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MEMORIAL

Otavio Patrício Netto


netto.otavio@gmail.com; otavio.netto@ifc.edu.br
Instituição Associada: Instituto Federal Catarinense
Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica
Disciplina: Juventude, Trabalho e Escola
Semestre: 2022/2

INTRODUÇÃO

Não é todo dia que paramos para pensar sobre a nossa posição no espaço e
no tempo, sobre como chegamos até aqui, e sobre o que nos aguarda mais adiante.
Nesse sentido, a necessidade de escrever este memorial é uma oportunidade de
realizar essa reflexão. Havíamos realizado uma atividade semelhante na disciplina
de Metodologia de Pesquisa, porém com outra finalidade e foco. Ainda assim, para
fins de “honestidade acadêmica” perante aos nobres professores, informo que
partes daquela produção serão aproveitadas para esta atividade, com novas
reflexões. Revisitar situações passadas, com o conhecimento de mundo e o ponto
de vista que temos hoje, resultará em um entendimento diferente daquele que
tivemos na anteriormente (BONIN, 2013). Mesmo a pequena distância temporal
entre a produção do memorial da disciplina anterior e esta produção já faz grande
diferença na forma de analisar aquelas lembranças, considerando todas as
reflexões realizadas durante o mestrado; inclusive os materiais estudados nesta
disciplina, que, já durante a leitura, nos levam refletir sobre nossa própria juventude.

