o envelhecimento]:
“[…] pessoas mais velhas consultadas pela OMS indicaram
nitidamente que sua capacidade de participar da vida social, tanto
formal quanto informal, depende não somente da oferta de
atividades, mas também do acesso adequado a transportes e
instalações e do acesso a informações sobre as atividades […] Uma
cidade amigável para o envelhecimento enfatiza a capacidade, e não
a incapacidade; ela é amigável para todas as idades, não somente
para os ‘mais velhos’.”

E continua: “O empoderamento e o senso de valor próprio são reforçados em


uma cultura que reconhece, respeita e inclui pessoas mais velhas.” Como eu
sempre disse, faça a coisa certa pelas pessoas com demência e estará fazendo a
coisa certa por todos.
O transporte também é um fator importante. Eu me lembro de como uma
mudança na programação dos ônibus deixou a nós, os moradores do vilarejo,
desnorteados até nos acostumarmos aos novos horários. Para alguém com
demência, isso pode ser um grande desafio.
O relatório enfatizou coisas práticas que tornam os ambientes mais amigáveis
para o envelhecimento. Elas incluem assentos públicos, banheiros, meios-fios
rebaixados, rampas nos edifícios, sinalização adequada e semáforos com pausas
seguras nas passagens para pedestres. A falta de qualquer uma dessas coisas pode
fazer a diferença entre alguém ser capaz de aproveitar a vizinhança ou não.
Entretanto, a coisa mais importante, em minha opinião, são as pessoas —
que elas entendam o que é a demência e queiram tornar o ambiente inclusivo
para nós que vivemos com a doença.
Eis como algumas pessoas ao redor do mundo estão fazendo a coisa certa, de
acordo com um relatório de 2017 sobre comunidades amigáveis para as pessoas
que vivem com demência produzido pela Alzheimer’s Disease International:

• A Holanda instituiu cafeterias para pessoas com demência em 1997 e agora


há mais de 230 delas, que já receberam um total de 35 mil visitantes.
Organizações também criaram o DemenTalent, que investe nos talentos das
pessoas com demência, oferecendo-lhes papéis voluntários na comunidade com
base nas habilidades que elas possuem.
• Na Áustria, o Aktion Demenz criou “parkours da memória” em parques
locais, de modo que os visitantes podem obter informações sobre a demência
enquanto caminham.
• Taiwan iniciou o programa Dementia-Friendly Stores em 2013 para
encorajar os donos de lojas a se tornarem mais receptivos e possibilitar que as
pessoas que vivem com demência continuem a fazer compras. Isso inclui
pagamentos antecipados, fácil devolução de itens indesejados e alertas à família
quando a pessoa com demência entra na loja, a fim de que saibam que está
segura.
• A Coreia do Sul desenvolveu um “simulador de demência” para educar os
jovens sobre como pode ser viver com a doença. Crianças do jardim de infância
passam algum tempo em casas de repouso e outras, mais velhas, são treinadas
para fazer massagem nos residentes.
• No Japão, a Kizunaya ajuda a encontrar oportunidades de trabalho para
pessoas com demência de início precoce, incluindo o uso de terras não utilizadas
para plantar laranjeiras com fins comerciais.
• Na China, o Yellow Bracelet Project foi iniciado em 2012 para encorajar a
segurança e evitar que pessoas com demência se percam. Desde então, se tornou
um símbolo de afeto em toda a nação. Braceletes de segurança agora foram
lançados, com rastreador por GPS, e reuniram quase cem pessoas a suas
respectivas famílias.
• O Alzheimer’s, da Austrália, conduziu um estudo em 2014 para descobrir
que mudanças podiam ser feitas nos ambientes físicos, a fim de melhorar o
acesso e a interação comunitária das pessoas com demência. O relatório
destacou sugestões como minimizar o barulho sempre que possível, reduzir o
uso de superfícies reflexivas, como vidros, além de mapas e sinalizações
melhores.

Quando o novo shopping center de Leeds foi inaugurado, fiquei animada para
conhecê-lo. A loja-âncora era a John Lewis, e fui imediatamente transportada
para a que costumava frequentar com minha mãe quando pequena. Havia um
restaurante no interior da loja e toda a equipe usava os uniformes das garçonetes
de antigamente, com chapéus brancos de babado combinando com aventais
engomados, servindo chá em xícaras e pires de cerâmica com um brilhante bule
de prata. Para mim, naquela época, era como tomar chá no Ritz.
Gemma me levou de carro até lá e fomos para o edifício grande e brilhante
com portas automáticas. Foi então que parei subitamente. Gemma entrou, mas
eu permaneci na porta. O piso de mármore era um oceano preto e polido com
espirais cinzentas que pareciam ondas. Minha cabeça começou a rodar e senti
náusea antes mesmo de pisar nele. Gemma olhou para trás e me viu lá parada.
— O piso parece água — disse eu, e ela segurou meu braço enquanto eu
dava um hesitante passo adiante. Conforme caminhávamos, tive que olhar para o
teto para não sentir enjoo, deixando Gemma nos guiar até nosso destino, com
sorte longe daquele piso horrível. Tenho certeza de que ele é esteticamente
agradável para muitos, mas, para mim — e para outros com demência —, é um
pesadelo total para lidar. Essa parece uma coisa tão simples de arquitetos e
especialistas em decoração terem em mente a fim de tornarem a experiência
mais inclusiva. O piso não me impediu naquela ocasião, mas me encheu de
terror quanto à perspectiva de visitas futuras.
Muitas vezes, perguntaram minha opinião sobre edifícios projetados para
pessoas vivendo com demência, e sempre fico surpresa com quão pequenas são
as mudanças que fazem uma grande diferença. Como diz o Relatório Mundial
sobre Alzheimer de 2020: “O bom design não é mais caro que o mau design, e
há substancial qualidade operacional e qualidade de vida a ser ganhas com ele.”
Em 2016, me pediram para dar uma olhada no novo edifício do East Riding
Community Hospital, em Beverley, Yorkshire, o qual os administradores
esperavam tornar mais inclusivo para as pessoas com demência. Afinal, muitos
de nós usaríamos o hospital. A equipe com a qual o avaliei se dividiu em pares a
fim de não sermos influenciados uns pelos outros, mas todos encontramos
problemas similares. O vidro nas portas principais era muito elegante, mas,
como era escuro, não permitia ver o interior e fazia com que o hospital
parecesse fechado. A sinalização era o maior problema: muitos sinais eram
prateados contra um fundo pálido, indistinguíveis para alguém com demência.
Placas que fossem de um azul vívido com letras brancas em negrito funcionariam
muito melhor. A maior parte dos problemas se devia à falta de cores: tudo era
bege, todas as portas estavam fechadas, muitas da mesma cor que as paredes,
sem sinalizações brilhantes para informar o que ou quem estava do outro lado.
Algo tão simples quanto desenhos de uma escola local alegrariam o lugar, ou
então sinalização de várias cores no piso, dependendo de qual parte do hospital
fosse preciso acessar. Essas coisas não custariam muito, mas fariam toda a
diferença para alguém com demência que estivesse frequentando o hospital. O
problema é que frequentemente somos chamados a opinar quando o local já foi
inaugurado e sai muito caro modificar as coisas. As pessoas com demência
precisam estar envolvidas desde o projeto.
O relatório “Overjoyed That I Can Go Outside”, já mencionado, destacou a
importância da disponibilidade de lugares para se sentar para pessoas com
demência. “Bancos têm um importante papel a desempenhar para além do
repouso durante uma caminhada; eles facilitam formas mais oportunas de
interação social e, como resultado, encorajam as pessoas a sair de casa.” Não
consigo andar tanto quanto antes, mas temos muitos bancos espalhados pelo
vilarejo, então sei que sempre haverá um lugar para eu me sentar. Quando estou
sentada, as pessoas parecem mais dispostas a se aproximar e conversar,
exatamente como disse o relatório, ou perguntar se estou bem. Uma vizinha saiu
de casa para perguntar se eu estava bem ao me ver sentada no banco em frente à
janela dela.
Eu me lembro de uma vez ir visitar um hospital para ajudar a torná-lo mais
amigável para as pessoas com demência. Os administradores haviam exposto
vívidas obras de arte nos corredores, o que era maravilhoso, mas não havia lugar
para se sentar e admirá-las. Sugeri que instalassem bancos de frente para elas.
Minha cidadezinha é bem pequena, mas, certo ano, o conselho municipal
decidiu construir um centro comercial a curta distância da rua principal e teve a
genial ideia de colocar grandes círculos nas calçadas, a fim de indicar o caminho
tanto para as novas lojas quanto para a estação de trem. Aqueles de nós com
demência frequentemente caminham olhando para baixo, porque não confiamos
em nossos pés, então os círculos funcionaram realmente bem.
Uma clínica ganhou muitos pontos comigo por causa do uso da cor para
definir diferentes áreas, mas perdeu pontos pela grande escadaria, que
frequentemente as pessoas vivendo com demência enxergam se movimentando,
e pelo carpete decorativo da recepção, que parecia estar vivo. Como eu disse a
eles, porém, uma equipe amigável e grandes sorrisos compensam muita coisa.
Martin Quirke e os colegas escreveram sobre isso em um relatório sobre
comunidades capacitadoras de pessoas com demência. Ele disse que “um
ambiente socialmente solidário pode compensar um ambiente fisicamente
menos solidário”. Seria ótimo trabalharmos para que as duas coisas estivessem
presentes, a física e a social, mas os seres humanos realmente são o fator mais
significativo.

SOBRE A VIZINHANÇA
Onde se vive é de imensa importância quando se tem demência. Não acho que
as pessoas prestem atenção o suficiente ao trauma que uma mudança pode causar
quando se vive com uma doença como a demência. Elas, assim como eu o fiz,
pensam que se mudar será como sempre foi. Tive sorte no ambiente que
escolhi, porque meu vilarejo tem acesso a muitos espaços verdes e abertos para
minhas valiosas caminhadas. A casa de três quartos talvez não tenha sido a
melhor decisão: ela é grande demais para mim. Uns amigos meus se mudaram
para um apartamento acreditando que seria melhor, mas o barulho dos vizinhos
que ultrapassava as paredes e o piso foi tão desorientador que tiveram que pedir
ao conselho para que se mudassem para um bangalô. Ao escolher um novo
ambiente após o diagnóstico de demência, vale a pena considerar o acesso a
espaços abertos e meios de transporte e prestar atenção no que está além das
janelas. Nunca fecho as cortinas — sinto-me isolada e sozinha se fizer isso, presa
do lado de dentro —, então elas estão sempre abertas e os vizinhos acenam
quando passam.
O relatório de 2019 da Universidade de Cambridge enfatizou a importância
de janelas com vista para a rua que fazem o morador se sentir parte da
comunidade, mesmo que de dentro de casa, e falou sobre como passamos a
conhecer os sinais e sons diários de nossa vizinhança.

“Este estudo enfatiza a importância de entender a vizinhança ‘ao


longo do tempo’, pois seu caráter muda durante um período de 24
horas. Muitas pessoas com quem conversamos falaram sobre como a
atmosfera ficava mais silenciosa em suas áreas, às vezes como
resultado de serem deixadas para trás quando todos saíam para a
escola ou para o trabalho durante o dia. Outros estudos
descobriram que janelas foram fontes de interações informais e de
senso de pertencimento ao se receber um sorriso através delas, para
pessoas mais velhas com mobilidade limitada e pessoas vivendo com
demência […], simplesmente ouvir ou ver crianças brincando do
lado de fora forneceu esperança e senso de conexão.”

Para mim, as atividades externas são reconfortantes e se combinam


harmoniosamente a minha rotina: as portas dos carros se fechando e os motores
sendo ligados quando os vizinhos saem para o trabalho, a voz das crianças a
caminho da escola, os cascos dos cavalos nas estradas de asfalto, subindo a colina
para se exercitarem, os cavaleiros acenando se eu estiver à vista. Tudo é ordeiro
e está no devido lugar, e tudo se repete no fim do dia, mas em ordem inversa;
essa rotina, essa consistência, é importante. É por isso que as férias escolares
perturbam meu equilíbrio: parece que há algo errado ou faltando em meu dia.
O relatório revelou que outros se sentem da mesma maneira:

“Para muitas pessoas, uma atmosfera silenciosa na vizinhança não é


experimentada como algo relaxante ou pacífico. Os participantes
disseram ter sentimentos de insegurança durante períodos nos quais
não havia pessoas à vista. Isso enfatiza o quanto ver pessoas do lado
de fora fornece certo nível de conexão com a vizinhança, mas
também, talvez, o quão profundamente reinforma o senso de
identidade dentro da comunidade.”
Os animais são mais constantes; eles não mudam o cronograma como os seres
humanos. Quando estou em meu quarto no andar de cima durante o dia, os
esquilos e pássaros nas árvores são meus companheiros, correndo de galho em
galho e perseguindo uns aos outros pelos troncos.
Sempre aceno se estou caminhando e vejo pessoas nas janelas, no caso de elas
estarem esperando por isso: meu aceno é a validação de que elas existem e
foram vistas por alguém. Se preciso ficar sozinha, mas do lado de fora, ao ar
fresco, saio para caminhar de madrugada para ver o sol nascer e sentir o
conforto da rotina da natureza. O sol jamais falha em nascer e se pôr,
fornecendo estrutura para o meu dia.
Minha casa é um refúgio, especialmente nos dias ruins. O jardim, ou mesmo
a vista do jardim através da janela, é muito calmante. Adoro me sentar em meu
solário e observar os pássaros se alimentarem e as plantas crescerem. Posso me
sentir anestesiada em alguns dias, mas a janela me mostra vida, assim como
minhas sementeiras no peitoril.
Tenho sorte de ainda poder caminhar com a ajuda de meu bastão flexível. Dar
esses passos faz com que eu me sinta normal, me sinta como todo mundo. No
início, nem todos no vilarejo sabiam que eu tinha demência. Eles me conheciam
como “a senhora da câmera”, porque eu fotografava animais e plantas nos
campos em torno do vilarejo e postava as fotos no Facebook. Ser “a senhora da
câmera” fazia com que eu me sentisse bem, porque eles me viam como uma
pessoa, não “uma pessoa com demência”.
Perguntei a meus amigos qual a experiência deles em andar pela vizinhança. E
eles têm experiências diversas:

“O Alzheimer impede que eu saia sozinho. Eu costumava sair,


caminhar por toda parte. Mas agora não tenho mais senso de
direção. Eu vou para um lado e não sei que direção devo seguir para
voltar. Com exceção de meu jardim, não me sinto seguro sozinho.
Eu me perdi um dia e não estava a milhares de quilômetros de casa,
mas entrei em pânico como se estivesse.”
“Eu posso visitar as lojas sozinha, mas um dia desses fiz isso e
senti muito medo na hora de vir embora. Pensei: não vou mais sair
sozinha. Pode ter sido uma sensação passageira e sei que terei que
lutar contra ela. Se tiver problemas, pedirei ajuda e alguém me trará
para casa. Fui a uma loja ontem e me sentei em um banco para
descansar. Um adolescente se aproximou e perguntou se eu estava
bem. Respondi que sim, estava só descansando. Ele perguntou se eu
pretendia fazer compras e, quando eu disse que sim, acrescentou:
‘Então vamos. Vou até lá com a senhora.’ Foi adorável.”
“Eu ando todas as manhãs. Acordo bem cedo e saio para
caminhar sozinho pela cidade. É uma caminhada muito regular. Esse
é um horário reservado simplesmente para caminhar.”
A esposa dele complementou: “Eu tenho o aplicativo Find my
Friends. Desde que Bob esteja com o telefone no bolso e o telefone
esteja ligado, me sinto segura de que ele não se perderá.”
“Eu saio sozinha, vou à cidade, sem problemas. Minha filha me
deu um telefone de presente de aniversário e colocou um rastreador
nele, já que fico confusa às vezes. Mas eu me saio muito bem,
porque não me importo de pedir ajuda.”

SOBRE ME SENTIR PERDIDA


Os campos pelos quais caminho em torno do vilarejo onde moro são tão
familiares para mim quanto minhas pegadas. Eu poderia percorrer essa rota de
olhos fechados — embora essa possa não ser uma ideia assim tão boa, dada
minha briga com um galho no outro dia, que resultou em um olho roxo. No
entanto, passo por esses campos duas vezes ao dia e conheço cada curvatura do
terreno. Para mim, eles são belos em qualquer época do ano. Sempre há algo a
fotografar enquanto faço minha ronda diária: um nascer do sol dourado, um
faisão ou um tordo para me fazer companhia. Eu me sinto segura ali, cercada por
vizinhos que me conhecem, que usam a mesma rota e que também gostam de
ver a natureza trabalhando em todas as estações, faça chuva, faça sol.
Partilhamos animados “olá” e comentários sobre o clima. E, entre esses sorrisos,
sozinha, disparo minha câmera e registro os campos que conheço tão bem,
novamente maravilhada com os brotos verdes que surgem da terra preta,
mantendo em segredo, debaixo de si, as batatas que crescem.
Um dia, porém, enquanto fazia minha caminhada, levantei os olhos do visor e
descobri estar em um lugar desconhecido. Eu ainda estava em um campo, mas
não um que conhecesse. Aquele campo não tinha qualquer uma das marcações
que o identificassem como um dos meus; nada da usual familiaridade estava
aparente para mim. Uma das trilhas havia me levado até ali e outra seguia em
frente, mas eu não sabia qual era qual. Passei os olhos pelo campo em busca de
pessoas ou pontos de referência, mas me vi totalmente sozinha. Foi quando meu
coração disparou, com o pânico aumentando juntamente com as perguntas. Se
eu continuasse caminhando, sabia que me perderia.
Não entre em pânico, disse a mim mesma. Se eu esperasse um pouco, sabia que
um morador do vilarejo apareceria, alguém que poderia me mostrar o caminho
para casa. Então caminhei lentamente, tentando distrair a mente da profunda
sensação de desorientação enquanto olhava o mundo pela lente da câmera,
fotografando na esperança de me acalmar. Foi quando as vi: duas figuras vindo
em minha direção, um homem e uma mulher, um casaco vermelho-vivo. Meu
coração desacelerou para um ritmo mais confortável. Sorri quando eles se
aproximaram e eles retribuíram o gesto.
— Esse é o caminho para o vilarejo? — perguntei, apontando para a trilha na
esperança de que meu compasso interno tivesse me colocado na direção certa.
— Olá, Wendy — disse o homem. — Sim, é esse. Vire à direita no fim da
trilha e você estará pertinho do vilarejo.
Vire à direita, disse a mim mesma. Essa era a resposta que eu precisava.
Agradeci ao casal e continuei meu caminho, repetindo a instrução e tirando
fotos enquanto caminhava. Momentos depois, cheguei ao fim do campo e, ao
virar à direita, como me haviam dito para fazer, o mundo subitamente entrou em
foco. É óbvio que eu sabia onde estava. Lá estava o limite das terras do
fazendeiro, marcado por flores-do-campo cuidadosamente plantadas, e a casa
dele, com o cão preto ao lado do portão; lá estava o grande carvalho à direita e,
ao lado, meu caminho para casa.
Ergui a câmera e vi a cena através da lente. Lógico que eu conhecia aquele
lugar. Ao menos por hoje…

