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O ORDINÁRIO DA NEUROSE

Julio Cesar de Oliveira Nicodemos

1) INTRODUÇÃO

A decisão pela construção do caso clínico a seguir advém no momento em que


observamos que é cada vez mais comum a chegada de pacientes com histórias de inúmeras
passagens ao ato e que realizam um uso abusivo de álcool e outras drogas nos dispositivos
de saúde mental. Tais casos, muitas vezes, trazem consigo dificuldades para os técnicos que
realizam as avaliações diagnósticas que diante seus contextos familiares e da gravidade dos
atos que cometem os fixam em diagnósticos baseados somente em observações
comportamentais que pouco dizem de seu sofrimento e de uma direção possível de
condução do tratamento.
Precisaremos nos descolar de uma apreensão moral baseada no comportamento
da paciente para uma avaliação diagnóstica baseada na posição do sujeito diante o campo
da fala. Para tanto, isolaremos os elementos que demonstram algo que é ordinário ao
campo das neuroses, ou seja, a constituição do sujeito diante suas identificações parentais, o
endereçamento do sofrimento e a função da transferência no tratamento.
Nossa aposta é demonstrar os avanços clínicos do caso a partir de uma retificação
da posição subjetiva da paciente diante seu sofrimento, ou seja, o que foi possível tratar no
caso neste período de estágio enquanto residente de saúde mental.

2) APRESENTAÇÃO

O caso em questão trata-se de uma paciente neurótica que fazia uso abusivo de
derivados etílicos. Tal paciente, que nomearei de Camile1, apresentava episódios

1
Todos os nomes apresentados no texto são fictícios.
desruptivos em seus estados de embriaguez alcoólica onde dizia não se lembrar de nada e
que não se reconhecia diante dos atos que cometia nestes momentos. 2
Identifiquei que os traços clínicos deste caso também se apresentam em outras
situações do nosso cotidiano na saúde mental, portanto, minha aposta é que algo em sua
clínica poderá nos orientar em outros casos, onde há uma configuração familiar peculiar,
porém não rara em determinadas estruturas sociais, que altera a ordem do tabu do incesto
descrito por Freud (1913-14). Algo que é produto de uma determinada cultura e que é
transmitido na cadeia geracional a partir da instituição família, primeira instituição em que
o humano irá se localizar e que terá fundamental importância na sua constituição enquanto
sujeito.
Através do caso clínico demonstrarei um dos caminhos da neurose hoje, que nada
mais é do que a neurose ordinária já descrita desde os primórdios da psicanálise. Para tanto,
precisaremos avançar nessas novas possibilidades de constituição do complexo familiar.
Como ele aparece hoje e quais as conseqüências disso na clínica.
O caso Camile é ilustrativo para traçar um certo perfil de pacientes que cada vez
mais chegam aos dispositivos da saúde mental na medida que o caso traz consigo, num
primeiro momento, o uso do álcool como o problema central da paciente mas que logo se
desloca para algo que não se trata mais somente do ato de beber mas sim de uma posição na
vida.

3) REPETINDO EM ATO

O caso Camile chega até o CAPS-AD a partir dos seus momentos de


embriaguez onde realizava atos repetitivos de violência contra si ou contra terceiros de seu
meio familiar.