MINHA TRAJETÓRIA

Nasci em Florianópolis, em 1987, mas sempre morei em São José, até sair
da casa de meus pais já na vida adulta, aos 24 anos. Tenho uma irmã mais nova.
Meu pai cresceu no interior de Laguna (meu avô era carpinteiro, artesão e agricultor;
minha avó era dona de casa e também contribuía na agricultura). Apesar de ter
cursado técnico em contabilidade na sua juventude, meu pai trabalhou a vida toda
em gráficas, até sua aposentadoria. Minha mãe cresceu na mesma localidade no
interior de Laguna (meu avô foi mineiro de carvão em Criciúma e aposentou-se
cedo, mudando-se para Laguna, onde se dedicou principalmente à pesca e a uma
pequena chácara; minha avó era dona de casa e atuava na igreja coordenando
atividades de catequese, grupos de idosos, entre outras). Minha mãe foi dona de
casa, agente comunitária de saúde, e há mais de dez anos trabalha como técnica
de enfermagem. Concluiu seu ensino médio por meio da EJA, já na minha
adolescência, além do curso técnico em enfermagem. Recentemente, já após seus
50 anos, concluiu uma graduação em Enfermagem e uma especialização na área.
Entendi relevante voltar às gerações anteriores por entender que a forma
como meus pais foram criados teve grande influência na forma como eu fui criado.
Um exemplo é que ambos relatam que tiveram infâncias com poucos recursos.
Assim, em casa nunca nos faltou nada, mas nunca tivemos luxos, e aprendemos a
valorizar o que tínhamos. Outro exemplo é que, apesar de terem escolaridade
limitada, meus avós eram alfabetizados e meus pais sempre foram incentivados a
frequentar a escola e a buscar melhores condições de vida por meio dos estudos, e
isso chegou até mim e à minha irmã. Minha avó materna concluiu o Ensino Médio
por meio de EJA próximo dos seus 60 anos.
Aprendi as bases de leitura e escrita ainda em casa, de modo que pude
ingressar aos 6 anos no Ensino Fundamental na escola pública do meu bairro. De
modo geral, sempre tive facilidade para aprender e eram raras as notas baixas.
Sempre fui mais introvertido, então não tinha muitas amizades no Ensino
Fundamental. Já no Ensino Médio, em uma escola maior, também pública, me
integrei mais e cheguei a ter um grupo de amigos. Acredito que nunca cometi atos
graves de indisciplina, mas no Ensino Médio não eram raras algumas ausências em
aulas para ficar na quadra, piadas que atrapalhavam as aulas, ou algumas ações
que atrapalhavam os professores e colegas.
De modo geral, meus amigos e eu tínhamos bom desempenho,
conversávamos sobre livros, música, cultura. Com alguns deles, fazia parte de um
grupo de música, em que aprendíamos uns com os outros, apoiados por um
professor. Chegamos a nos apresentar em um evento promovido pela escola na
época, o que nos fazia “sentir especiais” e nos motivava. Ali tive oportunidade de
compor o Grêmio Estudantil, participando ativamente na criação do órgão, motivado
em parte pela busca de melhorias na escola, em parte pela oportunidade de fazer
atividades extras com meus amigos. Paralelamente, comecei a participar de um
grupo de jovens da igreja do meu bairro, em que alguns amigos da escola também
participavam. Ali também passamos a tocar em missas e éramos algumas das
referências do grupo, principalmente quando os mais velhos iam saindo e novos
membros entravam.
No último ano da escola, me transferi para o turno noturno para poder
trabalhar, separando-me dos meus amigos mais próximos da escola. O trabalho
ocorria também aos domingos e em alguns sábados, o que limitava o contato com
meus amigos no grupo de jovens. Isso me fazia detestar ir para o trabalho,
principalmente nos finais de semana. Após alguns anos, meus pais concordaram
com minha saída daquele trabalho. Trabalhei por um tempo na gráfica junto com
meu pai (com o compromisso de não seguir aquela profissão), podendo me dedicar
mais aos estudos. Com isso, pude voltar a me envolver com o grupo de jovens.
Nesse período, fiz meu primeiro vestibular, sem sucesso. Depois tive
oportunidade de fazer um cursinho pré-vestibular, pago com muito custo por meus
pais. Acompanhava bem as aulas e tive a impressão de que aprendi muito mais ali
do que tinha aprendido em todo o meu ensino médio. No meio daquele ano, fiz meu
segundo vestibular, sendo classificado na primeira etapa, mas não avançando após
a segunda etapa. Percebia que, enquanto a maior parte dos colegas de cursinho
almejavam carreiras mais disputadas (com destaque para Direito, Administração e
Medicina) e participavam ativamente de aulões, reforços, monitorias, eu
basicamente conseguia acompanhar as aulas e pensava em cursos com menor
concorrência, para tentar garantir o acesso.
Também durante esse período, após retornar aos grupo de jovens, montei
uma banda de rock com alguns amigos e passamos a tocar em alguns bares e
festivais. Éramos conhecidos entre os frequentadores do bar em que nos
apresentávamos mais frequentemente, além de participar de alguns festivais do
cenário underground da região da grande Florianópolis. Naquele contexto, eu me
sentia relevante e as coisas pareciam dar certo, de modo que tinha prazer em
dedicar algumas horas dos finais de semana para ensaios e participação em
eventos.
Durante o segundo semestre do ano que eu estava fazendo cursinho, faltei a
algumas aulas para encontrar amigos da música, e logo já não acompanhava mais
tão bem as aulas. Apenas no fim do ano voltei a me dedicar de forma mais intensa,
o que possibilitou ser aprovado no curso de Letras-Inglês na UFSC.
Iniciei o curso motivado e buscando me dedicar. Percebi que muitos colegas
já tinham conhecimento prévio de inglês e haviam feito cursos de idiomas, enquanto
o meu conhecimento era limitado ao que havia aprendido na Educação Básica.
Durante o primeiro ano, trabalhava em uma empresa de digitalização de
documentos. Novamente acabava não participando das atividades extras e de
reforço que eram oferecidas no contraturno, nem de disciplinas optativas. A partir do
segundo ano consegui um estágio em uma escola de idiomas como monitor,