SOBRE VIVER EM CASA


Falei muitas vezes sobre minha insistência em permanecer em minha casa e viver
minha vida de maneira independente pelo máximo de tempo possível. Sei que
não sou a única a me sentir assim. O que precisamos ouvir de nossos amigos,
familiares e dos profissionais não é que isso é impossível, mas como podemos
tornar possível. A arquiteta e designer pioneira Margaret Calkins —
especializada em projetos para pessoas com demência — disse que teve um
insight quando percebeu que “o pensamento predominantemente focado nos
déficits em relação à demência precisa ser substituído pelo pensamento focado
nos pontos fortes, a fim de que os direitos desse crescente grupo de indivíduos
sejam respeitados e apoiados pela sociedade”. Falei frequentemente sobre como
os profissionais deveriam focar o que podemos fazer, em vez de aquilo que não
podemos, e isso se aplica a todas as áreas da vida, incluindo nossa casa.
No relatório de 2020, Ash Osborne discorre sobre a importância de manter
o ambiente doméstico inalterado pelo máximo de tempo possível, a fim de
“permitir que a pessoa usufrua do relacionamento com sua vida anterior,
personificada em sua casa, a despeito dos problemas introduzidos pela
demência”.
Realmente, as coisas que possuímos contam nossa história. Só preciso olhar
para minha tigela colorida de conchas para que minha mente retorne à praia de
Blackpool: consigo conjurar instantaneamente o som das ondas ou a sensação da
água avançando e envolvendo meus pés. Por essa razão, esses itens não devem
ser vistos como acúmulo ou como supérfluos, mesmo que não sejam
importantes para outras pessoas. Essas coisas são a base do que define minha
vida. Frequentemente, aqueles que se mudam para casas de repouso têm quartos
tão pequenos que precisam se livrar de muitos desses itens, o que deve deixá-los
muito tristes.
O relatório de Osborne lista modificações que podem ser feitas em uma casa
para ajudar o dono a viver melhor com a demência. Podem ser mudanças
estruturais, como alargar portas e corredores ou remover uma parede para
tornar a sala mais ampla. Para alguém com demência, é importante ver tanto o
lugar de onde se está vindo quanto o lugar para onde se está indo. Quando me
mudei, costumava ficar desorientada pelas portas fechadas quando caminhava de
cômodo em cômodo, esquecendo o que estava do outro lado quando as
atravessava. Minha solução foi removê-las. Dessa maneira, quando estou na sala
consigo ver a cozinha e vice-versa.
Mudanças não estruturais e acessórios como rampas ou corrimões podem
fazer grande diferença, particularmente se a pessoa tiver tendência a quedas. Isso
dará a ela a confiança de se mover pela própria casa. É importante, porém, se
lembrar de que, embora a segurança seja importante, nossa casa é antes de tudo
um lar, e muitos de meus amigos comentaram sobre a importância de ela não
parecer clínica demais somente para tranquilizar nossos entes queridos.
Pequenas mudanças podem ser feitas para tornar uma casa mais amigável para
as pessoas com demência. Carpetes com padrões em curvas e espirais devem ser
removidos e substituídos por outros com tons contrastantes. A iluminação é
outra importante adaptação. Em minha experiência, receio dizer, lâmpadas que
economizam energia não são úteis para quem tem demência, simplesmente
porque demoram muito para acender — quando finalmente conseguir ver
nitidamente o interior do cômodo, você já terá esquecido por que foi até lá.
O relatório de Osborne continua:

“Alguns pesquisadores sugeriram que é melhor realizar modificações


domésticas nos estágios iniciais da demência, quando podem ter
efeitos positivos sobre a confusão e permitir o envelhecimento em
casa. Modificações posteriores podem causar confusão e ter impacto
negativo na pessoa com demência.”

É melhor se antecipar aos problemas antes que ocorram a fim de se acostumar


às mudanças enquanto ainda é possível. Até mesmo decorar um cômodo com
uma cor diferente pode levar à confusão e à sensação de que ele já não nos
pertence.
Simplificar o ambiente é uma maneira fácil de deixá-lo mais relaxante para
alguém vivendo com demência: remover perigos que possam fazer com que a
pessoa tropece, como tapetes ou chinelos, além de móveis pequenos como
mesas e banquinhos. Não gosto de bagunça nos balcões e na ilha da cozinha, mas
preciso deixar as coisas à vista para saber que existem — como o iPad e o
iPhone, as chaves, papel, caneta e temporizadores. As únicas coisas que guardo
são roupas, louças e alimentos, mas, mesmo nesses casos, tenho fotografias nas
portas dos armários para saber o que há dentro deles. Algumas pessoas trocam as
portas de madeira pelas de vidro com o mesmo intuito. Eis algumas maneiras
por meio das quais meus amigos lidam com a demência em casa:

“Ficamos mais organizados. Sempre deixo as chaves, os óculos e a


bolsa no mesmo lugar. Antes eu os largava em qualquer canto, mas
agora eles ficam no mesmo lugar todas as noites e, por incrível que
pareça, ainda estão lá pela manhã. O segredo é a organização.”
“Tenho pequenas listas em gavetas e armários dizendo ‘pijamas,
roupas térmicas’ e assim por diante, para saber o que está dentro
deles. Mas a Alexa é nosso principal recurso: ela nos lembra de
tudo, de quando ligar o aquecedor, quando apagar as luzes, tudo.
Então agora tenho duas mulheres cuidando de mim!”

Ajustar o ambiente residencial para que você possa olhar para a rua pela janela
é uma maneira inestimável de adaptar sua casa. Já falei sobre minha alegria de
olhar pela janela, ver a vida passando, acenar para as pessoas e vê-las acenando
de volta. O relatório de Ash Osborne indica “o importante efeito da sensação de
conexão com a vizinhança”, algo que uma simples janela para observar o lado de
fora pode proporcionar.
O ruído é outro fator que deve ser levado em consideração. O barulho
representa o mesmo desafio para as pessoas com demência que as escadas para os
cadeirantes. Assim, quanto menos estímulo auditivo — ou melhor, interferência
auditiva —, mais amigável é o ambiente. Foi por isso que coloquei a máquina de
lavar no solário, para que eu possa fechar a porta e não ouvir o barulho que ela
faz ao centrifugar. Contudo, ela toca uma musiquinha agradável quando finaliza o
serviço, a fim de sinalizar que a roupa está pronta para ser pendurada — essa
musiquinha não é tão dolorosa para mim. Há uma casa em meu vilarejo com um
aparelho de ar-condicionado que me incomoda tanto que evito ir àquela área
desde que ele foi instalado. É incrível como algo pode ser tão comum para uma
pessoa e tão intrusivo para outra. Carpetes e cortinas podem ser uma excelente
maneira de absorver o som, ao contrário de pisos laminados e persianas de
madeira.

SOBRE MEU QUARTO DA MEMÓRIA


Meu quarto da memória oferece calma e acolhimento instantâneos sempre que
cruzo porta adentro. Não vou até lá com frequência, deixo para os dias nos quais
preciso me sentir conectada a minha vida e ser lembrada de todos aqueles rostos
sorridentes olhando para mim, de todos os lugares em que estive e os quais
registrei com minha câmera fotográfica. Trata-se somente do quarto extra no
andar de cima da minha casa, mas é muito mais que isso. O lugar está repleto de
fotografias que preservam memórias felizes e diz tanto sobre mim quanto o
sangue que circula em minhas veias — especialmente nos dias ruins, quando
perco a compreensão de quem realmente sou.
A minha frente, no alto da parede, há um fio vermelho com fotos presas por
minúsculos pregadores coloridos. São de Sarah e Gemma quando crianças e, ao
olhar para elas, um sorriso começa a surgir em meu rosto. Uma em particular
captura meu olhar: Sarah por volta dos 11 anos e Gemma com 6. Não me
lembro do lugar onde ela foi tirada, mas as meninas estão olhando por sobre o
ombro, sorrindo para mim, a felicidade estampada nos rostos. Momentos como
esse, registrados de alguma forma, são inestimáveis. Sou lembrada em um
segundo de como conhecia tão bem cada expressão daquelas duas jovens faces: a
alegria, o constrangimento, o “Vá embora, mamãe, não estou a fim de tirar
fotos”. Viro-me lentamente no quarto e, de foto em foto, as memórias vão
retornando. Há fotografias de meus lugares favoritos também: na maioria
Keswick, mas também Lulworth Cove e Durdle Door, e a silhueta de uma
gaivota solitária contra o mar em Blackpool. Percebo que a maioria delas
envolve água: uma praia, uma lagoa, um lago do vilarejo. Algo sempre me atrai
para a água.
No canto, minhas três caixas da memória estão empilhadas. Inicialmente
havia apenas uma, e eu guardava nela os primeiros sapatinhos das minhas
meninas, mas talvez o pânico de esquecer tenha me tornado mais inclinada a
guardar mesmo as menores coisas.
Como eu disse, esse é somente um cômodo na minha casa, mas o que ele
representa vai muito além. É o presente que me traz aqui, mas o que esse quarto
abriga foi criado no passado, formando uma espécie de tapeçaria da minha vida,
com todas as pessoas e os lugares maravilhosos que a compõem. Entrar nesse
quarto me dá acesso a minha história. Em um segundo, posso me sentir criança
novamente, ou mãe de uma recém-nascida, mãe solo, ou mãe orgulhosa quando
vejo as fotos de formatura das minhas filhas. Eu me lembro de quem sou e não
preciso fechar a porta para manter a demência do lado de fora. Esse é meu
santuário; aqui, a doença não existe.

SOBRE LARES E CASAS DE REPOUSO


É compreensível que as famílias queiram ter uma sensação de segurança quando
o ente querido com demência ainda vive em casa, mas elas devem se lembrar de
que não gostariam de viver em uma prisão, então por que alguém que vive com
a doença gostaria? Pode haver uma tendência de colocar trancas duplas nas
portas e instaurar medidas que fariam qualquer um se sentir aprisionado. Na
maioria dos casos isso é feito com a melhor das intenções, mas, na verdade,
serve apenas para que o cuidador se sinta mais seguro.
Um relatório de 2020 da Universidade de Liverpool focou como uma casa de
repouso com infraestrutura correta pode ter grande impacto no bem-estar dos
residentes. Ele advertiu contra medidas de segurança visíveis. “Os residentes de
instalações equipadas com saídas camufladas e travas eletrônicas silenciosas
apresentam níveis mais baixos de depressão”, escreveram os autores do relatório.
“De modo geral, os benefícios provenientes das medidas de segurança devem ser
pesados contra os potenciais danos causados pelo fato de as pessoas com
demência sentirem que estão sendo segregadas ou aprisionadas em um ambiente
seguro.”
Uma solução que ouvi repetidamente é colocar uma cortina sobre a porta da
frente se alguém tiver a tendência de sair. Com a cortina, a porta não se parecerá
com uma saída que precisa ser explorada. Em contraste, se a porta tiver muitas
trancas, pode fazer com que a pessoa se sinta aprisionada. Isso também vale para
o acesso ao exterior em casas de repouso. O mesmo relatório falou sobre quão
benéfico é o acesso a jardins e outras áreas externas, e que “restringir [esse]
acesso […] pode provocar consequências imprevistas”. Uma de minhas amigas se
mudou recentemente para uma casa de repouso e só pode sair acompanhada por
um membro da equipe. Isso faz com que ela se sinta aprisionada e,
consequentemente, muito deprimida. Certamente, se há um jardim anexo a
uma casa de repouso, ele deve ser seguro e de fácil acesso — ou os arquitetos do
lugar precisam se perguntar por que foi tão mal projetado. As casas com jardins
terapêuticos, que incluem caixas da memória, trilhas, plantas perfumadas e
plataformas das quais os residentes podem observar a vida selvagem, relatam não
somente melhoria da qualidade de vida, como também menos agitação e
depressão por parte dos residentes e menos estresse para a equipe e os membros
da família.
Lógico que é importante que as casas de repouso priorizem a criação de um
ambiente melhor para os residentes, mas seus amigos e familiares tampouco
devem ser esquecidos. O relatório da Universidade de Liverpool afirmou: “Em
ambientes de menor escala, familiares relataram ser tratados mais como
membros do grupo que como visitantes, podendo inclusive participar das
refeições. Isso os encorajou a visitar com mais frequência.” É bom ouvir que essa
questão está sendo abordada: frequentemente, há tantas regras nas casas de
repouso que elas acabam desencorajando as visitas. Lembro-me de uma família
que conheci: “Mamãe está segura agora. Estão cuidando dela e não precisamos
nos preocupar. Eles telefonarão se ela ficar doente.” No entanto, eles nunca a
visitavam, porque não suportavam vê-la naquele ambiente. Histórias assim me
deixam muito triste.

SOBRE OS VILAREJOS DA DEMÊNCIA


Ainda não sei como me sinto sobre os “vilarejos da demência”. O vilarejo De
Hogeweyk, na Holanda, tem sido muito elogiado e inspirou o surgimento de
vários outros ao redor do mundo: os vilarejos Belong no noroeste da Inglaterra
têm uma abordagem similar. O De Hogeweyk é uma comunidade murada perto
de Amsterdã que abriga 152 pessoas com demência em 23 residências. Do
tamanho de dez campos de futebol, há uma praça central, um cinema, um
jardim e uma agência postal, e os residentes levam uma vida aparentemente
“normal”, dividindo-se em grupos de seis ou sete por casa. O vilarejo se destina
predominantemente a pessoas com demência severa, mas a ideia de segregar
qualquer parte da população sempre me deixa incomodada. Os residentes são
atendidos por uma equipe de 250 especialistas em demência que também
atendem nas lojas do vilarejo. O restaurante e o pub estão abertos não somente
para moradores, mas também para amigos e familiares e para os profissionais
encarregados dos cuidados. Parece bom, em teoria, e aparentemente a nota de
satisfação média dos clientes foi de 9,1 — contra 7,5 em casas de repouso
tradicionais no país. Mesmo assim, há algo sobre esses vilarejos que me parece
muito artificial.
Há algumas noites, sonhei ter sido conduzida por um par de altos portões de
aço, controlados por alguém que eu não conseguia ver. Assim que entrei, os
portões se fecharam atrás de mim. Eu me senti instantaneamente enclausurada,
como se fosse uma prisioneira que permaneceria ali até que a morte me levasse
para um lugar melhor. Enquanto caminhava pelas ruas do sonho, tudo me
parecia encenado. Havia muito riso, como se as pessoas zombassem de nós que
vivemos com demência, enquanto olhávamos vitrines que exibiam mercadorias
falsas que nunca seriam vendidas. Havia muita cor, mas nenhuma alma. Tentei
abrir uma porta, mas o trinco não girou. Nesse pesadelo, todo mundo
caminhava em pares, com exceção de um homem que passou por nós e
sussurrou em meu ouvido: “Estou fugindo.” Ele caminhava ao longo de um
caminho circular que jamais o levaria à liberdade. Eu queria ir embora, mas,
como todos os outros, havia chegado ao estágio em que já não conseguia me
fazer ouvir. Minha versão no sonho desistiu de lutar e, com essa sensação,
acordei com um sobressalto, tão aliviada por estar em minha cama que, só para
confirmar esse fato, pedi a Alexa que acendesse as luzes.
Sei que foi somente um sonho, mas está nítido o que meu subconsciente tem
a dizer sobre tais lugares. Estou certa de que eles são maravilhosos para alguns, e
ambientes estilizados para pessoas com demência parecem estar se tornando
cada vez mais populares. Glenner Town Square, perto de San Diego, afirma
“romper o padrão” de um centro de cuidados temporários. Esse “vilarejo” fica no
interior de um grande armazém na periferia da cidade. No salão principal, os
visitantes encontram o que parece um teatro da década de 1950, uma pequena
lanchonete com mesas do lado de fora, um pub com mesa de bilhar, um carro
antigo ao lado de uma bomba de gasolina, uma barbearia, uma “loja de
departamentos”, um minimuseu e até mesmo um cinema com capacidade para
vinte pessoas. Pessoalmente, não gosto de ambientes fabricados e artificiais, mas
entendo por que eles são estimulantes para algumas pessoas. Para mim, seria
muito confuso ver um carro que nunca se move perto de uma bomba de
gasolina. Certa vez, visitei a sala de cinema em uma casa de repouso. O interior
era todo preto e muito desorientador. O que me preocupa nesses lugares é a
quem eles servem: às pessoas com demência ou às empresas que tiveram ideias
inovadoras para ganhar dinheiro? Não gosto da ideia de capitalizar qualquer
doença.
Em contrapartida, acredito que os cuidados temporários podem ser um bom
passo de transição para aqueles que pensam em se mudar para uma casa de
repouso ou uma alternativa para a pessoa que vive com demência ou aqueles que
cuidam dela que desejam ter um dia de descanso. Meu amigo Chris anseia pelos
dias que passa no centro de cuidados temporários, simplesmente porque são um
descanso. Ele pode passar o dia sentado e em silêncio, se quiser, ao passo que em
casa se sente obrigado a participar das conversas. Sua esposa precisou de mais
convencimento, porque sentia que o estava “despachando”. Entretanto, esse não
precisa ser o caso, e o centro pode ser uma pausa bem-vinda para ambos.
Na Noruega, um modelo de sucesso é o “cuidado verde”, no qual fazendas
tradicionais abrem as portas para membros da comunidade que vivem com
demência. Em minha opinião, isso é melhor que um ambiente falso, e tão
estimulante quanto. Nas fazendas, as pessoas com demência podem ajudar na
cozinha ou no jardim, cortar madeira, colher frutas, almoçar juntas e fazer
longas caminhadas enquanto os cuidadores descansam um pouco. O Plano
Nacional de Demência da Noruega acredita que “os ambientes devem não
somente compensar o declínio funcional, mas também desenvolver os recursos e
pontos fortes das pessoas”, algo com o que concordo totalmente.
EMOÇÕES