2
Este trabalho tem como objetivo apresentar o caso de uma paciente acompanhada por mim em um
dispositivo de saúde mental durante meu percurso como residente, ou seja, um acompanhamento que logo de
saída possuía um tempo circunscrito no período de minha passagem pela instituição que aconteceu no ano de
2008. A proposta será apresentar os elementos recolhidos no final do meu percurso pelo dispositivo que
demonstram um avanço em sua clínica, mesmo sem um ponto final no tratamento analítico, ou seja, uma
“análise inacabada” (Freud 1937-39).
Sua tentativa de esfaquear uma de suas filhas gêmeas de 14 anos (Elina) a levou
até a nossa equipe através de uma denúncia do Conselho Tutelar. Dizia que o costume de
beber surgiu nos últimos 15 anos com seu amante, com quem mantinha uma relação
extraconjugal durante os vários anos de casamento. Repetia diversas vezes nos
atendimentos que tal costume se iniciou para conseguir transar com ele devido à “culpa”
(sic) que sentia em trair seu marido. Afirmava que quando estava alcoolizada, não se
recordava de absolutamente nada do que se passava com ela, incluindo este ato onde tentou
esfaquear uma de suas filhas.
Nos atendimentos quando falava, assumia uma posição onde era “abusada
sexualmente” (sic) pelo amante, que naquele momento já havia se tornado o “companheiro
oficial”. Descrevia detalhadamente os pedidos sexuais que este fazia e como tal convocação
era insuportável para ela, levando a embriagar-se. Um encontro insuportável com o Outro
sexo a fazia sair da cena, embriagando-se e não se recordando de nada, apenas repetindo os
atos de violência e se colocando em risco nas ruas da cidade. Nos atendimentos acontecia
uma atualização disso, um contar repetido e angustiado sobre as cenas sexuais e como se
sentia diante disso: “uma prostituta!” (sic). Uma repetição que a instalava na angústia
diante do Outro e que a levava a um vazio de palavras onde apenas o ato e o esquecimento
de tudo aquilo era possível para ela.
A repetição de Camile aparecia como algo que a fazia ter graves problemas no
laço social. A partir do momento em que perdeu a guarda das filhas e foi encaminhada para
tratamento, reconhecia que alguma coisa a escapava – “eu não sei porque fiz isso com
Elina!” (sic) – e era esse o nó que se desatava e se reatava a cada vez que bebia. Camile
identificava este ponto como problemático em suas relações familiares e dizia isso em seus
primeiros atendimentos através da seguinte frase: “Estou aqui para responder ao social”
(sic). Social este que aparecia para ela, através da fala de seu médico: “Posso ser presa, sou
perigosa! Nunca pensei que alguém fosse me dizer isso, o médico disse!” (sic). Durante
este período repetia essa fala do médico com sofrimento após as passagens ao ato, como um
limite que não gostaria de se deparar: “posso ser presa” (sic).
Suas chegadas ao CAPS eram sempre a partir de uma urgência que se
apresentava o repetido dos atos violentos, chegava chorando e dizendo que iria acabar no
“manicômio judiciário” (sic), pois poderia “matar alguém” (sic). Quando perguntava quem
poderia ser este “alguém”, o nomeava de Sr. Mateus, seu companheiro, e Elina. Neste
momento começou a surgir uma suspeita de que o companheiro havia abusado sexualmente
da filha. Camile ao falar disso, durante vários atendimentos, ficava dividida entre a
possibilidade do fato de Elina ser “mentirosa” (sic) e que sua filha estava inventando tudo
aquilo que contava à ela ou não. Afirmava que também já tentou esfaqueá-lo e fantasiava a
morte do Sr. Mateus durante as noites juntos. Algo que não sabia explicar ao certo, mas o
reconhecia como “um nojento” (sic) e que só estava com ele devido as “ajudas financeiras”
(sic).
Minha posição diante de Camile era a de possibilitar um mínimo de palavras no
vazio angustiante, algo que a colocasse no campo da fala, retirando-a da repetição e
funcionando como um ponto de basta. Adotei uma posição que Freud já apontava em seu
texto Sobre a Psicoterapia (1905[1904]). Neste texto ele afirma que na psicoterapia
analítica, não se pretende “acrescentar nem introduzir nada de novo” durante o setting,
sendo assim, minha tentativa com Camile era de possibilitar que ela mesma trouxesse algo,
produzindo algum intervalo através da palavra entre a angústia que sentia e o ato que se
repetia.
A entrada de Camile no tratamento se deu a partir da instalação de um lugar
transferêncial onde poderia endereçar seu repetir, um repetir que ao ser endereçado a um
Outro já ganhava a marca de uma diferença. Um ato sem palavras que se transformava em
uma atuação endereçada (LACAN 1962-63 p.139). Neste sentido, a instalação da
transferência possível com a paciente passou pela posição de suportar suas falas sobre os
atos que cometia sem cair em restrições pedagógicas e ineficazes, permitindo algum
endereçamento que antes era inexistente. A partir do momento que a paciente estava em seu
tratamento, destaco minha posição diante dela recorrendo a Lacan onde diz que “quando se
está em análise, dirigi-se ao analista. Se ele ocupa esse lugar, pior para ele. Afinal, ele tem a
responsabilidade que cabe ao lugar que concordou em ocupar” (idem p.142).

