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TRANSGENERIDADE
Uma forma de ser e de estar no mundo
São Paulo
2018
DEDICATÓRIA
Aos meus amigos, colegas e clientes, que me ensinam dia a dia que a autenticidade e
felicidade vão de mãos dadas
Ao meu companheiro de vida, Mikio, que me acompanha incondicionalmente no meu
caminho de formação profissional
Aos meus pais, que nunca deixam de acreditar em mim
AGRADECIMENTO
A Myrian Bove Fernandes, minha terapeuta querida, por seu olhar cheio de amor.
A Luiz Lilienthal, professor e supervisor, por me acompanhar neste recomeço.
Ao IGSP, instituto que me acolheu desde que cheguei a São Paulo, me brindando
todas as possibilidades para que hoje esteja fechando esta Gestalt.
A Ana Paula e Ceni, pela sua disponibilidade para ajudar em todos estes anos.
A minha amiga Mayra, que me auxiliou com a revisão do português.
“A normalidade é uma estrada pavimentada:
confortável de se andar, mas flores nunca
crescerão nela.”
(Vincent Van Gogh)
RESUMO
RESUMEN
1 INTRODUÇÃO …………………………………………………………………8
1.1 Justificativa ………………………………………………………………………9
1.2 Objetivos …………………………………………………………………………9
1.2.1 Objetivo geral …………………………………………………………………….9
1.3 Metodologia ……………………………………………………………………..10
2 DIVERSIDADE SEXUAL ..…………………………………………………...10
2.1 Expressões da diversidade sexual…..……………………………………………10
2.1.1 Sexo biológico….………………………………………………………………...10
2.1.2 Orientação sexual .……………………………………….……………………….11
2.1.3 Identidade de gênero .………...……………………….…………………….……11
2.1.4 Expressão de gênero .……...……………………………………………….…….11
2.2 Transgêneros ..…...…………. .……………………….………………………….11
3 COMO E PARA QUE A GESTALT-TERAPIA ...…………………………...12
3.1 O campo organismo/ambiente .…………………………………………………..14
3.1.2 O campo organismo/ambiente em ação .…………………………………………14
3.1.3 Contato, Fronteira de contato e Ciclo de contato .………………….…………….14
3.1.4 Figura/fundo .………………………………………….…………………….……15
3.1.5 Ajustamento criativo .………………………………………….…………………15
3.1.6 Self .………………………………………….…………………………………...16
4 LIBERDADE DE GÊNERO .…………………………………………………. 16
5 A GT COMO VIA PARA PENSAR A TRANSGENERIDADE ...…………..19
5.1 Do biomédico ao queer …………………………………………………………..19
5.2 GT: o mapa não é o território .………………………………………………...….20
5.3 O processo socializador e os âmbitos socializantes.……………………………...23
5.3.1 Família …….…………………………………….………………………………. 23
5.3.2 Escola ………………………………………….…………………………………24
5.3.3 Trabalho ………………………………………….………………………………26
6 CONCLUSÕES.………………………………………….……………………...27
6.1 Considerações finais ……………………………………………………………..28
6.2 Propostas para desenvolvimento futuro ………………………………………….29
REFERÊNCIAS …………………………………………………………….…..30
1 INTRODUÇÃO
1.1 JUSTIFICATIVA
Diversas teorias têm sido desenvolvidas sobre a temática que pretendo abordar. Muitas
delas em certa forma falam por mim, mas não tudo…
Do meu querido Prof. Alejandro Spangenberg, ouvi lá no ano 94, que “la Gestalt es
una forma de ser y de estar en el mundo”. Aprendi… e ainda tento apreender.