recebendo uma bolsa de valor baixo mas com a possibilidade de fazer
gratuitamente um dos cursos ofertados pela escola. Ali vi meu rendimento aumentar
muito. Seguia sem conseguir participar nas atividades ofertadas pela universidade
no contraturno, mas o que aprendia em uma atividade me ajudava a melhorar na
outra.
No ano seguinte passei a atuar como professor auxiliar e logo como titular de
algumas turmas. Porém, neste ponto, meu rendimento na faculdade estava caindo,
pois as aulas exigiam cada vez mais dedicação extraclasse, com necessidade de
leituras e pesquisas de campo. Sem estar a par das leituras e atividades, minha
capacidade de acompanhar as discussões era comprometida. Comecei a ter atrasos
para as aulas, às vezes por conta dos horários de trabalho; às vezes porque tentava
fazer as leituras em cima da hora, antes das aulas. Me sentia angustiado por me
atrasar para as aulas, e com frequência optava por ficar fora de sala, tentando me
colocar a par das atividades, ou apenas vagando pelo campus. Isso, claro, me
afastava ainda mais de acompanhar bem o curso.
No trabalho, em certo momento passei a considerar que o salário como
professor de inglês não me parecia atrativo pelo volume de trabalho. Assim,
comecei a avaliar outras alternativas que, na época, me pareciam mais promissoras.
Me inscrevi no curso Técnico em Hospedagem no CEFET, e iniciei as aulas no ano
seguinte, já como IFSC. Estudava pela manhã na UFSC, trabalhava na escola de
idiomas à tarde e estudava à noite no IFSC.
Novamente, iniciei animado e disposto a me dedicar ao curso. Tinha bom
aproveitamento nas disciplinas, participava bem das discussões em sala.
Entretanto, comecei a enfrentar dificuldades quando iniciaram as atividades de
Projeto Integrador e de Estágio Curricular, que exigiam grande dedicação de tempo
extraclasse. Mais uma vez, comecei a ter dificuldades em acompanhar o curso e
logo passei a faltar a algumas aulas e a ter cada vez mais dificuldades. No fim do
ano tranquei o curso e nunca retornei.
Em 2009 o IFC abriu concurso para vários cargos da carreira
técnico-administrativa em educação, sendo um dos cargos o de Assistente de
Aluno, para o qual o pré-requisito era Ensino Médio completo e experiência
profissional de 6 meses – coisas que eu tinha. Me inscrevi e, felizmente, muitos
temas que havia aprendido nas disciplinas da área pedagógica do curso de Letras
caíram na prova, e fui aprovado. Ainda sem uma carreira definida e com meu
projeto de educação formal bastante retalhado, não tive muita dificuldade em decidir
por abandonar o curso e assumir o cargo em outra cidade. Assim, em 2010, aos 24
anos, ingressei no serviço público.
Aí inicia o período de maior estabilidade da minha carreira. Logo que cheguei
ao campus atuei supervisionando os estudantes da Moradia Estudantil, trabalhando
nas noites e madrugadas em regime de escala. Passei a me preocupar mais com
minhas atitudes tanto dentro quanto fora do trabalho, pois era esperado um controle
disciplinar daqueles alunos e precisávamos cobrar certas posturas dos estudantes,
e eu entendia que deveria também educar pelo exemplo. Nesse período, pude me
integrar aos projetos esportivos e culturais desenvolvidos junto aos alunos, além de
acompanhar outras atividades desenvolvidas pela equipe de orientação
educacional. Em 2012, aos 26 anos, fui convidado a atuar como Chefe de Gabinete
junto à Direção-Geral do campus. Em 2014, assumi a Coordenação-Geral de
Assistência Estudantil (CGAE), responsável pelo apoio aos estudantes em questões
de aprendizagem, permanência e êxito, além de questões disciplinares. Ainda em
2014 fui aprovado em um novo concurso público para o próprio campus, para o
cargo de Assistente em Administração.
Uma curiosidade sobre este período é que, como eu era ainda muito jovem
quando assumi a chefia de gabinete do campus e precisava interagir com
autoridades da instituição e do município, passei a usar barba para parecer mais
velho e assim me sentir mais respeitado. Quando assumi a coordenação da CGAE,
e tinha que tratar com estudantes e familiares, mantive o uso da barba pelo mesmo
motivo. Não sei se de fato isso teve efeito nos demais, mas me fazia sentir mais
seguro. É algo que hoje avalio como bobo, mas que na época fez sentido para mim.
Quanto à formação acadêmica, busquei cursos que pudessem ser
compatíveis com os horários de trabalho e, sem sucesso em encontrar um curso de
Letras-Inglês a preço acessível na região, me inscrevi no curso de Licenciatura em
Artes Visuais da UNIASSELVI, na modalidade semi-presencial. Realizei todo o curso
com bastante dedicação, consumindo todos os materiais extras que eram ofertados,
praticamente sem ausências às aulas. Na época, senti que aprendia muito mais
nessa instituição (em um formato tido como menos intenso e entendido por alguns
como de pior qualidade) do que na UFSC. Porém entendo que minha maturidade e
dedicação foram muito maiores no curso mais recente, além de entender que ali eu
possuía as condições necessárias para realizar o curso com qualidade. Hoje
percebo que minha formação em pesquisa, extensão e mesmo em práticas da área
que estudei foram pouco desenvolvidas na minha graduação por conta da proposta
do curso; ainda assim, entendo que, dentro da proposta, tive um bom
aproveitamento. No IFC, o ambiente e as discussões realizadas com colegas (a
maioria com mestrado e doutorado) me fizeram considerar aprofundar meus
estudos. Além de conhecimento, entendia que teria maior legitimidade em minhas
colocações se tivesse um título de pós-graduação.
Com relação à minha vida pessoal, hoje resido em Joinville com minha
esposa, com quem namorei desde 2011 e sou casado desde 2014. Vale destacar
que o período de estabilidade na minha carreira e organização da minha vida
coincide com o período em que iniciamos este relacionamento. Também moram
conosco meus sogro (que é na verdade o dono da casa em que moramos), e um
sobrinho que está informalmente sob nossa “tutela” há 3 anos, e que está agora
próximo de concluir o Ensino Fundamental.