4) CAMILE E AS LEMBRANÇAS DE SUA INFÂNCIA

“Enquanto eu falo essas coisas eu não faço besteira” (sic). Foi a partir deste
ponto que Camile conseguiu avançar um pouco mais em seu tratamento, falando a princípio
deste homem que dizia querer matar e amar ao mesmo tempo e prosseguindo com as
associações feitas a partir daí. Durante este período, Camile alternou momentos onde
conseguiu trazer, através da fala, novos elementos clínicos nos atendimentos e outros onde
retornava para o lugar de ato. Começava a se colocar de maneira mais clara o ponto que a
levava ao vazio e que a empurrava para ações agressivas, a possibilidade do Sr. Mateus ter
abusado da filha. Após embriagar-se mais uma vez e ter queimado Elina com água
fervendo, disse chorando após meu espanto diante de tal absurdo: “O homem é meu!” (sic).
Camile associava sempre Sr. Mateus à “proteção” (sic), dizendo não sentir
“medo” quando estava em sua companhia: “Sou muito medrosa, tenho medo de ficar
sozinha em casa, de alguém entrar na minha casa e fazer alguma coisa comigo, de ver
baratas em meu quarto” (sic). A presença do Sr. Mateus a fazia sentir-se fora do “medo”,
ou seja, protegida: “ele é como um pai para mim” (sic). Entretanto, colocava-se um impasse
para Camile, pois a presença do Sr. Mateus que a retirava do medo e a protegia, perdurava
somente enquanto este não a convocasse enquanto sua mulher. Caso contrário a devolvia
para o lugar onde oferecia seu corpo como objeto abusado pelo outro, que a fazia relatar
através de uma fantasia de horror cada gesto sexual endereçado a ela por ele, além disso,
introduzia também a possibilidade de sua filha ter algum encontro sexual com o padrasto,
enigma insuportável para Camile.
Curiosamente Camile referia-se a Elina como alguém que a tinha como um
“ideal” (sic) e que descrevia muitas semelhanças físicas entre elas, “as vezes parecemos
irmãs” (sic). Suas falas em relação à filha, a posição que cada uma ocupava neste complexo
familiar, surgia sem qualquer dissimetria, havia uma identificação direta entre elas, como
entre duas irmãs gêmeas. Ao mesmo tempo, o homem da casa, Sr. Mateus, colocado no
lugar de um certo ideal paterno para Camile, retornava fora desse lugar quando as
convocavam sexualmente, trazendo consigo algo do real para ela que a jogava nesse vazio
onde nem se quer vagas lembranças restavam.
O significante “pai” que rondava nossos atendimentos relacionava-se ao homem
que escolheu como amante e possível abusador sexual de sua filha ou um pai que a
protegia, ou seja, um pai com um duplo papel. Incestuoso, e que por isso rompia com as
interdições que constituem uma família marcada pelo tabu, e ao mesmo tempo como uma
autoridade que a defendia do mal. Neste sentido, retomando o mito do pai da horda descrito
por Freud (1913-14), afirmamos que o pai morto e que produz o interdito entre os irmãos
aparece aqui como um pai ainda vivo e que exerce seu poder de gozar de todas as mulheres.
Para traçarmos um pouco melhor qual seria esse lugar do pai para Camile na
estrutura do seu complexo familiar, foi preciso que adentrasse sua história: quem era esse
pai?
“Está internado em um hospital psiquiátrico há muitos anos (...) eu me lembro
de poucas coisas dele, mas nunca vou me esquecer de quando eu era muito criança. Ele me
levou a um bar e um homem mexeu comigo, ele rasgou o homem de cima abaixo com uma
faca” (sic). Iniciava sua fala relatando um pai impotente, trancado em um lugar distante da
cidade e logo sua fala deslizava para o pai que rasga o outro e que pode matar. Neste
momento identificava-se a ele dizendo: “Não gosto de ir visitá-lo, fico com pena dele, uma