Desde meu lugar de mulher, companheira, amiga, cidadã, trabalhadora, tento
contribuir ao máximo na desconstrução do estabelecido e seguido acriticamente pelas pessoas
que muitas vezes se comportam como rebanho. Desde meu lugar de psicóloga sinto urgência
em começar a pensar e falar cada vez mais desta temática. Ainda temos colegas que têm
preconceitos tão enraizados que nem sequer os reconhecem como tal. Desde meu lugar de
gestalt-terapeuta, quando sai dos livros que mais falam da temática (que muito conhecimento
me proporcionaram) percebi que nossa teoria é maravilhosa para entender a temática. Aí
vieram de repente: self, campo, ajustamento criativo, fronteira de contato, enfim, todos esses
conceitos que trazem o movimento e a transformação.
Poderia justificar o meu trabalho baseada nas estatísticas de mortes, violências,
exclusões que transexuais sofrem, trabalho importantíssimo que considero que muita gente
faz, mas quero justificar a importância do meu trabalho desde este meu sentir gestaltista,
desde este outro olhar teórico. Hei de tentar colocar outro grãozinho de areia, conjugando
teoria e afetos, neste enorme universo que é formado pelas paixões humanas, onde fluem e
confluem amores, ódios, alegrias, raivas, tristezas, dores, plenitudes.
1.2 OBJETIVOS
1.3 METODOLOGIA
O sexo biológico é aquele que se corresponde com os genitais. Fala das características
biológicas e anatômicas da pessoa ao momento do seu nascimento, podendo ser homem,
mulher ou intersexual, estes últimos são pessoas que desenvolvem características biológicas
e/ou anatômicas de ambos sexos.
É como a pessoa manifesta publicamente a sua identidade de gênero. Não tem a ver
com a experiência identitária do gênero, tem a ver com o que na sociedade tradicionalmente
se entende como referente ao universo feminino ou masculino, por exemplo, mulheres usam a
cor rosa e saia, enquanto homens usam a cor azul e calças. Corresponde aos estereótipos e
modelos de masculino e feminino que definem os papéis de gênero estabelecidos histórica e
culturalmente, que se expressam em ações de acordo com expectativas e normas sociais sobre
como a pessoa deve agir e sentir, diferenciando o que sentem mulheres e homens.
2.2 TRANSGÊNEROS
Em primeiro lugar é importante esclarecer que é fácil encontrar diversos textos falando
a respeito, onde a informação transmitida é diferente, já que este é um tema que possibilita
revisões teórico-conceituais que emergem do próprio campo.
Neste texto as seguintes conceptualizações concordam com o entendimento que se tem
no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero (AMTIGOS) do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas, pertencente à Faculdade de Medicina da USP. O
Psiquiatra Daniel Mori resume na sua fala os mais comuns1.
Falamos em transgêneros quando a pessoa assume e expressa uma identidade de
gênero diferente ao sexo biológico, podendo querer modificar, ou não, seu corpo por via de
hormônios, cirurgias de redesignação sexual, implantes de mamas, sem que isso pressuponha
uma orientação sexual determinada.
Transgeneridade é um termo guarda-chuva que abrange múltiplas experiências e
maneiras de sentir a identidade. A modo de exemplo temos:
Transexuais não se identificam com seu sexo biológico, querendo poder modificar ou
1
https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/brasil/2018/01/03/transgeneros.htm Acesso em
30/08/2018
não seu corpo.
Travestis vivenciam papéis de gênero femininos, mas podem não se reconhecer como
homens ou mulheres, e sim como de um terceiro gênero ou um não gênero. Por outra parte
deve salientar-se que este termo só existe na América Latina e implica uma série de
conceptualizações à respeito que implicam múltiplos atravessamentos.2
Crossdressers buscam vivenciar papéis de gênero diferentes e para isso usam
vestimentas e adereços diferentes aos do seu gênero. Não estruturam identidade transexual ou
travesti.
Não binários são pessoas cuja identidade de gênero não é completamente masculina
ou feminina, ou tem elementos das duas.