Não somos agraciados com amizades verdadeiras em nossa vida com a frequência
que gostamos de pensar que ocorre. É algo que ultrapassa qualquer descrição.
Como posso descrever precisamente minha melhor amiga nestas páginas? Se
tentasse por uma vida inteira, ainda assim não seria capaz de lhe fazer justiça
com palavras.
Conheci Sylvia quando tinha 39 anos. Sendo mãe solo de duas menininhas, eu
sobrevivia havia anos fazendo faxina. Como muitas pessoas, eu tentava ignorar a
sensação de que poderia fazer mais da vida se fosse corajosa o bastante para
tentar fazer alguma coisa, mesmo sob o risco de fracassar. O anúncio de
emprego para recepcionista do departamento de fisioterapia de um hospital foi o
empurrão de que eu precisava. Circulei-o, mas então o deixei de lado a princípio
— há mais segurança naquilo que conhecemos. O anúncio, porém, significaria
não apenas uma brusca guinada em minha vida e o início de uma carreira de
quase vinte anos no Sistema Nacional de Saúde, como também me levaria a
conhecer a melhor amiga do mundo.
Como gerente administrativa, Sylvia participou de minha entrevista.
Aparentemente, a chefe do departamento estava incerta sobre empregar esta
mãe solo que vos escreve, mas Sylvia a persuadiu de que meu status me tornava
mais confiável: afinal, eu precisava do emprego. Os instintos dela estavam
corretos. Eu era a primeira a chegar no trabalho e a última a sair. Aquele foi o
trampolim de que eu precisava, e Sylvia me guiou pela mão.
Eu estava acostumada a estar sozinha, zelosa de minha independência. Havia
algo em Sylvia, porém, que me dizia que eu podia confiar nela. Nós éramos
diferentes de muitas maneiras — ela era extrovertida; eu era profundamente
reservada —, e similares em outras. Éramos ferozmente leais, não tolerávamos
tolices e ambas tínhamos duas filhas que adorávamos. Tínhamos quase a mesma
idade, embora ela me lembrasse o tempo todo do “quase”. Um ano mais jovem,
Sylvia me provocava dizendo que eu passara por todas as principais experiências
antes. Ela não estava muito animada para fazer 40 anos, embora eu garantisse
que eles haviam me proporcionado um recomeço. Então, no grande dia, cobri as
janelas do departamento com letras garrafais que as meninas me ajudaram a
colorir, dizendo: OLHE SÓ QUEM FAZ 40 HOJE. Eu a vi se aproximar, vindo do
estacionamento, com a testa franzida em confusão enquanto lia cada uma das
letras, e então revirar os olhos e dar o sorriso que era a marca registrada dela
quando viu uma fotografia de si mesma colada na porta e soube imediatamente
quem estava por trás de tudo. Daquele dia em diante, nos tornamos grandes
amigas.
Éramos uma para a outra a irmã que nunca tivemos. Ambas gostávamos de
nos manter em forma e eu a ensinei a jogar tênis, sem perceber que estava
criando um monstro determinado a me derrotar todas as vezes que entrávamos
na quadra. O cenho franzido em concentração enquanto ela esperava
pacientemente, com a raquete na mão, balançando o corpo de um lado para o
outro — do jeitinho que eu ensinara — e alternando o peso entre os pés
enquanto antecipava meu saque, se tornou outra de nossas piadas. Sylvia odiava a
ideia de ter rugas, então eu a provocava sempre que franzia o cenho e,
instantaneamente, ela sorria. Nossas viagens a Wimbledon se tornaram meus
momentos favoritos, com lanches na bolsa e ingressos na mão. Guardei todos
eles em minhas caixas da memória.
Quando o primeiro marido a deixou, não houve necessidade de palavras,
somente o pedido para que eu fosse até lá. Ficamos na saleta do sobrado
conjugado em uma rua sem saída, ela com os dois cãezinhos westies terriers no
colo e eu trazendo chá da cozinha. Frequentemente em nossa amizade, não
precisávamos falar para saber o que a outra estava pensando. Algumas semanas
após a separação, persuadi Sylvia de que ela precisava de uma mudança, então
usei minhas famosas habilidades de decoradora no quarto dela enquanto ela
“supervisionava”. Bebemos muitas garrafas de vinho naquela época. Houve
pontos altos também, como as férias nas quais ela me apresentou Lake District.
Subimos até o topo do Walla Crag e ficamos lá sentadas, somente a brisa nos
fazendo companhia, até que nos guiei de volta para baixo — o senso de direção
nunca foi um dos pontos fortes de Sylvia.
Também celebramos os momentos felizes de nossa vida. Quando Sylvia
conheceu David, ela parecia uma adolescente novamente e me arrastou para um
fim de semana em Keswick para testar se sentiria falta dele. Decidimos
preencher nossos dias com longas caminhadas e Sylvia comprou um par de
bastões de trilha iguais aos meus. Só que ela era muito mais baixa, e rimos muito
dela caminhando com aqueles bastões gigantes. Fizemos uma pausa ao lado da
ferrovia de Keswick para tentar ajustá-los, mas, por mais que puxássemos e
torcêssemos, nada aconteceu, e em breve perdemos o fôlego de tanto rir. Foi
quando uma senhora idosa e de ar severo veio até nós, arrancou os bastões de
nossas mãos, ajustou-os na altura correta e partiu sem dizer uma palavra sequer.
Nós a vimos ir embora, sem ousar olhar uma para a outra até que ela já estivesse
longe e não pudesse mais nos ouvir. Então caímos na gargalhada.
Quando fui diagnosticada com demência, Sylvia se mostrou determinada a
aprender tudo o que pudesse, mas, como minha melhor amiga, foi a mudança
em minhas emoções o que notou primeiro. Ela entendeu melhor que ninguém
como minha gama de emoções havia diminuído e passara a registrar somente
felicidade, tristeza e contentamento. Já não havia escalas sutis para mim, como
se meu cérebro precisasse diminuir o escopo para se concentrar em coisas mais
vitais. Ao contrário da maioria das pessoas, Sylvia entendia o que estava
acontecendo e, quando não, perguntava até entender. Compartilhei minha
pesquisa com ela, e Sylvia sempre se mostrou interessada, curiosa e cheia de
ideias. Quando foi diagnosticada com câncer nos ovários alguns anos depois, ela
enfrentou o próprio desafio da mesma maneira. Foi a pesquisa que a manteve
viva por anos; ela tentou novas drogas e aprendeu tudo sobre os novos
tratamentos.
Durante todos esses altos e baixos, ainda nos encontrávamos algumas vezes
por ano. Certo dia, senti necessidade de vê-la, intuindo que algo estava errado.
Fui de trem até a casa dela e, de fato, descobri que Sylvia havia recebido más
notícias do médico.
— Eu não queria contar porque sabia que você ficaria triste — disse ela.
Naquele momento, se pudesse tirar o câncer do corpo dela e colocar no
meu, teria feito isso. Sylvia ainda tinha muito a viver, enquanto a demência já
havia se apossado de meu futuro. Eu teria alegremente pego o câncer para mim
se ela pudesse passar mais tempo com David. No entanto, esse era um sonho
impossível.
Quando o câncer se espalhou e todas as opções de tratamento se esgotaram,
Sylvia foi internada e, mais uma vez, não me contou quão ruins as coisas
estavam. Contudo, não precisou: eu senti. O Natal se aproximava, minha época
favorita do ano, e Sylvia estava determinada a não permitir que o ânimo abatido
dela contaminasse o meu. Até o fim, ela continuava pensando nos outros.
Sylvia foi para casa nas últimas semanas, a fim de passar os últimos dias, horas
e minutos de vida com o marido e as filhas. Uma cama hospitalar foi instalada na
sala e, com medo de me contar a verdade, ela preferiu consultar Sarah se deveria
me informar de que estava prestes a morrer. Graças a Deus Sarah a persuadiu a
me contar, porque eu não teria perdido por nada no mundo as belas e últimas
conversas que tivemos. É estranho saber que sua melhor amiga está morrendo
quando se tem demência. Eu não estava preocupada comigo, mas com os outros
— o que aconteceria se em algum momento eu esquecesse que Sylvia havia
morrido e lhe enviasse uma mensagem? Eu odiava a ideia de entristecer David.
Já é muito ruim viver com a doença, eu não queria que ela causasse dor às outras
pessoas.
Quando Sylvia foi ficando mais fraca, nossas trocas de mensagens pararam.
Pelo menos havíamos dito tudo o que queríamos dizer. Em certa manhã de
inverno, recebi uma simples porém bela mensagem de David: Uma luz muito
brilhante se apagou às 3h05.
Ela sempre brilhará em nossos corações, David, foi o que respondi.
David me contou que o desejo final de Sylvia havia sido alugar um trailer para
vir me visitar. Eles tinham até mesmo descoberto uma maneira de conseguir
eletricidade para manter a máquina a que ela estava ligada funcionando, mas não
deu tempo.
Falei algumas vezes sobre as duas estantes nas quais as pessoas que vivem com
demência guardam as memórias. Há a estante factual, que é frágil e oscila de um
lado para outro com a doença, fazendo com que os livros tombem para as
prateleiras erradas — misturando memórias, anos e pessoas. E há a mais sólida
ao lado, a estante emocional. Talvez eu tenha me esquecido de que nada é capaz
de abalá-la. Ela é o lugar em que ficam as memórias mais significativas e abriga as
prateleiras daqueles que mais amamos, que nos fizeram mais felizes e cuja perda
sentimos mais profundamente. Sei que é onde Sylvia está e, nessa prateleira, a
luz brilhante dela jamais se apagará. Não preciso temer esquecer a morte de
minha melhor amiga quando ali, naquela estante, ela está viva dentro de mim.
Há dias em que a tristeza me esmaga, quando nem mesmo uma caminhada
pelo vilarejo consegue remover o pesar. Sei como era me sentir triste antes da
demência, como um momento assim podia me lançar em um turbilhão,
acessando memórias de momentos difíceis como algum tipo de boneca russa
É
sádica. Agora não é assim. É como se a doença, que pode ser tão cruel de tantas
maneiras, não permita que eu me demore demais nos momentos tristes. Alguma
outra cena logo surge em minha mente quando penso na morte de Sylvia: subir a
Walla Crag, um jogo de tênis em um dia ensolarado, uma taça de vinho na sala
de estar aconchegante dela.
Sylvia sabia de meu amor pelos tordos-americanos e de como acredito que
eles são os espíritos daqueles que já partiram. Na noite em que ela morreu, tive
um sonho maravilhoso. Nele, pedi que Sylvia voltasse como um tordo e me
desse um sinal de que ainda estava comigo. E então, no sonho, um tordo
apareceu em meu jardim e eu fui para fora, com a mão estendida, oferecendo
sementes e pedacinhos de sebo. O tordo se aproximou e pousou gentilmente em
minha mão. Ele pegou uma semente minúscula, olhou para mim e
imediatamente fez cocô na palma de minha mão. Eu ri muito, mas ele não se
moveu. Foi então que eu soube: minha melhor amiga viera dizer olá.

SOBRE NOSSA CAPACIDADE DE SENTIR EMOÇÕES


Não é incomum que as pessoas com demência experimentem as emoções de
maneira diferente após o diagnóstico. É difícil determinar quanto disso é causado
pela doença e quanto pode ser influenciado pela medicação prescrita na
esperança de desacelerar a progressão dela. Há pouquíssima pesquisa na área,
como descobri ao escrever esta seção, e a única coisa que posso apresentar são
hipóteses há muito suscitadas pela sociedade — até mesmo por profissionais e
acadêmicos — sobre a vida emocional daqueles diagnosticados com uma doença
no cérebro. O problema é que, como já foi mencionado muitas vezes, quando
recebemos o diagnóstico, as pessoas param de nos ver como seres humanos e
passam a enxergar somente a doença. Esse é um erro repetido várias e várias
vezes, mas nos parece que pouco tem sido feito para corrigi-lo.
Uma análise dos artigos de pesquisa sobre mudanças emocionais em pessoas
que vivem com demência revela muito pouco. Quase toda a literatura trata da
experiência emocional do cuidador, mesmo que sejamos nós a viver com a
doença, e me parece que, se as pessoas tentassem entender um pouco melhor
nosso lado emocional, haveria menos menções a “comportamentos
desafiadores”. Nós poderíamos nos sentir um pouco mais compreendidos.
Consultei minha amiga, a Dra. Jan Oyebode, professora de cuidados com a
demência da Universidade de Bradford. “Em termos de pesquisa formal, faltam
estudos que se dediquem a entender especificamente a experiência emocional
das pessoas que vivem com demência”, explicou ela. “Com base em minhas
várias décadas de contato clínico com essas pessoas, afirmo que a demência não
afeta a habilidade de experimentar toda a variedade de emoções humanas, mas
elas se manifestam de maneiras diferentes para cada um. Sabemos, através do
contato com pessoas com demência bastante severa, que elas podem ter
problemas para falar, rememorar e assim por diante, mas ainda as vemos
demonstrar felicidade, tristeza, raiva, frustração, contentamento e todas as
outras emoções que qualquer um de nós é capaz de sentir.”
De fato, em vez da hipótese de que a vida emocional de alguém com
demência é de importância secundária, acredito que as emoções podem ser
cruciais para preservar o senso de si mesmo, porque fornecem uma chave pela
qual retornar a memórias passadas. Em 1997, Marie Mills concluiu no artigo
dela que “as emoções associadas às experiências passadas parecem fornecer um
forte gatilho para recuperá-las e representam uma característica marcante dos
relatos, além de fornecerem a todos os informantes uma identidade narrativa”.
Consigo entender isso muito bem com uma breve incursão a meu quarto da
memória. As memórias com maior impacto emocional definitivamente ficaram
incrustradas mais firmemente a minha massa cinzenta. Ainda consigo conjurar a
tristeza que senti quando compareci a uma conferência em Londres e se
esqueceram de me chamar. Eu estava pronta para subir ao palco, com minhas
anotações em mão, e eles simplesmente não me anunciaram: pularam meu nome
e anunciaram o palestrante seguinte. Fiquei devastada por ser ignorada.
Falamos muito sobre neuroplasticidade, a capacidade de nosso cérebro de,
quando danificado em um local, utilizar outra rota para que sejamos capazes de
lembrar ou fazer coisas. Se a rodovia principal está fechada, usamos estradas
secundárias, e é isso que nosso cérebro faz, mesmo no caso de alguém com
demência.
O relatório de Mills concluiu que:

“[…] as características da emoção e da duração das memórias, que


estão associadas à memória autobiográfica, implicam uma relação
entre emoção e memórias de longo termo disponíveis em pessoas
mais velhas com demência. Além disso, certa força e durabilidade
são indicadas nas memórias autobiográficas emocionais dos
informantes, que estão ausentes em outros aspectos da memória.”

O relatório continua: “A memória pareceu declinar mais rapidamente que as


emoções e as respostas emocionais dos informantes.”
Outro estudo tentou explorar todo o espectro emocional de ser
diagnosticado com demência de início precoce. O estudo realizado por
Charlotte Berry em 2017 descobriu que quatro emoções eram mais
proeminentes: medo, raiva, tristeza e contentamento.

“As descobertas indicaram que os participantes experimentaram


sentimentos de medo e vulnerabilidade em resposta ao diagnóstico.
Os participantes sentiram raiva por não serem ouvidos, por tão
pouco ser feito por aqueles com demência e porque estavam sendo
estereotipados. Os participantes falaram de um estado mental mais
depressivo no qual lamentavam seu senso de si mesmo passado,
experimentavam isolamento e solidão e sentimentos de desamparo
e desespero. Finalmente, os participantes falaram de uma sensação
de contentamento em relação ao senso de si mesmo preservado, da
sensação de continuarem vivendo mesmo com demência e do desejo
de viverem no presente, tirando o máximo proveito do aqui e
agora.”

Perguntei a alguns de meus amigos sobre as experiências que tiveram:

“Desde o diagnóstico, ninguém pergunta como me sinto ou no que


estou pensando. Sinto-me despida de tudo, de ser uma pessoa, uma
mãe, uma avó. Só encontro voz quando estou com as pessoas na
mesma condição que eu. Tomo a medicação e me pergunto: será que
só encontro minha voz por causa dos remédios? Quando vejo outros
serem tratados pelos serviços de apoio como se não tivessem
sentimentos, eu falo por eles, porque me lembro de como me senti
logo após o diagnóstico.”
“Meu médico nunca me perguntou ou permitiu que eu falasse
sobre como me sinto. Se questiono as mudanças que estão
acontecendo comigo, é como se ele não quisesse entrar em
detalhes. Tudo se resume a ‘Ah, isso é só a demência’. Mas meu
neurologista disse que pode, sim, ser a demência, mas também
pode ser outra coisa. Nada é discutido profundamente ou em
detalhes. Alguns familiares sequer mencionam a demência, é como
se tivessem medo de falar sobre ela.”
“Os pesquisadores não estão interessados em emoções; eles se
interessam no que podem fazer para melhorar as coisas. Mas há, ao
mesmo tempo, a concepção errônea — muito errônea — de que
pessoas nos estágios intermediários e finais da demência, que
parecem calmas e não dizem nada, ou que talvez não possam se
comunicar verbalmente, são ‘vegetais’, mas, com base em nossa
limitada experiência nos primeiros estágios, sabemos que há muita
coisa acontecendo dentro de nós, mesmo que não consigamos
expressar. Não vejo por que isso seria diferente no caso de alguém
que simplesmente perdeu a habilidade de colocar seus pensamentos
em palavras.”

Acredito que somos emocionalmente funcionais até o fim, mas, como minha
amiga acabou de dizer, as pessoas não conseguem ver. No entanto, as emoções
são visíveis se você observar com cuidado. Penso que os profissionais ficam
constrangidos de falar conosco sobre nosso lado emocional porque não têm
respostas e, se minha pesquisa estiver certa, isso se dá porque ninguém está
fazendo as perguntas certas. Sei que minhas emoções ainda estão presentes após
o diagnóstico de demência, mas elas se manifestam de maneira diferente.

SOBRE A TRISTEZA
Alguns dias após a morte de Sylvia, eu estava com Sarah e sabia que estávamos
falando sobre algo triste, mas, um instante depois, me senti subitamente feliz. O
mesmo aconteceu enquanto caminhava com uma amiga: eu estava contando a ela
sobre a perda de Sylvia, o que a deixou triste, porém, bem quando ela ia fazer
mais perguntas, passei para um assunto feliz e me senti bem novamente. Deve
ser muito estranho para os outros, mas, para mim, com essa nova maneira de
pensar, de alguma maneira parece natural.
Muitas pessoas que conheço morreram desde meu diagnóstico e, sim, fiquei
triste. Sylvia, porém, foi a primeira pessoa realmente próxima que perdi, e foi
difícil lidar com a tristeza da perda, mas não chorei tanto quanto achei que iria.
Chorei ao escrever posts sobre ela em meu blog e certamente chorei quando
recebi a notícia da morte e quando as filhas dela entraram em contato comigo.
Contudo, as lágrimas não duraram muito tempo. A demência me deu a
habilidade de ter breves momentos de pesar, seguidos rapidamente por
memórias extremamente felizes.
Curiosa para saber mais, perguntei a meus amigos se a experiência de sentir
tristeza havia mudado para eles. Embora as respostas tenham sido diferentes,
confirmei que, como eu, o relacionamento deles com as emoções em geral
mudou após o diagnóstico. Eis o que eles tiveram a dizer:

“Para mim, a tristeza mudou dramaticamente. Se algo triste


acontece, posso chorar por dias. A tristeza gruda em minha mente e
dura mais que a felicidade. No outro dia, estava andando pela rua
com meu marido e um rabecão passou por nós. Do nada, comecei a
chorar. Meu marido perguntou qual era o problema e respondi: ‘É
triste saber que há uma pessoa morta lá dentro.’ Normalmente, não
faria isso. Todo mundo sabe que é triste ver alguém nessa situação,
mas é como se minhas emoções tivessem se amplificado.”
“Eu tenho períodos — cinco minutos, uma hora, um dia inteiro
— nos quais sou tomada pela tristeza e não sei por quê. Tenho
vontade de chorar e sinto as lágrimas se acumulando. Se você está
triste, está triste porque alguma coisa aconteceu, mas esse choro e
essa emoção instantânea me parecem totalmente diferentes.
Imagine-se inconscientemente na posição da pessoa que está
descrevendo algo triste e esse algo te sufoca; você não consegue
evitar entrar na cabeça da pessoa naquele momento.”
“Já não sinto tristeza. Sou mais emotiva e choro por coisas que
não teriam me incomodado antes. Choro por qualquer coisa. Mas
não sinto tristeza como antes; para mim, há uma diferença entre
estar triste e chorar. Fico mais triste pelas outras pessoas que por
mim mesma, mas sempre fui assim. A empatia ainda está presente.”