sensação ruim. Acho que vou terminar meus dias como ele se eu matar alguém, presa em
um hospital para loucos” (sic).
Ao falar do “pai louco” (sic) identificava-se a ele e aos outros parentes paternos
que, segundo Camile, eram também loucos. Entretanto, minha intervenção diante de tal
série – série de loucos da família paterna – que se colocava, era na tentativa de produzir
alguma marca que produzisse alguma diferença nessa transmissão paterna onde o fim é
“trancada em um hospital de loucos” (sic). Camile colocava-se no lugar de louca como o
pai, mas continuava tal afirmativa dizendo: “mas eu me trato e ele nunca se tratou, isso faz
diferença” (sic).
Aparecia neste ponto de seu tratamento o retorno de um outro significante:
“prostituta” (sic), usado antes para falar da imagem que possuía diante das convocações
sexuais de Sr. Mateus. Falava que sua mãe era “prostituta” (sic) e que seu pai era “cliente”
(sic) de sua mãe, não situando qualquer marca em sua fala que diferenciasse seu pai dos
demais homens de sua mãe, “apenas mais um cliente dela” (sic). Relatava com fúria as
brigas na escola onde todas as crianças sabiam da profissão da mãe e a nomeavam como
“filha da puta” (sic).
Neste período pôde contar uma cena infantil que destaco como fundamental
para localizarmos o lugar possível para ela na trama familiar: “Minha mãe levava os
clientes para dentro de casa e eu a ouvia gemer no quarto, um dia um cliente dela me viu e
disse ‘eu quero essa maiorzinha aqui’, essa maiorzinha era eu!” (sic). Precisamos lembrar
aqui que o significante “pai” também esta inserido na série dos “clientes”, como havia dito
sessões antes. Ao falar disso, demonstrando certa angústia, continuava: “minha mãe virou
uma onça, não deixava ninguém mexer com os filhos dela” (sic). O lugar da mãe para
Camile aparecia como o lugar da prostituta que oferece sua filha para o seu homem, e que
ao mesmo tempo “vira onça” (sic) podendo matá-lo. Neste momento dizia ser como sua
mãe quando suspeitava que Sr. Mateus poderia fazer algo contra sua filha: “sou capaz de
matá-lo” (sic).
Alguns atendimentos depois, ainda falando de sua mãe, retoma as lembranças da
escola quando brigava com as outras crianças ao ser chamada de “filha da puta” (sic). Dizia
que defendia sua mãe mesmo após ter descoberto seu trabalho como prostituta. Todavia,
Camile fez um ponto de diferenciação entre essa sua recordação e a imagem dessa mãe
hoje: “Eu a defendia porque achava que ela fazia aquilo pra sustentar todos os filhos, um de
cada homem. Hoje ela continua fazendo isso. Hoje entendo que ela faz isso porque gosta”
(sic). Falava disso demonstrando raiva e revelou que a mãe atualmente agenciava outras
meninas para a prostituição. Curioso é que quanto mais Camile falava disso, mais aparecia
algo dessa identificação com a figura materna: a mãe que oferece a filha para os homens,
sendo qualquer um, inclui-se “seu homem”. Foram muitos os atendimentos onde Camile
dizia testar Sr. Mateus pedindo para a filha pegar objetos embaixo do sofá quando Elina
estava de calcinha na presença de Sr. Mateus. “Eu reparava como ele olhava para ela” (sic).
Quanto mais falava disso, algo dessa posição retornava para ela mesma, o que eu destaco
como um ponto delicado no manejo com a paciente. Poderia traduzir essa minha
preocupação através da pergunta que me fazia naquele momento: O que poderia acontecer a
partir desse encontro entre Camile e esse lugar onde é convocada a tomar para si, mesmo
que minimamente, alguma responsabilidade, entendendo que tudo isso não acontece sem a
sua participação?