2
Para quem estiver interessado indico uma matéria feita pela Amara Moira:
http://midianinja.org/amaramoira/travesti-ou-mulher-trans-tem-diferenca/ Acesso em 30/08/2018
3 COMO E PARA QUE A GESTALT-TERAPIA?
A Gestalt Terapia para poder olhar o mundo interno, olha como está sendo a relação
da pessoa com o mundo, com os outros. O desenvolvimento acontece aqui e agora, em um
espaço e em um tempo, onde sempre há um outro e onde a pessoa pode satisfazer suas
necessidades. Este movimento acontece na fronteira de contato e determina o que chamamos
de contato. A experiência é o ato que acontece nessa fronteira, enquanto o contato é
awareness do campo, o conhecimento imediato e implícito dele. O contato facilita que a
pessoa esteja em concordância consigo mesma, conseguindo assim satisfazer suas
necessidades. “A awareness é um meio contínuo para manter-se atualizado com o próprio
eu”. (Polster; Polster, 2001, p.217).
“Basicamente o contato é a consciência ‘de’ e o comportamento ‘para’ com as
novidades assimiláveis, e a rejeição das novidades não assimiláveis. O que é difuso, sempre
igual, ou indiferente não é um objeto de contato”. (Polster; Polster, 2001, p.113).
O Ciclo de contato é um processo que começa com uma sensação e leva a mobilização
da energia para efetuar uma ação para assim satisfazer uma necessidade.
3.1.4 Figura/fundo
Cada sujeito que participa em uma situação o faz em função das suas necessidades e
estas se expressam através da emergência de uma figura. Quando uma configuração ainda não
está definida, está no fundo. As figuras emergem de um fundo onde inicialmente estavam
indiferenciadas. No processo da formação da figura é o fundo mesmo que lhe dá forma e
significado. Ou seja, a figura tem a ver com os interesses da própria pessoa. “O
desenvolvimento da awareness pode ser comparado ao surgimento de uma figura nítida, ao
passo que o estágio de assimilação e retração se assemelha à destruição da figura em meio ao
fundo homogêneo. Assim, sensação, awareness e ciclo de contato são o processo por meio do
qual uma figura emerge”. (Zinker, 2007, p.110).
3.1.6 Self
Gestaltistas têm diferentes entendimentos do self. Para Ponciano, por exemplo, “o self
é um sistema da personalidade, cuja função é colocar-se alternativamente como figura e/ou
como fundo nas relações com o mundo exterior.” (Ponciano, 2007, p.44)
Diferente à estrutura, há quem entenda o self como processo que determina a
capacidade de se ajustar à situação. De fato, o ajustamento criativo é uma função essencial
dele. Não se pensa no self como uma dimensão fixa, pois se faz presente quando acontece
uma interação na fronteira de contato.
Outros autores entendem o self como processo e estrutura. “O self, tal como entendido
pela Gestalt Terapia, manifesta-se por meio de funções que são indissociáveis, a não ser por
razões de ordem retórica, umas podendo ser privilegiadas em relação às outras, dependendo
do momento da experiência. Assim, aquilo que diz respeito a necessidades, apetites, instintos,
desejos, virá fundamentalmente da ‘função Id’. Aquilo que diz respeito às representações, isto
é, a experiência anterior e o conhecimento de si, será designado pelo conceito de “função
personalidade” do self. O engajamento desses dois modos de funcionamento do self na
atividade atual, ou seja, sua atualização nas escolhas e rejeições, na experiência de contato
organismo-ambiente, será gerado pelo self em sua função ego”. (Robine, 2006, p.61)
Seja entendido de um jeito ou de outro, o self é o responsável por avaliar as
possibilidades que estão presentes no campo e integrá-las à sua formação em prol de
satisfazer as necessidades do organismo.
4 LIBERDADE DE GÊNERO3
3
Serie exibida pelo canal GNT, segunda temporada. Acesso em 30/08/2018
compromisso com a vida. No meu critério, os depoimentos, que podem se assistir na série,
estimulam a desconstrução de ideias que estão presentes na sociedade e que muitas vezes são
sequer questionadas. Tenho intuito de provocar reflexões sobre a temática e dar visibilidade a
esta realidade presente no nosso mundo, e muitas vezes invisibilizada. Necessidade de
modificação corporal, situações de preconceito, abandono, descoberta como transgênero,
aceitação ou não da família, percepção de si mesmo, são temas abordados. Falas sobre
orientação sexual, identidade de gênero, cirurgias, roupas, modificações corporais,
reconhecimento social, brincadeiras e jogos de criança, discriminação, violência, aparecem
em todos os vídeos.