SOBRE O MEDO
A empatia parece se intensificar em todos nós que vivemos com demência. E,
todavia, existe a concepção errônea de que aqueles que vivem com demência
não sentem empatia como antes. Em 2016, pesquisadores da Neuroscience
Research Australia estudaram pessoas com Alzheimer e demência
frontotemporal, mais comumente conhecida como doença de Pick. Essa
demência em particular se tornou mais conhecida graças ao trabalho do
comediante e escritor David Baddiel, cujo pai vive com a doença. O estudo
concluiu que pessoas com Alzheimer e demência frontotemporal têm reduzida
empatia cognitiva, a capacidade de entender e valorizar as emoções alheias,
embora isso possa ser consequência do declínio cognitivo geral. No entanto, no
grupo de pessoas com demência frontotemporal, houve significativa diferença na
capacidade de compartilhar as emoções e experiências emocionais alheias, algo
conhecido como empatia afetiva. As neuroimagens revelaram que a perda da
empatia nesses participantes se devia a “corpos de Pick” na parte do cérebro que
é essencial para o funcionamento social.
Infelizmente, quando a pesquisa foi publicada, as manchetes diziam
“Demência causa perda de empatia”, e isso levou a muitas concepções errôneas.
As pessoas esquecem que há mais de cem tipos diferentes de demência. Você
jamais generalizaria as pessoas que têm câncer a um grande e único grupo, e o
mesmo deveria ser feito com as que têm uma doença cerebral complexa. Entre
mim e meus amigos, embora nenhum de nós tenha doença de Pick, há altos
níveis de empatia pelos outros. Aliás, é comum que a tristeza relacionada a nós
mesmos tenha diminuído ou desaparecido, talvez como resultado de aceitarmos
que não temos controle sobre o futuro.
Essa perda de controle sobre o futuro muitas vezes é encarada como algo
negativo por aqueles que vivem com demência, e definitivamente contribui para
o medo que sentimos quando somos diagnosticados. Como já contei, em meu
caso o medo foi perpetuado por imagens, expressões e percepções negativas
sobre a vida de quem tem a doença. Minha primeira experiência real com a
demência foi com o meu diagnóstico, então eu não tinha uma referência de
imagens mentais para combater aquelas que a sociedade me fornecera. O temor
da demência é tão real que houve estudos sobre ele, sobre a “resposta emocional
à ameaça percebida de desenvolver demência”, de acordo com um relatório
realizado em 2012. Ele cita uma pesquisa de 2008 desenvolvida pelo Alzheimer’s
Research Trust da Grã-Bretanha, a qual descobriu que a demência estava atrás
apenas do câncer entre as doenças mais temidas:
“De modo geral, 26% dos inquiridos relataram ter mais medo da
demência que de qualquer outra condição. Entre aqueles com mais
de 55 anos, a demência foi a condição mais temida, com 39% dos
entrevistados relatando que tinham mais medo da demência e 30%
relatando que tinham mais medo do câncer.”

Por causa da imagem social da demência, esse medo obviamente é


perpetuado, assim como o medo da palavra “câncer” anos atrás. Embora o câncer
ainda seja temido, as pessoas sabem que é possível ter uma vida após o
diagnóstico e que os tratamentos são cada vez mais bem-sucedidos. Muitos
desses tratamentos agora estão disponíveis simplesmente por causa da
quantidade de dinheiro investida em pesquisas, o que não acontece no caso da
demência — e por isso a reputação da doença ficou parada no tempo. Para os
que vivem com o diagnóstico, parece que as organizações voluntárias que se
dedicam ao Alzheimer focam mais os cuidados que a cura. As empresas
farmacêuticas tentam há anos encontrar essa elusiva cura, mas acho que qualquer
descoberta revolucionária provavelmente ocorrerá no início da doença — talvez
até mesmo vinte anos antes de os sintomas começarem a surgir —, quando
medicamentos podem ser empregados para reverter o progresso enquanto ela
ainda é apenas uma semente.
O relatório continua, afirmando que as pessoas possuem a tendência de ter
uma visão “excessivamente pessimista” da vida com demência:

“Em uma amostra de 186 adultos judeus e árabes sem histórico


familiar de Alzheimer, o pior estresse emocional hipotético que os
participantes esperavam sentir se desenvolvessem a doença foi de 4
em uma escala de 5 pontos […] Uma proporção significativa de uma
ampla amostra de australianos de terceira geração (27%) e
australianos com ascendência italiana (54%), grega (60%) e chinesa
(46%) indicou que pessoas com demência já não desfrutavam da
vida.”

Essas percepções explicam por que aqueles que recebem o diagnóstico


sentem tanto terror de um futuro incerto. O fato de existir um fenômeno
chamado “temor da demência” nos diz que estamos falando da maneira errada
sobre a vida com a doença. O relatório mostra como, em toda condição
potencialmente fatal:

“[…] acredita-se que um nível moderado de preocupação/medo


promova o engajamento em comportamentos saudáveis como
exames preventivos, ao passo que pouco medo leva à negação e à
falta de atenção e medo em excesso pode levar à evitação, pois as
pessoas não querem que seus medos sejam confirmados. Alinhados a
essa hipótese, múltiplos estudos sugerem que um nível moderado
de preocupação com o câncer motiva comportamentos de
prevenção.”

Os autores do relatório questionam se isso também se aplicaria ao temor da


demência, mas, infelizmente, sabe-se tão pouco sobre a doença que é impossível
ter conhecimento de como evitá-la, com exceção de levar uma vida saudável,
com uma boa dieta e exercícios regulares — embora esse fosse meu modo de
vida antes do diagnóstico.
O relatório discute a existência de um “viés negativo” em relação à qualidade
de vida daqueles que vivem com demência. É por isso que tantos de nós
tentamos compartilhar nossa vida através de blogs e plataformas de mídia social:
sentimos que, se pudermos desmentir alguns desses mitos, o diagnóstico
positivo talvez tenha menos impacto negativo.
Perguntei a meus amigos sobre as mudanças no relacionamento deles com o
medo desde o diagnóstico:

“Quando eu era criança, tinha medo de tudo; nunca queria fazer


nada porque sempre havia perigo. Mas isso acabou. Não consigo
pensar em nada de que tenha medo.”
“Não tenho medo do futuro. Eu costumava ter — no início da
demência, tive medo. Temi que minha vida fosse controlada por
outras pessoas. Mas não permiti que fizessem isso. Não tenho medo
do futuro; meu único medo é terminar em uma casa de repouso. É
meu único medo, mas eu fiz planos, apesar de não saber se serão
respeitados. Não quero ir para uma casa de repouso; não quero que
a perda de controle seja total.”
“Não acho que eu sinta mais ou menos medo. Não tenho medo
de nada, exceto, talvez, de perder a autoconfiança. Também não sei
como lidaria com a situação se algo desse errado e eu estivesse a
quilômetros de casa.”

Ainda me lembro de como é o medo, como são aqueles momentos em que o


coração fica disparado, como é se sentir congelada, as pernas enfraquecendo sob
a pressão de dar o próximo passo: fugir ou lutar. O que me causava medo na
época? Parece ridículo agora, mas o mais frequente era me deparar com um
cachorro. A súbita sensação dos cabelos se arrepiando em minha nuca, meu
corpo formigando de adrenalina. Adoro cachorros agora, mas, na época, eu
atravessava a rua para não chegar perto de um — hoje em dia faço o oposto e
atravesso a rua para encontrá-los. Aqueles medos parecem irracionais agora, mas
eram reais para mim, causados pela memória de um cachorro preto me
perseguindo em minha infância enquanto eu pedalava por minha vida — ou, ao
menos, foi o que pareceu.
Não me lembro de quando aconteceu, mas me lembro da sensação do medo
desaparecendo. Foi um alívio me libertar dessa emoção, liberar espaço e
permitir animais em minha vida. Por que a demência tirou esse fardo de meus
ombros? Eu sempre disse que foi por eu ter enfrentado o medo do diagnóstico,
que nada poderia ser pior que isso, como confirmam as estatísticas do relatório
sobre o temor da demência. Não estou certa, porém, de que foi somente isso.
Eu tinha o mesmo medo do escuro, outra coisa trazida da infância e que
permaneceu comigo durante a fase adulta. Eu corria para acender as luzes
quando chegava em casa nas noites de inverno. Agora entro em casa e esqueço,
às vezes tropeçando na escuridão, mas sem sequer pensar em acender uma luz
para me guiar. Tenho prazer em olhar para a escuridão do lado de fora da janela,
para o céu da meia-noite, a lua, as estrelas cintilando através do vidro. Minhas
cortinas estão sempre abertas. Naquela época, porém, elas ficavam fechadas e o
interior da casa era iluminado como uma árvore de Natal. Eu evitava até mesmo
sair à noite; o medo de um ataque estava sempre presente em minha mente, que
conjurava todo tipo de histórias sobre quem estaria me esperando nas sombras.
Agora evito a escuridão por razões diferentes. A demência cria sombras
diferentes, que surgem como aparições confusas. Os tons das calçadas e ruas se
fundem, o que significa que tropeço o tempo todo. Contudo, às vezes, minha
necessidade de ver a lua supera a preocupação e eu tolero a confusão para
observar a constante e confiável permanência dela.

SOBRE A ANSIEDADE
O medo e a ansiedade parecem, de alguma forma, ser entremeados: talvez
fiquemos ansiosos sobre as coisas que mais tememos. Sem esses medos, parece
haver menos sobre o que sentir ansiedade. Agora eu e meus amigos nos
preocupamos com a perda de controle. Tememos ser retirados de nossa casa e
colocados em casas de repouso. Tememos ultrapassar o limite final. No entanto,
é muito humano se preocupar com a possível perda de si mesmo. O mesmo
artigo sobre o temor da demência que já mencionei abordou esse assunto:

“[…] ao contrário de outras doenças fatais, a demência ameaça não


somente o senso de si mesmo físico, como também aspectos do
“senso de si mesmo simbólico”, o próprio aspecto da identidade que
diferencia os seres humanos dos outros animais. A teoria da gestão
do terror argumenta que as pessoas precisam se distinguir dos
animais e buscam uma existência mais elevada e significativa […] Na
cultura ocidental, as capacidades cognitivas, a autonomia e o
controle interno são aspectos centrais desse senso de si mesmo
simbólico. Estudos qualitativos revelaram que tanto os participantes
saudáveis quanto os com demência enfatizaram o tema da perda da
independência, da identidade e do controle, em oposição a aspectos
mais físicos da demência. Assim, ela parece ameaçar a própria noção
de identidade dos indivíduos.”

O tempo geralmente é o gatilho que me deixa mais ansiosa. Se devo estar em


algum lugar ou então participar de uma chamada do Zoom e ainda não recebi o
convite, minha cabeça começa a girar enquanto assisto ao relógio tiquetaqueando
rumo ao horário marcado. Antes, quando as pessoas se atrasavam, isso apenas
me incomodava, mas o atraso era um problema delas, não meu. Eu sempre
chegava na hora. Agora, a ansiedade sobre o tempo pode ser esmagadora. Odeio
ir às consultas porque minha médica está sempre atrasada. Tento me manter
calma na sala de espera, dizendo a mim mesma que ela se importa tanto com os
pacientes que sempre lhes dedica o tempo de que necessitam, mas algo supera
minha lógica. Conforme vejo os ponteiros do relógio passando do horário da
consulta, pensamentos irracionais começam a invadir meu cérebro: será que ela
se esqueceu de mim? Será que não sabe que estou aqui esperando? Será que me
lembrei de marcar a consulta? Acontece exatamente a mesma coisa quando o
táxi se atrasa e eu imediatamente começo a me perguntar se me esqueci de
chamá-lo ou se foi ele quem se esqueceu da corrida. Acho que isso diz muito
sobre minha falta de autoconfiança, porque não posso contar com minha
memória para saber se fiz ou não alguma coisa. Também posso esquecer que
estou esperando alguma coisa e começar a fazer outra.
Consigo lidar com a situação se tiver informações de antemão, como quando
o funcionário da estação avisa que o trem chegará oito minutos atrasado. É
quando não tenho uma resposta ou quando o temido aviso de “atrasado” aparece
na tela sem informar o novo horário de chegada — ou se de fato haverá uma
chegada — que começo a me sentir ansiosa. O ônibus do vilarejo costumava me
causar a mesma ansiedade, e sempre porque eu duvidava de mim mesma: será
que eu havia me confundido e perdido o ônibus? Desde que a empresa
introduziu um aplicativo para o rastreamento dos ônibus, no entanto, estou
muito mais calma.
Novamente, com a falta de pesquisas sobre demência e ansiedade, fiz um
levantamento entre meus amigos para conhecer as experiências de cada um:

“Já não fico ansiosa com as coisas. Estou mais agitada e menos
paciente comigo mesma do que costumava ser. Tenho muita
paciência com todo mundo, mas não comigo. Se estou fazendo algo
e não dá certo, fico muito irritada, ao passo que antes me mantinha
calma.”
“Estou mais equilibrada agora. Não sei se foi por causa do
diagnóstico ou porque parei de trabalhar, então não tenho mais as
ansiedades relacionadas ao trabalho. Sempre tive pouca
autoconfiança; eu costumava me preocupar o tempo todo com o
que as pessoas estavam pensando. Quando estava dirigindo ou
andando pela calçada, ficava sempre olhando ao redor, me
perguntando: será que estão olhando para mim? Será que estão falando de
mim? Eu não vivia muito bem, mas sei que minha ansiedade e falta
de autoconfiança tinham a ver com minha infância. Mas agora estou
mais calma. Me sinto bastante feliz com minha vida. Me sinto à
vontade, nem que seja porque coloquei todos os medos e
aspirações, toda aquela coisa de ‘Posso mudar o mundo’ em uma
caixa em algum lugar. Isso é passado; não vai acontecer. É difícil
aceitar, mas acho que é parte importante da razão pela qual nossos
sentimentos se acalmam um pouco quando temos demência. Já não
sentimos a pressão do futuro. Eu me importo menos com as coisas;
se não estiver em meu coração ou minha cabeça, não está
acontecendo. Então não finjo que está.”
“Eu costumava me preocupar e tentar consertar as coisas para
todo mundo, mas tendo a não me preocupar com nada agora. Fico
ansiosa, e então penso: não há nada que eu possa fazer, e aí não tento
consertar as coisas. Sofri um acidente grave antes da demência —
fui atropelada por um carro — e, daquele momento em diante,
aprendi que as coisas estavam fora de meu controle. Eu me
preocupo com minha família, mas não com a vida ou comigo
mesma. Não me preocupo com meu futuro, ao passo que antes
costumava me preocupar com isso.”

O que meus amigos dizem ressoa em mim. A demência nos ensinou que
algumas coisas estão fora de nosso controle e que a ansiedade nada fará para
mudar isso.

SOBRE A RAIVA
Há algumas mudanças na forma como experimento emoções, e agora acredito
que se devem à doença e às modificações que ela produziu em meu organismo.
Desde o diagnóstico, sempre imaginei o interior de meu cérebro como uma
rede de sistemas rodoviários: há viadutos e estradas, rotatórias, intersecções e, é
óbvio, becos sem saída. O que a demência fez a esse sistema altamente
complexo foi adicionar vários pontos interditados. Isso significa que meus
pensamentos precisam pegar desvios, alguns são rápidos, outros — a maioria —
muito lentos, e, às vezes, desvios que simplesmente não levam ao destino
desejado. Dos bilhões de células que compõem minha rede de transporte, talvez
somente alguns poucos milhares tenham sido afetados pela demência — a razão
pela qual consigo fazer tantas coisas sozinha —, mas pode ser frustrante se um
dos lugares para o qual quero viajar em meu cérebro foi prejudicado por essas
interdições. Cada vez mais, conforme a doença progride, estou percebendo o
surgimento de mais pontos interditados e becos sem saída, e minhas emoções
foram um dos pontos afetados. Sei que os destinos ainda estão lá em meu
cérebro — ainda sinto tristeza e alegria sem qualquer tipo de obstáculo —, mas
alguns parecem ser inalcançáveis agora, independentemente do desvio
inteligente que eu pegue para tentar chegar a eles.
Há alguns meses, passei por uma situação na qual sabia que devia sentir raiva.
Já faz tempo que aqueles com demência reclamam da falta de serviços para nos
ajudar no momento do diagnóstico, da falta de pessoas habilitadas para nos
mostrar que ainda é possível viver com a doença. Nossa frustração com os
médicos chegou a tal ponto que eu e meus amigos do grupo Minds and Voices
decidimos criar um curso para as pessoas recém-diagnosticadas, a fim de ajudá-
las a entender como é viver com demência. Queríamos dar a elas alguma
esperança, em vez daquela dispensa após um diagnóstico a respeito do qual “nada
se pode fazer”. Chamamos nosso curso de “Uma boa vida com demência”. Ele
contaria com seis semanas de apoio emocional e prático e não chegaria
realmente ao fim, já que a pessoa poderia se unir a nosso grupo regular, se assim
desejasse.
Conseguimos financiamento do Clinical Commissioning Groups e apoio do
conselho do condado. Contudo, rapidamente percebemos que não seríamos
apoiados pelos médicos. Aqueles que atendiam os recém-diagnosticados não os
encaminhavam a nós, mesmo sabendo que estávamos de prontidão para ajudar.
Eu sabia que devia ficar furiosa. Meus pensamentos tomaram o rumo, outrora
regular, em direção ao departamento da raiva em meu cérebro. Entretanto, eles
simplesmente não conseguiram chegar até lá. Foi como se a emoção estivesse
dentro de uma caixa de aço impenetrável. Em vez disso, minha mente logo
assumiu uma rota mais familiar, com mais chances de chegar ao destino. E assim
desembarquei no departamento da tristeza. Eu sabia que havia algo faltando em
mim, parte de minha completude, a variedade de emoções que me tornava
humana. Eu queria ficar com raiva, eu sentia que devia ficar com raiva. No
entanto, simplesmente não conseguia senti-la.
O mesmo sistema de interdição também pode trabalhar em meu favor. Vejo
outras pessoas ficarem com raiva e percebo que esse é um uso infrutífero de
energia, que o resultado é imutável, que elas só causarão mais danos a si mesmas
enquanto alimentarem a raiva que sentem. Fico frustrada, porém, quando sei
que algo poderia mudar se eu canalizasse minha raiva para algo produtivo. A
verdade é que, para mim, a raiva simplesmente já não está lá.
Eu me perguntei se alguns de meus amigos que vivem com demência
passaram pela mesma experiência e então, questionando-os, estas foram as
respostas:

“Já não fico com raiva, sinto mais frustração. A raiva parece ter
desaparecido completamente. Sou bastante calma agora. Meu
marido fica com raiva das coisas e eu digo: ‘Não adianta ficar com
raiva. Esqueça isso.’ É assim que as coisas são agora. Não vejo
sentido em ficar com raiva ainda que antes eu também costumasse
ficar.”
“Fico zangada com as menores coisas, até as mais idiotas. Sempre
tive pavio curto, mas agora as menores coisas conseguem me
enfurecer. Por exemplo, o zíper de um de meus casacos enguiçou.
Tentei puxá-lo e não funcionou. Tentei mais uma vez e então
novamente, e, dessa última vez, quase rasguei o casaco. Não consigo
controlar a raiva tão bem quanto antes.”