5) RETIFICAR-SE: O POSSÍVEL DIANTE DO IMPOSSÍVEL DE SUPORTAR.

Quando Camile pôde nomear Sr. Mateus de “um monstro” (sic), falando que sua
filha o denunciava através das descrições de gestos eróticos supostamente somente
dirigidos a Camile, aparecia o encontro de Camile com alguma verdade até então negada
por ela. Neste período desapareceu por um mês dos atendimentos. Ao retornar, alguns
quilos mais magra e sem as roupas e os acessórios que costumava usar, disse chorando
ininterruptamente: “Não estou mais morando com ele, ele é um monstro. Agora sei que ele
fez aquilo. Bebi e fui até a casa dele, quebrei tudo! Como eu não pude acreditar na minha
filha?”(sic). Parecia que alguma retificação subjetiva havia ocorrido com Camile diante das
cenas incestuosas que descrevia, um mínimo de deslocamento aconteceu em sua posição no
seu complexo familiar.
O lugar da “mãe que vira onça” substituía aí o lugar da mãe que oferece a filha,
dizia que iria matá-lo mesmo sabendo que poderia ser presa. Ponderando tal decisão, disse
que conseguia se controlar quando não estava embriagada. Afirmava ter perdido “o brilho
dos olhos” (sic) e que estava comendo muito pouco diante de tanto sofrimento.
Com grande esforço falava que cuidaria de todos os filhos a partir de então, mas
ao mesmo tempo, afirmava: “não sei se consigo ser essa mãe que cuida! Eu gosto deles mas
quando perco a paciência posso fazer uma besteira!” (sic). Tentou aos poucos reunir todos
os filhos para esse cuidar, mas afirmava que somente conseguiria ter Elina em sua casa
neste momento e que os outros ficariam na casa do pai. Os períodos em que dizia sofrer de
“solidão” (sic) aumentavam, falava que a vida não tinha mais sentido e que diante do medo
da solidão, era melhor beber para poder enfrentá-lo. No entanto, apesar desse vazio que
dizia sentir e dos atos que cometia diante dele em outros momentos, minha aposta era
acreditar que havia alguma transferência que a faria endereçar-se a mim. Desse lugar foi
possível dizer a ela que eu estaria a disposição para endereçar isso que ela nomeava de
“impossível”: “É impossível ficar sozinha e não beber” (sic).
Chegou a ir ao hospital em que cumpria parte de minha residência procurando
por mim. Em uma de suas idas nos encontramos e disse: “Iria matá-lo hoje, estava em casa
bebendo perfume para ter coragem, mas lembrei de você e vim aqui falar!” (sic).
Esse impossível que surgia era para ela cada vez mais insuportável. Aos poucos
Camile retomava sua posição diante do Sr. Mateus dizendo precisar de sua presença, que o
“amava” (sic) por cuidar dela e que sua filha deveria ir morar com o pai por ser “oferecida”
(sic). Retornava aos atendimentos com seus vestidos e acessórios que costumava usar
dizendo estar “melhorando” (sic). O homem que aparecia anteriormente como “um
monstro” (sic) ratificava seu lugar de necessário para Camile.
6) A COMPLEXIDADE DO VELHO E OS IMPASSES DO NOVO