Assim como as pessoas que não tem informações sobre a temática, confundem muitas
vezes orientação sexual com identidade de gênero, pode se observar a mesma confusão nas
pessoas trans, ao começo do seu questionamento. Isto tem a ver com o mandato
heteronormativo, que impera em nossa sociedade, e que em um primeiro momento faz pensar
que sentir-se de um gênero implica necessariamente a atração pelo gênero oposto. A
“confusão” aumenta quando pessoas trans se sentem atraídas por pessoas do seu mesmo
gênero, “Como assim? ‘Virou homem’ e agora gosta de homens?”. Parece quase inconcebível
essa possibilidade quando não se tem a informação do que é ser trans. Quando informamos
que a possibilidade de existência como trans se trata de uma questão de identidade, a
“confusão”, embora nem sempre esclarecida, admite-se a possibilidade de ser trans e
homossexual, bissexual, heterossexual.
No processo de construção da identidade das pessoas trans, podemos pensar que
elementos específicos como estigmatização e estereótipos, e formas de lidar com isto, se
destacam. A auto percepção, não confirmada pelo meio, faz necessária, muitas vezes, uma
corporificação do seu sentir, a través de processos de terapias hormonais, cirurgias, etc. A
construção da identidade de gênero, implica fatores genéticos, biológicos, hormonais,
psicológicos, sociais, culturais, o que me faz pensar que é na fronteira de contato que
acontece. A percepção que as pessoas têm de si mesmo, precisa da confirmação ou
reconhecimento do outro. A identidade de gênero das pessoas trans, o reconhecimento que a
pessoa tem de si, como masculino ou feminino, independente da sua genitália, não é uma
questão particular, entanto existe uma necessidade de reconhecimento do seu contexto social,
que habilite o pertencimento como lugar de ser e estar no mundo com os outros.
Entre a experiência profunda de mal estar que provoca o corpo em muitas pessoas
trans e o não reconhecimento de essa forma de existência na sociedade, a necessidade de fazer
intervenções cirúrgicas para “pertencer” ao gênero identitário e deixar de ser estigmatizados,
torna-se uma busca constante de “concordância” entre gênero e corpo. Porém, até onde é
preciso recorrer a esse tipo de transformações, é particular e único para cada pessoas,
existindo também pessoas que não sentem essa necessidade.
No processo de socialização entra-se em contato com o que está estabelecido,
instituído, para a vida em sociedade. Nessas interações a pessoa se constrói influenciada pelo
que vem de “fora”, para acabar, muitas vezes reproduzindo comportamentos, formas de ver o
mundo. Pessoas trans descobrem desde cedo que não correspondem às expectativas que se
tem sobre eles, sem entender muitas vezes, o motivo de não ser aceitos, repreendidos,
tripudiados. Quando finalmente conseguem entender o que está acontecendo, na tentativa de
configurar-se conforme a sua auto percepção, acabam sentindo a necessidade de poupar-se do
estigma que carregam, esperando que o reconhecimento social venha quando mais
caraterísticas tenham em concordância com o gênero que se identificam: voz, roupas,
costumes, corpo, cabelo. Me questiono, quantas dessas pessoas fariam tantas mudanças se a
sociedade confirmasse a sua vivência, sem necessariamente tem de recorrer a essas mudanças.
O campo social demanda determinados comportamentos, atitudes, papéis a
desenvolver por parte das pessoas. De alguma forma, quanto mais a pessoa “encaixa” nestes
preceitos, mais reforçada sente a sua identidade. E não estou dizendo que esteja certo ou não,
estou simplesmente visualizando como a identidade de uma pessoa se configura na fronteira
de contato.
