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Conto

OS TRÊS REINOS
Por Claudine Bernardes e Valdirene Carvalho
“Sei que não posso viver automaticamente: preciso de
amparo e é do amparo do amor.”
Clarice Lispector

Primeira parte
Ela abriu a porta de casa e foi recebida pelo silêncio. Não houve “boa tarde”, seu sanduíche
favorito não estava sobre a mesa, ninguém a questionou sobre como tinha sido o seu dia. Depois
de preparar um lanche, com os ombros caídos e o olhar distante, sentou-se na varanda, para encher
seu silêncio com o barulho que chegava da rua.
Há um tempo não muito distante, tudo era diferente. Mas de repente percebeu que tudo aquilo
havia acabado, a infância fora embora, tão rápida como uma viagem de trem-bala. E com ela foi-
se também seu porto seguro, seu castelo de encantamentos, de carinho, atenção, cuidados, afagos
e melodias que cheiravam ternura. Agora, aos catorze anos, sentia como se não tivesse identidade.
Chamam-lhe de aborrescente, rebelde sem causa.
Muitas vezes, ignoravam de maneira irônica seus sentimentos e simplesmente diziam que já não
era mais criança e que deixasse de agir como tal. Às vezes, sentia-se como um porco-espinho,
quando na verdade desejava ser ímã e poder atrair pessoas dispostas a dar- lhe atenção, a ouvir o
que tinha a dizer. Sentindo-se invisível, percebe que dentro de si uma voz ecoa pedindo socorro.
Porém, seu grito de socorro é mudo, para dentro, pois tem medo dos julgamentos, da
incompreensão, da indiferença. O eco parece ter sido engolido por uma gigantesca montanha, e já
não ecoa mais nos ouvidos daqueles que a cercam.
Mas quem se importa? Quem está disposto a romper a distância que existe entre os corações?
Quem se atreve a construir uma ponte sobre esse abismo?
Ninguém responde! Só silêncio!
Segunda parte
Chegou a noite e ela, reservada no seu próprio silêncio, dirigiu-se para seu quarto. Ao repousar
a cabeça no travesseiro, sentiu-se abraçada pela mais fria solidão. Parecia estar totalmente sozinha
no mundo, embora rodeada por pessoas. É difícil dormir quando a lembrança de palavras hostis,
escutadas durante o dia, ataca seus pensamentos. Porém, o cansaço acabou vencendo a dor e ela
adormeceu.
No seu mundo de sonhos, encontrou-se num oásis de rara beleza, paz e harmonia. Um lugar
cheio de encantamentos, muito diferente do mundo hostil e turbulento no qual ela vivia. Começou
a andar sentindo a brisa fresca acariciando seu rosto, quando, de repente, como num passe de
mágica, apareceu uma linda fada com sua varinha de condão e rodopiando à sua volta disse:
— Sou sua fada madrinha e estou aqui para ajudá-la a seguir sua jornada. O seu caminho estará
cheio de provas e desafios a serem vencidos, porém você é forte e capaz de vencer. Venha comigo,
que a acompanharei numa viagem a reinos distantes, e você deverá escolher em qual deseja viver.
A fada moveu sua varinha e num instante ambas foram transportadas para um novo lugar.
— Esse é o reino de Cristal. Tudo aqui é de cristal, inclusive as pessoas. No reino de cristal,
todos caminham com as pontas dos pés, evitam falar e quase não se comunicam, tudo por medo de
quebrar algo.
— Parece bom viver aqui – disse a jovem. – Todos parecem muito respeitosos e cuidadosos.
De fato, são – respondeu a fada. — O problema é que eles não aprenderam a relacionar-se entre
si, não falam dos seus sentimentos, não expressam seus medos, frustrações, inseguranças, tudo por
medo de ofender aos outros e gerar uma ruptura. E assim vão guardando tanta energia dentro de si
que um dia acabam explodindo. Ah! E quando isso acontece é um desastre, porque acabam
machucando-se e a todos que estão à sua volta.
E, num passe de mágica, a fada a levou para um novo reino, onde tudo era feito de pedra. As
casas pareciam lugares sólidos e perenes, as pessoas caminhavam com muita firmeza e a jovem
disse:
— Fada, as pessoas desse reino parecem muito seguras de si, elas caminham com firmeza. Eu
gostaria de parecer forte e poderosa como elas.
— Ah, minha querida! Toda essa aparente força tem um preço. Essas pessoas que você vê têm
um coração endurecido, dizem sempre o que pensam sem preocupar-se com os demais. Elas
esmagam os outros com a força e o poder das suas palavras, tanto que acabaram escravizando as
pessoas que vivem no Reino de Cristal.
— Que horrível! – disse a jovem. — Eu não quero viver num reino assim, e também não quero
viver no Reino de Cristal, onde as pessoas são escravas.
Sem mais explicações, a fada moveu sua varinha e a transportou para um novo lugar. A jovem
se surpreendeu, era algo totalmente diferente de tudo o que havia visto. Um lugar cheio de cores e
formas, e, à medida que elas caminhavam pelas ruas, as casas, as árvores e até as pessoas iam se
transformando.
— Que lugar incrível! Onde estamos? – perguntou a jovem.
— Estamos no Reino da Resiliência – respondeu a fada. — Aqui, tudo é feito de materiais
moldáveis, como a borracha, por exemplo, que mudam de forma para adaptar-se às necessidades...
– De repente, a fada foi interrompida por um barulho de disparo de canhão, e uma grande pedra
começou a cair sobre um grupo de pessoas que não tiveram tempo de fugir. Quando a pedra caiu
sobre elas, em vez de esmagá-las, voltou a saltar para longe.
— Uau! O que foi isso? – perguntou a jovem.
— Ah, minha querida! O Reino da Resiliência é constantemente atacado pelo Reino de Pedra,
porém este não consegue vencê-lo. As pessoas daqui estão acostumadas a pedir ajuda, se protegem,
falam dos seus problemas. Como você pode ver, tudo aqui se transforma, porém o material é sempre
o mesmo, assim elas conseguem manter a essência e viver em paz, apesar de serem constantemente
atacadas.
A jovem compreendeu que deveria aprender a se expressar, se aceitar e amadurecer, para viver
naquele reino. Após ser ouvida com generosidade e guiada pela fada madrinha para aprender a falar
sobre seus sentimentos, sentiu que finalmente havia encontrado um caminho a seguir. Mas os
sonhos não duram muito, não é mesmo?
E, quando a jovem acordou, percebeu que tudo ao seu redor continuava igual, porém ela se sentia
diferente. Então, foi para o colégio como todos os dias, desejando que aquele sonho se tornasse
realidade, quando de repente entrou na sala de aula uma nova professora. Com um grande e
caloroso sorriso, ela tirou da bolsa uma varinha de condão exatamente igual àquela que ela viu no
sonho e disse:
— Hoje, vou contar-lhes uma história, uma linda história!
Preparem-se para conhecer novos mundos...
A jovem sentiu como se uma brisa fresca tocasse seu rosto, e logo compreendeu que aquela
professora seria a fada que a guiaria e mudaria sua história. Agora, sentia-se leve como uma brisa
e forte como uma ventania, pois já não era mais tão sozinha e frágil como antes.

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