CONSIDERAÇÕES

Apesar de ter uma condição financeira limitada, minha família me


proporcionou boas condições para meu desenvolvimento. O trabalho sempre fez
parte da minha vida, mas, apesar de contribuir nas despesas da casa, não éramos
dependentes da minha renda para garantir nosso sustento. Mesmo tendo uma
família estruturada e presente, bom desempenho escolar e oportunidade de
integração na comunidade, tive grande dificuldade em desenvolver uma carreira.
Como sempre precisei trabalhar e estudar, dificilmente tinha condições de participar
de atividades extras que poderiam me possibilitar um crescimento maior. Além
disso, como muitos cursos parecem ser feitos para atender pessoas que não
tenham mais nada o que fazer (remetendo à ideia de escola como lugar do ócio), a
grande demanda de trabalhos e projetos curriculares extraclasse dificultaram ou
mesmo inviabilizaram o êxito nos cursos. Entretanto, ler os exemplos apresentados
por Dayrell (2003), ou dos jovens retratados na série Diz Aí Amazônida, me faz
pensar que “reclamo de barriga cheia”, já que possuo condições melhores que a
maioria dos jovens mencionados. Porém, entendo que não deveríamos “nivelar por
baixo” e pensar que se há pessoas em condições ruins então então não se pode
buscar condições melhores. O ideal seria garantir a todos a possibilidade de se
dedicar integralmente aos estudos durante o período de formação.
Não posso, todavia, colocar toda a culpa do meu não aproveitamento na falta
de tempo. Isso porque, apesar de ter condições razoáveis, não as aproveitei da
melhor forma e isso certamente interferiu no meu desenvolvimento pessoal e
profissional. Além disso, não posso negar que o descanso é uma atividade que
sempre apreciei, e que apenas a necessidade de trabalhar é que me impede de
praticá-la mais.
Me identifico com a presença da música e da cultura na vida dos jovens
retratados por Dayrell (2013) na série Diz Aí Amazônida. Por várias vezes durante
minha formação, o que mais me motivava a ir para a escola era a possibilidade de
encontrar meus amigos, e tínhamos certa influência uns sobre os outros (tanto
positiva quanto negativa). Essas relações foram fortalecidas ou expandidas pela
participação em atividades extraclasse voltadas à cultura, esporte e lazer e pelos
grupos dos quais participei. Assim como no caso de João e Renatinho (DAYRELL,
2003), eu também tinha na música meu momento de maior realização e
socialização, e também alimentava o sonho de viver da música. Conforme o tempo
foi passando, me ajustei à realidade e passei a me preocupar em ter uma colocação
no mercado de trabalho.
Na verdade, como pode ser observado relato que fiz, o ingresso no serviço
público foi o que ajudou a colocar minha vida nos eixos, pois até aquele momento
eu não havia realizado nada e nem tinha um plano definido. Posso dizer que a partir
da estabilidade no trabalho, que representou também estabilidade financeira, foi que
passei a ter mais tranquilidade para me dedicar à minha formação, em um formato
adequado à minha disponibilidade de tempo. A própria disponibilidade de tempo
também acabou sendo maior, já que me mudei para uma cidade em que não tinha
amigos ou outras atividades que tomassem meu tempo. De certa forma, realizei a
transição discutia por Dayrell (2013) de uma postura marcada pela diversão e pelo
encontro com amigos para uma postura séria, inclusive mudando hábitos buscando
a “ser respeitado” como adulto.
Percebo um ponto de choque entre meus pontos de vista como adulto e
como jovem. Hoje entendo que se tivesse usado menos tempo da minha vida para
“outras ocupações” e tivesse me dedicado mais à busca por uma formação melhor,
com maior seriedade, poderia estar em melhores condições de vida hoje. Inclusive,
tento passar essa consciência aos mais novos. Por outro lado, entendo que as
experiências que tive ajudaram a formar quem sou, e entendo que, na época,
somente elas faziam sentido. Também tento respeitar isso nos mais novos.

REFERÊNCIAS

BONIN, Luiz Fernando Rolim. Indivíduo, cultura e sociedade. In: STREY, Marlene
Neves et al. Psicologia social contemporânea: livro-texto. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013. p. 53-65. Edição digital. Disponível em:
<http://pablo.deassis.net.br/wp-content/uploads/Psicologia-social-contemporanea-M
aria-da-Graca-Correa-Jacques.pdf>. Acesso em 22 abr. 2022.

DAYRELL, Juarez Tarcísio. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de


Educação, n. 24, p. 40- 52, set-dez, 2003. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a04. Acesso em: 17 set. 2022.

DIZ AÍ AMAZÔNIDA. Canal Futura, 2014/2015. Programa de TV. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=n1SlZ2pH2UA&ab_channel=CanalFutura Acesso
em 17 set. 2022.

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