As pessoas trans, que sentem pertencer ao gênero oposto ao atribuído no seu
nascimento (pelo sexo biológico) muitas vezes procuram vivenciar papéis do gênero que se
identificam desde cedo, sendo repreendidos. O olhar do outro sobre elas, que em determinado
momento é vivido como desaprovação, de alguma maneira leva a que estas pessoas, mesmo
tendo certeza do que são, acabem sentindo a necessidade de se “adequar” às características do
gênero que se reconhecem, para vivenciar uma espécie de “completude”, “verdade”.
5 A GT COMO VIA PARA PENSAR A TRANSGENERIDADE.
Neste movimento polar entre biologia e cultura, onde fica a experiência vivida pela
pessoa?
Como fazer para reconciliar essas suposições teóricas com as vivências das pessoas?
À luz da GT podemos achar a via para que experiência e teoria achem um único
caminho.
Anteriormente foi citado o que os autores Serge e Anne Ginger consideram que a GT
teve como base a fenomenologia na sua teoria. Temos então que o essencial é a vivência
imediata percebida corporalmente no processo que está acontecendo aqui e agora. A
experiência é única de cada ser humano, e o sentido conferido a ela está imerso em fatores
subjetivos independentes de teorizações. A experiência como ponto inicial funciona como
forma de encontrar o “verdadeiro” sentido, sem tentar entender os fatos a partir daquilo que é
dito sobre eles.
Na minha experiência com pessoas transexuais, tenho me encontrado com pessoas que
procuram um entendimento de si através do discurso científico buscando uma legitimação do
seu sentir. Outras pessoas tentam explicar o seu sentir a través de teorias sociais.
Sem desconhecer que os discursos que provêm da medicina e do campo social estão
presentes no campo organismo-ambiente, se faz necessário reconhecer que determinadas
realidades individuais resistem ou transcendem a eles. Resistem aos conceitos que pretendem
dar conta delas esgrimindo uma espécie de verdade, limitando a possibilidade de ação
individual apoiada na experiência do corpo vivido e sentido.
Há pessoas transgêneras que não formam parte de um nicho com fronteiras rígidas
onde as necessidades estão determinadas a priori entorno as conceptualizações que as teorias
fazem sobre eles. A modo de exemplo, algumas sentem necessidade de cirurgias para se sentir
em “concordância” com o sexo, tem outras que a sua vivência as faz sentir “concordantes”
independentemente da anatomia biológica. Tenho me encontrado com pessoas onde as
experiências vividas são múltiplas, indo muito além do que medicamente se concebe como
transexual: uma pessoa que sente sua identidade de gênero em discordância com seu sexo
biológico.
O corpo vivido não é uma realidade física independente do campo social e afetivo
onde a pessoa vive, mas sim uma realidade contextual que remete a um entrosamento de
pertencimentos e reconhecimentos. Talvez no início existiu um mal estar com o seu corpo,
mas ao conseguir uma integração, facilitada pelo reconhecimento dos outros, sua aparência
deixa de ser um empecilho para ser e estar no mundo, sentindo-se plena. Todos estes fatores
encontram-se presentes no campo e a experiência encontra-se influenciada pelos discursos.
Podemos pensar então que a realidade, vista fenomenologicamente é relacional e
construída nesse campo organismo-ambiente. Temos assim o espaço necessário para
reconhecer a existência da multiplicidade de realidades que se apresentam como válidas em
um campo, o mesmo campo do qual todos somos parte. Entrar em contato com introjetos que,
sem percebermos, estão determinando nosso sentir, que engolimos sem mastigar e digerir, que
são ideias que não nos pertencem, nos dá a possibilidade de transitar pelo território e a
oportunidade de agir com liberdade e responsabilidade. É necessário sair do mapa para
experimentar o território num movimento de, mais que tolerância e aceitação, reconhecimento
e integração das pessoas transexuais como seres que transitam este tramo da vida junto a nós.