Talvez, como com tantas coisas, muito dependa de nossa personalidade antes
da demência, embora eu saiba que costumava reclamar, gritar e sentir a
adrenalina correndo por minhas veias. Contudo, devo sentir falta dessa sensação
ou a demência me fez um favor? Na maioria das vezes, fico aliviada por já não ter
acesso à raiva. Isso deixa minha vida muito mais simples. Quando se tem
demência, precisa-se que tudo seja objetivo e simples: nós adotamos o preto e
branco que a vida tem a oferecer, pois os tons de cinza tornam tudo muito
confuso. Saber que me sentirei feliz, triste ou contente basta para mim — em
grande parte do tempo.

SOBRE A CULPA
A culpa frequentemente parece andar de mãos dadas com o diagnóstico de
demência. Isso é muito estranho, já que estamos acostumados a sentir culpa
apenas se deliberadamente fazemos algo errado. Só conheço um tipo de
demência, a síndrome de Wernicke-Korsakoff, na qual se pode dizer que o
paciente contribuiu para o declínio da própria saúde — a síndrome está
relacionada ao álcool. No entanto, ainda assim, ela é consequência de um
comportamento, não algo que as pessoas busquem ativamente. Então por que a
culpa preenche um espaço tão grande em nossa vida?
Minha primeira experiência foi no momento do diagnóstico: senti uma onda
de culpa em relação a minhas filhas, por ter roubado delas nosso futuro juntas —
mesmo sabendo que eu simplesmente dera azar. Até aquele ponto, havíamos
vivido alegremente independentes umas das outras, cada uma com as próprias
aventuras. Eu era a mãe, e me fazia ouvinte e oferecia refúgio quando as coisas
davam errado, mas, fora isso, estava feliz por minhas meninas estarem vivendo a
própria vida enquanto eu vivia a minha. A culpa chegou quando minha mente
deu um salto para o futuro, para imagens em que sou incapaz de ajudá-las no
futuro e também delas cuidando de mim, em vez de o contrário.
Diferentemente de muitas pessoas, não senti culpa por meu futuro imediato.
Eu não tinha um parceiro em casa que precisaria viver comigo ou fazer
adaptações para me ajudar a lidar com a doença que havia invadido minha vida.
O fato de que eu não partilhava sonhos com alguém também ajudou, já que não
existia algum que eu pudesse estragar. Desde então, ouvi muitos amigos falarem
sobre o súbito “fardo” que se tornaram para o parceiro ou parceira, esquecendo-
se de que não haviam se tornado pessoas diferentes do que eram no dia anterior.
A parceria ainda está lá, os desafios a ser enfrentados apenas serão diferentes.
Contudo, isso não acontece em qualquer casamento? A demência pode fazer
com que esses desafios pareçam surgir antes do esperado. Vi pessoas que, como
eu, haviam se projetado em um futuro que já não existia; em vez de lembrarem a
si mesmas o mantra de que “há vida a ser vivida com demência”, a mente delas
foi bombardeada por imagens da “viagem da vida delas” que agora não fariam ou
dos excitantes planos de aposentadoria que agora seriam substituídos por algo
totalmente mais tranquilo. Eu sei que é nesses momentos, quando essas imagens
invadem a mente, que a culpa surge: ela nos lembra do que tiramos dos outros.
Porque este é o ponto: não é tanto sobre o que perdemos, mas sobre o impacto
que a doença terá naqueles que amamos.
Testemunhei isto muitas vezes: o marido que ainda deseja levar uma xícara de
chá para a mulher na cama pela manhã, mas, ao chegar à cozinha, não tem ideia
de qual é o processo e precisa que ela o ajude. Há perdas cotidianas com que
lidar, assim como perdas maiores. Tenho a sorte de não passar por isso. Meus
amigos solteiros concordam: “Se esqueço algo, esqueci, não importa para mais
ninguém.”
Conheci pessoas que fazem os parceiros se sentirem mal por todas as coisas
que já não são capazes de fazer, mas, para cada uma delas, sei que há outras que
jamais pensariam em descrever a pessoa que amam e com quem dividem a vida
como “fardo”. Um casal que conheci recentemente conversou comigo sobre esse
tema. O homem, que vivia com a doença, falou sobre a tragédia de não poder
modificar a própria situação: “Não posso evitar ter demência, e isso é muito
cruel.” Ele disse que não queria colocar a adorável esposa na situação de ser “o
homem e a mulher da casa”. Ela, no entanto, insistiu: “Nossos votos de
casamento diziam ‘na saúde e na doença’; só precisamos viver um dia de cada
vez.”
Um casal de amigos meus me explicou como a culpa afeta o relacionamento
deles. Bob, que vive com demência, falou de seu contentamento em saber que a
mulher, Sue, estará lá para apoiá-lo, mas isso também o faz se sentir culpado pela
pressão que é posta sobre ela. “Não é assim que deveria ser”, disse ele. Sue, em
contrapartida, disse que precisar cuidar das coisas “me deixou mais confiante em
saber como as coisas funcionam e como consertá-las quando a autoconfiança de
Bob desaparece”. Ela passou a ver como positivas as mesmas coisas sobre as quais
ele sente culpa. Outra amiga falou sobre a culpa de sempre ter cuidado das
tarefas domésticas e agora o marido estar encarregado disso.
Eu me lembro de sentir culpa de forma mais intensa no início. Uma amiga,
diagnosticada mais recentemente, disse que os sentimentos dela estavam
centrados no papel que cumpria como mulher, mãe e avó:

“No momento, meu sentimento de culpa é muito intenso. Em tudo


que digo ou faço, sinto culpa por ter demência. Sinto que estou
demandando demais de meu marido; não planejamos essa situação
e, às vezes, não consigo parar de pensar nisso. Suponho que me
sinto ainda mais culpada por esse ser meu segundo casamento e só
estarmos juntos há 14 anos; nosso casamento é relativamente
recente. Sinto culpa porque ele poderia ter se casado com qualquer
mulher, mas se casou comigo e agora precisa cuidar de mim. Mas
ele sempre diz que não teria desejado nada diferente. Sinto culpa
por não ajudar meus filhos como antes, cuidando dos netos, e isso é
algo que me consome e entristece. Nesse momento, a culpa que
sinto é terrível.”
SOBRE A FELICIDADE
Também me acostumei a outro tipo de culpa: a culpa por sentir felicidade. Soa
estranho, mas, às vezes, nesse mundo que a demência me oferece — livre das
pressões sofridas pelos outros; uma fuga do círculo vicioso no qual as pessoas
ainda seguem desesperadamente —, meu contentamento com o agora e minha
habilidade de encontrar o melhor que a doença tem a oferecer fazem com que eu
me sinta culpada. Vivo com demência há muitos anos e, como disse muitas
vezes, a escolha por ver o copo meio cheio é uma das muitas maneiras pelas
quais pareço lidar com ela melhor que os outros. Entretanto, sei que não é tão
fácil para todos. Aprendi a encontrar prazer nas menores coisas. Quando volto
para casa e entro no Twitter, vendo a tragédia do mundo lá fora — desastres
causados pelo homem, situações de crueldade ou simplesmente ler os
pensamentos daqueles que estão sofrendo com a doença naquele dia —, sinto
culpa pela felicidade que encontrei para mim. Nesses momentos, desejo poder
dividi-la com essas pessoas. Entendo que minha atitude positiva irrita aqueles
que têm um dia difícil. Para mim, porém, é um tipo muito estranho de culpa.
No entanto, será que eu descreveria a felicidade da mesma maneira que
costumava fazer antes da demência? A felicidade que via em meu futuro quando
estava sentada a minha mesa no trabalho, desejando que o fim de semana ou
mesmo a aposentadoria chegasse de uma vez, certamente mudou. Atualmente, a
felicidade se manifesta em proporções menores. Eu nunca fui materialista; nunca
sonhei com objetos, carros chiques ou casarões. Contudo, talvez tenha sonhado
com férias exóticas ou em correr pela beira-mar à noite. Sonhei em viajar pelo
mundo, visitando países distantes. Lógico que precisei abandoná-los. Então o
que me faz feliz agora? Um dia em que minha cabeça está calma, ouvir os
pássaros cantarem, sair para caminhar, registar em uma foto um esquilo me
espiando do tronco de uma árvore. Aprendi a ver beleza nesses minúsculos
momentos, em vez de focar o quadro geral que, por alguma razão, sempre me
deixava querendo mais.
Sinto animação com a perspectiva de visitar Keswick, mas ela rapidamente se
transforma em contentamento. A felicidade, ou animação, é mais como uma
borboleta que voa pelo jardim em um dia de verão, impossível de capturar. O
contentamento, porém, parece algo que posso segurar na palma da mão e
examinar, sentindo mais prazer com cada olhar. Até mesmo minhas amadas
viagens a Keswick são cheias de preocupação com a chegada do táxi ou o horário
do trem. Entretanto, nada estraga o contentamento do instante em que
finalmente chego ao lago e me sento em meu banco favorito, contemplando a
ondulação da água.
Perguntei aos meus amigos se o relacionamento deles com a felicidade
mudara desde o diagnóstico:

“Não me sinto feliz, a emoção da felicidade desapareceu, mas sinto


mais alegria, contentamento. Aproveito mais as coisas. Estou mais
contente com minha vida. Tenho mais tempo para simplesmente
sair de casa. Paro mais, ouço mais e olho mais o entorno hoje em
dia. Isso me traz alegria.”
“Coisas simples me fazem feliz agora, ao passo que antes eu era
bastante materialista. Sempre fiz questão de ter um carro esporte,
agora nem penso mais nisso. Hoje em dia o que me traz alegria são
sempre as mesmas coisas, como caminhar pela praia — eu ficaria
devastada se não pudesse mais fazer isso. O artesanato também me
dá prazer. Posso me perder durante o momento de produção. Fiz
algo para mim que queria fazer e que gostei de ter feito. Tudo que
aprecio agora envolve a natureza, sair de casa e fazer coisas.”

Como você pode ver, a felicidade, para mim e muitos de meus amigos,
envolve a atenção plena e a apreciação do momento presente, porque o passado
frequentemente é um borrão e o futuro é incerto. Entretanto, será que algo
realmente mudou? Não deveríamos todos viver no presente? O problema é que
perdemos a prática. Pense em quanto prazer uma criança sente ao examinar uma
concha minúscula na praia: nada a distrai dessa tarefa. Ao crescermos, porém,
perdemos o hábito de focar uma coisa de cada vez e deixamos que o desejo por
outras estrague o que estamos vivendo no momento. Nós nos concentramos no
que falta, não no que temos. Mais que tudo, a demência me ensinou que
precisamos retornar ao agora.
O relatório de 2017 de Charlotte Berry sobre a demência de início precoce
analisou essa mesma ideia de contentamento no momento presente:

“Uma das experiências que os participantes relataram


entusiasticamente está relacionada ao valor do tempo no qual a
demência não existia e durante o qual eles ficaram profundamente
É
imersos no presente. É possível que a experiência que os
participantes passaram a achar importante possa ser entendida no
contexto de um ‘estado de fluxo’.”

Aparentemente, o “estado de fluxo” — ou apenas flow — ocorre quando a


pessoa está completamente absorvida em uma tarefa, como, por exemplo, o que
minha amiga mencionou em relação ao artesanato e o que eu afirmei sentir em
relação às fotografias. Quando está nesse estado de fluxo, a pessoa não sente a
existência da demência porque está focada na tarefa que está desempenhando
naquele momento presente. O relatório afirma:

“Para os participantes, a habilidade de manter a concentração no


presente e reduzir a autoconsciência significa que são capazes de
passar algum tempo longe dos medos e das ansiedades que sentem
em relação ao futuro. Além disso, ser capaz de ‘fazer’ alguma coisa
e experimentar essa sensação foi algo que os participantes acharam
recompensador.”

Quando minhas filhas nasceram, tudo o que desejei para o futuro delas foi
saúde e felicidade. Nada parecia tão vital quanto isso; todo o restante se seguiria.
Recentemente, elas me deram um cupcake em meu aniversário, com uma vela
em cima:
— Faça um pedido — disseram.
Eu apaguei a vela e, dessa vez, silenciosamente pedi saúde e felicidade para
mim mesma.
No entanto, depois que elas foram para casa, olhei para minha sala e, através
da janela, vi a pastagem do outro lado da rua. O crepúsculo tomava forma e as
árvores estavam banhadas em uma luz alaranjada. Eu me senti feliz, como
frequentemente me sinto observando essa cena. Uma de duas coisas não é nada
mal, pensei comigo mesma, me lembrando do pedido que havia feito. A questão
é que nunca me considerei doente, apesar da demência que torna meu cérebro
instável e pouco confiável. Não me sinto doente e não sinto dor.
Talvez a realização de meu pedido se resuma à percepção do que essas
palavras significam para cada um de nós. Eu enfrento desafios todos os dias, mas
eles talvez não sejam maiores que os enfrentados por meus vizinhos. Jamais
conhecemos realmente a batalha pessoal que alguém pode estar enfrentando.
Assim, tive que me perguntar se as coisas que pedi eram realmente necessárias
ou se já haviam sido concedidas.
ATITUDE

Estou olhando pela janela do meu quarto, onde passo a maior parte do dia, e
tudo está igual: o topo alto das árvores oscila ligeiramente contra o céu branco
de meio de inverno e, do lado de dentro, é possível ouvir o zumbido baixo do
sistema de aquecimento central. Estou quentinha e confortável. Entretanto,
minha cabeça é uma tela em branco. Olho para meus dedos se movendo no
teclado e para as palavras que surgem na tela. Leio-as, mas não sinto qualquer
resposta se mover dentro de mim. Em algum lugar, presa dentro de mim, sei
que há uma versão minha que faz essas palavras surgirem na tela — sei que não
pode ser outra pessoa —, mas, de qualquer forma, as palavras parecem
separadas de mim, como se eu estivesse olhando sobre o ombro de outra pessoa
enquanto ela digita. Talvez, de certa maneira, eu esteja.
Momentos assim já foram episódios dramáticos que se quebravam como
ondas em meu cérebro a cada poucas semanas, rearranjando alguns pensamentos
e afogando outros. Agora, contudo, eles ocorrem tão regularmente — duas ou
três vezes por semana — que me acostumei com essa perturbação em minha
vida. Já conheço os sinais, mas a onda ainda me derruba, até parecer que estou
olhando para o mundo sob a superfície espelhada da água. Ele está próximo e
tudo parece igual, mas é inalcançável para mim.
Observo meus dedos enquanto eles se movem pelo teclado, a última parte de
mim ainda livre da demência, ainda vivendo livre do que é ditado pela doença.
Qual é o segredo? Como eles são capazes de se comunicar com meu cérebro?
Gostaria de saber a resposta, mas sei que não devo questionar o fato de a
demência tê-los poupado — até agora. Enquanto o restante de mim está vazio,
eles conseguem expressar como me sinto. E então, de repente, os dedos se
cansam e desaceleram antes de parar completamente. As palavras já não surgem
na tela. Estou sozinha.
Percorro o quarto com os olhos, dizendo a mim mesma que talvez — assim
como eu — eles só precisem de tempo. Olho para o topo das árvores
novamente, encorajada por ainda me lembrar da palavra “árvore”. Entretanto,
algo está ausente. Não sei bem o quê. Minha mente tenta identificar o elo
perdido, mas nenhum pensamento me ocorre, não inicialmente, nada a não ser
esse branco. Até que, sim, entendo — ou alguma parte de mim entende, porque
meus dedos subitamente começam a digitar novamente —, e vejo a palavra
ausente surgir na tela: “sorriso”. Estou consciente de que meu rosto está
impassível, meus lábios são uma linha reta e não há indicação, para o mundo
externo, de que estou presente nesse momento. Fui reduzida à casca de uma
pessoa. Se estivesse sentada na poltrona em frente à minha, sei que qualquer
pessoa veria somente essa casca.
O que está faltando é alguma emoção verdadeira.
Olho ao redor do quarto, prestando atenção no zumbido, com o curto-
circuito no interior de meu cérebro seguindo mesmo o menor dos movimentos.
Meus olhos pousam sobre as fotografias no parapeito da janela. A centelha do
reconhecimento surge do lodo da demência. Eu as conheço bem: lá estão minha
filha Sarah e minha outra filha, Gemma, no dia em que se casou com Stuart.
Normalmente, meus olhos só precisam vê-las para que a emoção se avolume
dentro de mim, manifestando-se sob a forma de um grande sorriso em meu
rosto — eu o sinto lá. Agora, no entanto, não há coisa alguma. Estou ciente de
que a pele e os músculos de minha face estão flácidos. Essas poderiam ser
fotografias de qualquer um. É assim que será? Meu cérebro está me preparando
para o futuro, um no qual não reconhecerei o rosto das duas pessoas que mais
amo? Gosto de pensar que Gemma e Sarah estarão lá para segurar minha mão,
que o toque ou o som da voz delas me tirará desse vazio. Que a emoção —
aquela parte de mim que me torna humana — ainda poderá ser convocada,
trazida à superfície pelo poder do amor.
Contudo, por enquanto, cedo ao vazio. Deixo meu iPad de lado e aceito a
neblina e a vastidão branca nas quais ele me submerge. Tenho a vaga sensação,
em algum lugar de meus ossos, de que, da última vez que isso aconteceu —
talvez há apenas alguns dias —, a neblina se dissipou quando fiz apenas isto:
quando cedi à demência. Somente por hoje, eu me enrolo em meu edredom e,
antes de fechar os olhos, olho novamente para as fotografias no parapeito. Elas
ainda estarão lá quando eu acordar e, com sorte, eu também estarei...
SOBRE OS DIAS RUINS
Já não os chamo de névoa, esses momentos nos quais meu cérebro entra em
curto-circuito, minha vida se torna um borrão e o caos impera. Eles ocorrem
tão frequentemente agora que parece melhor chamá-los de neblina. Há algo na
palavra “neblina” que sugere algo mais temporário que névoa, algo que com
certeza passará. A palavra sugere que estou presente o tempo todo, apenas
esperando que o tempo melhore. E ele melhora.
Esta é outra característica das neblinas: assim como a própria demência, elas
têm um início, um meio e um fim. Quando acabam, há sol e céu azul
novamente. Aquela nuvem estranha ainda está presente, mas tudo bem, porque
eu ainda estou aqui.
Faz sentido que elas sejam mais frequentes agora. Talvez sejam um sinal de
declínio? Afinal, a demência é uma doença degenerativa; não há como escapar
disso. Houve uma época na qual eu achava essa perspectiva assustadora; a ideia
de que minha mente, nos momentos de maior nitidez, iria sentir com mais força
a aproximação do fim. Percebi, entretanto, que pensar assim só me arrasta em
direção a isso. É melhor manter as coisas em perspectiva: o futuro ainda não está
aqui, e pode estar muito longe ainda. Quem de nós tem qualquer certeza sobre
o dia de amanhã?
Na verdade, a frequência das neblinas trouxe consigo uma surpresa. Esses
momentos de completa desorientação são estranhamente menos assustadores por
causa da frequência com que ocorrem — e passam. Porque esta é a importância
da coisa toda: não a chegada, mas a partida. Meu cérebro mantém uma
impressão objetiva disso, a memória de que essas neblinas não vão durar, de que
não duram. A frequência permite que eu permaneça calma, que diga a mim
mesma que são apenas alguns fios defeituosos em meu cérebro, uma faísca que
derrubou todo o sistema, que talvez essa seja a maneira dele de lidar com o
problema. É uma ação — ou reação — física no interior do meu corpo, mas não
sou eu. E sempre retorno a mim mesma. Indubitavelmente uma pessoa diferente
do que era antes do diagnóstico. Quantos de nós, porém, podem dizer que
permaneceram os mesmos durante toda a vida? A única diferença com a
demência é que essas cicatrizes são mais físicas, frequentes e impossíveis de
reparar — mas, ainda assim, não de superar.
Tudo depende, no entanto, da maneira como você encara as coisas.
A atitude é metade da batalha quando se trata de uma doença como a
demência. A maneira como lidamos com essas névoas, esses curtos-circuitos —
chame como quiser —, pode minimizar ou maximizar o que acontece conosco.
Perguntei a meus amigos como eles descrevem os dias não tão bons que têm:

“Eu os descrevo como meus dias fracos. Isso reflete mais


precisamente a maneira como me sinto. Não tanto uma névoa, mas
uma fraqueza. Névoa me parece muito dramático. O que sinto é
que estou atrasada em tudo. É como quando você vira a cabeça e as
coisas demoram um segundo para entrar em foco. Você não está
totalmente presente. Para mim, ‘névoa’ implica que você realmente
não consegue ver nada. Fraqueza é mais próximo de como me sinto.
Acho que muitos de meus problemas estão relacionados à demência
vascular e ao fato de o oxigênio literalmente não chegar a certas
partes do cérebro, então essa palavra é mais precisa para descrever a
realidade desses dias. E descrevê-los assim minimiza um pouco os
episódios.”
“Em alguns dias, não consigo pensar direito nem para fazer o café
da manhã: acabo colocando molho de salada no cereal ou mirtilos
no café. É quando digo que meu cérebro saiu da pista. Eu só rio das
coisas que faço. Sei que a demência causa isso, mas rio mesmo
assim. Não fico deprimido. Se faço algo tolo quando estou com
meus amigos, digo: ‘Ah, é que meu cérebro saiu da pista hoje.’ E
eles respondem: ‘Não adianta tentar usar a desculpa da demência,
não funciona conosco.’ O humor me ajuda.”
“Eu os descrevo como dias turvos. E não descrevo o Alzheimer
como Alzheimer, mas como meu parceiro. Fiz isso desde o início.
Faço isso porque é quase como se houvesse essa pessoa em minha
cabeça interferindo na rotina e na maneira como lido com os
problemas. Então digo que é meu parceiro quem está interferindo
no meu dia. Descrevo minha vida, hoje, como um novo capítulo: o
capítulo da demência. Nos dias ruins, não sei o que deveria estar
fazendo, onde estive ou o que fiz. Mas, nesses dias, uso meu
parceiro como desculpa. Acho que isso o separa de mim. Existe essa
separação porque, quando tenho dias ruins, é como se algo tomasse
conta da minha mente e me deixasse sem controle. Como sou
obcecado por controle, preciso que isso seja separado de mim,
então ele é meu parceiro.”