Os atendimentos foram interrompidos neste momento de seu tratamento por


conta do fim de meu período enquanto residente. Ao mesmo tempo que afirmo que trata-se
de um tratamento inacabado, também percebo que este lugar da palavra instaurou-se
minimamente para Camile, um lugar onde recorrendo a fala poderia não cair neste vazio
que a levava para o ato. Durante todo o tratamento, Camile denunciava o lugar em que
estava em seu complexo familiar, suas identificações parentais, e o lugar de transmissão
que ocupava para Elina.
A proposta de fazê-la falar sem denunciar sua posição diante de Elina e do Sr.
Mateus, suportando seu ir e vir dos atendimentos, assim como ia e vinha na palavra e nos
atos de violência, pôde deixá-la construir algum lugar possível diante desse vazio que a
expulsava enquanto sujeito, sem recordações, sem ter o que dizer. Foi através da palavra
que Camile conseguiu construir algum ponto de basta para esse impossível de suportar que
a solidão trazia, mas que ao mesmo tempo não a retirou completamente desse lugar
ambíguo entre o vazio completo que a faz beber e o lugar em que oferece a si e a filha
como objeto de violência sexual do mesmo homem. Alguma retificação subjetiva foi
possível com Camile, alguma marca, mas não um avanço que apontasse uma elaboração
mais efetiva de seu sintoma.
Minha proposta neste artigo foi também demonstrar uma configuração familiar
em que o tabu do incesto descrito por Freud (1913-14) é ofuscado, mas ainda assim há um
complexo familiar instaurado onde a neurose apresenta-se ordinariamente através das
identificações parentais e que o sofrimento neurótico surge exatamente neste nó edipiano,
ainda que de modo diverso das histéricas clássicas descritas por Freud. Lacan (1978) em
sua obra nomeada de A Família traduzia o lugar da trama familiar na constituição dos
sujeitos e destacava a importância das representações familiares como o principal fator de
transmissão de uma cultura: “ela transmite estruturas de comportamento e de representação
cujo jogo ultrapassa os limites da consciência” (p.15). Nesta mesma obra, (p.67) Lacan
aponta que a formação da neurose, mais especificamente o que diz respeito ao Complexo
de Édipo, é sempre relativo à estrutura social em que se encontra. O que não significa, em
hipótese alguma, a negação da psicose e sua constituição. Um relativismo
filosófico/sociológico sobre a neurose em complexos familiares onde a interdição do
incesto é algo negado excluiria qualquer demonstração clínica sobre a própria neurose.
A contribuição dessas afirmativas que arrisco fazer a partir da clínica com
Camile surge também como uma tentativa de interrogar o raso campo dos diagnósticos
sombrios dos transtornos de personalidade em que a própria paciente já foi incluída em
outros dispositivos de saúde mental. A investigação diagnóstica deve estar colocada mesmo
quando este terreno nebuloso da clínica com usuários de álcool e outras drogas mostra-se
com obstáculos para demonstração de alguma estrutura clínica. Os diagnósticos “curinga”
como os transtornos de personalidade, cada vez mais comuns na atualidade, ou outras
nomenclaturas genéricas que correspondem aos pacientes tidos como “inclassificáveis”,
anulam essa formalização de um texto que revele a estrutura em que o paciente se encontra.
Esta investigação deve se dar mesmo com as adversidades colocadas, mesmo que isso não
seja tão rapidamente formalizado, afinal é isso que poderá melhor nos orientar como
clínicos.

7) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- FREUD, S. (1905[1904]) Sobre a Psicoterapia. Edição Standard brasileira das obras


psicológicas completas de Sigmund Freud:Um caso de histeria três ensaios sobre
sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
- FREUD, S. (1913-1914). Edição Standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
v. XIII, 1974.
- FREUD, S. (1920) Além do Princípio do Prazer. Edição Standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Além do Princípio do Prazer
Psicologia dos Grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, v. XVIII, 1974.
- FREUD, S. (1937-1939). Edição Standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: Moisés e o monoteísmo esboço de psicanálise e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, v. XXIII, 1975.
- LACAN, J. (1963) Passagem ao Ato e Acting Out. Jorge ZAHAR Editor: O
Seminário Livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro, 2005.
- LACAN, J. (1978) A Família. Editora: Assírio & Alvim. Coleção: Pelas bandas da
Psicanálise. Lisboa.

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