O mapa não considera as possibilidades de ajustamento criativo, não considera todos
os elementos do campo, as possibilidades de caminhos alternativos que facilitam o trânsito, os
caminhos abertos pelas pessoas para uma melhor movimentação. O mapa é um a priori, e uma
suposição do que a terra encarna e a fenomenologia nos convida a descobrir aquilo que
acontece na experiência de transitar, lugar onde ideias preconcebidas não acham lugar.
É nos fenômenos humanos que o humanismo aponta na hora de conhecer, quebrando
assim com a uniformidade das formas de ser e de estar no mundo, admitindo a diversidade de
experiências atreladas à singularidade de cada pessoa e seu potencial, a possibilidade de
aprofundar no crescimento e autoconhecimento através da própria experiência.
A GT enfatiza que a vivência concreta vai muito além da abstração e a experiência
humana é única e intransferível. A pessoa está em constante transformação, redescobrindo-se,
e a essência da natureza humana está sempre refazendo-se na experiência concreta o que faz
dela algo único e intransferível. É responsabilidade dela a busca pelo sentido e a construção
do seu projeto existencial, como vive a sua vida e exerce, ou não, sua própria liberdade. A GT
considera que o ser humano está em constante processo de vir a ser, se auto-atualizar, se
construir, e isto é o que importa. Assim, os processos pessoais se refletem nos sociais e vice-
versa.
No meu critério, já nas bases filosóficas da GT é possível encontrar um caminho
experiencial, único, diferente e intransferível de como podemos “baixar a terra” a ideia de que
a transgeneridade não constitui nenhuma categoria onde as respostas para ela possam se
encontrar nas teorias biomédicas ou das ciências sociais. Experiência, vivência, liberdade,
originalidade, responsabilidade, por si só, constituem o argumento necessário para entender a
temática. Se o ser humano é entendido e explicado através dessa filosofia, fica claro que a
transgeneridade é passível desse entendimento. A diversidade está contemplada e justificada
filosoficamente pela originalidade, pelo respeito à experiência, por acreditar na potencialidade
do ser humano.
Entrelaçadas com as bases filosóficas temos também os preceitos teóricos da GT que
nos ajudam a entender desde um outro lugar a transgeneridade.
Do exposto anteriormente podemos dizer que a GT é uma terapia do aqui e agora, do
presente, por considerar que este é o único tempo possível para que a experiência aconteça.
Procura que a pessoa flua e possa conseguir um bom contato com o ambiente para ter uma
sensação de satisfação da sua existência. É uma terapia da relação onde o fundamental é a
pessoa em relação com o entorno, daí o entendimento organismo-ambiente. O ser humano é
com o ambiente, ele se cocria e é em determinado entorno, e a experiência acontece em um
entorno que pode confirmá-la ou não.
A GT não tem ideias preconcebidas sobre a forma de viver das pessoas, e includente e
a diversidade dos seres humanos são contemplados nela. Mais que a mudança, procura que as
necessidades, responsáveis pela formação das gestalten, sejam satisfeitas, sendo o motor da
transformação com destino à realização do ser humano. Falar em necessidades implica estar
em contato consigo mesmo para saber o que é meu e o que não. A “autenticidade” da
necessidade é possível perceber só estando em contato com o próprio corpo, com as sensações
e sentimentos, tem a ver com a espontaneidade e não com a automaticidade.
A fronteira de contato, o lugar onde se experimenta o organismo em relação ao
ambiente, tem a ver com o crescimento da pessoa, é o que possibilita a mudança em cada
encontro, propiciada pelo ajustamento criativo, função essencial do self, nas diferentes
situações da vida. Quando necessidades entram em conflito, a melhor forma a conseguir é
aquela que tem a ver com soluções que sejam as melhores possíveis para harmonizar a
situação. Isto implica estar em contato consigo mesmo e com a situação. Neste processo
muitas vezes a forma que o conflito não se produza é considerar a situação total e perceber
que minha própria realidade, embora o ambiente não aceite, só admitirá a minha
autenticidade; não estou “contra do outro” e sim a “favor de mim”, segundo a auto regulação
organísmica. Mas que para isso aconteça, é necessário que a pessoa conte com um
autosuporte suficiente para ser e estar em um entorno que não confirma a sua vivência,
desatando muitas vezes uma maré de adversidades.