SOBRE O DIAGNÓSTICO
A coisa mais difícil de superar, para qualquer ser humano, é a falta de controle.
Gostamos de executar nossas tarefas cotidianas acreditando ao menos na ilusão
de que estamos no controle. Para aqueles que vivem com demência, essa é a
primeira coisa que nos pedem para aceitar: que o invasor em nosso cérebro se
apossou da função de coordenar, que já não somos mais quem dita as regras.
Contudo, isso não é necessariamente verdade. Eu disse muitas vezes que a
demência tem um início, um meio e um fim, e há muita vida a ser vivida se você
— e aqueles a sua volta — puder adotar uma abordagem positiva.
Meus “dias enevoados” já pareceram dramáticos, quando eram recentes e
perturbadores, mas, de certo modo, a demência marcou um gol contra, porque
a frequência desses dias me devolveu certo controle, certa consciência de que
devo suspender minha rotina nesses dias e voltar para baixo das cobertas.
Essa é minha atitude hoje em dia, seis anos após o diagnóstico, e sei que não é
dessa forma que todas as pessoas as quais recebem o diagnóstico devastador de
demência agem. Ele é indubitavelmente devastador. Com certeza não me senti
positiva ou no controle quando me sentei em frente ao neurologista aos 58 anos
e ouvi que tinha demência. Ele me disse que não havia mais o que eles pudessem
fazer, e deixei o hospital com a sensação de que o fim da minha vida tinha
chegado mais cedo. Quem poderia saber que, seis anos depois, eu estaria
escrevendo meu segundo livro sobre o assunto, que viajaria pelo país para
participar de conferências e feiras literárias, que daria palestras para estudantes
de enfermagem e especialistas na área, que conversaria todos os dias com
pessoas que, como eu, foram surpreendidas pelo diagnóstico, a fim de lhes
devolver a esperança, lhes dizer que, longe de ser o fim, esse diagnóstico pode
ser um novo início? No entanto, como eu disse, para a maioria dos
diagnosticados, a coisa mais assustadora é a perspectiva de falta de controle.
A experiência de meus amigos foi similar a minha. O diagnóstico, que
inicialmente lhes pareceu o fim do mundo, se transformou em uma nova
maneira de viver — mas que ainda assim era viver:
“Fui diagnosticado há oito anos, e quando recebi a notícia a encarei
de maneira bastante negativa, senti muito medo. Fui levado a
acreditar que, a partir daquele momento, minha vida e meu futuro
estavam decididos, e aceitei isso. Disseram-me para fazer tudo o que
mandassem, então senti que havia perdido a mim mesmo. Mas, oito
anos depois, sabendo o que sei e tendo feito as amizades que fiz,
minha atitude é mais positiva, porque entendo melhor. Já não faço o
que mandam. Aceito conselhos e então decido por conta própria.
Vendo outros vivendo positivamente, e pelas minhas experiências,
decidi viver minha vida de forma positiva. Não penso no futuro;
vivo um dia após outro.”
“Fui diagnosticada há dois anos e achei o processo muito
negativo. Sempre fui uma pessoa muito pessimista — sempre
pensando no que poderia dar errado. Lá no fundo, eu sabia qual era
o problema, mas não queria admitir. Meu pai dizia: ‘Não há
ninguém na nossa família com demência, então não pode ser isso.’
Mas minha avó tinha demência e meu avô tem doença de Parkinson.
Busquei informações no Google e li alguns livros, e parte dessa
leitura foi muito negativa. Muitos desses livros abordavam o assunto
do ponto de vista do cuidador, e todos eram negativos. Os
cuidadores falavam sobre como enfrentavam dificuldades para lidar
com as pessoas de quem cuidavam, e o tempo todo eu pensava: é
assim que vai ser. Quando recebi o diagnóstico, fiquei destroçada. Mas
então li seu livro Somebody I Used to Know e mudei de atitude. Pensei:
se essa senhora pode fazer isso, também posso. Ninguém vai me impedir de
fazer o que quero.”

SOBRE O ENFRENTAMENTO
Pesquisadores de três universidades britânicas quiseram entender quão firmes
eram as atitudes das pessoas após o diagnóstico e decidiram visitá-las depois que
já estivessem vivendo um ano com a doença, a fim de analisar quanto haviam
mudado. O relatório de 2005 enfatizou o fato de que diferentes mecanismos de
enfrentamento eram responsáveis pela maneira como aqueles de fora percebiam
a forma como as pessoas diagnosticadas lidavam com a doença. Algumas delas,
argumentou o relatório, negavam o diagnóstico, mas a própria negação era
frequentemente interpretada pelos outros como sintoma. Estilos de
enfrentamento se dividem em dois grupos: preservação do senso de si mesmo e
adaptação do senso de si mesmo. Aqueles que se enquadram na categoria da
preservação podem não reconhecer a demência — por exemplo, podem
esconder ou ignorar os esquecimentos, em vez de implementar métodos para
lidar com eles, como poderia fazer alguém com a mentalidade de adaptação.
Nenhuma mentalidade está certa ou errada, lógico; lidamos com a doença da
maneira que podemos. Essa falta de entendimento sobre os estilos individuais de
enfrentamento, porém, pode levar familiares e amigos a acreditar que a pessoa
que vive com demência não está consciente desse invasor no próprio cérebro.
“Em termos de contexto social”, escreveram os autores do relatório.

“As pessoas com demência que parecem ‘agir inconscientemente’


em um contexto podem demonstrar muito nitidamente a
consciência que têm em um contexto diferente. Embora isso possa
refletir de forma muito genuína um nível flutuante de consciência, a
variação também pode surgir porque elas ajustam o que escolhem
expressar de acordo com a percepção que possuem de como isso
será recebido ou que impacto haverá. Similarmente, as pessoas com
demência que são descritas por aqueles em volta como
“inconscientes” do próprio diagnóstico ou situação deixaram muito
evidente, durante as entrevistas para a pesquisa, que estavam muito
mais conscientes do que se supunha.”

Conheço pessoas que se recusam a admitir que têm demência, mas estão
conscientes dos efeitos da doença sobre elas. É uma mistura estranha. Às vezes
comparo isso a pessoas homossexuais que têm medo de fazerem parte da
comunidade: elas estão totalmente cientes dessa característica de si mesmas, mas
temem o ato de se assumir. Discriminações similares podem existir contra
aqueles com demência, especialmente porque algumas pessoas ainda a associam
a uma doença mental e, infelizmente, conhecemos o grande estigma
imerecidamente ligado às doenças mentais. Não admira que as pessoas tentem
minimizar ou ignorar o próprio diagnóstico quando não se sentem seguras para
ser elas mesmas. Contudo, também conheço as que, por essa mesma razão,
recusam-se a participar de grupos de apoio com colegas que poderiam ajudá-las
a modificar essa atitude sobre a vida com demência. Quando lhes perguntam por
que fazem isso, respondem: “Quero continuar vivendo minha vida
normalmente, sem pensar na demência.” Isso é totalmente compreensível, mas o
medo de reconhecer a doença pode impedir que consigam apoio de pessoas que
realmente são capazes de ajudar. A única coisa que mudaria essa disposição em
aceitar o próprio diagnóstico seria a mudança de atitude da sociedade como um
todo.
Para a maioria das pessoas entrevistadas pelos autores do relatório, houve
mudança durante o primeiro ano. Eu sei que passei do pesar à aceitação, o que
me ajudou a viver tão bem quanto possível hoje. Mudamos e nos adaptamos a
todo momento, como fazem os seres humanos em qualquer situação desafiadora.
Não necessariamente usamos o mesmo mecanismo de enfrentamento o tempo
todo.
“Em termos de respostas psicológicas individuais, o início da demência pode
ser visto como uma ameaça ao senso de si mesmo que pode gerar tentativas
compensatórias de adaptação”, continua o relatório:

“O estilo de enfrentamento que um indivíduo adota será


influenciado pela personalidade e pelas experiências passadas que
possui, por meio do qual selecionou maneiras favoritas de lidar com
situações difíceis. Ao passo que algumas pessoas enfrentam as
dificuldades, muitas tentam minimizar as ameaças. Elas podem, por
exemplo, buscar abertamente normalizar ou explicar quaisquer
dificuldades ou secretamente evitar pensar sobre elas. Também pode
haver um processo mais automático ou inconsciente de negar essas
dificuldades.”

Reconhecer a estratégia de enfrentamento de uma pessoa é um passo vital


para ajudá-la a viver da melhor forma possível com a doença. Se, para alguns,
isso significa não reconhecer a demência, essa é apenas a maneira como optam
por lidar com ela externamente, mas não significa que, no interior de si
mesmos, estejam inconscientes da doença. As pessoas veem a mim e a outros
“ativistas” da causa e talvez não queiram viver uma vida que parece tomada pela
presença da demência. Talvez essa seja a decisão certa, porque nosso trabalho
pode nos consumir totalmente e, de certa maneira, isso é negativo. Outras
pessoas parecem capazes de se desligar, mas alguns de nós não temos essa opção
porque partilhamos as próprias histórias publicamente. Entretanto, como
evidencia o relatório de 2005: “É preciso fazer distinção entre inconsciência e a
consciente decisão de evitar pensar ou falar sobre questões possivelmente
perturbadoras, o que pode, na verdade, refletir um mecanismo adaptativo de
enfrentamento.”
Mecanismos de enfrentamento são uma área de pesquisa interessante. Um
estudo de 2002 descobriu que:

“Tentativas de conservação e compensação foram essencialmente


autoprotetoras e refletiram o desejo de manter o senso de si mesmo
e de normalidade. Desenvolver espírito de luta e aceitação refletiu o
desejo de enfrentar as ameaças, encarando-as como desafios e
respondendo de uma maneira que misturava conflito e aceitação a
fim de integrar as mudanças no interior de si mesmo.”

A coisa importante a ser lembrada é que nenhuma estratégia de


enfrentamento é a correta. A maneira como lidamos com a adversidade é tão
individual quanto nós mesmos — com ou sem demência.

SOBRE AS ATITUDES DOS PROFISSIONAIS


Muitos de nós concordamos que é a atitude dos profissionais que desempenha o
papel principal em como nos sentimos em relação ao diagnóstico. Foi isto o que
aprendi, acima de tudo, nos últimos seis anos: não somente o poder da minha
atitude, mas como ela é influenciada por aqueles a minha volta. É por isso que
agora prefiro estar cercada de pessoas positivas, com uma atitude de “eu dou
conta” similar a minha. A única maneira de isso chegar a outras pessoas com o
mesmo diagnóstico, porém, é por meio de uma abordagem diferente por parte
dos profissionais. Será que o médico que confirmou meu diagnóstico não poderia
ter usado termos mais positivos? Será que não poderia ter dito: “Sim, é uma
doença terrível, mas esse novo rótulo não irá defini-la, você é a mesma pessoa
que era quando entrou aqui há cinco minutos. Há muito o que você ainda pode
fazer e ser”? Quão diferente eu me sentiria ao sair do consultório!
No entanto, seis anos depois do meu diagnóstico, pouca coisa mudou em
termos de como sou tratada por profissionais. Sinto que as pessoas com
demência aprenderam muito mais que médicos e enfermeiras. É por isso que
não vou mais às avaliações: quem quer ouvir que deteriorou, mas que não há o
que possa ser feito? Seria diferente se isso fosse dito de outra maneira, talvez
algo como: “Parece que essa área está sendo mais desafiadora para você, mas
vamos ver o que podemos fazer para ajudar.” Entretanto, não é assim que as
coisas são feitas. E entre meus amigos não sou a única a me sentir assim:

“Não vou mais às avaliações, porque elas fazem com que eu me sinta
negativa. Da última vez, eles me testaram para ver se minha doença
havia progredido e cometeram um erro: eles compararam o meu
quadro atual com um momento muito antigo presente em meu
histórico. Por esse motivo, me informaram de que minha doença
havia progredido muito e por isso precisariam mudar minha
medicação. Fiquei um pouco chateada, me perguntando que efeitos
colaterais essa nova medicação poderia provocar. Então recebi uma
carta de lá em que eles diziam sentir muito, mas que houvera um
erro e na verdade eu estava no mesmo nível: a funcionária tinha
comparado meu quadro atual com uma de minhas avaliações antigas.
Passei um mês me sentindo realmente mal e aborrecida por causa
do que fui informada em minha visita de revisão, e no fim eles
estavam errados. Então pensei: não vou mais, não quero esse tipo de
negatividade em minha vida.”
“É a sensação de que os profissionais médicos estão nos
dispensando. Eles dizem: ‘Não há nada que possamos fazer e você
tem que fazer o que estamos dizendo e se preparar para o fim’.”
“São os profissionais que podem fazer com que você se sinta
positivo ou negativo sobre o diagnóstico. Uma assistente social me
telefonou há alguns meses e perguntou se podíamos marcar uma
hora para ela me visitar e conversar comigo. Eu vivo em um
apartamento de um quarto; não é em uma residência assistida,
somente um apartamento comum no térreo, mas tenho dois amigos
que vivem do outro lado da rua. Sei que eles estão lá e minha família
vive na mesma cidade, mas a assistente social disse: ‘Acho que está
na hora de você passar para uma residência assistida.’ Eu respondi:
‘Não, eu recebo mais cuidados aqui do que receberia lá.’ Mas, como
moro sozinha, ela naturalmente presumiu que estava na hora de eu
me mudar para um lugar onde pudessem cuidar de mim.”
“Conheço uma clínica-geral muito experiente que mais de uma
vez me perguntou: ‘Você acha que eles podem ter errado em seu
diagnóstico? Não é possível que você tenha demência.’ O que ela
quer dizer é: ‘Você cozinha, você fala; logo, você não tem
demência.’ Ela diz as coisas comuns, como ‘Eu sempre perco
minhas chaves ou esqueço o que fui fazer em um cômodo’. Mas ela
tem 65 anos; você faz isso nessa idade, mas não se trata de
demência. Outra coisa que os profissionais não fazem é concessões
ou ajustes; eles sabem que você tem demência, mas mesmo assim
esperam que você preencha formulários e conte sua história
inúmeras vezes. E, se for para o hospital, eles perguntam, na manhã
da cirurgia: ‘Você comeu ou bebeu algo desde ontem?’ O que é
uma pergunta estúpida; eles não deveriam fazê-la, porque não
podem confiar na resposta.”
“Depois que fui diagnosticado, achei a falta de apoio muito
decepcionante. Todas as pessoas da clínica de memória diziam coisas
como: ‘Não se esqueça de fazer seu testamento’ ou ‘Coloque sua
vida em ordem, você não sabe quanto tempo ainda tem.’ O único
profissional positivo foi meu médico. Voltei a vê-lo porque não sabia
se devia ou não tomar os medicamentos e ele conversou muito
comigo, e essas conversas me ajudaram a optar por não os tomar.
Ele disse: ‘Viva sua vida, faça o que quer fazer.’ Ele foi o único a me
dizer algo assim.”

É algo subjetivo, mas a maneira como profissionais nos fazem sentir é


responsável por nos fortalecer ou quebrar completamente. Durante muito
tempo, eles usaram palavras negativas para nos descrever, simplesmente porque
não sabiam como reagir. Foi somente nos últimos anos que se deram conta dos
efeitos negativos que essas palavras causam nos pacientes. Se você diz
continuamente a uma criança que ela não vale nada, ela começa a acreditar. Se
somos chamados de desafiadores ou perturbadores com certa constância, isso
nos afeta da mesma maneira.
Em 2019, Emma Wolverson desenvolveu um estudo a fim de investigar o
impacto da linguagem. Em uma pesquisa com 378 profissionais da saúde e
assistentes sociais, nenhum deles conseguiu chegar a um acordo sobre o termo a
ser usado para descrever as pessoas que vivem com demência. Todos
concordaram, no entanto, que “as palavras são muito poderosas e os profissionais
que participaram de nosso estudo sentiram que as que são usadas para descrever
as mudanças comportamentais influenciavam como outras pessoas respondiam à
pessoa com demência e buscavam ajudá-la”. Linguagem desrespeitosa e ofensiva
frequentemente leva a cuidados de baixa qualidade.
Pessoas com demência concordaram não gostar de termos como
“comportamento desafiador”, preferindo “necessidades não atendidas”.

“As pessoas preferiram termos gentis, que não as faziam se sentir


estúpidas ou culpadas. Houve reações muito fortes de pessoas que
estavam preocupadas que uma rotulação equivocada acarretasse
cuidados precários e fizesse com que a pessoa com demência já não
fosse tratada como uma pessoa.”

Sou capaz de entender que essa é uma perspectiva assustadora, especialmente


em uma casa de repouso, onde você depende tanto do cuidado dos outros.
Nenhum de nós quer que a demência defina quem somos — queremos nos
agarrar a nosso senso de nós mesmos, assim como alguém com câncer não é
definido pela doença. No entanto, aqueles que vivem com demência parecem ser
rotulados mais facilmente, e suposições são feitas com base nessa rotulação. A
maneira que nos comportamos quando a comunicação é difícil geralmente não é
nossa culpa. Se alguém está lhe dando café, quando você bebe apenas chá, e a
única maneira que tem de dizer isso é jogar a xícara no chão, é assim que você se
comunica. Isso, entretanto, indica uma necessidade não atendida, não um
comportamento difícil ou desafiador.
O relatório de Wolverson concluiu: “Neste estudo, pessoas com demência
partilharam expressivas preocupações de que parte da linguagem regularmente
usada pelos profissionais de saúde e assistentes sociais possa colocá-las em sério
risco, já que elas passam a ser consideradas sintomas a ser tratados, e não
pessoas.”
Isso me deixa muito triste. É muito importante que os profissionais que nos
atendem ajam da forma correta, e isso se torna aparente na linguagem que
optam por utilizar. Se não conseguem fazer isso da maneira correta,
simplesmente não estão qualificados para o trabalho.

Í
SOBRE AS ATITUDES DA FAMÍLIA
A boa notícia é que todo novo dia nos oferece uma chance de recomeçar e
modificar a linguagem que usamos, o tom, a maneira como abordamos uma
doença degenerativa — seja você o diagnosticado ou seja, talvez, ainda mais
importante, alguém que apoia uma pessoa diagnosticada, independentemente se
for um membro da família, da comunidade ou um profissional da área. Nunca é
tarde demais para mudar. Você pode começar no momento em que terminar
este livro.
A forma como lidamos com acontecimentos traumáticos pode mudar. Pense
nas coisas que aconteceram em sua vida: mortes, divórcio, demissão. As pessoas
indubitavelmente passam por um período de luto, de reajuste, mas, no fim,
chegam à aceitação e buscam o melhor que a vida tem a oferecer. Por que seria
diferente com a demência?
Minha atitude é simplesmente a forma particular a qual escolhi de enfrentar
as adversidades. Ela não é melhor ou pior que a de outra pessoa. Sou capaz de
transformar as neblinas cada vez mais intensas em algo positivo porque tenho a
sorte de sentir a chegada delas. Alguns de meus amigos não recebem pistas de
que elas estão chegando, ou talvez não saibam decifrar essas pistas ou escolham
não fazer isso. Sou afortunada por possuir uma natureza instintiva que questiona
diariamente como minha mente está, mas outros não têm a mesma sorte. Não
significa que falharam. Enfrento minha demência com ações. Entretanto, não é o
mesmo para todo mundo.
Todos temos táticas individuais para enfrentar a vida e essa doença, mas
quando aqueles a nossa volta nos incapacitam, isso muda a maneira como
vivemos. Perguntei a meus amigos como a família deles reagiu ao diagnóstico:

“A reação de meus familiares e amigos foi muito negativa, o que me


deixou muito para baixo. Eles não foram positivos sobre a doença, e
ela ainda é classificada por alguns como doença de velho. No início,
eu recebia toda essa negatividade e tentava dizer: ‘Vou ficar bem.’
Mas lá no fundo estava me questionando: ‘Será mesmo que vou ficar
bem?’”
“Meu irmão é um ano mais velho que eu e nunca aceitou meu
diagnóstico. Não sei se é medo de também ter a doença. Tentei
explicar, mas ele não entende e não quer entender. Minha mãe
morreu há 14 anos, mas, alguns anos atrás, saí com ele para almoçar
no clube e, na hora de ir embora, disse: ‘Tenho que esperar, mamãe
vai me encontrar aqui.’ E ele disse: ‘Não, a mamãe morreu.’ Eu
respondi: ‘Não, ela vai me encontrar aqui.’ É óbvio que sei que
minha mãe morreu, mas, naquele momento, fiquei confusa. Ele
gritou comigo e me arrastou até o estacionamento. Eu me agarrei a
um poste, repetindo: ‘Mamãe vai me encontrar aqui. Tenho que
esperar.’ Ele gritou e continuou me arrastando e todo mundo saiu
do clube para ver o que estava acontecendo. Uma mulher telefonou
para a ambulância e disse: ‘Temos uma senhora com demência aqui.’
“No dia seguinte, meu irmão veio até mim e eu pedi desculpas.
Minha filha ficou zangada quando contei o que fiz. Ela disse: ‘Por
que você pediu desculpas? Ele é quem deveria se desculpar.’ Ela tem
razão: foi ele quem causou a perturbação, porque tentou me trazer
para a realidade, mas, naquele momento, o que era real para mim
era que eu precisava esperar pela mamãe. Se ele tivesse me ouvido
quando tentei explicar como é a demência, não teria agido daquela
maneira, mas ele não quer ouvir. Minha filha disse para eu não sair
mais com ele, porque, se algo assim acontecer novamente, ele vai
reagir da maneira errada. Teria sido melhor se ele dissesse: ‘Vamos
sentar aqui e esperar um pouco, mas mamãe telefonou e disse que
talvez não consiga vir.’ Eu fiquei muito perturbada e emotiva depois
do incidente. Não voltei àquele clube durante muito tempo. Estava
constrangida por causa de todas as pessoas que saíram para ver o que
estava acontecendo. Elas provavelmente acharam que eu estava
bêbada.”

É verdade que minha amiga não deveria ter se desculpado pela ignorância do
irmão. Também é verdade que ele teria lidado melhor com a situação se tivesse
tentado entender como é ter demência. Em vez disso, a reação dele fez com que
minha amiga se sentisse triste e constrangida.
É como disse outra amiga:

“Passamos muito tempo tendo que compreender que os outros não


entendem a demência, como somos e nos sentimos. Acabamos
fazendo concessões. Frequentemente temos que acomodar a falta de
percepção e empatia dos outros e, para isso, negamos nossos
sentimentos. Temos que negar a realidade do que acontece em nossa
cabeça — em relação ao que sentimos — porque as pessoas não
entendem. Mas isso faz com que nos sintamos piores, porque não
podemos ser quem somos. É uma mistura curiosa. Queremos ser
gentis com as pessoas e aceitar que a demência não é algo do qual
elas possuem informações suficientes ou compreensão, mas, ao
fazermos isso, negamos nossos sentimentos.”

É por isso que a educação é tão importante. Não se pode esperar que as
pessoas saibam o que não sabem, e isso inclui aquelas que nos são mais próximas
e queridas. Contudo, elas chegaram às próprias conclusões sobre a demência por
causa do que viram e ouviram enquanto sociedade, e talvez também por causa
do que se recusaram a ver e ouvir, com medo de uma doença como a demência.
A atitude dos outros influencia a maneira como a pessoa que vive com
demência se sente a respeito de si mesma e, portanto, a maneira como lida com
o diagnóstico. Um estudo de 2004 analisou quão complexo pode ser o
comportamento de alguém vivendo com a doença: “Uma pessoa que, na clínica,
insiste que tudo está bem pode fazer isso por medo de ser ‘internada’, por sentir
que o esquecimento é algo menor se comparado a outros problemas de saúde,
ou pela necessidade de manter a autoestima.” O relatório continua:

“No contexto familiar, essa mesma pessoa pode expressar medo e


ansiedade sobre o que está acontecendo ou demonstrar isso
indiretamente através de seu comportamento. Os relatos dos
parceiros indicam que muitas vezes eles estão profundamente
sintonizados com significados implícitos, buscando apoiar as
estratégias de enfrentamento em uma tentativa de reforçar o senso
de si mesmo do indivíduo. Os médicos também precisam ser
sensíveis às necessidades psicológicas das pessoas com Alzheimer,
demonstradas na maneira como descrevem sua experiência
subjetiva, e devem estar prontos para responder de uma maneira
que impulsione o bem-estar delas.”

Eis um cenário diferente, descrito por outra amiga:


“Meus pais estão na casa dos 80 anos e sou filha única, o que tornou
ainda pior contar a eles que fui diagnosticada com demência de
início precoce aos 54 anos. O choque foi maior para eles do que
para mim. Minha mãe não conseguia conversar comigo, o que achei
muito difícil, especialmente porque ainda estava processando o
diagnóstico. Além disso, não poder conversar com meus pais sobre
a maneira como estava me sentindo foi muito difícil. Minha mãe
perguntou muito diretamente: ‘Quanto tempo de vida você ainda
tem?’ Na época, isso foi muito doloroso, mas pensei a respeito, me
coloquei na posição dela e me perguntei o que faria se fosse com
minha filha. Eu a teria abraçado, sei disso, o que meus pais não
fizeram. Não recebi um abraço; foi como se tivesse sido empurrada
para longe. Meu pai encarou a doença como uma falha na história da
família. Sendo um perfeccionista, ele começou a se perguntar de
onde veio a doença. Isso o afetou muito. Levei algum tempo para
digerir o fato de que meu pai e minha mãe não aceitariam a doença.
Minha mãe meio que superou: hoje, ela telefona e envia mensagens.
Ela não diz que sente orgulho de mim — ela nunca fez isso, pois
acha difícil dizer coisas assim —, mas eu sei, lá no fundo, que eles
estão orgulhosos. Embora a questão seja o fato de que nunca
disseram isso. Agora meu tio também foi diagnosticado e minha
mãe veio me dizer: ‘Ele está morando sozinho naquela casa e eles
não querem colocá-lo em uma casa de repouso.’ Eu respondi: ‘Ele
não vai querer ir para uma casa de repouso. Eles podem ter
perguntado a ele o que ele preferia fazer.’ E ela disse: ‘Como ele vai
se virar sozinho?’ E eu: ‘Ele vai se virar melhor se estiver na própria
casa, que é um ambiente familiar. Ele conhece o lugar, sabe onde as
coisas estão.’ Mas, mesmo agora, minha mãe ainda acha que todo
mundo que tem demência deve ir para uma casa de repouso.”

A experiência de minha amiga, de ter que revelar o próprio diagnóstico aos


pais idosos, é um cenário que eu não havia considerado antes de escrever este
livro. É uma vergonha que, devido aos próprios preconceitos sobre o que a
demência significava para a família, eles não tenham sido capazes de oferecer à
filha o conforto que ela precisava receber do pai e da mãe naquele momento —
nossos pais são sempre nossos pais, qualquer que seja nossa idade. Nunca me
ocorreu que, com mais pessoas sendo diagnosticadas com demência de início
precoce — representando cerca de 5% de todos os diagnosticados —, essa pode
ser uma situação familiar cada vez mais comum. Entretanto, se não falarmos
sobre a demência, como as atitudes podem mudar? É verdade que
frequentemente a pessoa com demência acaba cedendo, escondendo os próprios
sentimentos para não aborrecer ninguém, mas, se não falarmos sobre as
situações e os cenários que consideramos desafiadores, enfrentaremos uma
incapacitação ainda maior.

SOBRE O SENSO DE SI MESMO


A ideia de senso de si mesmo e a importância de mantê-lo foram bem
documentadas nas pesquisas sobre demência. Quando o senso de si mesmo
começa a se desfazer, junto com as memórias autobiográficas, o declínio parece
se acentuar. As memórias nos tornam quem somos, mas também permitem que
aqueles que não nos conheceram antes nos vejam como uma pessoa em total
completude e entendam nossas necessidades e ações. Não devemos perder nosso
passado de vista, pois ele molda o que viremos a ser no futuro.
Frequentemente perdemos nosso senso de nós mesmos ao sermos
diagnosticados. Sentimos que já não temos valor — talvez um pouco como as
pessoas que se aposentam e sentem que perderam o propósito de vida. No
estudo de Marie Mills realizado em 1997, um homem com demência avançada
foi capaz de falar detalhadamente sobre o tempo que passou como prisioneiro de
guerra. Os pesquisadores notaram a importância disso:

“Essas eram o tipo de memória que […] ‘vive por muito tempo na
memória da mente’, pois tende a estar ligada de forma muito
significativa à sobrevivência física e psicológica do senso de si
mesmo do indivíduo. A intensidade do esforço para sobreviver
durante o tempo como prisioneiro de guerra pode ter criado essas
memórias duráveis, que pareceram sobreviver quase até o fim ao
massacre da demência […] Essas histórias lhe permitiram ser
prontamente visto como pessoa “em sua totalidade”. Elas lhe deram
um senso de identidade narrativa e enfatizaram a importância da
manutenção dessa narrativa durante a doença.”
Todos nós queremos ser vistos além da demência, e não reduzidos a ela. Isso
gera, tanto em nós mesmos quanto nos outros, uma atitude melhor em relação à
doença. Falei nestas páginas sobre quanto gostei de ser conhecida em meu
vilarejo como Wendy, “a senhora da câmera”, em vez de “Wendy com
demência”. Foi restaurador para mim, porque as pessoas viam minhas
habilidades antes de verem a demência — elas viam a pessoa, não a doença.
Chegará um momento em que não seremos capazes de partilhar histórias
sobre quem éramos antes da demência, e é por isso que sempre dizemos que a
pessoa que nos é mais próxima nos conhece melhor e deve ser sempre ouvida.
Ela é a guardiã de nossa história quando a comunicação se torna difícil, mas essa
história também pode ser dividida com outros cuidadores, como uma maneira
de criar conexões e relacionamentos. Se as histórias são partilhadas, elas podem
retornar até nós e talvez explicar nossas ações de forma mais evidente. Isso me
lembra da história que ouvi sobre uma ex-enfermeira que costumava se sentar na
mesa da enfermagem na casa de repouso. Os cuidadores não sabiam por que ela
ficava tão zangada quando tentavam fazer com que ela voltasse para o quarto.
Quando descobriram que ela costumava ser enfermeira, permitiram que ficasse
sentada lá, mexendo nos papéis e fingindo fazer anotações. Ou a história do
homem que era leiteiro e foi rotulado de “criador de problemas” porque
acordava às 4 da manhã e ia à cozinha procurar garrafas de leite para colocar em
frente à porta dos quartos. Ele ficava zangado e violento quando tentavam
impedi-lo — você não ficaria, se alguém interferisse no seu trabalho? —, mas,
quando descobriram que era leiteiro, permitiram que entregasse o leite durante
a madrugada. Assim que ele terminava e ia para “casa” dormir, a equipe removia
as garrafas antes que os outros residentes acordassem.
Compartilhar detalhes autobiográficos da pessoa é vital para qualquer plano
de cuidados, como o relatório de Mills confirmou:

“Quando os informantes se tornaram mais cognitivamente


prejudicados pela doença, havia a consciência […] de que haviam
legado sua narrativa a outra pessoa. Argumenta-se que o
compartilhamento de tal narrativa no contexto dos cuidados com a
demência reforça as atitudes de respeito, entendimento e aceitação
por parte dos cuidadores. Nesse sentido, portanto, a narrativa
pessoal […] jamais é perdida. Ela continua a existir na forma de um
recurso valioso que pode retornar aos pacientes, verbalmente ou
não, durante interações subsequentes. Assim, as conversas, os
planos e todas as outras abordagens de cuidados serão influenciados
pelo conhecimento e entendimento do cliente por parte do
cuidador. Isso deveria continuar por todo o processo da demência,
mesmo durante os últimos estágios, quando a habilidade de se
comunicar com os outros é severamente comprometida.”

SOBRE A POSITIVIDADE
Um estudo realizado em 2020 por Hannah Scott analisou as atitudes das
mulheres em relação à demência. Concluiu-se que as pessoas que convivem com
mulheres com demência possuem grande impacto na maneira como elas
próprias se veem após o diagnóstico e que a manutenção da vida social faz com
que atributos positivos sejam refletidos de volta para elas, aumentando a
autoestima e melhorando a ideia que têm de si mesmas.
O relatório discutiu como a determinação das mulheres de enriquecer a
própria vida com uma ampla variedade de atividades lhes trouxe “felicidade e
senso de propósito”. “Manter a independência também foi importante para
muitas mulheres, que expressaram o desejo de ter controle sobre as decisões e
aspectos da própria vida. Isso foi conseguido por meio de estratégias de
enfrentamento: o uso de diários e calendários, por exemplo, foi particularmente
importante para as mulheres que moravam sozinhas.”
O estudo afirmou que “manter um conceito positivo de si mesma foi crucial
para a atitude geral de resistência. Isso permitiu que as pessoas se percebessem
sob uma luz positiva, reforçando capacidades e, consequentemente, protegendo
a autoestima”.
Consigo entender por que essas estratégias de enfrentamento trouxeram mais
positividade para as mulheres, mas não há razão para que não se apliquem
também aos homens. Sempre falei sobre a importância de não desistirmos de
nós mesmos — tantos outros já tentam fazer isso por nós. Para mantermos uma
atitude positiva, é essencial que nos concentremos no que ainda pode ser feito,
nas atividades nas quais ainda podemos nos envolver, e encontremos soluções —
como os diários e calendários mencionados — que as tornem possíveis. Tudo
isso gera uma atitude mais positiva.
O relatório também discorreu sobre a negatividade que as mulheres
enfrentavam advindas de familiares, e o quanto isso diferia da própria atitude:
“As mulheres tinham a esperança de que a deterioração não fosse uma
inevitabilidade e elas pudessem continuar como estavam. Os familiares, em
contrapartida, acreditavam que a incerteza era uma razão para temer o futuro,
além da inabilidade de saber ‘quão ruim’ a demência poderia se tornar.”
Perguntei a meus amigos se os amigos e familiares deles foram capazes de
inspirar uma atitude positiva:

“A atitude da minha família mudou desde que eles me viram sendo


positiva e assumindo riscos igualmente positivos. Eles têm sido mais
positivos porque estão vendo que não é o fim para mim, que não
vou me tornar um fardo. Meu filho disse estar orgulhoso. Durante
esse processo ele foi a pessoa mais negativa sobre o diagnóstico. Não
gostava que eu andasse de trem — achava que eu tinha que ficar em
casa, porque estava doente —, mas, ainda ontem, disse: ‘Estou
muito orgulhoso de você, mãe. Da maneira como você continuou a
fazer as coisas e manteve sua independência.’ A vida é um risco
desde o dia em que nascemos, mas não vou deixar a demência me
definir, e minha família aprendeu que, se não me deixar fazer as
coisas que eu fazia antes, a demência vai vencer.”
“Meu marido tem sido brilhante. Ele me deixa fazer o que eu
quiser e nunca diz que não posso fazer algo, o que é absolutamente
brilhante. Às vezes, desejo que ele assuma o controle quando estou
tendo dias ruins, mas sempre luto para superá-los. Nunca paro,
estou sempre em movimento, mas meu marido me deixa fazer o
que eu quiser, algo pelo qual sou muito grata, pois vejo casais, nos
grupos em que participo, nos quais o marido ou a mulher assume o
controle e não deixa o parceiro que vive com a doença fazer nada
sozinho, nem mesmo falar. Precisamos continuar a fazer o que
sempre fizemos.”
“Assim que você menciona que tem Alzheimer, a reação das
pessoas é muito negativa. Mas hoje em dia, se encontro uma pessoa
e ela diz ‘Não nos vemos há um tempão’, eu conto que fui
diagnosticado com Alzheimer e ela faz aquela cara, e então digo:
‘Não, não sinta pena, estou aproveitando a vida.’ Porque acho que
tenho uma boa vida no momento, fazendo o que quero e gosto de
fazer.”