A transgeneridade, atravessada por diversos tipos de valores, religiosos, sociais,
morais, transcorre muitas vezes em grupos onde não é aceita, tolerada, e muito menos
confirmada. Se queremos viver num mundo mais harmonioso, a responsabilidade intrínseca
do campo social, cocriador do campo organismo-ambiente, é não só aceitar a diversidade
sexual, é facilitar a inclusão dessas pessoas em cada grupo onde elas transitam.
Acredito que cada vez é mais importante uma mudança de paradigma, que oriente à
pessoa para seu desenvolvimento total como ser humano, achando novas formas de ser, estar
e se vincular com autenticidade no mundo. A GT propõe um modo de relacionamento
autêntico que atende ao processo que acontece aqui e agora, onde emoção, conhecimento e
conduta fazem parte da experiência com a qual há de se entrar em contato. Família, escola e
trabalho tornam-se então fundamentais na hora de pensar a problemática.
5.3.1 Família
4
Dados se encontram no seguinte link https://antrabrasil.org/mapadosassassinatos/ Acesso em
30/09/2018
Em alguns vídeos podemos ver depoimentos onde transexualidade e prostituição,
caminham juntos, é a primeira associação dos pais, como se não existisse outra possibilidade.
Uma espécie de automaticidade se dispara na hora de pensar uma filha transexual achando
que o destino é se prostituir. Acontece com as trans mulheres, e isso fala muito do
entendimento social acrítico que existe. As mesmas pessoas que fazem essa associação,
muitas vezes não se questionam os motivos disso. A experiência de ter uma filha trans lhes dá
a oportunidade de pensar a temática e entender que é possível outra forma de se viver, que
não necessariamente o destino vai ser a prostituição, e que em muitos casos depende deles que
isso não aconteça.
A temática é experimentada, geralmente, de forma muito dolorosa pela a família,
sobretudo no início, mas logo que começam a se informar, a entender que a possibilidade de
existir como uma pessoa trans está no mundo, o processo de aceitação leva ao
acompanhamento dos seus filhos, brindando o suporte necessário para alguém que num início,
talvez, não conte com um autosuporte.
5.3.2 Escola
5.3.3 Trabalho
Na GT os modelos de como "tem que ser" uma pessoa, rejeitando partes próprias para
encaixar em modelos preestabelecidos no campo, baseados em introjetos e projeções, faz do
ser humano, no mínimo, alguém incompleto e insatisfeito. A integração inclui o
reconhecimento das próprias necessidades dentro de um campo. Um organismo saudável está
em contato consigo mesmo e com o meio, e se ajusta criativamente no mundo experimentado
uma relação harmoniosa com o ambiente. Através deste trabalho podemos visualizar que a
única saída possível para que definitivamente a questão da transgeneridade seja entendida
como uma forma mais de ser e estar no mundo, incluída, respeitada e com os mesmos direitos
de qualquer pessoa, é por meio da educação.
Os órgãos governamentais tem o dever de contemplar a todos os cidadãos gerando leis
que estimulem e contemplem todas as formas de diversidade possível. Alguma coisa está
sendo feita, porém, ante as circunstâncias atuais, onde as polaridades a nível político se
marcam fortemente, lamentavelmente isto tem sido causa de ganho de votos. Assim, tem se
estimulado, ao meu ver, discursos e práticas que depreciam as causas LGBT. Porém, quando
uma polaridade emerge, a outra cobra forças para se manifestar. É isso que está acontecendo
nesta espécie de retrocesso. Há uma força que punge por emergir e reivindicar existências
diversas, dizendo “estamos aqui”, “somos”, “existimos”.
Há de se aproveitar essa força para se colocar na frente de pessoas que negam a sua
forma de ser e estar no mundo, um movimento resiliente de todos os que acreditamos num
mundo inclusivo e equitativo, deve avançar por meio da educação. Educação de adultos,
jovens e crianças. Educação de profissionais e leigos.
O movimento há de ser multidirecional. Ao mesmo tempo que fomentar a circulação
da informação entre adultos há de se incluir nas escolas a temática. A separação entre escola e
sociedade precisa sim ser eliminada, pois o ser humano é uma totalidade e as crianças e
jovens são, muitas vezes, aqueles que levam para a sua família novidades que ressignificam
valores, ideias, crenças familiares. Famílias mais flexíveis se deixam penetrar pelo novo que
seus filhos possam trazer, e a configuração familiar muda. Trabalho de “formiga” dirão
alguns, mas acho que é a única forma possível de ir transformando o mundo num lugar mais
amoroso, mais ameno, mas compassivo, menos cruel.
Não é possível, para mim, entender o ser humano sem olhar para o campo, é só assim
que conseguiremos transformar a sociedade num ninho de acolhimento para a diversidade.
6.1 CONSIDERAÇÕES FINAIS
GINGER, SERGE E ANNE. Gestalt: Uma Terapia do contato: 5. ed. São Paulo: Summus
Editorial, 1995
PERLS, FRITZ ET.AL. Isto é Gestalt: 8. ed. São Paulo: Summus Editorial, 1977
https://www.revistaforum.com.br/transfobia-no-mercado-de-trabalho/
http://especiais.correiobraziliense.com.br/transexuais-sao-excluidos-do-mercado-de-trabalho
https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/transexuais-enfrentam-barreiras-
para-conseguir-aceitacao-no-mercado-de-trabalho.ghtml
https://economia.estadao.com.br/blogs/ecoando/transgenero-transexual-travesti-os-desafios-
para-a-inclusao-do-grupo-no-mercado-de-trabalho/
https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/insercao-de-transgeneros-no-mercado-de-
trabalho-ainda-e-precaria/
https://www.saudeocupacional.org/2017/04/direitos-e-garantias-dos-transgeneros-no-
mercado-de-trabalho.html
http://www.dmtemdebate.com.br/tag/trabalhador-transgenero/
https://catracalivre.com.br/cidadania/minha-vida-e-dos-meus-filhos-pastora-trans-fala-sobre-
ser-mae/
https://catracalivre.com.br/cidadania/lulu-mae-da-diversidade-ser-mae-e-amar-
incondicionalmente/
https://catracalivre.com.br/cidadania/e-importante-familia-sair-do-armario-diz-mae-de-garoto-
trans/
https://catracalivre.com.br/cidadania/o-amor-que-ela-me-deu-me-fez-mulher-de-hoje-diz-
filha-trans/
https://catracalivre.com.br/cidadania/dor-de-uma-mae-morte-da-minha-filha-foi-pura-
transfobia/
https://g1.globo.com/educacao/noticia/mec-homologa-resolucao-que-permite-que-
transexuais-e-travestis-usem-o-nome-social-nas-escolas-do-brasil.ghtml
https://catracalivre.com.br/cidadania/mae-denuncia-expulsao-de-filha-trans-de-escola-em-
fortaleza/
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/04/1873366-ministerio-tira-identidade-de-
genero-e-orientacao-sexual-da-base-curricular.shtml
http://justificando.cartacapital.com.br/2018/06/08/a-escola-e-os-alunos-transexuais-poucos-
avancos-muitos-desafios/
https://globosatplay.globo.com/gnt/v/6190483/
https://globosatplay.globo.com/gnt/v/6231984/
https://globosatplay.globo.com/gnt/v/6206873/
https://globosatplay.globo.com/gnt/v/6214887/
https://globosatplay.globo.com/gnt/v/6255381/
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