SOBRE O APOIO DAQUELES IGUAIS A NÓS


Ainda me lembro da primeira vez que fui a uma reunião do Minds and Voices em
York, um grupo de apoio local para aqueles que vivem com demência. Daquela
incerteza sobre ir ou não. Afinal, eu não era muito do tipo que gostava de
grupos. Nunca havia gostado. No entanto, algo me atraiu para aquele: a
necessidade de encontrar e ouvir pessoas com a mesma condição que a minha e
saber que eu não estava sozinha. Eu participara da conferência da WOW
(Women of the World, “Mulheres do Mundo”) e ouvira a palestra de Agnes
Houston sobre o poder do apoio daqueles iguais a nós. Então, hesitantemente,
fui à reunião.
Acima de tudo, ainda consigo conjurar a sensação de calma, de relaxar em
minha cadeira, finalmente me sentindo entre amigos, entre pessoas que
entendiam e não me julgariam, assim como eu não as julgaria. Podíamos apenas
“ser”.
Seis anos depois, tenho a mesma sensação quando entro na sala onde estão
meus amigos que tinha no início. Tantas amizades surgiram desde aquela
primeira conexão com o Minds and Voices. Nós nos saudamos como amigos que
não se veem há muito tempo e chamamos uns aos outros de segunda família.
George me chama de “irmã” e eu o chamo de “mano”, de tão próximos que nos
sentimos.
Eu e meus amigos jamais teríamos nos conhecido se a demência não tivesse
cruzado nosso caminho. Muitos de nós tivemos que aceitar o desaparecimento
de antigas amizades. Sabemos tão pouco sobre o passado uns dos outros — e
provavelmente não nos lembraríamos dos detalhes se os conhecêssemos —, mas
partilhamos o diagnóstico de demência, e isso é suficiente para criar um laço
instantâneo.
Conhecer outras pessoas com demência foi o que mudou minha atitude em
relação à doença, e perguntei a meus amigos o que significou para eles:

“Eu e meus colegas formamos uma minúscula porcentagem das


pessoas que foram diagnosticadas e realmente vivem com demência,
e há tantas pessoas lá fora as quais acredito que nunca entenderiam
nossa positividade, nossa atitude, porque jamais nos conheceram,
jamais conheceram outras pessoas na mesma condição. Talvez
tenham familiares ou parceiros muito negativos sobre a situação.
Ouvi histórias sobre pessoas que não podem sair de casa porque a
mulher ou marido não quer que sejam vistas. Ouvi histórias sobre
pessoas que dizem que os amigos pararam de visitá-las porque
queriam se lembrar delas como costumavam ser, não como são
agora. Há tanto apoio por aí, e tantas pessoas nunca passam pela
inestimável experiência de conhecer pessoas iguais a elas.”
“Eu me senti sozinha após o diagnóstico; não conhecia grupo
algum e não sabia onde procurar. Achei a senhora da Sociedade do
Alzheimer muito condescendente, falando comigo como se eu fosse
criança: ‘Ah, estamos nos saindo bem, estamos com ótima aparência
hoje.’ Não era disso que eu precisava. Eu precisava de uma direção.
Encontrar o grupo local foi meio que um ponto de virada. Havia um
homem lá que lidava muito bem com seu diagnóstico, e ele havia
sido diagnosticado havia bastante tempo. Quando participei pela
primeira vez, foi muito assustador, porque eu não sabia o que iria
encontrar nem como seriam as pessoas, já que nunca tinha
conhecido alguém da minha idade com demência. Mas havia pessoas
muito mais velhas e pessoas da minha idade. Subitamente, já não me
sentia tão sozinha.”
“Encontrei todas essas pessoas que continuam fazendo o que
gostam, apoiam umas às outras e conversam entre si. É assim que
nos educamos. Meu ponto de virada foi conhecer todo mundo e
achá-los muito positivos. Não pensamos sobre as coisas negativas
agora.”
“O que pode mudar o modo como você se sente sobre o
diagnóstico é a maneira como outras pessoas interagem com você.
Antes de conhecer outros colegas, há a sensação de que se está
sozinho em um mundo no qual todo mundo é normal e você não é.
Conheço muitas pessoas que se sentiram intensamente deprimidas,
perdidas e provavelmente suicidas nos primeiros meses após o
diagnóstico, e algumas nunca chegam a superar. Mas conhecer
outras pessoas e fazer novas amizades torna a vida vibrante
novamente. Somos quem somos; não somos estranhos; não fomos
desclassificados.”
“Os profissionais só passam negatividade. São as pessoas que
vivem com demência que oferecem positividade. Eu gosto de correr
riscos positivos: se eu morrer, vou morrer feliz.”

O estudo de Scott também falou sobre o benefício dos grupos de apoio:

“A literatura sobre os grupos de apoio para pessoas com demência


descobriu que eles têm o potencial de melhorar sintomas
depressivos e a qualidade de vida, além de aumentar a autoestima.
Esses grupos fornecem oportunidades para que os participantes
demonstrem as habilidades que retiveram e expressem os medos e
as emoções que sentem em um ambiente acolhedor.”

Obviamente, cada grupo vai ser diferente, então talvez você tenha que
encontrar o grupo certo para você. O relatório descobriu, entretanto, que
“facilitar e encorajar a participação em tais grupos pode reforçar a
individualidade e, por consequência, promover o bem-estar. Isso se conecta à
questão mais ampla de diminuir o estigma da demência, até que as pessoas que
vivem com ela deixem de tentar iniciar o cansativo processo de modificar ou
esconder sintomas por medo da rejeição social”.
Em um mundo ideal, não haveria necessidade desses grupos. Só temos
grupos de apoio porque a sociedade não faz os ajustes que permitiriam que nos
integrássemos. Por que criar um grupo de arte separado para pessoas com
demência se os grupos de arte comuns são igualmente satisfatórios? Eu me
lembro do coral no qual adorava cantar, mas que tive que largar porque o
organizador se recusou a permitir que eu segurasse uma folha de papel no palco,
a fim de poder ler a letra das músicas.
Talvez, no futuro, sejamos capazes de falar abertamente com todo mundo
sobre nossos diagnósticos, mas, até chegarmos a essa utopia, os grupos de apoio
oferecem um ambiente mais seguro, relaxado e sem julgamento para qualquer
um de nós. E, geralmente, também boas risadas.
Nós entendemos, confiamos, não julgamos, compartilhamos, nos
importamos e estamos lá para apoiar uns aos outros independentemente do que
a demência jogar em nosso caminho. Talvez pudéssemos ensinar ao mundo a
simples lição de que aceitar e compreender o outro é possível, e se nós, que
temos uma complexa doença cerebral, sabemos disso, então a lição não pode ser
assim tão difícil para todos os outros.
EPÍLOGO

Estou sentada em frente a minha médica, segurando um papel no qual preciso da


assinatura dela.
— Preciso pedir um favor — digo eu.
Ela me olha, confusa.
— Preciso da sua permissão para fazer uma coisa.
Empurro o papel em direção a ela e, quando lê, ela franze a testa:
— Você vai saltar de paraquedas?

Alguns meses depois, acordo e um sorriso logo surge em meu rosto. Prendo
a respiração e tento ouvir o vento sacudindo as janelas, um sinal de que o voo de
hoje será cancelado, como tantas vezes antes. Tudo que ouço, porém, são
pássaros. É um bom sinal, especialmente porque hoje me unirei a eles nos céus.
Faz meses desde que vi o anúncio feito pela Young Dementia UK, uma
organização filantrópica com a qual sempre estive envolvida de alguma maneira.
Dessa vez, eles queriam levantar fundos organizando saltos de paraquedas.
Talvez esperassem que familiares ou cuidadores participassem. No entanto, eu
estava bem e em forma, e quem disse que pessoas com demência não podem
saltar de aviões?
Dirigimos sob o céu azul. Eu me perguntara se a médica aceitaria assinar a
autorização. Eu sabia que, a menos que ela autorizasse, os organizadores não me
deixariam participar. Contudo, por sorte, desde que leu meu primeiro livro, ela
mudou a forma como enxerga a demência. E então, quando fiz a solicitação, ela
revirou os olhos, balançou a cabeça e, sorrindo, assinou o papel.
Quando Gemma e eu vemos as primeiras placas indicando o aeródromo, me
lembro da última vez que vim até aqui para um voo de planador. Antes do voo, o
piloto havia chamado minhas filhas de lado e perguntado se eu podia fazer aquilo.
Eu tentei não me ofender, sabendo que aquela atitude de descrença era mais uma
razão para escrever um livro sobre o assunto. E então escrevi. Quando voltei à
terra, lógico.
Ao nos aproximar da saída para o aeródromo, encontramos tráfego. Olho
para o navegador do GPS: ele sinaliza que chegaremos em dez minutos, mas me
pergunto se está levando o trânsito lento em consideração. Gemma deve sentir
minha ansiedade, meu medo de me atrasar.
— Você está estressada por causa do trânsito, mas não porque vai saltar de
um avião? — pergunta ela, rindo.
De todas as vezes que contei às pessoas sobre meu último plano maluco,
sempre houve uma pausa, a descrença estampada nos olhos delas. Então eu
sentia a necessidade de dar um tom mais leve à situação e tranquilizá-las,
lembrando que saltaria de um avião a pouco mais de três mil metros amarrada ao
instrutor: não havia risco de que eu me esquecesse de abrir o paraquedas.
— Então posso relaxar e aproveitar — completava, dando de ombros.
Não sei se as pessoas ficaram convencidas.
Eu me pergunto de onde vem essa aversão ao risco. Com demência ou não,
minha qualidade de vida é tão importante quanto a de qualquer um, e quero
viver uma abundância de experiências e aventuras. Por que não?
Sentada ao lado de Gemma, que ri porque tenho medo de me atrasar, mas
não de estar em queda livre, sei que ela jamais pensaria em saltar de um avião.
Contudo, a atitude positiva e o apoio que ela me transmite significam que posso
fazer isso sem me preocupar. Minhas filhas me capacitam, constantemente me
encorajando com o choque e horror iniciais que sempre demonstram diante de
seja lá o que for que eu decida fazer em seguida. Elas abriram mão da
preocupação, assim como eu. Permitem que eu aproveite a vida e, por isso, serei
eternamente grata.
Finalmente saímos da estrada principal e pegamos o acesso ao aeródromo. Lá
sou apresentada às outras pessoas que também vão saltar e à toda a papelada que
preciso preencher. Ninguém menciona demência, nem mesmo quando nos
sentamos para tomar um chá, observando os outros paraquedas descendo das
nuvens.
Finalmente, meu nome é chamado. Dou um abraço final em Gemma e sigo
para o treinamento. O treinamento, lógico, é incrivelmente hilário para mim. O
instrutor fornece inúmeras orientações, frequentemente acompanhadas de uma
longa lista de coisas que devemos fazer e outra, ainda mais longa, do que não
devemos. Consigo reter uma delas: devo erguer os pés ao pousar. Vai ter que
servir.
Faço piadas para relaxar os outros, particularmente a mulher que foi
“surpreendida” pela família, naquela manhã, com um salto de paraquedas como
presente por seu aniversário de 50 anos.
Fico ao lado de uma jovem que também está saltando para arrecadar fundos.
Os dois homens que filmarão o salto iniciam uma conversa educada. Menciono
que estou saltando pela Young Dementia UK.
— Porque tenho demência — acrescento.
Eles ouvem, mas não reagem — afinal, são pessoas com uma mentalidade
igual a minha; pessoas que saltam de aviões por puro prazer; que buscam
aventura. Sei que eles não me considerarão um risco.
Meu traje é colocado a minha frente, mas só olho para ele, sem saber onde
colocar cada braço e perna. Subitamente, um homem gigante, todo vestido de
rosa pink, caminha decidido em minha direção.
— Vamos lá, deixa eu te ajudar a vestir isso — diz ele calmamente, com uma
voz que de algum modo não combina com sua estatura. — Vamos tornar este
dia inesquecível.
Não o contradigo.
Desse momento em diante, eu o chamo de Sr. Pink, e não sinto medo,
somente a total confiança de que ele me levará ao céu e me trará seguramente de
volta à terra. Todos os olhos estão em mim enquanto me preparo para ir até o
avião. Os observadores se reuniram em torno de Gemma, e os olhos deles
passam de mim para ela, como se perguntassem: “Ela deveria estar fazendo isso?”
Eu a abraço uma última vez e, para reconfortá-la, digo:
— Estou tão empolgada!
O traje vermelho e azul que estou usando é tão incômodo que ando gingando
até o avião. São necessários dois homens para me puxar para dentro dele. Fico
surpresa ao ver que o interior é uma casca vazia, sem assentos. Outras pessoas se
unem a nós e, em breve, iniciamos a corrida pela pista. Quando decolamos, os
motores do avião rugem em meus ouvidos. Eu me distraio com a vista
deslumbrante da costa enquanto o Sr. Pink comenta o que podemos ver lá de
cima: ao norte até Filey, Flamborough Head, Scarborough e Robin Hood’s Bay.
Quando o avião dá uma guinada para o sul para ganhar altitude, minha amada
ponte Humber surge no horizonte.
Demoramos cerca de vinte minutos para subir até os poucos mais de três mil
metros e um bipe sinaliza que é hora de saltar. O Sr. Pink me prende a ele com
firmeza e arrastamos os pés até a porta aberta do avião.
— Cabeça para trás, cabeça para trás — repete ele em meu ouvido quando
uma rajada de ar frio me atinge, roubando meu fôlego.
E então saltamos.
Estou flutuando, com a terra abaixo de mim e o Sr. Pink preso a minhas
costas como o casco de uma tartaruga. Estamos acima dos pássaros.
Caímos... muito depressa... então mais devagar... a 210 quilômetros por
hora, para ser precisa. Estamos em queda livre em direção à terra e estou
sorrindo, mais do que jamais sorri antes. Se isso não é liberdade, não sei o que é.
Lá em cima, não há demência. Lá em cima, a doença não habita meu cérebro.
Estou voando, livre de tudo que me prende à terra.
O tranco do paraquedas rosa pink me pega de surpresa e, quando ele se abre
acima de nós, sou invadida pela paz, pelo silêncio, por uma sensação de
imobilidade enquanto flutuamos gentilmente em direção à terra. As nuvens são
nossa companhia e o solo é um quebra-cabeça montado.
Uma voz em meu ouvido pergunta:
— Topa fazer algumas acrobacias?
E eu me ouço responder:
— Sim!
Zunimos pelo ar, girando para um lado e depois para outro. Fecho meus
olhos no início, porque tenho a sensação de que eles podem saltar das órbitas,
mas, depois que me acostumo, abro-os novamente e grito de satisfação,
enquanto o mundo passa girando por nós.
Voltamos à posição vertical. Lá em cima, parecia que estávamos descendo em
direção à terra muito lentamente, mas, quando nos aproximamos — Gemma
está acenando, e ela é um pontinho minúsculo —, vejo que, na verdade, estamos
caindo a uma velocidade alarmante.
— Erga as pernas — grita o Sr. Pink quando nos aproximamos, segundo a
segundo, da área de observação. Estou confusa, porque achei que o local de
pouso seria atrás do bosque.
— Erga as pernas — repete ele.
Entretanto, estou exausta, mais em função da animação que por qualquer
outra coisa. Sinto o sorriso ainda pregado em meu rosto, como se o vento o
tivesse deixado lá, mas não tenho mais energia.
Então ouço as pessoas gritando do solo:
— Erga as pernas, Wendy!
O Sr. Pink deve ter percebido, porque faz um pouso na água, como se
fôssemos um par de patos, e eu fico caída a seus pés.
— Perdemos o local de pouso por minha causa? — pergunto.
— Não — diz ele. — Tínhamos que mostrar a todo mundo que você
conseguiu.
Ele me abraça e solta os ganchos e zíperes. Dois outros homens se
aproximam e me ajudam a caminhar até o hangar, onde sou recebida com
aplausos e vivas e tiro meu traje.
Abraço Gemma e então um homem nos interrompe. Ele tira uma nota de
£20 da carteira, porque sabe que estou fazendo isso por filantropia.
— Isso foi incrível, parabéns — diz ele ao me entregar a nota.
Será que ele foi um dos que duvidaram quando subi no avião? Quem sabe?
Naquele momento, não me importo.
Se eu ouvisse o que todo mundo diz, jamais teria saltado de um avião. Jamais
teria feito metade das coisas que as pessoas dizem não serem possíveis para quem
vive com demência.
Por agora, de volta à terra firme, ainda estou vibrando — e planejando minha
próxima aventura. Por que elas deveriam chegar ao fim?
BIBLIOGRAFIA

SENTIDOS
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SCOTT, Hannah. The Impact of Dementia on the Selfhood and Identity of Women:
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AGRADECIMENTOS

É fácil ter o desânimo e a dúvida como companheiros ao ser diagnosticado com


demência, mas meu livro mostra que você jamais deve desistir de si mesmo;
outros farão isso em seu lugar.
Entretanto, aqui, em meu segundo livro — quem teria pensado, quase sete
anos atrás, que eu estaria digitando estas palavras? —, tenho tantas pessoas a
agradecer pelo apoio e encorajamento.
Minha adorável colaboradora e agora amiga, Anna Wharton, que, a despeito
de ter trabalhado em meu primeiro livro, decidiu que seria divertido trabalhar
comigo novamente.
Obrigada a Robert Caskie, por todo o apoio. Muito obrigada, é óbvio, a
Alexis Kirschbaum, por acreditar em mim mais uma vez, juntamente com toda a
maravilhosa equipe da Bloomsbury Publishing, incluindo Jasmine Horsey, Sarah
Ruddick, Kate Quarry, Stephanie Rathbone, Jonny Coward e Akua Boateng. Um
agradecimento especial a David Mann, que mais uma vez criou a capa perfeita.
Obrigada a todos os pesquisadores que mencionamos no livro, por decidirem
dedicar a carreira à tarefa de encontrar as melhores maneiras de viver com
demência, as melhores maneiras de prestar cuidados e as melhores maneiras de
cuidar daqueles que já não podem cuidar de si mesmos. Um agradecimento
ESPECIAL à professora Jan Oyebode, que tolerou com paciência e humor meus
incontáveis e-mails pedindo ajuda, juntamente com minha amiga, a professora
Pat Sikes, e a Dra. Julie Christie, pelo apoio e pela ajuda constantes.
A todos os meus amigos vivendo com demência, particularmente Gail,
George e Dory, sem os quais este livro simplesmente não teria sido escrito.
Vocês são minhas estrelas, juntamente com Innovations in Dementia, cujo
trabalho permite que demonstremos ao mundo que PODEMOS. Não tenho como
agradecer o suficiente.
No entanto, meu agradecimento final é dedicado a cinco pessoas. As pessoas
mais importantes de minha vida: Sarah, Gemma e Stuart. Sem o entendimento,
o amor e a contínua disposição que vocês têm de viajar por essa vida comigo, eu
estaria em um lugar muito diferente e muito solitário. E a Billy e Merlin, que
oferecem carinhos peludos, amor incondicional e risadas.
Sinta-se à vontade para ler meu blog e acompanhar minhas incontáveis
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O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre
demência
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